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MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

RAPENSANDO DISCURSIVAMENTE O IMAGINÁRIO SOBRE A


RESISTÊNCIA EM A MARCHA FÚNEBRE PROSSEGUE

UFF

Instituto de Letras

2012

1
MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

RAPENSANDO DISCURSIVAMENTE O IMAGINÁRIO SOBRE A


RESISTÊNCIA EM A MARCHA FÚNEBRE PROSSEGUE

Dissertação de Mestrado, apresentada ao


Curso de Estudos da Linguagem da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestra.

Orientadora: Profa. Dra. Bethania Sampaio


Corrêa Mariani

Linha de Pesquisa: Teorias do texto, do discurso e da interação.

2012

2
MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

Rapensando discursivamente o imaginário sobre a resistência em


A Marcha Fúnebre Prossegue

Dissertação apresentada ao Curso de Estudos


da Linguagem do Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestra em Letras. Área de concentração:
Estudos de Linguagem.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________

Profa. Dra. Bethania Sampaio Corrêa Mariani – Orientadora (UFF)

___________________________________________________________

Profa. Dra. AngelaBaalbaki (UERJ)

___________________________________________________________

Profa. Dra. Vanise Medeiros (UFF)

Suplentes:

___________________________________________________________

Profa. Dra. Lúcia Ferreira (UNIRIO)

___________________________________________________________

Prof. Dr. Maurício Beck (UFF)

3
À minha mais que amada mamãe, Carmen Regina; ao meu mais
que amado papai, Marco Antonio; ao meu mais que amado
maninho, Marcelo Resende; à minha preciosa vovó Flora
Fernandes; a um companheiro de longa caminhada, André Lee e
a todas e todos que, direta ou indiretamente, emanaram boas
vibrações para que este dia especial fosse finalmente alcançado.

4
Para aquelas pessoas que conquistaram tantas coisas maravilhosas como eu conquistei,
não há a mínima possibilidade de não agradecer àqueles que participaram dos
momentos vitoriosos e dolorosos, também, se se pretender não incorrer no erro da
ingratidão. Por isso, existem muitos agradecimentos a serem feitos. Tantas são essas
figuras especiais merecedoras de minha lembrança, que é justificável um eventual
esquecimento não proposital.

Agradeço, primeiramente, àquela força que nos move, nos faz sentir que a vida vale a
pena, que faz o sol aquecer nossas manhãs, por vezes frias; que faz a lua pratear o nosso
céu providencialmente apagado, para que as estrelas possam brilhar; que nos dá a beleza
das montanhas e o frescor das águas de rios e mares. Essa força superior – só pode ser
superior, porque até mesmo nós, seres que se julgam a forma mais inteligente de que se
tem conhecimento comprovável, não somos capazes sequer de imaginar a
potencialidade dela – que permite que tenhamos uma capacidade tão grande de amar, o
mais sublime dos sentimentos.

Em segundo lugar, agradeço aos responsáveis diretos não só por me permitirem residir
neste mundo, como também por me ensinarem todos os valores com os quais, hoje,
procuro viver minha vida. Foram essas duas magníficas figuras, essenciais em todos os
possíveis sentidos do termo, que me deixam como exemplo a necessidade de amar,
acima de tudo, e de sempre buscar fazer o melhor para ajudar sempre, seja quem for ou
em que situação estiver. Essas duas exemplares figuras, ensinaram-me – e continuam a
ensinar, dia após dia – tantas coisas, que é impossível descreveraqui, ou em qualquer
outro lugar, todo o sentimento de gratidão e amor que lhes devoto. Assim,
reconhecendo que é praticamente impossível não ser clichê nem piegas nessa hora,
agradeço aos meus mais que amados papai e mamãe, pessoinhas que tanto admiro, em
primeiro lugar.

Em terceiro lugar, agradeço aos auxílios diretos e indiretos de meu mais que amado
maninho, Marcelo Resende, mais conhecido como Xelo, que, mesmo distante
fisicamente a maior parte do tempo, fornece-me incessantemente muitos ensinamentos e
um suporte emocional inestimável; ao meu querido companheiro que, comigo,
percorreu um longo caminho, compartilhando alegrias e dores, celebrando o nosso
amado Vasco, a nossa indignação com a sociedade tal como está constituída, os nossos
momentos de rap, e construindo as pontes que nos levarão a uma sociedade socialista,

5
mas de quem o tempo, esse senhor de nossas vidas e de nossa história, acabou me
afastando, André Lee; à minha mais do que querida e admirada orientadora que soube,
com seu tato, paciência e muito, mas muito conhecimento, carinho e sabedoria, permitir
que esse momento, tão ansiosamente aguardado, pudesse finalmente se concretizar, a
agora designada “minha professora”, com esse pronome possessivo constituindo parte
obrigatória da expressão, Bethania Mariani; à minha muitíssimo amada vovó, a quem
muito admiro pele exemplo de dedicação, força e coragem que representa, e com quem
tenho algumas boas diferenças conceptuais, Flora Fernandes; à minha amadíssima
madrinha, Luiza Maria, que deu um suporte todo especial e com ímpar dedicação nos
momentos mais delicados; enfim, a toda a minha família e amigos que, juntos,
formaram um gigantesco envoltório de bons pensamentos e energia positiva para que eu
pudesse, hoje, colher os frutos dessa árvore plantada há tantos anos.

Por fim, agradeço por todas as dificuldades que me encontraram – e ainda encontram –
em momentos felizes, pois elas me ensinaram – e continuam a ensinar – que não se
passa por essa vida incólume e que sempre, sempre, por mais que não sejamos capazes
de compreender isso num primeiro momento, podemos aprender e, assim, sair mais
preparados para enfrentar a próxima queda. Não nos esquecendo nunca de que jamais
estamos sós e de que todos os momentos por que passamos são merecedores de
agradecimento.

6
SUMÁRIO

1. SOB O EFEITO DE INTRODUÇÃO .............................................................11


1.1 Por que o rap, o grupo facção central e a análise de discurso de escola francesa?
Ensaiando uma explicação ..............................................................................................12
1.1.1 O que no rap? Delimitando o tema ....................................................................18
1.1.2 Vale a pena trabalhar com o rap? Um efeito de justificativa .............................19
1.1.3 Por que a análise de discurso? “Escolhendo” uma teoria ...................................24
1.1.4 Como trabalhar com música: as especificidades e os procedimentos de ajuste do
material ...........................................................................................................................28

1.2 Sobre o caminho a ser trilhado ...........................................................................32


1.2.1 Da definição do tema e da teoria às hipóteses de pesquisa ................................34
1.2.2 Novas hipóteses surgem pelo caminho ...............................................................35
1.2.3 Discutindo os antigos e os novos objetivos ........................................................37

2 QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO DE REFERÊNCIA ..............43


2.1 A análise de discurso “de linha francesa”: história, sentido e linguagem na
história dos estudos da linguagem ..................................................................................43

2.2 Noções teóricas mobilizadas ..............................................................................50


2.2.1 Sujeito, sentido e ideologia: das formações discursivas ....................................50
2.2.2 Das formações imaginárias e das condições de produção .................................60
2.2.3 Dos gestos de interpretação ................................................................................65
2.2.4 Do silêncio e do silenciamento ...........................................................................67

2.3 Discutindo a resistência na/para a teoria do discurso .........................................70

2.4 Dispositivo analítico e os procedimentos de dessuperficialização ....................77

3 AS ANÁLISES: O RAP E AS MARCAS DE RESISTÊNCIA ....................79


3.1 “Eu tô fazendo o que o sistema quer”: formações imaginárias, discursivas e
posições-sujeito ..............................................................................................................90

7
3.2 Língua fluida e língua imaginária: a construção da resistência à língua, na
língua.............................................................................................................................100
3.2.1 A negação .........................................................................................................102
3.2.2 A adversativa ....................................................................................................110
3.2.3 A condicional ....................................................................................................116
3.2.4 A causal ............................................................................................................119
3.3 Considerações finais sobre as análises .............................................................122
3.3.1 Ameaça .............................................................................................................129
3.3.2 Causa .................................................................................................................130
3.3.3 Tempo ...............................................................................................................131

4 SOB O EFEITO DE CONCLUSÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS E


PROVISÓRIAS ..........................................................................................................134

5 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................138

6 ANEXOS ..........................................................................................................142
6.1 As letras das músicas do álbum A Marcha Fúnebre Prossegue (Facção Central,
2001) utilizadas na pesquisa .........................................................................................142
6.1.1 Dia comum (L2) ................................................................................................142
6.1.2 A guerra não vai acabar (L3) ............................................................................143
6.1.3 A marcha fúnebre prossegue (L4) ....................................................................143
6.1.4 Aqui são teus cães (L5) .....................................................................................144
6.1.5 Desculpa, mãe (L6) ...........................................................................................145
6.1.6 Sei que os porcos querem meu caixão (L7) ......................................................146
6.1.7 O show começa agora (L8) ...............................................................................147
6.1.8 Tensão (L9) .......................................................................................................147
6.1.9 De encontro com a morte (L10) ........................................................................148
6.1.10 Eu tô fazendo o que o sistema quer (L11) ........................................................149
6.1.11 Discurso ou revólver (L12) ...............................................................................150
6.1.12 Sem luz no fim do túnel (L13) ..........................................................................151
6.1.13 Apologia ao crime (L14) ...................................................................................152
6.1.14 Justiça com as próprias mãos (L15) ..................................................................153
6.1.15 A paz tá morta (L16) .........................................................................................154

8
RESUMO

A presente pesquisa, que se filia ao escopo teórico da Análise de Discurso da escola


francesa, objetiva analisar o funcionamento do rap underground, a partir de um corpus
constituído por letras de músicas do álbum A marcha fúnebre prossegue, produzido no
ano de 2001, pelo grupo paulista de rap Facção Central, com base nas noções de língua
imaginária e língua fluida (Orlandi, 2002) e de ordem e organização da língua (Orlandi,
1996). Partimos do conceito de resistência proposto por Pêcheux (1980). A hipótese que
norteou as análises foi a de que esse sujeito enunciador, o rapper, resiste ao sentido de
língua, tal como a gramática procura estabelecer; de trabalho, tal como a formação
ideológica capitalista busca sedimentar e de movimento musical, tal como a mídia tenta
cristalizar. As pistas com as quais trabalhamos o material foram as formas que,
gramatical e linguisticamente, marcam os efeitos de causa, adversidade, condição e
negação, chamadas de conjunções coordenativas ou subordinativas e de advérbios.
Passamos, ainda, por uma breve análise das denominações, a fim de que pudéssemos ter
acesso aos sentidos sobre o outro representado no discurso do rap underground do
grupo Facção Central. A análise permitiu que verificássemos a existência de duas
matrizes de sentidos, ou formações discursivas, em relação de oposição: a da barbárie e
a questionadora. Permitiu também verificar que o sujeito-rapper, embora no fio
discursivo se signifique de modo oposto aos sentidos historicamente sustentados como
“oficiais”, devido à interpelação ideológica e ao funcionamento do inconsciente, se cole
aos sentidos da FD da barbárie, contra a qual deveria se opor. Assim, embora resista a
alguns sentidos da FD da barbárie, o discurso do rap underground produzido pelo
Facção Central não é capaz de romper com a formação ideológica que domina seus
processos de identificação: a ideologia capitalista, na sua realização neoliberal.

Palavras-chave: Análise de Discurso; resistência; imaginário; hip hop; resistência à


língua; língua fluida; língua imaginária.

9
ABSTRACT

This research, under the scope of the french school of Discourse Analysis, aims to
analyze the underground rap operation, based on a corpus constituted by song lyrics
from the album A marchafúnebreprossegue, released in 2001, by a rap crew from São
Paulo called Facção Central, with the theoretical contribution of some concepts
proposed by Orlandi: imaginary language and fluid language (2009),and language order
and language organization (1996). The concept of resistance, proposed by Pêcheux
(1980), is the point from where we have started our studies. Our analysis were guided
by the hypothesis that the enunciator-subject, the rapper, resists to the meaning of
language, such as grammar establishes; of work, such as the capitalist ideological
formation tries to determine; and, finally, of musical movement, such as media tries to
dictate. Our clues were the forms that, linguistically and grammatically, show the
effects of cause, adversity, condition and denial, known as coordinative and
subordinating conjunctions and adverbs.We went through a quick analysis of some
designations, in order to access the built meanings about the other one, described on the
underground rap produced by Facção Central crew. The analysis allowed to verify the
existence of two patterns of meanings, also called discursive formation, which
maintains a conflicted relationship between them: barbarism and questioning discursive
formations. The analysis also allowed to see that the rapper-subject, although from
inside of the discursive line, means himself conflicting to the historically sustained as
“official” meanings, due to the ideological interpellation and to the unconscious
operation, sticks himself to the meanings originated from the barbarism formation,
against what he should stand. Thus, although resists to some meanings of the barbarism
formation, the underground rap speeches we have analyzed, produced by Facção
Central, are not able to disrupt with the ideological formation, which rules their
identification processes: the capitalism ideology, under the neoliberalism way.

Key-words: Discourse Analysis; Resistance; Imaginary; hip hop; Resistance to


language; Fluid language; Imaginary language.

10
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ………………………………………………………………………p. 49

Figura 2 ............................................................................................................p. 50

Figura 3 ............................................................................................................p. 64/65

Figura 4 ............................................................................................................p. 96

Figura 5 ............................................................................................................p. 126

Figura 6 ............................................................................................................p. 127/128

11
1. SOB O EFEITO DE INTRODUÇÃO

Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o
deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive.
(Orlandi, 2003)

Não caia na armadilha, siga a minha apologia


Mesmo de barriga vazia, esquece a jóia da rica
Não caia na armadilha, siga a minha apologia
Sua missa de sétimo dia tá de importado na avenida.
(Facção Central, 2001)

“Eu sou periferia”, me diz um deles. Ele não disse “Eu sou da periferia” (em que periferia seria apenas
uma localização) mas “Eu sou periferia”. Ele e a periferia se confundem. Identificação de um e outro
(outros). O lugar (não-lugar social), o ser, a coisa.
(Orlandi, 2004)

Mediação e discurso. Permanência e transformação. Apologia e periferia. Ao ler


os excertos trazidos acima sob a forma de epígrafes, esses foram os significantes que
mais se destacaram e que se mostraram relevantes para entrar no assunto desta
dissertação. Esses significantes são centrais não apenas no que concerne ao trabalho
com o discurso enquanto o objeto da teoria cujo quadro teórico fundamentou o estudo,
mas também, e especificamente, com o que a presente pesquisa procura discutir: é
possível pensar em resistência enquanto um projeto potencialmente transformador –
revolucionário mesmo – que o rap (rythmandpoetry, ou, em língua brasileira1, ritmo e
poesia) constrói discursivamente, a partir das produções discursivas pertencentes ao
heterogêneo movimento/cultura hip hop, em que muitos sentidos se repetem e muitos se
deslocam? De que maneira tal possibilidade se marcaria linguística e discursivamente,
se se tomarem as produções discursivas do grupo paulista de rap, Facção Central, em
seu álbum A marcha fúnebre prossegue, como objeto empírico de análise? E, caso se
trate mesmo de um movimento de resistência, como é construído discursivamente
aquilo a que essas produções estariam resistindo? Com essas primeiras indagações,
considera-se aberta a discussão que envolve Análise de Discurso, resistência, periferia e
rap.

1
A expressão ‘língua brasileira’ foi utilizada para situar teoricamente a oposição que representa em
relação à designação ‘língua portuguesa’, que pode vir acompanhada da expressão ‘do/no Brasil’. Assim,
apresentamos uma posição identificada à da analista de discurso que propõe a expressão: EniOrlandi
(2002).

12
1.1 POR QUE O RAP, O FACÇÃO CENTRAL E A ANÁLISE DE DISCURSO?
ENSAIANDO UMA EXPLICAÇÃO

Ignorados pela mídia. Sempre a piada.


Na música nacional passa em branco, não é nada.
Apenas é considerada música de ladrão,
diversão de menores, artistas sem expressão.
(Facção Central, 1995)

Quando pensamos no porquê de ousar pesquisar as produções discursivas e os


gestos de interpretação engendrados pelo grupo de hip hop Facção Central, tendo como
fundamentação teórica a Análise de Discurso de linha francesa, logo nos vem à cabeça
uma palavra: desafio. E esse desafio tem a ver com dois aspectos fundamentais que
serão discutidos nos próximos parágrafos: de um lado, o corpus; de outro, o quadro
teórico de referência.

Com relação ao corpus, ou seja, naquilo que se refere às letras das músicas do
grupo Facção Central2, o desafio é o de lidar com a paixão tanto pela música – em suas
diversas manifestações rítmicas, melódicasetc. – quanto pelo movimento representado
pelo hip hop, do qual o rap (“música de ladrão”, que “não é nada”, “passa em branco”)
é um dos elementos e com o qual o primeiro contato ocorreu após os vinte anos de idade
– até então, os ouvidos estavam acostumados com muita bossa nova, tropicalismo, funks
carioca e internacional, pagodes e sambas, com a dita MPB (música popular brasileira)
– seja lá o que essa designação queira representar –, com algum rock e algum pop. Mas
nunca, a não ser muito de longe, durante vinte anos de existência, estes ouvidos haviam
se encontrado com as composições musicais que reúnem, por um lado, uma enfática
contestação à nossa sociedade neoliberal brasileira, oriunda de uma recente (re)abertura
política e herdeira de longos processos de colonização e de ditaduras; e, por outro, uma

2
As letras das músicas estão disponibilizadas como Anexo (item 6) ao final desta dissertação. Elas serão
designadas pela letra “L” seguida pelo número da faixa musical, em conformidade com a organização do
próprio encarte do CD A marcha fúnebre prossegue (2001).
É imprescindível destacar aqui que a primeira faixa do referido álbum fonográfico é uma montagem
feita a partir de “recortes” de falas (orais) de repórteres e apresentadores dos mais variados noticiários
e programas de auditório de diferentes emissoras de televisão. Trata-se, portanto, de uma arrumação
de enunciados orais, postos em circulação pelos meios de radiodifusão – rádio e televisão –, quando da
censura imposta ao álbum Versos Sangrentos (2000), de autoria do grupo Facção Central. Isso quer dizer
que não será considerada, para efeito de análise, a faixa denominada Introdução, a qual seria
representada neste trabalho como L1.

13
produção poético-musical cuja proposta é, conforme sugeriu Baalbaki3 ao participar da
banca de avaliação do projeto desta dissertação, “narrar”, como se cada composição
musical do álbum funcionasse como um capítulo de um romance, ou como um canto de
uma epopeia clássica, as mazelas produzidas socialmente sob as mais diversas formas
de exclusão – social, política, econômica, geográfica... –, emprestando sua voz para a
fala daquela grande parcela da população brasileira que convive com um silenciamento
social e historicamente construído, silenciamento que não poderia/deveria ser
questionado pelos membros dessa grande parcela.

Existe, portanto, em nossa sociedade excludente, uma relação de opressão que


lhe é constitutiva e na qual se opõem opressor e oprimido. Essa relação lembra uma
consideração feita por Orlandi (2009), para quem a linguagem é um lugar de debate, de
conflito. Pensar em rap supõe pensar em linguagem e debate, pois esse espaço
discursivo tende a se marcar pela polêmica. Do mesmo modo, pensar em conflito supõe
pensar em divisão. E foi pensando na divisão social de classes – tomada no sentido
materialista histórico da expressão, que remete à luta de classes entre proletariado e
burguesia – que acabou sendo produzida uma identificação quase que imediata com tal
modo de significar a opressão, engendrado por esses sujeitos que se dizem ocupar social
e discursivamente o lugar (social) e a posição (discursiva) do oprimido.

É preciso considerar, entretanto, uma vez que se está propondo adentrar o


imaginário construído pelos processos de significação de um movimento que se
autoproclama questionador, que

O que chamamos realidade é resultado da construção /


rememorialização cotidiana de concepções de mundo que não se
inauguram nos sujeitos, mas que se concretizam em suas práticas sem
que haja percepção crítica deste processo. A realidade, portanto, não
é algo dado, um mundo externo, mas, sim, algo que resulta da
necessária significação com que o homem, ser simbólico, investe
suas práticas sociais e linguageiras. (Mariani, 1996: p. 27, grifos
nossos)

Portanto, embora o sujeito que enuncia, o rapper,discursivize-se enquanto um


“retrato da guerra civil brasileira, da carnificina rotineira” (L3), não se trata aqui de um
sujeito que tenha o poder de se projetar para “fora” do funcionamento ideológico que o
3
Refiro-me à professora DrªAngelaBaalbaki, da Faculdade de Letras da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ).

14
coloca enquanto origem de seu dizer (esquecimento nº 2 descrito por Pêcheux). No
caso, o próprio sujeito está funcionando como um exemplo da interpelação ideológica:
não há essa realidade objetiva passível de ser “apreendida objetivamente”, como se
fosse um dado, natural, portanto, que estivesse disponível para ser captado pelas lentes
de sua câmera, sob a forma de um retrato.

Estar no campo do discurso implica considerar a língua em sua incompletude, a


linguagem como sujeita a falhas e equívocos e uma relação não-direta entre
pensamento-palavra-mundo. Implica reconhecer que na língua há comunicação e não-
comunicação (Pêcheux, 1988 [1975]) e que a língua, a língua nacional, é objeto
simbólico que “reclama” sentidos (Orlandi, 2009) .

Uma outra implicação direta, que é de extrema relevância para o modo como o
tema foi trabalhado nesta dissertação, é a de que aqui não se produziu um estudo
sociológico do “fato social” representado pelo heterogêneo movimento hip hop no
Brasil. Além disso, não se trata também de assumir um determinado conteúdo como
verdadeiro, que serviria de “parâmetro” para o julgamento de outros conteúdos – como
se os argumentos levantados necessitassem de “comprovações” para se sustentarem
enquanto verdadeiros ou falsos. Trata-se, sim, de compreender como esses textos – que,
devido a sua especificidade passarão a ser denominados “letras de música” –produzidos
numa materialidade musical – o que implica necessariamente especiais condições de
produção diferentes de um material estritamente escrito –, significam os sujeitos dos
quais os rappers se colocam enquanto porta-vozes, assim como de que maneira
significam seu outro. Quem são esses porta-vozes? Que imagem eles constroem de si?
Que imagem constroem daqueles cujas vozes eles portam? Que imagem constroem dos
outros a quem se dirigem? Essas e muitas outras questões foram levantadas e são de
extrema importância para o caminho que fora trilhado durante as pesquisas na busca por
respostas, ainda que provisórias.

Assim, no que se refere ao corpus, pode-se afirmar ser esta escolha fruto de um
casamento entre a paixão pela música, enquanto produtora/produto da arte; e da arte,
enquanto espaço de contestação, de desestabilização dos universos ideal e
imaginariamente estabilizados, do questionamento: dá-se aí o encontro entre o hip hop
(movimento artístico, político e social) e o Facção Central (grupo que procura manter-se
firme no propósito de, ao produzir rap, questionar, sair do espaço do mesmo que a

15
indústria cultural de massa (?) cultivou anos a fio, sempre com o objetivo de aumentar
seus lucros). O propósito ao qual o Facção Central, enquanto grupo de rap, procura
manter nos faz retornar ao início do movimento, quando seu objetivo era mais a crítica
social e menos o dinheiro que o rapper pode ganhar ao “vender sua ideologia” (SD47)4.
Nesse sentido, é valido trazer a contribuição teórica de Bulhões (1999) que, pensando a
relação entre artista, memória e identidade no Brasil, comenta a afirmação de
WolfangWelsch, para quem “no meio da hiperestetização, há a necessidade de áreas
esteticamente baldias”, dizendo que

Evidenciando os aspectos mais torpes e baixos da realidade, alguns


artistas querem trazer de volta a humanidade perdida num afã de
falsas pretensões. Eles rompem radicalmente com os padrões
tradicionais de um belo idealizado, expondo o feio, o tosco, o abjeto.
Estes artistas abdicam dos caminhos fáceis para jogar com o público,
mesmo contra sua vontade, nas profundidades do inferno. (Bulhões,
1999: p. 93)

E, mesmo levando em consideração que nesse trecho a autora busca significar as


produções estéticas de artistas plásticos, pode-se fazer uma ponte com as produções
discursivas do rap pesquisadas neste trabalho, sempre tendo em mente que o meio
material, enquanto condição de produção do discurso, é constitutivo do sentido, ou seja,
que diferentes meios – no caso, artes plásticas e rap – significam diferentemente. A
aproximação – a tal ponte – se dá no que concerne ao movimento de contestação que se
encontra representado tanto em uma quanto em outra produção artística. Nesse sentido,
é possível pensar os rappers do grupo Facção Central como sujeitos que, cantando “a
carnificina rotineira”, “rompem radicalmente com os padrões tradicionais de um belo
idealizado” (Bulhões, op. cit.) e instauram um novo espaço de significação, marcando-
se por formulações que resistem à “logica de uma cultura unitária e homogeneizadora”
(Bulhões, op. cit.) construída pelo processo de globalização e de massificação da
cultura.

Ocorre que a paixão e a academia, ou seja, o sentimento passional e o espaço


institucional em que a discussão aqui proposta está sendo travada, não fazem parte da
mesma ordem: a primeira está historicamente relacionada ao descontrole, este,
assistemático por convenção, remonta à emoção (pathós, palavra de origem grega que,
em língua brasileira, podemos traduzir por „doença‟, „mal‟); a segunda é historicamente

4
(SD47) significa, conforme mostraremos no capítulo 2, uma das sequências discursivas analisadas nesta
dissertação.

16
construída – e concebida – como o espaço da sistematicidade, da cientificidade, da
razão, do mensurável. A implicação direta dessa constatação é a de que não se faz
ciência apenas com uma dose cavalar de paixão (emoção). O que significou a
necessidade de se buscar uma “razão”, um motivo acadêmico-social que justificasse a
escolha do tema. A procura teve um fruto satisfatório quando, ao pesquisar a
bibliografia de estudos acadêmicos sobre o hip hop no Brasil, encontrou-se apenas um
que usou as produções do grupo Facção Central como material de pesquisa, estudo esse
desenvolvido sob um quadro teórico concernente à disciplina História. Assim,
considerando-se inclusive o trabalho cuja pesquisa se centra no hip hop e que é
fundamentado nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso da Escola Francesa,
não se encontrou um estudo sequer que se dê sob essa fundamentação teórica e o rap
produzido pelo grupo Facção Central. Isso quer dizer que a presente dissertação pode
estar representando a primeira vez em que se conjugam Análise de Discurso e Facção
Central num mesmo estudo. Tal conjugação pode significar o início de um processo de
deslocamento na lógica que coloca em relação de sinonímia hip hopnacional e
RacionaisMC’s ou Mv Bill, estes últimos assaz recorrentes em pesquisas brasileiras que
tematizam o hip hop.

Contudo, todas essas considerações remetem apenas ao primeiro aspecto


fundamental do desafio anteriormente citado. Ou seja, há ainda que se considerar o
segundo aspecto, a saber, a definição do arcabouço teórico para a condução da pesquisa:
por que a Análise de Discurso de Escola Francesa?

Uma primeira e rápida resposta que vem à cabeça remonta ao aspecto


questionador que sustenta a escolha do corpus, isto é, precisava-se de uma teoria cujo
quadro nocional condissesse com a desestabilização de que se falou quando se discorreu
sobre o primeiro aspecto. Nesse sentido, decidiu-se pela Análise de Discurso devido
principalmente ao fato de que ela busca a desconstrução das raízes que sustentam o
óbvio do sentido, que sustentam a evidência enquanto ponto de partida do(s)
movimento(s) em direção à compreensão da/na linguagem. E, toda escolha, enquanto
movimento de seleção, implica cortes. Cortaram-se, portanto, todas as possibilidades de
lidar com uma língua sistemática, homogênea e apreensível enquanto matéria objetiva
ou enquanto instrumento do qual os homens, no papel de interlocutores, ou seja, de
emissores e receptores, utilizar-se-iam para comunicar uma mensagem. Também não se

17
pensou em funções da linguagem, mas, como mostraremos mais adiante, em
funcionamento linguístico-histórico.

A Análise de Discurso mostrou-se, desde o primeiro contato, ainda nos tempos


de graduação, uma teoria que abraça a causa da contestação, por ter sido, ela própria,
consequência de um questionamento teórico dentro dos estudos de linguagem no final
da década de 1960, e porque ela traz, em seu fundamento, a negação da literalidade
enquanto princípio de funcionamento da língua(gem). E questionar a literalidade,
procurando compreender os processos discursivos que produzem – determinados –
sentidos sob a materialidade significante da língua, é imprescindível quando se buscam
discutir determinadas produções sociais – no caso, o rap – sem cair no encantamento
das soluções sociológicas, para as quais os sentidos são imanentes, e que são baseadas
na noção de linguagem enquanto instrumento transparente de comunicação, separada da
exterioridade e “fora” do alcance do funcionamento ideológico. Dessa forma, pôde-se
sair do lugar-comum construído para significar as produções do movimento hip hop,
sobretudo quando se toma por corpus de pesquisa as letras de músicas de um
representante da “corrente” conhecida como rap underground.

Essa expressão “underground” foi empregada por Lippold e Santos (2004) para
destacar uma determinada parcela dos grupos de rap que se contrapõem à lógica de
mercado instaurada pelo estabelecimento de um novo filão na indústria fonográfica.
Propõe-se aqui que o Facção Central pertence a essa determinada parcela, porque o
grupo utiliza uma gravadora independente e se opõe a uma outra gigantesca parcela de
grupos de rap que representam o seu oposto, ou seja, aqueles grupos que estão sob a
égide de uma espécie de “cartel” de gravadoras que “comandam” a indústria
fonográfica, a partir da relação de “comando” que estas mantêm sobre a produção dos
artistas que se submetem a tais critérios de trabalho, em nome, principalmente, de
dinheiro e de fama, e que são denominados, no estudo de Lippold e Santos (2004), pelo
termo “comercial”. Foi interessante trazer essa distinção porque ela implica diretamente
a posição discursiva da qual o sujeito produz suas formulações. Implica, ainda,
processos de identificação com determinados lugares sociais que se contrapõem
frontalmente aos rappers que só querem estar na mídia, ainda que para isso necessitem
de negar sua origem favelada e de interditar sua voz questionadora em nome de dinheiro
e fama. Veremos mais adiante que essa divergência coloca em conflito duas posições
discursivas – uma, a dominante, que é a mercadológica e outra, poder-se-ia dizer

18
dominada, que é a questionadora –, cuja disputa ainda não gerou uma ruptura total, por
parte de uma dessas posições, com a formação discursiva que as domina. A relação de
tensão pode até estar bastante acirrada, mas ainda não foi suficiente para instaurar uma
nova formação discursiva. Na seção em que discutimos essas relações, procuramos
abordar o(s) possíveis porquê(s).

1.1.1 O QUE NO RAP: DELIMITANDO O TEMA

A rima é a palavra no maior significado


Adversária da frieza de um dicionário
Não tem fãs: tem seguidores.
Impostores gravam cenas como atores.
A rima sofre com a censura. Foi caluniada
Por quem ri do verbo e não crê na força da palavra.
Mas o dia da igualdade tá chegando, seu doutor.
Mas o dia da igualdade tá chegando, seu doutor.
(G.O.G, 2004 )

Retomando o parágrafo introdutório desta dissertação, o tema aqui proposto é a


problematização da construção da resistência enquanto projeto do rap nas manifestações
discursivas do grupo Facção Central, especificamente, nas letras das músicas que
compõem o álbum A marcha fúnebre prossegue (2001). Problematizar implica que não
se tomará como certa, pelo menos não neste momento, a hipótese de que existe tal
projeto. Tanto o ponto de partida quanto as estratégias “elaboradas” por esse sujeito
que, segundo nossa hipótese, posiciona-se resistindo a algo, assim como o porquê dessa
resistência, foram postos em discussão. Para tanto, procurou-se, trabalhando com a
materialidade significante da língua, ou seja, não tomando o sentido como imanente à
forma (material) e remetendo as formulações ao conjunto do já-dito, do não-dito e do
que pode e deve ser dito, deslocar a compreensão sobre o rap dito underground para um
terreno outro que não o(s) já delimitado(s) pelas políticas de estabilização de um
determinado sentido, da “frieza de um dicionário”, que poderia ser “apreendido”, a
partir de uma análise de “conteúdo”. E esses processos de estabilização dos sentidos são
movimentos em direção a um silenciamento da “força das palavras”, silenciamento que
se dá a partir de calúnias e censuras à rima, “a palavra no maior sentido”.

Assim, a definição do corpus desta pesquisa tem um motivo que necessita de ser
enfatizado: o fato de que se trata de um álbum que foi produzido após a proibição das

19
veiculações do videoclipe e da música “Isso aqui é uma guerra”, pertencente ao álbum
Versos sangrentos, lançado no ano de 2000. O grupo Facção Central, devido ao
lançamento da música citada, chegou a ser indiciado por incitação e apologia ao crime
e, mesmo depois de apreensões de materiais de vídeo e áudio em redes de venda; de
multas e constrangimentos legais às empresas concessionárias do ramo da radiodifusão
que se propuseram a veicular os materiais; de muitas idas e vindas do grupo à delegacia
de repressão ao crime organizado; de responder judicialmente – ou seja, em juízo –; e de
não ter sido condenado, ao final dos processos, decidiu não se “submeter” a essa visível
política local de silenciamento (Orlandi, 1993) e produziu uma espécie de resposta, cuja
tentativa de expressão se encontra já no título do álbum, no qual se pode notar,
inclusive, como esses sujeitos procuram significar sua produção musical: A marcha
fúnebre prossegue. (grifo nosso) Nesse caso, o artigo definido, como dizem os
gramáticos normativos da língua portuguesa (no Brasil, pelo menos), não apenas
funciona definindo o nome, como também o significa enquanto informação já conhecida
que está sendo retomada. Desse modo, o sintagma nominal “marcha fúnebre” retoma
alguma informação anterior utilizada para significar as produções musicais desse grupo.
A presença de um verbo no presente do indicativo funciona estabelecendo uma relação
de atemporalidade. Além disso, trata-se de um verbo que indica movimento para frente.
Nesse sentido, pode-se dizer que a marcha fúnebre irá seguir prosseguindo,
ininterruptamente, ainda que promotores e demais agentes da “justiça” procurem encher
o caminho do grupo de empecilhos e de contratempos. Isso já diz muito sobre o modo
como o grupo se posiciona discursivamente.

1.1.2 VALE A PENA TRABALHAR COM O RAP? UM EFEITO DE


JUSTIFICATIVA

Tem muito mano em cena que não entendeu a importância do hip-hop.


Rap, não importa o estilo, a quebrada, o cantor: é a música da favela, é a voz do mais sofrido, dos sem
voz.
(Facção Central, 2003)

No que tange ao aspecto de concepção desta dissertação, nesta seção de


introdução estão sendo apresentados, detalhadamente, os motivos que concorreram para
a elaboração desta proposta. Nesse sentido, e dando continuidade ao que foi trazido nos
primeiros item e subitem, encontram-se, a seguir: a memória do projeto, na qual se
20
pautaram, entre outras coisas, as condições de produção desta proposta; a perspectiva da
pesquisa com o objeto teórico discurso e com o objeto empírico, as letras de música do
álbum A marcha fúnebre prossegue, do grupo de rap Facção Central, enquanto material
significante sobre o qual a análise incidiu; e o quadro teórico que servirá de referência –
a Análise de Discurso elaborada por Pêcheux (França, finais da década de 60 do século
passado) – para a discussão do tema já mencionado.

A ideia que deu origem a esta proposta de pesquisa surgiu a partir do


cruzamento de, pelo menos, dois fatores, ambos da esfera pessoal. Um deles está mais
relacionado ao âmbito acadêmico; o outro, mais próximo da relação estabelecida entre a
pesquisadora e a poesia, relação esta com a qual a presente exposição será iniciada.

A poesia – ou a dinâmica poética – enquanto presença/percepção, na vida desta


estudante, é da ordem da imposição. Explicação: não há um só momento em que a
poesia não se faça presente, inclusive quando a ela não é concedida, de maneira
consciente – e raramente o é –, um espaço para sua aparição. Em outras palavras, ser da
ordem da imposição é impor-se presente quando dela nada se espera. Assim ela
“funciona”: aparições inesperadas, mas, nem por isso, recusadas. E a poesia também é
onipresente, uma vez que marca sua presença em qualquer situação: desde um pôr-do-
sol contemplado da janela da sala (de aula, de casa...) até uma espécie de composição
musical cujo nome a carrega sob a forma de uma sigla (rap [sigla, em inglês] = ritmo e
poesia [em língua brasileira]).

Com relação ao âmbito acadêmico, foi possível, nessas pouco mais de duas
décadas dedicadas à educação formal – divididas entre os ensinos fundamental, médio e
superior –, reparar que não há muito espaço, na instituição escolar, para que se coloque
em perspectiva aquilo que se constrói historicamente como “produção marginal”, sendo
esta frequentemente discutida sobre as mesmas bases: a de um conteudismo que apenas
reproduz, sem deslocar, a discussão, de modo a buscar promover uma “repetição
empírica” (Orlandi, 1996) – permanência, paráfrase – e a evitar conceder espaço a
novos sentidos possíveis, aos deslocamentos, enfim, às ressignificações – ou “repetições
históricas” (idem, 1996).

Isso quer dizer que há um movimento, dentro da academia enquanto espaço de


“produção do conhecimento”, que expõe as veias da contradição à qual está submetida,
movimento esse que tanto procura cercear a constituição e a formulação de novos

21
sentidos quanto constitui um lugar privilegiado onde essa significação se mantém
controlada, de modo que aquelas produções discursivas cujos autores e/ou
leitores/ouvintes estejam relacionados, em maior ou em menor grau, a alguma forma de
marginalidade, sejam interditadas em sua circulação, a partir de mecanismos como os de
ridicularização do diferente, de “adversarialização” do contrário e, sobretudo, de
negação do outro.

Diz Orlandi (2004), ao discutir a relação entre pichação, grafite e escola no


“espaço” urbano, que

(...) a educação tem, de direito, de ser o instrumento graças ao qual


todo indivíduo, numa sociedade, possa ter acesso a qualquer tipo de
discurso – verbal, não verbal, escrito, oral, erudito, popular. Mas ela
segue, na sua distribuição, as linhas marcadas pelas distâncias,
oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira
política de manter ou modificar a apropriação dos discursos com
os saberes e os poderes que levam junto. (Orlandi, 2004: p. 117,
grifos nossos)

E Orlandi continua, trazendo Foucault (1975), para dizer que este nos “aponta
também para a maneira de exercer a crítica: colocar em questão a nossa vontade de
verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; restaurar a soberania do
significante” (Orlandi, 2004, grifos nossos). É disso que se trata esta dissertação: de
uma crítica a determinadas posições ideologicamente marcadas de passividade diante de
um suposto caráter objetivo da língua, posições essas que se revestem de neutralidade
científica, neutralidade que dicotomiza e opõe sujeito e objeto e que toma a língua como
instrumento para comunicar. Nesse sentido, com o objetivo de mostrar como o quadro
teórico-metodológico de referência selecionado para esta pesquisa se comporta
teoricamente diante das questões da língua e do exercício da crítica, buscou-se
novamente uma contribuição teórica em Orlandi (2009 [1999]), a qual explica, com
relação ao funcionamento da linguagem para a Análise de Discurso, que

Para a Análise de Discurso, não se trata apenas de transmissão de


informação, nem há essa linearidade na disposição dos elementos
da comunicação, como se a mensagem resultasse de um processo
assim serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em
um código e o receptor capta a mensagem, decodificando-a. Na
realidade, a língua não é só um código entre outros, não há essa
separação entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa
sequência em que primeiro um fala e depois o outro decodifica etc.
(...) Desse modo, dizemos que não se trata de transmissão de
informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe
em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história,

22
temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e
produção de sentidos e não meramente transmissão de informações.
São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de
subjetivação, de construção da realidade etc. (...) A linguagem
serve para comunicar e para não comunicar.As relações de
linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito
de sentidos entre locutores. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 21, grifos
nossos)

O problema é que essa tendência à interdição do novo, ou à manutenção do


mesmo, à permanência, acaba assumindo uma direção oposta ao próprio
desenvolvimento das teorias que estudam não apenas a língua(gem), mas também das
que se referem ao campo do discurso. Basta para isso perceber os movimentos que
muitas dessas teorias fizeram – e continuam a fazer – para abarcar o heterogêneo, o
diferente, em suas fundamentações. Fato que aparece de maneira clara quando, por
exemplo, se consideram tanto, globalmente, a Análise de Discurso de base pecheuxtiana
quanto, especificamente, as noções de sujeito – da ideologia e do inconsciente – e de
discurso – construto teórico da disciplina.

No que tange à marginalidade, noção de extrema relevância para esta


dissertação, trata-se de um termo que foi apontado para destacar ao menos dois
possíveis sentidos: primeiro, o de estar à margem daquilo que se constrói como
“centro”; em segundo lugar, o de estar à margem da lei5. Essa “marginalidade”, então,
entra como uma implicação, resultante de uma determinante política de seleção
[exclusão vs. inclusão] que caracteriza a sociedade dividida em classes nas quais são
produzidas – ou das quais resultam – os processos de resistência. E é nesse ponto de
confronto, de disputa, característico de nossa formação social que produz/reproduz a
desigualdade, a opressão e a segregação, que a abordagem se concentrou. Isso porque o
mesmo movimento que faz calar faz falar; o mesmo movimento que oprime cria as

5
No livro intitulado “O desafio de dizer não”, Lagazzi fala sobre a lei e o direito, a partir das
considerações que faz do trabalho de Miaille (1980), que: “(...) a especificidade do Direito atual está na
‘abstração’ e na ‘generalidade’ através das quais ‘a expressão das relações sociais se realiza.’ A lei está
calcada na indeterminação e por isso ela adquire a generalidade necessária para se aplicar a todo e
qualquer cidadão. Teoricamente, ‘a lei deve mostrar-se como estando acima dos interesses pessoais ou
de grupos’ (Orlandi, 1986a), pronta para ser aplicada a todo e qualquer infrator.
‘Todos os homens são iguais perante a lei’. É nessa máxima que se fundamenta o Direito e a Justiça,
levando-nos a acreditar na imparcialidade da jurisprudência, no fim dos privilégios. ‘Todos têm os
mesmos direitos e deveres’. A Justiça sustenta-se, pois, por esse engodo teórico, uma vez que a
desigualdade entre os homens, marcada pelo modo de produção, não se desfaz em nenhum outro
lugar.” (Lagazzi, 1988: p. 41, grifos nossos)

23
bases para a resistência a essa opressão. É precisamente aí que a pesquisa foca sua
atenção6.

Portanto, dois processos foram elencados no sentido de darem conta da


motivação pessoal responsável pela elaboração da proposta de pesquisa: de um lado, a
questão da opressão/resistência enquanto movimentos opostos e, em certa medida,
concomitantes, que, contrários, estão diretamente relacionados à questão dos processos
de identificação e da formação de identidades; de outro, a música, enquanto um som
melodioso, acompanhado ou não de significantes linguísticos, mas repletos de matéria
simbólica sempre sujeitas à interpretação. Eis aí a conjunção de interesses que, ao se
cruzarem, forneceram as bases fundamentais desta pesquisa.

Uma consequência direta de tal “constatação” é que algumas das noções teóricas
mais caras a esta pesquisa são as de sujeito e sentido, formações discursivas e
imaginárias, além das de sujeito-autor, outro, língua fluida e língua imaginária,
político, urbano e periferia.

Logo, pode-se dizer que a presente proposta busca problematizar a construção da


resistência como projeto nas manifestações discursivas produzidas dentro de um
domínio caracterizado como um dos elementos que compõem o movimento hip hop,
isto é, o rap, a partir da observação das marcas significantes linguísticas e do
funcionamento discursivo, tomando, como materialidade, as letras das composições
musicais do grupo Facção Central, especificamente as contidas em um determinado
álbum: A marcha fúnebre prossegue. É nesse sentido que encontram-se apontados, a
seguir, três fatores que justificam a escolha do tema/teoria. Vale lembrar que esses
fatores, embora tenham sido muito significativos, não são os únicos nem constituem o
todo das possibilidades motivadoras.

Em primeiro lugar, trata-se de um anseio pessoal da pesquisadora-autora deste


trabalho de procurar saber se há e, em havendo, como se constrói, a partir da produção
discursiva do rap do/no Brasil – pelo grupo Facção Central –, esse ambiente de protesto
que significa o movimento de que faz parte.
6
Repare que o termo “sua” foi utilizado de modo proposital, a fim de criar uma ambiguidade entre a
retomada do termo pesquisa, como um adjunto adnominal, e a possibilidade de estabelecer uma
interpelação ao leitor: sua atenção = atenção do leitor. Note que hoje, na língua brasileira, já há uma
espécie de ‘equivalência’ entre os pronomes de segunda e de terceira pessoa. Isso faz com que não seja
mais tão produtiva a diferença entre tais pronomes e que os interlocutores já reconheçam nas
desinências de terceira pessoa um chamado, uma interpelação a quem ouve/lê.

24
Depois, trata-se de um interesse em compreender quais marcas linguísticas
(Orlandi, 1996), em suas formas empírica, abstrata (abordagens logicista ou sociologista
da língua) e material (abordagem discursiva), participam das construções semânticas
desse denominado ambiente de protesto, para que se possam apontar alguns dos efeitos
de sentido possíveis produzidos a partir do seu engendramento.

Por fim, e não menos importante, existe a questão do desejo de contribuir para o
preenchimento dessa espécie de lacuna existente nas pesquisas 7 que versam sobre o
material linguístico com o qual se trabalhará, qual seja, o das letras das músicas de
determinado álbum produzido pelo grupo Facção Central, sob a fundamentação teórica
da Análise de Discurso de base pecheuxtiana.

1.1.3 POR QUE A ANÁLISE DE DISCURSO? “ESCOLHENDO” UMA


TEORIA

Assim, os “erros”, as “incompreensões” não são fruto do “mau” uso da língua, mas revelam que faz
parte de sua ordem própria expor-se à história e, com isso, aos “desentendimentos...”

(Baldini, 2009)

Este trabalho, no entanto, não se pretende o primeiro passo dado em direção à


interlocução entre academia e “marginalidade” – aspecto já mencionado aqui –,
compreendendo-se esta como o conjunto de produções discursivas cuja circulação se
restringe a determinados e fechados espaços sociais que não gozam o “privilégio” de
serem legitimados socialmente, ficando restritas a alguns poucos e determinados
espaços, e tendo baixa – ou nenhuma – penetração – ou ressonância, circulação – em
outros. Dessa forma, este estudo não pode ser encarado como o início, origem dessa
interlocução. E isto é preciso ficar claro, afinal, muitas têm sido as tentativas de se
pensar as manifestações, aceitas ou não enquanto arte, da favela e da periferia, sejam
essas tentativas, mais frequentemente, no sentido da reprodução e da permanência de
um determinado sentido tomado como o único possível, sejam elas, menos

7
Interessante observar que apenas uma, dentre todas as pesquisas acadêmicas consultadas, cujas
indicações constam da bibliografia, pesquisas essas que abordam o hip hop, cita o grupo sobre cujas
letras este trabalho se apoia. Trata-se de uma monografia de especialização em História, que versa
sobre a identidade do povo afrodescendente e as formas de resistências por ele construídas, no Brasil.
Entre as formas eleitas pelos autores está justamente o rap: LIPPOLD, Walter G. R., SANTOS, João B. A
música rap e o processo de resistência cultural afro-brasileira. (Especialização). FAPA: Porto Alegre,
2004. Não foram encontradas, durante as buscas bibliográficas, produções que cruzem Facção Central e Análise de
Discurso.

25
frequentemente, com objetivo de produzir novos olhares, novos conhecimentos,
modificando, assim, a relação que se procura estabelecer entre significante e sentido e
promovendo, portanto, a mudança, a ressignificação, a transformação da relação que os
sujeitos estabelecem com os sentidos.

Pode-se dizer, contudo, que se trata apenas de mais uma janela a ser aberta para
o diálogo possível com esse rico mundo de potencialidades, até bastante visitado, mas
pouco “escutado” – e com muito a ser mostrado –, chamado periferia. E periferia não
apenas num sentido geográfico-espacial, local para onde são empurradas as massas
trabalhadoras das cidades, mas também, e principalmente, como uma maneira de
significar os sujeitos e pela qual estes se significam (cf. epígrafe p.3). Isso quer dizer
que não se assumirá aqui uma posição de suposta neutralidade, como se a análise
pudesse ser produzida “fora” da ideologia, de modo a apenas descrever objetivamente o
conteúdo, a partir do qual se pudessem produzir avaliações e julgamentos. Quer dizer
também que se procurou não jogar dentro dos preceitos do maniqueísmo que insiste em
separar, estabilizar e transformar em categorias absolutas e discretas o „bem‟ e o „mal‟,
tomados como critérios de valoração argumentativa. É nesse sentido que se pode
afirmar que não se trata de ser “imparcial” diante de um objeto, como se fosse possível
separar prática discursiva de assujeitamento; muito menos se trata de etiquetar as
produções discursivas com rótulos de „boas‟ ou de „más‟ e advogar em favor da causa
“escolhida”.

Trajano (2010), em sua dissertação de mestrado intitulada Etos na poesia


combatente dos menestréis do rap: por uma análise das imagens discursivas no grito
marginal do hip hop brasileiro, dedica um subcapítulo para discutir a relação entre
centro e periferia, discussão extremamente relevante tanto para aquela quanto para a
presente pesquisa, uma vez que ambas buscam analisar essas produções musicais
caracteristicamente urbanas.

Não satisfeito com a pouca clareza com que é trabalhada a noção de periferia,
Trajano (2010), que se interessou em “investigar os discursos produzidos por
integrantes de uma esfera social determinada: o gueto” (p. 30), foi buscar na teoria da
Análise Institucional, especificamente no pesquisador francês Remi Hess (2001), um
suporte teórico que o permitisse avançar numa conceituação de periferia mais próxima à
necessidade que seu estudo apresentou: a necessidade de discutir a relação entre centro

26
e periferia, para compreender o funcionamento dos discursos produzidos pelos rappers
anteriormente citados, pesquisados por Trajano.

Hess e sua teoria dos impulsos auxiliaram Trajano a elaborar a seguinte noção de
periferia, que utilizaremos nesta dissertação, fazendo, claro, a desterritorialização do
conceito do terreno da análise institucional e reterritorializando-o na análise de discurso.
Nesse sentido, e compreendendo que a teoria com que Trajano trabalha, devido a seu
recorte epistemológico, não faz uso de aparatos teóricos como ideologia e forma-sujeito,
podemos considerar como basilar para as nossas análises a seguinte noção de periferia:

A linha de raciocínio que vimos seguindo até aqui nos autoriza a


chamar de comunidade periférica cada espaço onde as desigualdades
e violências sociais se exibem, tal como relatado nos raps. Por fim,
tratar-se-á de periferia o lugar de reprodução de impulsos, em que
estão inseridas inúmeras comunidades periféricas. Por quê? Simples.
Classificar um polo como centro e outro como periferia é reconhecer
que as tramas do mundo se erigem em dois tipos de lugares, em que
habitam duas espécies de sujeitos, e só. Não nos satisfazemos com
isso. (Trajano, 2010: pp. 40-41, itálicos do autor)

Apontamos esses elementos, para mostrar que a periferia é um exemplo de


noção complexa, que, para ser trabalhada discursivamente, seriam necessárias as
considerações de aspectos bastante relevantes, como a questão dos impulsos que são
“emitidos” em direção ao centro e que modificam/são modificados por esse centro.
Mecanismo que acontece também na periferia, que recebe impulsos do centro, impulsos
esses que modificam e que são modificados pela periferia. Vemos aí uma semelhança
bastante forte com o funcionamento de uma formação discursiva e da forma-sujeito
correspondente: existe uma administração de sentidos possíveis, que autorizam e
legitimam determinadas produções de significação, mas não outras. É aí que a ideologia
se mostra um conceito central (e pouco explorado por Trajano): sem compreendermos
seu funcionamento, não seria possível reconhecermos que existem sentidos que
perpassam formações e que comparecem nos sentidos administrados por outras
formações discursivas. Esses movimentos são descritos por Trajano, mesmo que não
possuam essa “metalinguagem” própria à teoria do discurso.

Tendo tudo isso em mente, pode-se dizer que não se considerará o “conteúdo”
das letras de rap para com elas concordar ou delas discordar, mas que se buscará na
materialidade significante linguística, em sua opacidade semântica, dessas produções as
marcas que permitirão apreender como funcionam discursivamente, quais efeitos de

27
sentido estão sendo engendrados e de que maneira esse engendramento se dá na/para a
ordem do discurso. Para tanto, é preciso não ignorar, em momento algum, o fato de que
essa “margem” é historicamente determinada, que ela não possui contornos fixos e que
só é margem porque há aquilo historicamente construído como centro. Dessa forma,
pode-se compreender que essas fronteiras estão em contínua reconfiguração no espaço
simbólico e que as bases estruturais que sustentam a existência de tal divisão nunca
cessam de funcionar.

As próximas seções desta dissertação trazem quais podem ser consideradas as


marcas da resistência do sujeito nas manifestações discursivas produzidas pelo rap no
Brasil enquanto um projeto de produção de identificações entre sujeitos e sentidos para
o movimento8hip hop. Cabe ressaltar que o tema da resistência, embora um assunto
frequentemente estudado dentro do escopo teórico da Análise de Discurso francesa,
talvez por estar diretamente relacionado ao próprio surgimento desse campo
epistemológico, foi pouco explorado – nas pesquisas bibliográficas realizadas,
encontrou-se apenas uma dissertação que empreendeu um estudo parecido, no qual se
pretendeu contrastar as manifestações artísticas do samba e do rap enquanto
movimentos de resistência engendrados por habitantes das periferias urbanas9 –, quando
se pensa em pesquisas que trazem as produções discursivas do hip hop brasileiro como
materialidade a ser analisada. Mariani (1996) nos diz que, sob a perspectiva discursiva,
de acordo com Pêcheux, a resistência

É a possibilidade de, ao dizer outras palavras no lugar daquelas


prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já
esperados.Éressignificar rituais enunciativos, deslocando processos
interpretativos já existentes, seja dizendo uma palavra por outra (na
forma de um lapso, um equívoco), seja incorporando o non sens, ou
simplesmente não dizendo nada. (Mariani, 1996: p. 26, grifos
nossos)

8
Ou cultura. A escolha de um ou outro termo tem implicações fundamentais para o entendimento da
dinâmica do hip hop. Esses diferentes termos, ‘movimento’ ou ‘cultura’, significam diferentemente o hip
hop para o grupo que os utiliza. Alguns autores debruçaram-se sobre essa diferença, a fim de buscarem
se posicionar a respeito dela. Nesta dissertação, essa questão será discutida no ponto sobre as
condições de produção.
9
Trata-se da seguinte dissertação: REIS, Soraya M. O RAP na mídia : discurso de resistência?(Mestrado)
Universidade de Taubaté, São Paulo: 2007. Sob o quadro teórico da Análise de Discurso, Reis (2007)
toma como objeto empírico as produções discursivas de O Rappa e Racionais MC’s.

28
Após uma abrangente pesquisa bibliográfica entre recentes – e não tão recentes
assim – produções acadêmicas, ficou patente que o tema escolhido é ainda menos
explorado se se levar em conta o cruzamento entre os estudos da resistência nas
produções discursivas do hip hop brasileiro e o corpus sobre o qual a análise incidirá: as
letras das músicas constantes do álbum A marcha fúnebre prossegue, produzido pelo
grupo de rap Facção Central, no ano de 2001.

Portanto, mostra-se importante à atualização das noções teóricas, a serem


trabalhadas na próxima seção, sobretudo daquelas mobilizadas especificamente para
este estudo, haver novas propostas de análise, nas quais estejam incluídos temas já
trabalhados – no caso, as marcas da resistência – em um corpus ainda não visitado – ou
seja, as letras das músicas de um álbum do grupo Facção Central. Nesse sentido, esta
dissertação poderá contribuir não só para o crescimento acadêmico-intelectual dos
envolvidos diretamente na pesquisa – a pesquisadora, sua orientadora, o programa [pós-
graduação stricto sensu] e a linha de pesquisa [teorias do texto, do discurso e da
interação] na qual aquelas estão inseridas –, mas também, quiçá principalmente, para o
aprimoramento da teoria que a fundamenta.

1.1.4 COMO TRABALHAR COM MÚSICA: AS ESPECIFICIDADES E OS


PROCEDIMENTOS DE AJUSTE DO MATERIAL

”A narrativa do rap tem um aspecto de fábula porque coloca o bem contra o mal, um contra o outro, o
que tende a acirrar os ânimos num país desigual como o Brasil. Mas aí o problema é mais social do que
musical.” (Luiz Tatit, )

O trabalho com a música é complexo e mobiliza determinados aspectos que,


para o objetivo que se pretende alcançar nesta pesquisa, não se fizeram pertinentes em
primeira instância. Isso quer dizer que, mesmo considerando a importância desses
elementos para a composição das dinâmicas de produção e de apreciação musical, não
estiveram na linha de frente da discussão elementos como melodia, ritmo, arranjo,
acorde, enfim, nada além das letras e de um ou outro momento na composição em que
são utilizados sons como os de tiro (representados, ou não, na materialidade linguística
sob a forma, por exemplo, de onomatopeias). Nesse sentido, entende-se que a
denominação “composição musical” remete à conjunção de elementos formadores que
ajudam a significar o aspecto musical, mas entende-se igualmente que, nesta discussão,

29
não cabe considerar elementos outros que não as letras que compõem essas músicas. A
consequência direta dessa consideração faz-se perceber a partir da própria designação
que será utilizada neste trabalho sempre que se objetivar remeter ao corpus desta
pesquisa: letra de música (principalmente para diferenciá-la de texto, que é uma outra
materialidade simbólica). Assim, o sintagma nominal preposicionado “letra de música”,
sintagma esse que é produto – e que produz – um recorte necessário à pesquisa,
remeterá, doravante, ao que comumente é designado por “canção” ou “composição
musical” ou “música”...

A fim de que se pudesse trabalhar com um corpus composto por letras de


músicas de um grupo que não possui uma página virtual onde elas estejam publicadas
de forma mais fidedigna e cujos encartes dos álbuns fonográficos não as trazem, foram
dados dois passos distintos e complementares, que serão descritos a seguir:

1. Num primeiro momento, a partir de uma página virtual


(www.terra.com.br/musica) onde ficam hospedadas letras de músicas as mais
diversas, dos mais variados grupos, bandas e artistas solo, e de publicação aberta
a qualquer contribuição que qualquer indivíduo com acesso à rede pode dar –
uma espécie de wikipedia do mundo musical – e livre da necessidade de
copyright, foram conseguidas as “bases” das letras de música com as quais se
trabalhou nesta pesquisa.
2. Depois, com essas letras à mão, compararam-se os textos publicados no referido
sítio virtual com o que era pronunciado nas músicas, ou seja, procedeu-se a um
cotejo entre o que estava escrito e o que se podia ouvir no álbum gravado pelo
grupo.

A esses dois momentos distintos e complementares para a obtenção das letras de


música, seguiram-se outros dois, já concernentes ao tratamento que se fez necessário
para a sistematização do trabalho. É o que se segue:

1. Com as letras já aparentemente “conferindo” com o que o grupo canta nas


músicas, e com base, tanto na lógica gramatical de funcionamento da pontuação,
quanto das pausas e entonações demonstradas no que se podia ouvir das
canções, procedeu-se à versificação dessas letras. Isso quer dizer que, embora a
composição musical não coincida com a forma de um poema, operou-se uma

30
“poemificação” dessas letras, de modo a possibilitar a observação dessas, a
partir de versos e estrofes. Optamos por esse viés, porque
2. consideramos que a música, enquanto materialidade, está mais próxima à forma
de um poema (métrica, ritmo etc.) do que da prosa.
3. Uma vez estando em formato de poemas, com uma pontuação que procura
representar, na escrita, os aspectos gramaticalmente tomados como
“extralinguísticos”, tais como entonação, pausa breve, pausa longa, exclamação,
interrogação etc. pertencentes ao nível da oralidade, buscou-se proceder a uma
espécie de formatação dos significantes, sempre privilegiando aquilo que é
possível ser discernido ao ouvir as músicas. Mas, ao contrário do que propunha
Saussure, um elemento sonoro pode se sobrepor a outro, o que pode produzir um
terceiro significante totalmente distinto daqueles que o originaram. Isso tem
como consequência direta o fato de que pode haver discrepância de significantes
sonoros e escritos, o que procurei diminuir ao máximo por meio de uma
incansável conferência entre aquilo que escutava e aquilo que estava fixado pela
escrita de outrem. Ou seja: com base no que era cantado pelos intérpretes nas
músicas gravadas – e depois da versificação construída aqui –, houve uma
tentativa de aproximar o “cantado” do “escrito”. Isto significa, também, que os
chamados “erros gramaticais”, como as ausências de concordância nominal ou
verbal, não foram “consertados”, uma vez que sua não consideração significaria
um apagamento dessas marcas significantes, o que traria consequências
indesejáveis ao propósito desta pesquisa: trabalhar as formas de resistência
engendradas a partir das produções discursivas do grupo Facção Central, no
álbum A marcha fúnebre prossegue.

A música é um espaço privilegiado de produção de polissemia. Isso porque é


constituída de sons, verbais ou não, e porque esses sons precisam ser interpretados
(injunção à interpretação diante de um objeto simbólico). Saussure, de acordo com o
Curso de Linguística Geral (2006 [1916]), estabelece, como segundo princípio da
natureza do signo linguístico, que, “por oposição aos significantes visuais (...), os
significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se
apresentam um após o outro; formam uma cadeia.” Ao estabelecer tal princípio,
Saussure nega a possibilidade de polissemia ao significante, tomado em si mesmo –
evidentemente, colocando-se de forma coerente com o corte que precisou promover a

31
fim de constituir seu objeto, a língua, e a disciplina que se encarrega de seu estudo, a
linguística. Além disso, ele silencia a possibilidade de formação de novos significantes
a partir da “confusão” entre vocábulos (significantes acústicos). Diz-nos Cavaliere
(2005), a respeito dos vocábulos fonológicos, num capítulo destinado à prosódia –
“parte da fonologia (...) referente aos caracteres da emissão vocal que se acrescentam à
articulação propriamente dita dos sons da fala”:

Um erro ortográfico muito comum nas classes de primeiras letras


diz respeito à grafia “sair derrepente”, por “sair de repente”, ou
“telefone condefeito”, por “telefone com defeito”. O equívoco
denuncia um fato inequívoco: para o falante, certos grupos de
força, assim entendidos como conjuntos de palavras que se
pronunciam sem pausa, são interpretados como se fossem um
único vocábulo. (Câmara Jr., s.d.: p. 322 apud Cavaliere, 2005: p.
132, grifos nossos)

“Erro ortográfico”, “equívoco”, “interpretados”. É muito relevante olharmos


bem de perto esses significantes constantes da citação acima, porque não apenas eles,
mas toda a formulação está estreitamente relacionada ao que explicamos anteriormente:
trata-se de um gesto de interpretação colocar as músicas do álbum A marcha fúnebre
prossegue em forma de versos, ou, utilizando-nos da nomenclatura que optamos por
adotar durante a pesquisa, em forma de „letra de música‟. Além disso, “o múltiplo e o
incompleto se articulam materialmente: a falha e a pluralidade se tocam e são função do
não fechamento do simbólico” (Orlandi, 1995). E os sons são símbolos. As palavras
escritas também. Diante deles, nós fomos impelidos a interpretar, a conferir sentido ao
que ouvia/lia, sujeitando-nos aos possíveis “erros” e “equívocos” suscitados pelos
“vocábulos fonológicos” – que, ao contrário do que postula a afirmação de Cavaliere,
segue produzindo equívocos mesmo após esse momento [escolar?] das “primeiras
letras” –, a fim de que pudéssemos tornar acessível o material com o qual decidi
trabalhar, ou seja, o corpus da pesquisa. Foi a partir desse material, resultado dos
procedimentos descritos anteriormente, que conduzi as análises.

Orlandi (1995) afirma, sobre o trabalho do analista de discurso, que

(...) a AD trabalha não só com as formas abstratas mas com as formas


materiais da linguagem. E todo processo de produção de sentidos se
constitui em uma materialidade que lhe é própria. Assim, a
significância não se estabelece na indiferença dos materiais que a
constituem, ao contrário, é na prática material significante que os
sentidos se atualizam, ganham corpo, significando particularmente.
(idem, 1995: p. 35, grifos nossos)

32
e esse aspecto dos processos de significação e de sua intrínseca relação com o material
que o constitui também é necessário de se frisar, uma vez que esta pesquisa se insere no
escopo teórico da Análise de Discurso francesa.

1.2 SOBRE O CAMINHO A SER TRILHADO

Não é possível organizar, prever e planejar tudo – muito do que “escolhemos” resulta de injunções
históricas e inconscientes as quais, às vezes, apenas no “só-depois” conseguimos fazer a leitura.
(Mariani, 1996)

Este projeto, além de apontar para o futuro, lança-se também ao passado, porque
possui uma história, ou, utilizando-nos de um conceito bastante caro à Análise de
Discurso, este projeto possui uma memória. Ele não nasce da simples necessidade de
cumprir uma tarefa obrigatória para obtenção de um aval de qualidade para o
prosseguimento do curso de pós-graduação stricto sensu em Estudos de Linguagem da
Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense. Considerando-se aqui como
memória do projeto o conjunto de situações acadêmicas e pessoais que contribuiu para o
seu surgimento antes mesmo que a ele se pudesse nomear dissertação.

Ele é o resultado de vários fatores que aqui serão entendidos como condições de
produção. Essas condições são precisamente o contato com a teoria do discurso que deu
base à pesquisa – análise de discurso de linha francesa –, e um grande interesse – alguns
diriam fixação – pelo movimento em discussão, o hip hop brasileiro, especificamente,
pelo rap.

O primeiro se deu em circunstâncias normais de aprendizagem, numa aula sobre


teorias linguísticas, no segundo ano do curso de graduação na Faculdade de Letras desta
Instituição. Tal contato com essa teoria do discurso que tem como base o materialismo
histórico-dialético – originado da leitura que o filósofo Michel Pêcheux, personagem
conhecido como o formulador dos primeiros trabalhos em Análise de Discurso, em
1967, fez de Louis Althusser –, apresentou alguns efeitos de resposta para anseios até
então bastante silenciados, reprimidos e secundarizados, principalmente devido às
insistentes tentativas de categorização objetiva e completa da língua, presentes na
grande maioria dos estudos da linguagem, que, tomando a língua enquanto sistema

33
estável, não abarcavam teoricamente os lapsos, os equívocos10, enfim, as chamadas
“irregularidades” – que a Análise de Discurso compreende como constitutivas das
línguas –, entendendo-os, assim, como „erros‟ e „ruídos‟ que atrapalham a
„comunicação‟.

É por essa razão que, quando se apresentaram alguns textos introdutórios sobre a
Análise de Discurso durante a aula de Linguística III (teorias lingüísticas), certas
questões acerca do funcionamento da língua(gem) se esclareceram e muitas, mas muitas
outras surgiram. E, como já dizia Paulo Freire (1996), filósofo e educador que pensava a
Educação no Brasil do século XX a partir do materialismo histórico-dialético, em seu
livro Pedagogia da Autonomia, é preciso transformar a curiosidade ingênua em
curiosidade epistemológica. E é isso o que se pretende alcançar: dar consequência
científica a uma originalmente curiosidade ingênua.

O segundo contato, decisivo para a escolha do tema desta pesquisa, foi com
alguns produtos do movimento – ou cultura – hip hop brasileiro. Essa relação de maior
proximidade com o hip hop foi proporcionada por uma pessoa bastante próxima, que já
tinha a sua própria história – e sua memória – com o movimento e que se dedicou a
apresentar os discursos presentes nas letras de rap, dentre outros, dos grupos Racionais
MC‟s, G.O.G., Face da Morte, MV Bill e Facção Central. Este último grupo é,
inclusive, a fonte material das práticas discursivas que serão analisadas, sobretudo
devido a dois motivos principais: por um lado, à sua característica de procurar “dizer
exatamente o que acontece” – embora não seja essa a maneira de a AD compreender a
língua –; por outro, ao fato de que, em pleno século XX, num Brasil pós-ditadura militar
e com quase doze anos de vigência da constituição mais progressista de que se tem
notícia na história do país, a Carta Magna de 1988, esse mesmo grupo ter sido indiciado
por incitação ao crime, pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (GAECO),
instituição responsável pelo combate ao crime organizado, e proibido de veicular o clipe
nas emissoras de televisão – vale lembrar que, no Brasil, as emissoras são
concessionárias do Estado – de uma de suas composições, a música Isso aqui é uma
guerra. Ou seja, de o grupo ter “sentido na pele” o peso da mão do Estado nesse atual
estágio da luta de classes no Brasil.

10
Entendido como o enunciado que é simultaneamente ele mesmo e outro. Essa noção de equívoco
está ligada à de incompletude, constitutiva das línguas, com base na qual se afirma que “tudo não se
pode dizer”. (J.-C. Milner, 1987: 19)

34
1.2.1 DA DEFINIÇÃO DO TEMA E DA TEORIA ÀS PRIMEIRAS
HIPÓTESES DE PESQUISA

“Os primeiros quinze minutos de fama chegaram no ano 2000, quando a Justiça paulista censurou a
exibição do videoclipe Isso Aqui é uma Guerra, na MTV, que acatou a censura. A música está no terceiro
CD, Versos Sangrentos, de 1999.”
(Luiz Maklouf Carvalho, 2007)

A hipótese que norteou o primeiro momento da pesquisa, momento esse que teve
seu ápice na elaboração do projeto de dissertação, foi a de que as letras de rap
funcionam, sim, como discurso de resistência, mas que, como todo movimento histórico
inscrito na língua, essa resistência não se dá de maneira uniforme, nem sem
contradições. Enquanto a resistência na história se faz com lutas, guerras, revoltas, na
língua ela se dá, sobretudo, na capacidade de dizer o que se procura silenciar, em
assumir novas posições e em resgatar as posições já desautorizadas para restaurar a
legitimidade dos outros sentidos possíveis que são recolocados em disputa, na cena do
jogo das relações de força (poder).

Porém, após esse projeto inicial, a pesquisa continuou e novas hipóteses


surgiram, não para negar nem desconsiderar a anterior, mas para a ela darem
prosseguimento teórico. Portanto, não se pode dizer que a resistência, enquanto
movimento inscrito na língua e na história, parou de produzir falhas e tomou o aspecto
de uma uniformidade. Na realidade, as hipóteses que serão descritas no próximo item
tomam esta como princípio e seguem em direção a uma forma de complementá-la.
Deixar esse ponto claro é fundamental para “avançar” (n)a pesquisa.

1.2.2 NOVAS HIPÓTESES SURGEM PELO CAMINHO

Nas origens do hip hop, o grafite, um dos pilares do movimento, era uma arte que sobrevivia na
ilegalidade e chegou a se tornar uma das suas maiores inspirações. Essa condição de fora da lei
contribuiu, entre tantas outras, para reconhecer no hip hop sua contingente marginalidade.
(Araújo, 2003)

Como o próprio título do item anterior sugere, aquela foi a hipótese da qual se
partiu no início dos estudos que se propôs empreender. Após alguns meses de pesquisa,
esse ponto de partida deu lugar a novas formulações. Uma delas é a de que o sujeito
enunciador, estando submetido ao funcionamento ideológico e à ilusão de completude

35
do dizer, produz um movimento de resistência utilizando-se de várias estratégias
linguístico-discursivas no sentido de deslocar o que representa, em sua própria produção
discursiva, aquilo que, nas/pelas práticas discursivas de seu outro, é construído como
evidência. Em outras palavras, esse sujeito enunciador – o rapper – resiste deslocando
os gestos de significação que tentam literalizar o sentido social construído sobre o
favelado.

Outras duas hipóteses podem ser levantadas, como uma espécie de consequência
da primeira: de um lado, com Pêcheux (1978), pode-se pensar na figura do sujeito
enunciador como ocupando o lugar de um porta-voz do favelado; de outro, com Orlandi
(2008), é possível considerar que, apesar de estar inscrito num espaço discursivo em que
predominaria a polêmica, em sua relação tensa entre paráfrase e polissemia (entre o
mesmo e o diferente), se se tomar a proposta de questionamento como básica para o
movimento hip hop, o sujeito autor procura conter a significação de modo a estabilizar o
sentido, o que acaba por instaurar um espaço discursivo autoritário. Cabe lembrar que
não se pensa em discurso polêmico e em discurso autoritário enquanto tipos estanques e
discretos, mas enquanto funcionamentos em relação de tendência, assim, tratar-se-ia de
um discurso que tende para o autoritário (ou seja, à contenção da reversibilidade).

Corroborando para a sustentação das hipóteses acima elencadas, encontram-se


enumeradas, abaixo, onze formas materiais utilizadas pelo grupo Facção Central,
enquanto sujeitos que resistem, a partir de observação cuidadosa da materialidade
linguística das letras pertencentes ao álbum A marcha fúnebre prossegue:

1. Existência de um excesso de estruturas que funcionam como negação /


desacordo e/ou produzem efeito de privação/ausência ou encadeiam ideias de
causa/consequência (conjunções como “mas”, “porque”, “por isso”, “nem” e
advérbios como “não”);
2. Há uma clara saturação no preenchimento gramatical do sujeito. Pode-se pensar
na seguinte proporção: um sujeito gramaticalmente indeterminado ou inexistente
cujo preenchimento discursivo é acessível (ou seja, sujeito que pode ser
preenchido discursivamente) para cada nove sujeitos gramaticais simples
(preenchidos sintaticamente);

36
3. Uso frequente, ao final das letras, do advérbio “infelizmente”, como tentativa de
produzir um efeito de insatisfação do sujeito no que tange à certeza de um final
trágico para quem trilha o mundo do crime;
4. Funcionamento discursivo do “é só”, que produz tanto um efeito de exclusão e
de segregação quanto o de um sujeito que não existe gramaticalmente;
5. A expressão reiteradamente utilizada, nas diversas letras, “uma pá de”, que
funciona como um adjunto adnominal indicador de grande quantidade (tal como
“um monte de”, “uma porção de”, “muitos”, “inúmeros”);
6. A produção de efeitos de exagero a partir de construções hiperbólicas. Pode-se
pensar nesse excesso como uma forma de se opor simbolicamente à ausência de
mínimas condições materiais objetivas necessárias a uma vida “digna”;
7. Inserção de formulações que remetem a enunciados de certa formação discursiva
e que vêm atualizadas no fio discursivo de outra FD. Ou seja, numa letra de
música que pretende representar uma cena de sequestro relâmpago, encontram-
se as posições do sequestrador em confronto com as do sequestrado. Observa-se
um exemplo dessa antecipação da posição do outro (no caso, da posição do
sequestrado) pelo sujeito-rapper (enquanto porta-voz do favelado), nas seguintes
formulações: “Não nego minha culpa no menino faminto, / Em vez de cesta
básica, comprei relógio suíço. / Contratei vigia, lancei carro blindado, / Mas,
se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou culpado.”)
8. Produção de um efeito em que um sujeito mata simbolicamente, ao som de tiros
(onomatopeias ou mesmo a reprodução sonora do tiro), o outro;
9. O significante “aqui” funciona gramaticalmente ora como pronome pessoal de
primeira pessoa (do singular ou do plural), ora como advérbio locativo, ora
como objeto dativo (de atribuição, p. e., “para nós”);
10. “Ceder” quase que exclusivamente a voz ao favelado (seja ele um traficante, um
menino-soldado do tráfico, um viciado, um trabalhador qualquer uma mãe...),
que pode se expressar na voz ativa; e transformar aquele que tem “voz social” –
o empresário rico, o político, o playboy, a madameetc. – em objeto ou em
ouvinte-virtual (aquele a quem o sujeito enunciador se dirige).
11. Uso recorrente de expressões que objetivam produzir um efeito de insulto e/ou
de xingamento, efeito esse que está diretamente relacionado a quem ouve/lê.

37
Essas formas materiais parecem funcionar, na produção discursiva do grupo de
rap Facção Central, como modos de resistir às políticas de silenciamento às quais estão
submetidos tanto os seus membros (do grupo ora estudado) quanto aqueles aos quais
esses procuram representar quando tomam a palavra. Mas, ao tomar a palavra, esse
sujeito porta-voz da favela/periferia, porque não há ritual sem falha, ou seja, porque sua
identificação com os favelados não é plena e não há reversibilidade de lugares sociais,
acaba atualizando formulações de enunciados que não têm sua matriz na formação
discursiva da qual procura retirar seus sentidos. Vale lembrar que, no que concerne ao
funcionamento da “interpelação ideológica dos indivíduos em sujeitos” descrito por
Pêcheux (1990 [1980]), que relaciona essa interpelação ao funcionamento metafórico,
essencial para o movimento histórico dos sentidos,

(...) levar até as últimas consequências a interpelação ideológica como


ritual supõe o reconhecimento de que não há ritual sem falha,
desmaio ou rachadura: “uma palavra por outra” é uma definição (um
pouco restritiva) da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual
chega a se quebrar no lapso ou no ato falho. (Pêcheux, 1990 [1980]:
p. 17, grifo nosso, itálico do autor)

Nesse sentido, há, no próprio movimento de produção do novo, algo que se


mantém, que se estabiliza, e essa estabilidade se caracteriza, no fio discursivo das letras
de música em questão, pela assunção de um imaginário com o qual se propõe
confrontar. Colocamos exemplos dessas (des)estabilizações de (efeitos de) sentido no
terceiro capítulo, que fora dedicado às análises.

1.2.3 DISCUTINDO OS ANTIGOS E OS NOVOS OBJETIVOS

É na linguagem que o sujeito se constitui e é também nela que ele deixa as marcas desse processo
ideológico.
(Lagazzi, 1987)

O hip hop, um movimento “nascido na Jamaica e „criado‟ nos Estados


Unidos"11, aparece nas terras brasileiras por volta da década de 80 e tem seu
crescimento e sua circulação circunscritas sobretudo às periferias das grandes

11
Expressão utilizada por Heloísa Buarque de Holanda, coordenadora do Programa Avançado de Cultura
Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seu artigo A política do hip hop nas
favelas brasileiras (s.d., disponível em <<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/Le%20monde%20-
%20%20Heloisa%20Buarque.pdf>>).

38
metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo. Esse movimento de raízes negras – existe
ainda uma discussão interna dos membros que já extravasou para as discussões
acadêmicas e que diz respeito à caracterização dessa prática social enquanto cultura ou
enquanto movimento – é caracteristicamente urbano. Aqui se trabalhou com a
designação de „movimento‟ e, no momento de discutir as condições de produção
apontaremos o porquê, movimento esse que inclui expressões em artes plásticas
(graffiti); em dança (break); e em música (rap, sigla da língua inglesa que, em língua
brasileira, significa ritmo e poesia), com o mixador e apresentador, MC (outra sigla da
língua inglesa que, em língua brasileira, significa Mestre de Cerimômia).

No Brasil, um dos representantes mais conhecidos e mais tradicionais, no que


tange às questões de identidade e à combatividade características dos protestos em
forma de canção nascidos na Jamaica, é o Facção Central, cuja formação inicial
aconteceu em 1989 (ainda na década em que o movimento desembarcou no Brasil), em
Glicéria, zona central de São Paulo. A história do grupo está no capítulo sobre as
condições de produção. Mas cabe antecipar que Glicéria é uma região extremamente
pobre – caracterizada pela ausência das políticas públicas básicas do Estado, o que
significa condições indignas de sobrevivência –, de onde o grupo, cujos membros são
moradores da área, não saiu mesmo depois da “fama”, escolha comum a diversas
personalidades (artistas, atletas etc.) de origem favelada.

Interessante é observar, sobre a questão das favelas, o aspecto de que esses


espaços geográficos – e culturais – estão conquistando cada vez mais olhares para as
suas condições, sendo elas, ou não, postas como protagonistas nesse processo de
chamada à atenção da sociedade não-favelada. Este estudo, nesse sentido, pode apontar
para uma nova forma de compreender os movimentos de constituição da discursividade
sobre si – a favela – e sobre o seu outro, a não-favela, assim como pensar de que forma
se dá a construção do(s) processo(s) de identificação pelo morador dessas localidades, o
favelado, frente aos desafios de sobreviver.

E, para que esse objetivo seja alcançado, é preciso levar em conta “uma proposta
em que o político e o simbólico se confrontam” (Orlandi, 2002). É necessário lançar
mão de uma abordagem teórica que considere a história, que procure desnaturalizar os
sentidos que se tendem a homogeneizar, sob a facilidade/fragilidade da evidência. É
preciso haver um olhar que contemple a língua enquanto espaço intrinsecamente

39
relacionado a disputas ideológicas e inconscientes. Necessário se faz considerar as
relações de força entre posições, as contradições entre o lugar de onde se enuncia e a
posição que se defende. E isso só é possível se se compreender que a exterioridade é
constitutiva da própria língua. É da história que surgem os sentidos. É a interpelação
pela ideologia, enquanto estrutura-funcionamento histórico, que constitui o sujeito,
iludindo-o de que ele é sempre já-sujeito e origem de seu dizer e dos sentidos. Essas são
compreensões basilares para o trabalho com o discurso do rap que aqui se propõe.

Vale ressaltar, também, o fato de que o pesquisador tem uma obrigação com a
sociedade, qual seja a de agregar valor social à sua pesquisa, devolvendo-a, com seus
resultados menos ou mais conclusivos, à sociedade, para que esses novos
conhecimentos possam promover maior desenvolvimento nos mais diversos campos da
vida em sociedade. Nesse sentido, a pesquisa que ora se empreende poderá ser utilizada
como mais uma nova forma de abordar um tema tão caro à população brasileira: a
construção da identidade do favelado frente ao projeto de homogeneização cultural, por
meio da cultura de massas. Resgatar do silêncio que a massificação da cultura promove
o projeto de resistência – bem ou mal sucedido – do movimento hip hop significa
resgatar o projeto de construção identitária tão intimamente relacionada a ele. O
movimento quer ter voz. Não para cantar as coisas bonitas que passam na novela das
seis da Rede Globo. Mas para criar um espaço de discussão política sobre assuntos
extremamente delicados das perspectivas de vida – quiçá de sobrevivência – dos
moradores da favela. É esse o papel da academia, enquanto instituição da pluralidade de
pensamento: dar voz àqueles que são calados cotidianamente e devolver a possibilidade
de ele pensar, sob novas perspectivas, a sua própria condição / construção social. A
respeito do papel do pesquisador e do professor de escola, diz Orlandi:

O que se tem proposto, em geral, em termos de escola, tem como


ponto de partida e de chegada a classe média.

(...)

Não penso que se trata – para a solução desse problema – de um


simples esforço de cooperação. Trata-se de uma luta social que
não se resolve através de programas escolares produzidos pela
classe média. Com a resposta da educação democrática, pode-se
dizer que as classes populares estão na escola. No entanto, o direito
que elas têm é o de aprender formas legítimas da cultura
dominante. E as suas formas como ficam? Têm ficado como
alternativas. Alternativas para quem? Não para as classes

40
populares, pois, para elas, essas formas não são alternativas, são
principal, isto é, são a sua própria identidade cultural. (Orlandi, 1996:
pp. 92-93, grifos nossos)

Por isso, e considerando-se que o trabalho científico precisa de se imbuir de um


sentido social, que deve contribuir para o seu próprio avanço, bem como para o
desenvolvimento da sociedade; e considerando-se tudo o que foi dito nesta proposta até
agora, pode-se perceber quais as importâncias desta: colocar em questão o imaginário
construído – e em constante (re)construção – sobre o movimento hip hop tanto para o
favelado quanto para seu outro, o não favelado, com vistas à promoção de uma
consequente ampliação não só do horizonte de valores humanos e culturais do
pesquisador em sua, no mínimo, dupla face de pesquisador/educador, mas também do
compromisso da pesquisa científica com a produção e circulação de conhecimentos
necessários à transformação das práticas sociais.

Nesse sentido é que os objetivos pensados, quando da elaboração do projeto de


dissertação – portanto, ainda numa fase inicial do trabalho –, possuíam o intuito de
fundamentar a pesquisa. Assim, a discussão que se produziu naquele momento é assaz
importante para que se possa observar o “avanço” que o aprofundamento deste estudo
representa. E é devido a esse fato que apresentaremos a seguir os referidos objetivos,
bem como mostraremos os “novos” objetivos aos quais se pôde chegar a partir da
continuidade dos estudos.

À época da confecção do projeto de dissertação, elaboraram-se três objetivos


gerais e dois específicos: Os gerais eram: a) resgatar a memória do hip hop no Brasil; b)
resgatar a memória da resistência no Brasil; e c) estabelecer relações entre movimento
hip hop no Brasil e resistência. Os específicos, por outro lado, dividiam-se em: a)
analisar e compreender a construção do imaginário sobre o movimento hip hop no
Brasil; e b) analisar as marcas linguísticas que constituem o discurso da resistência.

Num primeiro olhar, já se podem perceber alguns problemas nesses objetivos,


sobretudo quando se levam em consideração as limitações espacial e temporal relativas
à produção de uma dissertação de mestrado: um estudo consequente de questões como
memória da resistência no Brasil e memória do movimento hip hop no Brasil
demandam muita pesquisa – sobretudo social e antropológica – que não são possíveis
desenvolver neste momento, neste espaço. Isso implica a inviabilidade de se alcançar o
terceiro objetivo geral: estabelecer uma relação entre hip hop e resistência.

41
Contudo, no que concerne aos dois específicos, há uma grande possibilidade de
esses continuarem a representar os objetivos desta pesquisa, embora não sem um ajuste
essencial a um deles: “o imaginário sobre o movimento hip hop no Brasil” deve dar
lugar a “o imaginário sobre o rap no Brasil”. Isso porque o movimento hip hop,
conforme bem frisado anteriormente, é um conjunto de quatro elementos (break dance,
graffiti, rap e mastersofceremony [MCs]), três dos quais (break dance, graffiti e másters
ofceremony [MCs]) não serão objeto deste trabalho, embora sirvam como “material de
apoio” para a compreensão das condições de produção do discurso do rap. Outro
detalhe, fundamental para que se pudesse pensar nesses objetivos, diz respeito à questão
do locativo no Brasil: pensar o rap como uma produção nacional, implica tanto
considerar necessariamente as diversificadas produções, nos diferentes cantos deste
país, rotuladas sob a mesma etiqueta de rap nacional quanto as diferenças e
convergências que podem ser observadas entre as produções que se realizam nesse país
e as de outro(s) país(es). Novamente há um impasse: não existe forma de dar a devida
atenção a um assunto tão complexo quando a questão central da pesquisa que aqui se
propõe desenvolver não é essa. Nesse sentido, uma nova delimitação necessitou ser
elaborada: não se trata de rap no Brasil, mas de rap do grupo Facção Central. Dessa
forma, as contribuições sobre o “comportamento social” do rap no Brasil estão restritos
a alguns apontamentos centrais para a discussão acerca do estabelecimento do rap neste
país, assim como uma “fonte” de produções à qual se possam remeter as produções do
grupo objeto deste estudo (Facção Central).

Com todas essas considerações feitas, pode-se passar para a descrição dos novos
objetivos, a saber:

1. Geral:
a. Verificar o funcionamento de estruturas na/da língua imaginária e
na/da língua fluida, tais como o funcionamento discursivo das marcas
“não”,“mas / só (que)”, “se”, “pois / porque”.
b. Distinguir ordem e organização da língua no modo de funcionamento
discursivo das letras do álbum em questão (A marcha fúnebre
prossegue)
2. Específicos:

42
a. Pensar os processos de produção de identificação do sujeito a partir
das marcas significantes presentes no fio discursivo das letras de rap
do grupo Facção Central;
b. Relacionar essas marcas significantes de produção de identificações
do sujeito com as formações discursivas e com a resistência ao
“preenchimento” do lugar social reservado a esse sujeito no
imaginário construído socialmente.

Portanto, partindo da análise desses processos de produção de identificação do


sujeito com determinados sentidos e da relação que estes mantêm com determinadas
formações discursivas e com o imaginário construído pela mídia, poder-se-á contribuir
teoricamente tanto para a Análise de Discurso de escola francesa, quanto para a
ressignificação de estruturas gramaticais como as de sujeito inexistente.

Mariani (2007), em um texto que tematiza a questão do preconceito linguístico


segundo uma perspectiva discursiva, contribui diretamente para o modo como se pode
pensar essa “relação vacilante” (idem) de identificação – ou de não-identificação – do
sujeito falante com a língua nacional, relação essa de extrema relevância para a
discussão que ora se trava, pois a partir dela se podem tecer considerações acerca da
resistência à língua, na língua, por exemplo.

Nesse sentido, mostraremos, no momento das análises, que existe uma relação
vacilante tanto entre o sujeito e a língua quanto entre esse mesmo sujeito e as
instituições responsáveis pelo controle e manutenção dessa língua, como é, por
exemplo, o caso da educação. Mostraremos que a escola e a educação, como um todo,
sofrem um deslocamento considerável de sentido a partir da posição ocupada pelo grupo
enquanto porta-voz da favela/periferia, mas como, ao mesmo tempo, permanece um fio
central que liga os diferentes sentidos socialmente creditados a esses significantes: o de
transmissão de conhecimento. Como já citado anteriormente, isso significa que o
mesmo (ou seja, a transmissão de saberes) contém o diferente (a que saberes essa
transmissão se relaciona).

43
2. QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

A Análise do Discurso que reinscreve suas questões a cada prática analítica, em um movimento de
compreensão da teoria em sua relação à prática.
(Baalbaki, 2010)

Muito já se mencionou, neste início de dissertação, acerca do quadro teórico-


metodológico que fundamenta esta pesquisa. Contudo, faz-se necessário conduzir uma
discussão mais detalhada sobre a contribuição teórica representada pelos estudos da
Análise de Discurso de escola francesa, enquanto espaço de ressignificações
epistemológicas nos campos dos estudos de linguagem e das ditas ciências humanas e
sociais – espaço esse que tem, na figura do filósofo francês M. Pêcheux (ou Thomas
Hebert, seu pseudônimo, segundo o também filósofo P. Henry (1997: 13)), seu
“formulador original”, e na figura da professora brasileira da Universidade Estadual de
Campinas, E. Orlandi, sua “formuladora inaugural” –, a fim de que, a partir das noções
teóricas dessa “disciplina de entremeio” (Orlandi, 2009 [1999]) mobilizadas, se possam
alcançar os objetivos apresentados.

2.1 A ANÁLISE DE DISCURSO “DA ESCOLA FRANCESA”:


HISTÓRIA, SENTIDO E LINGUAGEM NA HISTÓRIA DOS
ESTUDOS DA LINGUAGEM

(...) a historicidade – e não a história – é o modo de entrar no discursivo, não se trata da cronologia ou
evolução, mas da produção simbólica ininterrupta que organiza, na linguagem, sentidos para as relações
de poder presentes em uma formação social, produção esta sempre afetada pela memória do dizer.
(Moreira, 2009)

O referencial teórico que fundamenta a presente pesquisa é, como já fora dito, o


da Análise de Discurso da escola francesa, campo em que se destacam enquanto figuras
“inaugurais”, conforme mencionado, os estudiosos Michel Pêcheux (França) e
EniOrlandi (Brasil), mas cujo desenvolvimento apenas se abre a partir deles; a
ancoragem metodológica será a qualitativa, ou seja, aquela que se fundamenta em
estudos de características descritivas, a partir de pesquisas bibliográficas e documentais.

Situada num corte epistemológico que articula linguística, materialismo


histórico-dialético e teoria do discurso, tudo isso atravessado por uma teoria da

44
subjetividade de natureza psicanalítica12, a Análise de Discurso se propõe a estudar a
língua onde esta funciona: no movimento da história. É por esse motivo que o objeto da
análise de discurso é, como o próprio nome já diz, o discurso. Para alcançar essa meta, a
teoria do discurso, inaugurada em 1969, em meio à efervescência dos estudos
estruturalistas, coloca em jogo as noções de ideologia e de inconsciente. Mas não o faz
num movimento de simples recorta-e-cola. A fim de que essa disciplina do entremeio se
constituísse, foi preciso considerar as contradições entre esses campos – materialismo
histórico-dialético, psicanálise e lingüística – e mesmo as contradições internas que cada
um carrega. Com relação a essas características da Análise de Discurso, afirma Orlandi:

[...] essa nova forma de conhecimento coloca questões para a


Linguística, interpelando-a pela historicidade que ela apaga, do
mesmo modo que coloca questões para as Ciências Sociais,
interrogando a transparência da linguagem sobre a qual se
assentam. Dessa maneira, os estudos discursivos visam pensar o
sentido dimensionado no tempo e no espaço das práticas do
homem, descentrando a noção de sujeito e relativizando a
autonomia do objeto da Linguística. (Orlandi, 2003: p. 16, grifos
nossos)

Mas não basta dizer que o objeto teórico da Análise de Discurso é o discurso, se
não se compreender como a Análise de Discurso desterritorializa esse conceito para
produzir um objeto próprio à teoria. O discurso, para essa disciplina, é efeito de sentido
entre locutores (Pêcheux, 1969). E o sujeito formula a partir de um lugar social,
identificando-se com determinada posição ideológica, ocupando certa posição-sujeito
referente a uma determinada formação discursiva. Importante considerar que, para se
constituir sujeito, o indivíduo é interpelado pela ideologia. Essa ideologia, colocada em
prática por meio das formações ideológicas, materializam-se no discurso produzindo
sentidos nas diversas formações discursivas. Fica mais fácil compreender esse jogo de
relações se se tomar como base uma das constatações fundamentais da Análise de
Discurso: o discurso é a materialidade específica da ideologia, e a língua é a
materialidade específica do discurso (Orlandi, 1999).

12
PÊCHEUX E FUCHS apud MOREIRA, 2009

45
É necessário, ainda, esclarecer alguns pontos sobre o sujeito e sua constituição:
está dissimulado para esse sujeito o funcionamento do histórico imbricado ao
funcionamento dos processos de produção dos sentidos, com os quais esse sujeito se
identifica, sob a ilusão de ser ele próprio a origem de seu dizer e sob a ilusão da
evidência dos sentidos. As estruturas-funcionamentos, ideologia e inconsciente, atuam
duplamente, fazendo funcionar dois esquecimentos que são a base desse sujeito: o
esquecimento número um, que diz respeito à ilusão do sujeito enquanto origem de si
mesmo e que produz um efeito de evidência segundo o qual “eu sou eu”, em que o
sujeito se reconhece enquanto origem de si mesmo, podendo, portanto, assumir um
lugar social e uma posição, quando toma a palavra, mesmo sendo esse movimento não
transparente para o sujeito; e o esquecimento número dois, que responde pela ilusão de
que o sujeito é origem daquilo que diz, porque, ao ser interpelado pela ideologia, o
sujeito se filia a redes de dizeres, formações discursivas, que funcionam como matrizes
de sentidos para esse sujeito e donde o sujeito tem a ilusão de retirar o sentido daquilo
que produz enquanto formulação. Orlandi (2009 [1999]) denomina esse esquecimento
nº 2 de “esquecimento enunciativo”, por ser da ordem da enunciação. É exatamente esse
o funcionamento da ideologia: apagar suas marcas por meio da produção de evidências,
através dos processos de identificação entre sujeito e sentido. Por isso, diz-se que sujeito
e sentido se constituem ao mesmo tempo.

E é devido a esses esquecimentos que se pode dizer que a Análise de Discurso é


uma teoria do assujeitamento: o sujeito é interpelado inconscientemente e
ideologicamente para se constituir. Nessa interpelação, ele se filia a determinada(s)
formação(ões) discursiva(s) para que seu dizer possa fazer sentido. Sentido esse que,
para o sujeito, assujeitado, torna-se evidente, o único possível, mas que, por trás de sua
opacidade, remete a diversas memórias e a diversas possibilidades de realização.

Mas, a partir de Grigoleto (2005), recordamos uma passagem em Courtine, para


quem essas formações discursivas não são noções fechadas. Assim, relacionando
formações discursivas (FD), modalidades subjetivas e movimento de (des)identificação
do sujeito com o sentido, ela discorre:

Com o avanço de algumas noções teóricas dentro da teoria


materialista do discurso, é possível pensar a partir de Courtine
(1981), por exemplo, a noção de FD [formação discursiva] numa
outra perspectiva. Já não se trata de um todo complexo com
dominante, mas de uma FD com fronteiras instáveis, onde é possível

46
a reconfiguração, a transformação e, por que não, a ruptura.
(Grigoleto, 2005: p. 65, grifos nossos)

Por conta de todas essas questões levantadas, pode-se perceber que não se deu,
aqui, um foco ao conteúdo – como se os sentidos fossem únicos e verdadeiros – das
letras de rap, como o pretendeu o Ministério Público do Estado de São Paulo, quando
indiciou o grupo Facção Central por incitação ao crime. Partimos do princípio teórico
de que existem muitos outros sentidos além dos que se podem antecipar. Apenas uma
análise mais criteriosa e detalhada, com respaldo nos dispositivos teórico e analítico,
pode contribuir para uma discussão mais qualificada sobre os processos de construção
identitária e, possivelmente, de resistência, que estão materializadas nessas letras.
Desejou-se, portanto, a partir da pesquisa, problematizar esses efeitos de evidência
produzidos para os sentidos relacionados ao rap, por meio da desnaturalização da
relação palavra-sentido, relação essa que diversas teorias do texto tentam colocar como
unívoca, silenciando todos os outros sentidos possíveis.

No texto que introduz a leitura do livro Discurso e textualidade, Orlandi


(Lagazzi-Rodrigues e Orlandi, 2006) afirma que

A Análise de Discurso tal como a conhecemos no Brasil – na


perspectiva que trabalha o sujeito, a história, a língua – se constitui no
interior das conseqüências teóricas estabelecidas por três rupturas
que estabelecem três novos campos de saber: a que institui a
lingüística, a que constitui a psicanálise e a que constitui o
marxismo.Com a linguística ficamos sabendo que a língua não é
transparente; ela tem sua ordem marcada por uma materialidade que
lhe é própria. Com o marxismo ficamos sabendo que a história tem
sua materialidade: o homem faz a história, mas ela não lhe é
transparente. Finalmente, com a psicanálise é o sujeito que se coloca
como tendo sua opacidade: ele não é transparente nem para si
mesmo. (Orlandi, 2006: p. 13, grifos nossos)

Tais considerações, que colocam em relevo o campo no seio do qual se constitui


essa disciplina de entremeio (Orlandi, 2009 [1999]), para a qual a exterioridade e
historicidade são constitutivas da linguagem, enquanto sistemática e assistemática, são
de grande importância, porque ilustram com maiores detalhes o quadro epistemológico
da teoria em questão, cujos principais elementos serão discutidos nos próximos
capítulos.

47
A Análise de Discurso possui, assim, como toda teoria, instrumentos de
metodologia, a fim de que se possa proceder às análises. São instrumentos
extremamente complexos, que usualmente não são definidos a priori, pois mantêm
estreita relação com o tipo de material em análise. No entanto, há a necessidade de se
construir arquivos, a partir dos quais se compõem os corpora, cujos cortes estão
relacionados diretamente com os objetivos da análise.

A noção de arquivo é basilar em Análise de Discurso, pois, sem compô-lo, não


se pode proceder às análises. M. Pêcheux (1997), em seu artigo Ler o arquivo hoje,
explica que arquivo, em Análise de Discurso, é, num sentido lato sensu, um “campo de
documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”. Mas a Análise de Discurso
não trabalha com aplicação da teoria e, sim, com interpretações a partir dela, e essa
noção de Pêcheux foi, então, rearticulada por Mariani (2010):

Um arquivo, qualquer que seja, representa uma instituição que


congrega em seu funcionamento aspectos políticos, técnicos,
jurídicos e éticos. Em qualquer arquivo se inscreve a historicidade
de uma política de silenciamento13 resultante das condições
históricas e ideológicas de sua institucionalização e de sua inserção
nas redes de memória. [...] Podemos pensar, então, que nos arquivos
se inscrevem sintomas da época em que foram organizados e é
com esses sintomas que um pesquisador se depara. (Mariani, 2010:
s/p, grifos nossos)

Essa rearticulação da designação que Pêcheux confere à noção de arquivo traz


consigo pelo menos duas implicações. A primeira diz respeito à característica de não-
completude de um arquivo: o pesquisador não pode ter a ilusão de que trabalhará a
partir de fontes históricas que “refletem” o pensamento de uma época. Há sempre, como
resultado do embate das relações de poder inscrito nas línguas, um ou mais sentidos
objetos de silenciamento, ao mesmo tempo em que há a eleição de um (ou mais)
sentido(s) a ser preservado como “o(s) verdadeiro(s)”. A segunda concerne à questão da
ilusão da completude dos materiais: o pesquisador não deve acreditar que possui nas
mãos todos os documentos relativos a determinado assunto, produzidos e postos em
circulação em determinada época. Esse acesso irrestrito a todos os materiais não passa
de uma ilusão (teórico-metodológica). Ainda assim, o pesquisador não pode se

13
Neste momento de sua elaboração textual, Mariani cita um trabalho de Orlandi, As formas do silêncio
no movimento dos sentidos (2004 [1993]), que também foi utilizado para a confecção desta dissertação
e que, portanto, consta da bibliografia deste.

48
contentar em não buscar o máximo de documentos para a sua pesquisa, a fim de que sua
pesquisa se torne o mais abrangente possível acerca do tema trabalhado.

Em termos metodológicos, cabe ressaltar que o corpus empírico, a ser analisado


é constituído pelas letras das músicas que compõem o álbum, produzido pelo grupo
paulista de rap Facção Central, A marcha fúnebre prossegue (2001). Foram observadas,
no modo de construção dessas letras de música, o que chamamos de marcas linguísticas,
ou seja, foi feita a dessuperficialização das letras (busca de desfazer as evidências
produzidas pelo „esquecimento enunciativo‟, ou seja, da ordem do linguístico) a partir
da remissão dessas construções à memória dos discursos de resistência, à das músicas
em geral, à das músicas de rap em específico e às condições – situacionais em sentido
restrito e, em sentido amplo, histórico – em que essas músicas foram produzidas. Esse
processo permitiu a construção do corpus discursivo. Remetendo-se, então, essas
formulações ao conjunto de enunciados historicamente significados, pôde-se proceder à
análise, a partir da qual determinados gestos de leitura proporcionaram a compreensão
de determinados sentidos para esses discursos, a partir de um lugar teórico no qual há
espaço para a discussão sobre as relações de força e de poder inscritas na língua. Sobre
esse dispositivo de dessuperficialização das marcas linguísticas, propõe Orlandi (1987: )
o seguinte esquema:

Figura 1

Nós, diante de nosso corpus discursivo, relemos esse esquema de Orlandi e


propomos, à guisa de ilustração, com base nos conceitos mobilizados:

49
Figura 2

E, no que tange à questão da completude e da exaustividade em pesquisa, cabe


frisar o seguinte aspecto relativo à perspectiva da Análise de Discurso, trazido pelas
palavras de Mariani (1996):

Para a AD, a exaustividade e a completude, mitos integrantes das


análises empíricas, são critérios que não se colocam. A depreensão
das regularidades enunciativas (...) não necessitam de um acúmulo
quantitativo de dados. Em AD, é a noção de fato discursivo que
traz conseqüências para a análise, pois permite que se trabalhe com as
noções de processo de produção de linguagem e acontecimento.
(Mariani, 1996: p. 52, grifos nossos)

Esses “mitos” tentam dar conta da incompletude, característica intrínseca às


práticas discursivas. Eles funcionam produzindo efeitos de sentido de plenitude,
segundo os quais tudo se pode dizer – relação com a língua – e tudo se pode recuperar –
relação com a história. As teorias que partem desses pressupostos, de transparência da
língua e da história, não as relacionam ao funcionamento ideológico, e não
compreendem a possibilidade de movimento dos sujeitos, que resistem aos sentidos
produzidos pelos significantes que buscam significá-los. Nesse sentido, a pesquisa em
Análise de Discurso representa exatamente uma resistência ao efeito de sentido de
plenitude comum a outros campos do conhecimento: a regularidade enunciativa, e não a
exaustividade, orienta as pesquisas para esta teoria, e é a partir desses pressupostos que
se propôs a realização do presente estudo.

50
2.2 NOÇÕES TEÓRICAS MOBILIZADAS

O sujeito é, portanto, um efeito do processo sem sujeito, uma ilusão que, no interior do discurso, pode
ocupar diferentes posições.
(Lagazzi, 1987)

Após uma visão geral sobre a teoria do discurso, abordagem assaz necessária
para a continuidade de nossa pesquisa, neste momento apresentaremos algumas noções
que se mostraram essenciais para a condução das análises e que já começam a compor o
nosso objeto analítico, uma vez que as análises são feitas a partir de instrumentos
teóricos. A escolha por esses e não outros instrumentos traz implicações não apenas
para a condução, mas também, e principalmente, para o sentido que as análises tomam
em direção ao resultado, mesmo que provisório, da pesquisa. Nesse sentido, dividimos
este subitem em cinco momentos, que estão apresentados a seguir.

2.2.1 SUJEITO, SENTIDO E IDEOLOGIA: DAS FORMAÇÕES


DISCURSIVAS

“Taddeo explica que não é ele quem fala na música, mas os personagens que cria, com cenários e
narrativas ficcionais. Se o narrador é um assaltante de banco, falará como um. Se é uma vítima de
seqüestro, fará esse discurso. Se é um bandido arrependido pedindo perdão à mãe, o melodrama
cresce.”
(Luiz Maklouf Carvalho, 2007)

A primeira noção extremamente relevante para a condução das análises – assim


como para a própria teoria do discurso – é a de ideologia, na sua relação com o sujeito e
com o sentido. Retomamos a discussão iniciada anteriormente, a fim de aprofundá-la. A
Análise de Discurso compreende ideologia não como falseamento da realidade, ou
como uma máscara que encobre as situações de linguagem e que deve ser extraída a fim
de que se chegue à verdade dos sentidos. A ideologia é, sim, entendida como uma
estrutura-funcionamento que interpela o indivíduo em sujeito, e que produz a ilusão
necessária (evidência) de um sujeito sempre já lá (Pêcheux, 1988 [1975]) para que este
possa se reconhecer enquanto sujeito e tomar a palavra. É a partir dessa noção de
ideologia que se compreende o funcionamento das evidências, do óbvio – daquele
sentido que não pode ser outro, que só pode ser aquele –, o qual se institui como o único
possível.

51
O funcionamento da ideologia também se relaciona com a memória, não no
sentido que os psicólogos e médicos a utilizam – como uma instância psicológica –, mas
como trabalha, por exemplo, Mariani (1996)

(...) nada é neutro nem transparente em termos de prática


discursiva: os sentidos se produzem em formações discursivas, são
regulados por rituais sócio-históricos, são mobilizados
interdiscursivamente enquanto exterioridade que afeta
constitutivamente o sujeito. No entanto, a ideologia da
transparência dos sentidos na linguagem comparece sempre e de
diferentes maneiras,produzindo o efeito de literalidade, ao mesmo
tempo em que apaga o processo de imposição hegemônica de uma
determinada interpretação. (Mariani, 1996: p. 67, grifos nossos)

produzindo um esquecimento necessário, a fim de que o sujeito possa se entender como


origem de si mesmo, colocando-se como dono de seu dizer. É com a interpelação
ideológica do indivíduo em sujeito que se constitui, simultaneamente, o sentido para
esse sujeito, a partir do funcionamento a que se denomina, em Análise de Discurso, de
“processo de identificação”. Daí que Orlandi (2009 [1999]) reiteradamente afirma que
sujeito e sentido constituem-se mutuamente.

E esse sentido se filia a determinada formação discursiva (FD), à qual esse


mesmo sujeito, atravessado pelo inconsciente e pela ideologia, identificou-se para
significar. A forma-sujeito pode ser compreendida como a posição-sujeito dominante
em uma FD. Portanto, uma mesma FD não comporta apenas uma posição-sujeito, mas
várias, com as quais mantém algum tipo de ligação semântica, mesmo que não sejam
coincidentes.

Mas, de acordo com Pêcheux, essa evidência do sujeito está diretamente


relacionada à evidência do sentido, uma vez que sujeito e sentido constituem-se
mutuamente pelo processo de interpelação/identificação (entendida como um processo).
É o que se pode apreender do seguinte trecho:

Ora, eis o ponto preciso onde surge, a nosso ver, a necessidade de uma
teoria materialista do discurso; essa evidência da existência
espontânea do sujeito (como origem ou causa de si) é
imediatamente aproximada por Althusser de uma outra evidência
presente, como vimos, em toda filosofia idealista da linguagem, que é
a evidência do sentido. (Pêcheux, 1988 [1975]: p. 153)

E, ao dar continuidade à sua elaboração, Pêcheux retoma a formulação de


Althusser, destacando nela algumas partes que dizem respeito diretamente a essa
evidência do sentido – “inclusive aquelas que fazem com que uma palavra „designe uma
52
coisa‟ ou „possua um significado‟” – e a sua relação com o pressuposto da transparência
da linguagem.

O segundo elemento destacado, mas não menos importante para as análises aqui
propostas, é a noção de formação discursiva já mencionada: não sendo possível haver
sentido sem que haja interpretação (Orlandi, 1996), os sujeitos são instados a
interpretar, a significar. Isso faz com que, ao dizer, o sujeito se filie a determinadas
redes de sentido, que recortam o dizível (que, em Análise de Discurso, é denominado
interdiscurso). A essas redes de sentido, a teoria em questão dá o nome de formações
discursivas. As formações discursivas trazem para a materialidade discursiva – a língua
– as formações ideológicas, que representam as tensões entre as posições que os sujeitos
das forças sociais assumem no discurso. Nesse sentido, tem-se a seguinte afirmação de
Pêcheux:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação


ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura
dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que
pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um
sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.
(Pêcheux, 1995 [1975]: p. 160, grifos do autor)

Importante é enfatizar o fato de que esses recortes do interdiscurso, as formações


discursivas, não possuem fronteiras estanques, de delimitação precisa e definitiva. Esse
foi o primeiro entendimento de formação discursiva, no momento em que se
elaboravam as bases teóricas da Análise de Discurso, por Pêcheux (1969), na década de
70 do século XX. No entanto, já no início dos anos 80 do mesmo século, J.-J. Courtine
(2009 [1981]), em sua tese intitulada “O discurso comunista endereçado aos cristãos”,
contribui para uma ampliação no horizonte desse conceito. Elabora-se, assim, uma
compreensão de formação discursiva como recortes “porosos”, que permitem ao sujeito
se movimentar entre diversas posições relativas a diferentes FDs. A possibilidade de se
movimentar entre essas diferentes posições deixa o sujeito mais próximo ou mais
distante dos sentidos “administrados” pela forma-sujeito da formação discursiva à qual
se refere. Pensando nessas distâncias e aproximações entre posições discursivas,
Pêcheux (1988 [1975]) propõe as modalidades subjetivas, com base nas quais podem-se
observar desde uma reduplicação entre o sujeito e a forma-sujeito dessa FD,
teoricamente denominado como identificação, até um recobrimento parcial, existindo

53
assim uma abertura para questionamentos e dúvidas, que a teoria reconhece como
contra-identificação. Mas esse sujeito pode mesmo não se reconhecer mais nas posições
administradas por tal formação discursiva, desidentificando-se com ela, ao mesmo
tempo em que se identifica com uma nova rede de sentidos. Acontece que esse
deslocamento não se dá de forma consciente, nem plena, pois o sujeito continua a
manter uma relação com as formações discursivas das quais se desidentificou, seja por
negar os sentidos anteriores, seja por promover silenciamentos em relação a eles, mas
constantemente referindo-se a tais sentidos.

Esses movimentos do sujeito, que pode aderir ou se posicionar contra, ou que


pode, ainda, se desidentificar de determinada matriz de saber, importaram muito para a
presente pesquisa, pois é a partir dessa possibilidade de movimentos que se podem
compreender as modalidades de resistência de um sujeito aos sentidos dominantes.

É nessa resistência, produzida pelo movimento do sujeito em relação aos


sentidos possíveis e entre as diferentes formações discursivas que, segundo a hipótese
levantada, entende-se estarem inseridas as produções discursivas que instauram isso que
designamos de imaginário de protesto. E esse protesto se materializa no fio discursivo
dessas produções, sendo possível, portanto, analisar esse confronto historicamente
constituído entre sentidos produzidos em diferentes formações discursivas e que
remetem a diferentes formações ideológicas. Nas letras das músicas do grupo Facção
Central, encontramos muitas marcas da formação ideológica socialista, o que contrasta
com a formação ideológica capitalista na qual estão inseridos e da qual também
carregam determinadas marcas (enunciados do discurso jurídico burguês da igualdade
perante a lei são exemplos de como o discurso capitalista moderno está marcado no fio
discursivo das produções do Facção Central).

Mas o que estamos aqui a mostrar é que, para além de esse sujeito-rapper se
identificar com sentidos que poderíamos chamar de contra-hegemônicos(pensemos em
hegemonia de acordo com o que nos diz Almeida:

Hegemonia é uma combinação de liderança (ou direção moral)


com dominação. É exercida através do consentimento e da força,
da imposição e da concessão, de e entre classes e blocos de classes e
frações de classes. Esta pode se dar de forma ativa, como vontade
coletiva, ou se manifestar de forma passiva, através de um apoio
disperso ao grupo dirigente/dominante. (Almeida, 2003, apud
Miranda, 2011, grifos nossos)

54
Entendamos contra-hegemonia14,, conforme nos afirma Miranda,

[...] o emprego maior ou menor da coerção ou do consenso será


mediado pela conjuntura, onde classes antagonistas podem criar
condições de desestabilizar as classes hegemônicas. Gramsci afirma
ainda que os órgãos de opinião pública (jornais e associações) têm um
papel destacado nesse processo, na construção do consenso. Vale
lembrar que tais órgãos possuem capacidade de disseminar e
multiplicar os valores do consenso hegemônico. Por isso, o pensador
italiano dá importância à luta política, sobretudo, na sociedade civil,
na construção de valores antagônicos aos da classe que detém a
hegemonia (a luta pela hegemonia deve articular todos os níveis da
sociedade: a base econômica, a superestrutura política e a
superestrutura ideológica).

ele se contra identifica com a organização suposta de sua própria língua, língua a partir
da qual ele enuncia. E, ao contra identificar-se com tal organização, esse sujeito-rapper
ocupa uma nova posição (que podemos relacionar com um movimento característico de
hesitação pelo falante, que Mariani (2009) designa por meio da expressão “relação
vacilante”, mas que não para aí, porque, na relação vacilante, tal como proposto pela
autora, o sujeito precisa ocupar uma posição na formação discursiva que reconhece uma
certa organização de língua como a correta, organização essa que se confronta com uma
outra, concebida como errada. E nesse confronto, esse sujeito da relação vacilante vai
ocupar a posição de quem “fala errado”, mas precisa/quer aprender a “fala correta”.
Uma posição que o sujeito-rapper não ocupa em parte alguma do corpus da pesquisa,
sujeito esse que se engaja nesse processo de resistir à organização gramatical
normativo-escolar da língua e que passa a produzir sentidos a partir de outra posição,
relativizando, de certa forma, tal organização preconizada, no caso, pela gramática
normativa, a partir da educação escolar/formal).

Com respeito às diversas maneiras de se relacionar com a língua, Orlandi (1988)


nos diz que a análise de discurso se interessa pela “ordem material”, pela questão da
relação entre sujeito e sentido, que se constituem histórica e mutuamente:

Ao se passar da instância da organização para a da ordem, se passa


da oposição empírico/abstrato para a instância da ordem material em
que o sentido não é conteúdo, a história não é contexto e o sujeito
não é origem de si. Expliquemo-nos: o que interessa ao analista de
discurso não é a organização (forma empírica ou abstrata) mas a

14
Trata-se de um conceito elaborado por Antonio Gramsci, membro fundador do Partido Comunista
Italiano, autor dos conhecidos Cadernos do Cárcere. Nasceu na última década do século XIX e veio a
falecer antes da metade do século XX (1891-1937). Informações obtidas a partir do site:
http://www.marxists.org/portugues/gramsci/index.htm .

55
ordem do discurso (forma material) em que o sujeito se define pela
sua relação com um sistema significante investido de sentidos sua
corporeidade, sua espessura material, sua historicidade. (Orlandi,
1988: p. 49, grifos nossos)

Ao levarmos em conta a opacidade da língua, estamos nos posicionando frente a


uma demanda que existe nos estudos de língua(gem) sobre a questão dos sentidos (e a
literalidade). Como já fora mencionado, para a análise de discurso, sentido e sujeito
constituem-se mutuamente, e mais: o sentido não tem como origem nem a imaginação
do falante nem os ouvidos de quem ouve. Quando Pêcheux (1969) institui discurso
como o objeto da Análise de Discurso e o define como sendo “efeito de sentido entre
locutores”, está postulando que o sentido está diretamente relacionado ao processo de
identificação – ou não – pelo sujeito. Ele está postulando, também, que nenhum desses
sujeitos implicados são donos, cada um, de uma parte do sentido, mas, sim, que aquilo
que é dito, frente à necessidade de interpretação pelo sujeito, produz determinado efeito
em cada um dos interlocutores, isso porque pensamos a literalidade como efeito também
(um sentido que se cristaliza historicamente como o único, silenciando outros possíveis,
sem que, no entanto, esses outros possíveis sejam permanentemente apagados. Ficam
“resquícios” e esses resquícios significam).

“Tudo não se diz”, nos diz Milner em O amor da língua (1987), e isso tem
diversas implicações, dentre as quais a de que não se pode tudo dizer, apesar de
vivermos sob a ilusão da onipotência da língua e do sujeito. Completude do dizer,
completude do sentido, completude do sujeito. Ilusões necessárias para a interpretação e
inexoráveis ao sujeito, que acredita ser senhor do que diz – e do que ouve, do que lê...
Mas Pêcheux (1969) vai nos dizer que essa incompletude é “produtiva”, porque é por
causa dela que os sujeitos e os sentidos podem se movimentar e tornarem-se outros. São
os espaços e as lacunas, as faltas, enfim, que permitem ocorrer os processos de
identificação, contra identificação e desidentificação do sujeito com o sentido. Nós, na
posição de analistas de discurso, não somos alheios a esse processo assujeitador que a
língua nos impõe para que possamos significar. E isso tem como consequência,
sobretudo, o fato de que estamos sujeitos a nos identificar com um ou com outro
sentido, embora estejamos, enquanto analistas, trabalhando “no limite da interpretação”
(Orlandi, 2009 [1999]), a fim de que possamos compreender como se dão os processos
de construção dos sentidos possíveis e como eles se relacionam entre si e com a
memória.

56
Assim, podemos dizer que estamos diante de um outro movimento: o de dar
sentido às produções significantes que atravessam esse sujeito-rapper, ao formular suas
letras, produções essas às quais tal sujeito nem sempre tem acesso de modo consciente.
Ele precisa estar inserido, até determinado limite, nessa organização imposta pela
“gramática” e por todos os sujeitos “autorizados” a decidir sobre o funcionamento da
língua, a fim de que seus supostos ouvintes – aqueles sujeitos imaginados pelo sujeito-
autor como “destinatários” de suas produções, no momento em que produz seu discurso
(mecanismo da antecipação) – tenham o mínimo de condições de interpretar aquilo que
ouvem. Mas estar inserido na lógica gramatical não é suficiente para esse sujeito-rapper
“passar sua mensagem” e ser “entendido”. Isso porque, para a Análise de Discurso,
existe um elemento central chamado ideologia. Sendo próprio da ideologia “dissimular
sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido
de evidências „subjetivas‟, devendo entender-se este último adjetivo não como „que
afetam o sujeito‟, mas „nas quais se constitui o sujeito‟.” (Pêcheux, 1988 [1975]). Isso
desloca inteiramente o olhar sobre tal produção discursiva: saímos do terreno do
certo/errado em gramática para o repetir/deslocar na ordem da língua.

Para dar um exemplo de como funciona uma identificação entre sujeito e


sentido, podemos observar os sentidos da palavra “vítima”, que aparece algumas vezes
em diferentes letras de música do álbum em análise. Se não tomamos o sentido como
transparente, evidente, precisamos nos perguntar: para o sujeito-autor dessas letras de
música, qual sujeito preenche essa posição discursiva de vítima? Após uma cuidadosa
observação do funcionamento dessa palavra, vemos que há, pelo menos, duas posições
distintas – e, diríamos, opostas – que significam diferentemente essa mesma palavra: de
um lado, na letra (L2), essa “vítima” está funcionando como um sinônimo para um
refém em um assalto a banco, ou seja, esse termo encontra seu sentido a partir de uma
posição discursiva que coloca o assaltante de banco como o vilão e os
usuários/funcionários do banco, feitos de reféns durante tal assalto, como vítimas. “A
vitória é tentada de forma violenta / o sucesso dependente de um fracasso, de um
caixão/ de um malote na mão, de uma fuga rápida, de um dia de sorte / um Deus
dividido por duas orações / uma vítima ajoelhada implora pela vida / o ladrão,
nervoso, trêmulo, não quer algema da polícia”. Já na letra de música (L4), a palavra
„vítima‟ recobre uma outra posição discursiva, retirando seu sentido de uma matriz
bastante diferente da primeira matriz: trata-se, aqui, do “moleque do pipa”, aquele

57
garoto favelado que não tem seus direitos básicos à educação, saúde, moradia garantidos
e que “opta” por seguir a vida do/no crime: “Sou homem pra dizer que o moleque do
pipa / esquecido um dia troca tiro com a polícia / não simulo sentimento pra vender CD
/ não vou falar de paz vendo a vítima morrer”.

Assim, a partir de apenas uma palavra e de duas letras de músicas (L2 e L4),
conseguimos observar como o sentido não se dá a priori, como ele acaba construindo
sua referência histórica e discursivamente: no primeiro caso, ou seja, na (L2), tem-se
uma referência para a palavra vítima construída a partir do imaginário sustentado,
sobretudo, pela formação ideológica capitalista, segundo a qual as posses materiais – no
caso, dinheiro, joias e ações, por se tratar de um banco – são entendidas como bens mais
valiosos do que a própria vida de outrem – e esse outrem tem cor, endereço e lugar
social determinados, ou seja, não se trata de qualquer outrem. Dessa forma, a vítima é
quem é assaltado e “perde” seu dinheiro para o assaltante de banco, o vilão.

Temos aí um exemplo de polissemia discursiva, porque observamos que há um


outro sentido para essa mesma palavra, sentido esse que tem sua referência construída
na letra de música L4, a partir da qual se pode notar uma outra possível filiação do
sujeito, filiação que se conflita frontalmente com a primeira, porque desloca o foco do
imaginário que a sustenta: mais próxima da formação ideológica socialista, para a qual a
vida é mais importante do que os bens materiais, a vítima, na letra em questão, é aquele
sujeito excluído dos direitos sociais, direitos esses tantas vezes reiterados em textos
jurídicos e falações de políticos em palanques eleitorais. Neste momento, estamos
diante de uma redefinição na rede parafrástica de sentidos outros que não são
autorizados a ressoar dentro dessa formação, a qual se contrapõe à primeira, onde o
mesmo processo, mas na direção inversa, ocorre: se na primeira posição – posição que
pode apontar para a existência de uma formação discursiva específica –, temos a
construção discursiva de vítima como sinônimo de funcionário/cliente do banco; na
segunda posição, tem-se essa mesma palavra construindo discursivamente um sinônimo
para excluído social.

Esse conflito de sentidos parece nos remeter a duas matrizes de sentidos opostas,
o que pode nos levar a conhecer duas possíveis formações discursivas distintas.
Historicamente, no Brasil, já se sabe em qual possível formação discursiva se encontra o
sentido que predomina para a construção do imaginário social sobre vítima. Nesse

58
ponto, exatamente, podemos ver mais uma forma de o Facção Central resistir aos
sentidos postos como dominantes (lembrando que um sentido dominante não apaga os
outros sentidos possíveis, apenas os silencia, mas, mesmo sob esse silenciamento, os
outros sentidos continuam ressoando, continuam deixando sua marca ao ponto de
poderem mesmo – e esse é um resultado possível do movimento da história – chegar a
serem “eleitos” como o sentido original, literal, sobrepujando-se aos que antes estavam
em condições de silenciá-los): em seu álbum, especificamente naquele com que estamos
trabalhando, existe uma construção discursiva para vítima que se opõe, que disputa
espaço na construção do imaginário constituído sobre tal palavra.

É dessa segunda matriz, ou seja, desse outro sentido de vítima não hegemônico,
sentido que resiste e que disputa espaço na construção do imaginário social, que o grupo
Facção Central acaba por portar a voz, voz essa que passa por vários processos de
desqualificação15 e de silenciamento disponíveis pelos diferentes aparelhos de Estado,
no momento atual da luta de classes: o apagamento do político, nessas circunstâncias, é
o ingrediente principal da formação ideológica capitalista para que essa desqualificação
e esse silenciamento sejam possíveis, admissíveis e reprodutíveis. É reinserindo o
político na cena das discussões, sobretudo, a respeito da “função social” da arte, mais
especificamente da música, que o Facção Central mostra sua contra-identificação com
relação a uma possível formação discursiva da música.

Sustentamos essa posição com base na própria noção de contra-identificação,


que é o espaço da dúvida, do questionamento, do não recobrimento total da forma-
sujeito de tal FD pelo sujeito/sentido, sem que se alcance um ponto em que esse
questionamento represente uma ruptura entre o sujeito e a FD à qual se filia: embora
ainda dentro do espaço de construção musical (supondo a existência de uma formação
discursiva da música), esse sujeito desloca sentidos, construindo novas referências para
as mesmas palavras, disputando esses sentidos com os sentidos hegemônicos dentro de
tal FD, embora não rompa com ela.

Mas, para que essa disputa de sentidos seja possível, o grupo ocupa uma posição
discursiva divergente da ocupada pela forma-sujeito de uma possível primeira matriz de
sentidos. Repare que essa divisão ordinária de primeira e segunda matrizes de sentido

15
A desqualificação do discurso do outro funciona sob a égide da política do silêncio, a qual, conforme
Orlandi, “se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis,
mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada.” (Orlandi, 1997: p. 75)

59
leva em conta o comparecimento da palavra nas duas letras de música citadas: L2 e L4.
Uma vez que primeiro aparece, em L2, a construção de um sentido de vítima mais
próxima ao sentido hegemônico, designamos esse processo de identificação como sendo
o primeiro. Por fim, uma vez que somente depois, ao seja, na L4, irá aparecer a
construção do sentido que entendemos como oposto ao primeiro, o de vítima enquanto
excluído social, designamos tal processo de identificação como sendo o segundo.
Assim, em L2 temos a primeira matriz e, em L4, a segunda. Portanto, ao invés de
encontrar-se posicionado ao lado dos que procuram incessantemente pelo lucro a
qualquer preço (preço, geralmente, de uma vida), o sentido mais fortemente difundido
na matriz em questão, o Facção Central busca se posicionar ao lado dos que não
conseguem, mesmo trabalhando, alcançar o mínimo de condições necessárias para
usufruir de uma vida menos miserável e mais plena de oportunidades. Vale lembrar que,
para a formação ideológica capitalista, existe um discurso fundante que insere o
trabalho em seu centro, porque, segundo essa formação, o trabalho “enobrece” o homem
(já dizia Gonzaguinha, talvez produzindo um efeito de ironia, na música “Um homem
também chora”, do álbum Alô, alô, Brasil [1983]16: “e sem o seu trabalho, um homem
não tem honra, e sem a sua honra se morre, se mata”).

No entanto, esse discurso, fundante em nossa sociedade, a respeito do trabalho,


dissimula o próprio funcionamento do capitalismo: a obtenção do lucro a partir da
exploração do homem pelo homem. Interpretamos aqui, portanto, que não basta
“trabalhar” para obter uma vida plena de oportunidades e pautada pela democracia, tão
cantada pelos defensores do sistema político-econômico-social capitalista. Vivemos
numa sociedade estruturada de tal forma que, se um homem não trabalhar explorando
outro homem, para, do trabalho deste, retirar seu lucro [daquele], o homem não estará
dentro do rol dos contemplados pelos bens materiais, bens esses que seriam a “garantia”
de uma existência menos sofredora. E o Facção Central busca portar justamente a voz
desse explorado ou do excluído desse sistema, um sistema que funciona, também,
excluindo parcelas consideráveis da população dos “direitos sociais” de emprego,
habitação, educação, saúde e lazer.

É nesse momento que acreditamos que a ideologia dominante (da formação


ideológica capitalista) mostra mais a sua força: quando se dissimula no discurso de

16
Disponível no site: www.gonzaguinha.com.br, acesso em 02/04/2012.

60
quem supostamente estaria em conflito com ela. Ao se confrontar, sem se desprender
dessa matriz de sentidos, o Facção Central acaba por repetir em suas formulações
sentidos outros que, no fio discursivo, afirma procurar combater. Esse processo, pelo
próprio funcionamento ideológico, não é consciente nem pleno. Essas marcas do
discurso da formação capitalista nas formulações do Facção mostram que existem
falhas no ritual ideológico.

Essas “falhas”, ideológica e inconscientemente produzidas, por serem da ordem


da língua, às vezes podem ser notadas e, assim, sofrer processos de “correção” por parte
dos sujeitos, que estão imersos nas ilusões da completude do sentido e na evidência de
que são a origem de seu dizer. Nas tentativas de “corrigir”, no entanto, ressoam
resquícios de silenciamentos que podem produzir, como resultado, o contrário daquilo
que se “pretendia” consertar, pois, no momento mesmo em que são produzidas essas
correções, são colocados em jogo determinados sentidos que passam a ser possíveis,
embora indesejáveis. Nesse sentido, podemos dizer que se trata de tentativas de “suprir”
uma falha, de calar uma falta, tentativas que acabam falando e produzindo outros
sentidos, novos efeitos de evidência. E o Facção Central, tomado como um sujeito que
se encontra assujeitado à ideologia e ao inconsciente, não está livre dessas contradições.
Assim, quando nega um enunciado de outra posição discursiva, a partir da mesma
matriz ou de uma matriz de sentido diferente, traz para sua produção de significação a
possibilidade do diferente, que, no caso, seria a reprodução de um sentido
compreendido como dominante, ao invés de resistir a ele.

2.2.2 “A GUERRA NÃO VAI ACABAR”: DAS FORMAÇÕES


IMAGINÁRIAS E DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

“Os palavrões se tornam necessários em determinados trechos, para demonstrar o grau de revolta.
Colocados de forma adequada, eles dão a dimensão da gravidade, e da seriedade do tema que está sendo
abordado”.
(Carlos Eduardo Taddeo, 2006)

Neste momento da dissertação, a discussão se centra ao redor dessas duas noções


extremamente relevantes para a pesquisa. A apresentação de ambas noções encontra-se
já no texto considerado inaugural para os teóricos da Análise de Discurso pêcheuxtiana:
Análise Automática do Discurso, publicado em 1969.

61
Inserido numa proposta de apresentação geral dessa teoria que ainda dava seus
primeiros passos, Pêcheux (1969) mostra, a partir de uma análise sobre os
funcionamentos dos esquemas psicofisiológicos, de natureza comportamentalista (base
skinneriana), aos quais denomina “esquema reacional”, e dos esquemas por ele
designados como “informacionais”, cujas referências o filósofo vai buscar em Jakobson;
que essas teorias silenciam alguns atores importantes quando se pensa a linguagem a
partir do prisma discursivo.

Primeiro, então, trazemos o seguinte trecho, retirado da tradução brasileira dessa


obra inaugural, excerto que mostra como Pêcheux trabalhou essa questão do
silenciamento de aspectos intrinsecamente relacionados à produção discursiva.

Esta representação tem o inconveniente de anular o lugar do


produtor de (S) e do destinatário de (R): esta anulação
éperfeitamente legítima quando a estimulação é física (por exemplo,
uma variação de intensidade luminosa) e a resposta orgânica (por
exemplo, uma variação da resposta E.E.G.); neste caso, comefeito, o
experimentador ésomente o construtor de uma montagem que
funciona independentemente dele, extraídos os artefatos
experimentais. Em uma experiência sobre o "comportamento
verbal", ao contrário, o experimentador é uma parte da montagem,
qualquer que seja a modalidade de sua presença, física ou não, nas
condições de produção do discurso-resposta: em outras palavras, o
estímulo só é estírnulo em referência à situação de "comunicação
verbal" na qual se sela o pacto provisório entre o experimentador e seu
objeto. (Pêcheux, 1997 [1969]: p. 80, grifos nossos, itálicos do autor)

Observa-se, nesse trecho, que Pêcheux já traz a expressão “condições de


produção” para se referir a essa experimentação sobre o “comportamento verbal” em
que o sujeito, a partir de seu lugar de fala, já se marca no discurso, mesmo não estando
fisicamente presente. E essa marca é constitutiva da própria produção discursiva. Uma
marca que produz, reproduz e desloca o sentido no imaginário. Imaginário em que esse
sujeito se movimenta, inclusive a partir do mecanismo da antecipação (noção que será
explicada e desenvolvida nas próximas páginas).
Nas páginas seguintes, Pêcheux vai mostrar o que o “esquema informacional”
silencia nesse jogo de significação/interpretação. Abaixo, segue um excerto retirado
dessa mesma tradução, excerto esse de extrema relevância para a elaboração teórica da
noção de formações imaginárias e que se refere diretamente ao esquema
comunicacional de Jakobson, que também segue reproduzido abaixo:

62
O esquema torna-se então:
[L]
D
A -------------------------- B
R

com, respectivamente:

A: o “destinador”,
B: o “destinatário”,
R: o “referente”,
[L]: código linguístico comum a A e B,
--: o “contato” estabelecido entre A e B,
D: sequência verbal emitida por A em direção a B.

Observemos que, a propósito de "D", a teoria da informação,


subjacente a este esquema, leva a falar de mensagem como
transmissão de informação: o que dissemos precedentemente nos faz
preferir aqui o termo discurso, que implica que não se trata
necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B mas,
de modo mais geral, de um "efeito de sentidos" entre os pontos A e B.
(Pêcheux, 1997 [1969]: pp. 81-82)

Assim, Pêcheux se contrapõe, ao mesmo tempo, tanto às tendências


psicologistas quanto às comunicacionais. E conclui, formulando uma hipótese, da
seguinte maneira:

Nossa hipótese éa de que esses lugares estão representados nos


processos discursivos em que são colocados em jogo. Entretanto,
seria ingênuo supor que o lugar como feixe de traços objetivos
funciona como tal no interior do processo discursivo; ele se encontra
ai representado, isto é, presente, mas transformado; em outros
termos, o que funciona nos processos discursivos éuma série de
formações imaginárias que designam o lugar que A e B se
atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de
seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos
mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que
estabelecem as relações entre as situações (objetivamente
definíveis) e as posições (representações dessas situações).
Acrescentemos que é bastante provável que esta correspondência
não seja biunívoca, de modo que diferenças de situação podem
corresponder a uma mesma posição, e uma situação pode ser
representada como várias posições, e isto não ao acaso, mas segundo
leis que apenas uma investigação sociológica poderá revelar.
(Pêcheux, 1997 [1969]: pp. 82-83, grifos nossos, itálicos do autor)

Trata-se do mecanismo de antecipação, em que o sujeito produz uma imagem de


seu interlocutor e essa imagem está diretamente relacionada aos sentidos que estarão em
63
jogo nesse momento de interlocução, porque é a partir do efeito que procura produzir
para seu interlocutor que o sujeito diz A ou diz B. Vale a pena lembrar o que Orlandi
diz sobre tal mecanismo:

(...) todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de


colocar-se no lugar em que seu interlocutor „ouve‟ suas palavras.
Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que
suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação,
de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o
efeito que pensa produzir em seu ouvinte. (Orlandi, 2009 [1999]: p.
39, grifos nossos)

Na sequência, o referido filósofo francês elabora um quadro com as formações


imaginárias, supostas – e, na nossa compreensão, acabam até regendo tal processo – em
todo processo discursivo.

E, com o intuito de finalizar essa primeira apresentação teórica a respeito das


formações imaginárias, adquire extrema relevância, para este estudo, reproduzir o
quadro elaborado por Pêcheux e mencionado anteriormente, porque nos deixa
contemplar de maneira mais aproximada como se dá no discurso esse mecanismo de
antecipação e o que ele coloca em jogo nos processos discursivos. Assim, relendo o
quadro e preenchendo-o com os sujeitos em jogo na análise que estamos produzindo:
QUADRO DAS FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS
Questão implícita cuja
Expressão que designa as Significação das “resposta” subentende a
formações imaginárias expressões formação imaginária
correspondente
Imagem do lugar de rapper “Quem é o rapper para
IR (R)
A para o sujeito rapper falar assim ao rapper?”
Imagem do lugar do “Quem é o ouvinte para
IR (B) ouvinte para o sujeito que o rapper lhe fale
rapper assim?”
Imagem do lugar de
B “Quem é o ouvinte para
IB (B) ouvinte para o sujeito
que o rapper fale assim?”
ouvinte
IB (R) Imagem do lugar de “Quem é o rapper para que

64
rapperpara o sujeito fale assim ao ouvinte?”
ouvinte
Legenda: IR = sujeito-rapper
IB = sujeito-ouvinte
R = rapper
B = ouvinte
Figura 3

Importante lembrar que, em nossa análise, estamos nos centrando sobre as


imagens que o sujeito rapper faz do rapper e nas do que o sujeito rapper faz de seu
ouvinte, uma vez que nosso corpus se constitui de músicas presentes em um álbum do
grupo Facção Central. De repente, num outro momento, poderemos dar prosseguimento
a essa pesquisa e buscar outras vozes, como as midiáticas, jurídicas etc. e analisar outros
sujeitos e posições, mas, neste momento, apenas estamos lidando com as vozes e
posições discursivas produzidas pelo Facção Central.
Mas as condições de produção não se esgotam na formulação teórica acerca das
formações imaginárias, embora estas sejam consideradas elemento constitutivo
daquelas. De acordo com Orlandi (2009 [1999]), as condições de produção
“compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte
da produção do discurso. A maneira como a memória „aciona‟, faz valer, as condições
de produção é fundamental (...).” (Orlandi, idem: p. 30). Em seguida, a autora afirma
que se podem considerar tanto a situação em sentido estrito – e, aí, têm-se “as
circunstâncias da enunciação” –, quanto em sentido amplo, o qual inclui “o contexto
sócio-histórico, ideológico”.
Com base em todo esse aparato teórico e no corpus de que esta pesquisa se
utiliza, podemos agora pensar quais as condições de produção e quais imagens estão em
jogo nas letras das músicas que procuramos analisar. Nesse sentido, podemos começar
pelas condições de produção em sentido amplo, ou seja, nos aspectos sócio-históricos,
ideológicos, que estão colocados.
Os textos analisados inscrevem-se numa conjuntura histórica bastante definida:
são produzidas nas favelas de São Paulo, durante o final da década de 90 e o início dos
anos 2000. Orlandi nos lembra de que não se veem “nos textos os „conteúdos‟ da
história”, mas que aqueles “são tomados como discursos, em cuja materialidade está
inscrita a relação com a exterioridade” (Orlandi, 2009 [1999]: p. 68). Então, a partir de
observarmos o próprio fio discursivo, podemos ter contato com o momento da história

65
em que a sociedade se encontra: podemos vislumbrar desde o estágio do
desenvolvimento social, político, econômico, até o do desenvolvimento tecnológico.
No caso do Facção Central, quando produz o álbum A marcha fúnebre
prossegue, no ano 2000, existem pistas nas próprias letras de música que deixam
perceber em qual época tal narrativa foi construída (temos, por exemplo, menção ao
então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso [mais presente nas letras sob
a sigla FHC], ao salário de então [R$ 151,00], ao preço de um jornal [R$ 0,50] e mesmo
à moeda utilizada na época e que dura até hoje: o Real [R$]). Estamos falando, portanto,
de um período pós-ditadura militar (que, no Brasil, durou oficialmente duas décadas:
1964-1984) e de um mundo pós-queda do muro de Berlim (e, utilizando-nos de uma
expressão trabalhada por Francis Fukuyama17, um mundo pós “fim da história”). De um
mundo que conhecera a ideologia socialista, mas cujos países – as classes dominantes
dos mesmos – “optaram” pela ideologia capitalista.

2.2.3 DOS GESTOS DE INTERPRETAÇÃO

“Esse tipo de proposta musical e cultural - principalmente um rap engajado e pesado como o do Facção
Central - redimensiona a forma como a população da periferia trabalha com a sua auto-estima. É o
primeiro gênero musical de massa em que os grupos excluídos rompem uma barreira cultural a partir de
uma produção própria, e não de uma concessão que vem de fora.”
(Frederico Oliveira Coelho, 2006)

Para começar este ponto, é imprescindível que apresentemos um breve esboço


do que a teoria da Análise de Discurso, a partir dos estudos conduzidos por Orlandi
(2009 [1999]), conceitua como „gesto de interpretação‟. Para tanto, fomos a um livro de
caráter introdutório sobre esta teoria, livro cujos trechos já foram inclusive mencionados
em outros momentos desta dissertação, e no qual a autora trabalha tal noção. Vale a
pena destacar, antes de fazermos a apresentação, que, para Pêcheux (1983), a análise de

17
Emseuartigopublicadonumarevistanorte-americana, no verão de 1989, artigoque, posteriormente,
deuorigem a um livrointitulado “O fim da história?”, essepesquisador da Johns Hopkins University,
dizque: “What we may be witnessing is not just the end of the Cold War, or the passing of a particular
period of postwar history, but the end of history as such: that is, the end point of mankind's ideological
evolution and the universalization of Western liberal democracy as the final form of human
government.” (grifo nosso) Disponível em << http://www.wesjones.com/eoh.htm>> acesso em
02/04/2012.

66
discurso se encontra num batimento contínuo entre a descrição e a interpretação e que,
para Orlandi (2009 [1999]), os objetos simbólicos reclamam sentidos. Sendo a língua
considerada um objeto simbólico, existe uma injunção à interpretação, ao significar.
Portanto, a teoria se faz num permanente batimento entre descrição e interpretação e
cabe ao analista de discurso trabalhar nesse entremeio. Diz a autora:
(...) o estudo do discurso distingue-se da Hermenêutica. A Análise do
Discurso visa compreender como os objetos simbólicos produzem
sentidos, analisando assim os próprios gestos de interpretação que
ela considera como atos no domínio do simbólico, pois eles
intervêm no real do sentido. A Análise do Discurso não estaciona
na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como
parte dos processos de significação. Também não procura um
sentido verdadeiro através de uma „chave‟ de interpretação. Não há
esta chave, há método, há construção de um dispositivo teórico. Não
há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que
o constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz
de compreender. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 26, grifos nossos)

Essa expressão, diz Orlandi, é utilizada como uma espécie de contraponto


teórico que a análise de discurso propõe à expressão “atos de fala”, de John Austin e
Searle.
Bem mais adiante, já na segunda parte do livro, próxima ao final, encontra-se
um parte do texto em que a autora vai explicar que existem “dois momentos da análise”
(Orlandi, idem) nos quais a interpretação aparece:

a. em um primeiro momento, é preciso considerar que a


interpretação faz parte do objeto da análise, isto é, o sujeito que
fala interpreta e o analista deve procurar descrever esse gesto de
interpretação do sujeito que constitui o sentido submetido à
análise;
b. em um segundo momento, é preciso compreender que não há
descrição sem interpretação, então, o próprio analista está
envolvido na interpretação. Por isso é necessário introduzir-se um
dispositivo teórico que possa intervir na relação do analista com
os objetivos simbólicos que analisa, produzindo um deslocamento
em sua relação de sujeito com a interpretação: esse deslocamento
vai permitir que ele trabalhe no entremeio da descrição com a
interpretação. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 60)

Então, Orlandi mostra que o papel do analista de discurso não é o de se colocar


de fora do funcionamento ideológico – como se isso fosse possível – não sendo
possível, portanto, ao analista assumir uma suposta neutralidade, mas o de atravessar “o

67
efeito de transparência da linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do
sujeito”, a fim de que se possa relativizar essa posição em que se encontra, diante da
interpretação. E completa, dizendo que “por isso é que dizemos que o analista de
discurso, à diferença do hermeneuta, não interpreta, ele trabalha (n)os limites da
interpretação”. (Orlandi, idem: p. 61)

Nesse sentido, sempre relacionando os gestos de interpretação à posição do


analista de discurso, Orlandi (op. cit.) mostra que

Fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre o real


da língua e o da história, entre o acaso e a necessidade, o jogo e a
regra, produzindo gestos de interpretação. De seu lado, o analista
encontra, no texto, as pistas dos gestos de interpretação, que se tecem
na historicidade. (Orlandi, op. cit.: p. 68)

Assim, temos que primeiro, a expressão “gestos de interpretação” desloca os


sentidos já fixados na expressão “atos de fala”, do terreno de um teoria linguística para
o da teoria do discurso. Ao falar “gesto”, a análise de discurso demonstra sua
proximidade com a teoria psicanalista lacaniana e, ao dizer “interpretação”, a teoria do
discurso desloca o foco da dicotomia língua vs.fala, instaurada desde Saussure, para a
dialética que dinamiza a relação entre descrição e interpretação, cujo batimento é a base
para a prática da análise de discurso.

2.2.4 DO SILÊNCIO E DO SILENCIAMENTO

Quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como significação, criou a linguagem
para retê-lo.
(Orlandi, 1997)

Orlandi (1997), em seu estudo sobre as formas do silêncio, nos diz que o silêncio
não é o vazio, a ausência de sentido, mas a base da significação. Diz-nos, também, que a
fala é um recorte nesse silêncio, um recorte que dá direção aos sentidos possíveis,
possibilidades que povoam esse espaço saturado. Nas palavras da autora,

A hipótese de que partimos é que o silêncio é a própria condição da


produção de sentido. Assim, ele aparece como espaço “diferencial” da
significação: “lugar” que permite à linguagem significar.

68
O silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício
de uma totalidade significativa. Isto nos leva à compreensão do
“vazio” da linguagem como um horizonte e não como falta. (Orlandi,
1997: p. 70, itálicos da autora)

Trata-se, portanto, do silêncio fundador: esse silêncio constitutivo, que significa


e que permite a significação na/pela linguagem. Tal concepção de silêncio, como
fundador, desloca os sentidos construídos sobre o silêncio ao longo da história dos
estudos da língua e da linguagem. A autora lembra, por exemplo, que não se deve
confundir silêncio com ausência de palavras, de sons ou de sentidos. Para Orlandi
(idem), o silêncio é um “acontecimento essencial da significação, ele é matéria
significante por excelência”, porque atravessa as palavras, não ficando, apenas, entre
elas. E a autora ainda ressalta a importância de não “traduzirmos” o silêncio em
palavras, porque trata-se de ordens distintas e, ao traduzir, está-se reduzindo esse caráter
múltiplo do silêncio.
Além dessa definição de silêncio enquanto constitutivo, a autora também propõe
uma divisão que é bastante produtiva para a nossa pesquisa. Diz Orlandi que, “além do
silêncio fundador, [...] há a política do silêncio, que, por sua vez, tem duas formas de
existência ligadas: a) o silêncio constitutivo e b) o silêncio local”. Mais adiante, a autora
continua sua explicação sobre essa distinção entre política do silêncio (silenciamento) e
silêncio fundador, afirmando que:

A diferença entre o silêncio fundador e a política do silêncio é que a


política do silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que
não se diz, enquanto o silêncio fundador não estabelece nenhuma
divisão: ele significa em (por) si mesmo.
Determinado pelo caráter fundador do silêncio, o silêncio constitutivo
pertence à própria ordem de produção do sentido e preside
qualquer produção de linguagem. Representa a política do silêncio
como um efeito de discurso que instala o antiimplícito: se diz “x” para
não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o
não-dito necessariamente excluído. Por aí se apagam os sentidos que
se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo
de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos.
O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas,
determinando consequentemente os limites do dizer. (Orlandi,
idem: pp. 75-76, grifos nossos)

A autora mostra também que a própria fala é um lugar de silenciamento, ou seja,


de produção do silêncio, o que significa na prática que, ao dizer a palavra/expressão
“X”, não se está dizendo a palavra/expressão “Y” e que essa “escolha” do sujeito por
uma ou outra palavra/expressão significa sua filiação a uma e não outra região de

69
sentidos. Podemos dar um exemplo desse silenciamento a partir de sequências retiradas
de nosso corpus: para retomar um discussão já iniciada anteriormente, podemos dizer
que o sujeito-rapper utiliza, como título de seu álbum (que também intitula uma música
desse mesmo álbum), a expressão “a marcha fúnebre”, para significar “música” ou
“produção musical”. Será?
Não podemos afirmar categoricamente que “marcha fúnebre” remeta somente à
memória do dizer sobre música. Temos que admitir que há a possibilidade de uma
remissão à memória da história do grupo, do silenciamento sofrido por ele e da forma
como esse sujeito significa a posição discursiva de um rapper. Dessa maneira, ao dizer
“marcha fúnebre”, não se está dizendo – ou seja, está-se silenciando, deixando no
campo do não-dito – outras formas, que não conseguiriam produzir tal efeito produzido
pela expressão efetivamente realizada.
As expressões “a produção musical” ou “as nossas músicas”, ou mesmo “a
batalha musical” são possíveis, mas não realizadas, e silenciadas, no momento em que o
grupo decidiu usar “a marcha fúnebre”. O que quer dizer que, ideológica e
inconscientemente, a expressão “escolhida” significa mais para o grupo do que qualquer
outra possível expressão. Se não, vejamos: falar “marcha” cala, por exemplo, o
corriqueiro que caracteriza o verbo “andar” e recupera uma memória de exército e, por
exército, a memória da ditadura. Vemos a metáfora funcionando aí e, por deslocamento,
uma remissão à memória do período ditatorial em que o país fora comandado por
militares (exército). E, ao trazer essa memória da ditadura, esse sujeito resiste ao
imaginário de que o sistema capitalista é essencialmente democrático, discurso com que
o sujeito pode se identificar e reproduzir – não sem as contradições inerentes à ordem da
língua. Dizer “fúnebre” cala os sentidos produzidos pelos termos “felicidade”,
“alegria”, “contentamento”, ou seja, sentimentos e emoções frequentemente
relacionados à contemplação da arte musical.
Esse conceito de silenciamento é muito relevante para a nossa pesquisa, porque
nos ajuda exatamente a vislumbrar os limites do dizer, dizer esse afetado pela censura
local sofrida pelo grupo Facção Central, no álbum antecessor do escolhido para este
trabalho. Ao formular, então, o sujeito acaba projetando esse “outro” imaginário e
confrontando-o com aquele que podemos dizer ser dominante na nossa formação social
capitalista “emergente”. Assim, vê-se bem quais sentidos são silenciados, porque não
podem/devem ressoar no discurso que produzem. Por exemplo, por se colocar enquanto
representante da periferia/favela, mesmo quando “cede” a voz aos seus “inimigos”, seus

70
outros, não é possível deslocar a “responsabilidade/culpa” para outro sujeito que não
sejam aqueles que, social e historicamente, (re)produzem a desigualdade de direitos e
que são, justamente, esses “inimigos”, esses “outros”. O que pretendemos dizer com
isso é que as formulações que comparecem na letra de música L9, intitulada Tensão, na
qual o sujeito narra um sequestro-relâmpago de um casal rico por bandidos, encontram
sua sustentação no discurso com o qual os rappers se identificam. Podemos observar tal
administração de sentidos a partir de construções como “não nego minha culpa no
menino faminto” ou “Mas, se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou culpado”. Isso
é uma forma de silenciar seu outro: colocar “na boca do outro” sentidos que fazem parte
do discurso de um.

2.3 DISCUTINDO A RESISTÊNCIA NA/PARA A TEORIA DO


DISCURSO
E o que é a resistência, em termos discursivos? (...) É ressignificar processos interpretativos já
existentes, seja dizendo uma palavra por outra, seja incorporando o non sens, ou simplesmente, não
dizendo nada.
(Mariani, 1996)

Diz o Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss, em sua versão eletrônica (3.0


de 2009), que os significados para a palavra resistência, substantivo feminino, podem
ser

1. ato ou efeito de resistir; 2. qualidade de um corpo que reage


contra a ação de outro corpo (...) 3. o que se opõe ao movimento de
um corpo (...) 5. capacidade de suportar a fadiga, a fome, o esforço
(...) 6.recusa a submeter-se à vontade de outrem; oposição, reação.
(...) 7. fig.aquilo que causa embaraço, que se opõe (...).18

18
Este verbete também foi consultado no Míni Houaiss Dicionário da Língua Portuguesa (2004, 2. ed. –
revista e aumentada). Nesse dicionário, estão elencados outros significados, que não comparecem na
versão eletrônica, utilizada na citação. Comparecem, na versão míni, os seguintes significados, não
elencados na versão eletrônica, ou elencados de maneira diferente: “(...) 4. defesa contra um ataque 5.
fig. recusa de submissão à vontade de outro 6. fig. reação a uma força opressora 7. fig. qualidade de
quem demonstra firmeza 8. fig. vigor moral; determinação(...)” Interessante notar que, embora na
versão eletrônica o significado de número 5 seja considerado não-figurado, literal, na versão míni o
mesmo significado número 5 aparece marcado como figurado (fig.).

71
Todas essas direções de sentidos sejam elas consideradas pelo Instituto
organizador do dicionário como figurado, ou não, são de extrema relevância para o que
este capítulo se propõe a discutir.
Mas antes, cabe elaborar algumas considerações acerca do que o dicionário nos
traz: em primeiro lugar, é interessante observar que existe uma divisão explícita na
apresentação das definições, em que vem marcada a posição do sujeito-autor desse
verbete, ao separar o que compreende como sentido figurado (observe a designação fig.
antes da apresentação do significado em questão) e como não-figurado (não vem
marcado por nenhuma designação, silêncio que reafirma a posição discursiva ocupada
pelo sujeito-autor: ao não ser marcado, esse sentido aparece como literal, evidente. Para
nós, enquanto analistas de discurso, vale lembrar, a literalidade é um efeito); depois,
podemos observar que as mesmas definições que comparecem na parte dos significados
não-figurados (literais, de acordo com a posição ocupada pelo sujeito-autor do
dicionário) também estão presentes para delimitar os sentidos figurados. Isso tem a ver,
sobretudo, com a circularidade característica do funcionamento do dicionário (Honório,
2002). Essa circularidade acaba desfazendo as fronteiras até então estabelecidas entre o
sentido não-figurado e o chamado sentido figurado, exatamente porque retoma palavras
e expressões já utilizadas na produção das definições “literais” durante a produção das
definições figuradas. Observemos os seguintes pares: reage – reação; se opõe –
oposição; suportar a fadiga – recusa a se submeter.
Se pensarmos em termos da relação do sujeito com o sentido, ou seja, em termos
de identificação, podemos observar que o sujeito-rapper se relaciona com a sua língua
materna, que vem a ser a língua oficial e nacional do país em que vive, recusando-se a
se submeter à organização imposta pela/os gramática/os, opondo-se a ela/es, resistindo,
mas não rompendo de vez com tal organização, uma vez que, apesar de recusar
determinados aspectos organizacionais, não deixa de produzir suas músicas de dentro do
sistema da língua portuguesa – sistema, aqui, sendo compreendido a partir da noção
trabalhada por Saussure e trazida até nós por meio do Curso de Linguística Geral, 1916.
Se o sujeito-rapper não mais se reconhecesse falante da língua portuguesa, ou melhor,
da língua brasileira (Orlandi, 2002), estaria produzindo seu discurso em outra língua.
Como essa ruptura total não ocorre, mas ocorre um certo nível de recusa a determinados
aspectos da organização preconizada pela gramática da língua, podemos dizer que há
uma contra-identificação entre falante (sujeito-rapper) e língua (brasileira).

72
Nossa hipótese é a de que a resistência – com as características mencionadas –
se marca na língua a partir do uso de advérbios de negação, vocativos, formas verbais
no presente do indicativo e no gerúndio, hipérboles, metáforas... Entendemos, também,
que o sujeito-rapper ocupa uma posição de “oposição”, de “defesa contra um ataque”,
de “recusa de submissão”, quando recusa a organização da língua e “fere a gramática
normativa”, produzindo dizeres que não se inserem na dita norma da escrita, tais como
ausência de concordâncias nominal e verbal, subordinadas adjetivas sem conjunção
integrante e com gerúndio, faz uso excessivo dos ditos “estrangeirismos”, faz uso das
chamadas “gírias”, não faz correlação temporal nem obedece às regências nominal e
verbal etc. É claro que esses aspectos podem ser observados a partir da compreensão de
que se trata de uma produção oral, que não tem pretensão de seguir as regras
gramaticais da escrita, mas, ainda assim, podemos entender essa produção como uma
tomada de posição, no caso, uma posição de sujeito que, dentro da formação discursiva
que abrange as normas da língua portuguesa no/do Brasil, resiste a algumas delas.
Talvez isso seja um processo de resistência ao “elitismo” que relaciona a educação da
língua ou mesmo a educação em geral ao poder econômico, numa sociedade
extremamente desigual como é a sociedade brasileira. Elitismo esse que surgiu junto
com a criação das primeiras faculdades no país e que também se relaciona intimamente
com a questão da gramática e dos gramáticos no Brasil. Afinal, não é qualquer favelado
que pode ocupar um lugar social de prestígio em relação à língua que “nasceu” falando.
Esse papel do sério (Orlandi, 2009 [1985]), do autorizado a falar sobre a língua não
cabe ao favelado, cuja educação não necessariamente passa pelas cadeiras dos colégios
ou das universidades formais. No entanto, ou talvez, por isso, esses sujeitos resistem,
recusando-se a uma organização linguística que significa – traduz, quiçá – para eles essa
desigualdade social com a qual não são coniventes e que, pela produção musical,
procuram modificar. Uma vez que não podem ocupar “legitimamente” uma posição
autorizada para falar da língua, fazem-no no próprio fio discursivo, a partir da assunção
de uma postura de resistência.
Nesse momento, vale a pena relembrarmos da posição de João Guimarães Rosa,
literato brasileiro do século XX, que também utilizava em suas obras uma outra
organização da língua que não aquela “reconhecida” pelos gramáticos, mas nem por
isso menos rica. Em nível de regras gramaticais, ele esbanjava criatividade e
desobediência.

73
Fique aqui esclarecido que não queremos comparar e igualar um e outro gestos,
porém é válido lembrar que ambos estão resistindo, mesmo não ocupando a mesma
posição discursiva, à forma-sujeito dessa formação discursiva que administra os
sentidos possíveis para a língua portuguesa do/no Brasil.
Após passarmos rapidamente pelo dicionário, pensarmos um pouco a relação
entre o verbete e as posições discursivas do sujeito-rapper e de Guimarães Rosa, é hora
de trazermos a contribuição de Pêcheux sobre o assunto resistência em Análise de
Discurso:
As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as
ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar
quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua
estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido
das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra;
deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as
palavras...
E assim começar a se despedir do sentido que reproduz o discurso
da dominação, de modo que o irrealizado advenha formando
sentido do interior do sem sentido. (Pêcheux, 1980: p. 17, grifos
nossos)

“Não escutar as ordens”, “falar quando se exige silêncio”, “mudar, desviar,


alterar o sentido das palavras e das frases” também são gestos que produzem um efeito
de resistência pelo sujeito-rapper aos sentidos instituídos como hegemônicos em nossa
sociedade. Observamos isso quando nos deparamos, por exemplo, com palavras tais
como “vítima”, cuja referência é construída discursivamente, pelo sujeito-rapper, de
forma bastante conflitante com o que historicamente a formação ideológica capitalista
procura significar.
Existe um silenciamento do político – divisão de sentidos –, na produção
discursiva da formação capitalista, em favor do administrativo. Diz-nos Orlandi (2004:
p. 34) que, na nossa sociedade do sujeito-de-direito, fortemente significado pelos
sentidos da cidade, o administrativo se sobrepõe ao político. Isso significa que a divisão
de sentidos não é desejada, pois a formação ideológica capitalista precisa administrar os
sentidos, fundando-se sobre o efeito de literalidade, para que as leis possam funcionar. E
sabemos que a obediência a essa figura que sustenta o funcionamento do Estado, a lei,
está inteiramente calcada no jogo ideológico de reconhecimento e legitimação, baseado
no par comando-obediência (Lagazzi, 1987): a relação imposta pelo sistema jurídico,
que faz funcionar a ideologia segundo a qual há uma liberdade irrestrita do sujeito. Com
Pêcheux (1988 [1975]), sabemos que é próprio da ideologia se dissimular no interior

74
mesmo de seu funcionamento, no momento em que o sujeito se constitui – e os sentidos
para ele –, ou seja, no momento mesmo da interpelação. E é com o objetivo de
administrar essa multiplicidade de posições-sujeito e de sentidos que o Estado procura
silenciar a relação do sujeito com o sentido, buscando tornar único o sentido, buscando
cessar os movimentos do sujeito e, com isso, silenciar também o que, para nós da
Análise de Discurso, é inerente à língua: o político, a divisão dos sentidos. É, pois,
necessário que se produza apenas um sentido para determinada palavra. E que esse
sentido funcione, univocamente. Indo nessa direção é que a memória social é
hegemonicamente posta como linear e homogênea, pela formação ideológica capitalista.
Contudo, Mariani, retomando Pêcheux (1999 [1984]), afirma que
A memória é não-linear, lacunar, mas seu efeito é apresentar
sentidos que se querem unívocos e estabilizados no fio do discurso.
O histórico e o linguístico significam de modo não transparente,
formam uma rede de significância, tecida de ambiguidades, de
repetições, de equívocos, conflitos etc. Os sentidos que constituem a
memória são muitos, mas aparecem como literais, unívocos. Mas
como o esquecimento é constitutivo da memória, o próprio lembrar
pode produzir outras direções de sentido. (Mariani, 1996: p. 42, grifos
nossos)

Os sentidos não são únicos, não sendo, portanto, únicas as posições que os
sujeitos podem ocupar no discurso. Mas é necessário, para a formação ideológico-
jurídica, que esses sujeitos sejam intercambiáveis, conforme nos diz Lagazzi (1988) ao
retomar Pêcheux (apudHaroche, 1984):
(...) através da indeterminação, o logicismo mecaniza a lei,
descontextualizando sua aplicação: „todo aquele que X, então Y‟.
Pêcheux nos mostra que estruturas sintáticas do tipo „aquele que VN‟
sofrem um „esvaziamento do objeto fora da função‟, o que leva à
indeterminação ou não-saturação, possibilitando a generalização
„todo aquele que VN”, “qualquer um que VN”. A causa é apagada
para que se observe apenas a consequência jurídica, ou seja,
apaga-se o social e o histórico para que a ordem se mantenha a
qualquer custo. É esse apagamento que sustenta a formação
ideológica-jurídica, possibilitando que a lei se coloque como igual
para todos. (Lagazzi, 1988: p. 42, grifos nossos)

E Lagazzi segue, lembrando que existe uma injustiça na proibição de distinções


pessoais por esse funcionamento da lei, que coloca os sujeitos como intercambiáveis,
porque apagam-se os contextos e generaliza-se. A autora diz que “o justo é a
possibilidade do diferente. (...) Os privilégios resultam das relações coercitivas

75
decorrentes do modo de produção e é contra elas que as leis deveriam atuar.”19
Destacamos essas sentenças, porque elas significam bastante para a questão da
resistência de que estamos a tratar.
Na contradição em que se encontra o sujeito-rapper, e na qual todos os sujeitos
acabam se encontrando, sob a “evidência” da unidade do ser – o primeiro esquecimento
ideológico, segundo Pêcheux (1988 [1975]) –, esse sujeito, inserido na formação
ideológica capitalista, portanto, sujeito às “relações coercitivas decorrentes do modo de
produção” capitalista, por vezes, posiciona-se discursivamente a favor da “igualdade
perante a lei”, o que equivale a dizer que, às vezes, o sujeito-rapper mostra um “menor”
grau de resistência à ordem estabelecida, apresentando uma posição quase que
reduplicada da forma-sujeito capitalista, a do sujeito-de-direito, recobrindo-se e aos seus
sentidos sob a sombra dessa forma-sujeito capitalista, porque busca a igualdade perante
a lei.
Lênin, um dos revolucionários da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas de
1917, não era um acadêmico no sentido estrito, desses que produzem de dentro das
universidades, contudo, era um estudioso e profundo conhecedor das teorias de Marx e
Engels e da teoria das formações sociais. Esse Lênin revolucionário publicou um livro
baseado num discurso proferido em maio de 1919, livro esse intitulado “Como iludir o
povo – com os slogans de liberdade e igualdade”. Nesse livro, ele nos diz que – e isso
tem tudo a ver com a questão da forma-sujeito capitalista e a contradição do sujeito-
rapper ao se mostrar, às vezes, alinhado com um princípio burguês, que remonta ao
período revolucionário francês do século XVIII e ao ideário da “fundação” dos direitos
do homem –

Engels tem toda razão quando afirma que o conceito de igualdade é


um preconceito estúpido e absurdo, separadamente da abolição de
classes. Alguns professores burgueses tentaram convencer-nos dum
conceito de igualdade pelo qual todos seríamos iguais. Tentaram
atribuir aos Socialistas este absurdo por eles inventado. Mas, na sua
ignorância, não sabiam que os Socialistas, e especialmente os
fundadores do moderno Socialismo Científico, Marx e Engels, tinham
afirmado: a igualdade é uma frase oca a não ser que por igualdade
se entenda a abolição de classes. Só destruindo as classes haverá
igualdade. (Lênin, 1979 [1919]: p. 33, grifos nossos)

Por isso, podemos considerar que, ao se posicionar como um reivindicador da


igualdade social, o sujeito-rapper acaba se filiando a uma rede de sentidos com a qual

19
Lagazzi, 1988:p. 43.

76
procura se confrontar quando critica o fato de que os bens materiais, o lucro, estão
acima do valor de uma vida, uma vida que, conforme dissemos lá atrás, tem cor,
endereço e lugar social determinados. Nesse caso, quando se identifica com o discurso
da igualdade dentro do capitalismo, o sujeito-rapper passa a pertencer ao rol dos
“iludidos”, se tomarmos a afirmação de Lênin como parâmetro para balizar nossa
compreensão de socialista: igualdade só com a abolição das classes, ou seja, fora das
bases do capitalismo.
Outra necessária e produtiva consideração acerca da resistência é a sua relação
com a censura, proposta por Moreira (2009). A partir da leitura que fez sobre as formas
do silêncio em Orlandi (1995 [1992]), aquela propôs que se trata de dois polos atuantes
numa mesma região de sentidos: “mas se a censura impede que o sujeito ocupe certas
posições no discurso, ela sempre traz no espaço mesmo de seu funcionamento a
resistência, o outro sentido; censura e resistência, enfim, „trabalham na mesma região
de sentidos‟.”
Pensando as condições de produção do Compact Disk (CD) cujas letras de
música são analisadas neste trabalho, temos que partir da memória da censura local
sofrida pelo grupo contra o CD anteriormente construído, para compreendermos o título
“A marcha fúnebre prossegue”. No latim clássico, de acordo com Saraiva (1927:
p.950), temos que a palavra pro – sim, na língua latina clássica, ou seja, naquela língua
que latinistas como Saraiva e Faria consideram como o latim usado durante o período
que compreende I a.C. – II d.C., designado pelo adjetivo clássico, o que hoje a língua
portuguesa reconhece enquanto contração “não-autorizada” gramaticalmente entre a
preposição para e o artigo determinado masculino singular o ou como prevérbio em
palavras como próclise, no latim clássico se tratava de uma palavra –, preposição que
podia funcionar como prevérbio, indicava “posição ou direção para diante”, sentido
reiterado pelo Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis 2000 (2000: p.
1699), que relaciona como significado para tal palavra/partícula o seguinte: “significa
antes, adiante”. Discursivamente, a palavra prossegue remete para uma memória de fim
de caminho, de impedimento para a continuação de uma caminhada, mas remete a fim
de negá-la.
Ao utilizar-se do prevérbio pro, o sujeito-rapper se contra-identifica com esse
impedimento, com essa censura, e se reafirma, significando também sua identificação
com uma posição discursiva outra que não aquela da “obediência” suposta pela

77
formação ideológica capitalista do sujeito de direitos – e deveres. Ele não para. E não
apenas segue, mas prossegue. Segue em frente, adiante: resiste.

2.4 DISPOSITIVO ANALÍTICO E OS PROCEDIMENTOS DE


DESSUPERFICIALIZAÇÃO
A exterioridade do discurso (...) não está fora, nem separada do que está dentro; daí ser chamada de
constitutiva.
(Ferreira, 1994)

Estamos aqui, de acordo com o esquema proposto por Pêcheux e Fuchs (2010
[1975]), diante de um processo de dessintagmatização linguística, ou seja, do nível da
língua e de sua organização (Orlandi, 2009 [1999]). Este nível, o da dessintagmatização
linguística (ou „dessuperficialização‟, segundo os supracitados autores franceses),

(...) remete à existência material da língua, caracterizada pela estrutura


não-linear dos mecanismos sintáticos e mais profundamente por tudo
aquilo sobre o que se exerce o „esquecimento nº 2‟. (Pêcheux e Fuchs,
2010 [1975]: p. 180)

Isso significa, conforme já explicamos, que estamos no nível do esquecimento nº


2, ou seja, no nível do esquecimento que remete à ordem da enunciação (Orlandi, 2009
[1999]):
O esquecimento número dois, que é da ordem da enunciação: ao
falarmos, o fazemos de um maneira e não de outra, e, ao longo de
nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o
dizer sempre podia ser outro. Ao falarmos “sem medo”, por
exemplo, podíamos dizer “com coragem”, ou “livremente” etc. (...)
Ela estabelece uma relação “natural” entre palavra e coisa. Mas
este é um esquecimento parcial, semi-consciente e muitas vezes
voltamos sobre ele, recorremos a esta margem de famílias
parafrásticas, para melhor especificar o que dizemos. É o chamado
esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o
modo de dizer não é indiferente aos sentidos. (Orlandi, 2009
[1999]: p. 35, grifos nossos)

A sintaxe significa, como nos afirma Orlandi (id., ibid.). Esta foi a pista que
seguimos para recortar as letras do rap e, assim, delimitar as sequências discursivas. O
conceito de recorte foi proposto por Orlandi (1984) como forma de organizar o trabalho
da AD:

78
O recorte é uma unidade discursiva. Por unidade discursiva,
entendemos fragmentos correlacionados de linguagem e situação.
Assim, um recorte é um fragmento de situação discursiva. (...)
Pretendemos que a ideia de recorte remete à polissemia e não à de
informação. (Orlandi, 1984: p. 14)

Dessuperficializar implica, portanto, recortar sequências discursivas. Estas SD‟s,


definidas conforme Courtine (1981), são “sequências orais ou escritas de dimensão
superior à frase” (Courtine, [1981]: p. 25). O conjunto de SD‟s corresponde ao nosso
corpus discursivo. Nesse corpus, observamos, para fins de análise, especificamente, o
funcionamento linguístico-discursivo das seguintes marcas: as denominações, a
negação, as orações adversativas, as condicionais e as causais, como veremos no
próximo capítulo.
Com esse procedimento de recorte, encontramos mais de duzentas sequências
discursivas, divididas de forma bastante desproporcional entre as quatro marcas formais
analisadas. Isso porque as marcas de negação comparecem também nas sequências
utilizadas para analisar as outras marcas. Só com a negação, encontramos cerca de cento
e quarenta marcas. Já com todas as outras marcas juntas, encontramos setenta e nove
sequências, ou seja, a negação é bastante presente no nosso corpus, apesar de estar
quase sempre acompanhada de uma conjunção subordinativa ou coordenativa.

79
3. O RAP E AS MARCAS DE RESISTÊNCIA

A Análise de Discurso não procura o sentido “verdadeiro”, mas o real do sentido em sua materialidade
linguística e histórica.
(Orlandi, 2009 [1999])

Após os procedimentos de dessuperficialização dos textos – recortes em


sequências discursivas –, procedimentos esses que objetivaram possibilitar a observação
e discussão das regularidades nos processos de produção dos sentidos, que se produzem
na/pela materialidade da língua, pôde-se perceber as marcas com e pelas quais esse
sujeito-rapper (se) significa. E, uma vez que ao analista de discurso cabe a tarefa de
trabalhar (n)o limite da interpretação (Orlandi, 2009 [1999]), produzindo um batimento
necessário entre descrição e interpretação, procurou-se depreender o funcionamento
discursivo e interpretar os processos de significação inscritos na ordem da língua
(Orlandi, 1996).

Nesse sentido, as pistas/construções sobre as quais incidiram as análises foram


as das denominações (substantivos, adjetivos e construções adjetivas), as das negações
(polêmicas), as causais e explicativas e as condicionais, pois, a partir dessas, é possível
não apenas observar como o sujeito-autor constrói sentido para/sobre seu lugar social,
mas também a relação que mantém com o complexo das formações discursivas e suas
formas-sujeito. Dizendo de outra maneira, foi possível pensar como esse sujeito se
posiciona discursivamente, lembrando que num mesmo texto o sujeito pode ocupar
diversas posições, sendo o sujeito autor o responsável pelo efeito de “unidade” que o
texto produz.

Dessa forma, foi possível relacionar o que o sujeito diz com o que ele não diz,
com o que poderia ter sido dito de outro modo e com o que é dito em outro lugar. Com
base nesses funcionamentos – negação, causa, condição, explicação e denominação –,
buscou-se compreender como o sujeito se relaciona com seu dizer e como constrói
discursivamente essa (ideia de) resistência. Para isso, dividiu-se este item em quatro
subitens, nos quais se discutiram desde a relação do sujeito com a língua até a própria
noção de língua, a partir das noções teóricas propostas por Orlandi (2002) de língua
imaginária e língua fluida e da compreensão discursiva de preconceito linguístico,
formulada por Mariani (2007).

80
No entanto, para nós, é interessante neste momento, esticarmos um pouco mais o
ponto, para podermos adentrar na discussão sobre as marcas com as quais trabalharemos
a seguir. Por isso, torna-se necessário observarmos de que modo linguistas como Mário
Perini (1978),Ingedore Koch (1987) e Garcia (1978) vêm trabalhando a questão das
relações entre frases, relações essas referentes ao sentido, o que, na divisão proposta no
corte epistemológico da fundação da linguística enquanto ciência, estaria no campo da
Semântica. Uma vez que nesta dissertação estamos trabalhando com a semântica
discursiva ou teoria do discurso, esse corte epistemológico apontado acima não se
coloca, não havendo, portanto, essa separação mecânica entre sintaxe e sentido.
Estamos buscando apreender como são produzidos os efeitos de sentido que as
construções sintáticas – ou mesmo sintático-pragmáticas – colocam em jogo quando da
sua formulação. Mesmo com essa distância teórico imposta pelas diferenças entre o
gerativismo, a linguística textual e a análise de discurso, considerando que estamos
introduzindo a análise das sequências discursivas que possuem elementos
gramaticalmente conhecidos como conjunções – aquelas palavras utilizadas para unir
orações, imprimindo à relação interfrástica determinadas direções de sentido –
coordenativas (mas, só que) e subordinativas (pois, porque, se).

Nesse sentido, sobre essas marcas linguísticas, diz-nos Perini (1996):

As conjunções que nos interessam no momento são subordinativas,


porque sua função é a de inserir uma oração (a subordinada) dentro de
outra oração (a principal). Na presente análise, o termo conjunção se
aplica apenas às “conjunções subordinativas” da gramática
tradicional; as “conjunções coordenativas” serão denominadas
coordenadores. Assim, podemos dizer que as conjunções são itens
léxicos que, colocados imediatamente antes de uma oração, formam
com ela um sintagma que é termo de alguma oração maior (no
capítulo 13, o leitor encontrará um estudo mais detalhado das
conjunções). Uma conjunção pode ser apresentada graficamente como
uma palavra (que, quando) ou como um grupo de palavras (visto que,
se bem que, sempre que). Conjunções deste último tipo funcionam de
certo modo como palavras únicas, pois suas partes não têm
independência sintática; e, a se levar em conta apenas a sintaxe,
poderiam ser grafadas sem espaço, como uma única palavra. No
entanto, a ortografia reflete o fato de que as partes dessas conjunções
têm alguma independência fonológica, pois conservam cada uma seu
acento próprio. (Perini, idem: p. 139)

A primeira observação a fazer é a de que Perini separa essas marcas em dois


grupos distintos. Somente à subordinação se pode nomear conjunção, restando, para as
coordenativas, o nome de “coordenadores”. Depois, ele explica que um conjunção,

81
portanto estamos no nível das orações subordinadas, pode ter apenas um item lexical –
um termo – ou ser composto por vários itens lexicais – mais de um termo – e aproveita
para mostrar que há uma certa equivalência funcional entre essas duas possibilidades de
realização da conjunção. A terceira observação que podemos fazer sobre a citação
acima é a que concerne à falta de explicação sobre o que Perini entende por
“coordenadores”. Fomos, então, ao décimo terceiro capítulo, ao qual o autor faz
referência, para saber como o autor trabalha a questão. Vimos que se trata de um
capítulo, inserido na divisão da gramática, que é responsável por apresentar a discussão
acerca das classes de palavras, o que nos levaria a antecipar que haveria uma abordagem
mais próxima de uma análise morfológica stricto sensu. No entanto, apesar de não partir
de uma discussão semântica, também não se atém à morfologia, mas abre uma
discussão no nível morfossintático:

Distinguiremos dois tipos principais de conectivo; o primeiro tem


como função sintática alterar a classe de um SN ou de uma oração –
ou, mais precisamente, acrescentar-se um SN ou a uma oração,
formando um sintagma maior que pertence a outra classe que não SN
ou O. A esses chamaremos conectivos subordinativos. O segundo
tipo tem como função sintática juntar dois (ou mais) constituintes de
mesma classe, formando o conjunto um constituinte maior que
pertence à mesma classe dos constituintes conectados. Esses são os
conectivos coordenativos. (Perini, idem: p. 333)

Quando, por fim, aborda a questão dos “coordenadores”, especificamente, faz uma
observação incompleta, mas que nos interessa:

Coordenador é uma palavra que liga dois constituintes de mesma


classe, formando o conjunto um constituinte da mesma classe que os
dois primeiros.

Os coordenadores mais típicos (e também os mais bem comportados)


são e eou. Outras palavras tradicionalmente classificadas como
“conjunções coordenativas” se assemelham a essas, mas apresentam
também diversas idiossincrasias que estão por estudar: mas, pois, nem,
que, porque e várias outras. (Perini, idem: p. 335)

Koch faz um caminho semelhante ao percorrido por Perini, no sentido de que


começa sua discussão a partir de um olhar sobre a gramática tradicional para, então,
apresentar as dificuldades que essa mesma gramática produz, ao se fixar no aspecto
formal. No capítulo de número seis, intitulado “As relações interfrásticas”, a autora traz,

82
como primeiro subitem, a questão da subordinação e da coordenação. Afirma ela, já no
início do capítulo, que

Os problemas com que se depara o estudioso ao tentar explicar os


conceitos de coordenação e subordinação, isto é, a questão da
dependência ou independência entre orações, decorrem do fato de se
adotarem critérios meramente sintáticos ou formais. Toda oração ou
conjunto de orações veicula significados; forma e conteúdo – como
também a maneira pela qual são veiculados – são conceitos solidários,
que não podem e não devem ser desvinculados no estudo da
linguagem humana. Foi por isso que se fez sentir a necessidade de se
incorporar à teoria linguística os componentes semântico e
pragmático: o funcionamento global de uma língua só pode ser
devidamente explicado por um estudo integrado dos três
componentes. (Koch, 1987: p. 111, grifos da autora)

Vemos que Koch (1987) começa relacionando coordenação e subordinação à


dependência e independência entre orações. Acrescenta que os problemas encontrados
pelos estudiosos ao trabalharem com as relações de subordinação e de coordenação
advêm da adoção, pela gramática tradicional, de “critérios meramente sintáticos ou
formais”. Ela entende que forma e conteúdo são “conceitos solidários” e que existe a
necessidade de incorporação, pela “teoria linguística” – reparemos que ela coloca toda a
expressão no singular –, dos “componentes semântico e pragmático” – pensando na
contribuição de cada uma dessas linhas para o estudo da língua(gem) humana, podemos
interpretar a consideração desses componentes como sendo o reconhecimento da
importância que têm os significados e a situação de interlocução, com sujeitos e cena,
para se alcançar o objetivo da teoria linguística, que seria o de explicar o
“funcionamento global de uma língua”.

No parágrafo seguinte, Koch (op. cit.) nos mostra que essa divisão tradicional
entre dependência e independência entre orações é insuficiente e, até certo ponto,
contraditória, uma vez que existe uma relação de interdependência entre as orações, “de
tal modo que qualquer uma delas é necessária à compreensão das demais” (Koch, idem:
p. 111). Novamente aqui, porém utilizando-se de uma construção bem diferente, a
autora aciona a memória do “sentido global do texto”, bem como o de texto como sendo
o resultado final de uma tessitura, em que várias linhas se combinam, são dependentes
entre si e formam um tecido.

Contudo, esses dois parágrafos não trazem exatamente o modo como a autora
conceitua as conjunções – se é que essa designação que ela usa para se referir às marcas

83
que queremos analisar. Na realidade, a autora percorre diversos estudos e estudiosos do
tema, indo desde a gramática de Port-Royal até Othon Moacir Garcia, passando por
Borba, Bally e Ducrot.

Após nos apresentar vários exemplos que, segundo Koch (1987), “poderiam ser
acrescentados aos de Borba e de Othon Moacir Garcia” (Koch, idem), a autora abre um
parágrafo em que discute sobre a validade da divisão tradicional entre orações
coordenadas, subordinadas e justapostas:

Em cada conjunto, encontramos orações que se costumam classificar


de coordenadas, de subordinadas e de justapostas. No entanto, todas
elas exprimem a mesma relação semântica, que exige,
necessariamente, a presença dos dois membros. Portanto, não há
autonomia entre elas, nem é lícito falar de oração principal e oração
subordinada, já que se pode inverter a forma de combinação do
binômio sem alterar a relação. Assim, em todo e qualquer período
composto por duas ou mais orações, verifica-se que há entre elas
uma interdependência, visto que a presença de cada uma delas é
necessária para veicular o significado pretendido. O simples fato
de o locutor apresentá-las em um só período, já significa uma
opção, que tem, portanto, consequências na constituição do
sentido.Se é verdade que, em muitos dos exemplos citados, a
primeira oração pode ser enunciada independentemente, o
acréscimo da segunda vem trazer um novo significado a todo o
conjunto; ela ora é responsável pela introdução de relações
semânticas como as de causa/consequência, meio/fim,
condição/condicionado, etc.; ora encadeia-se sobre a primeira, como
fator de progressão do discurso, sendo portadora de valores
pragmáticos de extrema relevância que a relacionam não só com
aquela, mas também com a própria enunciação. (Koch, op. cit.: p. 114,
grifos nossos, itálicos da autora)

Nesse parágrafo, Koch mostra que o sentido “global” está diretamente


relacionado à construção do conjunto: “se é verdade que, em muitos dos exemplos
citados, a primeira oração pode ser enunciada independentemente, o acréscimo da
segunda vem trazer um novo significado a todo o conjunto”. No que tange a essa
questão de relações entre orações e sentido global, Koch se aproxima bastante da
concepção da análise de discurso, porque relaciona sentido com o modo como se
formula o enunciado, modo esse que não é indiferente para os processos de produção de
sentido(s). Mas a autora se afasta novamente, quando não considera em seu corte
epistemológico as contribuições que as teorias das ideologias e do inconsciente
trouxeram para a discussão sobre sentido, sujeito e língua. Além disso, é importante
frisar, linguística textual não entende o discurso como um objeto teórico, como é o caso

84
da análise de discurso, mas como a linguística entende, ou seja, como um termo
equivalente, senão como sinônimo, ao termo fala.

Antes de passarmos para o tratamento dessa questão dado pela Análise de


Discurso, queremos trazer a discussão proposta por Othon Moacir Garcia, a partir da
sua obra Comunicação em prosa moderna (1978), referência também para o
desenvolvimento das análises das conjunçõespoise se, marcas que apontam para os
efeitos de causa e de condição.

Logo no início, especificamente no primeiro capítulo, desse que é um de seus


livros mais conhecidos, diz Garcia, no que tange às orações coordenadas e
subordinadas:

1.4.1 Coordenação e subordinação: encadeamento e hierarquização

Num período composto, normalmente estruturado – isto é, não


constituído por frases de situação ou de contexto –, as orações se
interligam mediante dois processos sintáticos universais: a
coordenação e a subordinação. A justaposição, apesar de
legitimamente abranger uma e outra, é ensinada no Brasil como
variante da primeira, e a correlação, como variante da segunda.
(Garcia, idem: p. 16)

Vemos, já de saída, que: a) trata-se de um trabalho teórico que se enquadra no


escopo da teoria da comunicação; b) há uma divisão central entre articulação de orações
“processos sintáticos universais”: coordenação e subordinação; c) há uma nova
categoria, ainda não mencionada por nenhum outro dos dois linguistas pesquisados: a
correlação – que, segundo o autor, seria uma variante da subordinação tanto quanto a
justaposição seria uma variante da coordenação. Parece-nos, portanto, que estamos
diante de um trabalho que está situado, se é que podemos afirmar isso, numa interface
entre linguística e teoria da comunicação20. Veremos mais adiante, neste mesmo
capítulo, as implicações teóricas, para as análises, das diferenças entre essa linha e a
Análise de Discurso.

Seguindo o assunto dos “processos sintáticos”, Garcia afirma, sobre a


coordenação, que

20
Na contracapa do livro, em sua sétima edição, há um artigo de autoria de Paulo Rónai, no qual se
pode ler: “COMUNICAÇÃO EM PROSA MODERNA se caracteriza por uma abordagem revolucionária do
problema da expressão. Em vez de partir do material disponível que oferecem os textos, de classificá-lo
e rotulá-lo, o autor toma como ponto de partida as ideias que reclamam comunicação.” (grifos nossos)

85
Na coordenação (também dita parataxe), que é um paralelismo de
funções ou valores sintáticos idênticos, as orações se dizem da mesma
natureza (ou categoria) e função, devem ter a mesma estrutura
sintático-gramatical (estrutura interna) e se interligam por meio de
conectivos chamados conjunções coordenativas. É, em essência, um
processo de encadeamento de ideias(...). (Garcia, idem: pp. 16-17)

Sabemos, com esse parágrafo sobre as orações coordenadas, que Garcia


conceitua essa relação sintática como sendo “um paralelismo de funções ou valores
sintáticos idênticos” e que as orações desse tipo são interligadas por meio das
conjunções coordenativas. O autor finaliza essa primeira conceituação falando sobre a
“essência” da relação coordenativa, que seria “um processo de encadeamento de ideias”.

Nos parágrafos seguintes, Garcia se detém a dissertar sobre as conjunções


coordenativas, sempre mostrando exemplos. O interessante nessa parte do capítulo é o
último parágrafo anterior ao parágrafo em que trata da subordinação. Ali, o autor coloca
a questão da dependência entre orações como critério para a divisão entre os processos
subordinativos e os coordenativos. Esta é a primeira vez, desde que introduziu o
assunto, que o autor utiliza esse critério para diferenciar esses funcionamentos
sintáticos. Ao mesmo tempo, nesse parágrafo, Garcia questiona tal critério, dizendo que

As explicativas e conclusivas, mais até do que as adversativas,


estabelecemtão estreitas relações de mútua dependência entre as
orações por ela interligadas, que a estrutura sintática do período
assume características de verdadeira subordinação (...). (Garcia,
idem: p. 19, grifos nossos)

Quanto à subordinação, diz-nos Garcia que a característica desse tipo de relação


sintática entre orações é a “desigualdade de funções e de valores sintáticos” (idem: pp.
19-20). Isso demonstra que o autor está partindo do mesmo critério utilizado para
introduzir a discussão sobre coordenação. Mas, logo na continuação, o autor adentra a
seara da dependência entre as orações num período composto. Novamente, como já
vimos em Koch e em Perini, está em jogo aqui não só a questão da dependência
sintática, mas também a da dependência semântica. Por fim, inserida na discussão sobre
a dependência de sentido (semântica), está a discussão sobre a completude do sentido e,
com base nesse critério semântico, o autor diferencia oração de frase, aproveitando para
mostrar que nem sempre uma e outra coincidem, uma vez que a última tem sempre
sentido completo e definido. Vejamos:

Na subordinação (também chamada hipotaxe), não há paralelismo


mas desigualdade de funções e de valores sintáticos. É um processo de

86
hierarquização, em que o enlace entre as orações é muito mais estreito
do que na coordenação. Nesta, as orações se dizem sintática, mas nem
sempre semanticamente, independentes; naquela, as orações são
sempre dependentes de outra, quer quanto ao sentido quer quanto ao
travamento sintático. Nenhuma oração subordinada subsiste por si
mesma, i.e., sem o apoio de sua principal (que também pode ser outra
subordinada) ou da principal do período, da qual, por sua vez, todas as
demais dependem. Portanto, se não podem subsistir por si mesmas, se
não são independentes, é porque fazem parte de outra, exercem função
nessa outra. Isto quer dizer que qualquer oração subordinada é, na
realidade, um fragmento de frase, mas fragmento diverso daquele que
estudamos nas frases de situação ou de contexto (...). “Se achassem
água por ali perto” é uma oração, mas não uma frase, pois nada nos
diz de maneira completa e definida; é apenas uma parte, um termo de
outra (“beberiam muito”), na qual exerce a função de ajunto adverbial
de condição”. (Garcia, idem: pp. 19-20)

Contudo, é somente quando abre o subitem seguinte, intitulado Falsa


coordenação: coordenação gramatical e subordinação psicológica que Garcia vai
realmente centrar sua discussão sobre os processos sintáticos de subordinação e
coordenação a partir do critério semântico, utilizando como apoio argumentativo a
questão da autonomia (do grego αυτονομία, que, segundo o Houaiss, na sua versão
eletrônica, é definido como “direito de reger-se segundo suas próprias leis”) do sentido.
Damos agora, novamente, espaço às palavras do autor:

1.4.2 Falsa coordenação: coordenação gramatical e subordinação


psicológica

Segundo a doutrina tradicional e ortodoxa – como já assinalamos –, as


orações coordenadas se dizem independentes, e as subordinadas,
dependentes. Modernamente, entretanto, a questão tem sido encarada
de modo diverso. Dependência semântica mais do que sintática
observa-se também na coordenação, salvo, apenas, talvez, no que diz
respeito às conjunções “e”, “ou” e “nem”. Que independência existe,
por exemplo, nas orações “portanto, não sairemos”? e “mas ninguém o
encontrou”? Independência significa autonomia, autonomia não
apenas de função mas também de sentido. Que autonomia de sentido
há em qualquer desses dois exemplos? Nenhuma, por certo. A
comunicação de um sentido completo só se fará com o auxílio de
outro enunciado: “Está chovendo; portanto, não sairemos”; “Todos o
procuraram, mas ninguém o encontrou”. (Garcia, idem: pp. 20-21)

O que Garcia entende por subordinação psicológica é a insinuação, que não se


realiza gramaticalmente como uma estrutura subordinativa, de uma ideia relacional
entre orações. E dá um exemplo, retirado de Rocha Lima, que pode ser interessante para
entendermos esse funcionamento dos sentidos subjacentes às conjunções (no caso do

87
quer...quer, uma conjunção coordenada alternativa): “Irei, quer queiras, quer não
queiras. equivale a Irei, se quiseres ou (e) mesmo que não queiras.” (p. 23). Essa
subordinação psicológica o autor classificou como concessivo-condicional. E, na
continuação desse exemplo, o autor questiona a definição da gramática tradicional de
orações coordenadas:

Portanto, quando se diz que as orações coordenadas são da mesma


natureza, cumpre indagar: que natureza? lógica ou gramatical? As
conjunções coordenativas que expressam motivo, consequência e
conclusão (pois, porque, portanto) legitimamente não ligam orações
da mesma natureza, tanto é certo que a que vem por qualquer delas
encabeçada não goza de autonomia sintática. O máximo que se poderá
dizer é que essas orações de “pois”, “porque” (dita explicativa) e
“portanto” são limítrofes da subordinação. Em suma: coordenação
gramatical mas subordinação psicológica.

Por isso, muitas vezes, um período só é aparentemente coordenado.


(Garcia, idem: p. 23)

Interessante notar a observação feita pelo autor quando da abertura do subitem


intitulado Outros casos de falsa coordenação. Nesse parágrafo inicial, ele faz uma
análise que relaciona a construção da justaposição (ou “coordenação assindética”, ou
seja, sem conjunção) com o sentido. E seria muita ousadia afirmar que nesse parágrafo o
autor mostrou uma veia de analista de discurso, ao colocar em jogo a pontuação, ao
comparar excertos e funcionamentos e ao procurar mostrar o que, na teoria, chamamos
de efeito de sentido de causa / consequência? Vejamos o que ele diz:

1.4.3 Outros casos de falsa coordenação

Este tipo de justaposição – também dito coordenação assindética – é


muito comum nas descrições sumárias:

O céu se derrama em estrelas, a noite é morna, o desejo sobe da terra


em ondas de calor. (Jorge Amado, São Jorge dos Ilhéus, p. 118)

Ou nas narrativas breves:

O grito da gaivota terceira vez ressoa a seu ouvido; vai direto ao lugar
donde partiu; chega à borda de um tanque; seu olhar investiga a
escuridão, e nada vê do que busca. (J. de Alencar, Iracema, XII)

No primeiro exemplo, as orações estão separadas por vírgula,


inclusive as duas últimas, com o que o autor parece insinuar que não
arrolou todos os aspectos do quadro descrito, deixando a série como
que aberta, em virtude da omissão de um e entre as duas últimas
orações. No segundo, as unidades estão separadas por ponto-e-vírgula,
salvo as duas últimas, que vêm ligadas pela conjunção “e”, com a qual
o autor parece “fechar” a série, como se tivesse enumerado todos os
detalhes dignos de menção. (Garcia, idem: p. 24)

88
Então, depois de todo esse levantamento bibliográfico sobre as conjunções, a
subordinação e a coordenação, a partir das teorias gerativista, linguística textual e
argumentativa, é necessário que voltemos novamente nossos olhos sobre a discussão
travada por Pêcheux a respeito desses temas. Para isso, buscamos o apoio no seu livro,
publicado em 1975, Semântica e discurso. Nessa obra, o filósofo francês trabalha as
noções conhecidas pelos nomes de subordinação e coordenação a partir de outra
teorização, que está mais próxima daquilo que conhecemos como subordinada adjetiva
restritiva e subordinada adjetiva explicativa, mas que não deixa de ter seu contato com
as relações entre orações citadas acima: articulação e encaixe.

O encaixe é discutido a partir do trabalho de Paul Henry sobre o pré-construído


– noção importantíssima para a condução de nossas análises, neste capítulo. Diz, então,
Pêcheux (2010 [1975]), após expor as contradições observadas na teoria de Frege:

Foi isso que levou P. Henry a propor o termo “pré-construído” para


designar o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre
independente, em oposição ao que é “construído” pelo enunciado.
Trata-se, em suma, do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático.

Nessa perspectiva, a “ilusão” de que fala Frege não é o puro e simples


efeito de um fenômeno sintático que constitui uma “imperfeição da
linguagem”: o fenômeno sintático da relativa determinativa é, ao
contrário, a condição formal de um efeito de sentido cuja causa
material se assenta, de fato, na relação dissimétrica por
discrepância entre dois “domínios de pensamento”, de modo que
um elemento de um domínio irrompe num elemento do outro sob
a forma do que chamamos “pré-construído”, isto é, como se esse
elemento já se encontrasse aí. Especifiquemos que, ao falar de
“domínio de pensamento”, não estamos querendo designar conteúdos
de pensamento fora da linguagem, que se encontrariam na linguagem
com outros conteúdos de pensamento: na verdade, todo “conteúdo de
pensamento” existe na linguagem, sob a forma do discursivo.
(Pêcheux, idem: p. 89, grifos nossos, itálicos do autor)

No que tange à articulação de enunciados – note-se que o termo enunciado aqui


tem um uso específico que remete à teoria da análise de discurso, uma outra construção
teórica. Em Indursky (1997), vemos a seguinte explicação acerca dessa noção,
explicação que se apoia na leitura de M. Foucault (1969) e de Courtine (1980):

Courtinerafirma Foucault ao apontar o enunciado |E| como elemento


do saber próprio a uma FD, ao mesmo tempo que lhe atribui um outro
estatuto. Para Courtine, o enunciado consiste em um esquema geral
que governa a repetibilidade no interior de uma rede de
reformulações. O autor entende por rede de formulações o conjunto
estratificado (não sintagmatizado) de formulações que consiste nas
formulações possíveis de |E|. Trata-se de uma dimensão vertical e

89
interdiscursiva, onde os objetos se formam como preconstruídos. As
diferentes redes de formulações que se estabelecem em uma FD são
responsáveis pelo processo discursivo da FD em questão. Os
enunciados articulam-se entre si, no interior dessa rede, estabelecendo
a referência dos elementos do saber de uma FD. (Indursky, idem: p.
36)

E Pêcheux (idem: p. 101)nos diz que

(...) na verdade, acabamos de reconstituir o mecanismo da relativa


“explicativa”, que tem como característica essencial o fato de
constituir, em si mesma, o que Frege chama um pensamento, isto é,
um elemento saturado, por oposição à relativa “determinativa”, e ao
efeito de pré-construído correspondente estudado mais acima:
podemos ser mais precisos, ao observar que a proposição explicativa
(que, como saliente Frege, pode, entre outras possibilidades, se
parafraseada por uma subordinada introduzida por “porque”) intervém
como suporte do pensamento contido em uma outra proposição, e isso
por meio de uma relação de implicação entre duas propriedades, α e β,
relação essa que enunciamos sob a forma “o que é α é β”. Daremos a
essa relação o nome de efeito de sustentação, destacando que é ela que
realiza a articulação entre as propriedades constituintes. (Pêcheux,
idem: p. 101)

Parece-nos estar o filósofo discutindo estritamente sobre as orações


subordinadas adjetivas determinativas (ou restritivas) e explicativas, ou seja, a
impressão que nos passam esses dois capítulos é a de que está Pêcheux fixado apenas no
funcionamento das subordinadas. Mas, mais adiante, no capítulo seguinte ao da última
citação, ele afirma:

Procuramos desenvolver ao máximo a concepção idealista que ameaça


a “teoria do discurso”, a partir de diversos pontos de ataque, que
podem ser resumidos da seguinte maneira: o primeiro desses pontos
diz respeito a uma interpretação formalista dos mecanismos
linguístico discursivos do encaixe (determinação) e da articulação de
enunciado; interpretação que leva ao segundo ponto, que consiste num
acobertamento da oposição ciências / ideologias pelo par idealista
Lógica (= ciência) / Matemática. (Pêcheux, idem: p. 121)

Portanto, estamos falando de um outro lugar teórico, que, como vimos dizendo
repetidamente, possui um objeto próprio – o discurso –, bem como instrumentos
teóricos próprios, dentre os quais estão as noções acima apontadas: articulação e
encaixe. É, logo, desse ponto que partimos para conduzir nossas análises. Saindo as
posição gramatical e reinserindo a questão da ideológica da contradição, e da luta de
classes, que caracterizam a sociedade capitalista em que as letras foram produzidas e
postas em circulação e que serão trabalhadas neste capítulo, poderemos observar como

90
se dão os funcionamentos discursivos, para daí chegarmos ao processo discursivo, a fim
de que possamos contemplar os embates ideológicos ali em jogo.

3.1 “EU TÔ FAZENDO O QUE O SISTEMA QUER”: FORMAÇÕES


IMAGINÁRIAS, POSIÇÕES-SUJEITO E
FORMAÇÕESDISCURSIVAS

“(...)o rap assumiu o lugar da canção de protesto e é, hoje, a única música de contestação. É um gênero
que tem fôlego para crescer. Sua importância não está em revelar a realidade da periferia - já que toda
música revela uma realidade -, mas em ser uma forma de expressão, de convencimento e de persuasão
para os seus ouvintes.”
(Luiz Tatit, 2007)

No álbum A marcha fúnebre prossegue, cujas letras estamos analisando,


encontramos uma tentativa do sujeito-autor de dar unidade e homogeneidade às
divergentes posições de sujeito que nessas letras comparecem. Se, em um momento,
esse sujeito se coloca próximo de uma posição revolucionária (ver L12 – Discurso ou
revólver), em outro momento, esse mesmo sujeito se posiciona mais distante desse viés
revolucionário e mais próximo de uma posição reformista, mais dentro do sistema
capitalista jurídico, porque enxerga nas leis do Estado sua referência de justiça (em L3:
“não tem inquérito pra TV que tem a vadia nua/ novela das 6, 7, 8, sem ministério nem
censura/ só o meu rap é nocivo pro sistema hipócrita”). Esta heterogeneidade de
posições caracteriza o material que temos nas mãos. Mas essa também é uma
característica dos textos, enquanto unidades de significação, textos que têm, sob a figura
do autor, a produção do efeito de unidade, de homogeneidade. Autor de acordo com a
função descrita por Foucault (2008 [1971]):

Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma


época [desde o século XVII], a função do autor não cessou de se
reforçar: (...) eis que, agora, se lhes pergunta (e exigem que
respondam) de onde vêm, quem os escreveu; pede-se-lhe que revele,
ou ao menos sustente, o sentido oculto que os atravessa; (...). O autor é
aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus
nós de coerência, sua inserção no real. (Foucault, idem: pp. 28-9)

Interpretando essa passagem essencial para o que vimos dizendo sobre a


heterogeneidade de posições discursivas até aqui, podemos dizer que é o sujeito
investindo na função de autor que confere ao texto, um bólido de sentidos (Orlandi,
91
2009), seu fio central, sua linha condutora, seu efeito de homogeneidade e “seus nós de
coerência”.

No entanto, não são apenas diferenças de posições discursivas que encontramos


ao analisar as letras. Encontramos, também, embates entre formações discursivas
distintas, o que podemos observar a partir das disputas de sentido travadas sobre, por
exemplo, as palavras vítima, vitória, herói, justiça. Será que essa possibilidade de
vislumbrar duas ou mais formações discursivas demonstram a existência de um
esgarçamento tal das relações de identificação desse sujeito-autor com as diferentes
posições, que chega ao nível de uma ruptura quase total, ao ponto de uma
desidentificação mesmo com sentido A, ao mesmo tempo em que ocorre um
estreitamento na relação desse mesmo sujeito-autor e o sentido B, ou seja, é possível
observar a ocorrência de uma “nova” identificação, agora com outra matriz de sentido,
ou formação discursiva? Poderemos, ou não, chegar a uma afirmação dessa natureza
após as análises.

Segundo nossas análises, na posição de sujeito rapper, podemos observar que


são produzidas, ao menos, seis diferentes imagens do lugar de rapper, as quais
denominamos do seguinte modo, “respondendo” à pergunta subjacente “quem sou eu
para lhe falar assim?”:

IAR (R1) = “sou” o mensageiro de um futuro trágico

IAR (R2) = “sou” o porta-voz da favela/periferia

IAR (R3) = “sou” o arrependido, lamentoso

IAR (R4) = “sou” a vítima

IAR (R5) = “sou” o revoltado sanguinário

IAR (R6) = “sou” o revolucionário

Cada uma dessas imagens comparece, geralmente, mais de uma vez em cada
domínio (cada domínio significando cada letra de música que, nesta dissertação,
marcamos com a letra L em maiúsculo seguida do número que representa a faixa da
música no álbum, p.e.: L5) e, em mais de um domínio.

92
De acordo com o efeito de sentido que é produzido em determinado domínio, pode-
se observar a prevalência de uma ou outra imagem. É o caso, p.e., da L10, intitulada De
encontro com a morte, em que a imagem que comparece com maior força é a Ia(A)1, ou
seja, a do mensageiro de um futuro trágico. Além disso, cada imagem possui um
funcionamento específico, que permite “identificá-la”:

a) A IAR (R1) se constrói a partir da presença de uma forma verbal perifrástica para
construir o futuro do presente, na qual o verbo auxiliar é sempre o verbo ir
conjugado – o que confere um efeito de inexorabilidade ao verbo principal, que
aparece no infinitivo –, ou mesmo apenas com o verbo conjugado no futuro do
presente simples.
SD1: “A fome e a miséria mostram o fruto que a sociedade vai colher” (L2)
Podemos afirmar, considerando o silêncio constitutivo, que ao dizer “vai” +
“colher” (verbo) o sujeito-rapper não está dizendo “pode colher” ou “quer
colher”. Ele não modaliza: afirma categoricamente, assevera: “vai”.
b) A IAR (R2), a que denominamos de porta-voz da favela/periferia – não é muito
difícil de perceber que, nas letras, produz-se uma mesma referência para essas
duas palavras: lugar e modo de ser –, vem construído a partir de verbos e
pronomes substantivos ou adjetivos na primeira pessoa do singular ou do plural,
seguidos de expressões que remetem a favela/periferia.
SD2: “Sou periferia em cada célula do corpo” (L7)
Vale a pena lembrar aqui que “periferia” funciona enquanto um atributo de um
sujeito, e não enquanto o lugar de origem desse sujeito, que viria designado pela
expressão composta pela locução preposicionada “de” + “nome do lugar” (p. e.,
“da periferia”).
c) O tom de lamento e arrependimento da IAR (R3) tem origem na construção
baseada num embate entre um passado possível mas irrealizado e um presente de
dificuldades. Trata-se de um confronto entre o ideal e a realidade e tudo isso se
marca a partir de verbos no pretérito perfeito e imperfeito, normalmente em
construções que utilizam marcas de oposição, como, por exemplo, as orações
negativas e as coordenadas adversativas, havendo, ainda, um caso de concessiva.
SD3: “Meu coração de ódio queria paz, acredite! Mas agora sou eu e o atirador
de elite.” (L10)

93
Entre o querer (verbo volitivo, de vontade), do campo do hipotético, e a cena da
realidade, há um “mas” que marca a distância existente: a direção argumentativa
(veremos essa questão no subitem 3.2) é dada pelo sentido da oração encabeçada
pela conjunção adversativa, o que mostra que o sujeito se identifica com a “cena
da realidade”, argumento decisivo se comparado com a “vontade” representada
pelo verbo querer no imperfeito do indicativo, presente na oração anterior.
d) A IAR (R4), vítima, constrói-se, sobretudo, com orações na voz passiva com ou
sem agente expresso; com a marca da terceira pessoa tanto do singular quanto do
plural.
SD4: “O moleque do pipaé transformado num homicida.” (L2)
Veja que o verbo na voz passiva mostra que o sujeito da passiva, entendido
como aquele que sofre a ação verbal, é “o moleque do pipa”: há aí uma inversão
completa do sentido de “escolha” e de “vontade”, se pensarmos no sentido que o
discurso dominante impregna e cristaliza a respeito da infância na favela. Aqui,
colocando-o como objeto de uma ação, o sujeito-rapper desloca a
responsabilidade da “escolha” individual para um outro lugar, um lugar
coletivamente instituído: o da figura do Estado, metaforizado pelos termos
Brasil e país, que aparecem preenchendo o papel de sujeito em diversas outras
formulações, e que podem ser recuperados como o agente da passiva (ou sujeito
da ativa), discursivamente.
e) Na IAR (R5), a imagem do revoltado sanguinário se produz a partir de palavras e
expressões que remetem a situações comumente consideradas violentas. Essas
expressões podem ou não conter palavras como sangue e/ou suas derivadas.
SD5: “Virei o ladrão com a faca, que mata com frieza.” (L6)
Mesmo estando o verbo virar na primeira pessoa da singular (do pretérito
perfeito do indicativo), na voz ativa, o que cria a expectativa de que o sujeito age
sobre algo, o próprio entendimento desse verbo nos permite perceber a transição
subjacente: virar > tornar-se > transformar-se em... Esse fato expõe que houve
um processo de transformação produzida por algo/alguém sobre esse sujeito
(eu), que se estranha e se descobre como ladrão, cuja característica é “matar com
frieza”. Observemos que a escolha do verbo, conhecido gramaticalmente como
“de ligação”, porque ligaria o sujeito ao seu atributo, denuncia que esse sujeito
gramatical não se vê responsável pela prática moral e juridicamente entendida
como ilegal (“matar”).

94
f) A imagem IAR (R6) tem uma simetria de funcionamento com a IAR (R5) e se
marca por palavras e expressões que remetem a um cenário de revolução, com
conclamação a uma ruptura radical.
SD6: “O Brasil não aceita pobre revolucionário, o marginalizado defensor do
favelado.” (L7)
É interessante observar que o termo revolucionário é definido como “o
marginalizado defensor do favelado”, expressão que sucede o termo, separados
uma do outro por vírgula. Podemos recuperar como o Facção Central se define:
“representante do barraco”, ou seja, como porta-voz do favelado / morador da
periferia. Discursivamente, então, temos um deslocamento do significado de
revolucionário, que desliza do transformador radical da sociedade para o
“marginalizado defensor do favelado”, ou seja, para um sujeito que questiona a
ordem estabelecida, posicionando-se ao lado daqueles que precisam de defesa
(favelados). Facção Central se coloca, assim, na posição de revolucionário,
porque é o marginalizado porta-voz dos favelados.

Nesse sentido, resumindo todas essas imagens, e cruzando-as com os domínios


(letras de música), obtivemos o seguinte quadro (repare que o sinal de + aparece para
marcar a presença da imagem no domínio e que o sinal de – aparece para marcar sua
ausência):

95
QUADRO IMAGENS X LETRAS

Ia(A)1 Ia(A)2 Ia(A)3 Ia(A)4 Ia(A)5 Ia(A)6


L2 + - - + - -
L3 + + - + + -
L4 + - + - + -
L5 + - - + + -
L6 + - + + + -
L7 + + + + + +
L8 + + - - + -
L9 + - + + + -
L10 + - + + + -
L11 + + + + + -
L12 - - - + + +
L13 + + + + + -
L14 + + + + - -
L15 + + - + + -
L16 - + - + - -
Figura 4

Este quadro nos deixa ver, por exemplo, que os domínios L11 e L13 são bastante
parecidos em relação às imagens que o sujeito-rapper faz da posição de um rapper.
Interessante perceber que, justamente, nessas letras intituladas Eu tô fazendo o que o
sistema quer e Sem luz no fim do túnel respectivamente, não aparece a imagem do
revolucionário. Outra constatação a que se pode chegar observando esse quadro é que a
imagem mais presente não é a do revolucionário, que comparece em apenas dois
domínios, mas a do mensageiro de um futuro trágico e a da vítima. Essas constatações
são interessantíssimas, porque podem permitir a observação das posições que esse
sujeito ocupa no discurso e quais as contradições que são produzidas a partir de cada
uma dessas posições.

A imagem do outro também é construída. Trata-se da imagem que o sujeito-


rapper faz daquele a quem ele fala, ou seja, Ia(B). Como pudemos mostrar, esse outro é
sempre uma antecipação produzida pelo sujeito-autor, antecipação essa que é
constitutiva das condições de produção desse discurso, uma vez que o sujeito-autor

96
produz seu material sonoro necessariamente imaginando (antecipando) um interlocutor
(virtual, que pode ou não corresponder ao “real”, ou seja, àquele que efetivamente
lê/ouve suas letras/músicas), e esse interlocutor não aparece representado de uma forma
marcada, com “falas” representativas, a não ser na letra L9 (Tensão), na qual o sujeito-
rapper “narra” um sequestro relâmpago e “cede” voz ao pensamento/fala do
personagem que sofre esse assalto (personagem que representa esse outro, mas que não
é esse outro!). Nesse âmbito, foi possível encontrar algumas marcas presentes no fio
discursivo que nos permitem vislumbrar quem seria esse outro a quem o eu/nós da
posição de sujeito-rapper se opõe. Para isso, buscamos sobretudo as denominações.
Nesse sentido, recortamos essas denominações das sequências discursivas (SD) com
base principalmente em sintagmas nominais (artigos, pronomes/substantivos, adjetivos).
Esses sintagmas ocupam tanto a posição gramatical de sujeito como de objeto
direto/indireto e de vocativo (ou seja, a quem o sujeito-rapper antecipa como sendo o
seu interlocutor).

Encontramos as seguintes denominações, cuja enumeração está dividida entre as


diferentes letras:

L2: o policial contente

L3: promotor, a classe rica, empresário na Cherokee, doutor, TV sensacionalista,


sistema porco, sistema hipócrita, empresário rico, país falso moralista, tia da mansão,
filho da madame, empresário bem sucedido.

L4: gambé [policial], o dono da empresa, cuzão [que vive no condomínio e que limpa o
rabo com dinheiro], o dono do jato, filho da puta, playboy, madame, arrombado que me
critica, gambé porco, a burguesa.

L5: rica de Mitsubishi, a vaca, boy, gambé do DENARC, um boy tá de Ferrari, outro
[boy] é dono de avião, moleque do condomínio, um cu de Audi, velha.

L6: mãe

L7: desgraçado, o Brasil, rimador da alegria, favela, os porcos, mídia, vaca rica, quem
me faz roubar o executivo, dono do iate.

L8: algum cu, algum rico, socialite, a cadela rica, um político cínico, essa vaca, modelo
puta, pagodeiro, sertanejo, quem acende charuto com nota de 100 reais, a puta de

97
megafone, apresentador cuzão falso moralista, quem faz comercial contra a violência é
o mesmo que quer o sangue pra ganhar audiência, arrombado de blindado.

L9: dono do jato, coroa, sua piranha.

L10: lambe-saco de boy, o sistema, tia, o menino de olho azul.

L11: puta rica, viúva histérica, o boy cuzão, o boy tem clube no campo e conta no
exterior, cuzão que come caviar e lagosta, o dono da mansão, a BMW da burguesa
vadia, boy porco de olho azul, quem tem tudo na mesa, dono de empresa, madame de
chofer.

L12: Hitler, FHC, capitão do mato, professor, o Presidente, o inimigo.

L13: país do caralho

L14: a rica cheia de joia, o boy de rolexcherokee vidro fumê, refém milionária.

L15: o monstro do horário político que com a dor do indefeso compra mercedes e
coloca obra de arte valiosa na parede, vadia, um porco que faz o macarrão do lixo ser
meu almoço, a cadela rica, o prego do condomínio, o dono do porche que também tem
um jato que vai pra Cali noite e dia, o branco articulado e bem vestido que não saca o
cano mas rouba até nos estados unidos, réu, autor intelectual do massacre na favela,
engravatados filhos da puta, político porco.

Vemos, então, um grande número de designações, assim como podemos


observar muitas repetições. Quando o ouvinte antecipado pelo sujeito-rapper é um
policial, ou seja, quando o ouvinte imaginado pelo rapper é um sujeito que representa a
força policial, as designações podem ser: „o policial contente‟; „gambé‟ („porco‟, „do
DENARC‟); „os porcos‟; „os lambe-saco de boy‟. Se considerarmos que a regularidade
está na qualificação depreciativa dos membros da corporação policial, podemos também
considerar que „o policial contente‟ produz um efeito de ironia, na qual o sujeito-rapper
encaminha a argumentação na direção oposta daquela que poderia ter seguido,
promovendo um desencontro semântico com relação à expressão utilizada. Ou seja, diz-
se uma coisa, a fim de significar o seu oposto. Diz-se „o policial contente‟, para
significar „o policial preocupado‟, adjetivo que aparece expresso na continuação do
verso onde se encontra tal expressão “irônica”.

98
Da mesma forma, podemos proceder com o imaginário construído em relação
aos outros „outros‟ desse grupo de letras de músicado Facção Central. Podemos
observar que, para se referir à classe – no sentido de luta de classes marxista, entre
proletários, aqueles que podem apenas vender sua força de trabalho, e burgueses, ou
detentores dos meios de produção de capital – oposta àquela da qual faz parte, o sujeito-
rapper enuncia as expressões: „a classe rica‟; „empresário na Cherokee‟; „doutor‟;
„empresário rico‟; „tia da mansão‟; „filho da madame‟, „empresário bem sucedido‟; „o
dono da empresa‟; „cuzão [que vive no condomínio e que limpa o rabo com dinheiro]‟;
„o dono do jato‟; „filho da puta‟; „playboy‟; „madame‟; „arrombado que me critica‟; „a
burguesa‟; „rica de Mitsubishi‟; „a vaca‟; „boy‟; „um boy tá de Ferrari‟; „outro [boy] é
dono de avião‟; „moleque do condomínio‟; „um cu de Audi‟; „velha‟; „vaca rica‟; „dono
do iate‟; „algum cu‟; „algum rico‟; „socialite‟; „a cadela rica‟; „essa vaca‟; „modelo
puta‟; „quem acende charuto com nota de 100 reais‟; „a puta de megafone‟; „arrombado
de blindado‟; „dono do jato‟; „sua piranha‟; „tia‟; „o menino de olho azul‟; „puta rica‟;
„viúva histérica‟; „o boy cuzão‟; „o boy tem clube no campo e conta no exterior‟; „cuzão
que come caviar e lagosta‟; „o dono da mansão‟; „a BMW da burguesa vadia‟; „boy
porco de olho azul‟; „quem tem tudo na mesa‟; „dono de empresa‟; „madame de
chauffeur‟; „a rica cheia de joia‟; „o boy de Rolex, Cherokee vidro fumê‟; „refém
milionária‟; „vadia‟; „um porco que faz o macarrão do lixo ser meu almoço‟; „a cadela
rica‟; „o prego do condomínio‟; „o dono do Porche que também tem um jato que vai pra
Cali [Colômbia] noite e dia‟; „o branco articulado e bem vestido que não saca o cano
mas roubam até nos Estados Unidos‟; „réu‟; „autor intelectual do massacre na favela‟;
„engravatados filhos da puta‟.

Nessas designações, a primeira coisa a se notar é que existe uma designação para
cada um dos elementos que compõem as famílias mononucleares burguesas:
denominações para as mulheres, para os maridos e para os filhos. Sendo essas
designações, assim como para os policiais, também de qualificação depreciativa,
podemos verificar algumas regularidades nas significações, como é o caso das
denominações para os membros do sexo feminino: „vaca‟, „vadia‟, „puta‟, „piranha‟,
„cadela‟, todas formando um campo semântico de desprestígio, de desvalorização.

Há, nas referências à prole dos membros dessa outra classe, a dos possuidores de
bens e de meios de produção, as seguintes designações: „boy‟, „menino de olho azul‟, „o
boy de Rolex, Cherokee vidro fumê‟, „playboy‟, „filho da madame‟, „moleque do

99
condomínio‟. Essas designações promovem um corte bastante específico, mesmo que
tomemos as característica citadas como metonímias do tipo: „o boy’, designação voltada
para o sexo masculino, também pode ser uma referência à denominação não expressa
„girl’ (meninos e meninas dessa outra classe, inimiga dos pobres e favelados); „o
menino de olho azul‟ pode ser referido a todas as outras cores de olhos claros, comuns
aos nativos de países do hemisfério norte, que, política e economicamente falando,
remetem à memória da riqueza, a posses, a bens materiais, portanto, referir-se a„o
menino de olho azul‟ é fazer um corte em relação aos meninos de olhos escuros, cores
comuns nos países do hemisfério sul, países política e economicamente
“subdesenvolvidos”, sobretudo devido às centenas de anos durante as quais foram/são
explorados e alienados de suas riquezas, o Brasil é um exemplo de país do hemisfério
sul que também se caracteriza pelo “subdesenvolvimento” social, político, econômico...

As outras designações se referem à figura paterna dessas famílias, herdeiras do


patriarcalismo, sistema de organização familiar em que o “pai” é o provedor, aquele que
gere a família também no âmbito econômico, além de possuir o poder de decisão sobre
questões de outras naturezas além da financeira, afinal, no capitalismo, que sobrevive
do funcionamento das famílias mononucleares, cada membro da família tem uma
função específica no que concerne à reprodução-perpetuação do sistema. Também nas
designações dessas figuras patriarcais, encontramos depreciação e um corte de classe:
„empresário (na Cherokee, rico, bem sucedido)‟, „dono (de empresa, do jato, de avião,
do iate, do Porche que também tem um jato que vai pra Cali [Colômbia] noite e dia)‟,
„doutor‟, „branco articulado e bem vestido que não saca o cano mas roubam até nos
Estados Unidos‟, „engravatados filhos da puta‟, „autor intelectual do massacre na
favela‟, „cu de Audi‟, „cuzão‟, „prego do condomínio‟.

Dizemos que há resistência nessas construções discursivas de referência sobre a


classe burguesa, porque esse sujeito-rapper procura não reproduzir as “evidências” que
a memória social capitalista brasileira tenta impor: o rapper inverte essa “lógica”,
alçando como a “vítima” não o empresário que sofre um assalto, o que a mídia e as
peças publicitárias procuram fixar de modo estereotipado, mas aquele que já nasce
rejeitado pelo sistema capitalista, aquele que não serve sequer para compor o que os
capitalistas chamam de exército de mão-de-obra reserva, aqueles que não tem seus
direitos mínimos garantidos, aqueles que moram em favelas, em condições degradantes
de sobrevivência, aqueles cujo núcleo familiar é majoritariamente composto por muitas

100
crianças e poucos ou nenhum pai, aquele para quem a escola é apenas um sonho
distante, porque ou ela não existe, ou possui um formato tal que o inclui excluindo.
Lembremos, neste momento, que estamos nos referindo aos direitos burgueses, cuja
semente foi plantada no final do século XVIII, com as revoluções liberais francesa e
estadunidense, principalmente. Enfim, com essa inversão de importâncias, colocando o
„empresário bem sucedido‟ no banco dos „réu‟s, o sujeito-rapper resiste e acaba por
participar de um outro imaginário, não um instaurado por ele, mas um outro imaginário
que produz sentidos, apesar de não passar nas telas da TV, sentidos com os quais esse
sujeito se identifica. Portanto, trata-se de um imaginário outro, de onde esse sujeito
retira seus sentidos para (se) significar. Isso não quer dizer, no entanto, que não haja
contradições nesse/para esse sujeito. Na verdade, tanto essas contradições existem como
elas serão mostradas na parte em que apresentamos as análises das marcas de negação,
de adversidade, de causalidade e de condicionalidade. Nas negações, sobretudo, vemos
de forma bastante clara como essa contradição se dá, pois ali o sujeito acaba assumindo
como seu o imaginário contra o qual procura lutar e que conseguimos observar no
funcionamento das designações aqui elencadas. Esse sujeito parte de outros enunciados
para formular, enunciados esses que constroem previamente um imaginário
“reformista”, de sustentação do capitalismo, e não de ruptura com tal sistema. Mas tudo
isso só será melhor mostrado e exemplificado mais adiante.

3.2 LÍNGUA FLUIDA E LÍNGUA IMAGINÁRIA: A CONSTRUÇÃO DA


RESISTÊNCIA À LÍNGUA, NA LÍNGUA

Porque a língua, tal como a intuí por aquela experiência no contato com os índios, é sem limites. Como
um imenso rio, como um Xingu, que os olhos não abrangem, não seguram, não limitam. Fluida.
(Orlandi, 2009 [1985])

Língua fluida e língua imaginária são duas noções teóricas pensadas e


elaboradas por Orlandi (2009 [1985]), quando de uma „pesquisa de campo fora dos
parâmetros da chamada Linguística Antropológica‟, com índios Xerente e Assurini. O
primeiro aspecto a se destacar é o de que essas noções se deram a partir de um
cruzamento entre a posição de alguém que teoriza e de alguém que inicia um olhar
sobre a história das teorias. Outro não menos relevante aspecto é o de língua, o objeto
teórico construído pela linguística, que acaba por se firmar enquanto um campo
científico a partir da publicação das ideias de Saussure no livro de Sechehaye e Bally

101
(1916) chamado de Curso de Linguística Geral. Esse objeto teórico foi proposto a partir
da dicotomia saussureana de língua x fala. A primeira, um fenômeno social, possuidora
de uma estrutura que pode ser descrita, suscetível à regularização, à sistematicidade, à
teorização, capaz de unidade. A segunda, incapaz de unidade, considerada resto por
possuir caráter individual, não sujeita à classificação, não sujeita à análise. A noção de
sistema e de sistematicidade que desenham conceitualmente uma linha que separa
língua de fala, para Saussure. E Orlandi (2009 [1985]) mostra que Chomsky segue o
mesmo caminho, por via de outra teorização, a da teoria da sintaxe, e dicotomiza
competência e desempenho, elencando o primeiro como objeto teórico. Assim, como
aponta Orlandi, ambos veem na unidade um elemento central para suas respectivas
teorias.

Mas a teoria do discurso, por não se tratar de uma teoria de língua, tal como a
linguística pensa a língua, propõe um outro corte epistemológico, e constrói, como
objeto teórico, o discurso. Isso, isoladamente, já promove um deslocamento nas
teorizações, deslocamento esse que propicia novos modos de se relacionar com a língua:

Para a teoria do discurso a língua tem sua unidade, sua própria


ordem, com a diferença que não é um sistema perfeito, nem uma
unidade fechada: a língua é sujeita a falhas e é afetada pela
incompletude.Ela é, como diz P. Henry (1975) „relativamente
autônoma‟. Como tenho dito muitas vezes, o lugar da falha e a
incompletude não são defeitos, são antes a qualidade da língua em sua
materialidade; falha e incompletude são o lugar do possível. Daí a
diferença, a mudança, o equívoco. (Orlandi, 2009 [1985]: p. 12, grifos
nossos.)

Assim, temos que a língua é lugar do possível, da mudança, do equívoco e não


apenas da reprodução. Nesse sentido, podemos dizer, com Pêcheux (1975), que a língua
é o lugar da reprodução-transformação, transformação via deslocamentos de sentidos.
Isso tudo nos permite pensar na língua como lugar de resistência.

Contra essa possibilidade de resistência, de deslocamento, de transformação,


temos a língua imaginária, essa que é suscetível à sistematização, objeto de teorização,
que tende a ser sanada de toda e qualquer possibilidade de “erro”. E o poder da
resistência está exatamente naquilo que seria o inanalisável, o inclassificável, o
ilimitado da língua fluida, aquela que escapa às tentativas de teorização e que “resta”,
que não cabe em fórmulas, que se movimenta:

102
Em nosso imaginário (língua imaginária) temos a impressão de uma
língua estável, com unidade, regrada, sobre a qual, através do
conhecimento de especialistas, podemos aprender, termos controle.
Mas na realidade (língua fluida) não temos controle sobre a língua
que falamos, ela não tem a unidade que imaginamos, não é clara e
distinta, não em os limites nos quais nos asseguramos, não a
sabemos como imaginamos, ela é profundidade e movimento
contínuo.Des-limite. (Orlandi, 2009 [1985]: p. 18, grifos nossos)

Como veremos mais adiante, quando confrontarmos conceitos propostos pela


gramática tradicional, pela semântica argumentativa, pela linguística textual e,
finalmente, pela análise de discurso, poderemos observar com mais atenção como se dá
essa tentativa de conter a língua, de aprisioná-la dentro de fórmulas que, na língua
fluida, não são totalmente possíveis. Veremos, por exemplo, como uma chamada
conjunção condicional prototípica pode funcionar produzindo um efeito de sentido de
causa. Veremos, também, como há outras formas conjuntivas que auxiliam na produção
de um sentido de oposição, mas que não se encontram elencadas nas gramáticas na
seção sobre conjunções adversativas. Tudo isso afeta e é afetado pela língua imaginária,
e se produz na mobilidade da língua fluida.

3.2.1 A NEGAÇÃO

Uma das marcas mais expressivas nas produções discursivas com as quais se
trabalha nesta dissertação é a negação. Presente de maneira constante em todas as
músicas, seja por meio de prefixos com sentido de privação (“in-felizmente”; “im-
potência” – L2), seja por meio de advérbios (“não” – L2), preposições (“sem” – L2) e
conjunções (“nem” – L3), as formas de negação chamaram a atenção de imediato.21
Porém, para fins desta pesquisa, recortamos apenas sequências discursivas que
contivessem a negação construída com o advérbio “não” explicitado. Mas, para poder
caminhar pela trilha das negações, é necessário, primeiro, pensar sobre o que elas nos
trazem discursivamente, e não apenas linguisticamente.

Encontramos mais de cento e quarenta sequências discursivas, que estão


relacionadas abaixo:

SD1: O ladrão nervoso, trêmulo, não quer algema da polícia.

21
Neste trabalho, optamos por não retomar as análises que Ducrot (1992) faz sobre a negação, uma vez
que o nosso quadro teórico da análise de discurso discute a negação por outro caminho, como veremos
a seguir.

103
SD2: O moleque esquecido no fundão da periferia vai cansar de pedir
esmola, de não ver comida na panela (...), vai arrumar um revólver,
tentar resolver seus problemas através do sangue da cabeça de um
gerente de banco.

SD3: Censurou o clipe, mas a guerra não acabou.

SD4: Não é assim, promotor, que a guerra vai acabar.

SD5: Não tem inquérito pra TV que tem a vadia nua.

SD6: A justiça não quer ouvir que o moleque que o pai dá as costas
pode invadir seu apê, derrubar sua porta.

SD7: Não sou eu que coloco o mano lá no banco, estorando o gerente,


saindo trocando.

SD8: Eu não preciso estimular o latrocínio, nem o sequestro


relâmpago de um empresário rico.

SD9: O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora.

SD10: O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda.

SD11: Não vem me colocar de bode expiatório, país falso moralista, é


você que quer velório.

SD12: E quem não olha pro moleque sem infância, no morro, oitão na
cinta, sangue na mente, apetitoso.

SD13: Não é desculpa pra revolta, porque não é seu filho.

SD14: O seu [filho] tá de Audi, alimentado e bem vestido. Vai se


tornar empresário bem sucedido. Não vai precisar gritar “assalto!” em
nenhum ouvido.

SD15: Não queria o moleque com a faca na mão, ajoelhando o tio


grisalho, querendo seu cartão.

SD16: Queria só rimar choro de alegria, mas na favela não tem


piscina, armário com comida.

SD17: Cuzão que não concorda com o holocausto brasileiro vive no


condomínio, limpa o rabo com dinheiro.

SD18: Ladrão trocando, pra não ser preso.

SD19: No céu não tem Deus, só o helicóptero da polícia,


descarregando a traca no fugitivo da delegacia.

SD20: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a
marcha fúnebre prossegue.

SD21: Meu relato é sanguinário, playboynão vai curtir.

SD22: Não simulo sentimento, pra vender CD.

SD23: Não vou falar de paz, vendo a vítima morrer.

104
SD24: Não iludo o casal, dirigindo feliz à pampa.

SD25: Caixão lacrado não estimula o verso alegre.

SD26: Sem pai de família gritando “assalto!”, ou sendo feito de


escravo, com 1-5-1, por mês, de salário, que não enche nem metade
do carrinho no mercado.

SD27: [1-5-1, por mês, de salário] Não paga luz e água, o aluguel do
barraco.

SD28: Cuzão dá o malote, herói não sobrevive.

SD29: Não tenho futuro.

SD30: Não sou jogador. Sou, na cena do crime, o principal ator.

SD31: Boy, quando ouvir “assalto!”, não precisa chorar, apenas são
teus cães adestrados pra matar.

SD32: Sem negociação, comigo é só terror. Não cumpriu minha


exigência, a vítima sente a dor.

SD33: Na agência bancária, vou tirar nota A. Se o gerente não


colaborar: pá! pá! Miolo no ar!

SD34: Aprendi que não é justo eu na caixa de papelão, enquanto um


boy tá de Ferrari e o outro é dono de avião.

SD35: Papai Noel, eu não sou um bom menino! Eu busco o conforto


através do latrocínio.

SD36: Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha! Não pra encher
panela, mas pra ter carro, fumar pedra.

SD37: Mãe, não dei valor pro teu sonho, sua luta.

SD38: Não fui seu orgulho: diretor de empresa.

SD39: Não mereci sua lágrima no rosto, quando chorava, vendo a


panela sem almoço.

SD40: Enquanto você juntava aposentadoria, esmola, pra não ter


despesa, eu tava no bar, jogando bilhar, bebendo cognac, bêbado.

SD41: Não atravessa o meu caminho.

SD42: Se não, vou te matar.

SD43: O Brasil não aceita pobre revolucionário.

SD44: Ameaça não intimida.

SD45: Eduardo não faz tremer.

SD46: Fala mal de mim, rimador da alegria. Pelo menos não sou puta.

SD47: Não vendi minha ideologia.

SD48: Não traí minha história, minha raiz no cortiço.

105
SD49: Oficial de justiça não apreendeu meu cérebro. Dentro e fora da
cadeia: locutor do inferno.

SD50: Um careca de jaqueta: aqui é rapper Facção. Não vai te dar


notícia com o sangue da vaca rica.

SD51: Cuzão não entendeu.

SD52: Rap não é campeonato.

SD53: Pra vender CD, não precisa do meu fracasso.

SD54: Não me deram faculdade pra eu me formar doutor, então, a rua


me transformou no demônio rimador.

SD55: Enquanto meu corpo não virar carniça, eu tô no rádio, no


vídeo, lançando minha ofensiva.

SD56: O moleque decapitado no esgoto, no lixo, é só uma estatística,


um furo jornalístico, banal pro circo do falso moralismo, não abala a
cadela rica nem um político cínico.

SD57: Não somos só notícia, número de estatística.

SD58: A puta de megafone, no palco, gritando, não sabe o que é


fome, só entende de tamanco.

SD59: Não é o Stalone metralhando o segurança, é outro excluído,


querendo vingança.

SD60: A minha história não tem maquiagem.

SD61: O meu ponto de vista não é feito pra vendagem.

SD62: Eu não agrado gambé nem arrombado de blindado.

SD63: O boynão quer meu bem. Só quer minha pistola.

SD64: Quem quer tá no condomínio, vivo e feliz, não pede paz só


quando tem defunto no Jardins.

SD65: Não tem como gritar nem dar alarme.

SD66: Por que não fui morar na Europa?

SD67: Talvez seja algum moleque que eu não dei esmola.

SD68: Cala a boca, doutor. Não dá mais nem um pio!

SD69: Se não, te mando com tua vaca pra puta que o pariu!

SD70: Diferente de você, não tenho BMW. Só um cômodo no


barranco que, com a chuva, tá soterrado.

SD71: Teu filho vai pra escola com vigia, detector, enquanto o meu
não tem aula nem professor.

SD72: Não uso grife, sapato italiano.

SD73: Eu nãotô na moda. Nem etiqueta tem nos meus pano.

106
SD74: Por isso, seu sangue não me comove.

SD75: Aí, coroa,não me tira!

SD76: Então, cuzão, dá um tempo. Fica quieto! Talvez, se der sorte,


não vai parar no necrotério.

SD77: Então, por que não estraçalham a cabeça do político?

SD78: Não nego minha culpa no menino faminto.

SD79: Mas, se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou culpado.

SD80: Não chora pelo carro! Seguro paga outro!

SD81: Não acredito que eu cheguei nesse ponto!

SD82: Por que não me matou no lugar dele?

SD83: Não previ a vadia da mãe implorar:

SD84: Pelo amor de Deus, não morre!

SD85: Sei que vou morrer, não posso fugir!

SD86: Só não quero mais moleque morrendo assim.

SD87: Hoje não tem aula.

SD88: O professor não veio.

SD89: Querendo brinquedo, um carinho de alguém, não paulada na


cara, do monitor da FEBEM.

SD90: Não queria um rifle FAO aos doze anos.

SD91: Eu não queria achar que o herói era o assaltante de banco.

SD92: Aí, moleque, não faz o que o sistema quer.

SD93: Não borbulha sua vida, nessa porra de colher.

SD94: O menino de olho azul não vai passear no domingo.

SD95: Sem ilusão: não tem colete nem carro.

SD96: O Brasil não se comove, se sou eu que peço o passe.

SD97: Não dá futuro roubar o carro forte.

SD98: Não arrisque sua vida pela porra do malote.

SD99: É triste saber que minha mãe não vou ver mais.

SD100: Eu não sou fictício, sou monstro agressivo.

SD101: O boy cuzão que só vê morte pela sky, no sofá, não foi pra
Europa, agora assiste meu desejo de matar.

SD102: Agiliza os dólares, os diamantes, se não, arranco teu coração,


te afogo no rio de sangue.

107
SD103: Ódio lapidado por um pai bêbado, porco, que batia na minha
mãe, porque não podia comprar o almoço.

SD104: Pra mim, não tem Cherokee nem iate, nem restaurante cinco
estrelas, nem Audi.

SD105: Não quero ser igual o tiozinho do bairro, que trampaquartenta


anos, pra passar fome aposentado.

SD106: Cuzão que come caviar e lagosta não sabe o que é viver um
minuto nessa porra.

SD107: Quando o filho dele chorar, sem ter nada no prato, não vai pra
rua implorar de mão estendida.

SD108: Seu chip no peito não vai me segurar.

SD109: Se não blindar o coração, não tem cooper na praça.

SD110: Se não por armadura, não tem surfe na praia.

SD111: Me diz se não parece filme do seu DVD.

SD112: Preferia tá na escola, na biblioteca, no shopping, comprando


pra minha filha uma boneca, ter cartão de crédito, cheque cinco
estrela, não tá matando alguém pra por o leite na geladeira.

SD113: Suplicar pro gambé derrubando sua porta não bater na sua
mulher, não atirar nas suas costas.

SD114: Caminho um: a voz do povo, aqui, não é a voz de Deus.

SD115: Entendeu por que não tem escola pra você?

SD116: Não adianta ser milhões, se não somos um.

SD117: Discurso ou revólver? Não interessa a opção.

SD118: Não acredito na paz, no futuro.

SD119: Não quero vassora igual meu pai. Vou ser tipo os manos da
rua.

SD120: Não canto esperança, porque não vendo ilusão.

SD121: País do caralho! Não me deixa ter um carro.

SD122: Não tem livro na favela, biblioteca.

SD123: Quatro da manhã, esmagado no busu até o centro, pra, no


final do mês, não ter um grão de alimento.

SD124: Pro meu povo não tem arquiteto, juiz ou empresário.

SD125: Não queria te ver na maca, cuspindo sangue, quase morto.

SD126: Não seja só mais um número de estatística, um corpo no bar,


vítima de outra chacina.

108
SD127: É embaçado saber que a propaganda na TV de carro, casa
própria, não foi feita pra você.

SD128: Entendo o motivo. Sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de
não ter nada na panela.

SD129: Não caia na armadilha, siga a minha apologia. Mesmo de


barriga vazia, esquece a joia da rica.

SD130: Quem não quer ter uma casa com piscina?

SD131: Só que o conforto não vem através do revólver.

SD132: O gambénão quer saber o seu motivo.

SD133: Não interessa se é pro remédio da sua mãe, pra fumar crack
ou beber champagné.

SD134: Por isso, não tem um de nós no Congresso, na Câmara. Aqui


é só ladrão em estado vegetativo, na cama.

SD135: Não faça os porcos aplaudirem mais um noia analfabeto.

SD136: O sistema tem que chorar, mas não com você matando na rua.

SD137: Eu não sou louco. Se pá, é muito pouco.

SD138: Não se preocupa! A tortura é só um método usado pra


investigar, reprimir, no sistema carcerário.

SD139: O choque no saco que te faz tremer faz parte do currículo de


quem não tem o que comer.

SD140: O boy acha que quem merece a morte é o que grita “assalto!”,
o que grita “dá a chave! Sai do carro!”, não o branco articulado e bem
vestido, que não saca o cano, mas roubam até nos Estados Unidos.

SD141: Cuzão na TV diz que urna não é pinico. Que voto consciente
muda o cenário político.

SD142: Quem põe almoço embaixo da blusa, no mercado, não tem


pra ler jornal nem cinquenta centavos.

SD143: Não vejo mais crianças felizes brincando no parque. Agora


estão com ódio no peito, com uma doze ou fumando crack.

SD144: Aqui não existe formatura. Só vejo pulso algemado, corpo


decapitado, no mato.

Das muitas formas de entrada e de exploração desse farto material, uma possível
é a divisão das sequências a partir do sujeito gramatical que comparece no intradiscurso
(fio discursivo): primeira, segunda ou terceira pessoa do discurso. Esta, no entanto,
apesar de ter sido considerada primeiro, não foi a escolha final. Escolhemos mesmo o
critério da negação polêmica (Indursky, 1997). Sob esse critério de corte, analisamos as

109
seguintes sequências: SD4, 5, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 20, 22, 23, 24, 28, 38, 47, 48, 52, 57,
60, 61, 72, 78, 79, 90, 91, 97, 98, 114, 118, 120, 122, 125, 131 e 135.

Pensando o discurso, a negação trabalha o pré-construído, que, de acordo com


Pêcheux (2009 [1975]), ao retomar Henry (1997 [1969]), designa “o que remete a uma
construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é
„construído‟ pelo enunciado.” E, quando se fala em pré-construído, não há como não
passar pela noção de interdiscurso, definido por Orlandi (2009 [1999]), em sua
retomada teórica de Pêcheux (2009 [1975]), como “aquilo que fala antes, em outro
lugar, independentemente”. A autora, associando o interdiscurso à noção de memória
discursiva e voltando à de pré-construído, mencionado acima, afirma ainda que se trata
d‟“o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-
construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentado cada tomada de palavra.”
Segundo ela, é o interdiscurso que “disponibiliza dizeres que afetam o modo como o
sujeito significa em uma situação discursiva dada.” Portanto, ao falar de pré-construído,
estamos falando de uma memória que não cessa de produzir sentidos, esteja o sujeito se
posicionando a favor, esteja ele questionando ou, mesmo, posicionando-se contra tal
sentido.

E a negação é uma marca linguística que demarca bem esse “debate” com o pré-
construído, porque o retoma, muitas vezes no próprio fio discursivo, para que o sujeito
se oponha, resista a esse saber anterior. Dessa forma, quando temos uma sequência
discursiva do tipo “Eu NÃO preciso estimular o latrocínio” (SD8), o sujeito-rapper
adentra uma região de sentidos que aciona uma memória a respeito da censura sofrida
pelo grupo – indiciado por incitação ao crime.

Ao usar o pronome pessoal do caso reto na primeira pessoa do singular e ocupar


essa posição no fio discursivo, embora essa pessoa do discurso pudesse ser retomada
pela via da terminação verbal indicativa exatamente da primeira pessoa do singular,
cria-se um efeito de reforço da ideia de que não é esse sujeito que, ao cantar, incentiva
um ato compreendido como ilícito, legalmente falando, e repreensível, sob a ótica
moral, em uma sociedade que privilegia a propriedade privada e em que a figura do
jurídico aparece como administrador supremo das relações sociais (judicialização),
como é o caso dessa conjuntura político-econômico-social em que esse sujeito está

110
inserido: sociedade capitalista moderna. O advérbio “não”, dessa maneira, representa
uma resistência, por exemplo, ao que fora colocado nos autos do processo aberto contra
o grupo – memória da censura. O sujeito resiste e nega que a sua produção musical
possa ser o estopim para um paiol que, de acordo com as formulações do próprio
rapper, está sempre prestes a explodir. Sabemos disso observando a continuação dessa
sequência, que diz, dois versos à frente: “O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora.
O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda.” Não vamos adentrar a discussão
sobre o papel da adversativa neste momento, mas olhemos para o termo que ocupa,
gramaticalmente, a posição de sujeito dessa oração, expresso duas vezes seguidas:
Brasil. Termo, inclusive, antecedido por um artigo determinado masculino singular,
conhecido pelos gramáticos como um determinante de nome.

Portanto, temos, ao mesmo tempo, uma negação a uma memória sobre o Facção
e a instauração de uma nova memória a respeito d‟o Brasil, esse que não dá escola, esse
que não dá comida, e que pode muito bem ocupar o lugar de sujeito numa versão
afirmativa da sequência que estamos analisando.

Discursivamente, então, este é um efeito que a construção do Facção Central


apresenta: “O Brasil estimula o latrocínio”. Fácil notar a ausência de um verbo auxiliar
nessa sequência hipotética: isso se dá pelo fato de que o verbo “precisar”, um
modificador do verbo “estimular” e que proporciona um efeito de necessidade, de dever,
é possivelmente mais um recurso do sujeito para resistir ao pré-construído que sustenta
o dizer materializado no fio discursivo. É um verbo que, discursivamente, corrobora o
sentido de que algo não é necessário de ser feito, ao mesmo tempo em que confere um
efeito de sentido de desprezo a esse mesmo algo. Isso porque existem outros fatores,
externos a esse sujeito, que são capazes de produzir sozinhos o resultado de estimular o
latrocínio.

3.2.2 A ADVERSATIVA

As marcas gramaticais que funcionam “ligando” as orações produzem


determinados efeitos de sentido e orientam a direção argumentativa. É o caso, por
exemplo, daquilo que a gramática denomina de conjunção. Buscamos em Bechara
(2006), seu posicionamento acerca das adversativas, sempre tendo em mente que tal
explicação gramatical, devido mesmo ao seu corte epistemológico, não contempla a
questão semântico-discursiva do efeito de sentido. Diz Bechara (idem) que “enlaça a

111
conjunção adversativa unidades apontando uma oposição entre elas. As adversativas
por excelência sãomas, porém e senão.” Veja que não há aqui sequer uma menção à
marca que decidimos analisar (“só(que)”). Embora a explicação de E. Bechara não nos
seja suficiente, porque não recobre a questão da significação propriamente dita, apesar
de usá-la como critério de classificação, há nela um elemento central para aquilo que
dissemos mais acima sobre as possíveis formações discursivas em jogo: oposição.

No nosso caso, a conjunção que interessa para a análise é o “mas”, que


normalmente marca uma oposição entre proposições, ideias, argumentos etc. e que
também comparece nas letras do álbum analisado sob a forma de “só (que)” (o que
indica um possível deslocamento no efeito de sentido, mas esse deslocamento,
conforme veremos mais adiante, não é suficiente para desfazer o efeito de oposição que
“une” sintática e semanticamente essas duas conjunções). Embora a marca “mas”seja a
mais frequente (praticamente a única utilizada) nas letras do grupo, a forma “só (que)”,
que aparece pouquíssimas vezes, também funciona produzindo um efeito de oposição,
de quebra de expectativa, na orientação argumentativa. Nesse sentido, com tal marca,
temos os seguintes exemplos, recortados da letra L14:

SD145: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom ao
invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?
Só queo conforto não vem através do revólver, do sangue da refém
milionária, temendo a morte.

SD147: É embaçado saber que a propaganda na TV, de carro, casa


própria não foi feita pra você. Saber que pra ter arroz, feijão, frango
no forno, tem que pegar um oitão e desfigurar um corpo. Entendo o
motivo, sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de não ter nada na
panela, de dividir um cômodo de dois metros em cinco, um quarto
sem luz, água, sem sorriso. Só que, truta, o crime é dor na delegacia.
Choque, solidão, agonia.

E. Guimarães (1987), ao falar sobre o funcionamento semântico-argumentativo


da conjunção “mas”, e baseando-se em exemplos retirados de um texto sobre o
Pantanal, propõe a seguinte hipótese:

(293) L-E1 ((Eo-A ------) r) mas (B -------) ~r)) ---------) ~r

Ou seja, o locutor diz B --------) ~r de uma perspectiva (E1) e diz A


------) r de outra perspectiva (Eo). E a perspectiva E1 é
predominante, dando, portanto, a direção da progressão textual.

112
Assim, também para os recortes commas, deve-se considerar a
polifonia da enunciação. Neste caso específico, poderíamos
considerar que E1 é a perspectiva de L, enquanto que Eo é a
perspectiva de Lp. Esta duplicidade de perspectivas é que explica
como o texto vai se construindo na direção da perspectiva de E1, mas
vai se construindo um sentimento de adesão à necessidade de revolta
dos brasileiros. Ou seja, pela convivência de perspectivas opostas o
texto se constrói numa direção e busca a adesão do leitor para a
direção oposta à da sua própria construção. Ou seja, o texto se
constrói na perspectiva de L (na direção de o povo não se revolta) e
busca uma adesão, do alocutário-enquanto-pessoa, à revolta deste
locutor-enquanto-pessoa (o povo deve se revoltar). Coloco aqui o deve
como parte do resultado argumentativo do todo. Assim, vemos como o
jogo de representações do sujeito da enunciação tem aqui seu valor
argumentativo próprio que se cruza com a orientação argumentativa.
(Guimarães, 1987: p. 120, grifos nossos)

Embora estejamos num outro lugar teórico em relação a Guimarães, sua


explicação acerca do funcionamento semântico-argumentativo do “mas” é bastante
interessante para a nossa análise das SD145 e 146, porque mostra que a produção do
efeito de sentido desejado é o da oração que possui a conjunção, ou seja, o sujeito-
rapper começa apresentando um argumento considerado socialmente hegemônico para,
então, mudar a direção e apresentar o argumento que irá constituir a base do efeito de
sentido desejado.

Temos, assim, com Guimarães, a questão da direção argumentativa e, com


Bechara, a questão da oposição. A partir disso, podemos observar que o “só (que)”das
SD145 e SD146 produz um efeito de resistência, primeiro porque joga uma força maior
sobre o argumento da posição de sujeito contrária ao crime como forma de conquistar
uma moradia e um meio de transporte mais dignos. Se observarmos que é socialmente
construído para ser hegemônico o sentido de que a pobreza leva ao crime, notaremos aí
a resistência de que falamos, porque o sujeito reconhece que esse saber circula, mas não
concorda com ele, mesmo que esse sujeito seja “fruto da favela”. Existe aí uma quebra
de expectativa, um elo quebrado na corrente da inexorabilidade presumida. Além disso,
esse sujeito resiste também à língua, quando se recusa à organização que a gramática
tradicional da língua portuguesa busca administrar como a “correta”, não reconhecendo
essa gramática como sua referência de organização de língua, e usa o “só (que)” a fim
de produzir um efeito de oposição, semelhante ao produzido pelo uso do “mas”, como
dissemos no início deste item.

113
Fora isso, existe uma disputa de sentidos entre a Posição de Sujeito 1 (PS1), para
a qual o crime seria o caminho para conseguir o “sucesso” de uma vida mais digna; e a
PS2, que se marca pela presença do “só (que)”e que nega esse pré-construído de crime
como solução, ao retomar seu sentido no fio discursivo, instaurando uma nova memória,
a partir da negação desse pré-construído. Assim, esse “só (que)”não marca, na realidade,
uma fronteira entre duas FDs opostas, mas, sim, uma disputa entre posições de sujeito
dentro de uma mesma FD. Em termos de interpelação ideológica, podemos dizer que,
em PS2, o sujeito se contraidentifica com os sentidos da posição PS1, que defende o
crime como saída para o descaso com que o Estado trata a parcela da população que tem
menor (ou nenhum) acesso a uma vida digna. E ele se contraidentifica de PS1 por meio
da oposição “só (que)”acompanhada da negação subsequente. Mas não rompe com esse
enunciado organizador da FD a que pertencem, e segundo o qual a pobreza deve ser
evitada. As posições se opõem apenas no tocante ao modo como essa evitação se dá: a
PS1 propõe que essa saída se dá via crime, já a PS2, não.

SD145a: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom ao
invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?
Mas o conforto não vem através do revólver, do sangue da refém
milionária, temendo a morte.

SD146a: É embaçado saber que a propaganda na TV, de carro, casa


própria não foi feita pra você. Saber que pra ter arroz, feijão, frango
no forno, tem que pegar um oitão e desfigurar um corpo. Entendo o
motivo, sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de não ter nada na
panela, de dividir um cômodo de dois metros em cinco, um quarto
sem luz, água, sem sorriso. Mas, truta, o crime é dor na delegacia.
Choque, solidão, agonia.

Observemos a proximidade do efeito de sentido produzido em SD145 e SD146 e


em SD145a e SD146a. Em todas as formulações, a PS2 permanece oposta à PS1, e o
argumento mais forte continua sendo o de PS2, ou seja, contrário ao crime. Este pode
ser considerado, assim, um terceiro efeito de resistência possível de ser compreendido a
partir da mesma SD145, mas trata-se de uma resistência a uma memória que permeia
todo o CD e que está relacionada à censura sofrida quando da publicação do CD
anterior (Versos Sangrentos, 2000), ao qual o álbum aqui analisado procura “dar uma
resposta”: a memória de incitação ao crime. Ao fortalecer o argumento de que o crime
não é o caminho para o “sucesso”, o sujeito ocupa uma posição discursiva que resiste ao
que lhe fora imputado anteriormente, ou à PS1.

114
Selecionamos, para observação, um total de vinte e quatro sequências
discursivas, recortadas das letras L2, L3, L4, L5, L6, L8, L9, L10, L11, L13, L14 e L15,
e que contêm tanto a marca opositiva tradicionalmente reconhecida “mas”, quanto a não
tão conhecida, mas já citada, “só (que)”.

SD147: O policial contente sopra o cano do revólver, mas, no fundo,


no fundo, preocupado, pois sabe que, amanhã ou depois, o moleque
esquecido no fundão da periferia vai cansar de pedir esmola, de não
ver comida na panela, de ver sua mãe só de camiseta furada, chinelo,
chorando com seus irmãos famintos no colo, vai arrumar um revólver,
tentar resolver seus problemas através do sangue da cabeça de um
gerente de banco e vai ser mais um favelado, no caixão preto doado,
sem flores e sem velório.

SD148: Censurou o clipe, mas a guerra não acabou.

SD149: Destaque da TV sensacionalista, que filma sem pudor o


trabalho da perícia contando buraco no crânio do corpo do boy morto
pela Glock que o sistema porco põe no morro. Mas, pra mim, é 286,
quando falo do sangue que escorre do pescoço do vigia.

SD150: Não tem inquérito pra TV que tem a vadia nua: novela das 6,
7, 8, sem ministério nem censura. Só o meu rap que é nocivo pro
sistema hipócrita.

SD151: O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora.

SD152: O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda.

SD153: Queria só rimar choro de alegria, mas na favela não tem


piscina, armário com comida.

SD154: Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha. Não pra encher
panela, mas pra ter carro, fumar pedra.

SD155: Sonhou com emprego, mas o diabo me quis descarregando


ferro.

SD156: O boy não quer meu bem, só quer minha pistola. Quer me ver
com fome, inofensivo, na sua porta, pedindo esmola, um trocado
qualquer. Com ódio, revoltado, mas beijando seu pé.

SD157: O sonho da minha coroa era me ver com diploma e bíblia,


mas o Brasil me dá o cano que faz seu parente virar carniça.

SD158: Contratei vigia, lancei carro blindado, mas, se o ladrão tá no


banco, não é só eu que sou culpado.

SD159: Doente pela pedra apertei o gatilho da PT, mas nenhum


jurado vai entender, nenhum juiz vai me absolver.

SD160: Sei que vou morrer, não posso fugir. Só não quero mais
moleque morrendo assim.

115
SD161: Eu não queria achar que o herói era o assaltante de banco,
mas que cuzão que condena foi lá pra ensinar?

SD162: Queria ser advogado, mas perdi pra rua.

SD163: Meu coração de ódio queria paz. Acredite. Mas agora sou eu
e o atirador de elite. Tá a dez metros da janela e atira muito bem. Vai
matar a vítima do crack e seu refém.

SD164: Preferia tá na escola, na biblioteca, tá no shopping,


comprando pra minha filha uma boneca. Ter cartão de crédito, cheque
cinco estrela. Não tá matando alguém, pra por o leite na geladeira.
Mas o que o sistema quer sou eu com fome, atirando na madame de
chauffeur.

SD165: No céu tem fogo, mas não é festa junina.

SD166: É embaçado saber que a propaganda na TV de carro, casa


própria não foi feita pra você. Saber que pra ter arroz, feijão, frango
no forno, tem que pegar o oitão e desfigurar um corpo. Entendo o
motivo. Sou fruto da favela. Sei bem qual a dor de não ter nada na
panela. De dividir um cômodo de dois metros em cinco, um quarto
sem luz, água, sem sorriso. Só que, truta, o crime é dor na delegacia.
Choque, solidão, agonia.

SD167: Quem não quer ter uma casa com piscina? Um cargo bom, ao
invés de comer lixo? Um carro importado último modelo esportivo?
Só que o conforto não vem através do revólver, do sangue da refém
milionária, temendo a morte.

SD168: O sistema tem que chorar, mas não com você matando na rua.
O sistema tem que chorar, vendo a sua formatura.

SD169: O boy acha que quem merece a morte é o que grita “assalto!”,
o que grita “dá a chave! Sai do carro!”, não o branco articulado e bem
vestido que não saca o cano, mas roubam até nos Estados Unidos.

SD170: Cuzão na TV diz que urna não é pinico, que voto consciente
muda o cenário político, que é preciso investigar antes de votar. Mas
cadê biblioteca, escola pra eu me informar?

Observando essas sequências, podemos identificar alguns enunciados que


perpassam as formulações, dando a estas uma sustentação no dizível, a partir do
funcionamento do pré-construído. Pensamos em três enunciados bastante recorrentes:

E1: a pobreza leva invariável e inevitavelmente ao crime;

E2: o crime, independentemente da motivação, nunca compensa;

E3: o rico tem direitos jurídicos, mas os pobres e favelados não os tem.

116
As formulações que remetem ao primeiro enunciado, E1, são as SD147, SD151,
SD152, SD154, SD155, SD157, SD160, SD161, SD164, SD165. Já aquelas formulações
que retomam o enunciado E2 são: SD159, SD166, SD167 e SD168. Quanto àquelas que
remetem ao enunciado E3, temos as seguintes sequências: SD148, SD149, SD150,
SD153, SD158, SD163 e SD169.

Chegamos a essas divisões, porque consideramos tanto o que está dito, ou seja, o
que aparece na formulação, no fio discursivo, quanto o que não está dito e está
sustentando tal tomada de posição do sujeito. Um exemplo desse procedimento é o que
segue: quando vemos a formulação “O sistema tem que chorar, mas não com você
matando na rua. O sistema tem que chorar vendo a sua formatura”, vemos, logo num
primeiro olhar, a repetição da oração “O sistema tem que chorar”. Essa repetição já é
uma primeira pista da posição que esse sujeito assume: há um deslocamento necessário
desse sujeito que chora. Se é considerado socialmente “normal” que o pobre chore, por
conta de todas as limitações socioeconômicas e políticas a que está sujeito, é produzida,
por meio do rap, uma recusa a essa “normalidade”, e o sujeito-rapper se vinga desse
papel social a ele reservado, mostrando que o “sistema” também está sujeito a pressão.
Nesse caso, a pressão social que pode produzir um “choro” por parte do Estado é a
“formatura de um favelado”, na educação formal, essa mesma que o Estado não provê a
uma enorme quantidade de moradores de favelas e periferias, não são corpos de pessoas
não-faveladas mortas espalhadas pelo chão, resultado de assaltos ou sequestros ou
mesmo de confrontos entre policiais e bandidos. É um sujeito social, política e
economicamente excluído, assumindo uma nova posição na engrenagem do sistema
capitalista, por meio de uma conquista: formar-se no ensino acadêmico formal. Nesse
sentido, esse gesto de se “formar doutor” seria o equivalente a um “tapa na cara”, que
seria suficiente para fazer com que um sistema excludente e opressor “chorasse”. Há,
assim, uma inversão de papéis: quem chora agora é o sistema capitalista que, segundo
seu princípio do lucro a qualquer custo, deveria estar funcionando de modo a produzir a
exclusão e a marginalidade, o desespero e o choro dos moradores da favela.

117
3.2.3 A CONDICIONAL

A oração condicional é caracterizada pela presença de um dos conectivos


sintático-semânticos “se” e “caso”, mais comumente. Nas letras que compõem o corpus
desta pesquisa, não há a ocorrência da marca “caso”, para conferir o efeito de sentido de
condição. Existe o que podemos chamar de “onipresença” do conectivo “se”, para
marcar tal efeito.

Assim, na condicional, trabalhamos, sobretudo, com a conjugação de


possibilidades, no campo do hipotético. Processo que, segundo Garcia (1978), é um
pouco mais complexo. Vejamos qual a extensão dessa complexidade, que toma como
base a correlação modo-temporal dos verbos:

As orações subordinadas condicionais mais comuns podem expressar:

a) um fato de realização impossível (hipótese irrealizável), quando o


verbo da subordinada e o da principal estão em tempo perfectum,
i.e., tempo de ação completa (...);
b) um fato cuja realização é possível, provável ou desejável, quando
o verbo da subordinada e o da principal exprimem ação
incompleta, i.e., são tempos do infectum (...);
c) desejo, esperança, pesar (geralmente em frase exclamativa e
reticenciosa, em que a oração principal, quase sempre
subentendida, traduz um complexo de situações mais ou menos
indefinível ou não claramente mentado) (...). (Garcia, 1978: p. 75)

Mas o que nos interessa mesmo é a consideração que Garcia faz sobre o uso do
modo indicativo, o modo mais frequentemente usado nas formulações que estamos
analisando:

A conjunção condicional típica é “se”, que exige o verbo quase


sempre subjuntivo (futuro, imperfeito ou mais que perfeito). Mas
razões de ordem enfática podem levá-lo ao indicativo, sobretudo
quando a oração principal encerra ideia de ameaça, perigo, fato
iminente ou fato atuante no momento em que se fala: “Se não me
ouvem em silêncio, calo-me”; “Se não te acautelas, corres o risco de
ferir-te”; “Se não me ouves, como queres entender-me?”; “Se não
queres ir, não vás”. (Garcia, 1978: p. 75, grifos nossos)

Com essa explicação, e voltando ao suporte analítico que nossa teoria nos
proporciona, vemos que o efeito de ameaça é o mais constante nas formulações
condicionais, ou melhor, nas sequências discursivas que contêm a marca sintático-
semântica da condição.

118
Mas é necessário apontar para uma construção com a marca “se” que até produz
um efeito de sentido de condição, mas que se aproxima mais fortemente de um efeito de
sentido de causa, como é o caso das SD171 e SD172, a seguir, nas quais o “se” pode ser
trocado pelo “porque” e, ainda assim, direcionar o sentido como que num efeito
parafrástico:

SD171: Se tem sangue, eu canto sangue.

SD171*: Eu canto sangue, porque tem sangue.

SD172: Se tem morte, eu canto morte.

SD172*: Eu canto morte, porque tem morte.

Voltando para as observações que antecedem a enumeração das sequências


discursivas que contêm a marca da condição, podemos dizer que, em alguns momentos,
é possível ver formulações em que o “se não” funciona de um modo bastante próximo,
para a produção do efeito de sentido de ameaça/aviso, das formas parafrásticas “caso
contrário” ou “ou, então” ou, mesmo, “ou, não sendo assim”, formas que podem se
revezar nas formulações provocando pouquíssima alteração no efeito de sentido que
produzem. Mais ou menos como se o sujeito-autor dissesse que “ou acontece isso, ou
haverá consequências”. Vejamos as sequências, recortadas das letras L3, L4, L5, L6,
L7, L8, L9, L10, L11, L12, L14 e L15:

SD173: Leva vigia, colete e blindagem pra ir pro restaurante, se não, é


viúva chorando e ômega zero no desmanche.

SD174: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a
marcha fúnebre prossegue.

SD175: Que Deus deixe ele encontrar, madame, sua esmeralda, se


não, ele arranca seu coração na faca.

SD176: Na agência bancária, vou tirar nota A, se o gerente não


colaborar, pá! pá! miolo no ar!

SD177: Se eu for preso, a técnica da fuga está furada.

SD178: Não atravessa o meu caminho, se não, vou te matar.

SD179: Se tiver que morrer, aí, fazer o quê? Ameaça não intimida.
Eduardo não faz tremer.

SD180: A boca só se cala quando o tiro acerta! Se é isso o que eles


querem, então vem me mata!

SD181: Eu só sou um problema, se atravesso o vidro, pego a bolsa e o


toca-CD e atiro no ouvido.

119
SD182: Cala a boca, doutor. Não dá mais nem um pio, se não, te
mando com tua vaca pra puta que o pariu.

SD183: Ia me entender,se visse sua filha na esquina.

SD184: Talvez, se der sorte, não vai pro necrotério.

SD185: Se pá, joga gasolina e risca o fósforo, sem dó!

SD186: Pela janela já escuta a sirene dos lambe-saco de boy, vindo na


febre de me transformar no troféu do PM herói. Se pá, minha coroa
vai ver no noticiário, meu corpo metralhado e o resgate juntando os
pedaços.

SD187: Aí, moleque, a vitória só vem se estudar ou trabalhar.

SD188: O Brasil não se comove se sou eu que peço o passe.

SD189: Agiliza os dólares, os diamantes, se não, arranco teu coração,


te afogo no rio de sangue.

SD190: Se não blindar o coração, não tem cooper na praça.

SD191: Se não por armadura, não tem surfe na praia.

SD192: Caminho um: a voz do povo, aqui, não é a voz de Deus. Se


tua casa é de caixote de feira, problema seu!

SD193: Se vier pro asfalto fazer passeata, aí o PM te mata, te faz


engolir bandeira e faixa.

SD194: Não adianta ser milhões, se não somos um.

SD195: Não interessa se é pro remédio da sua mãe, pra fumar crack
ou beber champagne. Se invadir o condomínio gritando “assalto!”,
caiu na armadilha. Até no teto vai ter seus pedaços.

SD196: O prego do condomínio tem que entender que, se tem pânico


em Alphaville, é porque você deu a PT.

Se relacionarmos essas formulações aos enunciados enumerados no ponto


anterior, em que discutimos as adversativas, veremos que remetem ao E1 as
formulações expressas pelas SD192 e SD196; que as que remetem ao E2 são: SD186,
SD187, SD195; e que as que remetem ao E3 são: SD182 e SD188. Mas, como se pode
perceber, das vinte e seis sequências encontradas, apenas em sete foi possível localizar
um enunciado que perpassa a formulação.

3.2.4 A CAUSAL

120
As orações causais, de acordo com a gramática tradicional, são períodos
conectados por uma conjunção que une o efeito à sua causa. São orações subordinadas,
também segundo a gramática tradicional, sendo suas partes constituintes denominadas
“oração principal” e “oração subordinada causal”. A característica dessa segunda é a
presença do conectivo. A causal é um exemplo de oração subordinada adverbial, por
funcionar como um advérbio, ou locução adverbial, da oração principal.

As conjunções, termo pelo qual esses conectivos são designados nas gramáticas,
prototípicas das orações subordinadas adverbiais causais são o “porque” e o “pois”,
mas, claro, há um número considerável de outras formas e locuções que funcionam
proporcionando exatamente esse efeito de conjunção causal (“visto que”, “uma vez que”
etc. Ficaremos focados sobre as formas “porque” e “pois”, porque são essas as mais
presentes no material com o qual estamos trabalhando, sempre que se produz um efeito
de causa. Além dessa razão apontada, existe também o fato de que essas formas, como o
que observamos nas análises das adversativas e das condicionais, são praticamente
onipresentes (praticamente, porque, conforme foi possível notar no ponto anterior, há
algumas construções em que o conector é prototipicamente condicional, mas acaba
funcionando como um causal), apesar de aparecerem também as chamadas orações
reduzidas, introduzidas por “por” ou, mesmo, por “com”, conforme veremos nas
sequências localizadas.

Na causal, portanto, o direcionamento de sentido é tão patente quanto na


adversativa. Se nesta a progressão argumentativa mostra a legitimidade de um
argumento da primeira oração, ao qual se contrapõe na segunda, a partir da marca
opositiva “mas”; no primeiro caso, essa progressão parte da constatação de um fato –
interpretado e lançado na linguagem, por isso, esse fato de que falamos não é “a
verdade” nem único, mas, conforme dissemos, uma interpretação que, por estar na
língua, é também não-transparente, tendo sua opacidade específica para os sujeitos – e
segue em direção à sua causa, àquele evento que contribuiu decisivamente para que tal
efeito, apresentado na oração principal, se desse. Ou seja, a oração com a subordinada
adverbial causal é outra marca privilegiada de onde podemos contemplar a tomada de
posição discursiva do sujeito-autor que, no caso da nossa pesquisa, é o sujeito-rapper.

121
Neste sentido, conseguimos localizar, dentre as letras de música L2, L3, L4, L5, L7,
L10, L11, L13, L14 e L15, quinze sequências discursivas, que encontram-se
reproduzidas a seguir:

SD197: O policial contente sopra o cano do seu revólver, mas, no


fundo, no fundo, preocupado, pois sabe que, amanhã ou depois, o
moleque esquecido no fundão da periferia vai cansar de pedir esmola,
de não ver comida na panela, de ver sua mãe só de camiseta furada,
chinelo, chorando com seus irmãos famintos no colo, vai arrumar um
revólver, tentar resolver seus problemas através do sangue da cabeça
de um gerente de banco e vai ser mais um favelado, no caixão preto
doado, sem flores e sem velório.

SD198: Não é desculpa pra revolta, porque não é seu filho.

SD199: Gambé porco que, pela tua cor, detona seu rosto.

SD200 e 201: O refém tá carbonizado, porque o sistema quer; porque


eu só existo, quando dou tiro na mulher, ou quando apareço
sanguinário no noticiário.

SD202: Por que eu não fui morar na Europa?

SD203: Eu tô ligado que a fome e o crack faz o bandido. Então, por


que não estraçalham a cabeça do político?

SD204: Doente pelapedra, apertei o gatilho da PT.

SD205: Ódio lapidado por um pai bêbado, porco, que batia na minha
mãe, porque não podia comprar o almoço.

SD206: Fez de mim o Lúcifer que o sistema quer, que pela pedra
deixa teu corpo pra perícia do gambé.

SD207: Não canto esperança, porque não vendo ilusão.

SD208: Quem sabe o excluído invada tua fazenda, te dê facada, te


ponha uma venda e, assim, você entenda que, por dinheiro, o ladrão
pega o galão de gasolina, incendeia a criança que seja sua família.

SD209: Por um real, um papel, uma grama, sempre por migalha, meu
povo desfigurado na ambulância.

SD210: Aqui é só ladrão em estado vegetativo, na cama ou na cadeira


de roda. Tiro na espinha, por um par de tênis, um risco de cocaína.

SD211: Nem parece o monstro do horário político que, com a dor do


indefeso, compra a mercedes, coloca obra de arte valiosa na parede.

SD212: O prego do condomínio tem que entender que, se tem pânico


em Alphaville, é porque você deu a PT.

SD213: Diferente de você, não tenho BMW. Só um cômodo no


barranco que, com a chuva, tá soterrado.

122
Assim, se formos, como fizemos nos outros dois pontos, relacionar estas
sequências discursivas aos enunciados que localizamos, teremos, para E1 as SD197,
SD198, SD205, SD206, SD207, e SD209; para E2, as SD210 e SD 211; e, para E3, as
SD199, SD200, SD201, SD202, SD203 e SD212.

No próximo item, trazemos uma análise mais detalhada, tomando por base as
duas formações discursivas que conseguimos delinear, organizadas a partir de uma
formulação em que ambas posições comparecem, articuladas pela marca “mas”.
Mostraremos como a noção de articulação de enunciados nos foi central e como a
reprodução de um discurso de cunho reformista pode encontrar ressonância inclusive
nos sentidos de uma formação discursiva cujas formulações contêm, no próprio fio
discursivo, palavras e expressões que remetem à ruptura total com o sistema, com a
revolução.

3.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE AS ANÁLISES

“Eu defino o rap como Revolução Através das Palavras.”


(William Domingues [Mandrake], 2006)

De acordo com o que vimos até aqui, podemos dizer que temos, então, duas
formações discursivas, sob a dominância de uma delas, e temos também que ambas
remetem à mesma formação ideológica capitalista, em sua vertente neoliberal. À
primeira formação discursiva denominamos FD da barbárie, para remetermos à
memória do enunciado “socialismo ou barbárie”, retomado por Rosa Luxemburgo22, a
partir de Friedrich Engels23, num período que antecede ao processo revolucionário russo

22
“Fundadora do Partido Comunista Alemão, Rosa Luxemburgo foi uma militante, dirigente, intelectual
que lutou pelo socialismo contra o capitalismo durante toda a sua vida, até ser assassinada em 1919.
Suas reflexões, suas ações políticas e sua compreensão da vida são fundamentais para o nosso
entendimento da luta de classes.” <<https://www.expressaopopular.com.br/node/2031/>>, acesso em
08/07/2012, às 23h47.
23
Diz Rosa Luxemburgo, em seu livro intitulado A crise da social-democracia – Folheto Junius, distribuído
ilegalmente pela primeira vez em 1916, na Alemanha: “Friedrich Engels disse um dia: ‘A sociedade
burguesa se encontra diante de um dilema: ou avanço para o socialismo ou recaída na barbárie.’ Mas o
que significa “recaída na barbárie” no grau de civilização que conhecemos hoje na Europa? Até hoje nós
temos lido estas palavras sem refletir sobre elas e nós as temos repetido sem perceber sua terrível
gravidade. Lancemos um olhar ao nosso redor neste momento e nós compreenderemos o que significa
a recaída da sociedade burguesa na barbárie. A vitória do imperialismo leva ao aniquilamento da
civilização – esporadicamente durante o curso da guerra moderna e definitivamente se o período de
guerras mundiais que se inicia agora vier a prosseguir sem entraves até suas últimas conseqüências.”

123
de 1917, na Alemanha, em que barbárie funciona como metáfora para os estágios
superiores do desenvolvimento do capitalismo. Além disso, o termo também remete à
Grécia Antiga e àquilo que os gregos entendiam enquanto bárbaros: os estrangeiros que
não falavam a língua grega e que, para os gregos, portanto, só sabiam pronunciar bar
barbar, sons incompreensíveis aos helênicos. Dessa forma, então, estamos, ao mesmo
tempo, definindo esta FD como capitalista “orgânica” –numa tentativa de aproximação
conceitual com o termoorgânico, utilizado por Gramsci, quando elaborou a expressão
“intelectuais orgânicos”24 –, ou seja, como aquele conjunto de intelectuais – no nosso
caso, aquele conjunto de sentidos – que contribuem diretamente para a sustentação de
uma ideologia – no nosso caso, de uma FD –, porque analisam “a realidade” e publicam
suas teorias de forma a fundamentar a tal ideologia que se propõem a sustentar.
Estamos, portanto, definindo essa FD da barbárie, pensando-a como uma espécie de
“defensora” da manutenção da divisão social, que se reproduz embaixo do véu da
igualdade jurídica dos “direitos e deveres” entre os homens, ou seja, que sustenta a
divisão em classes a partir do silenciamento (política do silêncio) da desigualdade de
oportunidades e da propaganda da liberdade irrestrita a todos os homens (direitos
democráticos). Notamos que essa FD da barbárie mantém uma relação de dominância
sobre a outra FD encontrada, porque o discurso que a sustenta é atravessado pelos
enunciados do discurso oficial sobre o funcionamento da sociedade, além de esses
enunciados comparecerem nas formulações que seriam seu contraponto, ou seja, no
intradiscurso da segunda FD, com a qual a primeira FD, conforme dissemos, mantém
essa relação de dominância. Isso quer dizer que essas marcas ideológicas são tão fortes
e têm tanto poder de promover identificação, que atravessam as “fronteiras” da FD que

<<http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1915/junius/cap01.htm>> acesso em 08/07/2012,


às 23h53.
24
O Prof. Dr. Giovanni Semeraro, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, um
estudioso dos escritos de Antonio Gramsci, retoma as palavras deste para mostrar como o filósofo
italiano constrói essa proposta “conceitual” que denomina pela expressão “intelectuais orgânicos”:
“Deixando de considerá-los de maneira abstrata, avulsa, como casta separada dos outros, Gramsci
apresenta os intelectuais intimamente entrelaçados nas relações sociais, pertencentes a uma classe, a
um grupo social vinculado a um determinado modo de produção. Toda a aglutinação em torno de um
processo econômico precisa dos seus intelectuais para se apresentar também com um projeto
específico de sociedade: ‘Todo grupo social, ao nascer do terreno originário de uma função essencial
no mundo da produção econômica, cria também, organicamente, uma ou mais camadas de
intelectuais que conferem homogeneidade e consciência da própria função não apenas no campo
econômico, como também no social e político: o empresário capitalista gera junto consigo o técnico da
indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito etc. (Idem,
ibid., p. 1.513)’” <<http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v26n70/a06v2670.pdf>>, acesso em 08/07/2012, às
23h31.

124
a ela se opõe e penetram nos discursos que são produzidos enquanto uma proposta de
contraponto. Essa “penetração” é uma pista da contradição inerente aos processos
ideológicos de interpelação subjetiva.

À segunda formação discursiva demos o nome de FD questionadora, porque o


termo expõe a relação com a dúvida, com a pergunta, e, mais especificamente, a relação
com as modalidades subjetivas da contra-identificação e da desidentificação (Pêcheux,
1975). Essa outra FD, a questionadora, contrapõe-se à primeira, mantendo, com esta,
uma relação de subordinação, pois os sentidos daquela são de questionamento dos
sentidos desta, deslocando os sentidos de alguns lugares sociais já bem demarcados pela
FD da barbárie, sem, no entanto, romper com a estrutura político-econômico-social que
sustenta a ideologia capitalista, ou melhor, a “barbárie”. Apesar de estarmos nesta
pesquisa analisando apenas o material produzido e publicado pelo grupo Facção Central
e de que isso parece nos fornecer somente “um lado” dessas relações multilaterais que
podem ser construídas entre os diversos lugares sociais, temos acesso às diferentes e
conflitantes posições discursivas, porque o texto é uma materialidade não-transparente,
tal como a língua, e, embora seu efeito desejado seja o de uma homogeneidade, um
texto não é homogêneo, comportando no fio discursivo diversas posições discursivas,
assim como o autor está sujeito à interpelação ideológica e ao inconsciente, cujos
funcionamentos se dissimulam no interior do próprio funcionamento, o que produz as
ilusões da completude e da unidade, expondo como causa o movimento que é um efeito:
a autoria. Assim, ao negar, por exemplo – para citar uma das marcas que analisamos –,
o sujeito-autor traz para o fio discursivo sentidos do discurso do outro, que o atravessa,
e ao qual esse sujeito se posiciona contrariamente. Logo, a negação, especificamente a
negação polêmica (em suas possibilidades de relação com as formações discursivas:
interna, externa e mista) (Indursky, 1997), termo de origem grega (πολεμιος, α, ον:
inimigos, adversários de guerra) – coloca em contato duas posições que podem remeter
a duas diferentes formações discursivas (casos da negação externa e da mista, por
exemplo), delimitadas pela presença do advérbio de negação e uma marca de resistência
ou de questionamento “não”.

Como procedimento de delimitação dessas duas FDs, utilizamos a definição de


Pêcheux (1988 [1975]) sobre formações discursivas, segundo a qual a palavra muda de
sentido de acordo com a posição discursiva daquele que a emprega. O que significa que
a mesma palavra adquire sentidos diferentes se remetidas a diferentes formações

125
discursivas. Então, buscamos três palavras (dentre as quatro que citamos no início do
capítulo) que nossa ajudaram a discernir tais matrizes de sentido: vítima, herói e vitória.
Esses três termos participam da construção do processo de inversão de valores e de
lugares sociais que sustentam /são sustentados pelos sentidos da(s) formação(ões)
discursiva(s) dominante(s). De uma maneira simplificadora e sintética o suficiente para
possibilitar uma rápida “visualização” desse jogo de inversões, a partir da concepção de
embate “mocinho vs. bandido”, produzimos o seguinte quadro:

JOGO DE INVERSÕES

Mocinho Bandido
Vítima Brasil / país (metáfora de Estado e de
Governo)
Favelado / morador da periferia Policial (polícia, por metonímia)
Sem opções (não tem acesso à escola Cuzão, playboy, aquele que tem opções
formal, não é empresário, mora num (tem acesso à escola formal, com vigia e
barranco, sequestra, rouba, usa crack, detector, vai se tornar empresário bem
mata e morre por migalha) sucedido, tem Cherokee e defende o
gambé [policial])
Figura 5

Reparemos que não há um rompimento com essa estrutura do um vs. outro, com
essa tendência de dicotomização, apenas uma inversão dos valores de um esquema que
funciona como pré-construído, porque dá sustentação ao dizer.

Indo nessa direção de esquematizar, encontramos uma sequência discursiva que


pode funcionar como organizadora das demais e que expressa bem essa divisão entre
FD da barbárie e FD questionadora:

SD16: Queria só rimar choro de alegria, mas na favela não tem


piscina, armário com comida.

Tal sequência fora recortada da letra de música L4, e a escolhemos por dois
motivos principais: primeiro, porque comparece, já como primeiro termo, um verbo de
expressão de vontade, volitivo, no pretérito imperfeito, um tempo verbal existente desde
a língua latina e que remete, simultaneamente, ao infectum, ou inacabado, e ao
irrealizável, além de se encontrar no passado (um passado que, conforme veremos, se

126
conflitará com a realização no presente). Assim, o sujeito expõe a contradição
subjacente à máxima capitalista, segundo a qual “querer é poder”. E esse efeito é
produzido pelo emprego da conjunção adversativa “mas”, que quebra a expectativa do
interlocutor e introduz o argumento mais forte, definidor da posição assumida pelo
sujeito-autor: “MAS, na favela, não tem piscina, armário com comida”. Novamente,
reforça-se a ideia de que há uma contradição que subjaz à relação direta entre querer e
poder: a ausência de bens e produtos necessários à satisfação das necessidades básicas
(metaforizadas pela expressão “armário com comida”) e de um certo grau de conforto –
ou mesmo de sobrevivência, se se pensa em quem vive em regiões de extremo calor,
como são os casos de Cuiabá-MT ou de Teresina-PI – (metaforizado pelo termo
“piscina”) se sobrepõe sobre a possibilidade de vontade do sujeito, que se vê “obrigado”
– vide o conflito semântico produzido entre os termos “querer” e “precisar”,
extremamente produtivo no material pesquisado – a criar seus próprios meios.

Nesse sentido, organizamos as negações polêmicas e as adversativas da seguinte


forma:

FD da barbárie FD questionadora
“Queria só rimar choro de alegria” “na favela, não tem piscina, armário
com comida”
Herói = aquele que reage a um assalto, Herói = assaltante de banco (L7)
para impedir o ladrão de ter sucesso
(L5)
Vitória = fruto do estudo formal (L10) Vitória = sair vivo e usufruir dos
frutos conquistados por meio do crime
MAS

(L2)
Vítima = possuidor de bens que é Vítima = menino que come cacto no
assaltado, sequestrado ou morto, por Norte. (L4)
causa desses bens. (L2)
Conforto vem através do revólver Não vem através do revólver
Favela = notícia, número de estatística Favela não é só notícia, número de
estatística
Ponto de vista expresso pela música Ponto de vista não é feito pra
voltado para maiores vendas vendagem

127
Rico tem culpa no menino faminto Rico tem culpa no menino faminto
Rico também é culpado pelo ladrão que Rico também é culpado pelo ladrão
está no banco que está no banco
Futuro do pobre = roubar o carro forte Roubar o carro forte não dá futuro pro
pobre
Arriscar a vida pelo malote dá futuro Arriscar a vida pelo malote não dá
pro pobre futuro ao pobre
Voz do povo = voz de Deus Voz do povo não é a voz de deus
Acredita na paz, no futuro Não acredita na paz, no futuro
Canta esperança e vende ilusão Não canta esperança e não vende
ilusão
Tem livro e biblioteca Não tem livro nem biblioteca
Tem formatura Não tem formatura
Não é desculpa pra revolta acontecer É desculpa pra revolta, sim, acontecer
algo ruim com o filho do algo ruim ao filho do
favelado/pobre/marginalizado favelado/pobre/marginalizado

Rima felicidade (até no rap) Não rima felicidade no rap, porque a


marcha fúnebre prossegue

A história, que não é minha, tem A minha história não tem maquiagem
maquiagem

Figura 6

É possível observarmos dois aspectos desse quadro, com relação aos


movimentos contraditórios inerentes à interpelação subjetiva: o primeiro diz respeito às
construções discursivas da referência para os termos herói e vitória, que reforçam os
sentidos prévios e cristalizados sobre os rappers, sentidos esses que remetem à memória
da relação entre pobreza material e crime. O segundo refere-se ao fato de que ao
“preencher de palavras a fala do seu outro”, pelo mecanismo de antecipação, o sujeito-
rapper identifica a fala desse outro com a sua própria, e, por isso, acaba produzindo a
ocorrência dos mesmos sentidos nas duas FDs opostas: “O rico tem culpa no menino
faminto” e “O rico também é culpado pelo ladrão que está no banco”. É do senso
comum, no entanto, o entendimento de que essa responsabilidade pela desigualdade não

128
é assumida pelos defensores do capitalismo neoliberal, sejam eles ou não possuidores de
patrimônios e/ou de bens de produção.

As conjunções causais e condicionais também funcionam como articuladores de


enunciados e não opõem, necessariamente, posições discursivas, tal como ocorre com as
negações polêmicas e com as adversativas. Tanto a causal quanto a condicional podem
trabalhar no âmbito de diferentes formações discursivas. A causal, por exemplo, parte
de uma formulação cujo efeito desejado é o de uma “constatação da realidade” para
articulá-la a outra formulação, que acaba por produzir um efeito de causa que permite a
ocorrência dessa “constatação”. Por exemplo, na

SD199: Gambé que, pela tua cor, detona seu rosto

temos uma construção que simula, cria o efeito de “constatação” (“gambé porco que
detona seu rosto”) e uma outra construção, que simula, cria um efeito de causa, ou seja,
simula um motivo que possa suscitar a ocorrência desse fato “colhido diretamente da
realidade” (“pela [por causa da] tua cor”). Percebemos que essa contração que resulta da
união entre preposição e artigo definido “pela” funciona como um articulador que
assume um papel semelhante ao da conjunção gramaticalmente prototípica “porque”.
Nessa relação entre causa e efeito, o efeito, ou aquilo a que denominamos de efeito de
constatação da realidade, pode remeter a um enunciado de uma formação discursiva
diferente daquela à qual a conjunção causal articula e que remete à formulação
produtora do efeito de causa.

Outro exemplo é o da SD207:

SD207: Não canto esperança, porque não vendo ilusão.

Nesse exemplo, quando o sujeito-rapper enuncia essa sequência, o termo


“porque” está articulando uma formulação que remete à FD da barbárie, pois “constata”
que o rapper não canta esperança. Não vender ilusão refere seus sentidos à FD
questionadora, pois joga com o fato de os rappers se entenderem enquanto porta-vozes
da favela, que atuam como questionadores da desigualdade intrínseca à sociedade, e que
utiliza a música como instrumento de questionamento, e não como (re)produção de uma
estética abonada pela formação ideológica dominante. E “Não vendo ilusão” está
acompanhado do articulador “porque”, o que participa da construção do efeito de causa
do fato de os rappers não cantarem esperança. Ou seja, o sujeito-rapper se identifica

129
com a justificativa da constatação: ele reconhece que tal constatação participa do
imaginário sobre as produções do rap, mas não concorda com ela, negando-a e
posicionando-se do lado daquilo que ele mesmo constrói discursivamente como
“causa”. Outro aspecto da formulação que nos permite observar que o sujeito-rapper se
identifica com esse efeito de “causa” é o que diz respeito ao argumento que acompanha
o articulador “porque”, que poderia ter sido outro, como, por exemplo:

SD207*: Não canto esperança, porque não existe esperança.

Ou

SD207**: Não canto esperança, porque não sei cantar.

A partir dessas sentenças hipotéticas, percebemos que a articulação pode


acontecer de N maneiras diferentes e que cada uma dessas maneiras expõe de modo
igualmente diferente a posição discursiva assumida pelo rapper enquanto sujeito. Nesse
sentido, analisando a formulação efetivamente realizada pelo Facção Central, vemos
que a posição que o sujeito-rapper assume é a de um questionamento quanto ao papel
social da arte e sua relação com o mercado, essa instituição que afeta diretamente as
relações intersubjetivas e entre sujeitos e sentidos, participando diretamente dessa
interpelação subjetiva, exatamente porque é um dos elementos centrais que compõem a
formação ideológica capitalista neoliberal.

Quanto às construções cujas formulações são articuladas pelo articulador


condicional, destacamos, como primeira consideração, o fato de que estamos diante de
sentenças que remetem ao âmbito da possibilidade, da probabilidade, enfim, ao campo
do hipotético. De acordo com o que apresentamos anteriormente sobre as construções
com a marca da condicional, sabemos que podemos encontrar, além de hipóteses,
também ameaças. Há, ainda, que se destacar a possibilidade de a palavra se, considerada
pela(os) gramática(os) como forma prototípica da condicionalidade, estabelecer relações
de efeito-causa e de temporalidade. Essas possibilidades de articulação – os efeitos de
ameaça, efeito-causa e de temporalidade – definiram os nossos recortes em sequências
discursivas que aparecem, portanto, divididas entre esses três grupos. Relevante é
destacar que nem toda sequência discursiva que continha a palavra se pôde ser
interpretada como uma dessas três “categorias”, logo, não foram todas as sequências

130
com a marca se que participaram de nossas análises. Observemos, então, como se
produzem discursivamente esses efeitos:

3.3.1 AMEAÇA

Linguisticamente marcado pelo modo verbal imperativo ou subjuntivo


combinado com o modo indicativo, nos tempos presente e futuro do presente.
Normalmente, o advérbio de negação não acompanha a conjunção se. Vejamos alguns
exemplos:

SD173: Leva vigia, colete e blindagem pra ir pro restaurante, se não


(caso contrário), é viúva chorando e ômega zero no desmanche.

SD175: Que Deus deixe ele encontrar, madame, sua esmeralda, se não
(caso contrário), ele arranca seu coração na faca.

SD182: Cala a boca, doutor. Não dá mais nem um pio, se não (caso
contrário), te mando com tua vaca pra puta que o pariu.

Discursivamente, existem alguns aspectos a serem apontados como o fato de que


esses três exemplos produzem um efeito de interlocução, tanto que nas duas
últimasSD‟s, o fio discursivo apresenta até um vocativo, um chamamento ao
interlocutor, a quem o sujeito-rapper estaria interpelando: doutor e madame. A própria
terminação verbal dos verbos presentes nas formulações que não possuem o articulador
se também denuncia essa característica da interlocução: segunda pessoa do singular do
imperativo presente (leva e cala). Além desse aspecto de interlocução, há também que
se destacar o efeito produzido pela expressão se não, que traz esse tom de ameaça e que
se aproxima, como dissemos anteriormente, do efeito produzido pelas expressões caso
contrário e ou, então.

3.3.2 CAUSA

Caracterizado linguisticamente pelo esvaziamento do valor condicional da


conjunção se e o consequente preenchimento com o valor causal, como se estivéssemos
diante de uma substituição entre as formas se e porque. O modo verbal também é o
indicativo.

SD174: Não vou rimar felicidade no meu rap, se aqui, filho da puta, a
marcha fúnebre prossegue.

SD188: O Brasil não se comove se sou eu que peço o passe.


131
SD194: Não adianta ser milhões, se não somos um.

Diferentemente do primeiro grupo – efeito de ameaça –, neste não é possível


observar como ponto em comum um efeito de interlocução, porque dos três exemplos
citados, apenas o primeiro apresenta um vocativo. Além disso, em todos os exemplos a
terminação verbal não aponta para a segunda pessoa do discurso: dois verbos possuem
terminações de terceira pessoa, com o sujeito gramaticalmente expresso; o outro verbo
tem terminação de primeira pessoa do singular (eu).

Interessante observar como o efeito de hipótese esperado pelo interlocutor e


estabelecido pela(o) presença/uso da marca se é quebrado, para que se constitua, em seu
lugar, uma relação de efeito (“o Brasil não se comove”) e causa (“se/porque sou eu que
peço o passe”). Aqui também vemos que a posição discursiva assumida pelo sujeito-
rapper é a da formulação encabeçada pelo articulador. Isso significa que, no caso do
segundo exemplo citado, o sujeito-rapper se identifica a tal ponto com o marginalizado
que se utiliza da primeira pessoa do singular para promover esse efeito de denúncia, de
questionamento sobre a contradição inerente ao enunciado da “igualdade de direitos e
deveres entre todos os homens”, que sustenta a ideologia capitalista. Ele questiona não
apenas porque constrói uma negação polêmica no intradiscurso em que se produz o
efeito de “constatação da realidade”, como também porque define que o motivo de não
haver comoção por parte do Brasil é o de que se trata de ser esse marginalizado, de ser
esse pobre e favelado (referindo-se notadamente àquela parcela da população que sofre
com diversos mecanismos de silenciamento produzidos pelas / produtores das posições
histórica e discursivamente construídas e sustentadas ideologicamente como
“dominantes”, oficiais) estar pedindo o “passe” (jogada do futebol em que um jogador
de uma equipe passa a bola a outro jogador da mesma equipe).

3.3.3 TEMPO

Possui um funcionamento linguístico simétrico ao do se causal, descrito no


ponto 3.3.2, com a diferença que o efeito produzido é o de tempo e não o de causa.
Vejamos:

SD181: Eu só sou um problema, se(quando, no momento em que)


atravesso o vidro, pego a bolsa e o toca-CD e atiro no ouvido.

132
SD187: Aí, moleque, a vitória só vem se(quando, no momento em
que) estudar ou trabalhar.

Novamente, estamos diante de uma quebra de expectativa: a palavra prototípica


da condicionalidade se vem esvaziada desse efeito de sentido, para ser “preenchida”
pelo efeito de temporalidade. Dessa forma, vemos que não é em qualquer momento que
o pobre/favelado é visto/compreendido enquanto um problema, mas apenas –
observemos o esforço produzido pelo advérbio só – quando comete um ato criminoso,
condenável, contra as posses / vidas alheias. Da mesma forma, não é sempre que se
alcança a “vitória”, mas apenas quando o sujeito estuda e/ou trabalha.

Pode-se notar que, apesar de estarem sendo formuladas pelo grupo de rap
Facção Central, que se coloca enquanto “representante do barraco”, e que deveria estar
referindo seus sentidos à formação discursiva do questionamento, está discursivamente,
no primeiro desses dois exemplos, remetendo à formação discursiva da barbárie, para a
qual há uma contradição subjacente ao enunciado “todos são iguais perante a lei”,
contradição essa que faz com que alguns sejam “mais iguais” do que outros. Ou seja,
embora represente o barraco, o sujeito-autor se identifica com os sentidos da formação
discursiva à qual estaria / deveria estar se contrapondo, quando repete, nas suas
formulações, sem promover deslocamentos, enunciados de outra formação: é preciso
haver um ato criminoso contra a vida/patrimônio de alguém que possui patrimônio para
que a situação daqueles que não possuem patrimônio (não moram no barraco) possa ser
problematizada; é preciso que se estude e/ou que se trabalhe para que se possa ter
condições de chegar à “vitória” – observemos, porém, que a forma de problematizar a
situação de um sujeito considerado criminoso é a condenação desse sujeito com base
num processo judicial normalmente conduzido de forma, muitas vezes, questionável,
com a subsequente provável condenação do réu, e que o estudo e o trabalho não são
necessariamente o visto no passaporte para o “sucesso” profissional e/ou material.

Assim, vemos como o sentido não é naturalmente “preso” à forma, ou,


retomando os termos de Saussure em Curso de Linguística Geral, como o “significado”
não está naturalmente preso ao “significante”. Isso quer dizer que existem processos de
sedimentação dos sentidos, sedimentação produzida historicamente e que (se) marca
(n)a língua. Processos que produzem efeitos, como o da literalidade, que, se aceitos
como verdade, propiciam reações autoritárias, como a proibição da veiculação de vídeos
e músicas pelos meios de comunicação, tal qual a censura promovida pelo Ministério

133
Público paulista contra o Facção Central, seu álbum Versos Sangrentos e sua música,
conhecida no mundo fonográfico como carro-chefe, Isso aqui é uma guerra.

Nós, na posição de analistas de discurso, embora sujeitos ao funcionamento da


ideologia e do inconsciente, não podemos “cair” na facilidade dos efeitos de literalidade
produzidos pelos movimentos da história e “escolher” deliberadamente um lado para
defender. Contudo, nossas escolhas temáticas e teóricas deixam pistas dessas nossas
escolhas ideológica e inconscientemente orientadas.

134
4. SOB O EFEITO DE CONCLUSÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS E
PROVISÓRIAS

“O Facção não é mais meu, nem do Dum-Dum. É de quem admira e acredita em nós.”
(Carlos Eduardo Taddeo, 2006)

Este momento de finalização de um trabalho de pesquisa, tal como todos os


outros processos de finalização, produz um sentimento duplo e contraditório que vai da
dor que a ilusão da completude promove até o alívio que o encerramento de uma fase
pode trazer. A ilusão da completude produz em nós essa sensação de que mais coisas,
sob mais aspectos, poderiam e deveriam ter sido ditas. Disto advém a dor da
interrupção, por mais que saibamos que tal interrupção pode ser apenas um pequeno
intervalo entre dois momentos de frutíferas pesquisas. O alívio também tem origem
nesse necessário intervalo, duramente conquistado após quase trinta meses de estudos.

No entanto, não basta descrever as sensações advindas desse momento final,


pois se faz necessário que retomemos alguns dos aspectos mais relevantes dessa
pesquisa e que apontemos em que nos auxiliaram as análises, a fim de que chegássemos
aonde chegamos. Nesse sentido, apresentaremos a seguir uma breve retomada e
terminaremos elencando algumas questões que, embora tenham sido feitas, não
puderam ser resolvidas e propondo outras questões que podem ser tema de próximos
estudos.

A nossa proposta, com essa pesquisa, foi a de buscar nas letras das músicas que
compõem o álbum produzido pelo grupo paulista de rap Facção Central e lançado no
ano de 2001, A marcha fúnebre prossegue, as marcas que funcionariam, segundo nossa
hipótese, enquanto marcas discursivas de resistência. Para tanto, foi necessário que
produzíssemos o material com o qual trabalharíamos e, assim, procedemos à
poemificação das letras. Durante os procedimentos de poemificação, algumas
características dessas letras chamaram a nossa atenção por conta de uma presença
numerosa ou pela regularidade: a negação, a adversão, a condicionalidade e a
causalidade. Estas tornaram-se, então, as pistas a partir das quais decidimos recortar as
sequências discursivas. Isso porque o material é composto por formulações produzidas
apenas pelo grupo Facção Central, o que poderia produzir um efeito de homogeneidade
de posições discursivas, embora a língua, como sabemos, seja um lugar de conflito. E,

135
ao trabalhar com oposições, causa e condição, poderíamos vislumbrar como se dão
esses embates e que posições são essas, além de podermos compreender de que modo as
identificações entre sujeito e sentido se ocorrem.

Com a hipótese de que esse sujeito enunciador, o Facção Central, após sofrer um
processo de silenciamento local – censura (Orlandi, 1997) – decide reafirmar sua
posição questionadora da ordem estabelecida e resistir aos sentidos de justiça, de
igualdade e de liberdade, que são centrais na ideologia capitalista, partimos para a
elaboração dos objetivos, que incluíam desde a verificação do funcionamento das
marcas da negação adversão, causa e condição na língua imaginária e na língua fluida,
até distinguir ordem e organização da língua no modo de funcionamento das letras do
álbum escolhido, passando por pensar os processos de produção de identificação
subjetiva a partir das marcas significantes e por relacioná-las à resistência que o sujeito
produz ao dever de preencher determinado lugar social que lhe fora social e
imaginariamente designado.

Então, com os recortes em mãos e o olhar direcionado sobre as questões


levantadas, passamos para as análises. Verificamos que esse sujeito-rapper comparece
nas letras produzindo seis imagens de si (mensageiro de um futuro trágico, porta-voz da
favela/periferia, arrependido/lamentoso, vítima, revoltado sanguinário e revolucionário)
e representando o seu outro de maneira hiperbólica, “convidando” esse outro a
comparecer no intradiscurso a partir de vocativos frequentes e, por fim, “calando” esse
outro, a partir da saturação produzida pelas constantes falas representativas (aquelas que
não são as falas do outro, mas que se encontram representadas no intradiscurso das
formulações do sujeito-rapper). Sabemos, contudo, que o funcionamento ideológico é
dissimétrico e permite compreender como sentidos da formação discursiva da barbárie
podem comparecer, reproduzidos e sem deslocamentos, nas formulações que remetem à
formação discursiva questionadora – sua oposta.

Tais formações discursivas, não presentes na hipótese da pesquisa, mas


subjacentes a ela, foram pensadas a partir da definição de Pêcheux (1988 [1975]),
segundo o qual a palavra adquire seu sentido da posição discursiva daquele que a
emprega. Vimos que três palavras têm sua referência construída de maneira diferente e
que essa diferença remete a duas posições distintas e antagônicas, em disputa: vítima,
vitória e herói. Definimos, então, duas matrizes donde as palavras/expressões podiam

136
retirar seus sentidos: formação discursiva questionadora e formação discursiva da
barbárie. Explicamos os motivos dos nomes e mostramos por que acreditamos que
ambas se relacionam sob a dominância da segunda sobre a primeira e sob o âmbito da
mesma formação ideológica: a capitalista neoliberal.

Percebemos, com tudo isso, que o sujeito até resiste contra a ordem estabelecida,
primeiro porque “escolhe” produzir suas letras de dentro do movimento hip hop; depois,
porque não reconhece a organização da língua brasileira como onipotente e cânone,
apesar de estar inscrito nela para (se) significar; também porque não hesita em (ab)usar
(d)a opacidade que a ordem da língua permite que se produza, utilizando, para tanto,
siglas, xingamentos, gírias; e, finalmente, porque desloca a centralidade do trabalho
enquanto a única maneira moral e licitamente possível de se conquistar uma vida mais
digna. Mas esse sujeito-rapper não consegue romper de vez com a ideologia capitalista,
porque reproduz o desejo de ter igualdade real de direitos, de usufruir dos luxos e
confortos que a sociedade capitalista pode produzir, de não deslocar o sentido de escola
enquanto espaço de “transformação da sociedade”, quando reproduz o sentido que o
valor do sufrágio tem para a manutenção/transformação das esferas política, econômica
e social do Brasil. Mesmo diante dessas contradições, inerentes ao sujeito, o sentido da
resistência chega a se sobrepor ao sentido da reprodução de valores, porque, ainda que
seja pouco ou insuficiente para a transformação radical da sociedade, questionar é um
dos passos de maior importância, porque ajuda a desestabilizar as bases sobre as quais
as evidências são produzidas/sustentadas. E questionar as evidências é um passo para a
desnaturalização da relação palavra-sujeito-sentido, em direção à construção de novas
bases.

Essa foi, enfim, a proposta deste trabalho: desestabilizar as bases sobre as quais
se desenvolvem o preconceito contra o movimento hip hop (sobretudo com relação à
vertente underground, a que eu “rebatizaria” de roots, porque se propõe a manter as
raízes da proposta originária do movimento), pois se trata de um movimento de origens
nos negros e marginalizados; desestabilizar as bases sobre as quais se institui a língua
imaginária, mostrando que a gramática, enquanto instrumento de contenção da fluidez
da língua, não é capaz de descrever e prescrever todas as possibilidades da ordem da
língua; desestabilizar a evidência de que, no capitalismo, é possível existir igualdade de
oportunidades e de que é possível “vencer” na vida (profissional e financeira,
sobretudo) através unicamente do trabalho (o mesmo que produz a mais-valia, o

137
excedente, o lucro do dono dos meios de produção e dos especuladores); por fim,
desestabilizar essa certeza de que as letras das músicas do grupo de rap Facção Central
estimulam, incentivam ou incitam a realização de atos criminosos. Acreditamos, nesse
momento, que as essas tarefas foram cumpridas e que próximos estudos poderão se
propor a trabalhar com o mesmo material e aproveitar as pistas que, por uma opção
teórica e, até certo ponto, pragmática, uma vez que existe um tempo máximo a ser
cumprido, acabaram não sendo seguidas neste momento.

A resistência, conforme vimos a partir de Pêcheux (1980), pode se dar sob as


formas de falar quando não é permitido, de calar quando se obriga a falar, de falar
“errado”, de não “entender” as ordens etc. A nossa hipótese se confirmou, pelo menos
em parte, porque observamos que o sujeito-rapper resiste ao deslocar sentidos sobre a
organização da língua, ao deslocar a centralidade do trabalho (exploração do homem
pelo homem, em conformidade com a formação ideológica sob a qual se dão essas
relações intersubjetivas). Confirmou-se, também, a hipótese de que se trata de um
discurso tendencialmente autoritário, porque o espaço reservado ao outro, no
intradiscurso do Facção Central, é saturado de sentidos vindos da formação discursiva
questionadora. Em parte, por outro lado, a hipótese se deparou com as contradições do
sujeito, que apontaram para um funcionamento ideológico fácil de ser observado:
repetições de sentidos contra os quais o sujeito procura se confrontar, no fio discursivo,
sem referi-los a uma outra matriz de sentidos, ou seja, sem promover deslocamentos.

Existiram, conforme se pôde observar até aqui, várias formas de abordar o tema
da resistência com o material que recortamos. A nossa forma foi essa apresentada. Só
mesmo o tempo e os novos estudos que com ele certamente advirão poderão mostrar se
este trabalho conseguiu abrir os caminhos que se propôs a abrir.

138
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142
6. ANEXOS

6.1 As letras do álbum A marcha fúnebre prossegue (Facção Central, 2001) utilizadas
na pesquisa

<http://www.baixandolegal.org/2009/06/faccao-central-a-marcha-funebre-prossegue.html>

i. Dia comum (L2)

Um helicóptero preto a poucos metros do chão, o homem bom, o homem da lei, que só atira na
um barulho ensurdecedor de sirene, carro cabeça de pobre,
derrapando, só dá tapa na cara, só derruba porta de barraco,
armas sendo engatilhada, vidro estilhaçado, o filho da dona Maria qualquer da periferia
repórter, sangue, violência, ódio, dor, agora engrossa o número da estatística
perda, sensação de impotência, das tentativas frustradas, fracassadas
frações de segundos, de vitória na vida do crime.
o céu ou o inferno, O filho da imigrante lavadeira sangra perto da porta
a solidão da sela, ou o carro zero. giratória.
A casa própria, Ninguém chora, risadas, alívio,
A vitória é tentada de forma violenta, a cena de terror tem contorno de heroísmo
o sucesso dependente de um fracasso, de um e novela de final feliz.
caixão, O policial contente sopra o cano do seu revolver,
de um malote na mão, de uma fuga rápida, de um mas no fundo, no fundo, preocupado,
dia de sorte, pois sabe que amanhã ou depois
um Deus dividido por duas orações, o moleque esquecido no fundão da periferia
uma vítima ajoelhada implora pela vida. vai cansar de pedir esmola,
O ladrão nervoso tremulo não quer algema da de não ver comida na panela,
polícia de ver sua mãe só de camiseta furada, chinelo,
a fome e a miséria mostram o fruto que a sociedade chorando com seus irmãos famintos no colo.
vai colher: Vai arrumar um revólver,
sanguinário, raivoso, armado. tentar resolver seus problemas através do sangue da
O moleque do pipa é transformado no homicida, cabeça de um gerente de banco,
que como animal faminto busca o cofre, e vai ser mais um favelado, no caixão preto doado,
como se fosse a presa morta ensangüentada, sem flores e sem velório
o carro preto e branco chega, Infelizmente, a Marcha Fúnebre Prossegue.

143
ii. A guerra não vai acabar (L3)

Aí, promotor, o pesadelo voltou, Assistindo o resgate, dominada, desarmada


Censurou o clipe, mas a guerra não acabou Delegada chorando, desistindo do emprego
Ainda tem defunto a cada 13 minutos, Meu clipe „inda er‟ um sonho e é real o pesadelo
Dez cidades entre as 15 mais violentas do mundo Eu não preciso estimular o latrocínio
Da classe rica ainda dita moda do inferno, Nem o sequestro relâmpago de um empresário rico
Colete à prova de bala embaixo do terno O Brasil não dá escola, mas dá metralhadora
No ranking do sequestro, 4º do planeta O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda
51 por ano, com capuz e sem orelha Não vem me colocar de bode expiatório
Continua apologia na panela do barraco País falso moralista, é você que quer velório
Ao empresário na cherokee desfigurado Aí, tia da mansão, fazendo oração,
180 mil presos, menor decapitado, Esperando o contato do sequestrador em vão
cabeça arremessada no peito do soldado Seu filho deve tá morto, quer saber por quê?
Sistema carcerário ainda é curso pra latrocínio Combater violência aqui é me calar ou me prender
Nota 10 no ensino de queimar seguro vivo
Família amarrada, miolo pelo quarto Refrão (4x)
Hollow point no doutor pra ver dollar no saco
Destaque da tv sensacionalista E quem não olha pro moleque sem infância, no
Que filma sem pudor o trabalho da perícia morro
Contando buraco no crânio do corpo do boy morto Oitão na cinta, sangue na mente, apetitoso
Pela glock que o sistema porco põe no morro Homicídio, latrocínio, só profetiza o óbvio
Mas pra mim é 286, quando falo do sangue Cercado pelo crack, a consequência é óbito
que escorre do pescoço do vigia, Vendo sua mãe catando fruta apodrecida
Dentro do carro forte, quanto descaso pra periferia Rasgando o lixo, comendo o resto da burguesa
Transforma meu povo em carniça Galinha metida que, quando vê o da favela, pisa,
Tem facção na pista acelera,
Sanguinário na rima Pra essa cadela só é gente quem tem lagosta na
panela
Refrão (4x) A criança vira um monstro com 13 no pente
Pode censurar, me prender me matar Quando percebe que a propaganda de bike, video-
Não é assim, promotor, que a guerra vai acabar game
Playcenter, tênis, danone, Mclanche
Não tem inquerito pra tv que tem a vadia nua É so pro filho da madame
novela da 6, 7, 8 sem ministério nem censura Carboniza um corpo, desfigura o rosto
Só o meu rap que é nocivo pro sistema hipócrita Quando vê que pra ele é so pipa, água de esgoto,
A justiça não quer ouvir que o moleque que o pai Não é desculpa pra revolta, porque não é seu filho
dá as costas O seu tá de Audi, alimentado, bem vestido
Pode invadir seu apê, derrubar a sua porta Vai se tornar empresário bem sucedido
Matar seu parente pra pagar treta de droga Não vai precisar gritar assalto em nenhum ouvido
Se tem sangue, eu canto sangue Facção é só um retrato da guerra civil brasileira
Se tem morte, eu canto morte Da carnificina rotineira
Relato que leva o ladrão pro cofre Assusta menos que o menor muito loco espalhando
Não sou eu que coloco o mano lá no banco seu miolo pelo visor do caixa eletrônico
Estorando o gerente, saindo trocando
Foi na tv que eu vi parte da polícia deitada Refrão (2x)

iii. A marcha fúnebre prossegue (L4)

Não queria o moleque com a faca na mão, Cuzão que não concorda com o holocausto
Ajoelhando o tio grisalho, querendo seu cartão. brasileiro,
Queria só rimar choro de alegria, Vive no condomínio, limpa o rabo com dinheiro.
Mas na favela não tem piscina, armário com Quer o sangue do ladrão, bebendo seu uísque,
comida. Protegido na ilusão, na grade da suíte.
É só gambé gritando “deita!” pro mano de escopeta, Sua paz está no luto decretado pelo tráfico,
Que na fita do pagamento fuzilou o dono da Comércio fechado tipo feriado.
empresa. Tá na bala perdida do fuzil varando sua porta,

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Explodindo teu mundo rosa, te pondo na cadeira de desemprego,
rodas. E bater na mulher quando chegar a noite bêbado.
Na gravação do circuito interno do Bradesco, Desde as 4 da manhã e nem vaga pra lavar privada,
Rouba banco querendo enterro, ladrão trocando pra O mano perde a calma, mata a família e se mata.
não ser preso. Caixão lacrado não estimula verso alegre,
No céu não tem deus, só o helicóptero da polícia, Aqui, filho da puta, a marcha fúnebre prossegue.
Descarregando a traca no fugitivo da delegacia.
Aqui o corujão só passa bang-bang, Refrão (4x)
No fim do arco-íris, o dono do jato vomita sangue.
Leva vigia, colete e blindagem pra ir pro Queria que a vida fosse igual na novela,
restaurante, Jet-ski na praia, esqui na neve europeia.
Se não, é viúva chorando e Omega zero no Sem pai de família gritando assalto ou sendo feito
desmanche. de escravo,
Não vou rimar felicidade no meu rap, Com 1 5 1 por mês de salário.
Se aqui, filho da puta, a marcha fúnebre prossegue. Que não enche nem metade de um carrinho no
mercado,
Refrão (4x) Não paga luz e água, o aluguel do barraco.
A paz tá morta desfigurada no IML, Aqui, pro cidadão honesto ter um teto,
A marcha fúnebre prossegue. Só pondo o fogão na cabeça, invadindo o prédio.
Saindo na mão com PM do choque,
Tá rindo? Quer dançar, quer se divertir? Sobrevivendo o tiro da reintegração de posse.
Meu relato é sanguinário, playboy não vai curtir. Pergunta pro tio do terreno invadido no escuro,
Sou homem pra falar que o moleque do pipa, O que é um trator transformando sua goma em
Esquecido, um dia troca tiro com a polícia. entulho.
Não simulo sentimento pra vender CD, Arrombado que me critica me mostra o povo
Não vou falar de paz, vendo a vítima morrer. sorrindo,
Vendo no DP mano cumprindo pena, De carro, casa própria, churrasco no domingo.
Matando o seguro pra ter transferência. Será que é miragem um mendigo que come osso,
Vendo a criança no norte comendo cacto, Gambé porco que pela tua cor deforma seu rosto.
Gambé desovando mais um corpo no mato. O menino com a 3 8 0 que rouba o carro e dá fuga,
Não iludo o casal dirigindo feliz à pampa, deixando a burguesa mutilada, sem metade da nuca.
Fora da blindagem, é um sonho a segurança. Quem vê violência só na tela da TV,
Quando o portão automático da goma subir, Só vai ouvir Facção e conseguir entender,
Prepara a senha do cofre pro ladrão abrir. Quando tiver amarrado, dentro do porta mala,
Que deus deixe ele encontrar, madame, sua Rezando pro ladrão não enfiar bala.
esmeralda, Quando trombar a dor, vai enxergar o verdadeiro
Se não, ele arranca seu coração na faca. rap,
A polícia vai chegar só pra fazer perícia, Aí o filho da puta vai sentir que a marcha fúnebre
Quando alguém se incomodar com o cheiro de prossegue.
carniça.
No balcão, toma com limão pra esquecer o Refrão (8x)

iv. Aqui são teus cães (L5)

[Dum Dum] Não tenho futuro, não sou jogador,


Filho da puta, aprendi tudo do jeito que me ensinou, Sou, na cena do crime, o principal ator.
Coração petrificado, glock no doutor. Boy, quando ouvir assalto, não precisa chorar,
Ver o refém queimando vivo e dar risada, Apenas são teus cães adestrados pra matar.
Sem anestesia, arrancar seu dedo com a navalha.
Fechar o carro forte, atirar de AR15, Refrão (4x)
Cuzão dá o malote, herói não sobrevive. Ra-ta-tá vem escutar,
Aprendi que o alarme da mansão é piada, Aqui são teus cães adestrados pra matar.
Resulta em empregada amarrada, velório na sala.
Seu adversário, o traficante da rua de baixo, [Eduardo]
Seu sangue, a vitória é status pro reinado. Como um bom aluno, eu tô fumando crack,
Sem boi pra rica de mitsubishi moscando na Trocando tiro com o gambé do DENARC.
avenida, Sem negociação, comigo é só terror,
Vai relógio, carro, manda a vaca pro legista. Não cumpriu minha exigência, a vítima sente a dor.

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Na agência bancária, vou tirar nota A, E ainda um cú de audi quer pagar de moralista.
Se o gerente não colaborar, pá pá: miolo no ar. Ladrão bom é o que a polícia matou,
Minha formatura vai ser regada a champanhe, Esquecendo que aqui é o cão que ele mesmo
Com o filho vendo eu atirando na cabeça da mãe. adestrou.
Se eu for preso, a técnica de fuga tá furada,
Fogo no 2 1 3, várias estiletadas. Refrão (4x)
Vou com o diretor pra frente da câmera da globo,
Fazer o cachorro chorar, pedir socorro. [Eduardo]
Sei que sou o diabo da sua cartilha, A aula termina na cela fria da delegacia,
Inimigo do Estado, seifador da classe rica. No povo contra povo, carnificina, chacina.
Primeiro da classe, orgulho do professor, Te dão ódio, motivo, fuzil,
O cão pronto pra matar que o Brasil adestrou. Pra você dar fuga a mil, tomando tiro da civil.
A lavadeira imigrante é a que sempre chora,
Refrão (4x) Vendo o filho sangrando na porta giratória.
O refém tá carbonizado porque o sistema quer,
[Dum Dum] Por que eu só existo, quando dou tiro na mulher.
Aprendi que não é justo eu na caixa de papelão, Ou quando eu apareço sangüináreo no noticiário,
Enquanto um boy tá de ferrari e o outro é dono de Arremessando a cabeça de outro presidiário.
avião. Toda vez que o avião do boy traz um fuzil na
Papai Noel, eu não sou um bom menino, viagem,
Eu busco o conforto através do latrocínio. Nasce mais um louco selvagem pra te fuzilar na
O vídeo vai ser 1 5 7; a TV, um furto, garagem.
Panetone da ceia, fruto de um furto. Fui adestrado pra roubar seu dinheiro, velha,
No vestibular do inferno, deixou claro Não pra encher a panela, mas pra ter carro, fumar
Que sua ascensão vem na queda do empresário. pedra.
Por isso, eu vou pra moto enquadrar teu carro, Sem espanto, puta história, normal na favela,
Atirar no teu peito, arrancar o motor, queimar Pro esquecimento, uma seqüela, astro do linha
carcaça no mato. direta.
Vou dar 5 gramas pro moleque do condomínio,
Pra ele ser meu cliente doente até o suicídio.
A filha roda a banca, cheira todas na danceteria, Refrão (4x)

v. Desculpa, mãe (L6)

Mãe, não dei valor pro teu sonho, sua luta tarde
Diploma na minha mão, sorriso, formatura (desculpa, mãe) só restou a lágrima e a dor da
Não fui seu orgulho, diretor de empresa saudade
Virei o ladrão, com a faca, que mata com frieza
Não mereci sua lágrima no rosto Quantas vezes, no presídio, me visitou
Quando chorava vendo a panela sem almoço No domingo, bolacha, cigarro nunca faltou
Vendo a laje cheia de goteira Vinha de madrugada, sacola pesada
Ou a fruta podre que era obrigada a catar na feira Pra ser revistada pelos porcos na entrada
Enquanto você juntava aposentadoria, esmola pra Rebelião, você no portão, temendo minha morte
não ter despesa Sendo pisoteada pelos cavalos do choque
Eu tava no bar, jogando bilhar Eu prometi que dessa vez tomava jeito
Bebendo conhaque, bêbado, Tô regenerado, ouvi seus conselhos
eu era o ladrão de traca a escopeta Uma semana depois, eu na cocaína:
Com a mãe implorando comida na porta da igreja - Cala a boca, velha! Sai da minha vida!
Todo Natal, você sozinha, eu na balada - Eu vou cheirar, roubar, seqüestrar.
Bancando vinho, farinha, pras mina da quebrada - Não atravessa meu caminho, se não vou te matar!
Desculpa, mãe, pela dor de me ver fumando pedra Saí pra enquadrar o mercado da esquina
Pela glock na gaveta, pelo gambé pulando a janela Troquei com o segurança, tomei um na barriga
A Polícia me perseguindo, eu quase pra morrer
Refrão (2x) Só tua porta se abriu, pra eu me esconder
(desculpa, mãe) por te impedir de sorrir
(desculpa, mãe) por tantas noites em claro, triste, Refrão (2x)
sem dormir
(desculpa, mãe) pra te pedir perdão, infelizmente é

146
Os gambé vigiando o pronto-socorro Velha, doente, desafiando a madrugada
Eu na cama delirando, quase morto De porta em porta: - Alguém viu meu filho? Tô
Ferimento ardendo, coçando, infeccionado preocupada!
A solução foi o farmacêutico do bairro Fim de semana foi farinha, curtição,
Que só veio por você, com certeza: Só cheguei hoje e de prêmio te trombei nesse
A heroína que pediu esmola no busão, com a receita caixão
Deu comida na boca, comprou todos remédios, Um vizinho ligou, que foi ataque cardíaco
Sonhou com emprego, mas o diabo me quis Morreu na rua, atrás da merda do seu filho
descarregando ferro
Aí eu dei soco, chute, bati com tanto ódio: Refrão (2x)
- Preciso fumar, vai, mãe, dá o relógio!

vi. Sei que os porcos querem meu caixão (L7)

[Eduardo]: Chocou apavorou escandalizou.


O boy queria que eu tivesse traficando, O verso sanguinário conseguiu abalar,
Gritando assalto com uma nove pro caixa do banco. Vem pagar um pau mídia vem me entrevistar.
Queimando a cara de um refém com cigarro: Vou enfiar no teu rabo meu estereotipo de ladrão,
- Dá a senha, filho da puta! Anda, desgraçado! Um careca de jaqueta aqui é rapper facção.
O Brasil não aceita pobre revolucionário, Não vai te dar notícia com o sangue da vaca rica,
O marginalizado defensor do favelado. Filma o maloqueiro pedindo paz na periferia.
Fugi do controle, quebrei a algema, Surgiu uma par de herói querendo meu sangue
Expandi meu veneno, meu ódio, minha crença. minha caveira,
Contaminei o povo, revolta incurável, Querendo flash na minha aba se tornar estrela.
Terrorista verbal, discurso implacável. Cuzão não entendeu rap não é campeonato,
Pega seu dinheiro e enfia no cu, Pra vender CD não precisa do meu fracasso.
É caráter lapidado no sangue da zona sul. Faço meu papel honro meu compromisso,
Implantaram a liberdade de expressão assistida, Semeio o ódio contra quem me faz roubar o
Pra rima agressiva do rapper homicida. executivo.
Desprendido de mídia, público do shopping, Aqui é só outro mano sem boné sem estudo,
Cuspo na sua TV, na sua porra de ibope. Sem currículo curso talvez sem futuro.
Ativista ou artista, sou o próximo da lista, Entendeu dono do iate o apoio da favela,
Foda-se a censura, represália da polícia. Faço parte dela sou fruto da cela.
Se tiver que morrer, aí fazer o que? Não deram faculdade pra eu me formar doutor,
Ameaça não intimida, Eduardo não faz tremer. Então a rua me transformou no demônio rimador.
Fala mal de mim, rimador da alegria, Enquanto meu corpo não virar carniça,
Pelo menos não sou puta, não vendi minha Eu to no rádio no vídeo lançando minha ofensiva.
ideologia. Nem cherokee nem piscina nem modelo vadia,
Não traí a minha história, minha raiz no cortiço, Compram a atitude do mano do quarto e cozinha.
Prossigo minha missão, pra multi sou nocivo. A traca verbal é um dois pra acionar,
Invadi a mansão igual um rolo compressor, É só o menino faminto chorar pro dum dum
O playboy se borrou com a verdade no televisor. descarregar.
Denunciei sem medo a guerra civil brasileira, Programado pra rimar buscar a igualdade,
Obrigado, favela, pelo FC na camiseta! Pra ser a ameaça pra sociedade.
Oficial de justiça não apreendeu meu cérebro, Oficial de justiça não apreendeu meu cérebro,
Dentro e fora da cadeia, locutor do inferno. Dentro e fora da cadeia locutor do inferno.
Sou periferia em cada célula do corpo, Sou periferia em cada célula do corpo,
Por isso, uma par de porco tá me querendo morto. Por isso uma par de porco tá me querendo morto.

Refrão (2x) Refrão (2x)


Sei que os porcos querem meu caixão,
"Era a brecha que o sistema queria". A boca só se cala quando o tiro acerta
Sei que os porcos querem meu caixão, - Se é isso que eles, querem então vem me mata!
"Avisa o IML: chegou o grande dia". - E pros filhos da puta que querem jogar minha
cabeça pros porco, aí, tenta a sorte, mano.
[Dum Dum]:
O preto favelado aterrorizou,

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vii. O show começa agora (L8)

Camisa branca, vela acesa, 7horas, é outro excluído querendo vingança


faixa, bandeira, o show começa agora. na mesa de restaurante, na hora do jantar,
algum rico ganhou a extrema unção do padre duvido que algum cu para pra pensar
chave pra socialite buscar publicidade no tio doente, na caixa de papelão,
pede paz quando a bala estraçalha sua boca querendo sopa quente, um lixo que tenh‟ um pão
ou quando a filha aparece morta no mato, sem na criança de seis anos catando lata
roupa no alcoólatra com a faca, mandando o filho pra
o moleque decapitado no esgoto, no lixo maca
é só uma estatística, um furo jornalístico ao degustar seu caviar, seu vinho italiano,
banal pro circo do falso moralismo é numa bala no meu crânio que ele tá pensando
não abala a cadela rica, nem um político cínico na policia invadindo, dando butinada
que no domingo tá de iate, rindo à vontade, na pretinha grávida, buscando alguma arma
enchendo o cu de drogas, bebendo balantaines a censura do meu rap, a tropa de choque
a classe rica só lembra da periferia me mostra que protesto é só quando boy morre
quando quer farinha pra se acabar na danceteria aqui é só flores no caixão e silêncio
cadê a musica da paz? o gesto do artista? ou bala de borracha e gás lacrimogêneo.
quando o jato da Colômbia traz pro morro só
cocaína Refrão (2x)
sua pomba branca tá sangrando no barraco
em forma de chacina, com criança em pedaços Manchete na CNN vai queimar o turista
tira essa vaca do ar Então, presidente chora, rebola na entrevista
modelo puta falando de nós formula seu pacote cheio de medidas
tá querendo ibope pra posar pra playboy contra o genocídio, luz da periferia
pagodeiro, sertanejo, vem vender CD: na Augusta, meio dia, controvérsia
a campanha do burguês tem cobertura da TV na luz do sol, olho aberto, um buraco na testa
dá pra se promover, apresentador cuzão, falso moralista,
até pagar de santo vai lucrar de novo com a desgraça da notícia
fingi que meu filho morre treta no palco: deficiente dá ibope
cuzão que rebola tá se importando quarenta pontos pra emissora, no horário nobre
quem faz comercial contra a violência
Refrão (2x) é o mesmo que quer sangue pra ganhar audiência
Não somos só noticia, número de estatística: A minha história não tem maquiagem
- Chora, playboy, com sangue da periferia! meu ponto de vista não é feito pra vendagem
Não somos só noticia, número de estatística: eu não agrado gambé nem arrombado de blindado
- Cadê a campanha da paulista, na hora da aqui é facção, representante do barraco
chacina? o boy não quer meu bem, só quer minha pistola
quer me ver com fome, inofensivo, na sua porta,
A indignação passageira do boy é moda pedindo esmola, um trocado qualquer,
deixa explícita sua atitude preconceituosa com ódio e revoltado, mas beijando seu pé
só merece globo repórter, campanha da paz eu só sou um problema, se atravesso o vidro,
quem acende o charuto com nota de cem reais cato a bolsa e o toca CD e atiro no ouvido
a puta de mega fone, no palco gritando, quem qué tá no condomínio, vivo e feliz,
não sabe o que é fome, só entende de tamanco não pede paz só quando tem defunto nos Jardins.
nunca viu criança estudando no chão,
acha que é cena de filme de ficção Refrão (2x)
não é o Estalone metralhando o segurança

viii. Tensão (L9)

[Dum Dum]: Um ladrão no volante, rindo à toa,


Machucado, sangrando, sufocado, Outro, com meu cartão e minha esposa.
Dentro do porta-mala do meu BMW. Obrigando ela a sacar meu dinheiro no caixa,

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Com a mira laser nas costas, nove cromada. nove.
Não tem como gritar nem dar alarme, Amarro a governanta, torturo a família,
Já premedito flores, a benção do padre. Quero mais dinheiro:
Por que não fui morar na Europa? Aí, coroa, não me tira!
Grande merda essa blindagem, foi só abrir a porta Mataram a esperança, só deixam como herança
Que o monstro da notícia, que pra mim era fictício, Uma doze com uma caixa de bala pra criança.
Pulou, deu coronhada, extremamente agressivo. Ia me entender, se visse sua filha na esquina,
Talvez seja algum moleque que eu não dei esmola, Por cinco conto, no hotel, dando a vagina.
Fechei o vidro na cara: Então, cuzão, dá um tempo, fica quieto!
- Tchau, porra! Sai fora! Talvez, se der sorte, não vai pra necrotério.
Agora vejo o que resulta a barriga cheia de ar,
No filho da faxineira, cortando minha jugular. Refrão (2x)
Ações, imóveis, conta no exterior,
Quando o oitão tá na cabeça, nada disso tem valor. [Dum Dum]:
Será que o fim vai ser igual filme: jornal, mulher Os minutos passam, tensão extrema,
estuprada, Será que a minha mulher errou a senha?
Com o marido assistindo e eles dando risada? Me lembro que um deles é menor,
Cadê ação preventiva da porra da polícia, Sé pá, joga gasolina e risca o fósforo, sem dó.
Tão num bar comendo coxinha, Eu tô ligado que fome e crack faz o bandido,
só vêm quando virem carniça. Então, por que não estraçalham a cabeça do
Querem meu sangue pra encher uma panela vazia, político?
Esse é o preço pela indiferença, cobrado pela Não nego minha culpa no menino faminto,
periferia. Em vez de cesta básica, comprei relógio suíço.
Contratei vigia, lancei carro blindado,
Refrão (2x) Mas, se o ladrão tá no banco, não é só eu que sou
O clima é tenso, a chance é muito pouca, culpado.
Vou terminar o dia c’ um tiro na boca. A porta abre, um grita:
Sente o ódio do diabo que você ajudou a criar, - Entra logo, vaca!
Agora, dono do jato, é muito tarde pra chorar. Tão dando coronhada.
- Porra! Ela tá grávida!
[Eduardo]:
Cala a boca, doutor! Não dá mais nem um pio. [Eduardo]:
Se não, te mando com tua vaca pra puta que o pariu. Agora pensa duas vezes pra comprar o diamante,
Vai ter pivete órfão no Morumbi, Pra sua piranha usar uma noite só no restaurante.
Caixão com alça de ouro assinada por mim. Olha a cara dela toda ensanguentada,
Diferente de você, não tenho BMW, Vê do que é capaz quem vive de migalha.
Só um cômodo no barranco, que com a chuva tá Investir em colete à prova de bala é ilusão,
soterrado. Minha bala com teflon atravessa ele e seu coração.
Teu filho vai pra escola com vigia, detector, Enquanto teu filho tiver na Disney e o meu no
Enquanto o meu não tem aula nem professor. reformatório,
Vai ser sequestrador, vai matar polícia, É quatro cinco na sua boca, autópsia, velório.
E ainda adolescente vai pra mesa do legista. Não chora pelo carro: seguro paga outro,
Não uso grife, sapato italiano, Cataram um boi:
Eu não tô na moda, nem etiqueta tem nos meus - Sai fora!
pano. Nasceram de novo.
O sonho da minha coroa era me ver com diploma e Corre pro DP, chama seu policial,
bíblia, Só por um milagre vão me ver no tribunal.
Mas o Brasil meu deu o cano que faz teu parente
virar carniça.
Por isso, seu sangue não me comove, Refrão (2x)
Por isso, invado a cobertura e abro o boy com a

ix. De encontro com a morte (L10)

Não acredito que eu cheguei nesse ponto Fiz a torneira de ouro pingar lágrima no palácio
Tô com o refém chorando em cima do seu filho No que foi que o crack me transformou?
morto Me estranhei dando soco na cabeça do doutor
Manchei de sangue o quadro de Picasso Fita dominada, já catando os eletrodomésticos

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Pivete do caralho gritou “morreu!”, no meu reflexo homicídio
Tiro à queima roupa, parou o coração Derreti o meu tênis, relógio, jaqueta
Promovi um velório, na suíte da mansão A diversão da sexta virou uma doença
Doente pela pedra, apertei o gatilho da PT Agora oitão na padaria:
Mas nenhum jurado vai entender - Cala a boca, tia!
Nenhum juiz vai me absolver - Abre logo o caixa! Traz minha cara de alegria!
O pai grita: Entrei no hall da fama dos pedidos da polícia.
- Por que não me matou no lugar dele? No papel, veio bica, dei cinco na barriga
Vendo carne do filho colada na parede. Madrugada tem tiro, minha família vai tremer
Enquadrei na intenção de dólar no cofre Dar busca em hospitais, IML, DP.
Não previ a vadia da mãe implorar: Meu irmão revoltado de ver minha mãe chorar
- Pelo amor de Deus, não morre! Sonha com o juiz batendo o martelo pra me
Se arrepender, não consta: o vizinho deu alarme condenar
Pro Morumbi veio o exército, até a Swat
Pela janela, já escuta a sirene dos lambe saco de Refrão (2x)
boy
Vindo na febre de me transformar no troféu do PM
herói O menino de olho azul não vai passear domingo
Se pá, minha coroa vai ver no noticiário O playcenter foi deletado pelo meu cachimbo
Meu corpo metralhado, e o resgate juntando os Que também roubou meu sonho de jogar no
pedaços Pacaembu
Vai lembrar que eu bati nela pra fumar TV e o rádio O craque perdeu pro crack, no Grajaú
Vai dar graças a Deus de me ver no caixão lacrado - O que que eu faço? Acredito no negociador,
- Ou mato logo todo mundo e me mato, morô?
Refrão (2x) Sem ilusão, não tem colete nem carro
Sei que vou morrer não posso fugir (3x) Vão me matar na viatura asfixiado
Só não quero mais moleque morrendo assim O Brasil não se comove, se sou eu que peço passe
Eu sou o ladrão doente ao boy na reportagem
Eu era só outro moleque jogando bola - Aí, moleque, o crime é só desgraça!
Descalço, fazendo gol, na porta da escola - Choro na cobertura, choro na sua casa.
Carente de incentivo, de um espelho - Não dá futuro roubar um carro forte.
Hoje não tem aula, o professor não veio - Não arrisque a sua vida pela porra do malote!
Querendo brinquedo, carinho de alguém É triste saber que minha mãe não vou ver mais
Não paulada na cara, do monitor da FEBEM Nem beijar minha mina, nem ouvir “papai!”
Não queria um rifle FAO aos 12 anos - Quanto vale agora a merda desse cofre?
Eu não queria achar que o herói era o assaltante de - Rubi, diamante, em troca da minha morte.
banco E o sistema dá o cachimbo pra beber seu sangue
Mas que cuzão que condena foi lá pra ensinar? Pra te ver morrendo no B.O., tentando pagar o
- Aí, moleque, a vitória só vem se estudar ou traficante
trabalhar Meu coração de ódio queria paz, acredite!
- Aí, moleque, não faz o que o sistema quer; Mas agora sou eu e o atirador de elite
Não borbulha sua vida nessa porra de colher! Tá a dez metros da janela e atira muito bem.
Pelo contrário, deram cachimbo Vai matar a vítima do crack e seu refém.
Acionaram a contagem regressiva pro meu

x. Eu tô fazendo o que o sistema quer (L11)

Pow pow o miolo voou, o boy caiu Me ensinaram que conforto só com o doutor morto
Os gambé vieram a mil, farejando o sangue do tio Com a sete meia cinco no pescoço
Que piada a blindagem, cerca elétrica Por isso, eu toco o interfone, o zelador abre o
Se liga da seqüela, puta rica, viúva histérica portão
Eu não sou fictício, sou monstro agressivo Disfarçado de carteiro, caio pra dentro com a UZI
Que tá no noticiário, fazendo refém sangrar pelo na mão
ouvido O boy cuzão que só vê morte pela sky, no sofá
Caí na armadilha, fiz pacto com o capeta Não foi pra Europa, agora assiste meu desejo de
Trocaram minha caneta pela escopeta matar
Me colocaram num opala, debaixo da chuva de bala Agiliza os dólares, os diamantes
A cento e oitenta, dando fuga da agência bancária Se não, arranco teu coração, te afogo no rio de

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sangue Se não blindar o coração, não tem cooper na praça
Quis ser advogado, mas perdi pra rua Se não por armadura, não tem surfe na praia
Vim cobrar com juros meu sonho de formatura Quando for pro teatro ver Shakespeare com sua
Ódio lapidado por um pai bêbado, porco mulher
Que batia na minha mãe, porque não podia comprar Pá pá na cabeça, como o sistema quer
o almoço
Fez de mim o lúcifer que o sistema quer Refrão (4x)
Que pela pedra deixa teu corpo pra perícia do
gambé Sou outro brasileiro favelado, sem sorte
Que vai morrer roubando o carro forte
Refrão (4x) Que vai estar agonizando, no chão do Itaú
Eu to fazendo o que o sistema quer Vendo a risada do boy porco de olho azul
Uma chance em um milhão de vencer como
Pra mim não tem cherokee nem iate bandido
Nem restaurante cinco estrelas, nem audi 100% de chance de mofar num presídio
Eu só como lixo, tomo tiro de investigador História real da família da periferia
Enquanto o boy tem clube de campo, Vem conferir quantos tem passagem na polícia
Conta no exterior Vê quantas mães tem santinho guardado
Então, fudeu, doutor, vou buscar a igualdade Do filho que por um real foi executado
De PT com adaptador de trinta, na crueldade Espantoso, surpresa, pra quem tem tudo na mesa
Não quero ser igual o tiozinho do bairro Fartura no armário é dono de empresa
Que trampa quarenta anos pra passar fome Me diz se não parece filme do seu dvd
aposentado O ladrão encapuzado, invadindo o DP
Nem igual minha mãe, doente, sem médico O delegado metralhado no meio da rua
Pedindo esmola com a receita, pra comprar o O caixa eletrônico na caçamba da perua
remédio Na real é ódio, faca no coração
Cuzão que come caviar e lagosta não sabe o que é A busca a qualquer preço da ascensão
viver um minuto nessa porra Preferia tar na escola, na biblioteca
Pega o dono da mansão e põe no barraco, Tar no shopping, comprando pra minha filha uma
Quando o filho dele chorar, sem ter nada no prato boneca
Não vai pra rua implorar de mão estendida Ter cartão de crédito, cheque cinco estrela
Vai catar a BMW da burguesa vadia Não tar matando alguém pra por o leite na geladeira
Vai subir corrente, se pá, até os dentes Mas infelizmente o que o sistema quer
Vai ter festa no necrotério, o legista contente. Sou eu com fome atirando na madame de chofer
Seu chip no peito não vai me segurar
Vou deixar seus pedaços pro satélite rastrear
Refrão (4x)

xi. Discurso ou revólver (L12)

A igualdade social é só em conto de fadas, Refrão (2x)


Felicidade é só em sonho, só em mágica. Tá na hora de parar de mofar no presídio,
Acredito na palavra ou na metralhadora. De estar no necrotério com uma par de tiros,
Revolução verbal ou aterrorizadora. De ser o analfabeto comendo resto,
Vamos queimar constituição com coquetel molotov, Viciado que o denarc manda pro inferno.
Carro bomba no Congresso: tic tac, explode!
Suplicar pro gambé derrubando sua porta Fizeram da sua rua filial do Vietnã,
não bater na sua mulher, não atirar nas suas costas. Deram rifles pras crianças, estupraram sua irmã,
Até quando comer resto, lavar banheiro, Exilaram na favela o cidadão na teoria,
Abrir o boy no meio na ilusão de dinheiro, Oprimido, censurado, no país da democracia.
Ser exterminado como judeu em Auschwitz, Te dão crack, fuzil, cachaça no buteco
Mostrar pra Globo o que é viver no limite. Esse é o campo de concentração moderno.
À custa Atlanta queimando na sua frente, Hitler, FHC, capitão do mato,
A SS agora veste o cinza da PM, Bacharéis em carnificina, mestrado em holocausto,
De braço cruzado, é só miolo espalhado no chão, Chega de bater palma tomando tiro, facada,
discurso ou revólver, tá na hora da revolução! De prato vazio, vendo o boy suar na sauna
O sistema te quer no viaduto, com água na boca

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Com a garrafa cortada na mão, esperando a Ou cavar trincheira, serial killer do planalto.
Kombi trazer sopa Continua em ação: discurso ou revólver, tá na hora
No chiqueiro do navio negreiro, consertar a da revolução.
porta,
Morto pelo senhor do engenho com farda e pistola, Refrão (2x)
Que só em cabeça de pobre descarrega sua
munição, A favor do inimigo: repressão, desinformação,
Discurso ou revólver, tá na hora da revolução. O domínio dos dois caminhos pra revolução.
Caminho um: a voz do povo, aqui, não é a
Refrão (2x) voz de Deus,
Se tua casa é de caxote de feira, problema seu.
Prevejo o mercado saqueado, bala de borracha, Tanto faz sua filha no motel, ganhando trocado,
Escudo do choque, tomando pedrada, Tanto faz seu filho com a doze, matando vigia no
Guerra civil em praça pública: assalto.
- Socorro, professor! Se vier pro asfalto fazer passeata,
Com sangue no rosto, mordida de cachorro, Aí o PM te mata, te faz engolir bandeira e faixa.
Sem teto, sem terra, sem prespectiva, Caminho dois: desconhecendo cenário político,
Sem estudo, sem emprego, sem comida, Onde jogar granada, quem é o nosso inimigo
O pavil da dinamite tá aceso, - Entendeu por que não tem escola pra você?
- Qual será o preço pra eu ter os meus direitos? Toma UZI e me diz quem tem que morrer,
Sequestrar, atirar, queimar pneu na avenida, Não adianta ser milhões, se não somos um,
Invadir a fazenda improdutiva, Ação coletiva, objetivo comum,
Só jogamo ovo, por isso, nada mudou, Discurso ou revólver? Não interessa a opção.
Quem sabe, o Presidente na mira do atirador. Sem união, é impossível a revolução.
Em São Paulo, trinta e cinco por dia. Refrão (2x)
- Chega! Tolerância zero.

xii. Sem luz no fim do túnel (L13)

A carniça no mato com mosquito, puta fedor - Deita, filho da puta!


Me mostra que a luz no fim do túnel apagou - Aí, tia, seu filho criado com afeto
Não acredito na paz, no futuro Tá no chão da UTI, sonhando com o médico
O som da metralhadora me traz um crânio com uma Mijado, cagado, ferimento do tiro inflamado
pá de furo Gritando “socorro!” pro enfermeiro,
Enquanto você tá sonhando com a justiça, Implorando pra ser medicado.
O moleque de doze troca tiro com a polícia. Eduardo, Dum Dum, Erick 12: Facção
Pega o boy, arranca os dentes, no sonho do Não canto esperança, porque não vendo ilusão.
videogame Malote na mão, vigia no chão, pow, pow!
Toma 5 do PM, é enterrado como indigente. A luz do fim do túnel apagou.
Outro corpo na mansão, pra mim, é só o começo
Sangue, lágrima: dinheiro a qualquer preço. Refrão (2x)
Criança gritando, dor, desespero. A luz do fim do túnel apagou
Vendo a mãe tomando facada, arrastada pelos Caixão lacrado, glock no doutor
cabelos A luz do fim do túnel apagou
No porta-malas com capuz, agora é só Jesus! Malote na mão, vigia no chão, pow, pow!
- Cadê a senha? Ou o padre abençoa a sua cruz.
Colaborou, falou dos filhos: País do caralho não me deixa ter um carro,
- Me deixa vivo, leva tudo. Um bom tênis comida, um salário.
Menor muito louco fez outra viúva de luto. Nascido pra passar fome, com mão na parede,
No céu tem fogo, mas não é festa junina, Pra sonhar com B.O. bem sucedido na Mercedes.
É a favela de cima querendo ponto de cocaína. - FHC, pega sua arma, seu crack, e vai pro inferno!
Soldado do tráfico, carbonizado, rotineira paisagem - Põe bolha na colher e faz presença pro seu neto.
Ao futuro da criança sem cabeça, identidade Quem sabe, o excluído invada sua fazenda
A vitrine do crime, com carro, ouro no pescoço Te dê facada, te ponha uma venda, e assim você
Atrai mais o moleque que o fogão sem almoço entenda
Não quero vassoura igual meu pai, vou ser tipo os Que, por dinheiro, o ladrão pega o galão de gasolina
manos da rua Incendeia a criança que seje, sua família
Invadir o condomínio: Não tem livro na favela, biblioteca

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Sem centro cultural, só estilete na cara da cela O barraco na margem do rio, aonde boia um rato
Quantos mais transformados em carniça, no mato morto
Decapitado, pulso algemado, torturado Pro meu povo não tem arquiteto, juiz ou empresário
Por um real, um papel, uma grama É só o tio que vende bala e passa embaixo da
Sempre por migalha, meu povo desfigurado na catraca
ambulância Ou o traficante, descarregando seu rifle FAO
Condenados ao segundo grau, no máximo Ou a puta, no motel, fazendo sexo oral.
A faxineira grita “assalto!” pro empresário. Ou projeta uma escola, a cada 4 presídios,
Quatro da manhã, esmagado no busu até o Centro - Deu 180 mil presos! Resultado atingido.
Pra, no final do mês, não ter um grão de alimento. Só prevejo o boy chorando, cena de terror.
Ninguém queria tá matando o gerente no banco A luz do fim do túnel, pow, pow, apagou.
Nem no flat, proporcionando pânico.
É que uma hora cansa o cheiro de esgoto Refrão (2x)

xiii. Apologia ao crime (L14)

Não queria te ver na maca, cuspindo sangue, quase Nunca ninguém voltou com um malote do carro
morto, forte.
No hospital com uma par de tiro, tomando soro. Sempre o mesmo fim: mãe chorando no caixão
Nem catando pioneer do Escorte, O mano planejando rebelião na detenção.
Nem enrolando a língua, morrendo de overdose. Mordida de cachorro, esculacho do GOE
Esquece a doze, o cachimbo, a rica cheia de joia. Só quem tá lá dentro sabe o preço de matar o boy.
Já vi, por um real, bisturi de legista em muito noia. Sei que é muito pouco sonhar apenas com comida.
Não seja só mais um número de estatística, Quem não quer ter uma casa com piscina?
Um corpo no bar, vítima de outra chacina. Um cargo bom ao invés de comer lixo?
É embaçado saber que a propaganda na TV Um carro importado último modelo esportivo?
De carro, casa própria, não foi feita pra você. Só que o conforto não vem através do revólver,
Saber que pra ter arroz, feijão, frango no forno Do sangue da refém milionária, temendo a morte.
Tem que pegar um oitão e desfigurar um corpo. O gambé não quer saber seu motivo,
Entendo o motivo, sou fruto da favela. Quer sua cabeça na parede, igual um porco abatido.
Sei bem qual a dor de não ter nada na panela, Não interessa se é pro remédio da sua mãe,
De dividir um cômodo de dois metros em cinco, Pra fumar crack ou beber champagné:
Um quarto sem luz, água, sem sorriso. Se invadir o condomínio gritando “assalto!”,
Só que, truta, o crime é dor na delegacia, Caiu na armadilha, até no teto vai ter seus pedaços.
Choque, solidão, agonia.
Te dão uma ponto quarenta, com silenciador e mira Refrão(2x)
Pra você estraçalhar com o caixa da padaria,
Da mercearia, drogaria, Querem você virando a cadeia, matando estuprador,
Pra que um dia sua família reze sua missa de sétimo Exigindo o governador, o juiz corregedor.
dia. Querem você, num Opala, metralhando um bar,
O boy de rolex, cherokee vidro fumê, Chacina de número trezentos pro SPTV noticiar.
É armadilha do sistema pra matar você Por isso, não tem um de nós no Congresso, na
Câmara
Refrão (2x) Aqui é só ladrão em estado vegetativo, na cama.
Não caia na armadilha, siga a minha apologia: Ou na cadeira de roda, tiro na espinha,
Mesmo de barriga vazia, esquece a joia da rica! Por um par de tênis, um risco de cocaína.
Não caia na armadilha, siga a minha apologia: Nossa vida vale menos que um real.
Sua missa de sétimo dia tá de importado na Aqui, pobre só presta pra doar orgão no hospital.
avenida. Por isso, vai pro colégio, tentar ser o arquiteto.
Não faça os porcos aplaudirem mais um noia
Corrente de ouro, carro do ano, tudo ilusório. analfabeto.
Farinha, bicarbonato, velório. Que bate na coroa pra fumar um rádio,
Traficante, vi vários, com uma pá de funcionários Da bonde em traficante, amanhece esquartejado.
De BMW, dando dinheiro pra delegado, Pega sua três-oito-zero e faz a planta do banco,
Comemorando o ano novo, descarregando a traca Atira no segurança, chuta o refém que tá chorando,
pra alto Cata o malote, esvazia o cofre,
Terminando sem um centavo, na doze do soldado. Descarrega na cabeça do gerente sua nove.
De fuzil, granada, nove, Ou põe a roupa de carteiro, pra enganar o porteiro,

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Enquadrar o prédio inteiro e roubar joia, dinheiro, O sistema tem que chorar, mas não com você
Pras seis horas eu te ver no cidade alerta, matando na rua.
Algemado, com hematoma, tipo cachorro numa O sistema tem que chorar vendo a sua formatura
cela. Refrão (2x)

xiv. Justiça com as próprias mãos (L15)

De joelhos, aos meus pés, tá inofensivo, Eu não sou louco, se pá, é muito pouco!
Nem parece o monstro do horário político, Tinha é que com uma .40 arrancar seu olho,
Que com a dor do indefeso compra a mercedes, Pra você sentir o que o meu truta sentiu,
Coloca obra de arte valiosa na parede. Quando sua guerra mandou seu rosto pra puta que o
Eu tô aqui defendendo o interesse da favela pariu.
Que quer teu sangue pra preencher o vazio - Não se preocupa! A tortura é so um método
da panela. usado,
Vim fazer vingança, buscar indenização Pra investigar, reprimir, no sistema carcerário.
Pro seu crime hediondo, justiça com as próprias O choque no saco que te faz tremer
mãos. Faz parte do currículo de quem não tem o que
- Tá aberta a seção. Começa o julgamento. comer.
- Tenho provas contundentes pro seu sepultamento. Também algema sem flagrante, cuspe na cara,
Oitão na cabeça: Civil pisando no pescoço, querendo granada.
- Fica quieta, vadia! Você treinou sua polícia pra ser minha inimiga,
Transformou o muleque do pipa num sanguinário Pra servir e proteger só a cadela rica.
homicida. Acabou a curtição na noite de Paris,
Pôs a menina de dez anos fazendo ponto, Sua torre Eiffel agora é coronhada no nariz,
Sem estudo, anal, oral, por quinze conto. Financiou suas férias, diversão no carnaval,
Na porta da escola, deu crack pro estudante. Com aposentado doente, sem leito no hospital.
A boca dele jorrou sangue na dívida com o Fez quem sonha com arroz pagar etilista
traficante. pro seu terno.
- Cadê a verba do menor infrator queimando na tv, Só vejo uma condenação: a morte, no seu processo.
Suficiente pra Harvard, pra FGV?
Invés de faculdade pro meu filho, Refrão (2x)
Abre seu crânio com uma M-16 trinta tiros.
Faz uma pá de futuro promissor feliz O prego do condomínio tem que entender
Tá no banco dos réus, ouvindo a sentença do juiz. Que, se tem pânico em Alphaville, é porque você
- Quantas facadas merece um porco deu a PT.
Que faz o macarrão do lixo ser meu almoço? Que o mano armado de doze é só um fantoche
Programado pra matar pelo dono do porche.
Que também tem um jato que vai pra gali noite e
dia
Refrão (2x) Pra abastecer de farinha toda periferia.
Pelo sangue da guerra civil, O boy acha que quem merece a morte é o que grita
Pela criança dormindo no frio, “assalto!”,
Pow, pow,pow,pow O que grita “dá a chave! Sai do carro!”,
- Vai pra puta que o pariu! Não o branco articulado e bem vestido
Pelo noia morto do rio, Que não saca o cano, mas roubam até nos Estados
Invés de escola me deu um fuzil. Unidos,
Pow, pow,pow,pow Cuzão na TV diz que urna não é pinico,
- Vai pra puta que o pariu! Que voto consciente muda o cenário político,
Que é preciso investigar, antes de votar.
Agora chora igual nenêm sem mamadeira, Mas cadê biblioteca, escola pra eu me informar?
faminto, Quem põe o almoço embaixo da blusa do mercado,
A cada soco na cara: Não tem pra ler jornal nem cinquenta centavos.
- Por favor, me deixa vivo! Só tem o palanque e o horário gratuito
Vou dar choque, com a frieza do investigador. Pra adivinhar que sigla tem menos ladrão no
Arrancar sua unha, igual no DP, doutor! partido.
Vamu ver se corre sangue azul na veia do rico, Réu, você banhou de lágrimas seu mandato.
Quebrar seu dente, tipo choque no presídio. Me deu o crack e uma doze, cano cerrado.

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Como pena, vou explodir sua cabeça com ela, - Aí, pra político porco, o veredicto é esse aqui,
Autor intelectual do massacre na favela. mano: pow, pow!
Seu corpo vai ser exposto em praça pública, Refrão (2x)
E servirá de exemplo pra engravatados filhos da
puta.

xv. A paz tá morta (L16)

Ontem, à noite, ouvi os tiros,


Sirene de polícia
Amanhece a rotina,
Me traz outra carnificina.
Em lágrima de mãe,
Filho ensangüentado.
Um bar em cada esquina,
Sempre caixão lacrado.
Não vejo mais crianças felizes brincando no parque
Agora estão com ódio no peito, com uma doze ou
fumando crack.
Invadindo as mansões,
Proporcionando o terror.
A luz no fim do túnel
Infelizmente, aqui se apagou.

Refrão (2x)
A paz tá morta,
Desfigurada no IML
Sangue no chão,
Revólver na mão,
A marcha fúnebre aqui prossegue

O moleque de dez anos segura o seu fuzil


Futuro soldado metralhado, no chão da injusta
guerra civil
Embaixo do viaduto,
Numa caixa de papelão,
Uma família dorme no frio,
Comeu resto achado no chão.
Aqui não existe formatura,
Só vejo pulso algemado
Corpo decapitado no mato,
Futuro desperdiçado.
Carbonizaram nossa paz,
Mataram a esperança,
Só deixam, como herança,
Uma glock pra criança.

Refrão (2x)

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