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Eleições e direito à comunicação: quem tem direito a se fazer ouvir?

Verbena Córdula

A produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e


redistribuída por certos procedimentos que têm como função esquivar sua pesada e
temível materialidade. Essa afirmação do filósofo francês Michel Foucault será a base
desta reflexão, que pretende questionar a funcionalidade do chamado Estado
Democrático Brasileiro, a partir das possibilidades de disseminação discursiva em torno
das disputas eleitorais.

Volta e meia ouvimos e vemos nos meios de comunicação, e em nosso entorno, a


exaltação dos regimes democráticos e os valores nele presentes. Esse regime
inicialmente estabelecido em Atenas, na Grécia Antiga, instituiu três princípios básicos:
isonomia, ou igualdade de toda a cidadania perante a lei; isegoria, ou direito de toda a
cidadania no que diz respeito à liberdade de expressão; e isocracia, ou igualdade de
todos quanto ao poder (acesso aos cargos públicos).

Embora tenha significado um avanço no sistema político da época, reconhecida como um


período de prosperidade (tanto econômica como também cultural), a democracia
ateniense dos séculos C e IV a.C era excludente, já que a dita cidadania estava
assegurada tão somente aos homens maiores de 18 anos ali nascidos e cuja filiação (pais
e mães) fosse ateniense.

“Indicador mais confiável”


Mas, o que dizer dos regimes democráticos atuais? São, de fato, inclusivos, tal como
dizem as Constituições? Por exemplo, no Brasil, considerado uma democracia, a Carta
Magna de 1988 ressalta esse caráter democrático do Estado que aponta, entre seus
valores fundamentais, a segurança, o desenvolvimento, a justiça, a liberdade, o bem-estar
e a igualdade. Mas, de fato, esses valores são assegurados? Se sim, para quem?
Poderíamos escrever páginas e páginas exemplificando quão relativos são esses valores
do Estado Democrático no Brasil. Para isso, poderíamos colocar os números de acesso
ao saneamento básico (água e esgoto), à habitação, à educação de qualidade, à saúde, à
cultura, ao lazer, ao esporte… O que seria extremamente desgastante em um só texto.
Sendo assim, podemos resumir, afirmando que em todos esses quesitos o país falha, já
que os números demonstram quão excluídas se encontram milhões de pessoas do
acesso a esses que são direitos básicos em qualquer sociedade minimamente decente.

Somente para citar um exemplo, dados do Sistema Nacional de Informações sobre


Saneamento (SNIS) publicados em 2021 demonstram que cerca de 35 milhões de
brasileiras e brasileiros não têm acesso a água tratada. E que apenas 46% dos esgotos
recebem tratamento no país. Apenas esses dados demonstram quão excludente é o
nosso “Estado Democrático”.

A reflexão apresentada até agora foi para questionar o sistema democrático tal como o
conhecemos em nosso país, que exclui milhões de pessoas de acesso a direitos básicos.
Entre estes, está incluído o direito à informação, também considerado um direito humano
básico, mas que, infelizmente, tem sido vilipendiado cada dia mais, e gerado enormes
prejuízos à maioria da sociedade.

Como bem está enfatizado no documento da UNESCO, redigido pelo irlandês Sean
MacBide e publicado em 1980, cujo objetivo era analisar questões da comunicação nas
sociedades (chamado de Relatório MacBride), a liberdade das pessoas para ter acesso à
comunicação, como receptoras ou como emissoras, não pode ser comparada com a de
investidores para obter benefícios em uma empresa.

Ainda de acordo com esse Relatório, a liberdade de comunicar é um dos bens mais
preciosos existentes nas sociedades democráticas e, por isso, a presença ou não de
liberdade de expressão se configura como “o indicador mais confiável de outras
liberdades dentro de uma nação”.
Dois princípios desconsiderados
Há 42 anos que Sean MacBride advertia acerca do que ele chamou de violação da
liberdade de expressão, que, segundo afirma no Relatório, se dá através da censura
burocrática ou comercial, da intimidação ou perseguição, ou através da “uniformidade
imposta”. E é exatamente acerca dessa “uniformidade imposta” descrita por MacBride que
quero me referir quando afirmo que, ao restringir majoritariamente o debate eleitoral às
candidaturas com representação no Congresso, a mídia hegemônica nacional viola a
liberdade de expressão.

Aqui, quero retornar ao filósofo francês Michel Foucault. Para ele, os discursos não se
configuram como aquilo que traduz as lutas ou os mecanismos de dominação, mas são o
o poder do qual nos queremos apropriar. Ainda de acordo com ele, a estrutura social que
mantém esses valores possui rituais específicos de validação e de circulação dos
discursos que tornam um pronunciamento aceito.

Na visão foucaultiana, há uma dimensão política no discurso. Conforme o filósofo, uma


vez que se relaciona com o poder, o discurso não apenas o manifesta, como também
revela o lugar onde é possível efetivar resistência. Mas, fica difícil “resistir” quando não se
tem espaço para se fazer ouvir, uma vez que os canais de disseminação de discursos são
interditados para a maioria.

A Rede Bandeirantes, por exemplo, deixa isso explícito, tanto em suas coberturas
majoritárias, como principalmente nos debates que promove através da emissora de
televisão nacional. As coberturas são limitadas, quase exclusivamente, à discussão dos
programas de governo e das questões que giram em torno das duas principais
candidaturas: Lula e o atual Presidente que quer se reeleger. Deixa de fora, por sua vez,
candidaturas de partidos menores, tais como as de Sofia Manzano e Vera Lúcia, por
exemplo.

Mas esse modus operandi não se restringe somente ao Grupo Bandeirantes. Quando
observamos as coberturas jornalísticas de empresas midiáticas como Organizações
Globo e suas afiliadas, os grupos Folha e Civita, assim como todos os demais meios de
comunicação hegemônicos, vemos a mesma operacionalização. Não há equidade nas
coberturas das diversas candidaturas. Isso ocorre não somente em relação ao tempo
destinado a cada cobertura, como também referente a outros aspectos, como espaço
para falar, o espaço para a exposição da imagem do(a) candidato(a), o tipo de imagem
exposta (a alguns/algumas sempre lhes colocam sorrindo, descontraído(a)s, enquanto
outro(a)s são colocado(a) com aparência cansada, exausta, quando não raivosa (como é
o caso das candidaturas de esquerda).

A CNN Brasil, por exemplo, demonstrou essa parcialidade recentemente, quando “cobriu”
as convenções partidárias. Citarei apenas dois exemplos. Ao candidato Ciro Gomes do
PDT, a emissora dedicou uma cobertura de 2 minutos e 25 segundos. Na mesma ed ição,
quando se tratou do mesmo evento realizado pela candidata Sofia Manzano (PCB), o
canal de TV dedicou apenas 1 minuto e 55 segundos.

Mas a diferença não se restringiu somente a esse quesito. A jornalista responsável pela
cobertura da Convenção de Ciro Gomes esteve apareceu do do lado de fora do local
onde estava sendo realizado o evento e, durante sua fala sobre o que o corria do lado de
dentro, a tela foi bipartida, e, simultaneamente, apareciam várias imagens do candidato
em tamanho gigante.

Na cobertura referente a Sofia Manzano, no entanto, chegou a ser vergonhoso o fato de o


repórter falar da oficialização da candidatura da comunista no interior da Convenção do
Partido Novo. O jornalista falava de Manzano, mas as imagens de bandeiras e de
pessoas nada tinham a ver com as informações que ele passava à audiência. Em nenhum
momento apareceu a imagem da candidata e, apesar disso, em certo ponto dessa
“cobertura”, a âncora do informativo ressaltava que o canal estava realizando a cobertura
“democraticamente”.

A partir desses exemplos, e considerando os princípios do regime democrático, essa


forma de publicização das candidaturas pode ser avaliada como um fator limitante do
Estado Democrático, já que as propostas, os nomes menos expostos midiaticamente
ficam impedidos de usufruir da comunicação midiática massiva e, portanto, quase que
invisibilizados. Dessa forma, o eleitorado brasileiro fica muito limitado, pois as coberturas
mais completas dão ênfase àquelas candidaturas privilegiadas, em detrimento das outras.

O mesmo ocorre em relação ao Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE), que


começará a ser exibido no Rádio e na Televisão a partir do próximo dia 26. À primeira
vista, coloca as candidaturas em “pé de igualdade”. No entanto, quando nos atemos aos
tempos disponíveis para cada uma delas, ou mesmo à quantidade de recursos que
dispõem para elaborar sua propaganda que irá ao ar, nos damos conta de que não existe
equidade.

Embora o HGPE seja um recurso comunicacional assegurado pelo próprio Estado (e


neste caso as empresas de comunicação não têm responsabilidade), os partidos, as
coligações e, portanto, as candidaturas maiores têm uma projeção muito mais
significativa. Porque a Lei que o instituiu foi elaborada considerando princípios nada
democráticos.

Sendo assim, são privilegiados justamente os partidos, as coligações, e, portanto, as


candidaturas que possuem mais recursos (sobretudo financeiros) para elaborar suas
peças publicitárias/discursos e disseminá-los, o que desconsidera dois dos três princípios
básicos do sistema democrático: a isonomia e a isegoria.

Por isso, questionamos a democracia do Estado brasileiro, e também da mídia


hegemônica tomando como base a não-inclusão de todos os agentes sociais, neste caso
todas as candidaturas, pelo fato de não colocá-las, de fato, em pé de igualdade no
processo de disputa, o que, sem dúvida, priva a cidadania de conhecer todos os
programas, todos os pensamentos e também todas as críticas aos/às
adversários/adversárias na disputa eleitoral. Além de consolidar aquele falso discurso de
que votar em determinadas candidaturas é “perder o voto”.

Ao observarmos todas essas questões, é possível afirmar que a democracia brasileira


apresenta um perfil que dá destaque apenas aos porta-vozes dos discursos hegemônicos,
fato que evidentemente remete ao questionamento acerca de sua real efetividade na
estrutura societária de nosso país. E, ainda, que a mídia hegemônica atua como
mediadora dos interesses dominantes quando restringe a possibilidade de exposição de
todos os discursos presentes nas diferentes candidaturas que se apresentam ao
eleitorado nacional.

Isso evidencia a necessidade urgente de a sociedade se mobilizar no sentido de imprimir


um caráter mais democrático ao sistema eleitoral, sob pena de não termos, nunca, uma
possibilidade de disputa real, equitativa e justa nos processos que definem os destinos da
população como um todo. Porque não basta um regime democrático de direito. É
necessário que este se configure, de fato, no nosso cotidiano.

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