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·_-PIONEIRA - MANUAIS DE.

ESTUDO ) 7tOnO
ALFREDO LEME
f COELHODE CARJf4LHO
FOCO
NARRATIVO 'lJ

A FLUXO DA
CONSCIENCIA
Questões de Teoria Literária

198501 2890
82.0 CAR Ifoe

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LIVRARIA PIONEIRA EDITORA
São Paulo
Capa:
Jairo Pod"ído

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sem a permissão por escrito da Editora.

Aos irifratores se aplicam as sanções previstas nos

artigos 122 e 130 da Lei n? 5988. de 14 de dezembro de 1973.

A meus filhos,
Mário,
Vzlma
e
Vânia

1981

Todos os direitos reservados por


ENIO MATHEUS GUAZZELLI & elA. LIDA.
02515 Praça Dirceu de Lima, 313
Telefone: 266-0926 - São Paulo

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
,
Indice

o Foco Narrativo ............................... . . . . . . . . . . . . .. 1

Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 1

Quatro Sistemas Básicos ............................. . . . .. 3

Sistemas e Notás Complementares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 21

Sugestões para uma Nomenclatura mais Precisa . . . . . . . . . . . . . .. 40

o Fluxo da Consciência como Método Ficcional. ................... 51

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...
A Guisa de Apresentação

Nas apresentações de Autores ou obras, é comum encontrarem-se


desde pequenas referências até longos ensaios, esclarecedores ou não, justi­
ficados ou não ...
Para este singular trabalho de Alfredo Leme Coelho de Carvalho, a
Pioneira deu preferência à publicação de carta do eminente crítico acadê­
mico Osmar Pimentel. E não só pela originalidade e alto valor de suas
observações mas, também, para dar ao leitor conhecimento de uma fase do
processo decisório que se desenvolve nos bastidores de uma editora.
Solicitado a opinar sobre a obra, OSMAR PIMENTEL nos escreveu:

•'Pede-me você opinião objetiva sobre o ensaio Foco Narrativo e Fluxo


da Consciência de AlFREDO LEME COELHO DE CARVALHO.
Li-o com cuidado e isenção. Posso afirmar que se trata de um trabalho
de excelente nível, acima dos que se publicam no gênero.
O próprio título parece revelar a originalidade do tema. Situar foco
narrativo e fluxo da consciência em texto de ficção é tarefa, digamos,
ousada, mas gratificante.
Todos sabemos das dificuldades que cercam a noção de fluxo da cons­
ciência, se situada no contexto da criação literária de língua inglesa. Mas é
de justiça reconhecer que o autor soube manipular o conceito com pro­
priedade. ' ,
L
Enio M. Guauelli

Editor

Nota Preliminar

Este trabalho é a reedição modificada e ampliada de um artigo que


publicamos na revista Mimesis, do Instituto de Biociências, Letras e Ciên­
cias Exatas de São José do Rio Preto (Universidade Estadual Paulista' 'Júlio
de Mesquita Filho"), em 1978.
O plano foi alterado, a fim de tornar mais clara a exposição, e a parte
final foi expandida, com exemplificação. Agradecemos' aos colegas que
tiveram a amabilidade de ler o artigo, dando-nos sugestões, em particular
aos professores Dr. Guillermo de la Cruz Coronado e Dr. Antônio Manoel
dos Santos Silva.
É desnecessário frisar o interesse do assunto, de escassa bibliografia em
português. 1 •

Este livro se destina a estudantes universitários e outros estudiosos de


literatura. Houve, assim, uma preocupação didática na sua apresentação.
Partimos do mais claro para o mais complexo, ou mais sutil, ou mais pecu­
liar, sem nos atermos à rigidez do critério histórico.

Afora obras de caráter mais geral, que abordam a questão dentro dos limites ade.
quados à sua natureza, hã, que saibamos, apenas dois trabalhos específicos em português:
.'O Ponto de Vista Narrativo: um Ensaio de Classificação", de Lauro Junkes, publicado na
revista Construtura (Curitiba, Universidade Católica do Paraná, n? 13, 1977), e a primeira
parte da dissertação de memado de Ismael Angelo Cintra: "O Foco Narrativo na Ficção:
uma Leitura de Nove, Novena de Osman Lios" (Universidade de São Paulo, 1978).
XIV Foco Narrativo e Fluxo da Consciência

Procuramos propiciar ao estudante um termo médio de informação,


entre as poucas páginas de obras mais gerais e a intrincada selva da biblio­
grafia esp<:cializada, dispersa em vários idiomas e multas vezes difícil de ser
reunida e compulsada. .
A originalidade que pretendemos está na maneira de apresentação e
crítica, e na busca de aperfeiçoamento do quadro classificatório, em que
procuramos estabelecer ,uma nomenclatura mais precisa.
Julgamos útil acrescentar um capítulo sobre o "fluxo da consciência" ,
assunto muito ligado ao foco narrativo, junto ao qual, ao nosso ver, deve
ser estudado. 2
Agradecemos ainda a leitura que fez dos originais o Prof. Massaud
Moisés, cuja valiosa opinião crítica nos serviu de estímulo para que tentás­
semos esta publicação.
o Foco Narrativo
Esperando que o presente livro possa ser útil, desejamos tornar clara a
nossa receptividade às sugestões construtivas que ele vier a merecer.

São José do Rio Preto, abril de 1980.


Introdução
Alfredo Leme Coelho de Carvalho
o fato de que a noção de "ponto de vista", ou "foco narrativo"
Departamento de Letras Modernas
tenha tido "a sua origem, ou antes a sua consagração nos prefácios de
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (UNESP)
Henry James", como diz F.V. Rossum-Guyon 1 , não nos deve levar a come­
Rua Cristóvão Colombo, 2265 - Jardim Nazaré
çar por ele a discussão do problema. Não seria prático fazê-lo porque Henry
São José do Rio Preto, SP.
James, ao escrever os prefácios para uma reedição de seus romances, não
teve, e obviamente não deveria ter, nenhuma preocupação de exposição sis­
temática.
Pareceu-nos melhor nos determos, inicialmente, em teorias mais
amplas e menos específicas, partindo daquelas que nos pareceram mais
simples ou mais claras.
Dentro desse critério. faremos antes uma apresentação crítica e. con­
trastiva das classificações de Brooks e Warren, Friedman, Pouillon e
Komroff. Esta análise deverá tornar claros os aspectos fundamentais do pro­
blema, constituindo a primeira parte do nosso trabalho.
Passaremos depois, na segunda parte, à análise das teorias que,
dentro deste estudo, e apenas por razões de método. chamaremos de
"complementares". de Lubbock, Henry James, Kayser, Stanzel, Booth,
Tomachevski e Uspenski.
Esta divisão da matéria em duas partes tem, a nosso ver, duas vanta·
gens: de um lado, permite uma apresentação inicial clara do assunto, e, de

2 Em que pese ao fato de R. Scholes e R. Kellogg'o terem situado na análise da carac­ I Françoise Van Rossum-Guyon, "Poim de vue ou perspective narratÍve: Théories et
terização. V. The Nature o/Narratiue, Londres, Oxford University Press, 1976, p. concepts critiques", Poétique, Paris, Editions du Seuil, 1970, vol. 4, p. 476.
2 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência ' o Foco Narrativo 3
outro, evita o que poderia parecer uma superposição tumultuária de teo­ guês como' 'foco narrativo", parece-nos excelente, pois, além de sugerir" o
ponto. de partida da visão, indica a inevitável marca que deixa ° narrador
rias, em que o leitor facilmente se sentiria desnorteado.
Antes disso, porém, vejamos o sentido e uso das expressões "ponto de
I no material da sua narrativa.

vi:>ta" e "foco narrativó" ,


Das duas, a mais antiga e, sem dúvida, a mais usada internacional­
!,
Brooks e Warren, entretanto. parecem ter pensado mais em "foco"

como' 'centro", pois simetricamente falam, também, em "foco de interes­


mente é "ponto de vista", que provém da linguagem relativa à arte da ~
se" e "foco de caracterização".6
pintura. O~~~rio de Cal<!.~~ assim define o s~~tido:,~ O estudo do foco narrativo - ou ponto de vista - ganhou destaque
(pomo) que o pintor escolhe para pôr os o~pe~tiva; lugar alto, com a publicação do livro The Graft o/Fietion, de Percy Lubbock, em 1921.
donaé~se'aescobre ü~largé;nôriZonrerrfig.)mõdo de ver ~~QCkCU'm Lubbock centralizou a sua atenção no problema do ponto de vista, e, ao dar
,_.",.~,_~", .. ,,"--,~-,_,","" .~, ~"""'~"'''"'''''''"--:::;:~'rf'''"''-----''''~'---''''''''''''''---'~'''''-"''''''''--''--''~,_...-"- "'-~- ""'''''"_~'M'_
assunto ou uma questao .2 ao seu livro o título que tem, pareceu identificar esse aspecto narrativo com
-,::,;;(}-Grãnaé~:ÕíCIõÍlá.ri9__W~12~ler, na sua edição mais recente, indica, a própria arte da ficção.
para a ~p~SsãO' r~gle;~ correspond-;;~Í:-e-=-poi;;t~o7!i~;';=-'os-sêi:ltlçIo~de Surgiu posteriormente a reação de E.M. Forster, que, no livro igual­
~~~~ã(; p-a~~~~~? ~~p,a.~~~~!!!P~_~~~~~iiY9~\Y!!ll~!l~~f4~,g?!1 s:_av~- mente famoso Aspects o/ the Novel, deu a impressão de apequenar a
lta ou aeOnde se considera alguma coisa , maneHa paruculár de se COnsl­ importância do problema, tão agudamente tratado por Lubbock. Para ele,
""I~'---'-'-'-'-'-'---T----'-'--~'- . .-.-- -,.-.- -"""~'--"'---'-"---'--'''---'~
aerar ou avaliar algo' , "atitude rriê"'ótal baseada na razão, ou opinião, a o importante é que o escritor nos leve a aceitar o que diz, e não a obediên­
r~spei to--dê~!ii.iffiacõlsã";) ---"-"',----"'.,,-,..-,, - '... ,.. . . . . ,..-' .,....'-", .-"

cia a fórmulas narrativas, às quais são mais sensíveis os críticos que os leito­
·-~'t:Bici~ ~omp'iee~~er a transposição ~ess:s sentidos gerais ara u~ res. 7
~ :~eC1f1Co na crttlca da ficção. AssIm e que eant Broo/{ ~ Na verdade, porém, Forster não nega a importância do ponto de vis­
arren ~. ~eferem ao termo, dizendo que" §. usado d, manelta menos gre­ ta. O que ele enfatiza é que o autor não se deve recusar a admitir a multi,
cisa para indicar as atitudes e idéias básicas do autor" , e, mais estritamen­ plicidade e variação de pontos de vista numa mesma obra, e que isto pode
~ referênci~ "ao narrador da histÓria - à mente através da gual é contribuir para aumentar o seu valor. Chega mesmo a salientar a importân­
aEesentado o material da bi~tQria·'. 4 • cia do ponto de vista - múltiplo e variado - naobra de Dickens e Tolstói.
Esses mesmos autores, entretanto, vieram a utilizar um novo termo, Isto posto, passemos a analisar os quatro sistemas que, para facilitar a
oriundo da Física, para expressar a mesma idéia: foco. Foco é o "ponto para exposição da matéria, consideramos como básicos.
onde convergem, ou de onde divergem, os eixos de ondas sonoras ou lumi­
nosas que se refletem ou refratam".' Tanto no caso da refração como no da
reflexão as ondas se modificam. Mais no primeiro caso, menos no segundo.
Assim, o termo "focus of narration", que tem sido traduzido em portu­ Quatro Sistemas Básicos
A Classificação de 8rooks e Warren
Diccionario Contemporaneo da Língua Portuguesa, 2~ ed., Lisboa, Parceria Anto­
1
nio Maria Pereira, 1925, vol. II, p. 1165. Essa definição é perfilhada, com pequenas altera­ Esta é, na verdade, uma das classificações mais simples e claras. Em
ções, por Laudelino Freire (Grande e Novfssimo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de primeiro lugar, temos o personagem principal que conta a Jua própria his­
Janeiro, A Noite - Editora. s/ data, voi. IV, p. 4050) e por Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira (Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira
tória. Brooks e Warren preferem essa denominação. Poderíamos também
S.A., s/data, p. 1123).
l Webster's Third New International Dictionary 01 the English Language, Chicago, 6 Foco de inleresse é o ponto de maior relevo na história, que pode estar centralizado
Encydopaedia Britannica, Inc., 1971, vol. II, p. 1750. no lugar, no tempo, ou nos personagens;foco de caracterização é o grau maíor de ímportâ.n­
4 Understanding Fiction, 2~ ed., Nova York, Appleton Century Crofts. Inc., 1959, (ia' de um personagem, ou de um grupo de personagens, na história. V. Brooks e Warren,
p. 687. A primeira edição é de 1943. op. cit., pp. 657-59.
~ Grande EncicloPédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa. Editorial Enciclopédia Ltda" 7 Aspects 01lhe Nove/, Harmondsworth, Penguin Books, 1966, pp, 86-7, Publicado
s/data, vol. XI, p. 507, originalmente em 1927.
4 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo ~
chamá.. lo de '~~'. Para dar um exemplo nosso desse Como se vê, ~ duaurimeira,§ categorias cgrresE,9ndem ~ qarrat!yJl.S
tipo de foco narrativo, citemos as primeiras linhas de um romance de .~mlPr.l!nel!!l~.~:: ~ outras du_~s correspon5!:~ão a na~ce~:a.J
Camilo Castelo Branco:
~
Na categoria seguinte temos o autor-observador. O autor-observador
"O meu noviciado de amor passei-o em Lisboa. Amei as primeiras apenas apresenta os fatos externos e ~~ eventuais diálogos. Não penetra na
sete mulheres que vi, e que me viram". 8 mente dos personagens para nos põr a par de seus pensamentos e sentimen­
tos. Esse método é adotado em uma famosa história de Ernest Hemingway
Essa é, evidentemente, uma narrativa em primeira pessoa, e vê-se The Killers. Há uma rápida descrição cênica inicial, e começa o diálogo:
que, a continuar como começou, caracteriza bem a primeira categoria de
Brooks e Warren. Outro tanto se pode dizer das Memórias Póstumas de "A porta do restaurante de Henry abriu-se e dois homens entraram.
Brás Cubas, de Machado de Assis, cujo princípio é o seguinte: Sentaram-se ao balcão.
Que desejam? - perguntou George.
"Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou - Não sei - disse um dos homens" .
pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
minha morte" '! Após esse início inocente, vamos percebendo, pelo diálogo ponti­
lhado de humor e de uma dosada violência verbal - que se trata de dois
A segunda categoria é a do l!..ersonage.!!!:.:.!?J!!!.-,y~r, que partzÚpa assassinos à espera de alguém. Percebemos isso, também, pela descrição fí­
mais ou menos da ação. Se quisermos ter um exemplo de personagem sica dos mesmos. Um dos garçons consegue avisar a vítima, que, entretan­
observador que quase não participa da ação, poderemos encontrá-lo no to, não procura salvar-se. 12
conto A Carta Furtada, de Edgar Allan Poe, que começa desta maneira: Um conto brasileiro em que encontramos o ponto de vista do autor­
observador é, por exemplo, A Noiva do Diabo, de Dalton Trevisan. 13 Esse
"Em Paris, logo após o cair de uma noite borrascosa de 18 ... , estava conto é apresentado todo sob a forma de diálogo, através do qual tomamos
eu gozando o prazer duplo da meditação e de um cachimbo de conhecimento dos fatos materiais que estão ocorrendo.
espuma-do-mar em companhia de meu amigo C. Auguste Dupin, na Também Henry James emprega o método do autor-observador em
sua pequena biblioteca ou gabinete ... " .10 seu romance The Awkward Age, como explica Percy Lubbock: "um
romance em que Henry James seguiu um único método do princípio ao
Depois desse princípio, vemos que o narrador não faz praticamente fim, negando a si mesmo o auxílio de qualquer outro. Decidiu tratar essa
nada, limitando-se a contar a sagaz maneira de agir de seu amigo detedve. história como um puro drama ... Em The Awkward Age tudo é imediato e
Fato semelhante podemos observar no conto "Manuscrito de um particular; não há visão do pensamento de ninguém, nenhum conspecto da
Sacristão", de Machado de Assis, em que o narrador nos apresenta fatos cena de um ponto elevado, nenhum sumário retrospectivo do passado" .14
ocorridos com os personagens Padre Teófilo e Eulália, nos quais ele teve O quarto ponto de vista da classificação de Brooks e Warren é o do
presença meramente circunstancial. 11 c;.utor oniscien.1§ ou an~ Neste caso o autor penetra na mente dos per­
sonagens, e nos desvenda os seus pensamentos e sentimentos.
8 Coração, Cabeça e Estômago, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S.A.,
1961, p. 9.
12 A história está reproduzida em várias antologias, inclusive no citado livro de Brooks
9 Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Rio de Janeiro, Civilização e Warren (pp. 296-303). Aliás, incidentalmente, devemos dizer que discordamos da inter­
Brasileira, 1977, p. 99. pretação desses autores quanto ao tema, o que, entretanto, no momento, não vem ao caso.
10 Utilizamo-nos da tradução de Aurélio Buarque de Holanda e Paulo R6nai, U Dalton Trevisan, A Guerra Conjugal, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 4~ ed.,
cada em Mar de Histórias, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1951, p. 222. 1975, pp. 81-4.
Machado de Assis. Histórias.rem Data, Rio de Janeiro, Civilização BrasIleira, 1977, 14 Percy Lubbock. The Craft of Fiction, Nova York, The Viking Press, 1964, pp.
pp. 177-84. 189-90.
6, Foco Narrativo e F/uxo da Consciência . O Foco Narrativo 7
Aqui é preciso fazer uma distinção que não encontramos na volumosa Apenas mencionam dois contos analisados em seu livro, nos quais "o autor
e um tanto difusa obra, já mencionada, desses dois autores. É 'que, ante os .~imhl~-ª~e" ~o eeE~nagern.J2rin.ciRal-=
pensamentos e sentimentos dos personagens, e até mesmo ante os fatos acrescentando que "etp tais ca~..Q.focº"naf{ativo s~_m!!.,o fQfQ.JkçªrJ,!c­
externos, ~~ssumir duas atit~t@apenas relatar os ~cizaçã0>c~nde a PI9.d\,g,ir..JUJl~i.tQ..!!ºifiS:E-.99" .19
pensamentos. sentimentos e fatos;@não só relatá-los, como t~ém fazer Ora, a narrativa de onisciência limitada à mente de um só persona­
comentários sobre eles. No primeiro caso .oo.deríamos falar erlRfnÚciênci,g gem é muito importante. Apresentada cenicamente, 20 constitui o famoso
-
neutra ou obj§tiv.B, e, no segundo caso, eM?ónisciência crítica QU inu'.r/2J'e­
-- -­ método usado por Henry James em The Ambassadors. Método, aliás,

--
..
tativa. inventado por ele, segundo afirma William York Tindall, e utilizado com
O exemplo mais famoso de onisciência neutra ou objetiva é o romance excepcional maestria por James Joyce, no romance A Portrait 01 the Artist
Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Para Flaubert, o escritor não deve as a Young Man. .
"trazer à cena a sua própria personalidade" .1' Tindall chama a este métod<iG:~~o-objeti~ com muita pro­
A onisciência crítica, ou interpretativa, é encontradiça nos escritores priedade, pois nele emos a a resent~S~~!2~f!,~.~ªLÍ[lteQerênáa
românticos. Hajam vista estes exemplos de Camilo Castelo Branco e <12..íll!!2.!) ~ 'Sub 'r:!!!::,., .... o persona~rinciQªJ. Também o denomi­
Alexandre Herculano: na "impressionista", o que é igualmente justificável, pois nele se apresen­
tam as impressões do personagem principal, as quais nem sempre corres­
"Em 1828, morrera o Morgado, e sucedera Miguel no vínculo, onera­
pondem exatamente à objetividade dos fatos exteriores. 21
do de grandes dívidas. Muita gente espantou-se do favor que a Provi­
Não se pense, porém, que nesse caso o autor fique totalmente omisso.
dência dá aos maus: gente vã dos seus juízos que quer com os olhos do
Ele tem, naturalmente, de fixar a situação em que se encontra o persona­
rosto abranger o infinito dos juízos divinos" . 16
gem. Observe-se o seguinte trecho de James Joyce, que exemplifica o
"A morte, esta idéia tremenda, indiferente ou formosa, segundo a
método:
vida é risonha, pálida ou negra, veio suavizar o martírio daquela alma

atribulada, como em estio ardente as grossas águas da trovoada refri­


"Durante essas paradas Stephen ficou desajeitadamente atrás dos
geram a terra, que estua sob os raios aprumados do sol"
. 17 dois homens, cansado do assunto e esperando, agitado, que a vagaro­
sa marcha começasse de novo. Ao tempo em que eles tinham cruzado
Brooks e Warren observam ainda que o autor onisciente pode ter a sua o quarteirão, a sua inquietude se tinha transformado em febre. Ele
onisciência limitada à mente de um só personagem - o principal - sendo não entendia como seu pai, que sabia ser um homem astuto e descon­
as "outras pessoas apresentadas objetivamente, isto é, como se o fossem fiado, podia ser enganado pelas maneiras servis do carregador; e o
pelo método do autor-observador", acrescentando que essa é a situação vivo linguajar sulista, que o tinha divertido toda a manhã, agora irri­
usual nas narrativas curtas, em que não há tempo para a apresentação dos tava os seus ouvidos" . 22
processos mentais de vários personagens. 18
Brooks e Warren não dão, porém, o destaque merecido a esse tipo de Btooks e Warren contestam a afir~ativa de que o uso da primeira pes­
narrativa, em que a onisciência se limita à mente de um só personagem. ,. soa, por ter as aparências de um testemunho de primeira mão, dê maior

1\ ApudMiriam Allott, Nove/iIls on the Nove/, Londres, Routledge and Kegan Paul, 19 Op. cit" pp. 659-60.
1959, p. 271. 20 Ao tratarmos, a seguir, da classificação de Friedman, nos referiremos à conceitua­
Camilo Castelo Branco, O Romance de um Homem Rico, Rio de Janeiro, Compa­
16 ção precisa de "cena".
nhiaJosé Aguilar Editora, 1975, p. 104.
21 William York Tindall, A Reader's Guide toJarnesJoyce, Nova York, The Noonday
Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero. Lisboa, Livraria Bertrand, 40~ ed.,
11 Press, 1967, p. 63,
s/data, pp. 259-60.
22 James Joyce, A Portrait o/ the ArtiIt as a Young Man, Harmondsworth, Penguin
18 op. cit., pp. 659-50, Books, 1974, p. 69,
8 Foco Namltivo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 9
credibilidade à história. O leitor sabe, dizem eles, que esse método., como informação usa o narrador para levar a história ao seu leitor? 4) A que
os outros, representa apenas uma convençãó. Zl tância coloca ele o leitor, em relação ã história?
Ao afirmarem isso, entretanto, parecem não ter levado em conta o {J.riedmaJilclassific.;!.os métodos de "transmissão do material da histó­
fato de que uma coisa é a apreciação racional dos métodos, e outra o impac­ ®
ria" da seguinte maneira: onisciência interpretativa; ®
onisciência neu­
to momentâneo por eles produzido no leitor, mesmo no leitor de espírito tra; ({j o .. eu" como testemunha; @ o "eu" como protagonista; €) onis­
crítico. Mais adiante voltaremos ao assunto, ao tratar do sistema de Manuel ciência múltipla seletiva; cDonisciência seietiva;@ o método dramático;
Komroff. ® a câmera. 27
Aliás, após longa argumentação contrária, Brooks e Warren acabam Essa classificação, como se vê é mais completa que a de Brooks e
por admitir a possibilidade desse efeito, ressalvando, entretanto, que "tal Warren. Tratemos inicialmente d~nisciência inter retati a, seguindo a
fator nunca pode ser tomado como fundamental na escolha do foco nar­ ordem estabelecida pelo autor. Aqui Frie man procura_ tornar bem clara ª­
rativo" . 24 91~tinção entre" narrativa sumáriãTl e "cena imediata" (pp. 119- 20). Pos­
teriormente, OUtros autores preferiram simplificar essas expressões, falando
apenas em "cena" e "sumário" .28
" :Narrativa suman ',~, (é a relação ou exposi­
A Classificação de Friedman ção genera lza a de uma série de acontecimentos ocorridos num período
certa extensão, em locais variados, e que parece. ser a maneira normal, não
Norman Friedman, em artigo publicado na revista PMLA em 1955 sofisticada ('untutored') de contar uma históri1;(sprge a~ imediata
LXX), tratou extensamente do problema do foco narrativo. 21 Fried­ logo que começam a aparecer detalhes específicos, contínuos e sucessivos de
man começa citando o crítico Joseph Warren Beach, para quem o maior fei­ tempo, lugar, ação, personagens e diálogo. Não é apenas o diálogo, mas o
to da técnica novelístiéá, âesd~Henry James, foi o de fazer detalhe concreto, dentro de uma mZJdUra específica de tempo e espaço que
com que "a história conte a si própria, sendo conduzida através dos perso­ é a condição sme qua non da cena" (pp. 119-20).
nagens", com o progressivo "desaparecimento do autor" (p. 108). A explicação de Friedman é e celente. Como exemplo de: "narrativa
Referindo-se a Beach e outros autores, Friedman se ocupa longamente sumária" (ou, simplesmente, "sumário") vem a calhar este trecho José
da distinção entre contar ("telling") e mostrar ("showing") na arte narra­ Lins do Rego:
tiva, apontando a tendência, cada vez mais marcante no romance do século
~

XX, para que o autor seja objetivo, e nos apresente o evolucionar do ente· "Sinhá Josefina já estava ali há mais de dois anos. Viera tangida pela
do e dos personagens de maneira não opinativa. 26 fúria dos soldados que haviam destroçado o reduto do Santo, em
Na segunda parte do artigo, Friedman sistematiza os principais
problemas relativos ao assunto, através das seguintes perguntas: 1) Quem
fala ao leitor? 2) De que posição (ou ângulo) narra? 3) Que canais de 27 No original: "editorial omniscience" (p. 119), "neutral omniscience" (p.
'''I' as witness" (p. 124), "'I' as protagonist" (p. 126), "multiple selective omniscience"
127), "selective omniscience" (p. 128), "the dramatic mode" (p. 129), "rhe camera"
23 Op. cit., p. 660. (p. 130). A tradução de "editorial omniscíence" como' 'oniscíência editorial" , que às vezes
temos ouvido, parece-nos pouco própria, uma vez que ó sentido do adjetívo "editorial",
24 Op. cit., p. 660. assim como do substantivo' 'editor", que a de corresponde, difere bastante de um idioma
2\ Esse artigo foi reproduzido na coletânea The Theory ofthe Novel, organizada por para outro, pelo menos no ,,!so comum atual. Em inglês, "editor" é o preparador de uma
Philip Stevick e publicada em Nova York pela editora The Free Press, em 1967. As páginas edição, o qual pode, como tal, fazer observações críticaS. "Onisciência editorial" nos pare·
que citaremos a seguir se referem a essa edição. ce, pois, um anglicismo totalmente dispensável, quando temos excelentes termos para
s~bstítuÍ-lo, tais como "onisciência crítica". "onisciência interpretativa", "onisciência opio
26 Essa tendência é assinalada por Ortega y Gasset, em livro publicado em 1925 (Ideas
sobre la Novela): "Es, pues, menester que veamos la vida de las figuras novelescas, y que se nativa" .
evite referirnosla. Toda referencia, relación, narraci6n, no hace sino subrayar la ausencÍa de 28 Por exemplo, Wayne C. Booth, em The Rhetorie ofFiction, Tl1e Universiry of Chi­

lo que se refiere, relata y narra. Donde las cosas están, huelga contarias" (Obras Completas, cago Press, Phoenix Books, 1967, p. 154; Leon Surmelian, Techniques ofFietion Writing:
Tomo III, 5~ ed., Madri, Revista de Occidente, 1962, p. 391). Measure and Madness, Nova York, Doubleday and Company, Inc., pp. 28-31.
10 Foco Narrativo e Fluxo da Consciênda o Foco Narrativo 11
Pedra Bonita. E ali ficara depois de longas caminhadas pelas caatingas apenas se abstém de emitir opinião, dando-nos a conhecer, porém, o que
acompanhada do filho Bentinho:' .29 vai no íntimo dos seus personagens.
Vemos assim que se mantivermos os conceitos de' 'autor-observador"
Como exemplo de "cena imediata" (ou, simplesmente, "cena") e "onisciêncía neutra", sem confundi· los, estaremos estabelecendo uma
podemos citar a passagem seguinte de Viana Moog: distinção proveitosa para a análise. Infelizmente, porém, esses termos não
são suficientemente explicativos, não se excluem mutuamente, embora
"Três horas da tarde. Um velho Ford parou em frente do casarão re­ sejam diferentes as idéias que representam. Para evitar esse inconveniente,
vestido de hera do Hotel Centenário. Desceu dele um homem ainda sugerimos o emprego das expressões onisciência neutra externa (em vez de
moço, de estatura mediana, coma roupa cor de chumbo coberta de "autor-observador") e onisciência neutra plena (em vez de "onisciência
pó e encaminhou-se para o saguão. Como não visse ninguém, bateu neutra' ').
palmas. Até aqui falamos da narrativa em terceira pessoa. Quanto à narrativa
Um rapaz alt0, tuivo, de calças curtas, meteu a cabeça assustada na em prím~ira . essoa,çEae~.~ subdivi~ em ~2~~: o ~~~2-
porta dos fundos, olhou para o recém-chegado e gaguejou: - E/nen ~e o eu testemun_h~. Isto corresponcre:-em lInhas geraIS, a dIstinção
Moment, bitte. - Em seguida desapareceu" ,;0 feita por Brooks e Warren, entre o "personagem principal que conta a sua
própria história" e o "observador que é, em maior ou menor grau, um par­
Voltando a tratar d!q~!!Ç!;! ÚItsrt5retatr~, ex lica Friedma que ticipante na ação".
o autor usa esse método quando intervém no decurso a narração, para ma­ Friedman assinala, quanto ao "eu" testemunha, que nesse caso,
nifestar o iniões suas, pertinentes ou n,ão ao assunto tratado (~ embora o leitor tenha normalmente apenas uma visão de periferia, essa si­
Comparan o-s .Q siste1Nl~~ e:Wa!!~)c2Dl o 4!..,Friedman tuação pode ser mais ou menos alterada, pela possibilidade que tem o nar­
observamos que há uma exata correspondência entre o que este chama<fe rador de entreter diálogo com vários personagens, ou de obter acesso a do­
"editorial omniscience", e que temos traduzido como "onisciência inter­ cumentos importantes, conseguindo assim enfeixar pontos de vista diferen­
e.retat~~" , ~ a tunçã;do "autor onisciente ou analítico" daqueles aut0Jes. tes, de fontes eventualmente bem informadas.
Já exemplificamos o método com um texto de Camilo Castelo Branco e No caso do "eu" protagonista, a visão do narrador não é periférica: é
outro de Machado de Assis. central. Tem, entretanto, a desvantagem de ser fixa. O narrador­
(.&k Qüa~tº à qiiJsfiên"çt~: n~~tr"D-- conceito esse a que já fizemos alusão, protagonista é um personagem que, por definição, é atuante, nãoyodendo
mencionando Flaubert e Madame Bovary - caracteriza-se ela e re­ ser, ao mesmo tempo, espectador, crítico ou coleqonador de opiniões
sentação dos fatos de maneira impessoal e objetiva, a stendo-se o autot, de alheias.
~rr.!jtu9liãIgy~ Isto na st _que o autor se manifeste, Corpo A seguir, Friedman fala em dois outros tipos de foco narrativo: a
o~.Friedman, através e personagens que se percebe serem oueus "onisciência seletiva múltipla" e a "onisciência seletiva", nessa ordem.
P2!~ o caso, por exemplo, dos personagens Philip Quarles e Mark Há no uso desses rótulos uma falha de expressão evidente. A colocação lógi­
Rampion, no romance Point Counter Point (Contraponto), de Aldous ca de tais denominações seria a seguinte: "onisciência se1etiva", engloban­
H~ley. Esse tipo de manifestação não afeta o método da onisciência do a "onisdência seletiva simples", ou "individual", e a "onisdênda sele­
neutra. { tiva múltipla".
O c=to de "utor-observado ',de Brooks e Warre~ Para Friedman, há na onisciência se/etiva (simples ou múltipla) a
da '~ ia ô;ut:cl" e Fnedman n~tificamfô, porém, com "eliminação não somente dó autor. que desaparecera na moldura do 'eu'
ela. A diferença está em que~;~~b;e!y~, de Brooks e Warren, como testemunha, mas também de todo e qualquer narrador". "Neste
~ nLmente _~ersonag~lir~Ütando-~!eselU~~c\a caso", diz ele, "o leitor não ouve a ninguém; a história vem diretamente
ação externa, ao passo que na "onisciência neutra", de 'FiTedman, o autor através das mentes dos personagens, ao deixar ali a sua marca".J!
~, _ _,".___ ~"_,, O'·<_"_<"""'___ '_'~-' __ "''''_N~'''''''''_''''-~''''~''''~'_'''_'''.''''''''''""'~~'".''''''''~~"''"''''''' __''''''"'"''''''''''''''''~

29 CangaceiroJ, Río de Janeiro, LivrariaJosé Olympio Editora, 1953, p. 7. ;1 P. 127. Preferimos neste caso dar o original da citação, por nos parecerem estranhas
;0 Um Rio Imita o Reno, Porto Alegre. Editora Globo, 7~ ed., 1957, p. 13. duas expressões: "Here the reader ostensibly listens to no one; the story comes directly
12 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 1,3
Para a onisciência seletiva múltipla, Friedman cita um exemplo toma­ pois na verdade o leitor ouve a alguém, que implicitamente lhe diz: o que
do da obra de Virginia Woolf To the Lighthouse: estou afirmando não é o que vejo, mas o que o personagem sente. É esse
alguém que diz que o personagem "suspirou" alguma coisa, ou "pensou"
"Eles precisam encontrar uma saída. Poderia haver alguma maneira
algo,
mais simples, algum modo menos laborioso, suspirou ela. Quando
Friedman fala ainda na possibilidade da Ytresen~ação ..Ilt.t!m.4tica ciQ
ela olhou no espelho e viu os seus cabelos grisalhos, as suas faces enco­
vadas, aos cinqüenta anos, pensou, talvez pudesse ter levado melhor ~e. Este p'Q@:~d~~~I!y()ly~~~.~a:!I.l!y~s.i~(iliruõi~, ~.g.':.~_ ..~}nt~!fç­
rência d()j,!!tQlseja~, restrita a indicações que equivalham à marca­
as coisas seu marido; o dinheiro; seu livro" (p. 127).
çãõ(í\tage directions' '). É patente a semelhança deste último método com
o do autor-observador, da classificação de Brooks e Warren, como jã nota·
Ao fazê-lo, sublinha algumas palavras, para mostrar que os fatos são
mos, exemplificando com o romance de Henry James The Awkward Age.
apresentados não como o autor os vê, mas como o personagem os sente,
Há, finalmente, no artigo de Friedman, uma referência à visão abso­
numa seqüência cênica. Nisto estã a diferença entre este método e o da
lutamente passiva e não interferente da câmera cinematogrãfica, em que
. oniscíência neutra plena: temos a sucessão imediata dos pensamentos e sen­
ficaria totalmente eliminado o autor. Friedman faz severas restrições a esse
timentos do personagem, à medida que eles ocorrem.
método, afirmando que juntamente com a extinção do autor ocorreria
Observe-se que o termo "onisciência seletiva"é insuficiente para ca­
também a extinção da ficção como arte. 32
racterizar o método. Seria mais adequado dizer ont'sciência direta, por
O exemplo citado por Friedman aparece no início da obra Goodbye to
exemplo, ou ont'sciência imediata.
Berlin, de Christopher Isherwood, publicada em 1939:
De acordo, ainda, com a terminologia de Friedman, a ont'sciência
selett'va múltipla se distingue da ont'sciência seletiva porque no primeiro caso
"Sou uma câmera, com o obliterador aberto, registrando de maneira
são apresentados os pensamentos de diversos personagens, e no segundo
absolutamente passiva, sem pensar. Registrando o homem que se bar­
caso apenas de um personagem. Jã notamos a falha implícita nesta última
beia na janela oposta e a mulher de quimono que lava os cabelos.
denominação.
Algum dia, tudo isto deve rã ser revelado, cuidadosamente impresso,
O trecho de Virgínia Woolf citado acima é de onísciência imediata fixado" .H
múltipla (ou onisciência seletiva múltipla, segundo Friedman) porque em
To the Lighthouse é apresentada a consciência de mais de um personagem.
Diz Friedman que faz referência a esse ponto de vista mais por amor à
Como exemplo de onisciência imediata simples (ou' 'onisciência seletiva",
simetria, para mostrar o que lhe parece ser "0 máximo em exclusão do
segundo Friedman) pode servir o trecho de James Joyce em A Portrait Df
autor" . Na verdade, porém, o trecho de Isherwood representa uma parcela
the Ant'st as a Young Man que citamos algumas pãginas atrás. Nesse livro
mínima do ponto de vista por ele adotado em Goodbye to Berlin, onde
só é apresentada a consciência de um personagem: Stephen Dedalus.
Deve ser encarada com cuidado a afirmação de Friedman de que no
caso da "onisciênda seletiva" o leitor "ostensivamente não ouve a 31 "Talvez. entretanto, com a extinção final do autor, a ficção, como arte tornar-se-á
ninguém". Concordamos que ostensivamente não, mas veladamente sim, também extinta, pois essa arte, se por um lado exige um certo grau, pelo menos, de vivaci­
dade objetiva, exige também, parece-me, uma estrutura, o produto de uma inteligência
condutora que está implícito na narrativa e que dá forma ao material. .... E acrescenta:
"Argumentar que a função da Literatura é transmitir sem alterações uma fatia de vida é não
thraugh the minds of the characters as it leaves its mark there·'. & expressões que nos cau­ entender a natureza fundamental da pr6pria linguagem: o pr6prio ato de escrever é um pro­
saram estranheza foram "directly through" (em veZ de "directly fram") e "as it leaves its cesso de abstração, seleção, omissão e organização" (op. cit., p. 131).
mark there". A primeira tem uma aparência contradit6ria: "diretamente através de". A se­ H "I am a camera with irs shutter open, quite passive, recording, not thinking.
gunda é. ao nosso ver, inadequada: quanto ao foco narrativo, o importante é a marca que o Recording the man shaving at the window opposite and the woman in the kimono washing
personagem deixa na história. e não a marca que a história deixa no personagem. Seria dife­ her hair. Some day, ali this will have to be developed, carefully printed, fIXed" (Christo­
rente se estivéssemos falando da caracterização. Em relação ao ponto de vista. a marca impri­ pher Isherwood, Goodbye to Berlin. em The Ber/in Stones. Nova York, New Direcdons Pa­
mida aos acontecimentos. a possível deformação destes por uma visão defeituosa, da parte perbacks, p. 1). O trecho citado aparece na p. 130 da coletânea onde se inclui o artigo ~e
do personagem que narra, isto é que é relevante. Friedman.
14 Foco Narrativo e F/uxo da Consciência o Foco Narrativo 15
predomina a narrativa normal em primeira pessoa. Ao que sabemos, nunca As "visões" de Jean Pouil/on
ninguém adotou tal processo, de maneira sistemática, num romance.
Referindo-se ao trecho citado de Goodbye to Berlin, Friedman critica Embora a expressão "ponto de vista" ("point vue") seja de uso
o método, deixando, porém, de observar a parcimônia com que Isherwood comum em francês, ~6 mesmo como termo técnico da crítica literária,'7 Jean
o empregou, e que, mesmo ru, a exclusão do autor é apenas aparente: na Pouillon, ao tratar do assunto em obra publicada em 1946 - Temps et le
verdade é ele quem escolhe o que a câinera deve ver, e o acaso fingido das Roman -, preferiu usar, nesse sentido, a palavra lIision. 3B
cenas apresentadas não passa de um artifício literário. A visão crítica do Segundo Pouíllon, o que importa não é o fato de a narrativa ser em
autor evidentemente aprovou o que deveria ser registrado. primeira ou terceira pessoa. O que realmente vale é a proximIdade dos
Dadas as ambigüidades a que está sujeito o uso do termo câmera, pro­ acontecimentos narrados em relação a um determinado' 'eu", ou a sua dis­
pomos que este tipo de ponto de vista seja denominado registro casual. 34 persão, sob a égide do autor onisciente.
Finalmente, tendo em vista o caráter básico que pretendemos dar a Assim, os pontos de vista, ou "visões", ficam diyididos em três blocos
esta parte do nosso trabalho, cabe aqui mais uma observação. Friedman­ distintos, que ele chama de "visão com" ("vision avec"), "visão por trás"
como Brooks e Warren - não alude à possibilidade do emprego da narrati­ ("vision par derriere") e "visão de fora" ("vision par dehors").
va em segunda pessoa, raro e artificial, mas a que faz referênciá'Wayne C. Na lIisão com a narrativa fica limitada ao campo mental de um só per­
Booth, com menção do livro de Michel Butor La Modification (Paris, 1957), sonagem. A apresentação desse campo mental pode ser feita tanto na
cuja narrativa vai seguindo com frases deste teor: "Você pôs o pé primeira pessoa como na terceira pessoa.
esquerdo ... Você desliza através da estreita abertura ... Seus olhos estão Na lIisão por trás a narrativa é caracterizada pela onisciênda do autor,
apenas meio abertos ... ". Comenta Wayne Booth que, estranho como que pode penetrar na mente de vários personagens - não se concen­
possa parecer, o leitor logo se habitua com essa maneira de narrar. ll trando, porém, em nenhum - e fazer comentários.
A lIisão de fora corresponde a uma narrativa baseada na observação de
fatos externos, sem comentários e sem conhecimento da vida interior dos
personagens.
Comparando-se o sistema de Pouillon com outros já analisados,
vemos que o que ele chama de "visão de fora" tem o seu equivalente no
"método dramático" de Friedman, e no "autor-observador" de Brooks e
Warren. Enfim. é o caso de The Killers e de A Noiva do Diabo.

36 Com pouca diferença da definição que já citamos, encontrada em Caldas Aulete,


34 Não se deve confundir este método com o usado por John dos Passos na trilogia diz o Petit Larousse: "Point de vue, endroit d'ou I'on voit le mieulí un paysage, um édifice,
U.S.A., nas secções por ele denominadas "The Camera Eye". Deve-se reconhecer uma cena etc.: découvn'r un beau point de vue; au fig., maniere de considérer les çhoses pour les
aproximação entre eles, porque, como explica Joseph Warren Beach, John dos Passos, nessas juger: examiner une question du point de vue de /'honneur" (Paris, Librairie Larousse,
secções, procura "indicar um modo de ver as coisas direta ou ingenuamente, antes que o 1959, p. 1113). É curioso notar que, na antiga gramática de João Ribeiro, ponto de vista é
processo de in terpretação e eliminação tenha intervindo para dar um aspecto de ordem ao tido como "galicismo adotado pelo uso geral" (Crammatica Portugueza, Curso Superior,
13~ ed., Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1907, p. 248). Aliás, Frei Francisco de São
que é visto e encaixá-lo numa visão da vida coerente e idealista" (The Twentieth Century
Luís o arrola entre os galicismos, dando, porém, um exemplo do Padre Manuel Bernardes
Nove/: Studies in Technique, Nova York, Appleton Century Crofts, lnc., 1932, pp.
que atesta a sua antiguidade: . 'Uma imagem primorosa, para ver se tem defeito por alguma
~06-07). Nesses trechos de John dos Passos, entretanto, entra muito mais o pensamento
parte, a viramos de muitos modos, e a contemplamos a várias luzes, isto é em vários pontos
aparentemente desordenado, característico da "stream of consciousness" , do que a visão ca­ de vista" (C/ossario das Palavras e Frases da Língua Franeeza, Lisboa, Typografia da Acade­
sual de fatos exteriores. Também não se deve confundir o método da câmera a que se refere mia Real das Sciencias, 1827, p. 107).
Friedman, com a eâmera autoral de Uspenski (esta, ostensivamente dirigida), que mencio­
37 Veja-se, por exemplo, o Dictionaire EncydoPédique der Sáences du Langage, de
naremos mais adiante.
O. Ductot e T. Todorov, Paris, Éditions du Seuil. 1972, pp. 411-16,
II Wayne C. Booth, The Rhetoric of Fielton, The University of Chicago Press,
38 Jean Pouillon, O Tempo no Romance, trad. de Heloysa de Lima Dantas. São
Phoenix Books, 1967, p. 150, nota. Paulo, Editora Cultrix, 1974.
16 Foco Namltivo e Fluxo da Consciência G Fow NafTativo 17
À viiãó "por trás" corresponde ao método do', 'observador onisciente o Sistema de Manuel Komroff 7lt., ,'rJ P\l.

ou analítico" de Brooks e Warren, e à "onisciência interpretativa" ("edi­


torial omniscience") de Friedman. No Dictlonary o/ World Literary Terms, organizado por Joseph T.
Vemos que o caso mais complexo é o da "visão com". Esta inclui Shipley,41 há um excelente artigo sobre o foco narrativo, assinado por
não só os dois casos de narrativa em primeira pessoa ("narrador persona­ Manuel Komroff.
gem principal" e "narrador personagem observador", de Warren e Komroff divide os focos narrativos em dois tipos principais: o ponto
Brooks; "eu" protagonista e "eu" testemunha, de Friedman), como de vista interno e o ponto de vista externo. No ponto de vista interno, que
também o que chamamos de "onisciência direta, ou imediata, simples", e corresponde sempre a uma narrativa em primeira pessoa, o narrador toma
que Friedman denomina apenas "onisdênda seletiva" (o método parte nos acontecimentos. É um dos' 'atores" .
zado em A Portrait o/the ArtiJt as a Young Man). O pOntO de vista externo é o de alguém que não "toma parte na his­
A classificação das' 'visões" de Jean Pouillon é bem interessante para tória", uma mente externa aos acontecimentos. E acrescenta que nesse caso
a percepção de certas afinidades. O englobamento de narrativas em pri. a narrativa é geralmente na terceira pessoa. Admite, portanto, que possa
meira e terceira pessoa num só "modo de visão" é útil para mostrar o que ocorrer também na primeira pessoa, o que parece estranho, uma vez que
elas têm de comum em certos casos, e que fica às vezes obscurecido. O siste­ teríamos assim um narrador de primeira pessoa que não seria um partici­
ma de Pouillon parece-nos insuficiente, todavia, para representar toda a pante, nem sequer secundãrio: "hã também uma história interna, ou de
complexidade do problema do foco narrativo. primeira pessoa, que é narrada por um personagem secundário e não pelo
Antes de encerrarmos este item, desejamos fazer mais duas observa­ herói", diz ele. Komroff provavelmente quer referir-se a histórias tais como
ções. A primeira se refere à "visão de fora" , que PouiUon desvaloriza sem "Singular Ocorrência", de Machado de Assis42 e "Haircut", de Ring
exemplificar, o que dificulta a nossa apredação. 39 Também não esclarece se Lardner,43 em que a atuação do narrador é tão pequena que ele poderia ser
estende essa desvalorização também ao conto, ou se a limita ao romance. considerado, praticamente, como apenas um observador.
Em nossa opinião o método pode ser excelente para o conto, como se pode Note-se que embora os sistemas de Komroff e Pouillon sejam diferen­
ver, por exemplo, em The Killers. tes, eles têm em comum uma característica: a ausência de distinção rígida
A outra observação diz respeito ao que afirma Pouillon quanto à visão entre narrativas de primeira e terceira pessoa.
"por trás", isto é, à visão interpretativa, que só pode ocorrer em narrativas Komroff assinala com detalhe as vantagens e defeitos que vê nos dois
na terceira pessoa. Diz ele que na visão "por trás" existe "um privilégio tipos de foco narrativo característicos de sua classificação. Trata inicial­
inadmissível do autor frente ao leitor: o primeiro é o único a conhecer o mente do ponto de vista interno em que o narrador é o protagonista ("lea­
final da história e só o explica ao leitor numa ordem arbitrária, que falseia O' ding actor' '), ocorrendo então uma' 'fingida autobiografia". As vantagens
tempo sem respeitar a psicologia, pois nada justifica que o leitor esteja me­ no caso seriam a maior facilidade para que o leitor aceite uma história estra­
nos informado do que o autor a respeito do que este lhe apresenta". 40 nha ou sobrenatural, uma vez que o narrador se apresenta como tendo vivi­
Ora, esse "privilégio" também ocorre em outros tipos de narrativa. do as aventuras narradas; a maior intensidade e intimidade da experiência
Em toda narrativa em primeira pessoa, o narrador é também quem deter­ narrada em primeira pessoa; e, finalmente, a aptidão do "eu" para dar
mina o final da história, que ele (excetuado o caso de diários) formal­ unidade à história.
mente conhece desde o início, e pode organizar uma ordem temporal a seu Essas pretendidas vantagens dão margem a alguns reparos. Da pri­
modo, acrescentando, se quiser, as explicações cabíveis. Nas narrativas em meira tratamos ao discutir o sistema de Brooks e Warren. Achamos que
terceira pessoa que têm como centto a consciência de um personagem, não Komroff tem razão, uma vez que, embora a narrativa em primeira pessoa
havendo intrusão do autor (portanto, narrativas de visão "com"), altera­
41 New, Enlarged and Revised Edition, Londres, George Allen and
ções arbitrárias da ordem cronológica também podem ocorrer, tornando, é anterior, de 1964, foi publicada com o título
Unwin, Ltd., 1970, pp. 356-57.
claro, a obra mais difícil para o leitor. Dictionary 0/ World Literature.
42 Histórias Sem Data, Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1977. pp. 88-95.
39 Gp. cit., pp. 78-9 (inclusive nota n? 8).
4} Indu1da na coletânea A Pock.et BooÁ: 0/ Short Stories, organizada por M. Edmund

40 Gp. cit., p. 65.


Speare, Nova York, Washington Square Press, 1973. pp. 165-76.
18 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 19
seja uma convenção literária, que racionalmente não engana o leitor - pelo aceita sem dificuldades que pessoas de escassa instrução sejam hábeis e
menos o leitor contemporâneo: seria arriscado dizer o mesmo, por exemplo, competentes narradores, corno ocorre em Robinson Crusoe. Um problema
dos primeiros leitores de Robinson Crusoe 44 - , ela produz um impacto desse tipo ocorre no conto "Ladrão", de Viriato Correia, em que o prota­
imediam pré-racional que certamente contribui para a "suspensão da gonista caboclo faz uma hábil narrativa, com riqueza e propriedade voca­
de~crença" . bular. 46
Quanto à segunda vantagem apontada por Komroff - a da imedia­ Além dos pontos de vista já mencionados, Komroff indica ainda uma
ção emocional - convém lembrar que a narrativa em primeira pessoa outra possibilidade, que é a narração da história por dif~rentes persona­
supõe sempre uma distância temporal entre o narrador - que conta - e o gens: t. As vantagens desse tipo de história são óbvias. A desvantagem é um
personagem - que atua. Isto diminui a imediação emocional. Se por um enfraquecimento da unidade, a menos que o drama seja vigoroso, e natural
lado a identidade de pessoa é uma força positiva nesse sentido, em outro, a a seqüência das várias experiências". Por esse comentário) vê-se que
distância temporal tem valor negativo. Komroff tem em mente urna história única, fragmentada em narrativas de
A terceira vantagem tem contra si a objeção de Aristóteles. Segundo partes sucessivas, por diversos personagens. A boa execução de um tal tipo
Aristóteles, o enredo tem unidade "não por se referir a urna só pessoa, de narrativa é realmente difíciL Muito mais interessante é o modelo de um
como crêem alguns, pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, conjunto narrativo em que vários personagens contem, um de cada vez, a
respeitantes a um só indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer mesma história, vista de ângulos difer~ntes. É o que foi realizado por
unidade alguma. Muitas são as ações que urna pessoa pode praticar, mas Faulkner em Absalom, Absalom! e por Joyce Cary, na trilogia constituída
nem por isso elas constituem urna ação una" .45 A objeção de Aristóteles é de Herself Surprised (1941), To Be a Pt'lgrim (1942) e The Horse 's Mouth
válida. Não se pretende, é claro, negar o fato de que a simples identidade (1944). Dalton Trevisan mostrou corno o método pode ser, eficazmente,
do herói, por si, crie urna certa ligação entre os episódios, mas apenas acen­ aplicado ao conto, em "Em Manobra" .47 Este é um método realmente
tuar como é tênue a unidade que daí resulta. notável, que, mostrando fatos que uns vêem e outros não, desnuda a par­
Tratando ainda do ponto de vista interno em que o narrador é o pro­ cialidade das interpretações humanas.
tagonista, Komroff assinala também os defeitos que vê nesse tipo de narra­ Quanto ao ponto de vista olímPico, isto é o ponto de vista externo em
tiva: o narrador não tem acesso aos pensamentos dos outrós personagens; o que a narrativa é feita por alguém que tudo sabe a respeito de todos, a des­
protagonista que narra não pode fazer de si próprio urna adequada aprecia­ vantagem que Komrofflhe aponta é a diminuição da vida e da intimidade.
ção (que seria importante, dado o seu relevo na história): é às vezes difícil Komroff faz ainda referência ao narrador de terceira pessoa que se
conciliar a pessoa do narrador com o talento literário que aparenta ter. limita a descrever o que "pudesse ser visto externamente por urna teste­
Quanto a este último problema, Komroff não o considera realmente munha dos acontecimentos".
importante: para ele, o leitor, por uma convenção literária, geralmente Caberia ainda fazer urna distinção - que não é feita por Komroff ­
entre o "narrador olímpico" que faz comentários (corno Thackeray, corno
Camilo), e o que é mais objetivo, apresentando apenas os fatos externos e
44 Leia-se a ingênua apreciação que faz, em 1872, o nosso J.c. Fernandes Pinheiro:
"Dentre as obras de Foe a que mais contribuiu para imortalizar.lhe o nome foi por certo o
os pensamentos dos personagens, sem se pronunciar sobre eles (corno
romance intitulado Aventuras de Robinson Crosoé, vendido a um livreiro por dez libras Flaubert). Enfim, a distinção a que já nos referimos, entre onisciência
esterlinas, e do qual se têm tirado numerosas edições em quase todas as línguas cultas, sendo interpretativa e onisciência neutra.
ainda hoje um dos livros mais populares em Inglaterra. Impossível é encontr:!;r uma ficção Komroff fala ainda na possibilidade de apresentação dos aconteci­
melhor sustentada, interesse mais vivo, lições mais proveitosas, personagens mais verossí· mentos através da "mente singular de um dos personagens", sem mais
meis, fazendo acreditar o complexo destas circunstâncias que o autor não fantasiara um
romance, mas eStrevera uma verídÍ\;a história. Parece porém hoje averiguado que se o fato
pertencia ao domínio da realidade, os acessórios foram todos ministrados pelo talento narra·
tivo de Foc" (Resumo de Hútona Litterana, Tomo I, Rio de Janeiro, B.L. Garnier, 1872, 46 Contos e Novelas, Seleção de Graciliano Ramos, I? Vol., Rio de Janeiro, Livraria
p. 282). Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957, pp. 79-83.
45 Aristóteles, Poética (VIII, trad. port. de Eudoro de Sousa, Porto Alegre, 47 Dalton Trevisan, O Vampiro de Curitiba, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
Editora Globo, 1966, p. 77. 1965, pp. 107-12.
20 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 2{
esclarecimentos, referindo-se provavelmente àquilo que chamamos de Sistemas e Notas Complementares
, 'onisciência sim pIes imediata" .
Menciona-se ainda no artigo de Kornroff o que poderíamos traduzir a) As Observações de Percy Lubbock
como ponto de vista mutante ("shifting view-point"), isto é, aquele que
varia na mesma obra. É citado o romance Bleak House, em que o ponto de Em seu famoso livro The Craft ofFiction, publicado em 1921, o crí­
vista olímpico alterna com o ponto de vista interno, de primeira pessoa, tico inglês Percy Lubbock, ao analisar uma série de romances, que vai de
sem que - diz Komroff - o leitor se dê conta disso. O mesmo ocorre, Guerra e Paz, de Tolstói, até a.5 obras de Henry James, faz interessantes
acrescenta, em Guerra e Paz. Em O Médico e o Monstro (Dr. jekyllandMr. observações a respeito da "arte da ficção", que, aliás, ele distingue da
Hyde), a narrativa se dá de um ponto de vista externo, mas o último capí­ "arte da narrativa". .
tulo, que é uma confissão, é narrado em primeira pessoa, diz Komroff, A arte da ficção, segundo Lubbotk, não pode apelar para nenhuma
"para acrescentar intimidade e reforçar a crença". Komroff deixa de citar o autoridade fora do próprio livro. Como exemplo de arte da narrativa, men­
conhecido caso de Moby Dick, onde são apresentados pensamentos do ciona as histórias de Defoe, em que é afirmada uma pretensa' 'verdade his­
Capitão Ahab que não poderiam ser conhecidos do narrador Ishmael. tórica'·. )0
Komroff defende o ponto de vista mutante, alegando que geralmente Esta distinção, que faz Lubbock, leva-o a uma outra, posteriormente
as mudanças passam despercebidas ao leitor. É um julga.."llento com que tão citada e debatida: a diferença entre narrar ("teUing") e mostrar ("sho­
não concordamos. Ao perpetrar essa falha lógica, o autor se expõe a grande wing"). Tal distinção se relaciona estreitamente com o problema da inter­
perigo, pois o leitor que reflexiona criticamente percebe a incoerência, e venção do autor, ou do seu retraimento, em relação à história.
não pode deixar de condená-la. Veja-se, por exemplo, o conto "Rio Dá Lubbock, como exemplo de autor que intervém, Thackeray; como
Turvo". do, aliás notável, escritor português Branquinho da Fonseca, em exemplo de autor que se retrai e apenas apresenta os acontecimentos (inter­
que, inexplicavelmente, o narrador-protagonista descreve sentimentos da vindo às vezes, porém de modo muito sutil), Flaubert. Reconhece
principal personagem feminina, aos quais ele não poderia ter acesso. 48 A Lubbock, porém, que há um certo exagero na alusão que geralmente se faz
percepção da falha quebra o fio da narrativa, prejudicando-a. . à "impessoalidade" de Flaubert (pp. 67 -8). No que tem razão. Na verdade
Há um caso, porém, em que o foco narrativo mutante pode ocorrer diríamos que em Madame Bovary a presença do autor está nitidamente
sem prejuízo da lógica. Está exemplificado no conto' 'O Guarda-Chuva" , marcada (o que seria fácil provar), sendo, porém, é claro, muito mais dis­
de Eneida de Morais. 49 Ali, o corpo da narrativa está na primeira pessoa: creta que a existente em Vanity Fair, de Thackeray.
"Passei oito dias sem saber o que fazer: comprar ou não comprar o guarda­ Relacionada com a distinção entre "narrar" e "mostrar", está a dife­
-chuva... " Entretanto, há no fim um espaço gráfico. após o qual a narra­ rença que Lubbock estabelece entre "cena" e "panorama". Na cena o
tiva passa para a terceira pessoa: <IA voz de José fez-se doce ... " Assim, a autor nos apresenta fatos específicos, que ocorrem numa seqUência tempo­
primeira e maior parte - subjetiva - fica como que englobada numa mol­ ral; no panorama o autor abarca um período de tempo maior, que é resu­
dura exteriorobjetiva. É como se o autor, implicitamente, afirmasse: vejam mido em certas indicações (pp. 67, 69, 72). Devido a esse aspecto de con­
o que o personagem principal pensou e disse, antes desse momento final densação é que vingou posteriormente o termo "sumário" ("summary"),
em que acalenta o filho para dormir. Esse tipo de foco narrativo mutante é hoje em dia muito mais usado que" panorama". Ao tratar da classificação
eficaz não porque o leitor não perceba a sua ocorrência, mas porque encor;­ de Friedman, já observamos o uso que este faz da distinção entre "cena
tra uma justificativa lógica para ela. imediata" e "narrativa sumária". Não é preciso dizer que tais idéias estão
evidentemente calcadas na distinção feita por Lubbock, cuja obra é muito
anterior.
No capítulo sobre Flaubert, trata Lubbock de outro problema de capi­
tal importância: aquilo a que ele chama de "centre of vision", isto é, o
48 Branquinho da Fonseca, Rio TU11lo, lisboa. Editorial Verbo, sldata, pp. 9-53. personagem com quem o autor deve identificar-se e atrás do qual há de ver
49 Contos e NOl"!!I",, Sdeção de Graciliano Ramos, l~j· Vol., Rio de Janeiro, Livraria
Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957, pp. 31-4. . )0 Percy Lubbock, The Craft o/ Piction, Nova York, The Viking Press, 1964, p. 62.
22 Foco Namltivo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 23
as coisas.)1 No caso de Madame Bovary, Lubbock considera que isto se dá, crível, literalmente, a alegação de Huxley de haver encontrado, já feito e
sem dúvida, com a própria Emma (p. 75), sendo necessária, porém, às por acaso, o roteiro cinematográfico que se menciona no início de Ape and
vezes, uma mudança de visão para explicar aquilo que não pode ser obser· Essence. Citando o caso de Puchkin, que publicou A Ftlha do Captião
vado pela falta de sutileza de sua mente (p. 87). como se fossem memórias reais de Piotre Griniov, diz o crítico russo B.
Se compararmos, porém, o que se passa em Madame Bovary com Tomachevski que tal ilusão só é válida para o leitor ingênuo, acrescen­
aquilo que o próprio Lubbock diz da obra The Ambassadors, de Henry tando: "Para um leitor mais avisado, a ilusão realista toma a forma de uma
James, ou com aquilo que podemos observar em A Portrait o/the Artist as exigência de verossimilhança. Conhecendo bem o caráter inventado da
a Young Man, por exemplo, veremos que seria mais adequada no caso a obra, o leitor exige, entretanto, uma certa correspundência com a reali­
expressão "foco de caracterização", criada por Brooks e Warren, para defi· dade e vê o valor da obra nessa correspondência" Y
nir a situação de Emma, do que propriamente o termo "centro de visão". Lubbock emprega uma terminologia que veio a ser bastante usada
Isto porque em Madame Bovary a presença do autor é ainda muito grande, posteriormente. Fala em "centro de visão" ("centre of vision") (p. 73),
se comparada com a existente nas obras que acima citamos. expressão evidentemente calcada em Henry James, porém mais precisa; em
Passando de Flaubert a Henry James, Lubbock salienta a importância "ângulo de visão" ("angle of vision") (p. 189) e em "visão
da visão do personagem na obra deste último. Em James passa a existir o estereoscópica" .53 Por visão estereoscópica, entende Lubbock a apresenta­
pontO de vista do personagem, que funciona como "reflector" ou ção de um personagem surpreendido de diversos ângulos. É o que, segun­
"centro", do "seeing eye", com o qual se identifica a visão do próprio lei­ do ele, Henry James conseguiu, em The Wings o/the Dove, com a perso­
tor. É o método que Tindall veio a chamar de "subjetivo-objetivo" , como "agem Mi1ly (pp. 178-79).
dissemos. Por uma questão de método, preferimos, alterando a ordem cronoló­
Lubbock distingue ficção de narrativa, alegando, como vimos, que a gica, tratar antes de Percy Lubbock, para passarmos depois à consideração
verossimilhança da primeira não pode depender de nenhuma autoridade de Henry James. o que faremos a seguir.
externa. liA narrativa", diz ele, " - como nas histórias de Defoe, por
exemplo - deve procurar apoio alhures; Defoe produziu-o pela afirmação
da veracidade histórica de suas histórias. Mas em um romance no sen­ b) O Método e a Terminologia de Henry James
tido estrito da palavra - uma afirmação dessa espécie é, sem dúvida, abso­
lutamente irrelevante; a coisa tem de parecer verdadeira, nada .mais que Ao reeditar - sob o título The Art o/the Novel - os prefácios que,
isso. E não é com uma simples afirmação que se faz com que ela pareça ver­ em fase tardia de sua vida, fez Henry James para os seus romances, destaca
dadeira" (p. 62). R.P. Blackmur os temas mais salientes de suas observações críticas, entre os
Poderia objetar-se a essas considerações de Lubbock o fato de que, quais se alinha a exigência básica de uma "excelente inteligência ao
realmente. ao menos para o leitor moderno dotado de um grau mínimo de centro" ("the plea for a fine central intelligence").54
espírito cr1tico, as histórias de Defoe pouco ou nada dependem, quanto à Este ponto é tão importante que o crítico norte-americano James E.
sua verossimilhança - isto é, quanto à sua capacidade para produzir a Miller Jr., autor de uma excelente antologia dos trabalhos críticos de Henry
"suspensão da descrença" - de uma simples assertiva do autor. Tal asser­ James, ordenada por assuntos, faz uma distinção entre o destaque dado por
tiva bem se entende que é apenas uma convenção literãria. Dizer o contrá­
rio seria supor, por exemplo, que o leitor acreditasse nas afirmativas de Cer­
vantes de haver comprado os originais do Quixote, escritos por um Cid II Em Théorie de la Littérature, Textes des Formalistes Russes Réunis. Présentés ct

Hamete Benengeli, fazendo-os traduzir, depois, do árabe. Ou que fosse Traduits par Tzvetan Todorov, Paris, Éditions du Seuil, 1965, pp. 284-85.
H O Webster's Seventh New Coilegiafe Dictionary define estereoscópio da forma
seguinte, à qual demos versão portuguesa: "instrumento ético com duas lentes, para ajudar
51 "But the most obvious pOÍnt of method is no doubt the difficult question of the o observador a combinar as imagens de duas figuras tomadas de pontos de vista um pouco
centre of vision. With which of the characters, if with any of them, is the writer to distantes, obtendo-se assim o efeito de solidez ou profundidade" (Springfield, G. and C.
himself, which is he to 'go behind'?" (op. cil.. p. 73). Nesta última expressão Pouillon Merriam Company, 1967, p. 859).
poderá ter-se inspirado para cunhar o rermo "vision par derriere". 54 The Artofthe Nove/, Nova York, Charles Scribner's Sons, 1962, pp. XVIII·XIX'
I
24 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência 1 o Foco Narrativo 25
1

este a um personagem central e o problema do ponto de vista propriamente Como nota René Wellek, para James é muito importante que esses
dito, organizando separadamente os excertos relativos a um e outro tÓ· "reflectores" tenham uma sensibilidade adequada: "Tudo depende da
pico.)) Hã nisto uma conveniência metódica, dada a multiplicidade de refe· qualidade da consciência, e não do mero estratagema do foco, ou de um
rências ao personagem central, mas os dois assuntos estão indiscutivel­ narrador intermediário". 6) James critica em Madame Bovary a "pobreza"
mente ligados. da consciência de Emma, e, no Prefácio a The Princess Casamassima, valo­
Ao nos referirmos aos conceitos críticos de Henry James, faremos uso riza os reflectores sensíveis - "intense perceívers". 66 Para James, os acon­
da antologia de Miller, e da já citada coletânea de R.P. Blackmur. Antes tecimentos em si não têm relevo e direção, a menos que estejam refletidos
disso, porém, desejamos reportar-nos ao ensaio "The CriticaI Theory of numa consciência de grande sensibilidade. 6í
Henry James", de René Wellek, publicado em 1958. 56 Devemos notar ainda a referência que faz Henry James ao uso de
Wellek comenta a desaprovação de James à interferência do autor, crianças como" reflectores' •, analisando o caráter peculiar do tipo de narra­
especialmente quando ela se faz de maneira tão díreta que este chega a tiva assim produzido, assunto esse cujas ressonâncias veremos, mais
afirmar poder modificar a narrativa a seu talante. Isto é, para James, uma adiante, em outros autores. 68
traição à arte, e um verdadeiro crime.)7
Como James reprova também a narrativa em primeira pessoa, nas c) As Distinções de Wo/{gang .Kayser
obras de maior extensão, por julgá-la condenada à dispersão ("looseness"),
e não é favorável à aproxÍtnação exagerada da ficção ao drama - a seu ver, Em artigo publicado em alemão em 1955, e traduzido depois para o
o ideal é uma alternância de narrativa, descrição e diálogo - , a única solu­ francês,69 Wolfgang Kayser faz interessantes observações acerca da arte da
ção passa a ser o método especial que o mesmo James preconiza. narrativa, relacionadas com o ponto de vista.
Nesse método, como explica W.Y. Tindall, o autor tem uma função Reportando-se às profundas alterações sofridas pelo romance até
bem específica, e extremamente discreta: "não o que ele observa, mas o chegar às suas formas amais, Kayser menciona' 'um historlador do romance
observador observando é o assunto, e a mente deste o nosso teatro" .'8 inglês" que, vinte e cinco anos antes (da data da publicação do seu artigo),
Para indicar esse personagem central, em cuja mente se apresentam os já dizia o seguinte:
acontecimentos, Henry James se vale de diversos termos. Ora o chama de
"center", "register" ou "reflector"l9 ora de "sentient subject",6O ou "Se se observa rapidamente o conjunto dos romances ingleses desde
ainda "perceiver" ,6\ "vessel of consciousness" ,62 "mirror" ,6} "central Fielding até os nossos dias, a gente se impressiona, antes de tudo, com
light' , o desaparecimento do autor' '.70

6j Renê Wellek, loe. cit., p. 313.


)) Theory olFiction: Henry James, edited with an introduction byJames E. Miller Jr.,
Lincoln, University of Nebraska Press, Bison Books, 1972, p. 152. 66 The Art Novel (ed. R.P. Blackmur), Nova York, Charles Scribner's Sons,
1962, p. 71. V. Renê WelIek, loe. cit., p. 313.
)6 American Litera/ure, vol. XXX, pp. 293-321.
67 "... I confess I never see the leading interest of any human hazard but in a
such a berrayal of a sacred office seems to me, I confess, a terrible crime"
)7 " ...
consciousness (on the part of the moved and moving creature) subjecc to fine intensification
(ApudRené Wellek, loc. cit., p.
and enlargement. It is mirrored in that consciousness that the gross fools, the headlong fools
58 A Reader's Cuide to James Joyce, Nova York, The Noonday Press, 1967, p. 63. play their part for us they have much less to show us in themselves" (The Arl 01 the
)9 No Prefácio a The Wings olthe Dove, apudMiller, op. cit., pp. 246-47. Novel, ed. R.P. Blackmur, p. 239).

60 No Prefácio a The Golden Bowl, apudMiller, op. cit., p. 252. 68 Prefácio a What Maisie Knew, apud James E. Miller JI'., The Theory 01 Fielion:
Henry James, pp. 245-46.
6\ No Prefácio a The Princess Casamassima, apudMiller, op. cit., p. 241.
69 "Qui raconte te roman?", PoétiqulJ, Paris, du 1970, n? 4, pp.
62 No Prefácio a The Princess Casamrwima, apud Miller, op. cit., p. 236. 498-510.
63 No Prefácío a The Princess Casamassima, apud Miller. op. cit., p. 240. parece referir-se aJoseph Warren Beach, que, efetivamente, diz o seguinte:
64 No Preflício a The Spoils olPoynlon, apudMiller, op. cit., p. 313. "ln :i view of thc English nnvel fmm Fieldillg t9 Ford, the one rhing that wiU
26 Foco Nam:ttivo e Fluxo da Consciência o Foco NafTatlvo 27
Kayser lembra ainda a opinião de Virgínia Woolf, para quem a figura Kayser chama ainda a atenção para um outro e importantíssimo­
do narrador olímpico, onisciente, era incompatível com a provada "obscuri­ aspecto da ficção. É este o fato de que o narrador mostra, na prática, ter
dade impenetrável" da vida, que só se poderia representar de maneira condições para recompor acontecimentos que nem a melhor das memórias
parcial.]l poderia reter em todos os seus pormenores. Diz, acertadamente, que "o
No que diz respeito ao foco narrativo, os principais assuntoS tratados narrador não conta graças a uma boa memória, mas vê o passado como pre­
nesse artigo são os seguintes: a distinção entre autor e narrador; o narrador sente, por uma faculdade mais que humana... "75
secundário; a quebra da coesão narrativa (ou ponto de vista mutante); a É curioso que Wolfgang Kayser justifique, como faz, a incoerência
convenção da perfeita memória do narrador e, finalmente, o leitor como narrativa encontrada em Moby Dick, em que o narrador, na primeira pes­
criatura ficcional. Vejamos, com algum detalhe, cada um desses tópicos. soa, mostra conhecimento de coisas que jamais poderia ter sabido, tais
"Na arte da narrativa" , diz Kayser, "o narrador nunca é o autor ­ como os pensamentos do Capitão Ahab, conversas secretas, e a catástrofe
conhecido ou não mas um papel inventado e adotado pelo autor". E final. Entende ele que neste caso a figura do personagem-narrador é apenas
justifica: "Para ele, Werther, D. Quixote, ou Madame Bovary, existem uma máscara, que encobre uma realidade maior. 76
realmente; ele está afinado com o seu universo poético". Ora, deduz-se Como já notamos alhures, esta justificativa não nos parece satisfató­
que quem fala como se realmente acreditasse na existência dessas figuras ria. O leitor tem o direito de procurar na obra uma lógica interna que o sa­
não é uma pessoa real. Mais adiante diz Kayser que o narrador nada mais é tisfaça. O êxito do romance de Melville não deve ser tomado como sentença
que "um personagem de ficção, resultante da metamorfose do autor". que peremptoriamente o absolva de seus defeitos.
Isto, naturalmente, faz diminuir a importância da distinção entre narrativa Isto posto, passemos à consideração de outras observações do conhe­
em primeira pessoa e em terceira pessoa, chegando Kayser ao ponto de cido crítico alemão, expendidas em seu livro sobre a análise literãria, 77
dizer que ela "desaparece". 72 começando por um assunto que é tratado tanto nessa obra como no artigo a
Kayser, entretanto, vai além disso, caractérizando também o leitor que nos referimos anteriormente.
como uma "criatura ficcional". "Enquanto indivíduos diferentes e dota­ No artigo, comenta ele' o início do romance Werther, no qual encon·
dos de um estado civil" , diz ele, "sabemos, com efeito, que Werther, Tom tramos uma terceira pessoa, que nos diz: "Tudo o que pude encontrar da
Jones e D. Quixote não existiram verdadeiramente, não passando de ficções história do pobre Werther eu reuni com o maior cuidado ... ". Portanto,
criadas pelo autor. O leitor, entretanto, deve apagar essa restrição" . 73 observa Kayser, hã alguém que "se intercala entre o personagem e nós,
Por <)Utro lado, segundo ele, o autor, aO escrever, tem em mente um uma terceira pessoa que, tendo reunido as cartas e notas do diário íntimo
certo tipo de leitor, e isto determina o tom que deve usar. 74 Quando o leitor de Werther, apresenta-as a nós, por saber que elas formam um todo e uma
não tem certos requisitos pressupostoS pelo autor - Kayser exemplifica história" . 78
com Werther - isto quer dizer que o livro não foi escrito para ele. No livro, o mesmo assunto é tratado, fazendo Kayser uma divisão
entre a "situação primitiva do narrar" e a "narrativa enquadrada"
("Rahmenerzahlung").79 O autor dá vários exemplos desta última, em que
se incluem os Contos da Cantuária, de Chaucer, o Decamerão, de Bocca­
cio, e as Mil e Uma Noites. Para quem desejar um exemplo moderno,
impress you more rhan any orher is the disappearance of rhe aurhor" (The Twentieth
Century Nove/, Nova York, Appleron.Century-Crofts, Inc., 1932, p. 14).
n Loe. cit., p. 506.

71 Infelizmente, Kayser não nos dá a indicação precisa de onde se encontra o texto de


Virginia Woolf. . 76 Loc. cit., p. 506 e 508.

72 Loc. cit., pp. ')04 e 507. 77 Wolfgang Kayser, Análise e Interpretação da Obra Literária (Introdução à Ciência

da Literatura), 6~ edição portuguesa, totalmenL revista pela 16~ alemã, por Paulo
73 Loe. cit., p. 502.
Quintela. Coimbra, Arménio Amado. Editor, 1976.
74 "Chaque fois qu'un rei intermédiaire prend la parole, on peur et on doit
78 Loe. cit., pp. 501-02.
s' attendre à le voir s' adresser à naus ('est·à-dire au lecteur créé par lui e participant de
I'univers poétique. Ces! lã ce qui détermine le ton qu'il emploie" (Loe. cit., p. 503). 79 op. cit., pp. 211.
28 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 29
poderíamos citar O Macaco e a Essência, de Aldous Huxiey, em que o pri­ intitulado Der Heilige ('O Santo'), c.P. Meyer põe a falar um simples
meiro narrador diz ter encontrado um roteiro cinematográfico, de um ima­ besteiro. Neste caso, o atrativo do conto reside precisamente no fato de a
ginário William Tallis, que continha aquela história. 8u natureza simples do narrador não ser capaz de abranger as bases dos acon·
Kayser assinala a utilidade da narrativa enquadrada para o aumento tecimentos nem a psicologia complexa dos personagens, de maneira que o
da credibilidade. Deve-se observar, entretanto, que nem sempre ela aten· leitor é constantemente obrigado a completar e a aprofundar o conteúdo
de a esse fim. Na obra que dtamos, de Huxley, o pretenso autor do roteiro essencial da obra" .85 Já nos referimos a esta situação, da qual voltaremos
não tinha condições de maior proximidade dos acontecimentos. A intenção ainda a falar, ao mencionarmos o comentário de Henry James à utilização
de Huxley, ao usar a narrativa enquadrada, foi certamente irónica, apre­ de crianças como reflectores.
sentando uma história sua como coisa sem valor, e de cuja responsabilidade
se eximia - um dos milhares de roteiros rejeitados pelos estúdios de Holly­
wood.
Kayser compara a narrativa em primeira pessoa com a narrativa em d) A Classificação de Stanzel
terceira pessoa, salientando o reforço da impressão de autenticidade que se
Em seu livro sobre as Situações Narrativas no Romance,86 Pranz
tem no primeiro caso, especialmente quando se trata de narrativas de aven·
Stanzel, professor na Universidade de Graz, na Áustria, utiliza o conceito
turas fantásticas ou experiências estranhas. 81 Já discutimos esse assunto, ao
de "centro de orientação" , estabelecido por Roman Ingarden, com algu­
tratarmos dos sistemas de Brooks e Warren e de Manuel Komroff.
mas modificações. 87 Para Stanzel, o centro de orientação é "idêntico ao
Às vezes, observa Kayser, os acontecimentos são narrados a alguém
aqui.e-agora do autor no ato da narràção" (p. 27).
que serve como "espectador ideal", sugerindo-nos a maneira de reagir à
A classificação de Stanzel é simples, mas bastante esclarecedora. Pala
narrativa, tal como sucede no poema narrativo' 'The Ancient Mariner' , , de S8
em romance autoral, romance personativo e romance d·:: primeira pessoa.
Coleridge. 8l Tanto aqui, como no trecho do artigo que mencionamos antes,
A narrativa autoral é aquela em que o "autor·narrador retrata a si
em que diz que o autor, ao escrever, tem em mente um certo tipo de leitor,
mesmo em acrescentamento à ação", permanecendo, "geralmente, fora
Kayser aborda o pro blema do narratário. gj
do mundo ficcional". Ressalva, porém, Stanzel que "ocasionalmente a
Kayser assinala ainda uma forma especial de narrativa em primeira
maneira de cronista, apresentador de uma autobiografia ou diário, etc., do
pessoa, que é a narrativa epistolar. Nesta, há uma diferente colocação tem·
narrador, exige que o autor estabeleça alguma conexão com o mundo fico
poral, pois quem escreve as cartas está dentro do decurso dos aconteci.
cional" (pp. 23·4). Em geral, porém, o narrador autoral procura estabele·
mentos. A eficácia desse método, que parece antiquado, em certos casos,
pode ser verificada no conto "Paulo e Virgínia", de Luís Guimarães
Júnior. 84
8\ Op. cit.. p. 212.
Outro ponto importante tocado por Kayser é o do narrador cujas limi­
86 Narrative Situatibm in the Novel, trad. ingl. de James P. Pusack, Bloomington,
tações pessoais afetam o teor da narrativa em suas relações com a realidade.
Ao se referir a um conto de c.P. Meyer, diz Kayser o seguinte: "No conto Indiana University Press. 1971. .
87 Ingarden fala em "centro' de orientação" na obra Das Literarische Kunstwerk,
publicada em 1931. Stanzel esclarece, em nota, que, enquanto para Ingarden o centro de
orientação está "dentro do reino da realidade fictícia", para ele o "ato autoral narrativo"
80 Aldous Huxley, O Macaco e a Essência, trad. de João Guilherme Linke, 4' ed., deve ser considerado como fora dessa realidade. Por sua vez, Ingarden, em edição posterior
Rio, CivilizaçãO Brasileira, 1971. de sua obra, reportando-se a Stanzel, comenta: "Stanzel concentra·se, porém, meno's no
HI Op. cit., p. 214. problema do espaço apresentado e do centro de orientação do que nos modos diversos de
narração e da presença do narrador no romance" (A Obra de Arte Literária, trad: port.,
Nl Op. cit., p. 212.
baseada na 3~ ed. alemã (1965), de A.E. Beau, M.C. Puga eJ.F. Barreto, Lisboa, Fundação
83 Veja-se, a este propósito, o artigo de Gerald Prince "Introduction à I'étude du Gulbenkian, 1973, p. 253).
narrataire", Poétique, Paris, Éditions du SeuiJ, 1973. n? 14, pp. 178-96.
88 No original alemão, "auktorialer Roman", "personaler Roman" e "Ich-Roman" •
84 Contos e Novelas, Seleção de Graciliano Ramos, vol. 2. Rio de Janeiro, Livraria segundo informa Bertil Romberg (Studies in the Technique of lhe First Person Nove/,
Editora da Casa do Estudante do Brasil, 19')7, pp. 82-8. Estocolmo. Almquist & Wiksell, 1962, p. 24).
o Foco Narrativo 31
2'j. .~t~u
30 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência r f\
~ ~
cer, em m~iof o~: menor grau, uma distância temporal, espacial e psicoló­
• ". I'" .... .,
Booth ena o termo autor tmpllczto ( lmplted aut or ') para lOdicar o
gica relativamente à sua ficção. Como exemplo de narrativa autoral, "segundo-ser" do autor, o autor tal como ele se mostra na própria obra,
apresenta-se Tom Jones. distinguindo-se de como é na vida real. O autor implícito é a "imagem que
Na narrativa personatit1a, é através dos olhos de um personagem do ele cria de si próprio" .9t
romance "que o leitor parece estar vendo o mundo ficcional" (p. 25), Wayne C. Booth defende ainda as possíveis "intrusões do autor".
como em The Ambassadors, de Henry James, romance a que já tivemos Apenas ressalva que o autor que interfere na narrativa com os seus comen­
ocasião de nos referir anteriormente. tários deve fazê-lo de maneira interessante: "deve ser vivo como um perso­
Finalmente, há a narrativa em pn'meira pessoa, exemplificada por nagem" (p. 219).
Moby Dick. Stanzel faz uma observação muito interessante, ao mostrar a Tão importante quanto a noção de "implied author" é a de "unrelia­
gradualidade da transição da narrativa autoral para a narrativa em primeira ble narrator", também criada por Booth. Em artigo publicado em 1973,
pessoa, citando o romance Joseph Andrews, de Fielding, no qual o autor propusemos para traduzir esta última expressão o termo narrador infiel,
afirma que parte da história lhe foi contada por um personagem. que nos parece adequado e sugestivo. Explica Booth que o narrador infiel
Estabelece-se assim uma ligação entre autor e personagem, colocando-se o não precisa ser, nem geralmente é, um mentiroso, embora isso também
primeiro, até certo ponto, dentro do mundo ficcional. "Esta espécie de possa ocorrer. Mais freqüentemente ele "está equivocado, ou acredita pos­
ligação", diz Stanzel, "pode ser estendida a tantas figuras de um romance suir qualidades que o autor lhe nega" .92
que ao fim o narrador autoral aparecerá como se fosse uma figura do Booth considera como "narradores" os "reflectores" ou "centros de
mundo fictício" (p. 59). consciência", característicos dos romances de Henry James e outros, nas
narrativas em terceira pessoa. Esta interpretação é supreendente e nos
parece inaceitável. Se o herói de A Portrait ofthe Artist as a Young Man,

e) O Impacto das Teorias de Wayne C. Booth


'H Gp. cit., p. 151. "Mesmo o romance em que nenhum narrador é dramatizado",

diz Booth, "cria uma figura implícita de um autor que fica atrás das cenas, seja como diretor
Em 1961 o crítico norte-americano Wayne C. Booth publicou um
de palco, como controlador de bonecos, ou como um Deus indiferente, que silenciosamente
livro que produziu grande impacto nas idéias correntes sobre a arte da nar­ apara as unhas, Este autor implícito é sempre distinto do 'homem real' não lmporra o
rativa. 89 que consideremos que ele seja que cria uma versão superior de si próprio, um 'segundo­
Booth denunciou muitas noções que, inicialmente inovadoras, se ha­ ser' ('second self), quando cria a sua obra" (op. cit., p. 151). Wayne Booth reconhece
viam transformado em "dogmas paralisantes". Assim, ele contesta a supe­ dever o termo "second self" a Kathleen Tillotson (p. 71).
rioridade intrínseca da "cena" sobre o "sumário", citando como exemplo '12 Gp. cit" p. 159. O artigo a que nos referimos - "O Senso Moral de Karsten,
o interessante resumo de doze anos em duas páginas, feito por Fielding no também Chamado Paulo Silva: Considerações a Respeito de um Conto de Lygia Fagundes
Telles" foi publicado na revista Letras de Hoje, da Pontifícia Universidade Católica do
Livro III, Cap. 1, de TomJones, e comparando-o com os entediantes diálo­
Rio Grande do Sul, n? 11, março de 1973, e dele reproduzimos o seguinte trecho: "A dife­
gos de Jean Paul Sartre, nos quais este permite à "sua paixão pelo realúmo tença entre 'unreliable' e 'infiel' é que na palavra inglesa a infidelidade é potencial e
durativo ditar uma cena quando seria adequado um sumário" ,~O aleatória, ao passo que na portuguesa ela aparenta ser amai e consumada. Para efeitos prári­
Também contesta a superioridade intrínseca do "mostrar" sobre o cos, entretanto, essa diferença não tem grande importância, uma vez que pela leitura da
"narrar" (' 'telling" e "showing"), afirmando que, em várias circunstân­ obra só sabemos que o natrador pode mentir ou equivocar-se depois de haver dado mostras
ou indicações disso. A palavra 'infiei' , ali11s, pode também ser entendida de modo abmato,
cias, é muito mais eficaz a narrativa que a dramatização. Salienta ainda a
sem referência a um ato específico, o que a torna mais próxima do inglês 'unreliable'
- falsidade da idéia de que o autor possa realmente desaparecer da ficção: por Mais ainda, a palavra 'infiel' não indica necessariamente a intenção de enganar.
mais velado que ele esteja, deixa perceber o seu controle sobre a narrativa. Dizemos. por exemplo, que uma tradução é infiel quando está em desacordo (om (l origi­
nai, independentemente da boa ou má fé do tradutor. C.Dnfirmando esse entendimento.
define (l Dicionário de Aulete como 'historiador infiel' aquele 'que não exprime a verda­
H'i Wayne C. Booth, The Rhetoríc of Fiction, The University (lf Chicago Press. de', sem referência a intenções. Mais elucidativa aind"_ é a expressão 'memória infiel',
Phoenix Books, 1967. também registrada por Aulete como a que falha, pouco segura, 'que não inspira con­
Gp. cit" p. 154.

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'lO ;~a.nça' ".
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1'ii'''

32 Foco NafTativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 33.


por exemplo, fosse realmente um narrador, seria prejudicada a distância Tal é o caso de certos contos fantásticos de Edgar Al1an Poe, como, por
estética, que tanto contribui para tornar esse livro uma obra-prima. exemplo, •'The TeU-Tale Heart". Observe-se esse tipo de distância no
Booth adequadamente distingue entre os narradores que são meros conto" Alucinação", de Dias da Costa, que termina desta maneira:
observadores e aqueles que são narradores-agentes, estes últimos com
envolvimento que varia numa ampla escala gradativa (pp. 153-54). "Apalpei a pistola no bolso. De repente, vi o diabinho nos lábios de
Outra distinção importante é a que ele estabelece entre os narradores Mariana. Fazia uejeitos de símio, agitava a cauda e ironicamente per­
que mostram consciência do seu papel como escritores ou contadores guntava:
("self-conscious narrators") e os narradores que parecem, ao narrar, estar Por quê?
despercebidos daquilo que estão fazendo (p. 1) 5). Senti uma cólera enorme. Puxei a pistola e disparei duas vezes. Maria­
, .
Os exemplos seguintes, que julgamos oportuno aduzir, ilustram bem na cam sem um gruo.

a figura do 'self-conscious narrator' termo este para o qual propomos a


I I, No céu claro a lua sor.ria um sorriso canalha". 98

tradução narrador aperceptivo. 93


Aponta-se em The Rhetoric ofFiction a possível distância entre o nar·
"É tempo de continuar esta narração, interrompida pela necessidade rador e o autor implícito; entre o narrador e os personagens; entre o narra­
de contar fatos anteriores". 94 dor e as normas do leitor; entre o autor implícito e o leitor; e, finalmente,
"Entremos no coração da Calisto Elói. Cuidava o leitor que não tinha­ entre o autor implícito e os outros personagens (pp. 155-58).
mos que entender com aquela entranha de homem?"9) A mais interessante dessas distâncias é a que pode estabelecer-se entre
"Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o o autor implícito e o narrador. Temos excelentes exemplos desse tipo de
eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação distância nos contos "Haircut", de Ring Lardner, e "Helga", de Lygia
destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à nar­ Fagundes Telles. 99 Pode-se observá-la, a começar das primeiras linhas, no
ração" .96 conto "O Baile do Judeu", de H. Inglês de Sousa:

Booth assinala a distância que pode existir, em vários eixos ou catego­ "Ora um dia lembrou-se oJudeu de dar um baile, e atreveu-se a con­
rias, entre autor, narrador, personagens e leitor. Ela pode estabelecer-se vidar a gente da terra, a modo de escárnio pela verdadeira religião de
num eixo moral, intelectual, etc. Aos eixos mencionados por Booth, gosta­
ríamos de acrescentar o eixo da sanidade, que de modo algum se confunde
com o eixo intelectual ,97 sendo muito importante em certos tipos de ficção. mental, sabe que sua qualidade mais sinistra é uma horrível clareza de detalhe; o ligar de
uma coisa com outra num mapa mais complicado do que um labirinto. Se você discutir com
~3 Narrador aperceptivo porque não só narra como reflete sobre o fato de estar narran­ um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois de muitos modos a mente dele se
do. Percebe as coisas ainda que ficticiamente e apercebe-se de que as está percebendo. move mais rapidamente por não ser perturbada pelas coisas que acompanham o juízo são.
Sobre o sentido da palavra apercepção, que empregamos aqui de maneira mais restrita, veja. Ele não é atrapalhado pelo senso de humor ou pela caridade, ou ainda pelas certezas simples
se, por exemplo. o Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano. trad. pOrto de Alfredo da experiência. Ele se torna mais lógico pela perda de certos sentimentos sãos. Sem dúvida.
Bosi, São Paulo, Editora MemeJou, 1970, p. 67, a frase usual para a insanidade é, a esse respeito, enganadora. O louco nào é o homem que
perdeu a razão. O louco é o homem que perdeu tudo menos a razão" (G.K. Chesterton,
')4 José de Alencar, O Guarani, ediçào crítica de Darcy Damasceno, Rio de
Orlhodoxy, Glasgow, Fontana 8ooks, 1961, p. 19).
Instituto Nacional do Livro, 1958, p. 109.
'1M CO?/tos e Novelas, Seleção de Graciliano Ramos, vol. 2, Rio de Janeiro, Livraria
'J)Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo, Rio deJaneiro, Organização Simões,
Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957, p. 29.
1953. p. 61.
'N "Haircut" está incluído na antologia A Pocket Book o/ Short Slones. organizada
'!6Machado de Assis, Memórú1s Póstumas de Brás Cubas, 2~ ed., Rio por M. Edmund Spear, Nova York, Washington Square Press, Pocket 8ooks, 1973. Nesse
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977. p. 108. conto é patente a distância moral e intelectual entre o autor implícito e o narrador. Em
'J7 A este respeito, é bastante elucidativa a leitura do capítulo' 'The Maniac", inserto ", de Lygia Fagundes Telles, a distância é apenas moral, sendo apresentada com ma·
no livro Orthodoxy, de G,K. Chesterton, do qual extraímos o seguinte trecho: "Quem quer sutileza artística. Está puhlicado em Antes do Bade Verde, Rio de Janeiro, Livraria
que tenha tido a infelicidade de conversar com pessoas no âmaíZo ou na heira da desordem Olympío Editora, 1975.
Foco Narrativo e Fluxo da COnJciênç:ia o Foco Narrativo 35
34
Deus Crucificado ... Era de supor que ninguém acudisse ao convite do No caso citado por Tomachevski, a distância entre autor e narrador é
homem que havia pregado as bentas mãos e os pés de Nosso Senhor intelectual, e a pequena camponesa é, sem o querer, um narrador infiel.
Jesus Cristo numa cruz ... " 100

o livro de Wayne C. Booth é riquíssimo em observações interessantes, g) O Conceito Abrangente de Bór;s Uspensk;
numa pletora que às vezes parece querer fazer explodir o esquema lógico de
sua composição. Em seu livro Poética da ComposiçãolO 3 o crítico russo Bóris Uspenski
trata do ponto de vista na literatura e em outras artes, dando ao termo con­

r siderável amplitude. Assim, consideraêIeque o ponto de vista pode ser


~J:l~Jis~do em vários planos: ºjd~ºJ.Qgico, o fraseológico, o temporal, o
f) B. Tomachevskl: Um Tipo Especial de "Singularização" e~pacial e o psicológico.
Nessa classificação, vemos que o plano que mais diz com o que vimos
As considerações de Booth em relação à distância entre autor e narra­
tratando é o(psic()l~gicol Os outros são, porém, com ele relacionados, sendo
dor levam-nos a uma observação semelhante, feita pelo formailsta russo B.
muito interessàrúe a sua apresentação.
Tomachevski em trabalho publicado em 1925. 101 Segundo Uspenski, a narrativa pode indicar um ponto de vista ideoló­
Tomachevski chama singularização ao tratamento dado a um assunto
gico do próprio narrador, dos personagens, ou da comunidade. Cita dois
para que ele possa emergir do seu caráter ordinário, da sua vulgaridade,
exemplos. Na Rússia pré-revolucionária, o nome de/Deus era sempre escri­
para aparecer como novo ou inusitado! tornando-se literário. 102 to com letra maiúscula, mesmo pelos não-religiosos, indicando uma posi­
O crítico russo aponta como um dos processos possíveis para a conse­
ção ideológica de respeito por parte da comunidade. O outro exemplo
cução desse objetivo a "refração" dos fatos na mente de um personagem.
encontra-se em um autor não nomeado do século XIX, que, fazendo um
E lembra um exemplo, tomado de Tolstói, em Guerra e Paz. Nesse livro, o
relato histórico dos fatos concernentes a uma seita religiosa, faz com que
famoso romancista apresenta uma pequena camponesa q~e, ao descrever
um-dos personagens fale no "serviçoIPseudokclesiástico" dessa seita. O
um conselho de guerra, o faz de maneira ingénua, de acordo com a sua
pelsonagem assume, assim, uma posição, ou ponto de vista, ideológico
mentalidade, sem perceber a verdadeira narureza dos fatos que se passam.
(p. 14).
Como já mencionamos. no prefácio a What Maisie Knew, Henry
Dentro dessa linha de pensamento, poderíamos dizer que Camões,
James se refere ao uso de mentes infantis como' 'reflectores". Vimos tam­
nos Lusíadas, ao se referir ao 'ftorpe ismaelita cavaleiro" (I, 8), assumiu um
bém a referência feita por Wolfgang Kayser ao conto de c.P. Meyer, em
ponto de vista ideológico, que seria evitado se tivesse omitido o adjetivo
que o narrador é um homem simples, incapaz de compreender o signifi­
"torpe' '.
cado dos acontecimentos que narra. O ponto de vista pode também apresentar, segundo Uspenski, varia­
Esses fatos nos ajudam a entender melhor a noção de distância, a que
ções no plano fraseológico. Assim, às vezes, na maneira de falar de um per­
se refere Wayne C. Booth. sonagem há uma expressão que é característica de outro personagem. O uso
de um hipocorístico, por exemplo, por p, :te de um personagem em relação
a outro, com quem ele não tem familiariàade, pode ser irônicc, indicando
1110 Contos e Novelas. Seleção de Graciliano Ramos, vol. 1, Rio de Janeiro. Livraria

Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957. p. 21


o jeito de nomear de outra pessoa.
A este propósito, conviria citar uma passagem de Machado de Assis,
Teorija Literatury (Poetika). Leningrado. 1925, conforme informação de Tlvetan
Todorov, Théorie de la Littératurc, Paris, Édítions du Seuil, p. 310. Nessa coletânea, organi­
que é analisada por). Mattoso CâmaraJr.:
zada por Todorov, está incluída, com o título' 'Thê!matíque", parte da obra acima mencio­
nada, na qual se encontra o assunto a que aludimos. Da coletânea de Todorov há edição
brasileira, organizada por Dionísio de Oliveua Toledo: Teoria da Literatura -- Formalistas 10.\ Valemo-nos da edição norre-americana, revista pelo autor, e publicada sob o
RuSJos, Pono Alegre, Editora Globo, 1970. rítulo A Poeties of Composition. trad _ de Valenrina Zavarin e Susan Wittig. Berkeley,
líll Op. cit.. p. 290. ofCalifornia Press, 1973.
36 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 37:
"Rubião ordenou a um escravo que levasse o cachorro de presente à dos que estão sentados em torno da mesa" (p. 61). Depois essas "cenas
(comadre Angélica, dizendo-lhe que, como gostava de bichos, lá ia separadas se combinam numa cena composta", observando Uspenski que
mais um".I04 •'um procedimento semelhante é comum no cinema" . 106
Outro artifício do ponto de vista espacial é a "visão de um ponto ele­
Nessa passagem percebemos que há uma mudança do ponto de vista vado" .107 Cita-se a seguinte passagem de Taras Bulba, de Gogol: "Os cos­
do autor, narrador de terceira pessoa, para o ponto de vista do próprio per­ sacos abaixaram-se para trás, no dorso de seus cavalos, e desapareceram na
sonagem Rubião, passagem esta que se manifesta no plano fraseológico. vegetação; já não se podiam ver os seus chapéus pretos, e somente o sulcar
Essa mudança se dá pelo uso da palavra "comadre", que só tem'-sentidô da vegetação, rápido como um relâmpago, mostrava os seus movimentos"
em relação ao Rubião. Somente ao Rubião, e não ao autor, caberia o (p. 64). .
chamá-la comadre. Isto nos trás à mente a última cena de O Guaranz~ de José de Alencar,
Uspenski cita o caso do nome de Napoleão, em Guerra e Paz, que ora em que o ponto de vista espacial passa rapidamente de uma posição pró­
é chamado de Buonaparte (depreciativo, uma vez que indica a sua origem xima para uma posição elevada:
não francesa), ora de Bonaparte, ora ainda de Imperador Napoleão, con­
forme vão crescendo os seus triunfos (p. 29). Isso indica uma variação no "Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lím­

ponto de vista dos personagens, expressa no plano fraseológico. pidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo

Outra observação de Uspenski, ainda relativa a Guerra e Paz, é a de soltando o vôo.

que quando Tolstói usa de palavras francesas para descrever os pensa­ A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia ...

mentos de Napoleão adota, momentaneamente, o seu ponto de vista fra­ E sumiu -se no horizonte" . 108

seológico (p. 55).


Uspenski trata ainda da questão do discurso indireto livre, que ele Outro aspecto abordado é o da "cena muda": ao descrevê-la o autor
prefere chamar de "discurso quase-direto", como um problema de ponto se coloca de onde pode ver, mas não ouvir os participantes.
de vista fraseológico. 105 Uspenski trata ainda do ponto de vista no plano do tempo. Citando
Passando à discussão do ponto de vista no plano espacial, observa ini­ Vinogradov, observa que o tempo em "A Dama de Espadas" , de Puchkin,
cialmente Uspenski a situação em que o narrador acompanha o persona­ começa com o pOntO de vista de Lazaveta Ivanovna, a qual o conta a partir
gem, onde quer que ele vá, "assumindo momentaneamente o seu sistema do dia em que recebe a carta de Hermann. O narrador usa esse critério até
ideológico, fraseológico e psicológico" (p. 58), esclarecendo que pode tam­ que a história passa a ser principalmente de Hermann, o qual conta o
bém acompanhá-lo de modo supra-pessoal, sem assumir o seu p0nto de tempo a partir de um momento diferente.
vista no sentido mais estrito. Assim, comenta Uspenski que' 'o narrador pode mudar a sua posição,
Às vezes, também, a personagem é colocada num lugar não definido, tomando emprestado o sentido temporal do primeiro personagem, depois
como na seguinte passagem de Tolstói, em Guerra e Paz: "Natasha! agora de um outro - ou pode assumir a sua própria posição temporal e usar o seu
é a sua vez. Cante para mim alguma coisa', ouviu-se a voz da condessa" próprio tempo, que pode não coincidir com o tempo individual de qual­
(p. 59). quer dos personagens" (p. 66).
Uspenski refere-se ainda a um jantar descrito no mesmo livro, comen­ Ao tratar do ponto de vista no plano espacial e no plano temporal,
tando que ali "a câmera autoral muda seqüencialmente de um para outro Uspenski passa a incluir nessa categoria assuntos que tradicionalmente são
colocados em outros setores da análise crítica: espaço e tempo. Entretanto,
104 Quincas Borba, apudJ. Mattoso CâmaraJr., Ensaios Machadianos, Rio deJaneíro,
Livraria Acadêmica. 1962, p. 28. 106 Ao falar em "câmera autoral", pensa Uspenski numa câmera dirigidà, ao contrá·
rio da câmera de Fried.lT\an, que é desultória.
101 O próprio Uspellski exemplifica com as seguintes frases. Discurso direto: "Ele

protestou e gritou: meu pai te odeia". Discurso indireto: "Ele protestou e gritou que seu 107 "Bird's eye view", na tradução inglesa, p. 63.
a odiava". Discurso quase·direto: "Ele protestou: seu pai a odiava" (op. cit., p. 34. W8 Edição critica de Darcy Damasceno, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro,
nota). 1958, p. 306.
o Foco Narrativo 39
38 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência
Passando para asposiçães autorais na na'!Tativa, vemos que, segundo a
julgamos útil apresentar aqui uma súmula de suas idéias a esse respeito classificação de Uspenski, a posição do autor na narrativa pode ser imutável
porque servem para. sublinhar o íntimo relacIOnamento existente entre
ou pluralista. A posição imutável pode ser coerentemente externa ou C0e­
essas noções e o foco narrativo em sentido estrito.
rentemente interna. A posição pluralista inclui dois tipos: mudança de
A obra de Uspenski atinge, para nós, o ponto de maior interesse
posição autoral em seqüência e uso simultâneo de dife:entes posições.
quando é tratado o pontO de vista no plano psicológico. Definindo esse
Na posição autoral coerentemente externa todos os acontecimentos·
campo, diz ele: "nos casos em que o ponto de vista autoral se baseia na
são descritos objetivamente, não há referências diretas ao estado interno
consciência ou percepção de um indivíduo, falaremos do ponto de vista psi­
dos personagens e não ocorrem verba sentiendi. Essa é a construção caracte­
cológico ... " (p. 81).
rística das obras épicas, diz Uspenski, nas quais as ações são apresentadas
Para Uspenski, há dois processos com positivos básicos - ou meios de
sem a motivação interna, e o mundo interior dos personagens é para nós
descrição do comportamento no plano psicológico - que ocorrem tanto
oculto.
nas narrativas literárias como nas não literárias; ou os acontecimentos são
Na posição autoral imutável coerentemente interna, toda a ação é coe­
descritos de modo tão objetivo .quanto possível, ou se descrevem" do ponto
rentemente apresentada de um só ponto de vista, através da percepção de
de vista deliberadamente subjetivo da consciência de um indivíduo ou
uma pessoa. Só há descrição do estado interno desse personagem: 0S OUtrOS
indivíduos" (p. 81). Trata ainda das diferentes posições autorais, assim
são descritos de fora. Se a história for apresentada do ponto de vista do nar­
como da classificação dos personagens segundo o ponto de vista. Vejamos
rador, usar-se-á a primeira pessoa; se for apresentada do ponto de vista de
esses tópicos.
um personagem particular, será usada a terceira pessoa. Uspenski cita como
Quanto aos meios de descrição do comportamento no plano psicológi­
exemplo O Eterno Marido, de Dostoiévski.
co, analisa Uspenski primeiro o caso em que essa descrição é feita do ponto Na mudança de posição autoral em seqüência, cada cena é descrita de
de vista de um observador externo. Essa descrição externa pode ser feita de
uma particular posição ou ponto de vista, e as diferentes cenas são narradas
duas formas: ou referindo-se a fatos definidos, visíveis ou audíveis; ou
da posição de diferentes personagens. Entende Uspenski que em cada cena
expressando a opinião do observador em relação aos fatos observados,
não deve haver mistura da visão interna de um personagem com a de outro,
quando são usadas frases como "parece que ele pensou", "ele aparente­
e dá como exemplo Gue'!Ta e Paz, de Tolstói, cuja narrativa é estruturada
mente surpreendeu-se", "ela parecia envergonhada". A expressões usadas
com sucessiva alternância. dos pontos de vista de Pierre, Natasha, Nikolay e
dessa maneira, tais como "aparentemente", "evidentemente", "como
alguns outros personagens (p. 90), ressalvando que aí, algumas vezes, se dá
se", •'parecia", etc., Uspenski chama palavras de alheamento (na versão
a alternância de pontos de vista dentro da mesma cena.
inglesa, "words of estrangement", p. 85). Procura significar, assim, que o
Finalmente, pode dar-se o caso que o autor assuma pontos de vista
narrador mostra o seu alheamento em relação ao que realmente se passa no
diferentes não em seqüência, mas simultaneamente. Isto ocorre quando,
íntimo do personagem, esclarecendo que se guia apenas pelos indícios
na mesma cena, temos a visão interna de diversos participantes, formando
externos.
um todo integrado. Uspenski dá como exemplo o capítulo "A Cebola",
Função semelhante à das palavras de alheamento, no sentido de indi­
em Os Irmãos Karamázovi.
car que o narrador não tem pretensões a conhecer diretamente a psique dos
personagens, é exercida pelo posicionamento retrospectivo, que permite a
.l),cla!!ificação.. dos per..sgn.ag~l1f.. JiJ:gKl1!1gQ p()'!to .t!§1JÜt,(LJ,e.dá, para
Uspenski, da 'séguínte f'õrma. Há i::m primdm . l:ygªL9S.R~E~()flagens qtle
alguém saber fatos que seriam ignorados por um observador sincrónico. Tal
se l11P!esªovistQs._de fora, com eventualus()qe expressões de alheamento.
é o caso de frases como "ela veio, como se verificou depois, por outro mo­
Hã os personagens que nunca são descritos do ponto de vista de um obser­
tivo" (p. 85, nota).
vador externo. E há os personagens que são descritos ora de dentro, ora de
O outro tipo é do observador interno, que apresenta o estado de âni­
fora (p. 97).
mo do personagem. A narrativa neste caso ou é feita pelo próprio persona­
Essas são as características principais de sua análise do ponto de vista
gem, em primeira pessoa, ou, em terceira pessoa, por um narrador onis­
no plano psicológico.
ciente que, por uma convenção, se admite possa penetrar na mente dos
personagens. Temos então o uso de verba sentiendi: eu pensei, senti, reco­
nheci, sabia, etc., ou ele pensou, sentiu, pareceu a ele, etc.
40 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 41
Sugestões para uma Nomenclatura' mais Precisa "Você pôs o pé esquerdo ... Você desliza através da estreita abertura ...
Seus olhos estão apenas meio abertos ... "112
Procuramos, nesta última parte, recapitular, à maneira de epílogo,
alguns dos principais fatos discutidos, com a adução de novos exemplos, a A narrativa em terceira pessoa pode assumir várias formas, que discrí­
fim de esclarecer e sumariar em quadro metódico as sugestões. apresen­ minaremos a seguir. Distingue-se fundamentalmente da narrativa em pri­
tadas anteriormente de maneira desultória. relativas à terminologia do foco meira pessoa porque nesta o narrador é também personagem (com maior
narrativo, ou ponto de vista na ficção. ou menor grau de participação nos acontecimentos), o que não ocorre na
Como vimos, a narrativa pode dar-se sob duas formas: cena e sumá­ narrativa em terceira pessoa, em que o narrador é como uma figura invisível
rio. lIl') Cena é a narrativa dos fatos na sua seqüência temporªljmediata. em relação aos participantes dos acontecimentos, sendo convencional­
podendo incluir diálogos ou não. No seguinte trecho, do -cq!serto)contista mente capaz de, sem estar presente, descrever os fatos que se passam.
brasileiro Roberto Fontes Gomes, há cena, sem haver diálogo: relacionando-os, se necessário, com eventos anteriores. Há um gênero
misto quando o narrador em terceira pessoa diz que soube dos fatos através
"Acordou sobressaltado. Imediatamente tornou-se atento e pressen­
de um ou mais personagens da história: nesse processo ele vai também se
tido. Acostumou-se com a pouca luz do quarto. Olhou pára o relógio
tornando personagem.
digital sem tirar a cabeça do travesseiro. Quatro horas. Lá fora o silên­
Podemos admitir como primeiro caso da narrativa em terceira pessoa a
cio. Dentro, de vez em quando, um estalido lúgubre.
onisciéncia neutra externa. Temos aí um narrador, não participante, que
Permaneceu imóvel. Apavorado. Um presságio qualquer, em forma
revela conhecimento apenas dos fatos exteriores. Se se referir eventual­
de tremor, fazia-lhe contorcer os lábios 110
I I • mente à psique dos personagens deverá usar palavras de alheamento, para
indicar o seu estrito conhecimento dos fatos externos objetivos (por exem­
Sumário é a concentração em narrativa relativamente curta de fatos plo, "ela parecia envergonhada", "ele respondeu como se estivesse domi­
que ocorreram em períodos de tempo mais longos: nado por um sentimento de ódio"). Veja-se o seguinte trecho de um conto
que é todo dialogado, sem a intermissão de qualquer comentário nesse
"Há cerca de dezesseis anos, desembarcava no Rio de Janeiro, vindo caso, até mesmo sem qualquer descrição - do narrador:
da Europa, o sr. Camilo Seabra, goiano de nascimento, que ali fora
estudar medicina e voltava agora com o diploma na algibeira e umas " - Cansei de manter as aparências, padrinho. Agora eu conto. Há
saudades no coração" .111 cinco anos sofrendo. Não acho mais graça no João.
- Quis matar a Maria - aparteou a velha Eponina.
A narrativa pode se fazer em primeira pessoa, em terceira pessoa e até - Todo mundo gosta de mim. O padrinho achou uma pena eu ter
mesmo, como vimos, em segunda pessoa, sendo este último tipo, porém, casado" . 113
raro e extravagante:
Se o narrador viesse a fazer comentários sobre os fatos externos que
apresenta, teríamos um tipo de narrativa que deveria ser denominado" onis­
ciência externa interpretativa". Quanto à objeção que poderia ser feita ao
uso do termo ,"onisciência" com restrições, que à primeira vista parece con­
traditório ou oximorônico, pode-se responder que nesse caso o narrador
Essa distinção. sobre que insistiu Petcy Lubbock, foi feita inicialmente pelo crítlCo sabe tudo o que se circunscreve num âmbito de determinada limitação.
alemão Otto Ludwig, em 1891, segundo informa Franz Stanzel: Narratíve Situatiom ln the
Novel, trad. ingl. deJames P. Pusack, Bloomington, Indiana University Press, 1971, p. 22.
Roberto Fomes Gomes, Condição de Angústia. São Paulo, Edições H. 1977, 12 Michel Butor, ÚI Modi[ication (Paris, 1(57). apudWayne C. Booth, The Rhetoric
p. 15. o[Fiction. The University of Chicago Press. Phoenix Books. 1967, p. 150. nota.
III Machado de Assis. Histôniu da Meia Noite. Crítica, Rio de Janeiro. Civili· 11.\ Dalton Trevisan. A Guerra Conjugal. 4~ ed., Rio deJaneiro. Brasilei·
zação Brasileira. 2 a ed" 1977. p. 47. ra. 1975.
42 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 43
.Nd àmlciência neutra plena (ou seja, externa e interna), o narrador Chamamos de onisciência imediata aquela em que, ~Jk~Ç~grios
não só descreve os fatos exteriores como também o que vai na mente dos do narrador, os pensamentos dos personagens são apresentados de forma
personagens, abstendo-se de fazer comentários. É o que ocorre, por exem­ cênica, como se estivessem ocorrendo naquele momento. A onisdência
plo, em O Continente, primeira parte da trilogia O Tempo e o Vento, de imediata poderá ser simples, se somente for apresentada assim a consciên­
Érico Veríssimo, de onde extraímos o trecho que se segue: cia de um único personagem, na qual se dramatizarão todos os aconteci­
"Bibiana escutava com atenção, ao mesmo tempo que em pensa­ mentos. É o caso do Retrato do Artista QuandoJovem, deJamesJoyce, do
mentos fazia comentários à oração do padre. Render graças a Deus? qual transcrevemos o seguinte trecho:
Sim. Deus lhe dera um neto que era um homem de bem. Por outro
lado, porém, Deus também lhe fizera 'boas': matara-lhe o marido na "Wells tinha contado que os alunos tinham bebido o vinho que esta­
flor da idade e deixara que os Terras passassem dificuldades" .114 va no armário da sacristia, e que tinham sido descobertos pelo bafo.
Teriam eles roubado uma custódia e teriam fugido para a uem ven­
Na onisciência interpretativa, que geralmente é externa e interna, der a qualquer parte? Devia ser um horrível pecado entrar lá sem
mas que teoricamente poderia ser apenas externa, temos o narrador de ter­ fazer barulho, à noite, abrir o armário escuro e roubar aquela coisa
ceira pessoa que não só dá ao leitor todas as informações sobre os aconteci­ dourada e coruscante na qual se expunha Deus sobre o altar, no meio
mentos, como também se permite fazer comentários acerca deles: de flores e de castiçais, durante a bênção, enquanto o incenso subia
em nuvens de ambos os lados ... "117
"A cidade ainda falava a outras tradições do velho Brasil. Sobre o ter­
reno acidentado, sulcos abertos e profundos indicavam a passagem do A onisciência imediata será múltipla se, alternadamente, no mesmo
homem terrível que por ali desentranhou o ouro. A paisagem está livro, forem apresentadas, seguindo esse método, as consciências de mais
toda marcada de cicatrizes das feridas da terra, que assim maltratada de um personagem. Tal é o caso da obra Mrs. Da//oway, de Virginia Woolf,
e hedionda clama às gerações de hoje contra a devastação do passado. a qual procura transpor para as suas páginas, sem comentários, e com míni­
O homem moderno, limpo de coração, não deixará de sentir um frê­ mas indicações autorais, a consciência de vários personagens, como a pró­
mito de terror, reconstruindo no espetáculo daquela paragem morta pria Mrs. Dalloway, Peter Walsh, Rezia Smith, Lady Bruton, etc. Vejamos
todo o quadro de uma época feita de escravidão, de ouro e de um trecho em que se descrevem cenicamente os pensamentos desta última:
sangue... "11)
"Quem visse esses homens, assim ocupados em marcarem com o selo "Lady Bruton preferia Richard Dallow naturalmente. Era feito de
de sua inteligência todos os conhecimentos; em ligar seu nome, não já material muito mais fino. Mas não deixava que criticassem o seu
à religião, mas à história, à geografia, à política, à filosofia e até às pobre querido Hugh. Não podia esquecer a sua bondade: fora real­
artes; não se admiraria que, unidos pelo mesmo pensamento e diri­ mente muito bom ... não se lembrava em que ocasião. Mas mostrara­
gidos por uma só vontade, h()uvessem criado a ordem poderosa que, -se muito bom, mesmo ... "118
espalhando-se pelo mundo, dominou os tronos, curvou os reis, e
lu tou com os governos das nações mais fortes" . 116 Após a classificação dos tipos de narrativa em terceira pessoa, devemos
analisar as narrativas em primeira pessoa. Estas caracte:'izam-se pela natu­
reza do narrador.
Nas narrativas em terceira pessoa, "autor" e "narrador" são te;:mos
114 Érico VerlSsimo, O Tempo e o Vento. I (O Continente), 7 ~ ed., POrto Alegre. Edi.

tora Globo, 1956. p. 5)2. Referimo-nos ao corpo da obra, e não aos poemas em prosa inter­ equivalentes, desde que se entenda por' 'autor" não a sua figura humana,
calados.
11 \ Graça Aranha. Chanaan, 1O~ ed., Rio de F. Briguiet & Cia, Editores. 117 JamesJoyce, Retrato do Artista QuandoJovem, tL'd . porto de Alfredo Margarida,
1949. p. 35.
Lisboa. Edição "Livros do Brasil", s/data, p. 52.
1(, José de Alencar, As Minas de Prata, nova edição. revista por Mário de Alencar. Rio Rio de Janeiro, Editora
118 Virginia Woolf, Mrs. Da/loway, trad. de Mário
deJaneiro. Livraria Garnier. 1926, vol. I, p. 91. Nova Fronteira, 1980, p. 101.
44 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 45
em carne e osso, mas o "autor na obra", o homem que assume uma posi­ Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia,
ção literária. que afivela uma máscara para se dirigir ao leitor. Por isso é que num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de
são aceitas expressões como "autor onisciente", "interferência do autor" carinho que é o regime do amor doméstico ... "
ou "intrusão autoral" - para indicar os comentários que este faz na onis­
ciência interpretativa - e outras semelhantes. O narrador observador, que se encontra freqüentemente nas histórias
Ao tratarmos da narrativa em primeira pessoa é preciso um maior cui· policiais, pode ser visto no conto "Uma Senhora", de Machado de Assis, o
dado, pois não podemos ignorar a possibilidade da distância entre o narra· principia desta maneira:
dor e o autor - nesse caso preferentemente chamado de "autor
implícito". É verdade que tal distância pode também inexistir, "reduzir-se
a zero", como diz Todorov. 1ilJ É o que ocorre, por exemplo, no conto "Nunca encontro esta senhora que me não lembre a profecia de uma
"Onde Andará Esmeralda", de Joel Silveira,120 onde se sente perfeita­ lagartixa ao poeta Heine, subindo os Apeninos: 'Dia virá em que as
mente a identidade existente entre o narrador e o autor implícito. Embora pedras serão plantas, as plantas animais, os animais homens e os
para perceber-se isso o ideal fosse a leitura de todo o conto, o trecho se­ homens deuses'. E dá-me vontade de dizer-lhe: - A senhora, D.
g~inte bastará para indicá-Ia: Camila, amou tanto a mocidade e a beleza, que atrasou o seu relógio,
a fim de ver se podia fixar esses dois minutos de cristal. Não se descon­
sole, Dona Camila. No dia da lagartixa, a senhora será Hebe, deusa
"Mas, inexplicavelmente, Esmeralda me domina o pensamento. da juventude ... " I l l
Vejo-a menina e lambuzada, rastejando na lama da rua, vejo-a cor­ {
rendo pela capineira verde e grande, vejo os seus cabelos brilharem ao
Nesse contO, aliás, temos um exemplo de foco narraÚvo mutante,
sol - como teriam sido os cabelos de Esmeralda? depois, vejo-a
porquanto o narrador- observador passa, em alguns momentos, a autor
operária da fábrica de tecidos, bonita mas anêmica, os seios pequenos
onisciente, descrevendo fatos que normalmente não poderia ter presen­
fracos, as faces pálidas e aos meus ouvidos chega, misteríosa e
soturna, a estranha música dos teares, que nunca se cansam. Onde ciado, como na seguinte passagem:
.--..., ......

andará Esmeralda? O mundo é vasto, os caminhos são muitos e se


embaralham, milhares são as tentações e as armadilhas onde " Mas que é você acha de mau no Ribeiro? perguntou-lhe o

andará Esmeralda?" mariM:, uma noite, à janela.

~}ra Camila levantou os ombros. Acho-lhe o nariz torto,

dissll". Il\

As narrativas em primeira pessoa são basicamente de dois tipos: pode­ 't


mos ter o narrador observador e o narrador protagonista, conforme o seu
grau de participação na ação. É claro que entre o narrador observador e o Temos ainda o caso de narrativa em primeira pessoa que chamaremos
narrador protagonista pode haver posições intermediári~. de registro casual, citando o já comentado caso das linhas iniciais de
Encontramos o caso do narrador protagonista, por exemplo, no Goodbye to Berlz'n:
romance O Ateneu, de Raul Pompéia:
"Sou uma câmera, com o obliterador aberto, registrando de maneira
"'Vais enCOntrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. absolutamente passiva, sem pensar. Registrando o homem que se
Coragem para a luta:
1,1 Raul o Atmeu, 7~ ed .. Rio de Janeiro. Livrada Francisco Alves, 1949,
p. 5.
119 O. Ducrot e T. Todorov, Dictionnaire EncycloPédique des Sciences du Langage,
Paris, Éditions du Seuil. 1972, p. 415. III Machado de Assis, Histórias Sem. Data, Crítica, Rio Civilização
2~ ed .. 1977. p. 138.

120 Contos e Nove/as, Seleção de Gracíliano Ramos. vol. 2, Rio de Janeiro, Livraria

Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957, pp. 16-9. m Op. cit., p. 140-41.

46 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 47


barbeia na janela oposta e a mulher de quimono que lava os noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se mistu­

cabelos" .114 ram à realidade e me produzem calafrios.

Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece­

Se, quanto ao grau de participação do narrador nos acontecimentos, a -me que eles cresceram muito ... "128

narrativa de primeira pessoa pode ter o narrador protagonista, o narrador


observador e o registro casual (em que o narrador teoricamente se anula), O narrador de primeira pessoa pode, às vezes, fazer um esforço para
quanto ao tom empregado pode basicamente ser objetiva, interpretativa, dar aparências de veracidade à sua história:
ou impressionista.
O tom objetivo não é muito comum, porque o narrador de primeira "Era em 1851.

pessoa tende a fazer comentários. É eficaz, entretanto, quando os fatos são Apresso-me a declarar que, no tocante a nomes e localidades, desfigu­

suficientemente interessantes em si próprios, ficando para o leitor o tirar as rei tudo, salvo generalidades vagas e o lugar em que principia a narra­

conclusões. Pode-se ver, por exemplo, em contos de Guy de Maupassant, tiva. O que menos monta na- exatidão da história é o que aí se ílide.

como "Un Réveillon", l2l em que, no fim, o leitor se surpreende com um


Nomear pessoas e terras seria denunciar inutilmente um crime. O cri­

fato inesperado. Ocorre na famosa história Chuva, deSomerset


minoso está diante do Juiz inapelável, e seus filhos inocentes

Maugham. 126
respeitam-lhe a memória". 129

Na narrativa de primeira pessoa interpretativa, o narrador comenta os


fatos, ou os deforma, imprimindo-lhes conscientemente um colorido sub­
Mais geralmente, descuida-se inteiramente disso, e em certos casos
jetivo. É muito comum em Machado de Assis:
situa-se num plano inteiramente fantástico, de impossível credibilidade:
"A minha idéa, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéa fixa.
"Muitos homens, e até senhoras distintas, já receberam a visita do
Deus te livre, leitor de uma idéa fixa; antes um argueiro, antes uma
Diabo, e conversaram com ele de um modo galante e paradoxal. Cen­
trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéa fixa da unidade italiana que o
tenas de escritores sem assunto inventaram uma palestra com o
matou" . 117
Diabo. Quanto a mim, o caso é diferente. Ele não entrou subita­
mente em meu quarto, não apareceu pelo buraco da fechadura; nem
Finalmente, pode haver a narrativa de primeira pessoa impressionista,
sob a luz vermelha do abajur. Passou um dia inteiro comigo. Desce·
em que o narrador imprime aos fatos um colorido subjetivo espontâneo,
mos juntos o elevador, andamos pelas tuas, trabalhamos e comemos
caracterizado pela ausência de elaboração consciente. Veja-se o início do juntos" .!lO
romance Angústia, de Graciliano Ramos:
Nas narrativas em primeira pessoa pode ocorrer a figura do narrador
"Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me res­
infiel. Este é o narrador que nós percebemos que mente deliberadamente,
tabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas
ou que faz uma falsa idéia dos fatos que descreve, ou que tem de si mesmo
um conceito diferente daquele que lhe é atribuído pelo autor implícito,
ou, enfim, que se distancia deste em um ou mais eixos de comparação.
124 Christopher lsherwood, Goodbye to Berlin, em Tlie Berlin Stories, Nova York,
New Directions Paperbacks, p. 1.
123 Gracilíano Ramos, Angústia, 7 ~ ed., Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Edi·
12) Guy de Maupassant, Contes et Nouvel/es, Paris, Librairie Larousse, vaI. I,
pp. 21-6. tora, 1955. p. 5.
12'1 Camilo Castelo Branco, "Gracejos que Matam", em Novelas do Minho.
Incluída na coletlinea A Pocket Book 01 Short Stofies, org. por Edmund Speare,
126
Nova York, Washington Square Press, 1973, pp. 124-64. crítica org. por Maria H.M. Mateus, Lisboa, Centro de Estudos Filológicos, 1961, p. 7.
1>0 Rubem Braga, "Eu e Bebu na Hora Neutra da Madrugada". ln Contos e Novelas.
127 Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Edição Crítica, Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2~ ed., 1977, p_ 103. Seleção de Graciliano Ramos, vaI. 2, Rio de Janeiro, Livraria Editora da Casa do Estudante
do Brasil, 1957, p. 33.
48 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Foco Narrativo 49
Assim, vemos que na história "Haircut", de Ring Lardner, a que já I'Convidamos o leitor para escutar a conversação entre Gonçalo Men.
nos referimos, o narradnr não chega a perceber aquilo que o leitor nota des, o abade beneditino e o mui reverendo cônego de Lamego. Martim
através de suas palavras: a ocorrência de u.m assassinato. Evidencia·se assim Eicha. Pode ouvi·los agora". m
a sua pouca inteligência, a qu.al se alia a uma manifesta incultura, que se "Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou
deixa perceber em grosseiros erros de linguagem. Assim, a inteligência do pelo fim. isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
narrador é infiel à do seu criador, o autor implícito. minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento,
No romance A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, Bl notamos duas considerações me levaram a adotar diferente método ... " 134
que há uma enorme distância moral entre o narrador, que é um delin·
qüente juvenil, e o autor implícito, que nos deixa ver, através das palavras Este quadro terminológico, evidentemente, não esgota o assunto. O
do narrador, a sua visão do mundo. problema é muito complexo para ser contido em algumas definições. Úteis
A existência de urna distância moral e intelectual entre o narrador e o como sejam, as classificações não podem abarcar plenamente, na sua limi·
autor implícito pode ser vista nesta passagem de um romance de Eça de tada amplitude, a exuberância característica não só da natureza, como tam·
Queirós, em que se nota, no elogio parvo e imoral que faz o narra,dor a um bém da literatura e da arte.
seu pretenso biografado, o sarcasmo do autor implícito:

''já então (o Conde d' Abranhos) revelava o seu gosto pelo luxo, pelas
largas habitações tapetadas, pelo serviço harmonioso de lacaios disci·
plinados. A pobreza e os seus aspectos era·lhe odiosa. Quanta vez,
mais tarde, quando ele subia o Chiado pelo meu braço, eu me vi for·
çado a afastar com dureza os pobres que à porta do Baltresqui ou da
Casa Havanesa vinham, sob o pretexto de filhos com fome ou de
membros aleijados, reclamar esmola; o Conde, se os via muito perto,
'ficava todo o dia enjoado'. Todavia a sua caridade é bem conhe·
cida, e o Asilo de S. Cristóvão, a que em parte deveu o seu título, aí
está como um atestado glorioso da sua magnanimidade" .132

Finalmente, desejamos fazer uma referência ao narrador aperceptivo.


Quer em narrativas de primeira pessoa, quer em narrativas de terceira peso
soa, o narrador pode fazer referências ao ato de narrar, que está praticando,
ou omiti·las completamente. No primeiro caso temos o narrador apercep·
tivo, que poderá ser observado nos seguintes exemplos:

131 Anthony Burgess, A C/ockwork Orange, Nova York, BaUantine Books, 1965. Em
português, A Laranja Mecíil2ica, trad. de Nelson Damas, Rio de Janeiro, Editora Artenova
S.A., 1977. Veja-se Alfredo Leme Coelho de Carvalho, "As Distopias de Anthony
Burgess", Revista de LetraJ, Assis, vol. 15, 1973, pp. 9-34. Ul Alexandre Herculano, O Bobo, Lisboa, Livraria Bertrand, 24~ ed., s/data, p. 55.
III Eça de Queirós. O Conde d'Abranhos: Notas Biográficas por Z. Zaga/o, Porto, 134 Machado de Assis. Mem6rias Póstumas de Brás Cubas, Edição Critica, Rio de
Lello & Irmão Editores. 1951, p. 49. Janeiro. Civilização Brasileira, 2~ ed., 1977, p. 99.
o Fluxo da Consciência como
Método Ficcional

Muito ligado ao problema do foco narrativo é a apresentação, na obra


ficcional, do chamado "fluxo da consciência". Trata-se, na verdade, da
especialização de um determinado modo de foco narrativo. Pederíamos
definir o método como a apresentação idealmente exata, não analisada, do
que se passa na consciência de um ou mais personagens.
A crítica literária apropriou-se do termo "stream of consciousness"
(ou ainda "stream of thought" e "stream of subjective life"), criado pelo
psicólogo WilliamJames, para exprimir a continuidade dos processos men­
tais, cuja representação tem sido buscada por alguns ficcionistas.
William James criou esse termo para indicar que a consciência não é
fragmentada em pedaços sucessivos, não há junturas, mas sim um fluxo
contínuo.'
Em psicologia o termo' 'consciência" é aplicado em sentido abran·
gente, incluindo os processos psíquicos subjacentes aos plenamente cons­
cientes. Sendo a sua definição difícil, Ledger Wood cita a explicação cir­

1 "Consciousness, then, does not appear to itself chopped up in bits. Such words as
'chain' or 'train' do nor describe it fitly as ir presents irself in the fim instance. It is
nothing joimed; ít flows. A 'river' or a 'stream' is the metaphor by which ir is mOSl
naturaJly described. ln talking of Ít hereafter, ler us call it the 5tream of thought, of
consciousnes5, or of the subjective life" (William James, Principies ofPsychology, Chicago •
• William Benton, Publisher, 1955, p. 155).
52 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Fluxo da Consciência como Método Ficcional 53
cunstancial de Ladd: "Tudo aquilo que somos quando estamos acordados, Na verdade, porém, Scholes e Kellogg, embora apontando as origens
em contraste com o que somos quando mergulhamos em sono profundo e
sem so nhos, isto significa estar consciente". Z À qual se poderia acrescentar
, psicológicas do termo "stream of consdousness", não descartam o seu
emprego na crítica literária, tanto que dizem, mais adiante, que o reserva­
o que diz Brugger: "Cabe falar em graus de consciência na medida em que rão, em seu estudo, "para designar qualquer apresentação na literatura dos
uma vivência, apenas notada, se introduz na alma, ou é totalmente adver­ padrões de pensamento humano que sejam ilógicos, não gramaticais e
tida".3 Ficaria incluído ainda no sentido de "consciência" aquilo a que principalmente associativos", sejam eles "falados ou não falados".
este último autor prefere designar como "subconsciência", isto é, o "do­ Por outro lado, definem "monólogo interior" como "a apresentação
mínio imprecisamente delimitado dos processos psíquicos fracamente cons­ direta e imediata, na literatura narrativa, dos pensamentos não falados de
cientes", juntamente com os "inconscientes no sentido próprio". um personagem, sem a intervenção de narrador". Afirmam ainda que,
Pela própria definição deJames, e pela abrangência do termo "cons­ pelo fato de nós encontrarmos monólogo interior e fluxo da consciência
ciência" , entende-se a ligação que tem sido feita desse método, respectiva­ juntos em autores famosos do século atual, como James Joyce e Virginia
mente, com a filosofia de Bergson4 e com a psicanálise de Freud. 5 Woolf, deixamos com facilidade de fazer distinção entre as duas coisas,
Ao traduzirmos "stream of consciousness" como "fluxo da consciên­ sendo porém um fato que o monólogo interior é antiquíssimo, remontando
cia", em português, seguimos o precedente do Prof. Massauâ Moisés. 6 a Homero. 9 Um dos exemplos por eles citados é o seguinte trecho de Apoló­
Embora seja mais bem soante, parece-nos menos adequada a expressão nio de Rodes, poeta grego do segundo século antes de Cristo:
"corrente da consciência", dada a sua ambigüidade. A palavra "corrente"
pode sinonimizar com fluxo, correnteza (' 'stream") e com cadeia "Como sou infeliz. Devo encontrar o mal para onde quer que me
("chain"), formada de elos. Ora, este último sentido é expressamente con­ dirija? Todas as alternativas deixam o meu coração ferido, e não há
denado por William James, como vimos, em sua definição. remédio para esta 'dor, que não se extinguirá nunca ... Como poderia
Freqüentemente as denominações "stream of consciousness" e monó­ eu preparar uma poção mágica sem que meus pais o soubessem? Que
logo interior7 têm sido usadas como sinónimas. Scholes e Kellogg, entre­ história lhes diria? "!O
tanto, advertem que, enquanto a primeira "é propriamente antes um ter­
mo psicológico que literário", a segunda é, de fato, um termo literário, Scholes e Kellogg dedicam razoável parte de seu livro à evolução do
"sinónimo de solilóquio não falado". 8 monólogo interior, sempre distinguindo-o do fluxo da consciência, com o
qual pode ou não coexistir, a seu ver, no mesmo trecho.
Não é esse, porém, o sentido que tem sido costumeiramente dado à
2 ln Dagobert R. Runes Dictionary o/ Philosophy, Ames. Iowa, Littlefield,
Adams & Co., 19~6, p. 64,
expressão 'monólogo interior". Como diz Melvin Friedman, "críticos têm
I

usado 'monólogo interior' e 'fluxo da consciência' quase indiscrimina­


3 Walter Brugger. 5J., Diccionario de Filosojfa, trad. esp., Barcelona, Editorial
damente. Os que escrevem em inglês geralmente preferem o último termo,
Herder, 19:>3, verbete "Conciencia" , p. 67.
e os que escrevem em francês invariavelmente usam o primeiro, talvez por­
4 Shiv K. Kumar, Bergson and the Stream o/Conscioumess Nove/. Nova York. New
York University Press. 1963.passim.
que não haja nenhum equivalente direto da expressão 'stream of conscious­
ness' em francês" .11
5 Frederick J. Hoffrnan, Freudianism and the Literary Mind, Nova York, Grove Press,
Inc., Fim Evergreen Edition, 1959, pp. 128-31.
Em português, a tendência é também para o uso indiscriminado da
denominação "monólogo interior", o que, evidentemente, pelo que já foi
6 A Criação Literária, 2~ ed., São Paulo, Edições Melhoramentos, p. 179.
7 O termo" monólogo interior" (" le monologue intérieur") foi criado pelo crítico
francês Valéry Larbaud num prefácio feito para a segunda edição do romance Les Lauriers
Sont Coupês, de Édouard Dujardin, obra publicada originalmente em 1888 e na qual Joyce cit" pp. 177-78.
disse ter-se inspirado para o uso que veio a fazer do fluxo da consciência em U/ysses. V. Leon 10 O trecho - com tradução para o inglês de R. Scholes, da qual nos valemos - é
Edel, The Psychological Novel, Londres, Rupert Hart Davis, 1955, p. 30. mais longo, mas pareceu-nos desnecessário reproduzi-lo na integra. Op. eit., p, 284.
8 R. Scholes & R. Kellogg, The Nature of Narrative, Londres, Oxford University Melvin Friedman, Stream o/ Consciousness: a Study in Literary Method, New
Press, 1976, p. 177. Haven, Yale University Press, 1955, p. 2.
54 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Fluxo da Consciência como Método Ficcional 55
"

exposto, cria confusões que devem ser evitadas. Uma das razões para que se Joyce preferiu não colocar pontuação, certamente para aumentar a
faça a distinção é ser o monólogo interior de uso antiquíssimo, não equiva­ ifllP!~são de fl!:l1<.9, mas o leitor mentalmente a faz, ao d~codífiCâro
~'
lendo, portanto, a fluxo da consciência. Outra é que, dentro da classifica­ trecho: Aaüsêócia de pontuação não é, pois, um elemento necessário.
ção que passaremos a expor, pode haver fluxo da consciência sem que haja Outros autores, inclusive o próprio Joyce, em trechos semelhantes, têm
monólogo interior propriamente dito. preferido manter o uso da pontuação. Veja-se como o trecho seguinte, de
Por outro lado, não pretendemos analisar aqui casos de monólogo Lygia Fagundes Telles, se enquadra muito bem nessa técnica:
interior dissociados do fluxo da consciência. Sempre que nos referirmos a
"monólogo interior", teremos em mente apenas aquele que, correspon­ "Erajr_p~QSaQdD na rotina do dia: banho. Ginástica. O certo seria
dendo a estados de consciência pré-verbais, for apresentado de forma trun­ fazer a ginástica antes mas devia estar com a pressão baixa, precisava
cada, ou caótica, ou meramente associativa. de água quente para o estímulo inicial. Embora passageiro. 'Ai meu
O crítico norte-americano Robert Humphrey, em obra famosa, que Pai'. Almoço com a mãe, como estaria ela? Péssima, naturalmente.
não pode ser ignorada, relaciona quatro técnicas fundamentais que, a seu Não esquecer de pedir a chave do carro, dia-sim dia-não Lia vinha
ver, podem ser usadas para a apresentação do fluxo da consciência: monó­ pedir aquela chave, por sorte a mãe era vagotônica, não lembrava que
logo interior direto, monólogo interior indireto, descrição por àutor onis­ já tinha emprestado na véspera. 'Queira Deus que Lião não seja me­
ciente e solilóquio. II Esse esquema, com modificações, servirá de base para tralhada dentro dele'. Faculdade. Fabrizio devia estar por lá atiçando
a classificação que proporemos a seguir. a greve. Laçá-lo para um cinema, festival Greta Garbo, ih, paixão
por essa mulher" . 14 •

Monólogo Inferior Livre É um monólogo da personagem Lorena. A interferência autoral é mí­


nima, vagamente sentida na expressão' 'era ir pensando". Os pensamentos
É aquele que é apresentado com mínima interferência do autor. Cita­ se sucedem de maneira associativa, e não em ordem lógica. Dada a ligeira
remos como exemplo o seguinte trecho do famoso monólogo de Molly interferência da autora, a técnica é menos pura que a do monólogo de
Bloom, na parte final do Ulysses, de James Joyce, monólogo esse que se Molly Bloom.
~.
estende, sem qualquer pontuação, por muitas páginas:

ele era tão alinhado naquele tempo tentando parecer como Lord
I I •••
Monólogo Inferior Orienfado
Byron que eu dizia que gostava embora ele fosse bonitinho demais
para um homem e ele era um pouco antes da gente ficar noivos embo­ É o tipo de monólogo interior em que o autor onisciente apresenta
ra ela não tivesse gostado muito no dia que eu estava em maré de rir à material não falado, e por essa razão truncado, ou falho quanto à coerên­
toa que eu não podia parar a ponto de meus grampos caírem um a um cia, orientando o leitor para as circunstâncias em que ele se dá, dando,
com o monte de cabelos que eu tinha você está sempre se rindo me porém. a impressão de que é apenas a consciência do personagem que está
disse ela sim porque isso azucrinava ela porque ela sabia o que isso sendo mostrada.
queria dizer porque eu costumava contar a ela um pouco do que se Deve apresentar marcas estilísticas que caracterizem o pensamento
passava entre nós não tudo mas o bastante para deixar ela com água desse personagem. Preferimos a denominação "orientado", evitando o
na boca mas isso não era culpa minha ela nunca mais deu as caras termo "indireto", a nosso ver menos preciso, e sujeito a objeções. 15
depois que a gente se casou ... "13

14 Lygia Fagundes TelJes, As Meninas, 2~ ed., Rio de Janeiro, LivrariaJosé Olympio


12 Robert Humphrey, Stream of Consciousness !'n the Modem Nove/, Berkeley, Editora, 1974. p. 94.
University of California Press, 1968, p. 23.
15 Dorrit Cohn aponta incoerência no uso que Robert Humphrey faz da palavra
13 James Joyce, Ulisses, trad. de Antônio Houaiss, Rio de Janeiro. Editora Civilização "indirect", e termina dizendo: "The rendering of a character's thoughts in third person
Brasileira, p. 799. cannot be direct (only direct quotation cao be); but neither is it indirect, since the act of
56 Foco Narralivo e Fluxo da Consciência o Fluxo da Consciência como Método Ficcional 51
Veja-se na passagem de Clarice Lispector que transcreveremos a seguir amiga Cissy] que não tinham forma nem contorno (o atrevimento
como o leitor é orientado para os fatos externos, para a situação, ao mesmo dela!) porque ele tinha olhos na cara para ver a diferença por si
tempo que é usado um estilo que caracteriza o personagem, apresentando­ próprio" ,18
-se a seqüência não lógica dos seus pensamentos:
Observe-se, no exemplo acima, o caráter associativo da seqüência de
"Seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que, já d'entrada, lhe pensamentos, a sua expressão truncada, e o estilo pessoal da personagem. {
fizera subir a mostarda ao nariz. Logo d entrada percebera-a sentada a
I Parte do material apresentado corresponde ã descrição de fatos objetivos
uma mesa com seu homem, toda cheia dos chapéus e d'ornatos, loira que ocorriam no momento.
como um escudo falso, toda santarrona e fina - que rico chapéu que Nos dois exemplos citados, nota-se que o autor manteve o mesmo
tinha! - , vai ver que nem casada era, e a ostentar aquele ar de santa. estilo para a parte descritiva e para a parte não descritiva. No trecho de \
E com seu rico chapéu bem posto. Pois que bem lhe aproveitasse a Clarice Lispector, em "seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que, já
beatice! e que se lhe não entornasse a fidalguia na sopa! As mais san­ d' entrada, lhe fizera subir a mostarda ao nariz" já vemos o estilo caracterís­
tazitas eram as que mais cheias estavam de patifaria. E o criado de tico dos pensamentos da jovem portuguesa.
mesa, o grande parvo, a servi-la cheio de atenções, o finório: e o Quanto ao trecho de James Joyce, a interpretação de •'Tantum ergo
homem amarelo que a acompanhava a fazer vistas grossas" . 16 sacramentum" como "Tantumer gosa cramen tum", assim como a excla­
mação "o atrevimento dela!", é puro pensamento de Gerty, mas todo o ."
Nesse trecho, a autora, brasileira, apresenta em linguagem lusitana a trecho está num estilo que se ajusta à mente da personagem, e através do
mente de uma jovem portuguesa de determinada índole e classe social, qual somos orientados quanto aos fatos externos. 19
num estilo adequado a essa personagem, carreando material psíquico não
falado próprio dos devaneios. 17
Podemos constatar o mesmo método no seguinte trecho de James
Joyce, que traduzimos para o português: Solilóquio

" ... o Cônego O'Hanlon deu o turíbulo de volta ao padre Conroy e Nesta técnica há o fluxo de consciência apresentado com a presunção
ajoelhou-se, olhando para o Santíssimo Sacramento e o coro começou de uma audiência e sem a interferência do autor. Diferencia-se do soliló­
a cantar Tantum ergo e ela [Gerty] apenas balançava o pé dentro e quio encontrado no drama pela diversidade de situação e pela debilidade
fora do tempo enquanto a música subia e descia para o Tantumer gosa da coesão lógica.
cramen tum. Três e onze ela pagou por aquelas meias na Loja Veja-se o seguinte exemplo, de Osman Lins:
Sparrow's da rua George na terça-feira, não segunda-feira antes da
Páscoa e não havia defeito nelas e para isso era que ele [Leopold] esta­ "O parque de diversões, com as suas luzes perdidas na escuridão cir­
va olhando, transparentes, e não para as insignificantes dela [de sua cundante, ela e eu no carrossel que range em torno do eixo, rangem as
tábuas do piso se passa algum dos outros raros hóspedes; tento, sem
conseguir, com faca afiada, cortar o olho desorbitado de um boi; a
reporting IS 10 no way expressed in the text" ("Narrated Monologue", ComparalÍve mala de viagem tomba no assoalho, range o mar nas bocas e nas barri­
Lilerature, Eu gene , Oregon, 1966 (Spring), n? 2, p. 103). Dorrit Cohn interessa-se mais
pelo aspecto estilístico do problema, relacionando-o com os usos do discurso indireto livre.
16 Clarice Lispector, "Devaneio e Embriaguez de uma Rapariga", Laços de Família, 18JamesJoyce, Ulysses, Harmondsworth, Penguin Books, 1969, p. 353. Citado por
Rio de Janeiro , Livraria José Olympio Editora. 1974, pp. 16-7. R. Humphrey, op. cit., p. 30.
17 A ocorrência freqüeme de devaneios no Ulysses, de James Joyce, e em Manhattan 19 Edmund Wilson assim o define: "a combination of school-girl coUoquialisms with
Transfer, de John dos Passos, é notada por Joseph Warren Beach. V. The Twentieth the jargon of cheap romance ... " (Axel's Cast/e, Glasgow, Collins-Fontana, 1974, p. 164).
Centu/'] Nove!: Studies in Technique, Nova York, Appleton-Cemury-Crofts, Ine" 1932. Veja-se também William York Tindall, A Reader's Guide toJamesJoyce. Nova York, The
p. ~24. Noonday Press, 1967, p. 193.
58 Foco Narrativo e Fluxo da Consciência o Fluxo da Consciência como Método Ficcional 59
gas doi pdxFs, ouço ou julgo ouvir, rosto contra rosto, um crepitar de amaciados ângulos de edifícios contra outros edifício~. h.1';ZlãrlJulos
chamas, as pranchas de carvalho rangem sob nossos pés ... "20 moldados moles como miolo de pão, com profundas sombras inferio­
res ... trepadeiras engastando-se em balcões ... tiras de flores de janela
Os exemplos que mais comumente se apontam dessa técnica estão no através dos edifícios, escarlates, amarelas, ascendendo; uma confusão
romance As I Lay Dying, de William Faulkner, "inteiramente composto de branco e cor de alfazema ao longo de uma amurada que se cur­
dos solilóquios de quinze personagens". 21 Vejamos um trecho do citado vava ... uma camada de verde trepadeira subindo em uma frontaria de
livro, trasladado a vernáculo: casa pintada de branco ... Sons de coisas próximas e visíveis listadas e
entalhadas à proporção que se moviam, conduzindo para sons distan­
., 'Não é O teu cavalo que está morto' , eu digo. Ele senta-se ereto no tes sem traço ... soando juntoS".24
assento, inclinando-se um pouco para a frente, as costas de madeira.
A aba do chapéu desprendeu-se da copa, com a umidade, em dois
lugares, caindo através do seu rosto de pau, dç modo que, com a Descrição por Autor Onisclente
cabeça abaixada, olha através dele como através do visor de um elmo,
olhando ao longe, ao longo do vale ... "22 Pode ocorrer também a apresentação dos pensamentos do persona­
gem "num estado não formulado, não falado, incoerente' '25 através da
Em ambos os exemplos há falta de elucidação lógica. Os pensamentos descrição do autor onisciente, que, ao fazê-lo, usa a sua própria linguagem,
são enunciados como se o fossem para ser ouvidos. e não o estilo peculiar do personagem. Humphrey apresenta como exemplo
dessa técnica o seguinte trecho de Dorothy Richardson, que transcrevemos
em versão vernácula:
Impressilo Sensorial
"O pequeno choque fez com que a sua mente fosse sentindo ao longo
Acompanhando Lawrence E. Bowling, chamaremos "impressão sen­ da estrada que eles tinham acabado de deixar. Ela considerou a sua
sorial" ã técnica de apresentação do fluxo da consciência quando este ocor­ longura ininterrompida, as suas lojas, a sua ausência de árvores. A
re de forma passiva, com registro apenas das expressões verbais correspon­ larga avenida, ao longo da qual eles agora começavam a seguir, repe­
dentes às impressões psíquicas trazidas pelos sentidos. "No monólogo inte­ tia-a numa escala mais ampla. Os passeios eram largas calçadas a que
rior", diz Bowling, lia mente é ativa; de impressões sensoriais concretas, se chegava da estrada por degraus de pedra, em número de três. As
ela trabalha em direção a idéias e pensamentos abstratos. Na impressão pessoas que passav;lm por elas não se pareciam com ninguém que ~la
sensorial, a mente é mais ou menos passiva; ocupa-se meramente em per­ conhecesse. Eram todas semelhantes. Eram ... ela não encontrava
ceber impressões concretas dos sentidos". 23 nenhuma palavra para a estranha impressão que lhe faziam. Coloria
O referido crítico ilustra essa técnica com o seguinte exemplo, tirado todo o bairro através do qual elas tinham vindo. Era parte do novo
de Pilgn'mage, de Dorothy Richardson, que transcreveremos em versão mundo ao qual ela tinha prometido ir a 18 de setembro. Era já o seu
portuguesa: mundo, e ela não tinha palavras para ele. Não seria capaz de trans­
miti·lo a outros. Estava segura de que sua mãe não o tinha percebido .
••... edifícios cinzentos erguendo-se em ambos os lados, sentindo-se Precisava tratar com ele sozinha. Tentar falar a seu respeito, mesmo
para longe na distância que chegava - ângulos nítidos contra o céu ... com Eva, exauriria a sua coragem. Era o seu segredo. Um estranho
segredo para toda a sua vida como Hanover tinha sido. Mas Hanover
20 Ava/ovara, 3~ ed., São Paulo, Edições Melhoramentos, 1975, p. 15.
era bonita ... "26
ZI R. Humphrey, op. cit., p. 36.

24 L.E. Bowling, loe. cit., p. 342.


22 William Faulkner, As I Lay Dyíng, Harmondsworth, Penguin Books, 1963, p. 7').

2\ R. Humphrey, op. cit., p. 34.


23 Lawrence E. Bowling, "What is the Stream of Consc1ousness Technique?" ,

PMLA, vol. LXV, n? 4, 1950, p. 342. 26 Dorothy Richardson, Pilgrimage, apudR. Humphrey, op. cit., pp. 34·).
60 Foco Narrativo e Fluxo da Comciéncia o Fluxo da Comciéncia como Método Ficcional 61,
o trecho é comparável ao seguinte, de Clarice Lispector: método narrativo do fluxo da consciência; de fato, em vez de imergir com­
pletamente no fluxo do devir, retém o direito de elucidar, analisar, comen­
"O homem nada poderia fazer senão esperar que a primeira penum­ tar e julgar' , .ll
bra lhe revelasse um caminho. Enquanto isso poderia dormir no chão Neste ponto, convém abordar um assunto que foi tratado por Stuart
que, distanciado pelas trevas, lhe pareceu inalcançável. Já não mais Gilbert, em seu livro sobre o Ulysses, de Joyce:
atiçado pelo perigo, desaparecera a sagacidade que lhe seria agora
apenas um entrave. E de novo o embrutecimento suave o dominava. "Várias críticas têm sido dirigidas contra o uso do monólogo silen­
O chão era tão longe que, abandonando o corpo, este por um instante cioso por parte de Joyce no U/ysses. Penso que foi Wyndham Lewis
experimentou a queda no vácuo. Mal porém tocara numa terra que as quem sugeriu que, como os pensamentos nem sempre são verbais e
seus pés se esquivara, e esta instantaneamente se desencantou em algo podemos pensar sem palavras. a técnica do monólogo silencioso é
resistente, cujas rugas estáveis pareciam as do céu da boca de um ca­ enganadora. Há contra isso, entretanto, a hipótese igualmente sus­
valo. O homem estirou as pernas e encostou a cabeça. Agora se imobi­ tentável de que 'sem linguagem não pode haver pensamento'
lizara, o ar afiara-se e doía extremamente limpo. O homem não estava (Sayce, Introduction to the Science ofLanguage), e o fato óbvio de
com sono mas no escuro não saberia o que fazer da grande vigília. que, mesmo que nós não pensemos, certamente precisamos escrever
Além do mais não tinha assunto" . 27 com palavras" Y

Essa técnica de fluxo da consciência não deve ser confundida com a Se até hoje as relações entre pensamento e linguagem não estão per­
análise interior que pode ser praticada pelo autor onisciente. Lawrence E. feitamente explicadas, existindo entre eles, entretanto, uma relativa inter­
Bowling faz a distinção entre "análise interior" e fluxo da consciência, dependência,33 de qualquer forma a ficção do tipo fluxo da consciência é
dizendo que o primeiro método' 'sumaria, enquanto o outro dramatiza,' perfeitamente justificada. Procura, como já dissemos, apresentar, através
um é abstrato, o outro é concreto" .28 de uma linguagem truncada ou desordenada, o pensamento ainda não cla­
Não só isso caracteriza o fluxo da consciência, como também a natu­ ramente formulado do ponto de vista lógico ou lingüístico.
reza do material psíquico carreado para a obra, o qual, embora o autor o Aliás, se considerarmos o problema dentro da interpretação bergso­
procure apresentar verbalmente, corresponde a um nível anterior à fala, a niana de Shiv K. Kumar, a ficção de fluxo da consciência procura justa­
uma pré-linguagem de estrurura truncada. mente exprimir a fluida realidade psíquica quebrando os moldes da lingua­
Isto é, naturalmente, uma questão de posição, que não invalida a pos­ gem tradicional. 34
sibilidade de outros critérios. Assim, por exemplo, Melvin Friedman, autor Caberia também relacionar esse tipo de ficção, em certos casos, com o
de importante obra sobre o asSUntO, inclui Henry James (últimas obras) e conceito de "linguagem egocêntrica", de Piaget, desenvolvido por
Proust como romancistas de fluxo da consciência. 19 Já Robert Humphrey
exclui desse tipo de ficção os romances de Henty James porque neles os pro­
cessos psicológicos são vistos através da inteligência de um personagem, e a
31 Bergson and the Stream olConsciousness Novel, Nova York, New York umVCISllV
obra de Proust À la Recherche du Temps Perdu porque trata de reminis­ Press, 1963, p. 10.
cências. 30 32Stuart Gílbert,jamesjoyce's Ulysses, 2~ ed., Nova York, Alfred A. Knopf, 1952,
S.K. Kumara, tratando do problema, entende que' 'Proust não usa o p.26.
,; "The relatíons between thought and speech are certaínly not fully explained
today, and it is clear that it is a great oversimplification to define thought as subvocal
27 A Maçã no Escuro, 3~ ed., Rio de Janeiro, José Alvaro, Editor, 1970, p. 16.
speech, in the manner of some behavíourists. But it is no less clear that propositions and
28 Loc. cit., p. 344.
other alleged logical structures cannot be wholly separated fmm the language structures saíd
to express them" (Robert H. Robins. The New Encyclopaedia Britannica (Macmpaedia),
29 Melvin Friedman, Stream 01 Comciousness: a Study in Literary Method, New
Chicago, 1974, vol. X, p. 644).
Haven, Yale University Press. 1955, pp. 5-6. 92.
34 Shiv K. Kumar, Bergson and the Stream ofConsciousness Nova York, New
30 op. cit., pp. 3-4,127. York University Press. 1963. p. 33.
62 Foco N/mativo e Fluxo da Consciência o Fluxo da Consciência como Método Ficcional 63
Vigotsky, para quem ela se desenvolve a partir da linguagem social, com Assim, não cabe, na análise dessas obras, um critério de rigor cientí­
uma tendência para a abreviação e economia da sintaxe .ll fico. A este propósito, comentam ironicamente Scholes e Kellogg: "Um
É natural também ligar-se aos romances de fluxo da consciência a téc­
nica psicanalítica da livre associação de idéias, como faz Harry Levin em
• certo psicólogo provou que Benjy40 não é um psicótico, mas um constructo
literário. Sendo assim. está bem que Benjy figure num livro, que é o seu
relação aJoyce. l6 Há semelhança entre o procedimento do paciente no con­ gar".41 Fica implícito nesta afirmação que o que importa ao romancista é a
:;ultório psicanalítico e a associação de pensamentos que ocorre no tipo de ,I; verossimilhança. A veracidade reserva-se para o âmbito de pesquisa do
ficção de que tratamos. cientista e do historiador. 42
É, entretanto, arriscado localizar os textos de fluxo da consciência em
níveis psíquicos, como procurou fazer FrederickJ. Hoffman. Para esse fim,
Hoffman dividiu a mente em quatro níveis: o lógico, o pré-consciente, o
subconsciente e o inconsciente. 37
O próprio Hoffman afirma que o uso do termo "subconsciente" é aí
"puramente arbitrário, e não visa a uma distinção entre subconsciente e
inconsciente em psicanálise". Hoffman coloca as obras' de Faulkner As I
Lay Dying e The Sound and lhe Fury no nível do subconsciente, e Finne­
gans Wake, deJoyce, no nível do inconsciente. É evidente, porém, a difi­
culdade para uma classificação desse tipo. Mais viável seria dizer que uma
determinada obra, ou trecho, está mais próxima ou mais distante do nível
da fala, sem objetivar, entretanto, um ideal de precisão. Veja-se aliás que
no próprio caso de The Sound and lhe Fury, entre a primeira e a terceira
parte, há grande diferença, estando uma situada na mente de um idiota
Benjy - e outra na deJason. "cujos padrões de pensamento são lógicos" .38
Aliás. deve-se ter em mente que autores como James Joyce e Virginia
Woolf, por exemplo. embora tenham procurado o realismo psicológico,
buscaram também atingir um elevado grau de poesia e efetividade retórica.
Falando de Joyce, diz Leon Edel que alguns críticos não compreenderam que
"estava fàzendo uma rigorosa seleção mesmo quando parecia arrebanhar
uma grande quantidade de matéria associativa". e acrescenta que "a sua
seleção destinava-se a criar uma ilusão de que não tinha havido se1eção" .l9

lj Vejam.se, por exemplo, Hans Herman, lntroduction ii la Psycholinguistique, trad.


francesa, Paris, Librairie Larousse, 1972, p. 240, e Judith Greene, Pensamento e Lingua­
gem, trad. brasileira, Rio de Janeiro, Zahar Editores, p. 94.
l6 Harry Levin.JamesJoyce: a Criticallntroduction, Londres, Faber and Faber, 1960,
p.82.
l7 Frederick J. Hoffman, Freudianism and the Literary Mind, Nova York, Fim 40 Narrador-protagonista da primeira parte do romance de Faulkner The Sound and
Evergreen Edition. 1959, pp. 128-31. the Fury,
38 Edmond L. Volpe. A Reader's Cuide to William Faulkner, Nova York, Farrar. R. Scholes e R. Kellogg. op. cit., p, 199,
Straus and Giroux. 1974, p. 93.
42 V. Alfredo Leme Coelho de Carvalho, "A Teoria Crítica de Forsrer e a Poética" ,
39 Leon Edel. The Psychological Novel (1900·1950). Londres. Rupert·Davis. 1955. Mímesis, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Pmo, 1975. vol. I,
p.22. pp. 11-8.
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