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Uma vantagem de estar longe do Brasil, a um oceano de distância, é não

precisar escrever sobre “a fábula da porca e do veado”, proibida para menores


de idade. Evito assim a penosa vulgaridade do discurso político atual brasileiro.
Acabo de sair de um cinema em Paris, onde assisti a “Sorry we missed you”, o
filme mais recente do diretor britânico Ken Loach, 83 anos. Um soco no
estômago. Loach sempre coloca o homem comum, o trabalhador, como
protagonista de seus dramas. Seu cinema é vigoroso e universal. Arrebatador.

A história se passa em Newcastle, na Inglaterra. Mas poderia ser em qualquer


lugar. É sobre a uberização de nossas vidas, a precariedade de nossas
relações de trabalho, a ilusão da informalidade como panaceia para o
desemprego. Ah, não quero patrão, eu mesmo serei meu patrão, serei
colaborador. O patrão passa a ser um algoritmo, o controle passa a ser no
celular. Dias de 14 horas de trabalho, sem folga.

O filme mostra uma realidade que, segundo Loach, todo mundo conhece mas
evita comentar. Ricky Turner, ruivo, forte e tatuado, orgulha-se de jamais ter
ficado desempregado. Mas não consegue economizar e quer o melhor para
sua mulher, Abby, cuidadora de idosos, e para os filhos, Lisa, de 11 anos, e
Seb, adolescente que falta às aulas para grafitar nas ruas. Ricky resolve então
ser entregador para plataformas digitais. O filme não cita a Amazon. Mas Loach
faz a associação em entrevistas.

Ricky cai na conversa de que será emancipado. Deixará de ser mero


empregado numa empresa, dirigirá seu próprio caminhão e fará entregas para
a companhia PDF (Parcels Delivered Fast). Não receberá salários, mas “fees”
– uma remuneração semanal com base em sua produtividade. Ricky contrai
dívidas para comprar uma van, faz a mulher vender seu carro e se torna
escravo das entregas. A liberdade é uma miragem no deserto.

Fica abandonado a seus próprios riscos e multas. Um aparelho de scanner não


segue apenas os pacotes. Segue ele próprio e começa a apitar quando Ricky
se afasta da van por dois minutos. Ele urina numa garrafa de plástico que fica
na mala, para não perder tempo. Está livre para trabalhar até dormir ao volante,
mas não para tirar folga por doença, estresse ou problema familiar. Com o
sofrimento e a ausência de pai e mãe, a família se desagrega, a filha sensível
começa a fazer xixi na cama, o filho rebelde, inconformado, rouba tintas, é
suspenso na escola e confronta o pai. Perde-se a ternura em casa. Falta
empatia, falta tempo para mostrar amor.

Na garagem da PDF, ele não encontra colegas de trabalho. E sim


competidores. Todos disputando a máxima produtividade, as metas, o maior
número de pacotes entregues - e não exatamente a qualidade cordial do
atendimento. A competição se torna doentia. Não há mais departamento de RH
e sim RD, Recursos Desumanos. Loach é neorrealista e seus filmes nada têm
de ficção. “Sorry we missed you” torna o cotidiano um suspense. Qualquer
tragédia pode acontecer. Na plateia, ficamos sem fôlego.

Ninguém precisa ser de direita ou de esquerda para saber que o trabalho


enobrece o ser humano. O Brasil tem mais de 13 milhões de desempregados.
Vemos filas quilométricas em busca de trabalho. Todos suam para faturar algo.
Quem ainda não encontrou, entre os motoristas de táxis de aplicativos,
engenheiros, economistas, sociólogos, jornalistas formados? Não era assim.
Aos 19 anos, na universidade e trabalhando meio-expediente como repórter,
meu salário era suficiente para alugar um conjugado na Zona Sul do Rio de
Janeiro e viver sem o dinheiro de meus pais. Jovens encontravam a
independência financeira mais cedo. Parecia mais justo e acolhedor o mercado
de trabalho.

Vemos no Brasil os deputados, os senadores, os juízes do Supremo aprovando


aumentos e privilégios para si mesmos, os filhos do presidente acusados de
maracutaias jamais investigadas a fundo, os cargos-fantasma no Congresso,
negociados até por telefone em troca de comissões fraudulentas, uns "continho
aí". E fica por isso mesmo. Talvez por isso, hoje, nossos filhos no Brasil
desconfiem do ultraliberalismo. Um sistema não pode beneficiar apenas quem
é ultrarrico ou ultrapoderoso, não pode aprofundar cada vez mais a
desigualdade. Ken Loach filma a derrota dos honestos e sonhadores. Dos que
teimam em dar um duro danado e não abrem mão da ética. Às custas da saúde
e da família. É um filme implacável e pessimista.

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