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Mariana Rezende - Dissertacao
Mariana Rezende - Dissertacao
UFF
Instituto de Letras
2012
1
MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE
2012
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MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE
BANCA EXAMINADORA
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Suplentes:
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À minha mais que amada mamãe, Carmen Regina; ao meu mais
que amado papai, Marco Antonio; ao meu mais que amado
maninho, Marcelo Resende; à minha preciosa vovó Flora
Fernandes; a um companheiro de longa caminhada, André Lee e
a todas e todos que, direta ou indiretamente, emanaram boas
vibrações para que este dia especial fosse finalmente alcançado.
4
Para aquelas pessoas que conquistaram tantas coisas maravilhosas como eu conquistei,
não há a mínima possibilidade de não agradecer àqueles que participaram dos
momentos vitoriosos e dolorosos, também, se se pretender não incorrer no erro da
ingratidão. Por isso, existem muitos agradecimentos a serem feitos. Tantas são essas
figuras especiais merecedoras de minha lembrança, que é justificável um eventual
esquecimento não proposital.
Agradeço, primeiramente, àquela força que nos move, nos faz sentir que a vida vale a
pena, que faz o sol aquecer nossas manhãs, por vezes frias; que faz a lua pratear o nosso
céu providencialmente apagado, para que as estrelas possam brilhar; que nos dá a beleza
das montanhas e o frescor das águas de rios e mares. Essa força superior – só pode ser
superior, porque até mesmo nós, seres que se julgam a forma mais inteligente de que se
tem conhecimento comprovável, não somos capazes sequer de imaginar a
potencialidade dela – que permite que tenhamos uma capacidade tão grande de amar, o
mais sublime dos sentimentos.
Em segundo lugar, agradeço aos responsáveis diretos não só por me permitirem residir
neste mundo, como também por me ensinarem todos os valores com os quais, hoje,
procuro viver minha vida. Foram essas duas magníficas figuras, essenciais em todos os
possíveis sentidos do termo, que me deixam como exemplo a necessidade de amar,
acima de tudo, e de sempre buscar fazer o melhor para ajudar sempre, seja quem for ou
em que situação estiver. Essas duas exemplares figuras, ensinaram-me – e continuam a
ensinar, dia após dia – tantas coisas, que é impossível descreveraqui, ou em qualquer
outro lugar, todo o sentimento de gratidão e amor que lhes devoto. Assim,
reconhecendo que é praticamente impossível não ser clichê nem piegas nessa hora,
agradeço aos meus mais que amados papai e mamãe, pessoinhas que tanto admiro, em
primeiro lugar.
Em terceiro lugar, agradeço aos auxílios diretos e indiretos de meu mais que amado
maninho, Marcelo Resende, mais conhecido como Xelo, que, mesmo distante
fisicamente a maior parte do tempo, fornece-me incessantemente muitos ensinamentos e
um suporte emocional inestimável; ao meu querido companheiro que, comigo,
percorreu um longo caminho, compartilhando alegrias e dores, celebrando o nosso
amado Vasco, a nossa indignação com a sociedade tal como está constituída, os nossos
momentos de rap, e construindo as pontes que nos levarão a uma sociedade socialista,
5
mas de quem o tempo, esse senhor de nossas vidas e de nossa história, acabou me
afastando, André Lee; à minha mais do que querida e admirada orientadora que soube,
com seu tato, paciência e muito, mas muito conhecimento, carinho e sabedoria, permitir
que esse momento, tão ansiosamente aguardado, pudesse finalmente se concretizar, a
agora designada “minha professora”, com esse pronome possessivo constituindo parte
obrigatória da expressão, Bethania Mariani; à minha muitíssimo amada vovó, a quem
muito admiro pele exemplo de dedicação, força e coragem que representa, e com quem
tenho algumas boas diferenças conceptuais, Flora Fernandes; à minha amadíssima
madrinha, Luiza Maria, que deu um suporte todo especial e com ímpar dedicação nos
momentos mais delicados; enfim, a toda a minha família e amigos que, juntos,
formaram um gigantesco envoltório de bons pensamentos e energia positiva para que eu
pudesse, hoje, colher os frutos dessa árvore plantada há tantos anos.
Por fim, agradeço por todas as dificuldades que me encontraram – e ainda encontram –
em momentos felizes, pois elas me ensinaram – e continuam a ensinar – que não se
passa por essa vida incólume e que sempre, sempre, por mais que não sejamos capazes
de compreender isso num primeiro momento, podemos aprender e, assim, sair mais
preparados para enfrentar a próxima queda. Não nos esquecendo nunca de que jamais
estamos sós e de que todos os momentos por que passamos são merecedores de
agradecimento.
6
SUMÁRIO
7
3.2 Língua fluida e língua imaginária: a construção da resistência à língua, na
língua.............................................................................................................................100
3.2.1 A negação .........................................................................................................102
3.2.2 A adversativa ....................................................................................................110
3.2.3 A condicional ....................................................................................................116
3.2.4 A causal ............................................................................................................119
3.3 Considerações finais sobre as análises .............................................................122
3.3.1 Ameaça .............................................................................................................129
3.3.2 Causa .................................................................................................................130
3.3.3 Tempo ...............................................................................................................131
5 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................138
6 ANEXOS ..........................................................................................................142
6.1 As letras das músicas do álbum A Marcha Fúnebre Prossegue (Facção Central,
2001) utilizadas na pesquisa .........................................................................................142
6.1.1 Dia comum (L2) ................................................................................................142
6.1.2 A guerra não vai acabar (L3) ............................................................................143
6.1.3 A marcha fúnebre prossegue (L4) ....................................................................143
6.1.4 Aqui são teus cães (L5) .....................................................................................144
6.1.5 Desculpa, mãe (L6) ...........................................................................................145
6.1.6 Sei que os porcos querem meu caixão (L7) ......................................................146
6.1.7 O show começa agora (L8) ...............................................................................147
6.1.8 Tensão (L9) .......................................................................................................147
6.1.9 De encontro com a morte (L10) ........................................................................148
6.1.10 Eu tô fazendo o que o sistema quer (L11) ........................................................149
6.1.11 Discurso ou revólver (L12) ...............................................................................150
6.1.12 Sem luz no fim do túnel (L13) ..........................................................................151
6.1.13 Apologia ao crime (L14) ...................................................................................152
6.1.14 Justiça com as próprias mãos (L15) ..................................................................153
6.1.15 A paz tá morta (L16) .........................................................................................154
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RESUMO
9
ABSTRACT
This research, under the scope of the french school of Discourse Analysis, aims to
analyze the underground rap operation, based on a corpus constituted by song lyrics
from the album A marchafúnebreprossegue, released in 2001, by a rap crew from São
Paulo called Facção Central, with the theoretical contribution of some concepts
proposed by Orlandi: imaginary language and fluid language (2009),and language order
and language organization (1996). The concept of resistance, proposed by Pêcheux
(1980), is the point from where we have started our studies. Our analysis were guided
by the hypothesis that the enunciator-subject, the rapper, resists to the meaning of
language, such as grammar establishes; of work, such as the capitalist ideological
formation tries to determine; and, finally, of musical movement, such as media tries to
dictate. Our clues were the forms that, linguistically and grammatically, show the
effects of cause, adversity, condition and denial, known as coordinative and
subordinating conjunctions and adverbs.We went through a quick analysis of some
designations, in order to access the built meanings about the other one, described on the
underground rap produced by Facção Central crew. The analysis allowed to verify the
existence of two patterns of meanings, also called discursive formation, which
maintains a conflicted relationship between them: barbarism and questioning discursive
formations. The analysis also allowed to see that the rapper-subject, although from
inside of the discursive line, means himself conflicting to the historically sustained as
“official” meanings, due to the ideological interpellation and to the unconscious
operation, sticks himself to the meanings originated from the barbarism formation,
against what he should stand. Thus, although resists to some meanings of the barbarism
formation, the underground rap speeches we have analyzed, produced by Facção
Central, are not able to disrupt with the ideological formation, which rules their
identification processes: the capitalism ideology, under the neoliberalism way.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 ………………………………………………………………………p. 49
Figura 2 ............................................................................................................p. 50
Figura 4 ............................................................................................................p. 96
11
1. SOB O EFEITO DE INTRODUÇÃO
Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o
deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive.
(Orlandi, 2003)
“Eu sou periferia”, me diz um deles. Ele não disse “Eu sou da periferia” (em que periferia seria apenas
uma localização) mas “Eu sou periferia”. Ele e a periferia se confundem. Identificação de um e outro
(outros). O lugar (não-lugar social), o ser, a coisa.
(Orlandi, 2004)
1
A expressão ‘língua brasileira’ foi utilizada para situar teoricamente a oposição que representa em
relação à designação ‘língua portuguesa’, que pode vir acompanhada da expressão ‘do/no Brasil’. Assim,
apresentamos uma posição identificada à da analista de discurso que propõe a expressão: EniOrlandi
(2002).
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1.1 POR QUE O RAP, O FACÇÃO CENTRAL E A ANÁLISE DE DISCURSO?
ENSAIANDO UMA EXPLICAÇÃO
Com relação ao corpus, ou seja, naquilo que se refere às letras das músicas do
grupo Facção Central2, o desafio é o de lidar com a paixão tanto pela música – em suas
diversas manifestações rítmicas, melódicasetc. – quanto pelo movimento representado
pelo hip hop, do qual o rap (“música de ladrão”, que “não é nada”, “passa em branco”)
é um dos elementos e com o qual o primeiro contato ocorreu após os vinte anos de idade
– até então, os ouvidos estavam acostumados com muita bossa nova, tropicalismo, funks
carioca e internacional, pagodes e sambas, com a dita MPB (música popular brasileira)
– seja lá o que essa designação queira representar –, com algum rock e algum pop. Mas
nunca, a não ser muito de longe, durante vinte anos de existência, estes ouvidos haviam
se encontrado com as composições musicais que reúnem, por um lado, uma enfática
contestação à nossa sociedade neoliberal brasileira, oriunda de uma recente (re)abertura
política e herdeira de longos processos de colonização e de ditaduras; e, por outro, uma
2
As letras das músicas estão disponibilizadas como Anexo (item 6) ao final desta dissertação. Elas serão
designadas pela letra “L” seguida pelo número da faixa musical, em conformidade com a organização do
próprio encarte do CD A marcha fúnebre prossegue (2001).
É imprescindível destacar aqui que a primeira faixa do referido álbum fonográfico é uma montagem
feita a partir de “recortes” de falas (orais) de repórteres e apresentadores dos mais variados noticiários
e programas de auditório de diferentes emissoras de televisão. Trata-se, portanto, de uma arrumação
de enunciados orais, postos em circulação pelos meios de radiodifusão – rádio e televisão –, quando da
censura imposta ao álbum Versos Sangrentos (2000), de autoria do grupo Facção Central. Isso quer dizer
que não será considerada, para efeito de análise, a faixa denominada Introdução, a qual seria
representada neste trabalho como L1.
13
produção poético-musical cuja proposta é, conforme sugeriu Baalbaki3 ao participar da
banca de avaliação do projeto desta dissertação, “narrar”, como se cada composição
musical do álbum funcionasse como um capítulo de um romance, ou como um canto de
uma epopeia clássica, as mazelas produzidas socialmente sob as mais diversas formas
de exclusão – social, política, econômica, geográfica... –, emprestando sua voz para a
fala daquela grande parcela da população brasileira que convive com um silenciamento
social e historicamente construído, silenciamento que não poderia/deveria ser
questionado pelos membros dessa grande parcela.
14
coloca enquanto origem de seu dizer (esquecimento nº 2 descrito por Pêcheux). No
caso, o próprio sujeito está funcionando como um exemplo da interpelação ideológica:
não há essa realidade objetiva passível de ser “apreendida objetivamente”, como se
fosse um dado, natural, portanto, que estivesse disponível para ser captado pelas lentes
de sua câmera, sob a forma de um retrato.
Uma outra implicação direta, que é de extrema relevância para o modo como o
tema foi trabalhado nesta dissertação, é a de que aqui não se produziu um estudo
sociológico do “fato social” representado pelo heterogêneo movimento hip hop no
Brasil. Além disso, não se trata também de assumir um determinado conteúdo como
verdadeiro, que serviria de “parâmetro” para o julgamento de outros conteúdos – como
se os argumentos levantados necessitassem de “comprovações” para se sustentarem
enquanto verdadeiros ou falsos. Trata-se, sim, de compreender como esses textos – que,
devido a sua especificidade passarão a ser denominados “letras de música” –produzidos
numa materialidade musical – o que implica necessariamente especiais condições de
produção diferentes de um material estritamente escrito –, significam os sujeitos dos
quais os rappers se colocam enquanto porta-vozes, assim como de que maneira
significam seu outro. Quem são esses porta-vozes? Que imagem eles constroem de si?
Que imagem constroem daqueles cujas vozes eles portam? Que imagem constroem dos
outros a quem se dirigem? Essas e muitas outras questões foram levantadas e são de
extrema importância para o caminho que fora trilhado durante as pesquisas na busca por
respostas, ainda que provisórias.
Assim, no que se refere ao corpus, pode-se afirmar ser esta escolha fruto de um
casamento entre a paixão pela música, enquanto produtora/produto da arte; e da arte,
enquanto espaço de contestação, de desestabilização dos universos ideal e
imaginariamente estabilizados, do questionamento: dá-se aí o encontro entre o hip hop
(movimento artístico, político e social) e o Facção Central (grupo que procura manter-se
firme no propósito de, ao produzir rap, questionar, sair do espaço do mesmo que a
15
indústria cultural de massa (?) cultivou anos a fio, sempre com o objetivo de aumentar
seus lucros). O propósito ao qual o Facção Central, enquanto grupo de rap, procura
manter nos faz retornar ao início do movimento, quando seu objetivo era mais a crítica
social e menos o dinheiro que o rapper pode ganhar ao “vender sua ideologia” (SD47)4.
Nesse sentido, é valido trazer a contribuição teórica de Bulhões (1999) que, pensando a
relação entre artista, memória e identidade no Brasil, comenta a afirmação de
WolfangWelsch, para quem “no meio da hiperestetização, há a necessidade de áreas
esteticamente baldias”, dizendo que
4
(SD47) significa, conforme mostraremos no capítulo 2, uma das sequências discursivas analisadas nesta
dissertação.
16
construída – e concebida – como o espaço da sistematicidade, da cientificidade, da
razão, do mensurável. A implicação direta dessa constatação é a de que não se faz
ciência apenas com uma dose cavalar de paixão (emoção). O que significou a
necessidade de se buscar uma “razão”, um motivo acadêmico-social que justificasse a
escolha do tema. A procura teve um fruto satisfatório quando, ao pesquisar a
bibliografia de estudos acadêmicos sobre o hip hop no Brasil, encontrou-se apenas um
que usou as produções do grupo Facção Central como material de pesquisa, estudo esse
desenvolvido sob um quadro teórico concernente à disciplina História. Assim,
considerando-se inclusive o trabalho cuja pesquisa se centra no hip hop e que é
fundamentado nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso da Escola Francesa,
não se encontrou um estudo sequer que se dê sob essa fundamentação teórica e o rap
produzido pelo grupo Facção Central. Isso quer dizer que a presente dissertação pode
estar representando a primeira vez em que se conjugam Análise de Discurso e Facção
Central num mesmo estudo. Tal conjugação pode significar o início de um processo de
deslocamento na lógica que coloca em relação de sinonímia hip hopnacional e
RacionaisMC’s ou Mv Bill, estes últimos assaz recorrentes em pesquisas brasileiras que
tematizam o hip hop.
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pensou em funções da linguagem, mas, como mostraremos mais adiante, em
funcionamento linguístico-histórico.
Essa expressão “underground” foi empregada por Lippold e Santos (2004) para
destacar uma determinada parcela dos grupos de rap que se contrapõem à lógica de
mercado instaurada pelo estabelecimento de um novo filão na indústria fonográfica.
Propõe-se aqui que o Facção Central pertence a essa determinada parcela, porque o
grupo utiliza uma gravadora independente e se opõe a uma outra gigantesca parcela de
grupos de rap que representam o seu oposto, ou seja, aqueles grupos que estão sob a
égide de uma espécie de “cartel” de gravadoras que “comandam” a indústria
fonográfica, a partir da relação de “comando” que estas mantêm sobre a produção dos
artistas que se submetem a tais critérios de trabalho, em nome, principalmente, de
dinheiro e de fama, e que são denominados, no estudo de Lippold e Santos (2004), pelo
termo “comercial”. Foi interessante trazer essa distinção porque ela implica diretamente
a posição discursiva da qual o sujeito produz suas formulações. Implica, ainda,
processos de identificação com determinados lugares sociais que se contrapõem
frontalmente aos rappers que só querem estar na mídia, ainda que para isso necessitem
de negar sua origem favelada e de interditar sua voz questionadora em nome de dinheiro
e fama. Veremos mais adiante que essa divergência coloca em conflito duas posições
discursivas – uma, a dominante, que é a mercadológica e outra, poder-se-ia dizer
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dominada, que é a questionadora –, cuja disputa ainda não gerou uma ruptura total, por
parte de uma dessas posições, com a formação discursiva que as domina. A relação de
tensão pode até estar bastante acirrada, mas ainda não foi suficiente para instaurar uma
nova formação discursiva. Na seção em que discutimos essas relações, procuramos
abordar o(s) possíveis porquê(s).
Assim, a definição do corpus desta pesquisa tem um motivo que necessita de ser
enfatizado: o fato de que se trata de um álbum que foi produzido após a proibição das
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veiculações do videoclipe e da música “Isso aqui é uma guerra”, pertencente ao álbum
Versos sangrentos, lançado no ano de 2000. O grupo Facção Central, devido ao
lançamento da música citada, chegou a ser indiciado por incitação e apologia ao crime
e, mesmo depois de apreensões de materiais de vídeo e áudio em redes de venda; de
multas e constrangimentos legais às empresas concessionárias do ramo da radiodifusão
que se propuseram a veicular os materiais; de muitas idas e vindas do grupo à delegacia
de repressão ao crime organizado; de responder judicialmente – ou seja, em juízo –; e de
não ter sido condenado, ao final dos processos, decidiu não se “submeter” a essa visível
política local de silenciamento (Orlandi, 1993) e produziu uma espécie de resposta, cuja
tentativa de expressão se encontra já no título do álbum, no qual se pode notar,
inclusive, como esses sujeitos procuram significar sua produção musical: A marcha
fúnebre prossegue. (grifo nosso) Nesse caso, o artigo definido, como dizem os
gramáticos normativos da língua portuguesa (no Brasil, pelo menos), não apenas
funciona definindo o nome, como também o significa enquanto informação já conhecida
que está sendo retomada. Desse modo, o sintagma nominal “marcha fúnebre” retoma
alguma informação anterior utilizada para significar as produções musicais desse grupo.
A presença de um verbo no presente do indicativo funciona estabelecendo uma relação
de atemporalidade. Além disso, trata-se de um verbo que indica movimento para frente.
Nesse sentido, pode-se dizer que a marcha fúnebre irá seguir prosseguindo,
ininterruptamente, ainda que promotores e demais agentes da “justiça” procurem encher
o caminho do grupo de empecilhos e de contratempos. Isso já diz muito sobre o modo
como o grupo se posiciona discursivamente.
Com relação ao âmbito acadêmico, foi possível, nessas pouco mais de duas
décadas dedicadas à educação formal – divididas entre os ensinos fundamental, médio e
superior –, reparar que não há muito espaço, na instituição escolar, para que se coloque
em perspectiva aquilo que se constrói historicamente como “produção marginal”, sendo
esta frequentemente discutida sobre as mesmas bases: a de um conteudismo que apenas
reproduz, sem deslocar, a discussão, de modo a buscar promover uma “repetição
empírica” (Orlandi, 1996) – permanência, paráfrase – e a evitar conceder espaço a
novos sentidos possíveis, aos deslocamentos, enfim, às ressignificações – ou “repetições
históricas” (idem, 1996).
21
sentidos quanto constitui um lugar privilegiado onde essa significação se mantém
controlada, de modo que aquelas produções discursivas cujos autores e/ou
leitores/ouvintes estejam relacionados, em maior ou em menor grau, a alguma forma de
marginalidade, sejam interditadas em sua circulação, a partir de mecanismos como os de
ridicularização do diferente, de “adversarialização” do contrário e, sobretudo, de
negação do outro.
E Orlandi continua, trazendo Foucault (1975), para dizer que este nos “aponta
também para a maneira de exercer a crítica: colocar em questão a nossa vontade de
verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; restaurar a soberania do
significante” (Orlandi, 2004, grifos nossos). É disso que se trata esta dissertação: de
uma crítica a determinadas posições ideologicamente marcadas de passividade diante de
um suposto caráter objetivo da língua, posições essas que se revestem de neutralidade
científica, neutralidade que dicotomiza e opõe sujeito e objeto e que toma a língua como
instrumento para comunicar. Nesse sentido, com o objetivo de mostrar como o quadro
teórico-metodológico de referência selecionado para esta pesquisa se comporta
teoricamente diante das questões da língua e do exercício da crítica, buscou-se
novamente uma contribuição teórica em Orlandi (2009 [1999]), a qual explica, com
relação ao funcionamento da linguagem para a Análise de Discurso, que
22
temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e
produção de sentidos e não meramente transmissão de informações.
São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de
subjetivação, de construção da realidade etc. (...) A linguagem
serve para comunicar e para não comunicar.As relações de
linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito
de sentidos entre locutores. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 21, grifos
nossos)
5
No livro intitulado “O desafio de dizer não”, Lagazzi fala sobre a lei e o direito, a partir das
considerações que faz do trabalho de Miaille (1980), que: “(...) a especificidade do Direito atual está na
‘abstração’ e na ‘generalidade’ através das quais ‘a expressão das relações sociais se realiza.’ A lei está
calcada na indeterminação e por isso ela adquire a generalidade necessária para se aplicar a todo e
qualquer cidadão. Teoricamente, ‘a lei deve mostrar-se como estando acima dos interesses pessoais ou
de grupos’ (Orlandi, 1986a), pronta para ser aplicada a todo e qualquer infrator.
‘Todos os homens são iguais perante a lei’. É nessa máxima que se fundamenta o Direito e a Justiça,
levando-nos a acreditar na imparcialidade da jurisprudência, no fim dos privilégios. ‘Todos têm os
mesmos direitos e deveres’. A Justiça sustenta-se, pois, por esse engodo teórico, uma vez que a
desigualdade entre os homens, marcada pelo modo de produção, não se desfaz em nenhum outro
lugar.” (Lagazzi, 1988: p. 41, grifos nossos)
23
bases para a resistência a essa opressão. É precisamente aí que a pesquisa foca sua
atenção6.
Uma consequência direta de tal “constatação” é que algumas das noções teóricas
mais caras a esta pesquisa são as de sujeito e sentido, formações discursivas e
imaginárias, além das de sujeito-autor, outro, língua fluida e língua imaginária,
político, urbano e periferia.
24
Depois, trata-se de um interesse em compreender quais marcas linguísticas
(Orlandi, 1996), em suas formas empírica, abstrata (abordagens logicista ou sociologista
da língua) e material (abordagem discursiva), participam das construções semânticas
desse denominado ambiente de protesto, para que se possam apontar alguns dos efeitos
de sentido possíveis produzidos a partir do seu engendramento.
Por fim, e não menos importante, existe a questão do desejo de contribuir para o
preenchimento dessa espécie de lacuna existente nas pesquisas 7 que versam sobre o
material linguístico com o qual se trabalhará, qual seja, o das letras das músicas de
determinado álbum produzido pelo grupo Facção Central, sob a fundamentação teórica
da Análise de Discurso de base pecheuxtiana.
Assim, os “erros”, as “incompreensões” não são fruto do “mau” uso da língua, mas revelam que faz
parte de sua ordem própria expor-se à história e, com isso, aos “desentendimentos...”
(Baldini, 2009)
7
Interessante observar que apenas uma, dentre todas as pesquisas acadêmicas consultadas, cujas
indicações constam da bibliografia, pesquisas essas que abordam o hip hop, cita o grupo sobre cujas
letras este trabalho se apoia. Trata-se de uma monografia de especialização em História, que versa
sobre a identidade do povo afrodescendente e as formas de resistências por ele construídas, no Brasil.
Entre as formas eleitas pelos autores está justamente o rap: LIPPOLD, Walter G. R., SANTOS, João B. A
música rap e o processo de resistência cultural afro-brasileira. (Especialização). FAPA: Porto Alegre,
2004. Não foram encontradas, durante as buscas bibliográficas, produções que cruzem Facção Central e Análise de
Discurso.
25
frequentemente, com objetivo de produzir novos olhares, novos conhecimentos,
modificando, assim, a relação que se procura estabelecer entre significante e sentido e
promovendo, portanto, a mudança, a ressignificação, a transformação da relação que os
sujeitos estabelecem com os sentidos.
Pode-se dizer, contudo, que se trata apenas de mais uma janela a ser aberta para
o diálogo possível com esse rico mundo de potencialidades, até bastante visitado, mas
pouco “escutado” – e com muito a ser mostrado –, chamado periferia. E periferia não
apenas num sentido geográfico-espacial, local para onde são empurradas as massas
trabalhadoras das cidades, mas também, e principalmente, como uma maneira de
significar os sujeitos e pela qual estes se significam (cf. epígrafe p.3). Isso quer dizer
que não se assumirá aqui uma posição de suposta neutralidade, como se a análise
pudesse ser produzida “fora” da ideologia, de modo a apenas descrever objetivamente o
conteúdo, a partir do qual se pudessem produzir avaliações e julgamentos. Quer dizer
também que se procurou não jogar dentro dos preceitos do maniqueísmo que insiste em
separar, estabilizar e transformar em categorias absolutas e discretas o „bem‟ e o „mal‟,
tomados como critérios de valoração argumentativa. É nesse sentido que se pode
afirmar que não se trata de ser “imparcial” diante de um objeto, como se fosse possível
separar prática discursiva de assujeitamento; muito menos se trata de etiquetar as
produções discursivas com rótulos de „boas‟ ou de „más‟ e advogar em favor da causa
“escolhida”.
Não satisfeito com a pouca clareza com que é trabalhada a noção de periferia,
Trajano (2010), que se interessou em “investigar os discursos produzidos por
integrantes de uma esfera social determinada: o gueto” (p. 30), foi buscar na teoria da
Análise Institucional, especificamente no pesquisador francês Remi Hess (2001), um
suporte teórico que o permitisse avançar numa conceituação de periferia mais próxima à
necessidade que seu estudo apresentou: a necessidade de discutir a relação entre centro
26
e periferia, para compreender o funcionamento dos discursos produzidos pelos rappers
anteriormente citados, pesquisados por Trajano.
Hess e sua teoria dos impulsos auxiliaram Trajano a elaborar a seguinte noção de
periferia, que utilizaremos nesta dissertação, fazendo, claro, a desterritorialização do
conceito do terreno da análise institucional e reterritorializando-o na análise de discurso.
Nesse sentido, e compreendendo que a teoria com que Trajano trabalha, devido a seu
recorte epistemológico, não faz uso de aparatos teóricos como ideologia e forma-sujeito,
podemos considerar como basilar para as nossas análises a seguinte noção de periferia:
Tendo tudo isso em mente, pode-se dizer que não se considerará o “conteúdo”
das letras de rap para com elas concordar ou delas discordar, mas que se buscará na
materialidade significante linguística, em sua opacidade semântica, dessas produções as
marcas que permitirão apreender como funcionam discursivamente, quais efeitos de
27
sentido estão sendo engendrados e de que maneira esse engendramento se dá na/para a
ordem do discurso. Para tanto, é preciso não ignorar, em momento algum, o fato de que
essa “margem” é historicamente determinada, que ela não possui contornos fixos e que
só é margem porque há aquilo historicamente construído como centro. Dessa forma,
pode-se compreender que essas fronteiras estão em contínua reconfiguração no espaço
simbólico e que as bases estruturais que sustentam a existência de tal divisão nunca
cessam de funcionar.
8
Ou cultura. A escolha de um ou outro termo tem implicações fundamentais para o entendimento da
dinâmica do hip hop. Esses diferentes termos, ‘movimento’ ou ‘cultura’, significam diferentemente o hip
hop para o grupo que os utiliza. Alguns autores debruçaram-se sobre essa diferença, a fim de buscarem
se posicionar a respeito dela. Nesta dissertação, essa questão será discutida no ponto sobre as
condições de produção.
9
Trata-se da seguinte dissertação: REIS, Soraya M. O RAP na mídia : discurso de resistência?(Mestrado)
Universidade de Taubaté, São Paulo: 2007. Sob o quadro teórico da Análise de Discurso, Reis (2007)
toma como objeto empírico as produções discursivas de O Rappa e Racionais MC’s.
28
Após uma abrangente pesquisa bibliográfica entre recentes – e não tão recentes
assim – produções acadêmicas, ficou patente que o tema escolhido é ainda menos
explorado se se levar em conta o cruzamento entre os estudos da resistência nas
produções discursivas do hip hop brasileiro e o corpus sobre o qual a análise incidirá: as
letras das músicas constantes do álbum A marcha fúnebre prossegue, produzido pelo
grupo de rap Facção Central, no ano de 2001.
”A narrativa do rap tem um aspecto de fábula porque coloca o bem contra o mal, um contra o outro, o
que tende a acirrar os ânimos num país desigual como o Brasil. Mas aí o problema é mais social do que
musical.” (Luiz Tatit, )
29
não cabe considerar elementos outros que não as letras que compõem essas músicas. A
consequência direta dessa consideração faz-se perceber a partir da própria designação
que será utilizada neste trabalho sempre que se objetivar remeter ao corpus desta
pesquisa: letra de música (principalmente para diferenciá-la de texto, que é uma outra
materialidade simbólica). Assim, o sintagma nominal preposicionado “letra de música”,
sintagma esse que é produto – e que produz – um recorte necessário à pesquisa,
remeterá, doravante, ao que comumente é designado por “canção” ou “composição
musical” ou “música”...
30
“poemificação” dessas letras, de modo a possibilitar a observação dessas, a
partir de versos e estrofes. Optamos por esse viés, porque
2. consideramos que a música, enquanto materialidade, está mais próxima à forma
de um poema (métrica, ritmo etc.) do que da prosa.
3. Uma vez estando em formato de poemas, com uma pontuação que procura
representar, na escrita, os aspectos gramaticalmente tomados como
“extralinguísticos”, tais como entonação, pausa breve, pausa longa, exclamação,
interrogação etc. pertencentes ao nível da oralidade, buscou-se proceder a uma
espécie de formatação dos significantes, sempre privilegiando aquilo que é
possível ser discernido ao ouvir as músicas. Mas, ao contrário do que propunha
Saussure, um elemento sonoro pode se sobrepor a outro, o que pode produzir um
terceiro significante totalmente distinto daqueles que o originaram. Isso tem
como consequência direta o fato de que pode haver discrepância de significantes
sonoros e escritos, o que procurei diminuir ao máximo por meio de uma
incansável conferência entre aquilo que escutava e aquilo que estava fixado pela
escrita de outrem. Ou seja: com base no que era cantado pelos intérpretes nas
músicas gravadas – e depois da versificação construída aqui –, houve uma
tentativa de aproximar o “cantado” do “escrito”. Isto significa, também, que os
chamados “erros gramaticais”, como as ausências de concordância nominal ou
verbal, não foram “consertados”, uma vez que sua não consideração significaria
um apagamento dessas marcas significantes, o que traria consequências
indesejáveis ao propósito desta pesquisa: trabalhar as formas de resistência
engendradas a partir das produções discursivas do grupo Facção Central, no
álbum A marcha fúnebre prossegue.
31
fim de constituir seu objeto, a língua, e a disciplina que se encarrega de seu estudo, a
linguística. Além disso, ele silencia a possibilidade de formação de novos significantes
a partir da “confusão” entre vocábulos (significantes acústicos). Diz-nos Cavaliere
(2005), a respeito dos vocábulos fonológicos, num capítulo destinado à prosódia –
“parte da fonologia (...) referente aos caracteres da emissão vocal que se acrescentam à
articulação propriamente dita dos sons da fala”:
32
e esse aspecto dos processos de significação e de sua intrínseca relação com o material
que o constitui também é necessário de se frisar, uma vez que esta pesquisa se insere no
escopo teórico da Análise de Discurso francesa.
Não é possível organizar, prever e planejar tudo – muito do que “escolhemos” resulta de injunções
históricas e inconscientes as quais, às vezes, apenas no “só-depois” conseguimos fazer a leitura.
(Mariani, 1996)
Este projeto, além de apontar para o futuro, lança-se também ao passado, porque
possui uma história, ou, utilizando-nos de um conceito bastante caro à Análise de
Discurso, este projeto possui uma memória. Ele não nasce da simples necessidade de
cumprir uma tarefa obrigatória para obtenção de um aval de qualidade para o
prosseguimento do curso de pós-graduação stricto sensu em Estudos de Linguagem da
Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense. Considerando-se aqui como
memória do projeto o conjunto de situações acadêmicas e pessoais que contribuiu para o
seu surgimento antes mesmo que a ele se pudesse nomear dissertação.
Ele é o resultado de vários fatores que aqui serão entendidos como condições de
produção. Essas condições são precisamente o contato com a teoria do discurso que deu
base à pesquisa – análise de discurso de linha francesa –, e um grande interesse – alguns
diriam fixação – pelo movimento em discussão, o hip hop brasileiro, especificamente,
pelo rap.
33
estável, não abarcavam teoricamente os lapsos, os equívocos10, enfim, as chamadas
“irregularidades” – que a Análise de Discurso compreende como constitutivas das
línguas –, entendendo-os, assim, como „erros‟ e „ruídos‟ que atrapalham a
„comunicação‟.
É por essa razão que, quando se apresentaram alguns textos introdutórios sobre a
Análise de Discurso durante a aula de Linguística III (teorias lingüísticas), certas
questões acerca do funcionamento da língua(gem) se esclareceram e muitas, mas muitas
outras surgiram. E, como já dizia Paulo Freire (1996), filósofo e educador que pensava a
Educação no Brasil do século XX a partir do materialismo histórico-dialético, em seu
livro Pedagogia da Autonomia, é preciso transformar a curiosidade ingênua em
curiosidade epistemológica. E é isso o que se pretende alcançar: dar consequência
científica a uma originalmente curiosidade ingênua.
O segundo contato, decisivo para a escolha do tema desta pesquisa, foi com
alguns produtos do movimento – ou cultura – hip hop brasileiro. Essa relação de maior
proximidade com o hip hop foi proporcionada por uma pessoa bastante próxima, que já
tinha a sua própria história – e sua memória – com o movimento e que se dedicou a
apresentar os discursos presentes nas letras de rap, dentre outros, dos grupos Racionais
MC‟s, G.O.G., Face da Morte, MV Bill e Facção Central. Este último grupo é,
inclusive, a fonte material das práticas discursivas que serão analisadas, sobretudo
devido a dois motivos principais: por um lado, à sua característica de procurar “dizer
exatamente o que acontece” – embora não seja essa a maneira de a AD compreender a
língua –; por outro, ao fato de que, em pleno século XX, num Brasil pós-ditadura militar
e com quase doze anos de vigência da constituição mais progressista de que se tem
notícia na história do país, a Carta Magna de 1988, esse mesmo grupo ter sido indiciado
por incitação ao crime, pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (GAECO),
instituição responsável pelo combate ao crime organizado, e proibido de veicular o clipe
nas emissoras de televisão – vale lembrar que, no Brasil, as emissoras são
concessionárias do Estado – de uma de suas composições, a música Isso aqui é uma
guerra. Ou seja, de o grupo ter “sentido na pele” o peso da mão do Estado nesse atual
estágio da luta de classes no Brasil.
10
Entendido como o enunciado que é simultaneamente ele mesmo e outro. Essa noção de equívoco
está ligada à de incompletude, constitutiva das línguas, com base na qual se afirma que “tudo não se
pode dizer”. (J.-C. Milner, 1987: 19)
34
1.2.1 DA DEFINIÇÃO DO TEMA E DA TEORIA ÀS PRIMEIRAS
HIPÓTESES DE PESQUISA
“Os primeiros quinze minutos de fama chegaram no ano 2000, quando a Justiça paulista censurou a
exibição do videoclipe Isso Aqui é uma Guerra, na MTV, que acatou a censura. A música está no terceiro
CD, Versos Sangrentos, de 1999.”
(Luiz Maklouf Carvalho, 2007)
A hipótese que norteou o primeiro momento da pesquisa, momento esse que teve
seu ápice na elaboração do projeto de dissertação, foi a de que as letras de rap
funcionam, sim, como discurso de resistência, mas que, como todo movimento histórico
inscrito na língua, essa resistência não se dá de maneira uniforme, nem sem
contradições. Enquanto a resistência na história se faz com lutas, guerras, revoltas, na
língua ela se dá, sobretudo, na capacidade de dizer o que se procura silenciar, em
assumir novas posições e em resgatar as posições já desautorizadas para restaurar a
legitimidade dos outros sentidos possíveis que são recolocados em disputa, na cena do
jogo das relações de força (poder).
Nas origens do hip hop, o grafite, um dos pilares do movimento, era uma arte que sobrevivia na
ilegalidade e chegou a se tornar uma das suas maiores inspirações. Essa condição de fora da lei
contribuiu, entre tantas outras, para reconhecer no hip hop sua contingente marginalidade.
(Araújo, 2003)
Como o próprio título do item anterior sugere, aquela foi a hipótese da qual se
partiu no início dos estudos que se propôs empreender. Após alguns meses de pesquisa,
esse ponto de partida deu lugar a novas formulações. Uma delas é a de que o sujeito
enunciador, estando submetido ao funcionamento ideológico e à ilusão de completude
35
do dizer, produz um movimento de resistência utilizando-se de várias estratégias
linguístico-discursivas no sentido de deslocar o que representa, em sua própria produção
discursiva, aquilo que, nas/pelas práticas discursivas de seu outro, é construído como
evidência. Em outras palavras, esse sujeito enunciador – o rapper – resiste deslocando
os gestos de significação que tentam literalizar o sentido social construído sobre o
favelado.
Outras duas hipóteses podem ser levantadas, como uma espécie de consequência
da primeira: de um lado, com Pêcheux (1978), pode-se pensar na figura do sujeito
enunciador como ocupando o lugar de um porta-voz do favelado; de outro, com Orlandi
(2008), é possível considerar que, apesar de estar inscrito num espaço discursivo em que
predominaria a polêmica, em sua relação tensa entre paráfrase e polissemia (entre o
mesmo e o diferente), se se tomar a proposta de questionamento como básica para o
movimento hip hop, o sujeito autor procura conter a significação de modo a estabilizar o
sentido, o que acaba por instaurar um espaço discursivo autoritário. Cabe lembrar que
não se pensa em discurso polêmico e em discurso autoritário enquanto tipos estanques e
discretos, mas enquanto funcionamentos em relação de tendência, assim, tratar-se-ia de
um discurso que tende para o autoritário (ou seja, à contenção da reversibilidade).
36
3. Uso frequente, ao final das letras, do advérbio “infelizmente”, como tentativa de
produzir um efeito de insatisfação do sujeito no que tange à certeza de um final
trágico para quem trilha o mundo do crime;
4. Funcionamento discursivo do “é só”, que produz tanto um efeito de exclusão e
de segregação quanto o de um sujeito que não existe gramaticalmente;
5. A expressão reiteradamente utilizada, nas diversas letras, “uma pá de”, que
funciona como um adjunto adnominal indicador de grande quantidade (tal como
“um monte de”, “uma porção de”, “muitos”, “inúmeros”);
6. A produção de efeitos de exagero a partir de construções hiperbólicas. Pode-se
pensar nesse excesso como uma forma de se opor simbolicamente à ausência de
mínimas condições materiais objetivas necessárias a uma vida “digna”;
7. Inserção de formulações que remetem a enunciados de certa formação discursiva
e que vêm atualizadas no fio discursivo de outra FD. Ou seja, numa letra de
música que pretende representar uma cena de sequestro relâmpago, encontram-
se as posições do sequestrador em confronto com as do sequestrado. Observa-se
um exemplo dessa antecipação da posição do outro (no caso, da posição do
sequestrado) pelo sujeito-rapper (enquanto porta-voz do favelado), nas seguintes
formulações: “Não nego minha culpa no menino faminto, / Em vez de cesta
básica, comprei relógio suíço. / Contratei vigia, lancei carro blindado, / Mas,
se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou culpado.”)
8. Produção de um efeito em que um sujeito mata simbolicamente, ao som de tiros
(onomatopeias ou mesmo a reprodução sonora do tiro), o outro;
9. O significante “aqui” funciona gramaticalmente ora como pronome pessoal de
primeira pessoa (do singular ou do plural), ora como advérbio locativo, ora
como objeto dativo (de atribuição, p. e., “para nós”);
10. “Ceder” quase que exclusivamente a voz ao favelado (seja ele um traficante, um
menino-soldado do tráfico, um viciado, um trabalhador qualquer uma mãe...),
que pode se expressar na voz ativa; e transformar aquele que tem “voz social” –
o empresário rico, o político, o playboy, a madameetc. – em objeto ou em
ouvinte-virtual (aquele a quem o sujeito enunciador se dirige).
11. Uso recorrente de expressões que objetivam produzir um efeito de insulto e/ou
de xingamento, efeito esse que está diretamente relacionado a quem ouve/lê.
37
Essas formas materiais parecem funcionar, na produção discursiva do grupo de
rap Facção Central, como modos de resistir às políticas de silenciamento às quais estão
submetidos tanto os seus membros (do grupo ora estudado) quanto aqueles aos quais
esses procuram representar quando tomam a palavra. Mas, ao tomar a palavra, esse
sujeito porta-voz da favela/periferia, porque não há ritual sem falha, ou seja, porque sua
identificação com os favelados não é plena e não há reversibilidade de lugares sociais,
acaba atualizando formulações de enunciados que não têm sua matriz na formação
discursiva da qual procura retirar seus sentidos. Vale lembrar que, no que concerne ao
funcionamento da “interpelação ideológica dos indivíduos em sujeitos” descrito por
Pêcheux (1990 [1980]), que relaciona essa interpelação ao funcionamento metafórico,
essencial para o movimento histórico dos sentidos,
É na linguagem que o sujeito se constitui e é também nela que ele deixa as marcas desse processo
ideológico.
(Lagazzi, 1987)
11
Expressão utilizada por Heloísa Buarque de Holanda, coordenadora do Programa Avançado de Cultura
Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seu artigo A política do hip hop nas
favelas brasileiras (s.d., disponível em <<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/Le%20monde%20-
%20%20Heloisa%20Buarque.pdf>>).
38
metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo. Esse movimento de raízes negras – existe
ainda uma discussão interna dos membros que já extravasou para as discussões
acadêmicas e que diz respeito à caracterização dessa prática social enquanto cultura ou
enquanto movimento – é caracteristicamente urbano. Aqui se trabalhou com a
designação de „movimento‟ e, no momento de discutir as condições de produção
apontaremos o porquê, movimento esse que inclui expressões em artes plásticas
(graffiti); em dança (break); e em música (rap, sigla da língua inglesa que, em língua
brasileira, significa ritmo e poesia), com o mixador e apresentador, MC (outra sigla da
língua inglesa que, em língua brasileira, significa Mestre de Cerimômia).
E, para que esse objetivo seja alcançado, é preciso levar em conta “uma proposta
em que o político e o simbólico se confrontam” (Orlandi, 2002). É necessário lançar
mão de uma abordagem teórica que considere a história, que procure desnaturalizar os
sentidos que se tendem a homogeneizar, sob a facilidade/fragilidade da evidência. É
preciso haver um olhar que contemple a língua enquanto espaço intrinsecamente
39
relacionado a disputas ideológicas e inconscientes. Necessário se faz considerar as
relações de força entre posições, as contradições entre o lugar de onde se enuncia e a
posição que se defende. E isso só é possível se se compreender que a exterioridade é
constitutiva da própria língua. É da história que surgem os sentidos. É a interpelação
pela ideologia, enquanto estrutura-funcionamento histórico, que constitui o sujeito,
iludindo-o de que ele é sempre já-sujeito e origem de seu dizer e dos sentidos. Essas são
compreensões basilares para o trabalho com o discurso do rap que aqui se propõe.
Vale ressaltar, também, o fato de que o pesquisador tem uma obrigação com a
sociedade, qual seja a de agregar valor social à sua pesquisa, devolvendo-a, com seus
resultados menos ou mais conclusivos, à sociedade, para que esses novos
conhecimentos possam promover maior desenvolvimento nos mais diversos campos da
vida em sociedade. Nesse sentido, a pesquisa que ora se empreende poderá ser utilizada
como mais uma nova forma de abordar um tema tão caro à população brasileira: a
construção da identidade do favelado frente ao projeto de homogeneização cultural, por
meio da cultura de massas. Resgatar do silêncio que a massificação da cultura promove
o projeto de resistência – bem ou mal sucedido – do movimento hip hop significa
resgatar o projeto de construção identitária tão intimamente relacionada a ele. O
movimento quer ter voz. Não para cantar as coisas bonitas que passam na novela das
seis da Rede Globo. Mas para criar um espaço de discussão política sobre assuntos
extremamente delicados das perspectivas de vida – quiçá de sobrevivência – dos
moradores da favela. É esse o papel da academia, enquanto instituição da pluralidade de
pensamento: dar voz àqueles que são calados cotidianamente e devolver a possibilidade
de ele pensar, sob novas perspectivas, a sua própria condição / construção social. A
respeito do papel do pesquisador e do professor de escola, diz Orlandi:
(...)
40
populares, pois, para elas, essas formas não são alternativas, são
principal, isto é, são a sua própria identidade cultural. (Orlandi, 1996:
pp. 92-93, grifos nossos)
41
Contudo, no que concerne aos dois específicos, há uma grande possibilidade de
esses continuarem a representar os objetivos desta pesquisa, embora não sem um ajuste
essencial a um deles: “o imaginário sobre o movimento hip hop no Brasil” deve dar
lugar a “o imaginário sobre o rap no Brasil”. Isso porque o movimento hip hop,
conforme bem frisado anteriormente, é um conjunto de quatro elementos (break dance,
graffiti, rap e mastersofceremony [MCs]), três dos quais (break dance, graffiti e másters
ofceremony [MCs]) não serão objeto deste trabalho, embora sirvam como “material de
apoio” para a compreensão das condições de produção do discurso do rap. Outro
detalhe, fundamental para que se pudesse pensar nesses objetivos, diz respeito à questão
do locativo no Brasil: pensar o rap como uma produção nacional, implica tanto
considerar necessariamente as diversificadas produções, nos diferentes cantos deste
país, rotuladas sob a mesma etiqueta de rap nacional quanto as diferenças e
convergências que podem ser observadas entre as produções que se realizam nesse país
e as de outro(s) país(es). Novamente há um impasse: não existe forma de dar a devida
atenção a um assunto tão complexo quando a questão central da pesquisa que aqui se
propõe desenvolver não é essa. Nesse sentido, uma nova delimitação necessitou ser
elaborada: não se trata de rap no Brasil, mas de rap do grupo Facção Central. Dessa
forma, as contribuições sobre o “comportamento social” do rap no Brasil estão restritos
a alguns apontamentos centrais para a discussão acerca do estabelecimento do rap neste
país, assim como uma “fonte” de produções à qual se possam remeter as produções do
grupo objeto deste estudo (Facção Central).
Com todas essas considerações feitas, pode-se passar para a descrição dos novos
objetivos, a saber:
1. Geral:
a. Verificar o funcionamento de estruturas na/da língua imaginária e
na/da língua fluida, tais como o funcionamento discursivo das marcas
“não”,“mas / só (que)”, “se”, “pois / porque”.
b. Distinguir ordem e organização da língua no modo de funcionamento
discursivo das letras do álbum em questão (A marcha fúnebre
prossegue)
2. Específicos:
42
a. Pensar os processos de produção de identificação do sujeito a partir
das marcas significantes presentes no fio discursivo das letras de rap
do grupo Facção Central;
b. Relacionar essas marcas significantes de produção de identificações
do sujeito com as formações discursivas e com a resistência ao
“preenchimento” do lugar social reservado a esse sujeito no
imaginário construído socialmente.
Nesse sentido, mostraremos, no momento das análises, que existe uma relação
vacilante tanto entre o sujeito e a língua quanto entre esse mesmo sujeito e as
instituições responsáveis pelo controle e manutenção dessa língua, como é, por
exemplo, o caso da educação. Mostraremos que a escola e a educação, como um todo,
sofrem um deslocamento considerável de sentido a partir da posição ocupada pelo grupo
enquanto porta-voz da favela/periferia, mas como, ao mesmo tempo, permanece um fio
central que liga os diferentes sentidos socialmente creditados a esses significantes: o de
transmissão de conhecimento. Como já citado anteriormente, isso significa que o
mesmo (ou seja, a transmissão de saberes) contém o diferente (a que saberes essa
transmissão se relaciona).
43
2. QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO
A Análise do Discurso que reinscreve suas questões a cada prática analítica, em um movimento de
compreensão da teoria em sua relação à prática.
(Baalbaki, 2010)
(...) a historicidade – e não a história – é o modo de entrar no discursivo, não se trata da cronologia ou
evolução, mas da produção simbólica ininterrupta que organiza, na linguagem, sentidos para as relações
de poder presentes em uma formação social, produção esta sempre afetada pela memória do dizer.
(Moreira, 2009)
44
subjetividade de natureza psicanalítica12, a Análise de Discurso se propõe a estudar a
língua onde esta funciona: no movimento da história. É por esse motivo que o objeto da
análise de discurso é, como o próprio nome já diz, o discurso. Para alcançar essa meta, a
teoria do discurso, inaugurada em 1969, em meio à efervescência dos estudos
estruturalistas, coloca em jogo as noções de ideologia e de inconsciente. Mas não o faz
num movimento de simples recorta-e-cola. A fim de que essa disciplina do entremeio se
constituísse, foi preciso considerar as contradições entre esses campos – materialismo
histórico-dialético, psicanálise e lingüística – e mesmo as contradições internas que cada
um carrega. Com relação a essas características da Análise de Discurso, afirma Orlandi:
Mas não basta dizer que o objeto teórico da Análise de Discurso é o discurso, se
não se compreender como a Análise de Discurso desterritorializa esse conceito para
produzir um objeto próprio à teoria. O discurso, para essa disciplina, é efeito de sentido
entre locutores (Pêcheux, 1969). E o sujeito formula a partir de um lugar social,
identificando-se com determinada posição ideológica, ocupando certa posição-sujeito
referente a uma determinada formação discursiva. Importante considerar que, para se
constituir sujeito, o indivíduo é interpelado pela ideologia. Essa ideologia, colocada em
prática por meio das formações ideológicas, materializam-se no discurso produzindo
sentidos nas diversas formações discursivas. Fica mais fácil compreender esse jogo de
relações se se tomar como base uma das constatações fundamentais da Análise de
Discurso: o discurso é a materialidade específica da ideologia, e a língua é a
materialidade específica do discurso (Orlandi, 1999).
12
PÊCHEUX E FUCHS apud MOREIRA, 2009
45
É necessário, ainda, esclarecer alguns pontos sobre o sujeito e sua constituição:
está dissimulado para esse sujeito o funcionamento do histórico imbricado ao
funcionamento dos processos de produção dos sentidos, com os quais esse sujeito se
identifica, sob a ilusão de ser ele próprio a origem de seu dizer e sob a ilusão da
evidência dos sentidos. As estruturas-funcionamentos, ideologia e inconsciente, atuam
duplamente, fazendo funcionar dois esquecimentos que são a base desse sujeito: o
esquecimento número um, que diz respeito à ilusão do sujeito enquanto origem de si
mesmo e que produz um efeito de evidência segundo o qual “eu sou eu”, em que o
sujeito se reconhece enquanto origem de si mesmo, podendo, portanto, assumir um
lugar social e uma posição, quando toma a palavra, mesmo sendo esse movimento não
transparente para o sujeito; e o esquecimento número dois, que responde pela ilusão de
que o sujeito é origem daquilo que diz, porque, ao ser interpelado pela ideologia, o
sujeito se filia a redes de dizeres, formações discursivas, que funcionam como matrizes
de sentidos para esse sujeito e donde o sujeito tem a ilusão de retirar o sentido daquilo
que produz enquanto formulação. Orlandi (2009 [1999]) denomina esse esquecimento
nº 2 de “esquecimento enunciativo”, por ser da ordem da enunciação. É exatamente esse
o funcionamento da ideologia: apagar suas marcas por meio da produção de evidências,
através dos processos de identificação entre sujeito e sentido. Por isso, diz-se que sujeito
e sentido se constituem ao mesmo tempo.
46
a reconfiguração, a transformação e, por que não, a ruptura.
(Grigoleto, 2005: p. 65, grifos nossos)
Por conta de todas essas questões levantadas, pode-se perceber que não se deu,
aqui, um foco ao conteúdo – como se os sentidos fossem únicos e verdadeiros – das
letras de rap, como o pretendeu o Ministério Público do Estado de São Paulo, quando
indiciou o grupo Facção Central por incitação ao crime. Partimos do princípio teórico
de que existem muitos outros sentidos além dos que se podem antecipar. Apenas uma
análise mais criteriosa e detalhada, com respaldo nos dispositivos teórico e analítico,
pode contribuir para uma discussão mais qualificada sobre os processos de construção
identitária e, possivelmente, de resistência, que estão materializadas nessas letras.
Desejou-se, portanto, a partir da pesquisa, problematizar esses efeitos de evidência
produzidos para os sentidos relacionados ao rap, por meio da desnaturalização da
relação palavra-sentido, relação essa que diversas teorias do texto tentam colocar como
unívoca, silenciando todos os outros sentidos possíveis.
47
A Análise de Discurso possui, assim, como toda teoria, instrumentos de
metodologia, a fim de que se possa proceder às análises. São instrumentos
extremamente complexos, que usualmente não são definidos a priori, pois mantêm
estreita relação com o tipo de material em análise. No entanto, há a necessidade de se
construir arquivos, a partir dos quais se compõem os corpora, cujos cortes estão
relacionados diretamente com os objetivos da análise.
13
Neste momento de sua elaboração textual, Mariani cita um trabalho de Orlandi, As formas do silêncio
no movimento dos sentidos (2004 [1993]), que também foi utilizado para a confecção desta dissertação
e que, portanto, consta da bibliografia deste.
48
contentar em não buscar o máximo de documentos para a sua pesquisa, a fim de que sua
pesquisa se torne o mais abrangente possível acerca do tema trabalhado.
Figura 1
49
Figura 2
50
2.2 NOÇÕES TEÓRICAS MOBILIZADAS
O sujeito é, portanto, um efeito do processo sem sujeito, uma ilusão que, no interior do discurso, pode
ocupar diferentes posições.
(Lagazzi, 1987)
Após uma visão geral sobre a teoria do discurso, abordagem assaz necessária
para a continuidade de nossa pesquisa, neste momento apresentaremos algumas noções
que se mostraram essenciais para a condução das análises e que já começam a compor o
nosso objeto analítico, uma vez que as análises são feitas a partir de instrumentos
teóricos. A escolha por esses e não outros instrumentos traz implicações não apenas
para a condução, mas também, e principalmente, para o sentido que as análises tomam
em direção ao resultado, mesmo que provisório, da pesquisa. Nesse sentido, dividimos
este subitem em cinco momentos, que estão apresentados a seguir.
“Taddeo explica que não é ele quem fala na música, mas os personagens que cria, com cenários e
narrativas ficcionais. Se o narrador é um assaltante de banco, falará como um. Se é uma vítima de
seqüestro, fará esse discurso. Se é um bandido arrependido pedindo perdão à mãe, o melodrama
cresce.”
(Luiz Maklouf Carvalho, 2007)
51
O funcionamento da ideologia também se relaciona com a memória, não no
sentido que os psicólogos e médicos a utilizam – como uma instância psicológica –, mas
como trabalha, por exemplo, Mariani (1996)
Ora, eis o ponto preciso onde surge, a nosso ver, a necessidade de uma
teoria materialista do discurso; essa evidência da existência
espontânea do sujeito (como origem ou causa de si) é
imediatamente aproximada por Althusser de uma outra evidência
presente, como vimos, em toda filosofia idealista da linguagem, que é
a evidência do sentido. (Pêcheux, 1988 [1975]: p. 153)
O segundo elemento destacado, mas não menos importante para as análises aqui
propostas, é a noção de formação discursiva já mencionada: não sendo possível haver
sentido sem que haja interpretação (Orlandi, 1996), os sujeitos são instados a
interpretar, a significar. Isso faz com que, ao dizer, o sujeito se filie a determinadas
redes de sentido, que recortam o dizível (que, em Análise de Discurso, é denominado
interdiscurso). A essas redes de sentido, a teoria em questão dá o nome de formações
discursivas. As formações discursivas trazem para a materialidade discursiva – a língua
– as formações ideológicas, que representam as tensões entre as posições que os sujeitos
das forças sociais assumem no discurso. Nesse sentido, tem-se a seguinte afirmação de
Pêcheux:
53
assim uma abertura para questionamentos e dúvidas, que a teoria reconhece como
contra-identificação. Mas esse sujeito pode mesmo não se reconhecer mais nas posições
administradas por tal formação discursiva, desidentificando-se com ela, ao mesmo
tempo em que se identifica com uma nova rede de sentidos. Acontece que esse
deslocamento não se dá de forma consciente, nem plena, pois o sujeito continua a
manter uma relação com as formações discursivas das quais se desidentificou, seja por
negar os sentidos anteriores, seja por promover silenciamentos em relação a eles, mas
constantemente referindo-se a tais sentidos.
Mas o que estamos aqui a mostrar é que, para além de esse sujeito-rapper se
identificar com sentidos que poderíamos chamar de contra-hegemônicos(pensemos em
hegemonia de acordo com o que nos diz Almeida:
54
Entendamos contra-hegemonia14,, conforme nos afirma Miranda,
ele se contra identifica com a organização suposta de sua própria língua, língua a partir
da qual ele enuncia. E, ao contra identificar-se com tal organização, esse sujeito-rapper
ocupa uma nova posição (que podemos relacionar com um movimento característico de
hesitação pelo falante, que Mariani (2009) designa por meio da expressão “relação
vacilante”, mas que não para aí, porque, na relação vacilante, tal como proposto pela
autora, o sujeito precisa ocupar uma posição na formação discursiva que reconhece uma
certa organização de língua como a correta, organização essa que se confronta com uma
outra, concebida como errada. E nesse confronto, esse sujeito da relação vacilante vai
ocupar a posição de quem “fala errado”, mas precisa/quer aprender a “fala correta”.
Uma posição que o sujeito-rapper não ocupa em parte alguma do corpus da pesquisa,
sujeito esse que se engaja nesse processo de resistir à organização gramatical
normativo-escolar da língua e que passa a produzir sentidos a partir de outra posição,
relativizando, de certa forma, tal organização preconizada, no caso, pela gramática
normativa, a partir da educação escolar/formal).
14
Trata-se de um conceito elaborado por Antonio Gramsci, membro fundador do Partido Comunista
Italiano, autor dos conhecidos Cadernos do Cárcere. Nasceu na última década do século XIX e veio a
falecer antes da metade do século XX (1891-1937). Informações obtidas a partir do site:
http://www.marxists.org/portugues/gramsci/index.htm .
55
ordem do discurso (forma material) em que o sujeito se define pela
sua relação com um sistema significante investido de sentidos sua
corporeidade, sua espessura material, sua historicidade. (Orlandi,
1988: p. 49, grifos nossos)
“Tudo não se diz”, nos diz Milner em O amor da língua (1987), e isso tem
diversas implicações, dentre as quais a de que não se pode tudo dizer, apesar de
vivermos sob a ilusão da onipotência da língua e do sujeito. Completude do dizer,
completude do sentido, completude do sujeito. Ilusões necessárias para a interpretação e
inexoráveis ao sujeito, que acredita ser senhor do que diz – e do que ouve, do que lê...
Mas Pêcheux (1969) vai nos dizer que essa incompletude é “produtiva”, porque é por
causa dela que os sujeitos e os sentidos podem se movimentar e tornarem-se outros. São
os espaços e as lacunas, as faltas, enfim, que permitem ocorrer os processos de
identificação, contra identificação e desidentificação do sujeito com o sentido. Nós, na
posição de analistas de discurso, não somos alheios a esse processo assujeitador que a
língua nos impõe para que possamos significar. E isso tem como consequência,
sobretudo, o fato de que estamos sujeitos a nos identificar com um ou com outro
sentido, embora estejamos, enquanto analistas, trabalhando “no limite da interpretação”
(Orlandi, 2009 [1999]), a fim de que possamos compreender como se dão os processos
de construção dos sentidos possíveis e como eles se relacionam entre si e com a
memória.
56
Assim, podemos dizer que estamos diante de um outro movimento: o de dar
sentido às produções significantes que atravessam esse sujeito-rapper, ao formular suas
letras, produções essas às quais tal sujeito nem sempre tem acesso de modo consciente.
Ele precisa estar inserido, até determinado limite, nessa organização imposta pela
“gramática” e por todos os sujeitos “autorizados” a decidir sobre o funcionamento da
língua, a fim de que seus supostos ouvintes – aqueles sujeitos imaginados pelo sujeito-
autor como “destinatários” de suas produções, no momento em que produz seu discurso
(mecanismo da antecipação) – tenham o mínimo de condições de interpretar aquilo que
ouvem. Mas estar inserido na lógica gramatical não é suficiente para esse sujeito-rapper
“passar sua mensagem” e ser “entendido”. Isso porque, para a Análise de Discurso,
existe um elemento central chamado ideologia. Sendo próprio da ideologia “dissimular
sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido
de evidências „subjetivas‟, devendo entender-se este último adjetivo não como „que
afetam o sujeito‟, mas „nas quais se constitui o sujeito‟.” (Pêcheux, 1988 [1975]). Isso
desloca inteiramente o olhar sobre tal produção discursiva: saímos do terreno do
certo/errado em gramática para o repetir/deslocar na ordem da língua.
57
garoto favelado que não tem seus direitos básicos à educação, saúde, moradia garantidos
e que “opta” por seguir a vida do/no crime: “Sou homem pra dizer que o moleque do
pipa / esquecido um dia troca tiro com a polícia / não simulo sentimento pra vender CD
/ não vou falar de paz vendo a vítima morrer”.
Assim, a partir de apenas uma palavra e de duas letras de músicas (L2 e L4),
conseguimos observar como o sentido não se dá a priori, como ele acaba construindo
sua referência histórica e discursivamente: no primeiro caso, ou seja, na (L2), tem-se
uma referência para a palavra vítima construída a partir do imaginário sustentado,
sobretudo, pela formação ideológica capitalista, segundo a qual as posses materiais – no
caso, dinheiro, joias e ações, por se tratar de um banco – são entendidas como bens mais
valiosos do que a própria vida de outrem – e esse outrem tem cor, endereço e lugar
social determinados, ou seja, não se trata de qualquer outrem. Dessa forma, a vítima é
quem é assaltado e “perde” seu dinheiro para o assaltante de banco, o vilão.
Esse conflito de sentidos parece nos remeter a duas matrizes de sentidos opostas,
o que pode nos levar a conhecer duas possíveis formações discursivas distintas.
Historicamente, no Brasil, já se sabe em qual possível formação discursiva se encontra o
sentido que predomina para a construção do imaginário social sobre vítima. Nesse
58
ponto, exatamente, podemos ver mais uma forma de o Facção Central resistir aos
sentidos postos como dominantes (lembrando que um sentido dominante não apaga os
outros sentidos possíveis, apenas os silencia, mas, mesmo sob esse silenciamento, os
outros sentidos continuam ressoando, continuam deixando sua marca ao ponto de
poderem mesmo – e esse é um resultado possível do movimento da história – chegar a
serem “eleitos” como o sentido original, literal, sobrepujando-se aos que antes estavam
em condições de silenciá-los): em seu álbum, especificamente naquele com que estamos
trabalhando, existe uma construção discursiva para vítima que se opõe, que disputa
espaço na construção do imaginário constituído sobre tal palavra.
É dessa segunda matriz, ou seja, desse outro sentido de vítima não hegemônico,
sentido que resiste e que disputa espaço na construção do imaginário social, que o grupo
Facção Central acaba por portar a voz, voz essa que passa por vários processos de
desqualificação15 e de silenciamento disponíveis pelos diferentes aparelhos de Estado,
no momento atual da luta de classes: o apagamento do político, nessas circunstâncias, é
o ingrediente principal da formação ideológica capitalista para que essa desqualificação
e esse silenciamento sejam possíveis, admissíveis e reprodutíveis. É reinserindo o
político na cena das discussões, sobretudo, a respeito da “função social” da arte, mais
especificamente da música, que o Facção Central mostra sua contra-identificação com
relação a uma possível formação discursiva da música.
Mas, para que essa disputa de sentidos seja possível, o grupo ocupa uma posição
discursiva divergente da ocupada pela forma-sujeito de uma possível primeira matriz de
sentidos. Repare que essa divisão ordinária de primeira e segunda matrizes de sentido
15
A desqualificação do discurso do outro funciona sob a égide da política do silêncio, a qual, conforme
Orlandi, “se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis,
mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada.” (Orlandi, 1997: p. 75)
59
leva em conta o comparecimento da palavra nas duas letras de música citadas: L2 e L4.
Uma vez que primeiro aparece, em L2, a construção de um sentido de vítima mais
próxima ao sentido hegemônico, designamos esse processo de identificação como sendo
o primeiro. Por fim, uma vez que somente depois, ao seja, na L4, irá aparecer a
construção do sentido que entendemos como oposto ao primeiro, o de vítima enquanto
excluído social, designamos tal processo de identificação como sendo o segundo.
Assim, em L2 temos a primeira matriz e, em L4, a segunda. Portanto, ao invés de
encontrar-se posicionado ao lado dos que procuram incessantemente pelo lucro a
qualquer preço (preço, geralmente, de uma vida), o sentido mais fortemente difundido
na matriz em questão, o Facção Central busca se posicionar ao lado dos que não
conseguem, mesmo trabalhando, alcançar o mínimo de condições necessárias para
usufruir de uma vida menos miserável e mais plena de oportunidades. Vale lembrar que,
para a formação ideológica capitalista, existe um discurso fundante que insere o
trabalho em seu centro, porque, segundo essa formação, o trabalho “enobrece” o homem
(já dizia Gonzaguinha, talvez produzindo um efeito de ironia, na música “Um homem
também chora”, do álbum Alô, alô, Brasil [1983]16: “e sem o seu trabalho, um homem
não tem honra, e sem a sua honra se morre, se mata”).
16
Disponível no site: www.gonzaguinha.com.br, acesso em 02/04/2012.
60
quem supostamente estaria em conflito com ela. Ao se confrontar, sem se desprender
dessa matriz de sentidos, o Facção Central acaba por repetir em suas formulações
sentidos outros que, no fio discursivo, afirma procurar combater. Esse processo, pelo
próprio funcionamento ideológico, não é consciente nem pleno. Essas marcas do
discurso da formação capitalista nas formulações do Facção mostram que existem
falhas no ritual ideológico.
“Os palavrões se tornam necessários em determinados trechos, para demonstrar o grau de revolta.
Colocados de forma adequada, eles dão a dimensão da gravidade, e da seriedade do tema que está sendo
abordado”.
(Carlos Eduardo Taddeo, 2006)
61
Inserido numa proposta de apresentação geral dessa teoria que ainda dava seus
primeiros passos, Pêcheux (1969) mostra, a partir de uma análise sobre os
funcionamentos dos esquemas psicofisiológicos, de natureza comportamentalista (base
skinneriana), aos quais denomina “esquema reacional”, e dos esquemas por ele
designados como “informacionais”, cujas referências o filósofo vai buscar em Jakobson;
que essas teorias silenciam alguns atores importantes quando se pensa a linguagem a
partir do prisma discursivo.
62
O esquema torna-se então:
[L]
D
A -------------------------- B
R
com, respectivamente:
A: o “destinador”,
B: o “destinatário”,
R: o “referente”,
[L]: código linguístico comum a A e B,
--: o “contato” estabelecido entre A e B,
D: sequência verbal emitida por A em direção a B.
64
rapperpara o sujeito fale assim ao ouvinte?”
ouvinte
Legenda: IR = sujeito-rapper
IB = sujeito-ouvinte
R = rapper
B = ouvinte
Figura 3
65
em que a sociedade se encontra: podemos vislumbrar desde o estágio do
desenvolvimento social, político, econômico, até o do desenvolvimento tecnológico.
No caso do Facção Central, quando produz o álbum A marcha fúnebre
prossegue, no ano 2000, existem pistas nas próprias letras de música que deixam
perceber em qual época tal narrativa foi construída (temos, por exemplo, menção ao
então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso [mais presente nas letras sob
a sigla FHC], ao salário de então [R$ 151,00], ao preço de um jornal [R$ 0,50] e mesmo
à moeda utilizada na época e que dura até hoje: o Real [R$]). Estamos falando, portanto,
de um período pós-ditadura militar (que, no Brasil, durou oficialmente duas décadas:
1964-1984) e de um mundo pós-queda do muro de Berlim (e, utilizando-nos de uma
expressão trabalhada por Francis Fukuyama17, um mundo pós “fim da história”). De um
mundo que conhecera a ideologia socialista, mas cujos países – as classes dominantes
dos mesmos – “optaram” pela ideologia capitalista.
“Esse tipo de proposta musical e cultural - principalmente um rap engajado e pesado como o do Facção
Central - redimensiona a forma como a população da periferia trabalha com a sua auto-estima. É o
primeiro gênero musical de massa em que os grupos excluídos rompem uma barreira cultural a partir de
uma produção própria, e não de uma concessão que vem de fora.”
(Frederico Oliveira Coelho, 2006)
17
Emseuartigopublicadonumarevistanorte-americana, no verão de 1989, artigoque, posteriormente,
deuorigem a um livrointitulado “O fim da história?”, essepesquisador da Johns Hopkins University,
dizque: “What we may be witnessing is not just the end of the Cold War, or the passing of a particular
period of postwar history, but the end of history as such: that is, the end point of mankind's ideological
evolution and the universalization of Western liberal democracy as the final form of human
government.” (grifo nosso) Disponível em << http://www.wesjones.com/eoh.htm>> acesso em
02/04/2012.
66
discurso se encontra num batimento contínuo entre a descrição e a interpretação e que,
para Orlandi (2009 [1999]), os objetos simbólicos reclamam sentidos. Sendo a língua
considerada um objeto simbólico, existe uma injunção à interpretação, ao significar.
Portanto, a teoria se faz num permanente batimento entre descrição e interpretação e
cabe ao analista de discurso trabalhar nesse entremeio. Diz a autora:
(...) o estudo do discurso distingue-se da Hermenêutica. A Análise do
Discurso visa compreender como os objetos simbólicos produzem
sentidos, analisando assim os próprios gestos de interpretação que
ela considera como atos no domínio do simbólico, pois eles
intervêm no real do sentido. A Análise do Discurso não estaciona
na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como
parte dos processos de significação. Também não procura um
sentido verdadeiro através de uma „chave‟ de interpretação. Não há
esta chave, há método, há construção de um dispositivo teórico. Não
há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que
o constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz
de compreender. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 26, grifos nossos)
67
efeito de transparência da linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do
sujeito”, a fim de que se possa relativizar essa posição em que se encontra, diante da
interpretação. E completa, dizendo que “por isso é que dizemos que o analista de
discurso, à diferença do hermeneuta, não interpreta, ele trabalha (n)os limites da
interpretação”. (Orlandi, idem: p. 61)
Quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como significação, criou a linguagem
para retê-lo.
(Orlandi, 1997)
Orlandi (1997), em seu estudo sobre as formas do silêncio, nos diz que o silêncio
não é o vazio, a ausência de sentido, mas a base da significação. Diz-nos, também, que a
fala é um recorte nesse silêncio, um recorte que dá direção aos sentidos possíveis,
possibilidades que povoam esse espaço saturado. Nas palavras da autora,
68
O silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício
de uma totalidade significativa. Isto nos leva à compreensão do
“vazio” da linguagem como um horizonte e não como falta. (Orlandi,
1997: p. 70, itálicos da autora)
69
sentidos. Podemos dar um exemplo desse silenciamento a partir de sequências retiradas
de nosso corpus: para retomar um discussão já iniciada anteriormente, podemos dizer
que o sujeito-rapper utiliza, como título de seu álbum (que também intitula uma música
desse mesmo álbum), a expressão “a marcha fúnebre”, para significar “música” ou
“produção musical”. Será?
Não podemos afirmar categoricamente que “marcha fúnebre” remeta somente à
memória do dizer sobre música. Temos que admitir que há a possibilidade de uma
remissão à memória da história do grupo, do silenciamento sofrido por ele e da forma
como esse sujeito significa a posição discursiva de um rapper. Dessa maneira, ao dizer
“marcha fúnebre”, não se está dizendo – ou seja, está-se silenciando, deixando no
campo do não-dito – outras formas, que não conseguiriam produzir tal efeito produzido
pela expressão efetivamente realizada.
As expressões “a produção musical” ou “as nossas músicas”, ou mesmo “a
batalha musical” são possíveis, mas não realizadas, e silenciadas, no momento em que o
grupo decidiu usar “a marcha fúnebre”. O que quer dizer que, ideológica e
inconscientemente, a expressão “escolhida” significa mais para o grupo do que qualquer
outra possível expressão. Se não, vejamos: falar “marcha” cala, por exemplo, o
corriqueiro que caracteriza o verbo “andar” e recupera uma memória de exército e, por
exército, a memória da ditadura. Vemos a metáfora funcionando aí e, por deslocamento,
uma remissão à memória do período ditatorial em que o país fora comandado por
militares (exército). E, ao trazer essa memória da ditadura, esse sujeito resiste ao
imaginário de que o sistema capitalista é essencialmente democrático, discurso com que
o sujeito pode se identificar e reproduzir – não sem as contradições inerentes à ordem da
língua. Dizer “fúnebre” cala os sentidos produzidos pelos termos “felicidade”,
“alegria”, “contentamento”, ou seja, sentimentos e emoções frequentemente
relacionados à contemplação da arte musical.
Esse conceito de silenciamento é muito relevante para a nossa pesquisa, porque
nos ajuda exatamente a vislumbrar os limites do dizer, dizer esse afetado pela censura
local sofrida pelo grupo Facção Central, no álbum antecessor do escolhido para este
trabalho. Ao formular, então, o sujeito acaba projetando esse “outro” imaginário e
confrontando-o com aquele que podemos dizer ser dominante na nossa formação social
capitalista “emergente”. Assim, vê-se bem quais sentidos são silenciados, porque não
podem/devem ressoar no discurso que produzem. Por exemplo, por se colocar enquanto
representante da periferia/favela, mesmo quando “cede” a voz aos seus “inimigos”, seus
70
outros, não é possível deslocar a “responsabilidade/culpa” para outro sujeito que não
sejam aqueles que, social e historicamente, (re)produzem a desigualdade de direitos e
que são, justamente, esses “inimigos”, esses “outros”. O que pretendemos dizer com
isso é que as formulações que comparecem na letra de música L9, intitulada Tensão, na
qual o sujeito narra um sequestro-relâmpago de um casal rico por bandidos, encontram
sua sustentação no discurso com o qual os rappers se identificam. Podemos observar tal
administração de sentidos a partir de construções como “não nego minha culpa no
menino faminto” ou “Mas, se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou culpado”. Isso
é uma forma de silenciar seu outro: colocar “na boca do outro” sentidos que fazem parte
do discurso de um.
18
Este verbete também foi consultado no Míni Houaiss Dicionário da Língua Portuguesa (2004, 2. ed. –
revista e aumentada). Nesse dicionário, estão elencados outros significados, que não comparecem na
versão eletrônica, utilizada na citação. Comparecem, na versão míni, os seguintes significados, não
elencados na versão eletrônica, ou elencados de maneira diferente: “(...) 4. defesa contra um ataque 5.
fig. recusa de submissão à vontade de outro 6. fig. reação a uma força opressora 7. fig. qualidade de
quem demonstra firmeza 8. fig. vigor moral; determinação(...)” Interessante notar que, embora na
versão eletrônica o significado de número 5 seja considerado não-figurado, literal, na versão míni o
mesmo significado número 5 aparece marcado como figurado (fig.).
71
Todas essas direções de sentidos sejam elas consideradas pelo Instituto
organizador do dicionário como figurado, ou não, são de extrema relevância para o que
este capítulo se propõe a discutir.
Mas antes, cabe elaborar algumas considerações acerca do que o dicionário nos
traz: em primeiro lugar, é interessante observar que existe uma divisão explícita na
apresentação das definições, em que vem marcada a posição do sujeito-autor desse
verbete, ao separar o que compreende como sentido figurado (observe a designação fig.
antes da apresentação do significado em questão) e como não-figurado (não vem
marcado por nenhuma designação, silêncio que reafirma a posição discursiva ocupada
pelo sujeito-autor: ao não ser marcado, esse sentido aparece como literal, evidente. Para
nós, enquanto analistas de discurso, vale lembrar, a literalidade é um efeito); depois,
podemos observar que as mesmas definições que comparecem na parte dos significados
não-figurados (literais, de acordo com a posição ocupada pelo sujeito-autor do
dicionário) também estão presentes para delimitar os sentidos figurados. Isso tem a ver,
sobretudo, com a circularidade característica do funcionamento do dicionário (Honório,
2002). Essa circularidade acaba desfazendo as fronteiras até então estabelecidas entre o
sentido não-figurado e o chamado sentido figurado, exatamente porque retoma palavras
e expressões já utilizadas na produção das definições “literais” durante a produção das
definições figuradas. Observemos os seguintes pares: reage – reação; se opõe –
oposição; suportar a fadiga – recusa a se submeter.
Se pensarmos em termos da relação do sujeito com o sentido, ou seja, em termos
de identificação, podemos observar que o sujeito-rapper se relaciona com a sua língua
materna, que vem a ser a língua oficial e nacional do país em que vive, recusando-se a
se submeter à organização imposta pela/os gramática/os, opondo-se a ela/es, resistindo,
mas não rompendo de vez com tal organização, uma vez que, apesar de recusar
determinados aspectos organizacionais, não deixa de produzir suas músicas de dentro do
sistema da língua portuguesa – sistema, aqui, sendo compreendido a partir da noção
trabalhada por Saussure e trazida até nós por meio do Curso de Linguística Geral, 1916.
Se o sujeito-rapper não mais se reconhecesse falante da língua portuguesa, ou melhor,
da língua brasileira (Orlandi, 2002), estaria produzindo seu discurso em outra língua.
Como essa ruptura total não ocorre, mas ocorre um certo nível de recusa a determinados
aspectos da organização preconizada pela gramática da língua, podemos dizer que há
uma contra-identificação entre falante (sujeito-rapper) e língua (brasileira).
72
Nossa hipótese é a de que a resistência – com as características mencionadas –
se marca na língua a partir do uso de advérbios de negação, vocativos, formas verbais
no presente do indicativo e no gerúndio, hipérboles, metáforas... Entendemos, também,
que o sujeito-rapper ocupa uma posição de “oposição”, de “defesa contra um ataque”,
de “recusa de submissão”, quando recusa a organização da língua e “fere a gramática
normativa”, produzindo dizeres que não se inserem na dita norma da escrita, tais como
ausência de concordâncias nominal e verbal, subordinadas adjetivas sem conjunção
integrante e com gerúndio, faz uso excessivo dos ditos “estrangeirismos”, faz uso das
chamadas “gírias”, não faz correlação temporal nem obedece às regências nominal e
verbal etc. É claro que esses aspectos podem ser observados a partir da compreensão de
que se trata de uma produção oral, que não tem pretensão de seguir as regras
gramaticais da escrita, mas, ainda assim, podemos entender essa produção como uma
tomada de posição, no caso, uma posição de sujeito que, dentro da formação discursiva
que abrange as normas da língua portuguesa no/do Brasil, resiste a algumas delas.
Talvez isso seja um processo de resistência ao “elitismo” que relaciona a educação da
língua ou mesmo a educação em geral ao poder econômico, numa sociedade
extremamente desigual como é a sociedade brasileira. Elitismo esse que surgiu junto
com a criação das primeiras faculdades no país e que também se relaciona intimamente
com a questão da gramática e dos gramáticos no Brasil. Afinal, não é qualquer favelado
que pode ocupar um lugar social de prestígio em relação à língua que “nasceu” falando.
Esse papel do sério (Orlandi, 2009 [1985]), do autorizado a falar sobre a língua não
cabe ao favelado, cuja educação não necessariamente passa pelas cadeiras dos colégios
ou das universidades formais. No entanto, ou talvez, por isso, esses sujeitos resistem,
recusando-se a uma organização linguística que significa – traduz, quiçá – para eles essa
desigualdade social com a qual não são coniventes e que, pela produção musical,
procuram modificar. Uma vez que não podem ocupar “legitimamente” uma posição
autorizada para falar da língua, fazem-no no próprio fio discursivo, a partir da assunção
de uma postura de resistência.
Nesse momento, vale a pena relembrarmos da posição de João Guimarães Rosa,
literato brasileiro do século XX, que também utilizava em suas obras uma outra
organização da língua que não aquela “reconhecida” pelos gramáticos, mas nem por
isso menos rica. Em nível de regras gramaticais, ele esbanjava criatividade e
desobediência.
73
Fique aqui esclarecido que não queremos comparar e igualar um e outro gestos,
porém é válido lembrar que ambos estão resistindo, mesmo não ocupando a mesma
posição discursiva, à forma-sujeito dessa formação discursiva que administra os
sentidos possíveis para a língua portuguesa do/no Brasil.
Após passarmos rapidamente pelo dicionário, pensarmos um pouco a relação
entre o verbete e as posições discursivas do sujeito-rapper e de Guimarães Rosa, é hora
de trazermos a contribuição de Pêcheux sobre o assunto resistência em Análise de
Discurso:
As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as
ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar
quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua
estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido
das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra;
deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as
palavras...
E assim começar a se despedir do sentido que reproduz o discurso
da dominação, de modo que o irrealizado advenha formando
sentido do interior do sem sentido. (Pêcheux, 1980: p. 17, grifos
nossos)
74
mesmo de seu funcionamento, no momento em que o sujeito se constitui – e os sentidos
para ele –, ou seja, no momento mesmo da interpelação. E é com o objetivo de
administrar essa multiplicidade de posições-sujeito e de sentidos que o Estado procura
silenciar a relação do sujeito com o sentido, buscando tornar único o sentido, buscando
cessar os movimentos do sujeito e, com isso, silenciar também o que, para nós da
Análise de Discurso, é inerente à língua: o político, a divisão dos sentidos. É, pois,
necessário que se produza apenas um sentido para determinada palavra. E que esse
sentido funcione, univocamente. Indo nessa direção é que a memória social é
hegemonicamente posta como linear e homogênea, pela formação ideológica capitalista.
Contudo, Mariani, retomando Pêcheux (1999 [1984]), afirma que
A memória é não-linear, lacunar, mas seu efeito é apresentar
sentidos que se querem unívocos e estabilizados no fio do discurso.
O histórico e o linguístico significam de modo não transparente,
formam uma rede de significância, tecida de ambiguidades, de
repetições, de equívocos, conflitos etc. Os sentidos que constituem a
memória são muitos, mas aparecem como literais, unívocos. Mas
como o esquecimento é constitutivo da memória, o próprio lembrar
pode produzir outras direções de sentido. (Mariani, 1996: p. 42, grifos
nossos)
Os sentidos não são únicos, não sendo, portanto, únicas as posições que os
sujeitos podem ocupar no discurso. Mas é necessário, para a formação ideológico-
jurídica, que esses sujeitos sejam intercambiáveis, conforme nos diz Lagazzi (1988) ao
retomar Pêcheux (apudHaroche, 1984):
(...) através da indeterminação, o logicismo mecaniza a lei,
descontextualizando sua aplicação: „todo aquele que X, então Y‟.
Pêcheux nos mostra que estruturas sintáticas do tipo „aquele que VN‟
sofrem um „esvaziamento do objeto fora da função‟, o que leva à
indeterminação ou não-saturação, possibilitando a generalização
„todo aquele que VN”, “qualquer um que VN”. A causa é apagada
para que se observe apenas a consequência jurídica, ou seja,
apaga-se o social e o histórico para que a ordem se mantenha a
qualquer custo. É esse apagamento que sustenta a formação
ideológica-jurídica, possibilitando que a lei se coloque como igual
para todos. (Lagazzi, 1988: p. 42, grifos nossos)
75
decorrentes do modo de produção e é contra elas que as leis deveriam atuar.”19
Destacamos essas sentenças, porque elas significam bastante para a questão da
resistência de que estamos a tratar.
Na contradição em que se encontra o sujeito-rapper, e na qual todos os sujeitos
acabam se encontrando, sob a “evidência” da unidade do ser – o primeiro esquecimento
ideológico, segundo Pêcheux (1988 [1975]) –, esse sujeito, inserido na formação
ideológica capitalista, portanto, sujeito às “relações coercitivas decorrentes do modo de
produção” capitalista, por vezes, posiciona-se discursivamente a favor da “igualdade
perante a lei”, o que equivale a dizer que, às vezes, o sujeito-rapper mostra um “menor”
grau de resistência à ordem estabelecida, apresentando uma posição quase que
reduplicada da forma-sujeito capitalista, a do sujeito-de-direito, recobrindo-se e aos seus
sentidos sob a sombra dessa forma-sujeito capitalista, porque busca a igualdade perante
a lei.
Lênin, um dos revolucionários da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas de
1917, não era um acadêmico no sentido estrito, desses que produzem de dentro das
universidades, contudo, era um estudioso e profundo conhecedor das teorias de Marx e
Engels e da teoria das formações sociais. Esse Lênin revolucionário publicou um livro
baseado num discurso proferido em maio de 1919, livro esse intitulado “Como iludir o
povo – com os slogans de liberdade e igualdade”. Nesse livro, ele nos diz que – e isso
tem tudo a ver com a questão da forma-sujeito capitalista e a contradição do sujeito-
rapper ao se mostrar, às vezes, alinhado com um princípio burguês, que remonta ao
período revolucionário francês do século XVIII e ao ideário da “fundação” dos direitos
do homem –
19
Lagazzi, 1988:p. 43.
76
procura se confrontar quando critica o fato de que os bens materiais, o lucro, estão
acima do valor de uma vida, uma vida que, conforme dissemos lá atrás, tem cor,
endereço e lugar social determinados. Nesse caso, quando se identifica com o discurso
da igualdade dentro do capitalismo, o sujeito-rapper passa a pertencer ao rol dos
“iludidos”, se tomarmos a afirmação de Lênin como parâmetro para balizar nossa
compreensão de socialista: igualdade só com a abolição das classes, ou seja, fora das
bases do capitalismo.
Outra necessária e produtiva consideração acerca da resistência é a sua relação
com a censura, proposta por Moreira (2009). A partir da leitura que fez sobre as formas
do silêncio em Orlandi (1995 [1992]), aquela propôs que se trata de dois polos atuantes
numa mesma região de sentidos: “mas se a censura impede que o sujeito ocupe certas
posições no discurso, ela sempre traz no espaço mesmo de seu funcionamento a
resistência, o outro sentido; censura e resistência, enfim, „trabalham na mesma região
de sentidos‟.”
Pensando as condições de produção do Compact Disk (CD) cujas letras de
música são analisadas neste trabalho, temos que partir da memória da censura local
sofrida pelo grupo contra o CD anteriormente construído, para compreendermos o título
“A marcha fúnebre prossegue”. No latim clássico, de acordo com Saraiva (1927:
p.950), temos que a palavra pro – sim, na língua latina clássica, ou seja, naquela língua
que latinistas como Saraiva e Faria consideram como o latim usado durante o período
que compreende I a.C. – II d.C., designado pelo adjetivo clássico, o que hoje a língua
portuguesa reconhece enquanto contração “não-autorizada” gramaticalmente entre a
preposição para e o artigo determinado masculino singular o ou como prevérbio em
palavras como próclise, no latim clássico se tratava de uma palavra –, preposição que
podia funcionar como prevérbio, indicava “posição ou direção para diante”, sentido
reiterado pelo Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis 2000 (2000: p.
1699), que relaciona como significado para tal palavra/partícula o seguinte: “significa
antes, adiante”. Discursivamente, a palavra prossegue remete para uma memória de fim
de caminho, de impedimento para a continuação de uma caminhada, mas remete a fim
de negá-la.
Ao utilizar-se do prevérbio pro, o sujeito-rapper se contra-identifica com esse
impedimento, com essa censura, e se reafirma, significando também sua identificação
com uma posição discursiva outra que não aquela da “obediência” suposta pela
77
formação ideológica capitalista do sujeito de direitos – e deveres. Ele não para. E não
apenas segue, mas prossegue. Segue em frente, adiante: resiste.
Estamos aqui, de acordo com o esquema proposto por Pêcheux e Fuchs (2010
[1975]), diante de um processo de dessintagmatização linguística, ou seja, do nível da
língua e de sua organização (Orlandi, 2009 [1999]). Este nível, o da dessintagmatização
linguística (ou „dessuperficialização‟, segundo os supracitados autores franceses),
A sintaxe significa, como nos afirma Orlandi (id., ibid.). Esta foi a pista que
seguimos para recortar as letras do rap e, assim, delimitar as sequências discursivas. O
conceito de recorte foi proposto por Orlandi (1984) como forma de organizar o trabalho
da AD:
78
O recorte é uma unidade discursiva. Por unidade discursiva,
entendemos fragmentos correlacionados de linguagem e situação.
Assim, um recorte é um fragmento de situação discursiva. (...)
Pretendemos que a ideia de recorte remete à polissemia e não à de
informação. (Orlandi, 1984: p. 14)
79
3. O RAP E AS MARCAS DE RESISTÊNCIA
A Análise de Discurso não procura o sentido “verdadeiro”, mas o real do sentido em sua materialidade
linguística e histórica.
(Orlandi, 2009 [1999])
Dessa forma, foi possível relacionar o que o sujeito diz com o que ele não diz,
com o que poderia ter sido dito de outro modo e com o que é dito em outro lugar. Com
base nesses funcionamentos – negação, causa, condição, explicação e denominação –,
buscou-se compreender como o sujeito se relaciona com seu dizer e como constrói
discursivamente essa (ideia de) resistência. Para isso, dividiu-se este item em quatro
subitens, nos quais se discutiram desde a relação do sujeito com a língua até a própria
noção de língua, a partir das noções teóricas propostas por Orlandi (2002) de língua
imaginária e língua fluida e da compreensão discursiva de preconceito linguístico,
formulada por Mariani (2007).
80
No entanto, para nós, é interessante neste momento, esticarmos um pouco mais o
ponto, para podermos adentrar na discussão sobre as marcas com as quais trabalharemos
a seguir. Por isso, torna-se necessário observarmos de que modo linguistas como Mário
Perini (1978),Ingedore Koch (1987) e Garcia (1978) vêm trabalhando a questão das
relações entre frases, relações essas referentes ao sentido, o que, na divisão proposta no
corte epistemológico da fundação da linguística enquanto ciência, estaria no campo da
Semântica. Uma vez que nesta dissertação estamos trabalhando com a semântica
discursiva ou teoria do discurso, esse corte epistemológico apontado acima não se
coloca, não havendo, portanto, essa separação mecânica entre sintaxe e sentido.
Estamos buscando apreender como são produzidos os efeitos de sentido que as
construções sintáticas – ou mesmo sintático-pragmáticas – colocam em jogo quando da
sua formulação. Mesmo com essa distância teórico imposta pelas diferenças entre o
gerativismo, a linguística textual e a análise de discurso, considerando que estamos
introduzindo a análise das sequências discursivas que possuem elementos
gramaticalmente conhecidos como conjunções – aquelas palavras utilizadas para unir
orações, imprimindo à relação interfrástica determinadas direções de sentido –
coordenativas (mas, só que) e subordinativas (pois, porque, se).
81
portanto estamos no nível das orações subordinadas, pode ter apenas um item lexical –
um termo – ou ser composto por vários itens lexicais – mais de um termo – e aproveita
para mostrar que há uma certa equivalência funcional entre essas duas possibilidades de
realização da conjunção. A terceira observação que podemos fazer sobre a citação
acima é a que concerne à falta de explicação sobre o que Perini entende por
“coordenadores”. Fomos, então, ao décimo terceiro capítulo, ao qual o autor faz
referência, para saber como o autor trabalha a questão. Vimos que se trata de um
capítulo, inserido na divisão da gramática, que é responsável por apresentar a discussão
acerca das classes de palavras, o que nos levaria a antecipar que haveria uma abordagem
mais próxima de uma análise morfológica stricto sensu. No entanto, apesar de não partir
de uma discussão semântica, também não se atém à morfologia, mas abre uma
discussão no nível morfossintático:
Quando, por fim, aborda a questão dos “coordenadores”, especificamente, faz uma
observação incompleta, mas que nos interessa:
82
como primeiro subitem, a questão da subordinação e da coordenação. Afirma ela, já no
início do capítulo, que
No parágrafo seguinte, Koch (op. cit.) nos mostra que essa divisão tradicional
entre dependência e independência entre orações é insuficiente e, até certo ponto,
contraditória, uma vez que existe uma relação de interdependência entre as orações, “de
tal modo que qualquer uma delas é necessária à compreensão das demais” (Koch, idem:
p. 111). Novamente aqui, porém utilizando-se de uma construção bem diferente, a
autora aciona a memória do “sentido global do texto”, bem como o de texto como sendo
o resultado final de uma tessitura, em que várias linhas se combinam, são dependentes
entre si e formam um tecido.
Contudo, esses dois parágrafos não trazem exatamente o modo como a autora
conceitua as conjunções – se é que essa designação que ela usa para se referir às marcas
83
que queremos analisar. Na realidade, a autora percorre diversos estudos e estudiosos do
tema, indo desde a gramática de Port-Royal até Othon Moacir Garcia, passando por
Borba, Bally e Ducrot.
Após nos apresentar vários exemplos que, segundo Koch (1987), “poderiam ser
acrescentados aos de Borba e de Othon Moacir Garcia” (Koch, idem), a autora abre um
parágrafo em que discute sobre a validade da divisão tradicional entre orações
coordenadas, subordinadas e justapostas:
84
da análise de discurso, mas como a linguística entende, ou seja, como um termo
equivalente, senão como sinônimo, ao termo fala.
20
Na contracapa do livro, em sua sétima edição, há um artigo de autoria de Paulo Rónai, no qual se
pode ler: “COMUNICAÇÃO EM PROSA MODERNA se caracteriza por uma abordagem revolucionária do
problema da expressão. Em vez de partir do material disponível que oferecem os textos, de classificá-lo
e rotulá-lo, o autor toma como ponto de partida as ideias que reclamam comunicação.” (grifos nossos)
85
Na coordenação (também dita parataxe), que é um paralelismo de
funções ou valores sintáticos idênticos, as orações se dizem da mesma
natureza (ou categoria) e função, devem ter a mesma estrutura
sintático-gramatical (estrutura interna) e se interligam por meio de
conectivos chamados conjunções coordenativas. É, em essência, um
processo de encadeamento de ideias(...). (Garcia, idem: pp. 16-17)
86
hierarquização, em que o enlace entre as orações é muito mais estreito
do que na coordenação. Nesta, as orações se dizem sintática, mas nem
sempre semanticamente, independentes; naquela, as orações são
sempre dependentes de outra, quer quanto ao sentido quer quanto ao
travamento sintático. Nenhuma oração subordinada subsiste por si
mesma, i.e., sem o apoio de sua principal (que também pode ser outra
subordinada) ou da principal do período, da qual, por sua vez, todas as
demais dependem. Portanto, se não podem subsistir por si mesmas, se
não são independentes, é porque fazem parte de outra, exercem função
nessa outra. Isto quer dizer que qualquer oração subordinada é, na
realidade, um fragmento de frase, mas fragmento diverso daquele que
estudamos nas frases de situação ou de contexto (...). “Se achassem
água por ali perto” é uma oração, mas não uma frase, pois nada nos
diz de maneira completa e definida; é apenas uma parte, um termo de
outra (“beberiam muito”), na qual exerce a função de ajunto adverbial
de condição”. (Garcia, idem: pp. 19-20)
87
quer...quer, uma conjunção coordenada alternativa): “Irei, quer queiras, quer não
queiras. equivale a Irei, se quiseres ou (e) mesmo que não queiras.” (p. 23). Essa
subordinação psicológica o autor classificou como concessivo-condicional. E, na
continuação desse exemplo, o autor questiona a definição da gramática tradicional de
orações coordenadas:
O grito da gaivota terceira vez ressoa a seu ouvido; vai direto ao lugar
donde partiu; chega à borda de um tanque; seu olhar investiga a
escuridão, e nada vê do que busca. (J. de Alencar, Iracema, XII)
88
Então, depois de todo esse levantamento bibliográfico sobre as conjunções, a
subordinação e a coordenação, a partir das teorias gerativista, linguística textual e
argumentativa, é necessário que voltemos novamente nossos olhos sobre a discussão
travada por Pêcheux a respeito desses temas. Para isso, buscamos o apoio no seu livro,
publicado em 1975, Semântica e discurso. Nessa obra, o filósofo francês trabalha as
noções conhecidas pelos nomes de subordinação e coordenação a partir de outra
teorização, que está mais próxima daquilo que conhecemos como subordinada adjetiva
restritiva e subordinada adjetiva explicativa, mas que não deixa de ter seu contato com
as relações entre orações citadas acima: articulação e encaixe.
89
interdiscursiva, onde os objetos se formam como preconstruídos. As
diferentes redes de formulações que se estabelecem em uma FD são
responsáveis pelo processo discursivo da FD em questão. Os
enunciados articulam-se entre si, no interior dessa rede, estabelecendo
a referência dos elementos do saber de uma FD. (Indursky, idem: p.
36)
Portanto, estamos falando de um outro lugar teórico, que, como vimos dizendo
repetidamente, possui um objeto próprio – o discurso –, bem como instrumentos
teóricos próprios, dentre os quais estão as noções acima apontadas: articulação e
encaixe. É, logo, desse ponto que partimos para conduzir nossas análises. Saindo as
posição gramatical e reinserindo a questão da ideológica da contradição, e da luta de
classes, que caracterizam a sociedade capitalista em que as letras foram produzidas e
postas em circulação e que serão trabalhadas neste capítulo, poderemos observar como
90
se dão os funcionamentos discursivos, para daí chegarmos ao processo discursivo, a fim
de que possamos contemplar os embates ideológicos ali em jogo.
“(...)o rap assumiu o lugar da canção de protesto e é, hoje, a única música de contestação. É um gênero
que tem fôlego para crescer. Sua importância não está em revelar a realidade da periferia - já que toda
música revela uma realidade -, mas em ser uma forma de expressão, de convencimento e de persuasão
para os seus ouvintes.”
(Luiz Tatit, 2007)
Cada uma dessas imagens comparece, geralmente, mais de uma vez em cada
domínio (cada domínio significando cada letra de música que, nesta dissertação,
marcamos com a letra L em maiúsculo seguida do número que representa a faixa da
música no álbum, p.e.: L5) e, em mais de um domínio.
92
De acordo com o efeito de sentido que é produzido em determinado domínio, pode-
se observar a prevalência de uma ou outra imagem. É o caso, p.e., da L10, intitulada De
encontro com a morte, em que a imagem que comparece com maior força é a Ia(A)1, ou
seja, a do mensageiro de um futuro trágico. Além disso, cada imagem possui um
funcionamento específico, que permite “identificá-la”:
a) A IAR (R1) se constrói a partir da presença de uma forma verbal perifrástica para
construir o futuro do presente, na qual o verbo auxiliar é sempre o verbo ir
conjugado – o que confere um efeito de inexorabilidade ao verbo principal, que
aparece no infinitivo –, ou mesmo apenas com o verbo conjugado no futuro do
presente simples.
SD1: “A fome e a miséria mostram o fruto que a sociedade vai colher” (L2)
Podemos afirmar, considerando o silêncio constitutivo, que ao dizer “vai” +
“colher” (verbo) o sujeito-rapper não está dizendo “pode colher” ou “quer
colher”. Ele não modaliza: afirma categoricamente, assevera: “vai”.
b) A IAR (R2), a que denominamos de porta-voz da favela/periferia – não é muito
difícil de perceber que, nas letras, produz-se uma mesma referência para essas
duas palavras: lugar e modo de ser –, vem construído a partir de verbos e
pronomes substantivos ou adjetivos na primeira pessoa do singular ou do plural,
seguidos de expressões que remetem a favela/periferia.
SD2: “Sou periferia em cada célula do corpo” (L7)
Vale a pena lembrar aqui que “periferia” funciona enquanto um atributo de um
sujeito, e não enquanto o lugar de origem desse sujeito, que viria designado pela
expressão composta pela locução preposicionada “de” + “nome do lugar” (p. e.,
“da periferia”).
c) O tom de lamento e arrependimento da IAR (R3) tem origem na construção
baseada num embate entre um passado possível mas irrealizado e um presente de
dificuldades. Trata-se de um confronto entre o ideal e a realidade e tudo isso se
marca a partir de verbos no pretérito perfeito e imperfeito, normalmente em
construções que utilizam marcas de oposição, como, por exemplo, as orações
negativas e as coordenadas adversativas, havendo, ainda, um caso de concessiva.
SD3: “Meu coração de ódio queria paz, acredite! Mas agora sou eu e o atirador
de elite.” (L10)
93
Entre o querer (verbo volitivo, de vontade), do campo do hipotético, e a cena da
realidade, há um “mas” que marca a distância existente: a direção argumentativa
(veremos essa questão no subitem 3.2) é dada pelo sentido da oração encabeçada
pela conjunção adversativa, o que mostra que o sujeito se identifica com a “cena
da realidade”, argumento decisivo se comparado com a “vontade” representada
pelo verbo querer no imperfeito do indicativo, presente na oração anterior.
d) A IAR (R4), vítima, constrói-se, sobretudo, com orações na voz passiva com ou
sem agente expresso; com a marca da terceira pessoa tanto do singular quanto do
plural.
SD4: “O moleque do pipaé transformado num homicida.” (L2)
Veja que o verbo na voz passiva mostra que o sujeito da passiva, entendido
como aquele que sofre a ação verbal, é “o moleque do pipa”: há aí uma inversão
completa do sentido de “escolha” e de “vontade”, se pensarmos no sentido que o
discurso dominante impregna e cristaliza a respeito da infância na favela. Aqui,
colocando-o como objeto de uma ação, o sujeito-rapper desloca a
responsabilidade da “escolha” individual para um outro lugar, um lugar
coletivamente instituído: o da figura do Estado, metaforizado pelos termos
Brasil e país, que aparecem preenchendo o papel de sujeito em diversas outras
formulações, e que podem ser recuperados como o agente da passiva (ou sujeito
da ativa), discursivamente.
e) Na IAR (R5), a imagem do revoltado sanguinário se produz a partir de palavras e
expressões que remetem a situações comumente consideradas violentas. Essas
expressões podem ou não conter palavras como sangue e/ou suas derivadas.
SD5: “Virei o ladrão com a faca, que mata com frieza.” (L6)
Mesmo estando o verbo virar na primeira pessoa da singular (do pretérito
perfeito do indicativo), na voz ativa, o que cria a expectativa de que o sujeito age
sobre algo, o próprio entendimento desse verbo nos permite perceber a transição
subjacente: virar > tornar-se > transformar-se em... Esse fato expõe que houve
um processo de transformação produzida por algo/alguém sobre esse sujeito
(eu), que se estranha e se descobre como ladrão, cuja característica é “matar com
frieza”. Observemos que a escolha do verbo, conhecido gramaticalmente como
“de ligação”, porque ligaria o sujeito ao seu atributo, denuncia que esse sujeito
gramatical não se vê responsável pela prática moral e juridicamente entendida
como ilegal (“matar”).
94
f) A imagem IAR (R6) tem uma simetria de funcionamento com a IAR (R5) e se
marca por palavras e expressões que remetem a um cenário de revolução, com
conclamação a uma ruptura radical.
SD6: “O Brasil não aceita pobre revolucionário, o marginalizado defensor do
favelado.” (L7)
É interessante observar que o termo revolucionário é definido como “o
marginalizado defensor do favelado”, expressão que sucede o termo, separados
uma do outro por vírgula. Podemos recuperar como o Facção Central se define:
“representante do barraco”, ou seja, como porta-voz do favelado / morador da
periferia. Discursivamente, então, temos um deslocamento do significado de
revolucionário, que desliza do transformador radical da sociedade para o
“marginalizado defensor do favelado”, ou seja, para um sujeito que questiona a
ordem estabelecida, posicionando-se ao lado daqueles que precisam de defesa
(favelados). Facção Central se coloca, assim, na posição de revolucionário,
porque é o marginalizado porta-voz dos favelados.
95
QUADRO IMAGENS X LETRAS
Este quadro nos deixa ver, por exemplo, que os domínios L11 e L13 são bastante
parecidos em relação às imagens que o sujeito-rapper faz da posição de um rapper.
Interessante perceber que, justamente, nessas letras intituladas Eu tô fazendo o que o
sistema quer e Sem luz no fim do túnel respectivamente, não aparece a imagem do
revolucionário. Outra constatação a que se pode chegar observando esse quadro é que a
imagem mais presente não é a do revolucionário, que comparece em apenas dois
domínios, mas a do mensageiro de um futuro trágico e a da vítima. Essas constatações
são interessantíssimas, porque podem permitir a observação das posições que esse
sujeito ocupa no discurso e quais as contradições que são produzidas a partir de cada
uma dessas posições.
96
produz seu material sonoro necessariamente imaginando (antecipando) um interlocutor
(virtual, que pode ou não corresponder ao “real”, ou seja, àquele que efetivamente
lê/ouve suas letras/músicas), e esse interlocutor não aparece representado de uma forma
marcada, com “falas” representativas, a não ser na letra L9 (Tensão), na qual o sujeito-
rapper “narra” um sequestro relâmpago e “cede” voz ao pensamento/fala do
personagem que sofre esse assalto (personagem que representa esse outro, mas que não
é esse outro!). Nesse âmbito, foi possível encontrar algumas marcas presentes no fio
discursivo que nos permitem vislumbrar quem seria esse outro a quem o eu/nós da
posição de sujeito-rapper se opõe. Para isso, buscamos sobretudo as denominações.
Nesse sentido, recortamos essas denominações das sequências discursivas (SD) com
base principalmente em sintagmas nominais (artigos, pronomes/substantivos, adjetivos).
Esses sintagmas ocupam tanto a posição gramatical de sujeito como de objeto
direto/indireto e de vocativo (ou seja, a quem o sujeito-rapper antecipa como sendo o
seu interlocutor).
L4: gambé [policial], o dono da empresa, cuzão [que vive no condomínio e que limpa o
rabo com dinheiro], o dono do jato, filho da puta, playboy, madame, arrombado que me
critica, gambé porco, a burguesa.
L5: rica de Mitsubishi, a vaca, boy, gambé do DENARC, um boy tá de Ferrari, outro
[boy] é dono de avião, moleque do condomínio, um cu de Audi, velha.
L6: mãe
L7: desgraçado, o Brasil, rimador da alegria, favela, os porcos, mídia, vaca rica, quem
me faz roubar o executivo, dono do iate.
L8: algum cu, algum rico, socialite, a cadela rica, um político cínico, essa vaca, modelo
puta, pagodeiro, sertanejo, quem acende charuto com nota de 100 reais, a puta de
97
megafone, apresentador cuzão falso moralista, quem faz comercial contra a violência é
o mesmo que quer o sangue pra ganhar audiência, arrombado de blindado.
L11: puta rica, viúva histérica, o boy cuzão, o boy tem clube no campo e conta no
exterior, cuzão que come caviar e lagosta, o dono da mansão, a BMW da burguesa
vadia, boy porco de olho azul, quem tem tudo na mesa, dono de empresa, madame de
chofer.
L14: a rica cheia de joia, o boy de rolexcherokee vidro fumê, refém milionária.
L15: o monstro do horário político que com a dor do indefeso compra mercedes e
coloca obra de arte valiosa na parede, vadia, um porco que faz o macarrão do lixo ser
meu almoço, a cadela rica, o prego do condomínio, o dono do porche que também tem
um jato que vai pra Cali noite e dia, o branco articulado e bem vestido que não saca o
cano mas rouba até nos estados unidos, réu, autor intelectual do massacre na favela,
engravatados filhos da puta, político porco.
98
Da mesma forma, podemos proceder com o imaginário construído em relação
aos outros „outros‟ desse grupo de letras de músicado Facção Central. Podemos
observar que, para se referir à classe – no sentido de luta de classes marxista, entre
proletários, aqueles que podem apenas vender sua força de trabalho, e burgueses, ou
detentores dos meios de produção de capital – oposta àquela da qual faz parte, o sujeito-
rapper enuncia as expressões: „a classe rica‟; „empresário na Cherokee‟; „doutor‟;
„empresário rico‟; „tia da mansão‟; „filho da madame‟, „empresário bem sucedido‟; „o
dono da empresa‟; „cuzão [que vive no condomínio e que limpa o rabo com dinheiro]‟;
„o dono do jato‟; „filho da puta‟; „playboy‟; „madame‟; „arrombado que me critica‟; „a
burguesa‟; „rica de Mitsubishi‟; „a vaca‟; „boy‟; „um boy tá de Ferrari‟; „outro [boy] é
dono de avião‟; „moleque do condomínio‟; „um cu de Audi‟; „velha‟; „vaca rica‟; „dono
do iate‟; „algum cu‟; „algum rico‟; „socialite‟; „a cadela rica‟; „essa vaca‟; „modelo
puta‟; „quem acende charuto com nota de 100 reais‟; „a puta de megafone‟; „arrombado
de blindado‟; „dono do jato‟; „sua piranha‟; „tia‟; „o menino de olho azul‟; „puta rica‟;
„viúva histérica‟; „o boy cuzão‟; „o boy tem clube no campo e conta no exterior‟; „cuzão
que come caviar e lagosta‟; „o dono da mansão‟; „a BMW da burguesa vadia‟; „boy
porco de olho azul‟; „quem tem tudo na mesa‟; „dono de empresa‟; „madame de
chauffeur‟; „a rica cheia de joia‟; „o boy de Rolex, Cherokee vidro fumê‟; „refém
milionária‟; „vadia‟; „um porco que faz o macarrão do lixo ser meu almoço‟; „a cadela
rica‟; „o prego do condomínio‟; „o dono do Porche que também tem um jato que vai pra
Cali [Colômbia] noite e dia‟; „o branco articulado e bem vestido que não saca o cano
mas roubam até nos Estados Unidos‟; „réu‟; „autor intelectual do massacre na favela‟;
„engravatados filhos da puta‟.
Nessas designações, a primeira coisa a se notar é que existe uma designação para
cada um dos elementos que compõem as famílias mononucleares burguesas:
denominações para as mulheres, para os maridos e para os filhos. Sendo essas
designações, assim como para os policiais, também de qualificação depreciativa,
podemos verificar algumas regularidades nas significações, como é o caso das
denominações para os membros do sexo feminino: „vaca‟, „vadia‟, „puta‟, „piranha‟,
„cadela‟, todas formando um campo semântico de desprestígio, de desvalorização.
Há, nas referências à prole dos membros dessa outra classe, a dos possuidores de
bens e de meios de produção, as seguintes designações: „boy‟, „menino de olho azul‟, „o
boy de Rolex, Cherokee vidro fumê‟, „playboy‟, „filho da madame‟, „moleque do
99
condomínio‟. Essas designações promovem um corte bastante específico, mesmo que
tomemos as característica citadas como metonímias do tipo: „o boy’, designação voltada
para o sexo masculino, também pode ser uma referência à denominação não expressa
„girl’ (meninos e meninas dessa outra classe, inimiga dos pobres e favelados); „o
menino de olho azul‟ pode ser referido a todas as outras cores de olhos claros, comuns
aos nativos de países do hemisfério norte, que, política e economicamente falando,
remetem à memória da riqueza, a posses, a bens materiais, portanto, referir-se a„o
menino de olho azul‟ é fazer um corte em relação aos meninos de olhos escuros, cores
comuns nos países do hemisfério sul, países política e economicamente
“subdesenvolvidos”, sobretudo devido às centenas de anos durante as quais foram/são
explorados e alienados de suas riquezas, o Brasil é um exemplo de país do hemisfério
sul que também se caracteriza pelo “subdesenvolvimento” social, político, econômico...
100
crianças e poucos ou nenhum pai, aquele para quem a escola é apenas um sonho
distante, porque ou ela não existe, ou possui um formato tal que o inclui excluindo.
Lembremos, neste momento, que estamos nos referindo aos direitos burgueses, cuja
semente foi plantada no final do século XVIII, com as revoluções liberais francesa e
estadunidense, principalmente. Enfim, com essa inversão de importâncias, colocando o
„empresário bem sucedido‟ no banco dos „réu‟s, o sujeito-rapper resiste e acaba por
participar de um outro imaginário, não um instaurado por ele, mas um outro imaginário
que produz sentidos, apesar de não passar nas telas da TV, sentidos com os quais esse
sujeito se identifica. Portanto, trata-se de um imaginário outro, de onde esse sujeito
retira seus sentidos para (se) significar. Isso não quer dizer, no entanto, que não haja
contradições nesse/para esse sujeito. Na verdade, tanto essas contradições existem como
elas serão mostradas na parte em que apresentamos as análises das marcas de negação,
de adversidade, de causalidade e de condicionalidade. Nas negações, sobretudo, vemos
de forma bastante clara como essa contradição se dá, pois ali o sujeito acaba assumindo
como seu o imaginário contra o qual procura lutar e que conseguimos observar no
funcionamento das designações aqui elencadas. Esse sujeito parte de outros enunciados
para formular, enunciados esses que constroem previamente um imaginário
“reformista”, de sustentação do capitalismo, e não de ruptura com tal sistema. Mas tudo
isso só será melhor mostrado e exemplificado mais adiante.
Porque a língua, tal como a intuí por aquela experiência no contato com os índios, é sem limites. Como
um imenso rio, como um Xingu, que os olhos não abrangem, não seguram, não limitam. Fluida.
(Orlandi, 2009 [1985])
101
(1916) chamado de Curso de Linguística Geral. Esse objeto teórico foi proposto a partir
da dicotomia saussureana de língua x fala. A primeira, um fenômeno social, possuidora
de uma estrutura que pode ser descrita, suscetível à regularização, à sistematicidade, à
teorização, capaz de unidade. A segunda, incapaz de unidade, considerada resto por
possuir caráter individual, não sujeita à classificação, não sujeita à análise. A noção de
sistema e de sistematicidade que desenham conceitualmente uma linha que separa
língua de fala, para Saussure. E Orlandi (2009 [1985]) mostra que Chomsky segue o
mesmo caminho, por via de outra teorização, a da teoria da sintaxe, e dicotomiza
competência e desempenho, elencando o primeiro como objeto teórico. Assim, como
aponta Orlandi, ambos veem na unidade um elemento central para suas respectivas
teorias.
Mas a teoria do discurso, por não se tratar de uma teoria de língua, tal como a
linguística pensa a língua, propõe um outro corte epistemológico, e constrói, como
objeto teórico, o discurso. Isso, isoladamente, já promove um deslocamento nas
teorizações, deslocamento esse que propicia novos modos de se relacionar com a língua:
102
Em nosso imaginário (língua imaginária) temos a impressão de uma
língua estável, com unidade, regrada, sobre a qual, através do
conhecimento de especialistas, podemos aprender, termos controle.
Mas na realidade (língua fluida) não temos controle sobre a língua
que falamos, ela não tem a unidade que imaginamos, não é clara e
distinta, não em os limites nos quais nos asseguramos, não a
sabemos como imaginamos, ela é profundidade e movimento
contínuo.Des-limite. (Orlandi, 2009 [1985]: p. 18, grifos nossos)
3.2.1 A NEGAÇÃO
Uma das marcas mais expressivas nas produções discursivas com as quais se
trabalha nesta dissertação é a negação. Presente de maneira constante em todas as
músicas, seja por meio de prefixos com sentido de privação (“in-felizmente”; “im-
potência” – L2), seja por meio de advérbios (“não” – L2), preposições (“sem” – L2) e
conjunções (“nem” – L3), as formas de negação chamaram a atenção de imediato.21
Porém, para fins desta pesquisa, recortamos apenas sequências discursivas que
contivessem a negação construída com o advérbio “não” explicitado. Mas, para poder
caminhar pela trilha das negações, é necessário, primeiro, pensar sobre o que elas nos
trazem discursivamente, e não apenas linguisticamente.
21
Neste trabalho, optamos por não retomar as análises que Ducrot (1992) faz sobre a negação, uma vez
que o nosso quadro teórico da análise de discurso discute a negação por outro caminho, como veremos
a seguir.
103
SD2: O moleque esquecido no fundão da periferia vai cansar de pedir
esmola, de não ver comida na panela (...), vai arrumar um revólver,
tentar resolver seus problemas através do sangue da cabeça de um
gerente de banco.
SD6: A justiça não quer ouvir que o moleque que o pai dá as costas
pode invadir seu apê, derrubar sua porta.
SD12: E quem não olha pro moleque sem infância, no morro, oitão na
cinta, sangue na mente, apetitoso.
SD20: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a
marcha fúnebre prossegue.
104
SD24: Não iludo o casal, dirigindo feliz à pampa.
SD27: [1-5-1, por mês, de salário] Não paga luz e água, o aluguel do
barraco.
SD31: Boy, quando ouvir “assalto!”, não precisa chorar, apenas são
teus cães adestrados pra matar.
SD36: Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha! Não pra encher
panela, mas pra ter carro, fumar pedra.
SD37: Mãe, não dei valor pro teu sonho, sua luta.
SD46: Fala mal de mim, rimador da alegria. Pelo menos não sou puta.
105
SD49: Oficial de justiça não apreendeu meu cérebro. Dentro e fora da
cadeia: locutor do inferno.
SD69: Se não, te mando com tua vaca pra puta que o pariu!
SD71: Teu filho vai pra escola com vigia, detector, enquanto o meu
não tem aula nem professor.
106
SD74: Por isso, seu sangue não me comove.
SD99: É triste saber que minha mãe não vou ver mais.
SD101: O boy cuzão que só vê morte pela sky, no sofá, não foi pra
Europa, agora assiste meu desejo de matar.
107
SD103: Ódio lapidado por um pai bêbado, porco, que batia na minha
mãe, porque não podia comprar o almoço.
SD104: Pra mim, não tem Cherokee nem iate, nem restaurante cinco
estrelas, nem Audi.
SD106: Cuzão que come caviar e lagosta não sabe o que é viver um
minuto nessa porra.
SD107: Quando o filho dele chorar, sem ter nada no prato, não vai pra
rua implorar de mão estendida.
SD113: Suplicar pro gambé derrubando sua porta não bater na sua
mulher, não atirar nas suas costas.
SD119: Não quero vassora igual meu pai. Vou ser tipo os manos da
rua.
108
SD127: É embaçado saber que a propaganda na TV de carro, casa
própria, não foi feita pra você.
SD128: Entendo o motivo. Sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de
não ter nada na panela.
SD133: Não interessa se é pro remédio da sua mãe, pra fumar crack
ou beber champagné.
SD136: O sistema tem que chorar, mas não com você matando na rua.
SD140: O boy acha que quem merece a morte é o que grita “assalto!”,
o que grita “dá a chave! Sai do carro!”, não o branco articulado e bem
vestido, que não saca o cano, mas roubam até nos Estados Unidos.
SD141: Cuzão na TV diz que urna não é pinico. Que voto consciente
muda o cenário político.
Das muitas formas de entrada e de exploração desse farto material, uma possível
é a divisão das sequências a partir do sujeito gramatical que comparece no intradiscurso
(fio discursivo): primeira, segunda ou terceira pessoa do discurso. Esta, no entanto,
apesar de ter sido considerada primeiro, não foi a escolha final. Escolhemos mesmo o
critério da negação polêmica (Indursky, 1997). Sob esse critério de corte, analisamos as
109
seguintes sequências: SD4, 5, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 20, 22, 23, 24, 28, 38, 47, 48, 52, 57,
60, 61, 72, 78, 79, 90, 91, 97, 98, 114, 118, 120, 122, 125, 131 e 135.
E a negação é uma marca linguística que demarca bem esse “debate” com o pré-
construído, porque o retoma, muitas vezes no próprio fio discursivo, para que o sujeito
se oponha, resista a esse saber anterior. Dessa forma, quando temos uma sequência
discursiva do tipo “Eu NÃO preciso estimular o latrocínio” (SD8), o sujeito-rapper
adentra uma região de sentidos que aciona uma memória a respeito da censura sofrida
pelo grupo – indiciado por incitação ao crime.
110
inserido: sociedade capitalista moderna. O advérbio “não”, dessa maneira, representa
uma resistência, por exemplo, ao que fora colocado nos autos do processo aberto contra
o grupo – memória da censura. O sujeito resiste e nega que a sua produção musical
possa ser o estopim para um paiol que, de acordo com as formulações do próprio
rapper, está sempre prestes a explodir. Sabemos disso observando a continuação dessa
sequência, que diz, dois versos à frente: “O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora.
O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda.” Não vamos adentrar a discussão
sobre o papel da adversativa neste momento, mas olhemos para o termo que ocupa,
gramaticalmente, a posição de sujeito dessa oração, expresso duas vezes seguidas:
Brasil. Termo, inclusive, antecedido por um artigo determinado masculino singular,
conhecido pelos gramáticos como um determinante de nome.
Portanto, temos, ao mesmo tempo, uma negação a uma memória sobre o Facção
e a instauração de uma nova memória a respeito d‟o Brasil, esse que não dá escola, esse
que não dá comida, e que pode muito bem ocupar o lugar de sujeito numa versão
afirmativa da sequência que estamos analisando.
3.2.2 A ADVERSATIVA
111
conjunção adversativa unidades apontando uma oposição entre elas. As adversativas
por excelência sãomas, porém e senão.” Veja que não há aqui sequer uma menção à
marca que decidimos analisar (“só(que)”). Embora a explicação de E. Bechara não nos
seja suficiente, porque não recobre a questão da significação propriamente dita, apesar
de usá-la como critério de classificação, há nela um elemento central para aquilo que
dissemos mais acima sobre as possíveis formações discursivas em jogo: oposição.
SD145: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom ao
invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?
Só queo conforto não vem através do revólver, do sangue da refém
milionária, temendo a morte.
112
Assim, também para os recortes commas, deve-se considerar a
polifonia da enunciação. Neste caso específico, poderíamos
considerar que E1 é a perspectiva de L, enquanto que Eo é a
perspectiva de Lp. Esta duplicidade de perspectivas é que explica
como o texto vai se construindo na direção da perspectiva de E1, mas
vai se construindo um sentimento de adesão à necessidade de revolta
dos brasileiros. Ou seja, pela convivência de perspectivas opostas o
texto se constrói numa direção e busca a adesão do leitor para a
direção oposta à da sua própria construção. Ou seja, o texto se
constrói na perspectiva de L (na direção de o povo não se revolta) e
busca uma adesão, do alocutário-enquanto-pessoa, à revolta deste
locutor-enquanto-pessoa (o povo deve se revoltar). Coloco aqui o deve
como parte do resultado argumentativo do todo. Assim, vemos como o
jogo de representações do sujeito da enunciação tem aqui seu valor
argumentativo próprio que se cruza com a orientação argumentativa.
(Guimarães, 1987: p. 120, grifos nossos)
113
Fora isso, existe uma disputa de sentidos entre a Posição de Sujeito 1 (PS1), para
a qual o crime seria o caminho para conseguir o “sucesso” de uma vida mais digna; e a
PS2, que se marca pela presença do “só (que)”e que nega esse pré-construído de crime
como solução, ao retomar seu sentido no fio discursivo, instaurando uma nova memória,
a partir da negação desse pré-construído. Assim, esse “só (que)”não marca, na realidade,
uma fronteira entre duas FDs opostas, mas, sim, uma disputa entre posições de sujeito
dentro de uma mesma FD. Em termos de interpelação ideológica, podemos dizer que,
em PS2, o sujeito se contraidentifica com os sentidos da posição PS1, que defende o
crime como saída para o descaso com que o Estado trata a parcela da população que tem
menor (ou nenhum) acesso a uma vida digna. E ele se contraidentifica de PS1 por meio
da oposição “só (que)”acompanhada da negação subsequente. Mas não rompe com esse
enunciado organizador da FD a que pertencem, e segundo o qual a pobreza deve ser
evitada. As posições se opõem apenas no tocante ao modo como essa evitação se dá: a
PS1 propõe que essa saída se dá via crime, já a PS2, não.
SD145a: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom ao
invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?
Mas o conforto não vem através do revólver, do sangue da refém
milionária, temendo a morte.
114
Selecionamos, para observação, um total de vinte e quatro sequências
discursivas, recortadas das letras L2, L3, L4, L5, L6, L8, L9, L10, L11, L13, L14 e L15,
e que contêm tanto a marca opositiva tradicionalmente reconhecida “mas”, quanto a não
tão conhecida, mas já citada, “só (que)”.
SD150: Não tem inquérito pra TV que tem a vadia nua: novela das 6,
7, 8, sem ministério nem censura. Só o meu rap que é nocivo pro
sistema hipócrita.
SD154: Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha. Não pra encher
panela, mas pra ter carro, fumar pedra.
SD156: O boy não quer meu bem, só quer minha pistola. Quer me ver
com fome, inofensivo, na sua porta, pedindo esmola, um trocado
qualquer. Com ódio, revoltado, mas beijando seu pé.
SD160: Sei que vou morrer, não posso fugir. Só não quero mais
moleque morrendo assim.
115
SD161: Eu não queria achar que o herói era o assaltante de banco,
mas que cuzão que condena foi lá pra ensinar?
SD163: Meu coração de ódio queria paz. Acredite. Mas agora sou eu
e o atirador de elite. Tá a dez metros da janela e atira muito bem. Vai
matar a vítima do crack e seu refém.
SD167: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom, ao
invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?
Só que o conforto não vem através do revólver, do sangue da refém
milionária, temendo a morte.
SD168: O sistema tem que chorar, mas não com você matando na rua.
O sistema tem que chorar, vendo a sua formatura.
SD169: O boy acha que quem merece a morte é o que grita “assalto!”,
o que grita “dá a chave! Sai do carro!”, não o branco articulado e bem
vestido que não saca o cano, mas roubam até nos Estados Unidos.
SD170: Cuzão na TV diz que urna não é pinico, que voto consciente
muda o cenário político, que é preciso investigar antes de votar. Mas
cadê biblioteca, escola pra eu me informar?
E3: o rico tem direitos jurídicos, mas os pobres e favelados não os tem.
116
As formulações que remetem ao primeiro enunciado, E1, são as SD147, SD151,
SD152, SD154, SD155, SD157, SD160, SD161, SD164, SD165. Já aquelas formulações
que retomam o enunciado E2 são: SD159, SD166, SD167 e SD168. Quanto àquelas que
remetem ao enunciado E3, temos as seguintes sequências: SD148, SD149, SD150,
SD153, SD158, SD163 e SD169.
Chegamos a essas divisões, porque consideramos tanto o que está dito, ou seja, o
que aparece na formulação, no fio discursivo, quanto o que não está dito e está
sustentando tal tomada de posição do sujeito. Um exemplo desse procedimento é o que
segue: quando vemos a formulação “O sistema tem que chorar, mas não com você
matando na rua. O sistema tem que chorar vendo a sua formatura”, vemos, logo num
primeiro olhar, a repetição da oração “O sistema tem que chorar”. Essa repetição já é
uma primeira pista da posição que esse sujeito assume: há um deslocamento necessário
desse sujeito que chora. Se é considerado socialmente “normal” que o pobre chore, por
conta de todas as limitações socioeconômicas e políticas a que está sujeito, é produzida,
por meio do rap, uma recusa a essa “normalidade”, e o sujeito-rapper se vinga desse
papel social a ele reservado, mostrando que o “sistema” também está sujeito a pressão.
Nesse caso, a pressão social que pode produzir um “choro” por parte do Estado é a
“formatura de um favelado”, na educação formal, essa mesma que o Estado não provê a
uma enorme quantidade de moradores de favelas e periferias, não são corpos de pessoas
não-faveladas mortas espalhadas pelo chão, resultado de assaltos ou sequestros ou
mesmo de confrontos entre policiais e bandidos. É um sujeito social, política e
economicamente excluído, assumindo uma nova posição na engrenagem do sistema
capitalista, por meio de uma conquista: formar-se no ensino acadêmico formal. Nesse
sentido, esse gesto de se “formar doutor” seria o equivalente a um “tapa na cara”, que
seria suficiente para fazer com que um sistema excludente e opressor “chorasse”. Há,
assim, uma inversão de papéis: quem chora agora é o sistema capitalista que, segundo
seu princípio do lucro a qualquer custo, deveria estar funcionando de modo a produzir a
exclusão e a marginalidade, o desespero e o choro dos moradores da favela.
117
3.2.3 A CONDICIONAL
Mas o que nos interessa mesmo é a consideração que Garcia faz sobre o uso do
modo indicativo, o modo mais frequentemente usado nas formulações que estamos
analisando:
Com essa explicação, e voltando ao suporte analítico que nossa teoria nos
proporciona, vemos que o efeito de ameaça é o mais constante nas formulações
condicionais, ou melhor, nas sequências discursivas que contêm a marca sintático-
semântica da condição.
118
Mas é necessário apontar para uma construção com a marca “se” que até produz
um efeito de sentido de condição, mas que se aproxima mais fortemente de um efeito de
sentido de causa, como é o caso das SD171 e SD172, a seguir, nas quais o “se” pode ser
trocado pelo “porque” e, ainda assim, direcionar o sentido como que num efeito
parafrástico:
SD174: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a
marcha fúnebre prossegue.
SD179: Se tiver que morrer, aí, fazer o quê? Ameaça não intimida.
Eduardo não faz tremer.
119
SD182: Cala a boca, doutor. Não dá mais nem um pio, se não, te
mando com tua vaca pra puta que o pariu.
SD195: Não interessa se é pro remédio da sua mãe, pra fumar crack
ou beber champagne. Se invadir o condomínio gritando “assalto!”,
caiu na armadilha. Até no teto vai ter seus pedaços.
3.2.4 A CAUSAL
120
As orações causais, de acordo com a gramática tradicional, são períodos
conectados por uma conjunção que une o efeito à sua causa. São orações subordinadas,
também segundo a gramática tradicional, sendo suas partes constituintes denominadas
“oração principal” e “oração subordinada causal”. A característica dessa segunda é a
presença do conectivo. A causal é um exemplo de oração subordinada adverbial, por
funcionar como um advérbio, ou locução adverbial, da oração principal.
As conjunções, termo pelo qual esses conectivos são designados nas gramáticas,
prototípicas das orações subordinadas adverbiais causais são o “porque” e o “pois”,
mas, claro, há um número considerável de outras formas e locuções que funcionam
proporcionando exatamente esse efeito de conjunção causal (“visto que”, “uma vez que”
etc. Ficaremos focados sobre as formas “porque” e “pois”, porque são essas as mais
presentes no material com o qual estamos trabalhando, sempre que se produz um efeito
de causa. Além dessa razão apontada, existe também o fato de que essas formas, como o
que observamos nas análises das adversativas e das condicionais, são praticamente
onipresentes (praticamente, porque, conforme foi possível notar no ponto anterior, há
algumas construções em que o conector é prototipicamente condicional, mas acaba
funcionando como um causal), apesar de aparecerem também as chamadas orações
reduzidas, introduzidas por “por” ou, mesmo, por “com”, conforme veremos nas
sequências localizadas.
121
Neste sentido, conseguimos localizar, dentre as letras de música L2, L3, L4, L5, L7,
L10, L11, L13, L14 e L15, quinze sequências discursivas, que encontram-se
reproduzidas a seguir:
SD199: Gambé porco que, pela tua cor, detona seu rosto.
SD205: Ódio lapidado por um pai bêbado, porco, que batia na minha
mãe, porque não podia comprar o almoço.
SD206: Fez de mim o Lúcifer que o sistema quer, que pela pedra
deixa teu corpo pra perícia do gambé.
SD209: Por um real, um papel, uma grama, sempre por migalha, meu
povo desfigurado na ambulância.
122
Assim, se formos, como fizemos nos outros dois pontos, relacionar estas
sequências discursivas aos enunciados que localizamos, teremos, para E1 as SD197,
SD198, SD205, SD206, SD207, e SD209; para E2, as SD210 e SD 211; e, para E3, as
SD199, SD200, SD201, SD202, SD203 e SD212.
No próximo item, trazemos uma análise mais detalhada, tomando por base as
duas formações discursivas que conseguimos delinear, organizadas a partir de uma
formulação em que ambas posições comparecem, articuladas pela marca “mas”.
Mostraremos como a noção de articulação de enunciados nos foi central e como a
reprodução de um discurso de cunho reformista pode encontrar ressonância inclusive
nos sentidos de uma formação discursiva cujas formulações contêm, no próprio fio
discursivo, palavras e expressões que remetem à ruptura total com o sistema, com a
revolução.
De acordo com o que vimos até aqui, podemos dizer que temos, então, duas
formações discursivas, sob a dominância de uma delas, e temos também que ambas
remetem à mesma formação ideológica capitalista, em sua vertente neoliberal. À
primeira formação discursiva denominamos FD da barbárie, para remetermos à
memória do enunciado “socialismo ou barbárie”, retomado por Rosa Luxemburgo22, a
partir de Friedrich Engels23, num período que antecede ao processo revolucionário russo
22
“Fundadora do Partido Comunista Alemão, Rosa Luxemburgo foi uma militante, dirigente, intelectual
que lutou pelo socialismo contra o capitalismo durante toda a sua vida, até ser assassinada em 1919.
Suas reflexões, suas ações políticas e sua compreensão da vida são fundamentais para o nosso
entendimento da luta de classes.” <<https://www.expressaopopular.com.br/node/2031/>>, acesso em
08/07/2012, às 23h47.
23
Diz Rosa Luxemburgo, em seu livro intitulado A crise da social-democracia – Folheto Junius, distribuído
ilegalmente pela primeira vez em 1916, na Alemanha: “Friedrich Engels disse um dia: ‘A sociedade
burguesa se encontra diante de um dilema: ou avanço para o socialismo ou recaída na barbárie.’ Mas o
que significa “recaída na barbárie” no grau de civilização que conhecemos hoje na Europa? Até hoje nós
temos lido estas palavras sem refletir sobre elas e nós as temos repetido sem perceber sua terrível
gravidade. Lancemos um olhar ao nosso redor neste momento e nós compreenderemos o que significa
a recaída da sociedade burguesa na barbárie. A vitória do imperialismo leva ao aniquilamento da
civilização – esporadicamente durante o curso da guerra moderna e definitivamente se o período de
guerras mundiais que se inicia agora vier a prosseguir sem entraves até suas últimas conseqüências.”
123
de 1917, na Alemanha, em que barbárie funciona como metáfora para os estágios
superiores do desenvolvimento do capitalismo. Além disso, o termo também remete à
Grécia Antiga e àquilo que os gregos entendiam enquanto bárbaros: os estrangeiros que
não falavam a língua grega e que, para os gregos, portanto, só sabiam pronunciar bar
barbar, sons incompreensíveis aos helênicos. Dessa forma, então, estamos, ao mesmo
tempo, definindo esta FD como capitalista “orgânica” –numa tentativa de aproximação
conceitual com o termoorgânico, utilizado por Gramsci, quando elaborou a expressão
“intelectuais orgânicos”24 –, ou seja, como aquele conjunto de intelectuais – no nosso
caso, aquele conjunto de sentidos – que contribuem diretamente para a sustentação de
uma ideologia – no nosso caso, de uma FD –, porque analisam “a realidade” e publicam
suas teorias de forma a fundamentar a tal ideologia que se propõem a sustentar.
Estamos, portanto, definindo essa FD da barbárie, pensando-a como uma espécie de
“defensora” da manutenção da divisão social, que se reproduz embaixo do véu da
igualdade jurídica dos “direitos e deveres” entre os homens, ou seja, que sustenta a
divisão em classes a partir do silenciamento (política do silêncio) da desigualdade de
oportunidades e da propaganda da liberdade irrestrita a todos os homens (direitos
democráticos). Notamos que essa FD da barbárie mantém uma relação de dominância
sobre a outra FD encontrada, porque o discurso que a sustenta é atravessado pelos
enunciados do discurso oficial sobre o funcionamento da sociedade, além de esses
enunciados comparecerem nas formulações que seriam seu contraponto, ou seja, no
intradiscurso da segunda FD, com a qual a primeira FD, conforme dissemos, mantém
essa relação de dominância. Isso quer dizer que essas marcas ideológicas são tão fortes
e têm tanto poder de promover identificação, que atravessam as “fronteiras” da FD que
124
a ela se opõe e penetram nos discursos que são produzidos enquanto uma proposta de
contraponto. Essa “penetração” é uma pista da contradição inerente aos processos
ideológicos de interpelação subjetiva.
125
discursivas. Então, buscamos três palavras (dentre as quatro que citamos no início do
capítulo) que nossa ajudaram a discernir tais matrizes de sentido: vítima, herói e vitória.
Esses três termos participam da construção do processo de inversão de valores e de
lugares sociais que sustentam /são sustentados pelos sentidos da(s) formação(ões)
discursiva(s) dominante(s). De uma maneira simplificadora e sintética o suficiente para
possibilitar uma rápida “visualização” desse jogo de inversões, a partir da concepção de
embate “mocinho vs. bandido”, produzimos o seguinte quadro:
JOGO DE INVERSÕES
Mocinho Bandido
Vítima Brasil / país (metáfora de Estado e de
Governo)
Favelado / morador da periferia Policial (polícia, por metonímia)
Sem opções (não tem acesso à escola Cuzão, playboy, aquele que tem opções
formal, não é empresário, mora num (tem acesso à escola formal, com vigia e
barranco, sequestra, rouba, usa crack, detector, vai se tornar empresário bem
mata e morre por migalha) sucedido, tem Cherokee e defende o
gambé [policial])
Figura 5
Reparemos que não há um rompimento com essa estrutura do um vs. outro, com
essa tendência de dicotomização, apenas uma inversão dos valores de um esquema que
funciona como pré-construído, porque dá sustentação ao dizer.
Tal sequência fora recortada da letra de música L4, e a escolhemos por dois
motivos principais: primeiro, porque comparece, já como primeiro termo, um verbo de
expressão de vontade, volitivo, no pretérito imperfeito, um tempo verbal existente desde
a língua latina e que remete, simultaneamente, ao infectum, ou inacabado, e ao
irrealizável, além de se encontrar no passado (um passado que, conforme veremos, se
126
conflitará com a realização no presente). Assim, o sujeito expõe a contradição
subjacente à máxima capitalista, segundo a qual “querer é poder”. E esse efeito é
produzido pelo emprego da conjunção adversativa “mas”, que quebra a expectativa do
interlocutor e introduz o argumento mais forte, definidor da posição assumida pelo
sujeito-autor: “MAS, na favela, não tem piscina, armário com comida”. Novamente,
reforça-se a ideia de que há uma contradição que subjaz à relação direta entre querer e
poder: a ausência de bens e produtos necessários à satisfação das necessidades básicas
(metaforizadas pela expressão “armário com comida”) e de um certo grau de conforto –
ou mesmo de sobrevivência, se se pensa em quem vive em regiões de extremo calor,
como são os casos de Cuiabá-MT ou de Teresina-PI – (metaforizado pelo termo
“piscina”) se sobrepõe sobre a possibilidade de vontade do sujeito, que se vê “obrigado”
– vide o conflito semântico produzido entre os termos “querer” e “precisar”,
extremamente produtivo no material pesquisado – a criar seus próprios meios.
FD da barbárie FD questionadora
“Queria só rimar choro de alegria” “na favela, não tem piscina, armário
com comida”
Herói = aquele que reage a um assalto, Herói = assaltante de banco (L7)
para impedir o ladrão de ter sucesso
(L5)
Vitória = fruto do estudo formal (L10) Vitória = sair vivo e usufruir dos
frutos conquistados por meio do crime
MAS
(L2)
Vítima = possuidor de bens que é Vítima = menino que come cacto no
assaltado, sequestrado ou morto, por Norte. (L4)
causa desses bens. (L2)
Conforto vem através do revólver Não vem através do revólver
Favela = notícia, número de estatística Favela não é só notícia, número de
estatística
Ponto de vista expresso pela música Ponto de vista não é feito pra
voltado para maiores vendas vendagem
127
Rico tem culpa no menino faminto Rico tem culpa no menino faminto
Rico também é culpado pelo ladrão que Rico também é culpado pelo ladrão
está no banco que está no banco
Futuro do pobre = roubar o carro forte Roubar o carro forte não dá futuro pro
pobre
Arriscar a vida pelo malote dá futuro Arriscar a vida pelo malote não dá
pro pobre futuro ao pobre
Voz do povo = voz de Deus Voz do povo não é a voz de deus
Acredita na paz, no futuro Não acredita na paz, no futuro
Canta esperança e vende ilusão Não canta esperança e não vende
ilusão
Tem livro e biblioteca Não tem livro nem biblioteca
Tem formatura Não tem formatura
Não é desculpa pra revolta acontecer É desculpa pra revolta, sim, acontecer
algo ruim com o filho do algo ruim ao filho do
favelado/pobre/marginalizado favelado/pobre/marginalizado
A história, que não é minha, tem A minha história não tem maquiagem
maquiagem
Figura 6
128
é assumida pelos defensores do capitalismo neoliberal, sejam eles ou não possuidores de
patrimônios e/ou de bens de produção.
temos uma construção que simula, cria o efeito de “constatação” (“gambé porco que
detona seu rosto”) e uma outra construção, que simula, cria um efeito de causa, ou seja,
simula um motivo que possa suscitar a ocorrência desse fato “colhido diretamente da
realidade” (“pela [por causa da] tua cor”). Percebemos que essa contração que resulta da
união entre preposição e artigo definido “pela” funciona como um articulador que
assume um papel semelhante ao da conjunção gramaticalmente prototípica “porque”.
Nessa relação entre causa e efeito, o efeito, ou aquilo a que denominamos de efeito de
constatação da realidade, pode remeter a um enunciado de uma formação discursiva
diferente daquela à qual a conjunção causal articula e que remete à formulação
produtora do efeito de causa.
129
com a justificativa da constatação: ele reconhece que tal constatação participa do
imaginário sobre as produções do rap, mas não concorda com ela, negando-a e
posicionando-se do lado daquilo que ele mesmo constrói discursivamente como
“causa”. Outro aspecto da formulação que nos permite observar que o sujeito-rapper se
identifica com esse efeito de “causa” é o que diz respeito ao argumento que acompanha
o articulador “porque”, que poderia ter sido outro, como, por exemplo:
Ou
130
com a marca se que participaram de nossas análises. Observemos, então, como se
produzem discursivamente esses efeitos:
3.3.1 AMEAÇA
SD175: Que Deus deixe ele encontrar, madame, sua esmeralda, se não
(caso contrário), ele arranca seu coração na faca.
SD182: Cala a boca, doutor. Não dá mais nem um pio, se não (caso
contrário), te mando com tua vaca pra puta que o pariu.
3.3.2 CAUSA
SD174: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a
marcha fúnebre prossegue.
3.3.3 TEMPO
132
SD187: Aí, moleque, a vitória só vem se(quando, no momento em
que) estudar ou trabalhar.
Pode-se notar que, apesar de estarem sendo formuladas pelo grupo de rap
Facção Central, que se coloca enquanto “representante do barraco”, e que deveria estar
referindo seus sentidos à formação discursiva do questionamento, está discursivamente,
no primeiro desses dois exemplos, remetendo à formação discursiva da barbárie, para a
qual há uma contradição subjacente ao enunciado “todos são iguais perante a lei”,
contradição essa que faz com que alguns sejam “mais iguais” do que outros. Ou seja,
embora represente o barraco, o sujeito-autor se identifica com os sentidos da formação
discursiva à qual estaria / deveria estar se contrapondo, quando repete, nas suas
formulações, sem promover deslocamentos, enunciados de outra formação: é preciso
haver um ato criminoso contra a vida/patrimônio de alguém que possui patrimônio para
que a situação daqueles que não possuem patrimônio (não moram no barraco) possa ser
problematizada; é preciso que se estude e/ou que se trabalhe para que se possa ter
condições de chegar à “vitória” – observemos, porém, que a forma de problematizar a
situação de um sujeito considerado criminoso é a condenação desse sujeito com base
num processo judicial normalmente conduzido de forma, muitas vezes, questionável,
com a subsequente provável condenação do réu, e que o estudo e o trabalho não são
necessariamente o visto no passaporte para o “sucesso” profissional e/ou material.
133
Público paulista contra o Facção Central, seu álbum Versos Sangrentos e sua música,
conhecida no mundo fonográfico como carro-chefe, Isso aqui é uma guerra.
134
4. SOB O EFEITO DE CONCLUSÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS E
PROVISÓRIAS
“O Facção não é mais meu, nem do Dum-Dum. É de quem admira e acredita em nós.”
(Carlos Eduardo Taddeo, 2006)
A nossa proposta, com essa pesquisa, foi a de buscar nas letras das músicas que
compõem o álbum produzido pelo grupo paulista de rap Facção Central e lançado no
ano de 2001, A marcha fúnebre prossegue, as marcas que funcionariam, segundo nossa
hipótese, enquanto marcas discursivas de resistência. Para tanto, foi necessário que
produzíssemos o material com o qual trabalharíamos e, assim, procedemos à
poemificação das letras. Durante os procedimentos de poemificação, algumas
características dessas letras chamaram a nossa atenção por conta de uma presença
numerosa ou pela regularidade: a negação, a adversão, a condicionalidade e a
causalidade. Estas tornaram-se, então, as pistas a partir das quais decidimos recortar as
sequências discursivas. Isso porque o material é composto por formulações produzidas
apenas pelo grupo Facção Central, o que poderia produzir um efeito de homogeneidade
de posições discursivas, embora a língua, como sabemos, seja um lugar de conflito. E,
135
ao trabalhar com oposições, causa e condição, poderíamos vislumbrar como se dão
esses embates e que posições são essas, além de podermos compreender de que modo as
identificações entre sujeito e sentido se ocorrem.
Com a hipótese de que esse sujeito enunciador, o Facção Central, após sofrer um
processo de silenciamento local – censura (Orlandi, 1997) – decide reafirmar sua
posição questionadora da ordem estabelecida e resistir aos sentidos de justiça, de
igualdade e de liberdade, que são centrais na ideologia capitalista, partimos para a
elaboração dos objetivos, que incluíam desde a verificação do funcionamento das
marcas da negação adversão, causa e condição na língua imaginária e na língua fluida,
até distinguir ordem e organização da língua no modo de funcionamento das letras do
álbum escolhido, passando por pensar os processos de produção de identificação
subjetiva a partir das marcas significantes e por relacioná-las à resistência que o sujeito
produz ao dever de preencher determinado lugar social que lhe fora social e
imaginariamente designado.
136
retirar seus sentidos: formação discursiva questionadora e formação discursiva da
barbárie. Explicamos os motivos dos nomes e mostramos por que acreditamos que
ambas se relacionam sob a dominância da segunda sobre a primeira e sob o âmbito da
mesma formação ideológica: a capitalista neoliberal.
Percebemos, com tudo isso, que o sujeito até resiste contra a ordem estabelecida,
primeiro porque “escolhe” produzir suas letras de dentro do movimento hip hop; depois,
porque não reconhece a organização da língua brasileira como onipotente e cânone,
apesar de estar inscrito nela para (se) significar; também porque não hesita em (ab)usar
(d)a opacidade que a ordem da língua permite que se produza, utilizando, para tanto,
siglas, xingamentos, gírias; e, finalmente, porque desloca a centralidade do trabalho
enquanto a única maneira moral e licitamente possível de se conquistar uma vida mais
digna. Mas esse sujeito-rapper não consegue romper de vez com a ideologia capitalista,
porque reproduz o desejo de ter igualdade real de direitos, de usufruir dos luxos e
confortos que a sociedade capitalista pode produzir, de não deslocar o sentido de escola
enquanto espaço de “transformação da sociedade”, quando reproduz o sentido que o
valor do sufrágio tem para a manutenção/transformação das esferas política, econômica
e social do Brasil. Mesmo diante dessas contradições, inerentes ao sujeito, o sentido da
resistência chega a se sobrepor ao sentido da reprodução de valores, porque, ainda que
seja pouco ou insuficiente para a transformação radical da sociedade, questionar é um
dos passos de maior importância, porque ajuda a desestabilizar as bases sobre as quais
as evidências são produzidas/sustentadas. E questionar as evidências é um passo para a
desnaturalização da relação palavra-sujeito-sentido, em direção à construção de novas
bases.
Essa foi, enfim, a proposta deste trabalho: desestabilizar as bases sobre as quais
se desenvolvem o preconceito contra o movimento hip hop (sobretudo com relação à
vertente underground, a que eu “rebatizaria” de roots, porque se propõe a manter as
raízes da proposta originária do movimento), pois se trata de um movimento de origens
nos negros e marginalizados; desestabilizar as bases sobre as quais se institui a língua
imaginária, mostrando que a gramática, enquanto instrumento de contenção da fluidez
da língua, não é capaz de descrever e prescrever todas as possibilidades da ordem da
língua; desestabilizar a evidência de que, no capitalismo, é possível existir igualdade de
oportunidades e de que é possível “vencer” na vida (profissional e financeira,
sobretudo) através unicamente do trabalho (o mesmo que produz a mais-valia, o
137
excedente, o lucro do dono dos meios de produção e dos especuladores); por fim,
desestabilizar essa certeza de que as letras das músicas do grupo de rap Facção Central
estimulam, incentivam ou incitam a realização de atos criminosos. Acreditamos, nesse
momento, que as essas tarefas foram cumpridas e que próximos estudos poderão se
propor a trabalhar com o mesmo material e aproveitar as pistas que, por uma opção
teórica e, até certo ponto, pragmática, uma vez que existe um tempo máximo a ser
cumprido, acabaram não sendo seguidas neste momento.
Existiram, conforme se pôde observar até aqui, várias formas de abordar o tema
da resistência com o material que recortamos. A nossa forma foi essa apresentada. Só
mesmo o tempo e os novos estudos que com ele certamente advirão poderão mostrar se
este trabalho conseguiu abrir os caminhos que se propôs a abrir.
138
5. BIBLIOGRAFIA
BARROS, Paulo Nabarrete. Ecos de espelhos: movimento hip hop no ABC paulista:
sociabilidade, intervenções, identificações e mediações sociais, culturais, raciais,
comunicacionais e políticas. 325f. 2008. Dissertação (Mestrado em Ciências da
Comunicação) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
BULHÕES, Maria Amélia. Identidade, uma memória a ser enfrentada. In: SOUZA,
Edson. (org.) Psicanálise e colonização: leituras do sintoma social no Brasil. Porto
Alegre, RS: Artes e Ofícios, 1999.
139
FILHO, Carlos Piovezanni. Metamorfoses do discurso político contemporâneo: por
uma nova perspectiva de análise. Revista da ABRALIN, v. 6, n. 1, p. 25-42, jan./jun.
2007.
GADET, Françoise; HAK, Tony. (org.) Por uma análise automática do discurso:
uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução Bethania S. C. Mariani et al.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.
INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e outras vozes. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1997.
141
______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 2. ed. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 2004 [1993].
______. Efeitos do verbal sobre o não-verbal. In: Rua, Campinas, 1: 35-47, 1995.
______. Análise Automática do Discurso (AAD 1969). In: GADET, Françoise; HAK,
Tony. (org.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de
Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani... [et al.]. 3. ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1997.
142
6. ANEXOS
6.1 As letras do álbum A marcha fúnebre prossegue (Facção Central, 2001) utilizadas
na pesquisa
<http://www.baixandolegal.org/2009/06/faccao-central-a-marcha-funebre-prossegue.html>
Um helicóptero preto a poucos metros do chão, o homem bom, o homem da lei, que só atira na
um barulho ensurdecedor de sirene, carro cabeça de pobre,
derrapando, só dá tapa na cara, só derruba porta de barraco,
armas sendo engatilhada, vidro estilhaçado, o filho da dona Maria qualquer da periferia
repórter, sangue, violência, ódio, dor, agora engrossa o número da estatística
perda, sensação de impotência, das tentativas frustradas, fracassadas
frações de segundos, de vitória na vida do crime.
o céu ou o inferno, O filho da imigrante lavadeira sangra perto da porta
a solidão da sela, ou o carro zero. giratória.
A casa própria, Ninguém chora, risadas, alívio,
A vitória é tentada de forma violenta, a cena de terror tem contorno de heroísmo
o sucesso dependente de um fracasso, de um e novela de final feliz.
caixão, O policial contente sopra o cano do seu revolver,
de um malote na mão, de uma fuga rápida, de um mas no fundo, no fundo, preocupado,
dia de sorte, pois sabe que amanhã ou depois
um Deus dividido por duas orações, o moleque esquecido no fundão da periferia
uma vítima ajoelhada implora pela vida. vai cansar de pedir esmola,
O ladrão nervoso tremulo não quer algema da de não ver comida na panela,
polícia de ver sua mãe só de camiseta furada, chinelo,
a fome e a miséria mostram o fruto que a sociedade chorando com seus irmãos famintos no colo.
vai colher: Vai arrumar um revólver,
sanguinário, raivoso, armado. tentar resolver seus problemas através do sangue da
O moleque do pipa é transformado no homicida, cabeça de um gerente de banco,
que como animal faminto busca o cofre, e vai ser mais um favelado, no caixão preto doado,
como se fosse a presa morta ensangüentada, sem flores e sem velório
o carro preto e branco chega, Infelizmente, a Marcha Fúnebre Prossegue.
143
ii. A guerra não vai acabar (L3)
Não queria o moleque com a faca na mão, Cuzão que não concorda com o holocausto
Ajoelhando o tio grisalho, querendo seu cartão. brasileiro,
Queria só rimar choro de alegria, Vive no condomínio, limpa o rabo com dinheiro.
Mas na favela não tem piscina, armário com Quer o sangue do ladrão, bebendo seu uísque,
comida. Protegido na ilusão, na grade da suíte.
É só gambé gritando “deita!” pro mano de escopeta, Sua paz está no luto decretado pelo tráfico,
Que na fita do pagamento fuzilou o dono da Comércio fechado tipo feriado.
empresa. Tá na bala perdida do fuzil varando sua porta,
144
Explodindo teu mundo rosa, te pondo na cadeira de desemprego,
rodas. E bater na mulher quando chegar a noite bêbado.
Na gravação do circuito interno do Bradesco, Desde as 4 da manhã e nem vaga pra lavar privada,
Rouba banco querendo enterro, ladrão trocando pra O mano perde a calma, mata a família e se mata.
não ser preso. Caixão lacrado não estimula verso alegre,
No céu não tem deus, só o helicóptero da polícia, Aqui, filho da puta, a marcha fúnebre prossegue.
Descarregando a traca no fugitivo da delegacia.
Aqui o corujão só passa bang-bang, Refrão (4x)
No fim do arco-íris, o dono do jato vomita sangue.
Leva vigia, colete e blindagem pra ir pro Queria que a vida fosse igual na novela,
restaurante, Jet-ski na praia, esqui na neve europeia.
Se não, é viúva chorando e Omega zero no Sem pai de família gritando assalto ou sendo feito
desmanche. de escravo,
Não vou rimar felicidade no meu rap, Com 1 5 1 por mês de salário.
Se aqui, filho da puta, a marcha fúnebre prossegue. Que não enche nem metade de um carrinho no
mercado,
Refrão (4x) Não paga luz e água, o aluguel do barraco.
A paz tá morta desfigurada no IML, Aqui, pro cidadão honesto ter um teto,
A marcha fúnebre prossegue. Só pondo o fogão na cabeça, invadindo o prédio.
Saindo na mão com PM do choque,
Tá rindo? Quer dançar, quer se divertir? Sobrevivendo o tiro da reintegração de posse.
Meu relato é sanguinário, playboy não vai curtir. Pergunta pro tio do terreno invadido no escuro,
Sou homem pra falar que o moleque do pipa, O que é um trator transformando sua goma em
Esquecido, um dia troca tiro com a polícia. entulho.
Não simulo sentimento pra vender CD, Arrombado que me critica me mostra o povo
Não vou falar de paz, vendo a vítima morrer. sorrindo,
Vendo no DP mano cumprindo pena, De carro, casa própria, churrasco no domingo.
Matando o seguro pra ter transferência. Será que é miragem um mendigo que come osso,
Vendo a criança no norte comendo cacto, Gambé porco que pela tua cor deforma seu rosto.
Gambé desovando mais um corpo no mato. O menino com a 3 8 0 que rouba o carro e dá fuga,
Não iludo o casal dirigindo feliz à pampa, deixando a burguesa mutilada, sem metade da nuca.
Fora da blindagem, é um sonho a segurança. Quem vê violência só na tela da TV,
Quando o portão automático da goma subir, Só vai ouvir Facção e conseguir entender,
Prepara a senha do cofre pro ladrão abrir. Quando tiver amarrado, dentro do porta mala,
Que deus deixe ele encontrar, madame, sua Rezando pro ladrão não enfiar bala.
esmeralda, Quando trombar a dor, vai enxergar o verdadeiro
Se não, ele arranca seu coração na faca. rap,
A polícia vai chegar só pra fazer perícia, Aí o filho da puta vai sentir que a marcha fúnebre
Quando alguém se incomodar com o cheiro de prossegue.
carniça.
No balcão, toma com limão pra esquecer o Refrão (8x)
145
Na agência bancária, vou tirar nota A, E ainda um cú de audi quer pagar de moralista.
Se o gerente não colaborar, pá pá: miolo no ar. Ladrão bom é o que a polícia matou,
Minha formatura vai ser regada a champanhe, Esquecendo que aqui é o cão que ele mesmo
Com o filho vendo eu atirando na cabeça da mãe. adestrou.
Se eu for preso, a técnica de fuga tá furada,
Fogo no 2 1 3, várias estiletadas. Refrão (4x)
Vou com o diretor pra frente da câmera da globo,
Fazer o cachorro chorar, pedir socorro. [Eduardo]
Sei que sou o diabo da sua cartilha, A aula termina na cela fria da delegacia,
Inimigo do Estado, seifador da classe rica. No povo contra povo, carnificina, chacina.
Primeiro da classe, orgulho do professor, Te dão ódio, motivo, fuzil,
O cão pronto pra matar que o Brasil adestrou. Pra você dar fuga a mil, tomando tiro da civil.
A lavadeira imigrante é a que sempre chora,
Refrão (4x) Vendo o filho sangrando na porta giratória.
O refém tá carbonizado porque o sistema quer,
[Dum Dum] Por que eu só existo, quando dou tiro na mulher.
Aprendi que não é justo eu na caixa de papelão, Ou quando eu apareço sangüináreo no noticiário,
Enquanto um boy tá de ferrari e o outro é dono de Arremessando a cabeça de outro presidiário.
avião. Toda vez que o avião do boy traz um fuzil na
Papai Noel, eu não sou um bom menino, viagem,
Eu busco o conforto através do latrocínio. Nasce mais um louco selvagem pra te fuzilar na
O vídeo vai ser 1 5 7; a TV, um furto, garagem.
Panetone da ceia, fruto de um furto. Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha,
No vestibular do inferno, deixou claro Não pra encher a panela, mas pra ter carro, fumar
Que sua ascensão vem na queda do empresário. pedra.
Por isso, eu vou pra moto enquadrar teu carro, Sem espanto, puta história, normal na favela,
Atirar no teu peito, arrancar o motor, queimar Pro esquecimento, uma seqüela, astro do linha
carcaça no mato. direta.
Vou dar 5 gramas pro moleque do condomínio,
Pra ele ser meu cliente doente até o suicídio.
A filha roda a banca, cheira todas na danceteria, Refrão (4x)
Mãe, não dei valor pro teu sonho, sua luta tarde
Diploma na minha mão, sorriso, formatura (desculpa, mãe) só restou a lágrima e a dor da
Não fui seu orgulho, diretor de empresa saudade
Virei o ladrão, com a faca, que mata com frieza
Não mereci sua lágrima no rosto Quantas vezes, no presídio, me visitou
Quando chorava vendo a panela sem almoço No domingo, bolacha, cigarro nunca faltou
Vendo a laje cheia de goteira Vinha de madrugada, sacola pesada
Ou a fruta podre que era obrigada a catar na feira Pra ser revistada pelos porcos na entrada
Enquanto você juntava aposentadoria, esmola pra Rebelião, você no portão, temendo minha morte
não ter despesa Sendo pisoteada pelos cavalos do choque
Eu tava no bar, jogando bilhar Eu prometi que dessa vez tomava jeito
Bebendo conhaque, bêbado, Tô regenerado, ouvi seus conselhos
eu era o ladrão de traca a escopeta Uma semana depois, eu na cocaína:
Com a mãe implorando comida na porta da igreja - Cala a boca, velha! Sai da minha vida!
Todo Natal, você sozinha, eu na balada - Eu vou cheirar, roubar, seqüestrar.
Bancando vinho, farinha, pras mina da quebrada - Não atravessa meu caminho, se não vou te matar!
Desculpa, mãe, pela dor de me ver fumando pedra Saí pra enquadrar o mercado da esquina
Pela glock na gaveta, pelo gambé pulando a janela Troquei com o segurança, tomei um na barriga
A Polícia me perseguindo, eu quase pra morrer
Refrão (2x) Só tua porta se abriu, pra eu me esconder
(desculpa, mãe) por te impedir de sorrir
(desculpa, mãe) por tantas noites em claro, triste, Refrão (2x)
sem dormir
(desculpa, mãe) pra te pedir perdão, infelizmente é
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Os gambé vigiando o pronto-socorro Velha, doente, desafiando a madrugada
Eu na cama delirando, quase morto De porta em porta: - Alguém viu meu filho? Tô
Ferimento ardendo, coçando, infeccionado preocupada!
A solução foi o farmacêutico do bairro Fim de semana foi farinha, curtição,
Que só veio por você, com certeza: Só cheguei hoje e de prêmio te trombei nesse
A heroína que pediu esmola no busão, com a receita caixão
Deu comida na boca, comprou todos remédios, Um vizinho ligou, que foi ataque cardíaco
Sonhou com emprego, mas o diabo me quis Morreu na rua, atrás da merda do seu filho
descarregando ferro
Aí eu dei soco, chute, bati com tanto ódio: Refrão (2x)
- Preciso fumar, vai, mãe, dá o relógio!
147
vii. O show começa agora (L8)
148
Com a mira laser nas costas, nove cromada. nove.
Não tem como gritar nem dar alarme, Amarro a governanta, torturo a família,
Já premedito flores, a benção do padre. Quero mais dinheiro:
Por que não fui morar na Europa? Aí, coroa, não me tira!
Grande merda essa blindagem, foi só abrir a porta Mataram a esperança, só deixam como herança
Que o monstro da notícia, que pra mim era fictício, Uma doze com uma caixa de bala pra criança.
Pulou, deu coronhada, extremamente agressivo. Ia me entender, se visse sua filha na esquina,
Talvez seja algum moleque que eu não dei esmola, Por cinco conto, no hotel, dando a vagina.
Fechei o vidro na cara: Então, cuzão, dá um tempo, fica quieto!
- Tchau, porra! Sai fora! Talvez, se der sorte, não vai pra necrotério.
Agora vejo o que resulta a barriga cheia de ar,
No filho da faxineira, cortando minha jugular. Refrão (2x)
Ações, imóveis, conta no exterior,
Quando o oitão tá na cabeça, nada disso tem valor. [Dum Dum]:
Será que o fim vai ser igual filme: jornal, mulher Os minutos passam, tensão extrema,
estuprada, Será que a minha mulher errou a senha?
Com o marido assistindo e eles dando risada? Me lembro que um deles é menor,
Cadê ação preventiva da porra da polícia, Sé pá, joga gasolina e risca o fósforo, sem dó.
Tão num bar comendo coxinha, Eu tô ligado que fome e crack faz o bandido,
só vêm quando virem carniça. Então, por que não estraçalham a cabeça do
Querem meu sangue pra encher uma panela vazia, político?
Esse é o preço pela indiferença, cobrado pela Não nego minha culpa no menino faminto,
periferia. Em vez de cesta básica, comprei relógio suíço.
Contratei vigia, lancei carro blindado,
Refrão (2x) Mas, se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou
O clima é tenso, a chance é muito pouca, culpado.
Vou terminar o dia c’ um tiro na boca. A porta abre, um grita:
Sente o ódio do diabo que você ajudou a criar, - Entra logo, vaca!
Agora, dono do jato, é muito tarde pra chorar. Tão dando coronhada.
- Porra! Ela tá grávida!
[Eduardo]:
Cala a boca, doutor! Não dá mais nem um pio. [Eduardo]:
Se não, te mando com tua vaca pra puta que o pariu. Agora pensa duas vezes pra comprar o diamante,
Vai ter pivete órfão no Morumbi, Pra sua piranha usar uma noite só no restaurante.
Caixão com alça de ouro assinada por mim. Olha a cara dela toda ensanguentada,
Diferente de você, não tenho BMW, Vê do que é capaz quem vive de migalha.
Só um cômodo no barranco, que com a chuva tá Investir em colete à prova de bala é ilusão,
soterrado. Minha bala com teflon atravessa ele e seu coração.
Teu filho vai pra escola com vigia, detector, Enquanto teu filho tiver na Disney e o meu no
Enquanto o meu não tem aula nem professor. reformatório,
Vai ser sequestrador, vai matar polícia, É quatro cinco na sua boca, autópsia, velório.
E ainda adolescente vai pra mesa do legista. Não chora pelo carro: seguro paga outro,
Não uso grife, sapato italiano, Cataram um boi:
Eu não tô na moda, nem etiqueta tem nos meus - Sai fora!
pano. Nasceram de novo.
O sonho da minha coroa era me ver com diploma e Corre pro DP, chama seu policial,
bíblia, Só por um milagre vão me ver no tribunal.
Mas o Brasil meu deu o cano que faz teu parente
virar carniça.
Por isso, seu sangue não me comove, Refrão (2x)
Por isso, invado a cobertura e abro o boy com a
Não acredito que eu cheguei nesse ponto Fiz a torneira de ouro pingar lágrima no palácio
Tô com o refém chorando em cima do seu filho No que foi que o crack me transformou?
morto Me estranhei dando soco na cabeça do doutor
Manchei de sangue o quadro de Picasso Fita dominada, já catando os eletrodomésticos
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Pivete do caralho gritou “morreu!”, no meu reflexo homicídio
Tiro à queima roupa, parou o coração Derreti o meu tênis, relógio, jaqueta
Promovi um velório, na suíte da mansão A diversão da sexta virou uma doença
Doente pela pedra, apertei o gatilho da PT Agora oitão na padaria:
Mas nenhum jurado vai entender - Cala a boca, tia!
Nenhum juiz vai me absolver - Abre logo o caixa! Traz minha cara de alegria!
O pai grita: Entrei no hall da fama dos pedidos da polícia.
- Por que não me matou no lugar dele? No papel, veio bica, dei cinco na barriga
Vendo carne do filho colada na parede. Madrugada tem tiro, minha família vai tremer
Enquadrei na intenção de dólar no cofre Dar busca em hospitais, IML, DP.
Não previ a vadia da mãe implorar: Meu irmão revoltado de ver minha mãe chorar
- Pelo amor de Deus, não morre! Sonha com o juiz batendo o martelo pra me
Se arrepender, não consta: o vizinho deu alarme condenar
Pro Morumbi veio o exército, até a Swat
Pela janela, já escuta a sirene dos lambe saco de Refrão (2x)
boy
Vindo na febre de me transformar no troféu do PM
herói O menino de olho azul não vai passear domingo
Se pá, minha coroa vai ver no noticiário O playcenter foi deletado pelo meu cachimbo
Meu corpo metralhado, e o resgate juntando os Que também roubou meu sonho de jogar no
pedaços Pacaembu
Vai lembrar que eu bati nela pra fumar TV e o rádio O craque perdeu pro crack, no Grajaú
Vai dar graças a Deus de me ver no caixão lacrado - O que que eu faço? Acredito no negociador,
- Ou mato logo todo mundo e me mato, morô?
Refrão (2x) Sem ilusão, não tem colete nem carro
Sei que vou morrer não posso fugir (3x) Vão me matar na viatura asfixiado
Só não quero mais moleque morrendo assim O Brasil não se comove, se sou eu que peço passe
Eu sou o ladrão doente ao boy na reportagem
Eu era só outro moleque jogando bola - Aí, moleque, o crime é só desgraça!
Descalço, fazendo gol, na porta da escola - Choro na cobertura, choro na sua casa.
Carente de incentivo, de um espelho - Não dá futuro roubar um carro forte.
Hoje não tem aula, o professor não veio - Não arrisque a sua vida pela porra do malote!
Querendo brinquedo, carinho de alguém É triste saber que minha mãe não vou ver mais
Não paulada na cara, do monitor da FEBEM Nem beijar minha mina, nem ouvir “papai!”
Não queria um rifle FAO aos 12 anos - Quanto vale agora a merda desse cofre?
Eu não queria achar que o herói era o assaltante de - Rubi, diamante, em troca da minha morte.
banco E o sistema dá o cachimbo pra beber seu sangue
Mas que cuzão que condena foi lá pra ensinar? Pra te ver morrendo no B.O., tentando pagar o
- Aí, moleque, a vitória só vem se estudar ou traficante
trabalhar Meu coração de ódio queria paz, acredite!
- Aí, moleque, não faz o que o sistema quer; Mas agora sou eu e o atirador de elite
Não borbulha sua vida nessa porra de colher! Tá a dez metros da janela e atira muito bem.
Pelo contrário, deram cachimbo Vai matar a vítima do crack e seu refém.
Acionaram a contagem regressiva pro meu
Pow pow o miolo voou, o boy caiu Me ensinaram que conforto só com o doutor morto
Os gambé vieram a mil, farejando o sangue do tio Com a sete meia cinco no pescoço
Que piada a blindagem, cerca elétrica Por isso, eu toco o interfone, o zelador abre o
Se liga da seqüela, puta rica, viúva histérica portão
Eu não sou fictício, sou monstro agressivo Disfarçado de carteiro, caio pra dentro com a UZI
Que tá no noticiário, fazendo refém sangrar pelo na mão
ouvido O boy cuzão que só vê morte pela sky, no sofá
Caí na armadilha, fiz pacto com o capeta Não foi pra Europa, agora assiste meu desejo de
Trocaram minha caneta pela escopeta matar
Me colocaram num opala, debaixo da chuva de bala Agiliza os dólares, os diamantes
A cento e oitenta, dando fuga da agência bancária Se não, arranco teu coração, te afogo no rio de
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sangue Se não blindar o coração, não tem cooper na praça
Quis ser advogado, mas perdi pra rua Se não por armadura, não tem surfe na praia
Vim cobrar com juros meu sonho de formatura Quando for pro teatro ver Shakespeare com sua
Ódio lapidado por um pai bêbado, porco mulher
Que batia na minha mãe, porque não podia comprar Pá pá na cabeça, como o sistema quer
o almoço
Fez de mim o lúcifer que o sistema quer Refrão (4x)
Que pela pedra deixa teu corpo pra perícia do
gambé Sou outro brasileiro favelado, sem sorte
Que vai morrer roubando o carro forte
Refrão (4x) Que vai estar agonizando, no chão do Itaú
Eu to fazendo o que o sistema quer Vendo a risada do boy porco de olho azul
Uma chance em um milhão de vencer como
Pra mim não tem cherokee nem iate bandido
Nem restaurante cinco estrelas, nem audi 100% de chance de mofar num presídio
Eu só como lixo, tomo tiro de investigador História real da família da periferia
Enquanto o boy tem clube de campo, Vem conferir quantos tem passagem na polícia
Conta no exterior Vê quantas mães tem santinho guardado
Então, fudeu, doutor, vou buscar a igualdade Do filho que por um real foi executado
De PT com adaptador de trinta, na crueldade Espantoso, surpresa, pra quem tem tudo na mesa
Não quero ser igual o tiozinho do bairro Fartura no armário é dono de empresa
Que trampa quarenta anos pra passar fome Me diz se não parece filme do seu dvd
aposentado O ladrão encapuzado, invadindo o DP
Nem igual minha mãe, doente, sem médico O delegado metralhado no meio da rua
Pedindo esmola com a receita, pra comprar o O caixa eletrônico na caçamba da perua
remédio Na real é ódio, faca no coração
Cuzão que come caviar e lagosta não sabe o que é A busca a qualquer preço da ascensão
viver um minuto nessa porra Preferia tar na escola, na biblioteca
Pega o dono da mansão e põe no barraco, Tar no shopping, comprando pra minha filha uma
Quando o filho dele chorar, sem ter nada no prato boneca
Não vai pra rua implorar de mão estendida Ter cartão de crédito, cheque cinco estrela
Vai catar a BMW da burguesa vadia Não tar matando alguém pra por o leite na geladeira
Vai subir corrente, se pá, até os dentes Mas infelizmente o que o sistema quer
Vai ter festa no necrotério, o legista contente. Sou eu com fome atirando na madame de chofer
Seu chip no peito não vai me segurar
Vou deixar seus pedaços pro satélite rastrear
Refrão (4x)
151
Com a garrafa cortada na mão, esperando a Ou cavar trincheira, serial killer do planalto.
Kombi trazer sopa Continua em ação: discurso ou revólver, tá na hora
No chiqueiro do navio negreiro, consertar a da revolução.
porta,
Morto pelo senhor do engenho com farda e pistola, Refrão (2x)
Que só em cabeça de pobre descarrega sua
munição, A favor do inimigo: repressão, desinformação,
Discurso ou revólver, tá na hora da revolução. O domínio dos dois caminhos pra revolução.
Caminho um: a voz do povo, aqui, não é a
Refrão (2x) voz de Deus,
Se tua casa é de caxote de feira, problema seu.
Prevejo o mercado saqueado, bala de borracha, Tanto faz sua filha no motel, ganhando trocado,
Escudo do choque, tomando pedrada, Tanto faz seu filho com a doze, matando vigia no
Guerra civil em praça pública: assalto.
- Socorro, professor! Se vier pro asfalto fazer passeata,
Com sangue no rosto, mordida de cachorro, Aí o PM te mata, te faz engolir bandeira e faixa.
Sem teto, sem terra, sem prespectiva, Caminho dois: desconhecendo cenário político,
Sem estudo, sem emprego, sem comida, Onde jogar granada, quem é o nosso inimigo
O pavil da dinamite tá aceso, - Entendeu por que não tem escola pra você?
- Qual será o preço pra eu ter os meus direitos? Toma UZI e me diz quem tem que morrer,
Sequestrar, atirar, queimar pneu na avenida, Não adianta ser milhões, se não somos um,
Invadir a fazenda improdutiva, Ação coletiva, objetivo comum,
Só jogamo ovo, por isso, nada mudou, Discurso ou revólver? Não interessa a opção.
Quem sabe, o Presidente na mira do atirador. Sem união, é impossível a revolução.
Em São Paulo, trinta e cinco por dia. Refrão (2x)
- Chega! Tolerância zero.
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Sem centro cultural, só estilete na cara da cela O barraco na margem do rio, aonde boia um rato
Quantos mais transformados em carniça, no mato morto
Decapitado, pulso algemado, torturado Pro meu povo não tem arquiteto, juiz ou empresário
Por um real, um papel, uma grama É só o tio que vende bala e passa embaixo da
Sempre por migalha, meu povo desfigurado na catraca
ambulância Ou o traficante, descarregando seu rifle FAO
Condenados ao segundo grau, no máximo Ou a puta, no motel, fazendo sexo oral.
A faxineira grita “assalto!” pro empresário. Ou projeta uma escola, a cada 4 presídios,
Quatro da manhã, esmagado no busu até o Centro - Deu 180 mil presos! Resultado atingido.
Pra, no final do mês, não ter um grão de alimento. Só prevejo o boy chorando, cena de terror.
Ninguém queria tá matando o gerente no banco A luz do fim do túnel, pow, pow, apagou.
Nem no flat, proporcionando pânico.
É que uma hora cansa o cheiro de esgoto Refrão (2x)
Não queria te ver na maca, cuspindo sangue, quase Nunca ninguém voltou com um malote do carro
morto, forte.
No hospital com uma par de tiro, tomando soro. Sempre o mesmo fim: mãe chorando no caixão
Nem catando pioneer do Escorte, O mano planejando rebelião na detenção.
Nem enrolando a língua, morrendo de overdose. Mordida de cachorro, esculacho do GOE
Esquece a doze, o cachimbo, a rica cheia de joia. Só quem tá lá dentro sabe o preço de matar o boy.
Já vi, por um real, bisturi de legista em muito noia. Sei que é muito pouco sonhar apenas com comida.
Não seja só mais um número de estatística, Quem não quer ter uma casa com piscina?
Um corpo no bar, vítima de outra chacina. Um cargo bom ao invés de comer lixo?
É embaçado saber que a propaganda na TV Um carro importado último modelo esportivo?
De carro, casa própria, não foi feita pra você. Só que o conforto não vem através do revólver,
Saber que pra ter arroz, feijão, frango no forno Do sangue da refém milionária, temendo a morte.
Tem que pegar um oitão e desfigurar um corpo. O gambé não quer saber seu motivo,
Entendo o motivo, sou fruto da favela. Quer sua cabeça na parede, igual um porco abatido.
Sei bem qual a dor de não ter nada na panela, Não interessa se é pro remédio da sua mãe,
De dividir um cômodo de dois metros em cinco, Pra fumar crack ou beber champagné:
Um quarto sem luz, água, sem sorriso. Se invadir o condomínio gritando “assalto!”,
Só que, truta, o crime é dor na delegacia, Caiu na armadilha, até no teto vai ter seus pedaços.
Choque, solidão, agonia.
Te dão uma ponto quarenta, com silenciador e mira Refrão(2x)
Pra você estraçalhar com o caixa da padaria,
Da mercearia, drogaria, Querem você virando a cadeia, matando estuprador,
Pra que um dia sua família reze sua missa de sétimo Exigindo o governador, o juiz corregedor.
dia. Querem você, num Opala, metralhando um bar,
O boy de rolex, cherokee vidro fumê, Chacina de número trezentos pro SPTV noticiar.
É armadilha do sistema pra matar você Por isso, não tem um de nós no Congresso, na
Câmara
Refrão (2x) Aqui é só ladrão em estado vegetativo, na cama.
Não caia na armadilha, siga a minha apologia: Ou na cadeira de roda, tiro na espinha,
Mesmo de barriga vazia, esquece a joia da rica! Por um par de tênis, um risco de cocaína.
Não caia na armadilha, siga a minha apologia: Nossa vida vale menos que um real.
Sua missa de sétimo dia tá de importado na Aqui, pobre só presta pra doar orgão no hospital.
avenida. Por isso, vai pro colégio, tentar ser o arquiteto.
Não faça os porcos aplaudirem mais um noia
Corrente de ouro, carro do ano, tudo ilusório. analfabeto.
Farinha, bicarbonato, velório. Que bate na coroa pra fumar um rádio,
Traficante, vi vários, com uma pá de funcionários Da bonde em traficante, amanhece esquartejado.
De BMW, dando dinheiro pra delegado, Pega sua três-oito-zero e faz a planta do banco,
Comemorando o ano novo, descarregando a traca Atira no segurança, chuta o refém que tá chorando,
pra alto Cata o malote, esvazia o cofre,
Terminando sem um centavo, na doze do soldado. Descarrega na cabeça do gerente sua nove.
De fuzil, granada, nove, Ou põe a roupa de carteiro, pra enganar o porteiro,
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Enquadrar o prédio inteiro e roubar joia, dinheiro, O sistema tem que chorar, mas não com você
Pras seis horas eu te ver no cidade alerta, matando na rua.
Algemado, com hematoma, tipo cachorro numa O sistema tem que chorar vendo a sua formatura
cela. Refrão (2x)
De joelhos, aos meus pés, tá inofensivo, Eu não sou louco, se pá, é muito pouco!
Nem parece o monstro do horário político, Tinha é que com uma .40 arrancar seu olho,
Que com a dor do indefeso compra a mercedes, Pra você sentir o que o meu truta sentiu,
Coloca obra de arte valiosa na parede. Quando sua guerra mandou seu rosto pra puta que o
Eu tô aqui defendendo o interesse da favela pariu.
Que quer teu sangue pra preencher o vazio - Não se preocupa! A tortura é so um método
da panela. usado,
Vim fazer vingança, buscar indenização Pra investigar, reprimir, no sistema carcerário.
Pro seu crime hediondo, justiça com as próprias O choque no saco que te faz tremer
mãos. Faz parte do currículo de quem não tem o que
- Tá aberta a seção. Começa o julgamento. comer.
- Tenho provas contundentes pro seu sepultamento. Também algema sem flagrante, cuspe na cara,
Oitão na cabeça: Civil pisando no pescoço, querendo granada.
- Fica quieta, vadia! Você treinou sua polícia pra ser minha inimiga,
Transformou o muleque do pipa num sanguinário Pra servir e proteger só a cadela rica.
homicida. Acabou a curtição na noite de Paris,
Pôs a menina de dez anos fazendo ponto, Sua torre Eiffel agora é coronhada no nariz,
Sem estudo, anal, oral, por quinze conto. Financiou suas férias, diversão no carnaval,
Na porta da escola, deu crack pro estudante. Com aposentado doente, sem leito no hospital.
A boca dele jorrou sangue na dívida com o Fez quem sonha com arroz pagar etilista
traficante. pro seu terno.
- Cadê a verba do menor infrator queimando na tv, Só vejo uma condenação: a morte, no seu processo.
Suficiente pra Harvard, pra FGV?
Invés de faculdade pro meu filho, Refrão (2x)
Abre seu crânio com uma M-16 trinta tiros.
Faz uma pá de futuro promissor feliz O prego do condomínio tem que entender
Tá no banco dos réus, ouvindo a sentença do juiz. Que, se tem pânico em Alphaville, é porque você
- Quantas facadas merece um porco deu a PT.
Que faz o macarrão do lixo ser meu almoço? Que o mano armado de doze é só um fantoche
Programado pra matar pelo dono do porche.
Que também tem um jato que vai pra gali noite e
dia
Refrão (2x) Pra abastecer de farinha toda periferia.
Pelo sangue da guerra civil, O boy acha que quem merece a morte é o que grita
Pela criança dormindo no frio, “assalto!”,
Pow, pow,pow,pow O que grita “dá a chave! Sai do carro!”,
- Vai pra puta que o pariu! Não o branco articulado e bem vestido
Pelo noia morto do rio, Que não saca o cano, mas roubam até nos Estados
Invés de escola me deu um fuzil. Unidos,
Pow, pow,pow,pow Cuzão na TV diz que urna não é pinico,
- Vai pra puta que o pariu! Que voto consciente muda o cenário político,
Que é preciso investigar, antes de votar.
Agora chora igual nenêm sem mamadeira, Mas cadê biblioteca, escola pra eu me informar?
faminto, Quem põe o almoço embaixo da blusa do mercado,
A cada soco na cara: Não tem pra ler jornal nem cinquenta centavos.
- Por favor, me deixa vivo! Só tem o palanque e o horário gratuito
Vou dar choque, com a frieza do investigador. Pra adivinhar que sigla tem menos ladrão no
Arrancar sua unha, igual no DP, doutor! partido.
Vamu ver se corre sangue azul na veia do rico, Réu, você banhou de lágrimas seu mandato.
Quebrar seu dente, tipo choque no presídio. Me deu o crack e uma doze, cano cerrado.
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Como pena, vou explodir sua cabeça com ela, - Aí, pra político porco, o veredicto é esse aqui,
Autor intelectual do massacre na favela. mano: pow, pow!
Seu corpo vai ser exposto em praça pública, Refrão (2x)
E servirá de exemplo pra engravatados filhos da
puta.
Refrão (2x)
A paz tá morta,
Desfigurada no IML
Sangue no chão,
Revólver na mão,
A marcha fúnebre aqui prossegue
Refrão (2x)
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