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O corpo tecnológico na forja de Ògún

LUIS THIAGO FREIRE DANTAS*

Resumo: Este artigo problematiza os ideais canônicos de formação humana,


com a intenção de repensar o ideal de ser humano e, por efeito, criticar a sua
concretude diante da multiplicidade humana. Tal orientação se contrapõe a
perspectivas de um humanismo que projeta a humanidade como meio de
regulação aos diferentes povos. Com isso, na primeira seção tratamos da figura
do ciborgue como processo especulativo do desejo de construção do pós-
humano por meio da junção do humano e da máquina. Em seguida, propomos
uma educação participativa assentada na divindade iorubana Ògún, patrono da
metalurgia e da abertura dos caminhos, sustentando a comunicação do ser
humano e dos artefatos técnicos enquanto uma ação da corporeidade no mundo.
Palavras-Chave: Filosofia Africana; Formação humana; Ògún; Ciborgue; Pós-
humano.
The technological body in the Ògún forge
Abstract: This article problematizes the canonical ideals of human formation,
with the intention of rethinking the ideal of being human and, in fact, criticizing
its concreteness in the face of human multiplicity. This orientation is opposed to
the perspectives of a humanism that projects humanity as a means of regulation
to the different peoples. With this, in first section we present the figure of the
cyborg as a speculative process of the desire to build the post-human through the
junction of the human and the machine. Then, we propose an education
participatory based in the Yoruba deity Ògún, patron of metallurgy and the
opening of paths, sustaining the communication of the human being and
technical artifacts as an action of corporeity in the world.
Key words: African philosophy; Human formation; Ògún; Cyborg; Post-human.

*
LUIS THIAGO FREIRE DANTAS é Professor Adjunto de Filosofia da Educação no
DESF-UERJ. Doutor e Mestre em Filosofia pela UFPR. Especialista em Educação das Relações Étnico-
Raciais pelo NEAB-UFPR. Licenciado em Filosofia pela UFS.

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Construindo o problema narrativo que pretere a ancestralidade a
“um sinal, um ruído, uma espécie de
Um dos elementos marcantes na
possibilidade utópica” (AKOMFRAH,
construção moderna de ocidente refere-
2011, p. 28). Em concordância com a
se à formação humana, no sentido de
pluriversalidade, neste artigo propomos
determinar quais seriam os valores e
uma via que trata o humano como algo a
princípios que caracterizam a
ser forjado tendo como referência a
humanidade de uma pessoa. Uma
potencialidade do próprio corpo e em
determinação direcionada pela
interação com as dimensões da
valorização da humanitas romana e da
animalidade e da divindade, como
paideia grega como meios normativos,
também questionar a concepção de pós-
que em consequência produz uma
humano entendendo que a sua
hierarquia cultural e uma organização
formulação possui o sentido de recusar
dos povos conforme proximidade e
aspectos identitários em prol de uma
distância de um projeto ocidental de
totalidade.
humanidade. Porém esse projeto
encontra seus limites de aplicação Assim, na primeira seção, a figura do
durante o período das navegações ciborgue é acionada como símbolo do
europeias quando outros povos não se processo especulativo do desejo pós-
adequam previamente a tais valores. A humano de junção do orgânico com o
partir disso, a separação entre o “Eu” e maquínico. Essa junção influencia uma
os “Outros” torna-se uma posição crucial educação pelo rendimento. Em seguida,
na modernidade. este artigo propõe uma educação
participativa assentada na divindade
Problematizando essa separação, o iorubana Ògún, patrono da metalurgia e
presente artigo analisa os ideais da abertura dos caminhos, sustentando a
canônicos de formação humana, na comunicação do ser humano e dos
perspectiva de repensar o ideal de ser artefatos técnicos enquanto uma ação
humano e, por efeito, limitar a sua que forja o ser humano em interação
concretude diante da multiplicidade com a terra.
humana. Por isso, os argumentos partem
de uma articulação entre os conteúdos O ciborgue e a ficção humana
filosóficos presentes na tradição
O desejo ocidental de estabelecer uma
ocidental e africana por meio da
forma ao ser humano perpassa por várias
dialogia, ou seja, “no limite,
etapas históricas, culminando no
indeterminação das posições ou das
fracasso iluminista calcado nos campos
identidades supostamente fixadas ou
de concentração nazista, em que a
dadas para sempre” (SODRÉ, 2017, p.
pergunta “é isto um homem?” (LEVI,
23).
2013) torna-se recorrente. Porém, ao
Essa indeterminação das posições se deparar-se com a ausência de resposta,
constrói consonante às posições cada vez mais o olhar voltou-se para
epistêmicas de outras partes do globo, aquilo que ultrapassaria a ideia de
aqui em especial a África, a partir da humano, o pós-humano, incentivado
concepção de pluriversalidade justamente pela presença de uma época
(RAMOSE, 2011). Tal concepção em que “fica difícil manter não apenas
permite, por exemplo, perceber a as antigas distinções entre natureza e
ancestralidade africana como fonte cultura, entre ciência e sociedade, entre
epistêmica e, com isso, criticar as técnica e política, mas, sobretudo as
ausências estruturais de um regime distinções entre o humano e o não-

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humano” (SILVA, 1999, p. 107). Em onisciente olho biônico” (KUNZRU,
decorrência, o ocidente imaginou outra 2009, p. 125).
figura para ultrapassar os limites de raça
e etnia, gênero e sexualidade e, enfim, Com isso, o ocidente projeta seu
estabelecer aquilo mais próximo do desdobramento na colonização
divino, porém terreno: o ciborgue. ciborguiana, atravessada pela narrativa
de uma guerra codificada na “sigla C3I
Donna Haraway (2009, p. 36) define o (comando-controle-comunicação-
ciborgue como “um organismo inteligência)”, que precisamente
cibernético, um híbrido de máquina e “mapeia nossa realidade social e
organismo, uma criatura de realidade corporal e também como um recurso
social e também uma criatura de ficção”. imaginativo que pode sugerir alguns
Nesse misto, tal criatura torna-se o frutíferos acoplamentos” (HARAWAY,
ideário político capaz de promover, ou 2009, p. 37). Uma vez acoplado, o
ao menos incitar, a imaginação de humano torna-se uma quimera,
modificar as estruturas do mundo e atuar habitando infinitas realidades e
politicamente recusando ações transformado o mundo em um espaço
identitárias. No entanto, o ato de “pensar sem gênero, sem raça, sem gênese,
como humano” revela justamente a “mas, talvez, também, um mundo sem
compreensão de si mesmo como alguém fim” (HARAWAY, 2009, p. 38). Assim,
em permanente falta e em busca uma a estratégia de codificar aquilo que
totalidade. Não gratuitamente, ações aparece e alocá-lo em uma série de
identitárias, repletas de marcadores dados e estatísticas se notabiliza como a
sociais (por exemplo, gênero, raça, etnia, ação mais importante na época
sexualidade, idade, classe, entre outros), contemporânea. Por isso, Haraway
são destituídas de importância em prol (2009, p. 39) explica que “[n]ão mais
de um plano unitário de sociedade. estruturado pela polaridade do público e
do privado, o ciborgue define uma pólis
Na realização desse plano os ciborgues tecnológica baseada, em parte, numa
aparecem como a concretização do telos revolução das relações sociais do oikos –
apocalíptico de dominância ocidental, a unidade doméstica”. A noção de
pois “postulam uma subjetivação definir aquilo que é real pela
abstrata, que prefiguram um eu último, possibilidade de medição transforma-se
libertado, afinal, de toda dependência – na capacidade de computar, organizar e
um homem no espaço” (HARAWAY, reter informações em acelerações
2009, p. 71). Dominação facilmente intermitentes: “A informação é apenas
justificável por situar-se na fronteira da aquele tipo de elemento quantificável
ficção científica e da realidade social, já (unidade, base da unidade) que permite
que a junção homem-máquina visa o uma tradução universal e, assim, um
aumento de rendimento atlético e de poder universal sem interferências, isto
saúde. E ainda promove a possibilidade é, aquilo que se chama de ‘comunicação
de manter longinquamente a potência eficaz’” (HARAWAY, 2009, p. 65).
corpórea desde que haja submissão a
certos procedimentos. Tal como um Nessa comunicação há uma vontade de
processo que “[c]aso se quisesse informação incessante a todo e qualquer
construir um corpo melhor, tudo que se momento acerca do ser humano
tinha a fazer era melhorar os configurado em cidadão. Para executar
mecanismos de feedback ou conectar um essa configuração, a informação
outro sistema – um coração artificial, um submete-se cada vez mais à vontade e ao

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interesse de cada cidadã e cidadão. Um sobrepondo qualquer limitação da
interesse que regula toda e qualquer corporeidade humana.
informação e produz a cada pessoa um
aparente acesso não à veracidade da Com essa situação, a capacidade
informação, e sim aquilo que lhe contínua de melhoramento transfigura-se
aparenta mais útil no momento. em uma pedagogia de rendimento, que
tem a peculiaridade de distinguir aqueles
Por mais que a figura do ciborgue tenha mais hábeis no domínio tecnológico
o aparato de atender a esse desejo de daqueles mais suscetíveis a impulsos
regulação humana, para Haraway a psíquicos. O período na escola
presença contínua do ciborgue elucida a transforma-se em um espaço-tempo de
quebra de três fronteiras que, para a preparo à economia de produção e do
modernidade, tornaram-se empecilhos consumo, organizado pelo poder do
para efetuar o alcance dos valores a mérito. Uma organização que condiciona
todos aqueles que puderam crer na o ganho e a perda situados
modificação do mundo: “O ciborgue exclusivamente no indivíduo, dirimindo
aparece como mito precisamente onde a qualquer relação com a coletividade.
fronteira entre o humano e o animal é
Diante desse quadro é importante trazer
transgredida. [Pois] assinalam um
à tona outra compreensão, que visa a
perturbador e prazerosamente estreito
humanidade como existente desde que
acoplamento entre eles” (HARAWAY,
haja comunicação com a não-
2009, p. 41); “As máquinas pré-
humanidade (tanto orgânica quanto
cibernéticas podiam ser vistas como
inorgânica), pois há uma força naquilo
habitadas por um espírito: havia sempre
que existe e envolve diferentes etapas de
o espectro do fantasma na máquina”
vida uma troca de posições. Com isso se
(HARAWAY, 2009, p. 41); e, por fim,
considera forjar o humano, e não formar
“[a] terceira distinção é um subconjunto
o humano.
da segunda: a fronteira entre o físico e o
não físico é muito imprecisa para nós” Inter-ação entre o humano e a
(HARAWAY, 2009, p. 43). Com tais divindade
rompimentos, a atuação política precisa
a todo instante de atualizações, pois há Como pudemos observar, as indagações
um aceleramento do antigo diante da sobre os limites do corpo humano são
fagulha do presente e a expectativa de elementos propiciadores à questão do
um futuro. pós-humano, já que o corpo situa cada
pessoa no mundo e aparenta a
Desse modo, a atividade técnica detém impossibilidade de superar a condição
maior valor entre aquelas mais próximas mundana de passagem. Com isso, o
das observações das inconstâncias ciborgue torna-se o símbolo ficcional
humanas, pois o constante é mais para ultrapassar as barreiras humanas.
eficiente e eleva respostas óbvias como Porém, um corpo específico da
mais essenciais à vida humana. Haraway humanidade faz com que esse projeto
(2009, p. 67) destaca ainda como “[a]s ficcional da mente humana assente os
ciências da comunicação e a biologia pés no chão: o corpo negro. Pois, como
caracterizam-se como construções de afirma Frantz Fanon (2008, p. 117),
objetos tecnonaturais de conhecimento”, quando o branco deseja o mundo o quer
em que a atual diferença entre máquina e apenas para si: “Ele se considera o
organismo visa o corpo como um senhor predestinado desse mundo. Ele o
instrumento capaz de ser melhorado, submete, estabelece-se entre ele e o

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mundo uma relação de apropriação”, por cultivo e brotamento dos alimentos
outro lado, “[...] para nós (os pretos), o perfazem a ação compartilhada entre a
corpo não se opõe àquilo que vocês divindade, a terra e os seres humanos.
chamam de espírito. Nós estamos no Assim, se tomarmos a fonte etimológica
mundo” (FANON, 2008, p. 116). de cultura como cultivo humano, no
sentido de construção de valores que
Com isso, neste artigo entendemos que o
afirmam a humanidade, a agricultura
humano se forja em uma ação comum
exemplifica ao aprendermos o “segredo
com a experiência cotidiana, refutando o
da agricultura” que transmitido aos
entendimento de que ele tem que ser
humanos os engradece e,
formado, como se houvesse algo antes
simultaneamente, dignifica Ògún por
da experiência que pudesse modelá-lo.
justamente ensinar o cuidado em colher
Para entender como acontece esse forjar,
da terra os alimentos. Desse modo, há
a orientação é por via do Itan (narrativa):
uma pedagogia compartilhada entre a
“Ògún ensina aos homens as artes da
tríade: humanos (vivos e não-vivos),
agricultura”. Nele poderemos associar a
divindades e terra (animais, vegetais e
aprendizagem da agricultura como meio
minérios).
de colher aquilo que conduz o ser
humano ao encontro com a divindade Uma tríade que encontramos em várias
Ògún e com a própria terra. linhas da filosofia africana,
O Itan relata como Ògún, depois de principalmente quando há uma reflexão
longo período no Orum (campo dos sobre como certos povos constroem
Orixás), deseja retornar ao Ayê (campo argumentos e princípios da realidade.
dos humanos) para poder ensinar aquilo Nesse momento, para fundamentar essa
que aprendera, mas nesse retorno Ògún interpretação do Itan de Ògún,
deseja exibir sua força e provocar dialogaremos com a filosofia de Leopold
admiração pela sua autoridade. Para isso, Sédar Senghor (1964), pois o autor
Ele consultou o Ifá (o oráculo) que O questionou as ideias humanistas
aconselhou a fazer um ebó (oferenda) europeias a partir do privilégio de uma
com a intenção de abrir os caminhos. história única que deslegitima as
Quando chegou ao Ayê: contribuições de diferentes povos na
construção da humanidade. Esse ato de
Em pouco tempo foi reconhecido
deslegitimar provém pela compreensão
por seus feitos. Cultivou a terra e
plantou, fazendo com que dela o desse olhar humanista que observa
milho e o inhame brotassem em povos vivendo na proximidade entre
abundância. Ògún ensinou aos seres animal e humano como direcionados
humanos a produção do alimento, pelo predomínio da irracionalidade.
dando-lhes o segredo da colheita,
tornando-se assim o patrono da A irracionalidade diz respeito ao olhar
agricultura. Ensinou a caçar e a europeu sobre o africano como alguém
forjar o ferro. Por tudo isso foi repleto de emoção e com pouco
aclamado rei de Irê, o Onirê. Ògún é resquício de racionalidade, porém para
aquele a quem pertence tudo de Senghor a emoção trata-se de como o
criativo no mundo, aquele que tem mundo e o africano “pulsam” em
uma casa onde todos podem entrar conjunto e o corpo negro apenas
(SÀLÁMÌ, 1997, p. 75).
explicita tal conjunção. Para o
Nessa narrativa transparece a relação imaginário colonial, destaca-se uma
ensino e aprendizagem entre Ògún e os humanização dos animais e dos
seres humanos, já que os processos de fenômenos da natureza “como

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instrumentos e signos de sua alma mundo, pois a habilidade de Ògún
pessoal” (SENGHOR, 1964, p. 71). Tal provém justamente do “quarto espaço,
movimento é denominado erroneamente um continuum escuro de transição onde
como “animismo negro”, quando, ocorre a inter-transmutação de essência-
conforme explicação do autor, a ideal e materialidade” (SOYINKA,
concepção africana é de que há um 1990, p. 26), que permite ao Orixá
“mundo de almas” que possuem transitarem nas dimensões das
variantes “que animam cada ser, cada divindades, dos vivos e dos não vivos.
planta, cada coisa fornecida de um Nessa transição, a descoberta do “Outro”
caractere próprio: montanha, caverna, dá-se por meio do próprio campo de
rocha, etc.” (SENGHOR, 1964, p. 71). sensações, pois na identificação do
Esse caráter animado, afirmando as “Outro” há uma simpatia com a presença
forças espirituais comungando entre si, alheia e subjetiva que possibilita a com-
deve ser interpretado como antropo- unicação. Acompanhando tal reflexão,
psiquismo: podemos associá-la a Senghor, que
interpreta a ação do negro-africano não
Parece que o negro é emotivo, o
meramente como assimilação, mas
objeto é percebido cada vez nos
caracteres morfológicos e em sua abrindo um espaço para ocorrer uma
essência. Fala-se do realismo simbiose entre sujeitos:
sentimental, de seu modo de Ele vai com o Outro em simbiose,
imaginação. Realismo negro que, ele con-hece o Outro. Sujeito e
nas situações inumanas, será a objeto são aqui, dialeticamente
reação humana para levar ao humor. confrontados no ato mesmo da
Por um instante, eu diria que o consciência que é o ato do amor.
negro não pode imaginar o objeto ‘Eu penso, logo existo’ escreveu
diferente de si em sua essência. O Descartes. A marca já é feita, pensa-
objeto empresta uma sensibilidade, se agora qualquer coisa. O negro
uma vontade, uma alma humana, africano poderia dizer: ‘eu sinto o
mas do homem negro [e da mulher Outro, eu danço o Outro, então eu
negra]. Notamos que isso não é sou’. Ou dançar, é criar, sobretudo
exatamente antropomorfismo [...]. ainda que a dança é a dança do
Fala-se de animismo; eu diria amor. E, em todo caso, o melhor
antropo-psiquismo (SENGHOR, modo de conhecimento
1964, p. 24, grifo do autor). (SENGHOR, 1964, p. 259, grifos do
autor).
Nessa definição, ao retomarmos o Itan
de Ògún percebemos que aquilo A utilização da “dança” como
cunhado como distanciamento entre contraposição ao “pensar” (de ordem
sujeito e objeto não transparece nos cartesiana, na concepção do autor)
relatos sobre os feitos desse Orixá, já exemplifica a síntese de alteridade que
que “Ògún é aquele a quem pertence desfaz o próprio conceito de alteridade,
tudo de criativo no mundo” (SÀLÁMÌ, pois não há uma separação entre o Eu e
1997, p. 75) e, como tal, faz as o Outro. Além disso, o enunciado
ferramentas através do queimar a areia “penso, logo existo” problematiza a
transformando-a “na quente massa que concretude do mundo exterior a partir da
se solidificou em ferro” (SÀLÁMÌ, minha própria consciência. Quando o
1997, p. 69), que é a base para enunciado “danço, logo existo” afirma a
construção de enxadas, foices, pás, própria terra no tocar humano e na
facões, arados, etc. Uma construção reação com a existência do mundo “ele
sempre observando a própria matéria do abraça naturalmente o ritmo do objeto.

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No sentido carnal do ritmo é um dos percepção humana para interagir com as
seus caracteres específicos” divindades e, por efeito, os seres
(SENGHOR, 1964, p. 261). Por tais humanos aprendem que a humanidade é
aspectos, há uma educação participativa um elemento continuamente forjado e
que unifica o Eu no Outro, ambos em contínuo compartilhamento.
comunicados pela emoção. Vale
Considerações finais
ressaltar ainda que Senghor traduz
emoção por certa atitude dos corpos, não Os valores calcados como essenciais
como distinção ao pensamento: “a para determinar o que define a
emoção é essa relação do ser integral – humanidade, geralmente se calca na
consciência e corpos [...], irrupção do separação de um “Eu” em relação ao
mundo mágico no mundo da “Ele”, aquele compreendido como
determinação” (SENGHOR, 1964, p. estranho e incomum, que precisa ser
263). superado e quando não eliminá-lo. Não
gratuitamente que o humano
Dessa irrupção as forças regentes e
determinado ocidentalmente como
animadoras fornecem cores e ritmos,
“Eu” – homem, branco, europeu,
vida e sentido, em ascensão com um
heterossexual, esbelto, adulto,
estado de consciência manifestada na
proprietário, ausente de deficiências
“dança do amor”, em que “e-moção é
físicas ou mentais – enxerga a si
co-moção” (SENGHOR, 1964, p. 264,
mesmo como uma norma e quaisquer
grifos do autor). Assim, a educação
outros que lhe faltem um desses
passa ser um movimento compartilhado
adjetivos como desvios:
em coletivo para forjar uma série de
valores e de princípios que notabilizam a [...] em função do rosto Homem
civilização humana como aquela que branco que pretende integrar em
interage com os elementos terrenos. ondas cada vez mais excêntricas e
Exemplificado na criação das retardadas os traços que não são
ferramentas feitas por Ògún: conformes, ora para tolerá-los em
determinado lugar e em
O ferro era a mais dura substância determinadas condições, em certo
que ele conhecia, mas era maleável gueto, ora para apagá-los no muro
enquanto estava quente. Ògún que jamais suporta a alteridade (é
passou a modelar a massa quente. um judeu, é um árabe, é um negro, é
Ògún forjou primeira uma tenaz, um um louco..., etc.). (DELEUZE;
alicate para retirar o ferro quente do GUATTARI, 1996, p. 41).
fogo. E assim era mais fácil manejar
a pasta incandescente. Ògún então Com esse infortúnio diante da
forjou uma faca e um facão. alteridade, a determinação da presença
Satisfeito, Ògún passou a produzir de um “Eu” tem como objetivo não se
toda espécie de objetos de ferro, fincar no plano terreno, mas alcançar o
assim como passou a ensinar seu plano divino. Não sendo alcançado,
manuseio (SÀLÁMÌ, 1997, p. 73). então se busca na junção com a
máquina uma formação além do
Em outras palavras, mesmo na mais dura
humano.
substância há maleabilidade, apenas
requerendo uma ação em comum para Por outro lado, com uma referência de
entender as suas potencialidades, já que humanidade a partir do horizonte
o mundo não se trata de um objeto a ser africano, a problemática perpassa pela
conhecido para enfim corrigi-lo. figura de Ògún, divindade que forja o
Diferentemente, o mundo influi a ferro e ensina aos seres humanos

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diversas ferramentas para interagirem Referências
com o mundo. Interação esta que AKOMFRAH, John. “Digitopia e espectros da
contém a peculiaridade de se diáspora”. In: MURARI, Lucas; SOMBRA,
comunicar com as diferentes dimensões Rodrigo (Org.). O cinema de John Akomfrah:
Espectros da diáspora. Rio de Janeiro: LDC,
que envolvem a realidade: seres vivos,
2017.
não vivos e divindades. Com isso, a
própria concepção de humanismo é DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil
platôs: capitalismo c esquizofrenia, vol. 3. Rio
repensada, pois não se norteia para de Janeiro: Ed. 34, 1996.
destacar o racional e ocultar quaisquer
resquícios de animalidade, e sim suleia HARAWAY, Donna J. Manifesto ciborgue
Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no
para uma ação conjunta entre razão e final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu
emoção. Nesse ínterim, por exemplo, a (org.) Antropologia do ciborgue: as vertigens
filosofia deixa de ser uma disciplina do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica
que regula as atividades humanas a Editora, 2009.
partir de um eixo universal, para FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras
atentar às especificidades humanas, Brancas. Tradução de Renato de Silveira.
pois “[r]eivindicar que só há uma Salvador: EDUFBA, 2008.
filosofia ‘universal’ sem cultura, sexo, FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. Orí: a
religião, história ou cor, é afirmar que a saga atlântica pela recuperação das identidades
particularidade é um ponto de partida usurpadas. In: Edileuza Penha de Souza. (Org.).
Negritude, Cinema e Educação. 1ed.Belo
válido para a filosofia” (RAMOSE, Horizonte: Mazza, v. 3, p. 134-146, 2014.
2011, p. 11).
KUNZRU, Hari. Genealogia do ciborgue. In:
Portanto, a proposta de pensar a SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Antropologia do
humanidade a partir da forja ensinada ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo
por Ògún é construir uma educação da Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
partilha entre as dimensões que LÉVI, Primo. É isto um homem? São Paulo:
entrecruzam no corpo negro e exibe a Rocco edições, 2013.
tecnologia como elemento orientador, RAMOSE, Mogobe. Sobre a legitimidade e o
pois ela se exerce no diálogo com o estudo de filosofia africana. Ensaios Filosóficos.
divino. Tanto mais refuta a restrição Volume IV, outubro, p. 6-25, 2011.
ocidental sobre o indivíduo e seus SÀLÁMÌ, Síríkú (King). Ògún: dor e júbilo nos
corpos determinados a certos espaços, rituais de morte. São Paulo: Oduduwa, 1997.
para evocar a individualidade na relação SILVA, Tomáz Tadeu. O currículo como
com a comunidade: “É o pertencimento fetiche: a poética e a política do texto curricular.
à comunidade que nos torna não apenas Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
humanos no geral, mas uma pessoa em SENGHOR, Leopold Sédar. (1964). Liberté I.
particular, daí a tamanha crueldade de Négritude et humanisme. Paris: Seuil.
destruição da identidade perpetrada pela SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Rio de Janeiro:
colonização, pois retirou de nossas/os Editora Vozes, 2017.
ancestrais uma parte de seu ser” (FLOR SOYINKA, Wole. Myth, Literature and the
DO NASCIMENTO, 2014, p. 140). Para African World. Cambridge: Cambridge
assim, quem sabe, entender que a University Press, 1990.
humanidade é uma parte que apenas tem
sentido na comunicação com o todo e
Recebido em 2020-05-22
com emanação de múltiplas vozes. Publicado em 2021-03-06

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