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O MANDATO DOS CÉUS

Um guia histórico para as ambições políticas do monoteísmo

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Índice

Introdução: o encontro com o povo Abraâmico . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

O Deus Ditador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

O «um só Deus» é totalitário. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

O monopólio de Deus: além da razão e contra a natureza . . . . . . . . . . 14

A santidade rima com letalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

A vontade de poder do único Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Os judeus, o judaísmo e o Estado de Israel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Origens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

História antiga e mito: De Abraão a Moisés . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

Da independência à servidão e à rebelião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

História da identificação judaica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

O início do Sionismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

Religião e Modernidade no Estado de Israel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Tendência para a teocracia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Cristianismo: o vírus deixa seu tempo para trás . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Avante, soldados de Cristo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

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Um poder divino disruptivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Como o triunfo de Cristo levou à perda de Roma . . . . . . . . . . . . . . 35

O conflito entre secularismo e espiritualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

Islamismo: Cumprir a Missão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

Expandindo a sua influência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

Wahhabismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

A Irmandade Muçulmana e o anticolonialismo . . . . . . . . . . . . . . . . 48

Revolução Islâmica no Irã: o sucesso do xiismo político . . . . . . . . . 49

Estado islâmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

O renascimento islâmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

Continuidade entre todos os terroristas religiosos . . . . . . . . . . . . . . . 56

Respondendo ao terrorismo islamista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

Análise do terrorismo religioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

Como eliminar o terrorismo religioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

Imagina que não há céu... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

Preparando-se para uma nova era secular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

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Introdução: o encontro
com o povo Abraâmico
As três religiões do judaísmo, cristianismo e islamismo compartilham
muito mais semelhanças do que podemos pensar hoje. A nível pessoal,
eles são uma família próxima: o avô Jude, o pai Christian e o filho Islão
(as mulheres nunca tiveram muito poder nesta família). A relação entre as
três gerações é forte porque elas se respeitam profundamente, se bem que
relutantemente, uma à outra. No entanto esta relação é muito complexa,
porque não só é forte, mas também muito íntima e assassina.

Os Abrahams não se dão bem uns com os outros, mas o problema parece
ser que, mesmo sendo de gerações diferentes, cada um pensa que está com-
pletamente certo, e que todos os outros estão completamente errados. Eles
também se sentem obrigados a forçar os outros a se submeterem às suas
opiniões. Eles usam tudo, desde retórica suave a massacres e assassinatos
arbitrários para conseguir isso. Eles são terrivelmente duros, ao ponto de
se sentirem obrigados a matarem-se uns aos outros.

De qualquer forma, o avô Jude está a ficar mais velho, cansado e distraído,
embora ainda se lembre dos bons velhos tempos e divague com demasiada
frequência. Ele está no seu caminho e adora as velhas tradições. Ele não
suporta que lhe digam que suas práticas como adoração, fé, louvor e oração
poderiam ser mais eficazes e ele resiste à mudança tanto quanto possível.
Ele é rabugento e pode ficar muito zangado muito rapidamente. Por outro
lado, ele se lembra muito melhor do passado do que dos tempos mais re-
centes, o que não é propício a uma boa conversa. Ele gosta de dizer que vive
há três mil anos e que tem visto muitas mudanças em sua vida. Ele mal sai
mais, fica em casa, onde lê e murmura.

O Padre Christian também está cansado, facilmente irritado e sente-se


mais velho do que parece. Ele é inapto, tem excesso de peso e sua artrite faz
suas articulações ranger por falta de exercício quando era jovem. No en-
tanto, ele não se importa, ele desistiu mais ou menos de tudo. Ele passa seu
tempo na Netflix e grita para a televisão quando a notícia está no ar. Uma
vez, quando era jovem, ele pregou sobre a vida, o amor e o universo. O seu

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entusiasmo sem limites não conhecia limites. A sua fé podia mover monta-
nhas. Desde então, ele se irritou e perdeu a noção da história, quando seus
seguidores não mais o ouvem, e agora ele desistiu. Ele parece contente por
ser um fracasso. Acho que ele nem sequer tenta entender o filho dele.

O filho, o Islão, é jovem e determinado, mas um pouco difícil de conviver.


Ele não é como a maioria dos jovens, pois não vai a bares, não bebe nem
fuma e é muito retraído. Ele despreza o seu pai e o seu estilo de vida e parece
odiar o seu avô. Ele claramente tem as suas próprias ideias. Seria de pensar
que o Islão seria um pouco mais como a sua própria geração, mas as pes-
soas com quem ele anda parecem tão secretas e reservadas. Como se eles
estivessem a tramar alguma. Eu também acho que ele tem tendência a tor-
nar-se obsessivo e suspeito que o seu temperamento está fora de proporção.
Admito que estou um pouco preocupado com o que se passa na cabeça dele.

Estas três gerações conhecem-se muito bem. Não acredite neles por um
momento se eles o negarem. Eles não te estão a dizer toda a verdade. Na
verdade, nenhum deles está a dizer toda a verdade. Acho que eles não sa-
bem como o fazer. Todos dizem que a verdade é conhecida por Deus, que,
por sinal, é o elemento comum mais poderoso do lote. Mas aparentemente
ninguém sabe o seu verdadeiro nome.

Eu queria apresentar-lhes a Abrahams, esta estranha e disfuncional família,


porque as suas vidas e experiências são a história principal deste pequeno livro.

Em ordem cronológica, tudo começa com o judaísmo, entre os séculos XII


e VII a.C. (tanto quanto sabemos). (tanto quanto sabemos). O cristianis-
mo começou no primeiro século DC, e o islamismo no sétimo século DC.
O cristianismo espalhou-se rapidamente pelo mundo após a sua adopção
pelo Imperador Romano no século IV. Em números aproximados, o cris-
tianismo tem cerca de 2,5 bilhões de seguidores (um terço da população
mundial), o islamismo cerca de 1,7 bilhões e o judaísmo cerca de 9 mi-
lhões, concentrado em Israel e nos Estados Unidos. Embora o judaísmo
tenha muito menos seguidores do que as mega-religiões do cristianismo e
do islamismo, é a religião monoteísta líder e a sua influência global é muito
maior do que o seu limitado seguimento sugeriria.

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Os antecedentes do judaísmo remontam tão longe que se perdem um pou-
co na névoa da história. Diz-se que o reconhecido fundador da família é
Abraão, e segundo a lenda foi seu relacionamento pessoal com Deus que
lhe permitiu, após os 70 anos de idade, ter tantos filhos, que por sua vez ti-
veram filhos, e assim por diante, até que a família cresceu para formar uma
espécie de tribo ao seu redor, composta de pessoas intimamente relaciona-
das. Ele viveu até à idade de 175 anos. O relacionamento pessoal original
de Abraão com seu Deus levou seus descendentes a acreditarem que Deus
e alguns deles, incluindo Moisés, tinham um relacionamento semelhante
com ele ao longo dos tempos. Embora privilegiada, esta relação parecia ter
falhas. Eles estavam sempre zangados um com o outro.

O cristianismo surgiu depois de mais de mil anos. Jesus, que era origi-
nalmente um rabino judeu, foi o primeiro cristão. Como duvidava de sua
própria beneficência enquanto vagueava pelas ruas, reuniu alguns amigos
à sua volta e começou a realizar grandes reuniões públicas em Jerusalém.
Ele era muito sério e muitas vezes reprovador, mas era muito gentil com a
maioria das pessoas. Alguns acharam-no hipócrita, mas outros disseram
que ele era o filho de Deus, o que ele não negou. O seu incrível dom de pa-
lavras fez dele um dos mais famosos (e infames) de todos os homens santos
da época. Ele era visto como o Messias e como um causador de problemas
enfurecedor. As autoridades judaicas e romanas quiseram silenciá-lo e,
após um incidente, ele foi morto em uma cruz. Na altura, os judeus não se
importavam muito com ele. Ele era apenas mais um homem santo e havia
demasiadas falsas esperanças sobre a raça escolhida.

O cristianismo floresceu e espalhou-se rapidamente na região, e mais tarde


na Europa e no Oriente Médio. Inicialmente, pretendia-se que fosse muito
rigoroso e rigoroso. Esta religião exigente impôs regras de conduta estritas e
irrealistas. Muitos deles foram longe demais. Dando todo o seu dinheiro aos
pobres, por exemplo! Quem faria isso? E amar o teu próximo? No entanto,
os cristãos teimosos e dogmáticos comportaram-se como revolucionários
idealistas. Eles eram tão zelosos que às vezes era difícil discutir com eles,
porque nunca aceitavam os argumentos dos outros. A sua atitude e a sua ca-
pacidade de cooperar acabaram por contribuir para a queda do próprio Im-
pério Romano. Na verdade, muitas vezes desencorajavam-me desde o início.

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O Islão continua a ser uma religião jovem, reflexiva e intensa. Começou
quando um certo Maomé começou a ter visões e revelações em Meca sobre
a submissão ao único Deus e a necessidade de ajudar os pobres e necessi-
tados. Maomé, um soldado e político, iniciou então a expansão territorial,
travando guerras e batalhas. Os soldados muçulmanos acabaram por che-
gar aos limites da Europa, apenas para serem empurrados para trás pelos
exércitos cristãos.

Islamismo, Cristianismo e Judá têm outra coisa em comum. Todos eles


acreditam no mesmo Deus omnipotente e onisciente. Obviamente esta
crença tem sido transmitida através da família ao longo de gerações, mas
é importante porque havia um mundo inteiro antes do judaísmo. Só não
sabemos o que estava acontecendo, porque não havia jornalistas ou histo-
riadores na época. As pessoas em todo o mundo, tanto quanto sabemos,
eram muito religiosas num sentido espiritual. Eles se perguntavam de onde
vinham e o que estavam fazendo na Terra, mas tinham muitos deuses para
ajudá-los, não apenas um. Isto é o que chamamos politeísmo, em oposição
ao monoteísmo, que é a crença em um só deus.

Judas e cristãos, que acreditavam em uma religião de um só Deus, queriam


se livrar de todos os outros deuses que estavam sendo orados ou adorados
de alguma forma. Christian parecia muito mais entusiasmado com esta
ideia do que o seu pai. Quando o Islão aparecesse, ele teria escolhido o
mesmo Deus que os judeus e os cristãos. No entanto, eles ainda discutem
sobre se este Deus é realmente o mesmo. Isso não importa. Todos falam
de Jesus, Maria e alguns dos santos, assim como de Moisés e de todos os
outros primeiros crentes. Esta briga constante por trivialidades é prova-
velmente um fenômeno masculino. Pai e filho sempre negam que têm o
mesmo Deus, mas, como eu disse, como pai, como filho, em certa medida.

As diferenças não importam porque os três sempre adoraram boas histó-


rias. Uma das melhores é a história da criação da terra e da vida. Eles con-
cordaram sobre a substância e a maioria dos detalhes, tais como o Jardim
do Éden, a árvore proibida, a serpente e a partida de Adão e Eva do Jardim.

Seus relatos dos acontecimentos da época também são amplamente con-


sistentes, embora, naturalmente, o fator tempo implique que o Islã deve ter

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obtido todas as suas histórias de Christian e Jude, como roupas de segunda
mão. Estas histórias também não se sobrepõem exactamente. No entanto,
como qualquer jovem teimoso, ele se recusa a admiti-lo e diz que as histó-
rias de seu pai e seu avô não são bem verdadeiras porque há muitas versões
diferentes e as linhas principais se perderam na tradução. Os seus, por ou-
tro lado, são reais porque foram verificados por Deus recentemente. Mais
vale discutir sobre quantos anjos podem dançar em cima de uma cabeça de
alfinete. O que é que isso importa? Eu me pergunto.

Deixe-me explicar melhor esta crença em um só Deus. É um compromis-


so enorme, mas tem algumas vantagens. Em primeiro lugar, a dúvida já
não é um problema. Desapareceu. Tudo se torna tão simples. Aqueles que
abraçam esta crença são unânimes nas questões que os filósofos gostam
de levantar, tais como: Quem somos nós? De onde é que nós vimos? O
que devemos fazer com as nossas vidas? Qual é o sentido da vida? Estas
perguntas são então respondidas. Está tudo no livro que eles costumavam
carregar por aí. Segundo eles, o livro deles responde a todas as perguntas e
dá a explicação e justificação para tudo o que acontece.

Em segundo lugar, eles justificam todas as suas acções desde que possam
defender (ou promover) a sua religião. Graças a essa justificação, não há li-
mite, pois todos eles se irritam muito rapidamente, especialmente uns com
os outros, batendo e gritando ou, como eu temo, pior. Mencionei anterior-
mente que eles podem matar-se uns aos outros e acredito sinceramente que
um dia o farão.

Em terceiro lugar, parece um clube secreto ou um exército. Eles têm as suas


próprias regras, mas trata-se sempre de se incluir a si próprios excluindo
os outros; estabelecer regras para si próprios e regras diferentes para os
outros. Além disso, eles são tão sensíveis! Ficam zangados se alguém goza
com eles ou com a sua religião. É muitas vezes aqui que a violência e a
desordem entram em jogo, especialmente ultimamente com o Islão, que
parece não ter sentido de humor e se zanga por nada.

Não é uma questão de personagens ou circunstâncias. O problema é que


mesmo que continuem discutindo, eles não estão discutindo sobre ter o
único Deus. Como concordam neste ponto, monopolizam os argumentos,

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interrompem os outros e assumem que todos devem concordar com eles.
É difícil ouvi-los e quase impossível argumentar.

Esta crença em «um só Deus» também é confusa. Seu Deus é suposto ser
onisciente e ter poder absoluto sobre a humanidade e o meio ambiente, no
entanto desastres e catástrofes naturais continuam a ocorrer, causando dor,
miséria, pobreza e deslocamento de seres humanos. Porque é que o Deus
deles deixa isto acontecer, por amor de Deus?

A violência, os massacres e os conflitos justificados pela defesa da fé podem


ser atribuídos a Moisés, aos primeiros Cruzados e aos actores muçulmanos
do 11 de Setembro. O alcance é vasto. A violência é sempre justificada pela
ameaça de hereges ou inimigos que procurariam destruir a sua religião.
Isto é verdade para quase todas as atrocidades com motivação religiosa.
Quer esta justificação faça sentido ou não (sendo as consequências da vio-
lência as mesmas a nível humano), a principal desculpa é a necessidade de
matar os inimigos. (Na minha opinião, eles precisam dos seus inimigos).

Todos os três se afastam dos seus instintos naturais básicos. Eles preferem
enganar os crentes a pensar que qualquer coisa religiosa é melhor do que
qualquer coisa pessoal. Eles os aconselham a negar a si mesmos a sensuali-
dade, o sexo e a luxúria (este último, aos seus olhos, é um pecado cardinal).
Eles afirmam que o sacrifício e a abnegação são superiores e mais saudá-
veis, enquanto tal abstinência enlouquece as pessoas; eles começam a ouvir
vozes e acabam cometendo suicídio por causa da religião. A única maneira
de ter uma vida, aparentemente, é morrer.

Além disso, eles se sentem pressionados porque lhes é dito que nunca po-
derão agradecer a Deus o suficiente por protegê-los do pecado. Então eles
sacrificam as suas vidas por Deus. Em muitos casos eles se convertem pri-
meiro a um ermitão, depois a um ascético e finalmente a um mártir sagrado.

Que tipo de Deus está observando de lado como os ativistas religiosos gri-
tam seu nome enquanto matam, decapitam ou mutilam outros, muitas ve-
zes da mesma religião, ou pior, crianças, enquanto reivindicam um direito
religioso? É incompreensível. Como poderia um Deus amoroso tolerar tal
atrocidade? Não há resposta a esta pergunta. Pelo menos nenhum que eu

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possa entender. Isso mostra, na minha opinião, que esse Deus de amor
todo-poderoso e abrangente simplesmente não existe, fora das mentes in-
quietas dos seus próprios crentes.

Quando tento entender, imagino que uma dessas três religiões é a certa e
que as outras estão erradas, mas isso parece improvável. Mas é exatamente
nisso que uma grande parte dos seguidores de cada religião acredita. Esta
é a natureza da fé religiosa. Não é uma teoria intelectual complicada. É
bastante tribal na medida em que se alimenta do poder da multidão, como
os adeptos de uma equipa de futebol. Você acaba pensando que está certo
e todos os outros estão errados. Sobre tudo.

Os Abrahams precisam de ajuda rapidamente, antes que tudo expluda na


nossa cara e na deles novamente. Uma religião que oferece um Deus ex-
clusivo não tem futuro enquanto um rival semelhante reivindicar a mesma
realidade (a menos que um grupo acabe com o outro). A dinastia Abraâ-
mica criou uma tirania familiar disfuncional e incoerente em uma escala
sem precedentes; uma dinastia ciumenta e egoísta que tem desapontado
pessoas ao redor do mundo por quase três milênios. Cada denominação,
à sua maneira, está agora tristemente convergindo em último conflito vio-
lento com as outras e com as democracias liberais que automaticamente e
imprudentemente zombaram deles todo esse tempo.

Depois de quase três milênios, bilhões de mortes e séculos de desespero,


destruição, desamparo e desastre, a humanidade deve enfrentar a possi-
bilidade de que seu vício fatal no monoteísmo (o totalitarismo da fé) a
mergulhe e o planeta de volta ao vazio do qual veio.

Em tal caso, e se Deus existe, sem dúvida concluirá que a sua ideia de hu-
manidade era um projecto condenado pelo qual terá finalmente de assumir
a responsabilidade. Esta hipótese apocalíptica e a relação entre o velho avô
áspero, Jude, o pai preguiçoso, Christian, e o filho fanático, Islão, da triste
dinastia Abraâmica, estão no centro deste livro.

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O Deus Ditador
O «um só Deus» é totalitário.
As três religiões são chamadas religiões ‘Abraâmicas’ porque o seu Deus é
baseado em Abraão do Antigo Testamento. São conhecidas como religiões
monoteístas porque o seu Deus é único, exclusivo, onisciente e omnipo-
tente. Abraão teve a sorte de ter sido escolhido para ter um relacionamento
especial com o seu Deus. Eles passaram muito tempo juntos planejando o
futuro da primeira religião criada a partir da idéia de um só Deus e o Sol, a
Lua, as estrelas e os planetas não tinham nada a ver com isso.

As religiões monoteístas também assumem que seu Deus tem poder e do-
mínio supremo, como um super-homem (pois é um homem) que conhece
tudo, vê tudo e tem poder absoluto sobre todos, incluindo nossos pensa-
mentos. As três religiões sempre foram implacáveis em reprimir qualquer
um que discorde delas. Eles tentam impedir a idolatria e até mesmo, origi-
nalmente, todas as representações de Deus. Eles defendem uma doutrina
autojustificadora que é impossível de examinar, impossível de desafiar e
ainda mais impossível de provar.

Os massacres e guerras que envolveram os israelitas antes da nossa era, as


cruzadas a partir do século XI e a propagação do terrorismo islâ-
mico global desde o final do século XX sublinham o papel influente das
religiões monoteístas em conflitos violentos, guerras e destruição entre os
povos do mundo. De onde vem tal violência?

O monoteísmo sempre foi e sempre será um pretexto para a violência, de-


vido à sua própria natureza. As religiões justificam ou justificaram a vio-
lência em nome do seu Deus com raciocínios incompreensíveis fora da
estrutura da fé. O dogma deles não conhece nenhum compromisso. Para
dizer o mínimo, isto tem fomentado visões extremas e neuroses entre os
seus crentes.

O monoteísmo exclui tudo o que lhe é estranho, com a possível excepção


de outras religiões monoteístas. Há uma forma de tolerância forçada nas

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comunicações oficiais. Paradoxalmente, as religiões monoteístas parecem
reservar o seu tratamento mais cruel para aqueles que partilham a sua fé
de uma forma geral, mas que têm uma visão diferente sobre questões obs-
curas de teologia ou doutrina. É a verdade, dizem eles, que é indivisível e
indiscutível. Toda a verdade e nada mais que a verdade.

Em suma, a religião monoteísta é exclusiva porque procura eliminar ou-


tros deuses e crenças; totalitária porque procura controlar tudo; intolerante
porque se considera a única verdade.

No entanto, nem sempre foi esse o caso. Antes de Abraão começar a discu-
tir com o seu Deus, o politeísmo, a adoração de vários deuses, era a única
prática no mundo que tinha alguma semelhança com uma religião. Esses
deuses muitas vezes vieram do mundo natural, como o sol, a lua e as es-
trelas. Mais tarde, eles foram personificados, como super-heróis. Eles inte-
ragiram com os outros. Estes deuses eram imperfeitos e cometeram erros.
Eles nem sempre disseram a verdade. Na verdade, o politeísmo ignorava
completamente as noções de verdade e falsidade, que eram essencialmente
relacionadas ao ser humano; não cabia aos deuses determiná-las.

Além disso, os deuses de diferentes culturas eram, no conjunto, equivalen-


tes. Eles eram complementares e intercambiáveis, embora alguns deuses
tivessem um papel mais importante. As teologias politeístas, como as do
antigo Egito, Grécia ou Roma, incluíam todos os tipos de deuses simulta-
neamente de forma pacífica. A maioria dos deuses coexistiu pacificamente,
embora muitas vezes discutissem, invejassem, roubassem, mentissem, lu-
tassem e até dormiam um com o outro.

As religiões politeístas tomavam emprestado um deus sempre que parecia


relevante para cobrir um campo da atividade humana, pois além das dife-
renças culturais, o panteão dos deuses era amplo e generoso, oferecendo um
lugar a cada um deles. Esta é uma prova inegável do espírito de descoberta
e consenso que caracteriza o panteísmo. O mesmo é verdade para a ciência.

A motivação do monoteísmo não é a da descoberta, muito menos a do con-


senso. Caracteriza-se pela sua natureza totalitária: a necessidade e o dese-
jo de destruir ou obliterar os deuses dos outros, tal como na política, os

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inimigos do partido ou do governo foram sistematicamente eliminados sob
modelos fascistas, comunistas e outros mais recentes, mas semelhantes.

Estas religiões não são impulsionadas pela busca de um acordo comum,


nem pela cuidadosa consideração de sugestões, nem pela adoção de meias-
-medidas provisórias. Elas representam soluções binárias, oferecendo ape-
nas uma abordagem «tudo ou nada» à fé. Estas religiões aspiram, ou aspi-
raram, a controlar cada indivíduo, cada comunidade e, em última análise, a
sociedade como um todo. Todos eles aderem ao poder divino. Em política,
isto seria certamente chamado totalitarismo. Ein Gott é totalitário.

O monopólio de Deus:
além da razão e contra a natureza
A natureza e o propósito do monoteísmo são completamente diferentes das
outras religiões. O monoteísmo invade a vida pessoal, elimina crenças con-
correntes, rejeita a razão natural e impõe um conjunto de rituais herméticos
(adotados por muitos dos primeiros monoteístas). Ela tende a operar de acor-
do com modelos teocráticos e autoritários, permitindo que a religião mude a
própria natureza humana. É por isso que o monoteísmo tem uma tendência
natural para monopolizar a esfera política. Ele se comporta como um parasi-
ta, ou um vírus, especialmente quando é atraído pelo poder político.

No entanto, estas aspirações dependem da natureza da relação que cada re-


ligião estabeleceu com as comunidades em que se encontra. Cada um tem
tendências totalitárias que constituem um perigo potencial muitas vezes
inexplorado, mas que pode ser traduzido em acções rápidas e direcciona-
das quando as necessidades ou circunstâncias o exigirem.

Estas religiões estão bem conscientes das circunstâncias da sua origem e


desenvolvimento, e nunca perderam uma oportunidade de fortalecer o seu
poder sobre indivíduos, comunidades ou governos, quer já estejam em as-
censão ou tenham passado décadas ou mesmo séculos no marasmo.

As sociedades modernas devem encarar a religião com grande cautela,


considerando que ela tem as propriedades de um vírus que é aleatório,

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neutro e mortal. Ao longo da história, a religião tem aproveitado a sua
oportunidade para estabelecer a sua autoridade e consolidar o seu poder
sempre que a oportunidade surgiu ou foi detectada uma fraqueza, seja nos
Estados Unidos, Reino Unido, França, Israel, Rússia, Austrália, Indonésia
ou em muitos outros países. A religião monoteísta tem a característica,
como a corrosão da ferrugem, de nunca dormir. Pode acordar, acelerar e
tornar-se perigoso num piscar de olhos.

A santidade rima com letalidade


Políticos e padres não se entendem. Eles competem entre si e, muitas vezes
em privado, acusam-se mutuamente de não estarem qualificados para falar
sobre a profissão do outro. A ideia de que o terrorismo islâmico de inspira-
ção política não é realmente sobre o Islão, por exemplo, é semelhante à dos
padres que afirmam que os tumultos de inspiração política não são real-
mente sobre política. Pelo contrário. A violência é a religião redescobrindo
a sua verdadeira natureza; a santidade redescobrindo os seus motivos ori-
ginais e assassinos.

Muitas pessoas têm medo de dizer que a violência é parte do Islão. Eles
têm medo de ser acusados de islamofobia, mas têm provas claras de que a
maioria dos ataques terroristas dos últimos vinte anos veio do Islão e não
de religiões mais antigas.

Todas as religiões monoteístas têm grandes semelhanças. Eles se baseiam


numa autoridade superior omnipotente cujos mandamentos justificam
tudo, inclusive o terrorismo e a violência. É por isso que o monoteísmo
sempre carrega as sementes dos crimes de ódio, seja de inspiração religio-
sa, atiradores de rua, bombistas suicidas, atividades terroristas ou a queima
na fogueira de todos os dissidentes, cismáticos, apóstatas e não-crentes. A
tendência atual é louvar as virtudes pacíficas e tolerantes da religião cristã,
por exemplo, e condenar o Islã por sua violência intrínseca, enquanto que
há menos de quinhentos anos esses papéis foram invertidos.

O cristianismo hoje parece bastante passivo e benigno na maioria das par-


tes da Europa Ocidental, mas não em toda a parte. A crença religiosa cristã

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tem sido até recentemente a força motriz do apartheid, do racismo e do
sexismo em vários países. A maioria dos políticos extremistas afirma ser
profundamente religiosos, quando nunca parecem ser. No entanto, os cris-
tãos de extrema-direita em partes dos EUA e da Austrália não podem ser
considerados passivos ou inofensivos. Tal como no Islão, os textos sagrados
do Cristianismo contêm mandamentos destrutivos. Por muitos séculos, o
cristianismo tem sido o principal assaltante religioso internacional. O his-
toriador romano Amiano Marcelino, consternado com a propensão dos
cristãos à violência, escreveu já cinco séculos antes das Cruzadas que «não
há animais selvagens tão hostis aos homens como a maioria dos cristãos,
animados por ódios mortais entre si (...) O que acontecerá então àqueles
que acreditam em deuses diferentes1?

Isto é menos verdade agora que as suas principais forças motrizes histó-
ricas na Europa (o seu passado de cruzada, a inimizade entre católicos e
protestantes, o fundamentalismo e o não conformismo) foram subjugadas,
esmagadas por ditadores políticos e democracias liberais ao longo dos últi-
mos dois séculos. Hoje, portanto, arrependeu-se um pouco, mas continua
a ser um vírus que pode atacar a política corporal a qualquer momento.

Alguns argumentam que a sociedade ocidental moderna, democrática,


orientada para o bem-estar, liberal e secular é o resultado direto da civiliza-
ção cristã. Este é talvez outro exemplo de falsa causa, onde eventos sequen-
ciais e contíguos são vistos como ligados. Os principais aspectos da socieda-
de ocidental de hoje certamente começaram a tomar forma há cinco séculos,
mas somente depois que o cristianismo perdeu seu vigor, seu ímpeto de cru-
zada inicial e grande parte de sua influência religiosa. É também em parte
a perda de zelo (palavra de origem cristã) que levou tantos jovens cristãos a
converterem-se ao Islão, apesar do conforto do cristianismo e do seu suave
embuste, apenas para encontrar o zelo que lhe faltava no terrorismo.

Num estado secular, a sobrevivência pacífica de qualquer religião mono-


teísta é invariavelmente devida à sua fraqueza, não à sua determinação.
O cristianismo tem sido contido por uma combinação de liberalismo, re-
voluções francesas, Napoleão, materialismo americano, guerras mundiais,
Hitler, Stalin, os Beatles e a sociedade secular hedonista de hoje.
1 http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Ammian/22*.html

16
Actualmente, não existe um modelo viável para um Estado religioso cris-
tão autocrático, mas os exemplos bem sucedidos da Arábia Saudita e do ca-
lifado islâmico de curta duração, agora ensombrado, invalidam esta supos-
ta compatibilidade no que diz respeito ao Islão. No entanto, muitos outros
países muçulmanos estão prestes a seguir o exemplo. Além disso, Israel não
está muito longe de se tornar o estado religioso do judaísmo, mesmo que
mantenha a fachada de uma democracia liberal.

A vontade de poder do único Deus


As estranhas semelhanças entre as religiões que regem a adoração de um
único Deus nos lembram que essas religiões vêm de uma única família.
Dentro da mesma família, há necessariamente semelhanças que surgem
tanto da intimidade como da hostilidade. A capacidade de reconhecer uma
analogia não exclui a possibilidade de procurar negá-la ou destruí-la.

Os capítulos seguintes examinam a reação das três religiões às decisões


políticas em territórios onde elas são proeminentes ou mesmo dominantes.
Elas mostram como estas religiões interferem com os fundamentos do seu
sistema estatal a fim de construir um estado de acordo com a lei de (seu)
Deus. Esta é a política do monoteísmo.

No caso do judaísmo, a estratégia tem sido determinada pelo fato de quase


nunca ter funcionado ao lado de uma estratégia política ou nacional. A
religião coexistiu brevemente com um «estado natal» duas vezes, mas seus
seguidores sofreram mais um banimento de Jerusalém e do que agora é
chamado de «Terra Santa». A imagem do «judeu errante» começou a de-
terminar o destino da religião. Sem um anfitrião, não havia nenhum con-
vidado. Quando chegou a sua única oportunidade, o judaísmo agarrou-a
com sucesso e de forma decisiva.

Mostrou como uma religião pode ser paciente antes de agarrar a oportuni-
dade de abraçar um anfitrião para dominá-la. A estratégia judaica encontrou
força renovada no novo movimento sionista do final do século XIX, que se
combinou com outras tendências para se manifestar no preciso momento da
criação de um novo país para o povo judeu após a Segunda Guerra Mundial.

17
A identidade inicial do cristianismo foi a de um culto zeloso e apaixona-
do. A religião consolidou gradualmente o seu monoteísmo depois de ter
sido aceite dentro do Império Romano. Tornou-se abertamente agressivo
para com os seus inimigos percebidos, especialmente através de fanáticos
comprometidos e rebeldes que contribuíram para o declínio e queda final
do Império Romano. Cresceu rapidamente, depois entregou-se a séculos
de anti-semitismo, violência e perturbação para com muitos dos seus pró-
prios seguidores, divididos tanto pela sua teologia como pela sua geografia,
reduzindo a sua influência entre os seus adeptos cada vez mais diversos,
antes de entrar em declínio moral, pelo menos na Europa Ocidental e nos
Estados Unidos. A flor murchou antes mesmo de florescer.

Uma religião monoteísta que parece estar em declínio não é o fim do cami-
nho. O vírus ainda procura dominar o seu hospedeiro. O monoteísmo cris-
tão permanece em estado de hibernação. Pode despertar e reviver a qualquer
momento, a fim de reafirmar a sua constância histórica e lembrar ao mundo
o seu considerável número de seguidores, a maioria dos quais permanece
sujeita ao vírus e provavelmente ainda está em crescimento, mesmo que a
rede entre Roma, Paris, Nova Iorque e Londres seja relativamente silenciosa.

O Islão adota uma estratégia diferente. Sua história inclui muitos casos em
que poderes seculares e clericais estiveram em conflito, em harmonia, se-
parados e depois fundidos. Depois dos seus primeiros sucessos, especial-
mente no campo de batalha, a agressão institucional do Islão foi domada
na era do colonialismo e do pós-colonialismo, quando os benefícios mate-
riais eram uma ameaça maior do que as crenças rivais. Estes minam tanto
o estado político como a religião.

No entanto, desde o início, a filosofia islâmica não pressupunha qualquer di-


visão entre poder secular e poder clerical. O Islão foi definido e apresentado
como uma religião política. É por isso que os primeiros governantes do cres-
cente império árabe, os líderes espirituais do Ummah, tinham o título de Cali-
fas. Durante o Califado, o estado era o único canal para a religião, e a religião
era a fundação do estado. Isto é o que o Islão conseguiu alcançar, pelo menos
em um período da história antiga e em parte nos tempos modernos. O status
da religião do estado, o objeto do monoteísmo, é na maioria das vezes sobre o
Islã. O vírus permanece activo, tanto para atacar como para se defender.

18
Os judeus, o judaísmo
e o Estado de Israel
Origens
A religião dos israelitas tem a sua origem na guerra tribal interreligiosa.
Continua com uma história de libertação milagrosa e um relacionamento
grupal abusivo com Deus. Estes eventos formam o pano de fundo do nas-
cimento do Judaísmo, que se baseia na eleição de uma raça (ou tribo) de
todas as outras para herdar o mundo.

Cada volta na história é marcada pela violência, influenciada pelo ciúme,


pela vingança e pela ganância, e determinada por um Deus vingativo que
protege e apoia activamente o seu povo. Esta história histórica e lendária é
a imagem de toda religião monoteísta.

A violência e a crueldade estão assim escritas no tecido da primeira reli-


gião de Abraão. O Tanakh, ou Velho Testamento, não é para os fracos de
coração. O terror, o ódio, o medo, a raiva e a repugnância enfileiram as suas
páginas ensanguentadas. O judaísmo certamente não foi concebido como
uma religião de amor eterno, que consome tudo, muito pelo contrário.

O seu Deus é invejoso e rápido a enfurecer-se. Ele castiga e esmaga os seus


inimigos, mas também brutaliza e tortura os seus seguidores em caso de
deslealdade ou desvio. Este Deus é responsável por dezenas, até centenas
de milhares de mortes e pela destruição de aldeias e cidades onde quer que
ele opere.

Este trabalho de base é necessário antes da narrativa da evolução do judaís-


mo, que avança através de uma mística e fabulosa combinação de direitos,
eleições e identificação política. É crucial para entender o monoteísmo na
prática, incluindo suas manifestações atuais nas ruas de Paris, Londres e
Nova York, bem como em Jerusalém, Tel Aviv e Tunis.

19
História antiga e mito: De Abraão a Moisés
A história dos israelitas começa com um relato não datado do Oriente Mé-
dio no final da Idade2 do Bronze, quando se diz que Deus prometeu a um
proeminente líder nômade que ele seria o pai de um grande povo se ele
fizesse o que lhe foi dito. É possível que aqueles que seguiram este homem,
Abrão, agora conhecido como o primeiro patriarca dos israelitas, tenham
tido um sentido de destino especial. Se esse homem realmente existisse
(o que é razoavelmente duvidoso), ele teria sido o primeiro a promover a
idéia revolucionária do único Deus3. O primeiro filho de Abram, Ismael,
também conhecido como Isma’il, é considerado o pai do povo árabe.

Segundo Gênesis, Deus pediu a Abrão que deixasse sua casa, família e país
para segui-lo e obedecê-Lo completamente. Em troca, Deus prometeu a
Abrão que ele teria um relacionamento único, pessoal e exclusivo com Ele,
que produziria uma dinastia de muitos filhos e netos, e que lhe seria dada
uma terra: ‘Farei de ti uma grande nação (...) abençoarei aqueles que te
abençoarem’. Eu vou amaldiçoar aquele que te amaldiçoa4». O conceito de
um povo escolhido e de uma terra escolhida é um aspecto essencial da
história do monoteísmo.

Neste ponto, Abram estava muito duvidoso, pois estas eram apenas promes-
sas. Era necessário um grande acto de fé. Abram já tinha mais de 70 anos e
ele e sua esposa não tinham filhos. Sua decisão de submeter-se ao plano de
Deus confirmou sua fé inabalável, o segundo aspecto essencial do monoteís-
mo. Para honrar a sua decisão, Deus mudou o nome de Abrão para Abraão,
que significa «pai das nações». Acontece que ele tinha 105 anos de vida.

O verdadeiro teste de sua fé, porém, veio quando Deus lhe pediu para
matar seu próprio filho, Isaac, como um sacrifício. Abraão, que confiava
em Deus, estava prestes a obedecer às ordens. Deus interveio no último
2 No Oriente Médio, a Idade do Bronze durou de cerca de 3300 a 1200 a.C., e terminou
abruptamente com o colapso quase simultâneo de várias civilizações proeminentes da
Idade do Bronze. Vários avanços tecnológicos significativos tiveram lugar durante este
período, incluindo os primeiros sistemas de escrita e a invenção da roda.
3 Ironicamente, o pai de Abraão, Terah, ganhava a vida vendendo pequenos ídolos dos
vários deuses adorados na época.
4 Gênesis 12:1-3

20
minuto para lhe oferecer um bode em troca, poupando assim a vida de
Isaac. Deus estava satisfeito e foi capaz de confirmar a sua escolha e as suas
promessas anteriores a Abraão.

A história do sacrifício é também a origem de uma das mais importantes e


populares cerimónias anuais muçulmanas: a de Tabaski, em que uma cabra
é habitualmente morta, esquartejada, cozinhada e comida no mesmo dia.
Para os cristãos modernos, esta história é, na sua maioria, apenas mais uma
história do Antigo Testamento sobre a crueldade psicológica obviamente
sem sentido de Deus. Para puristas e teólogos, a submissão absoluta de
Abraão à vontade de Deus é um conto de advertência que endossa o con-
ceito de um Deus único, todo-poderoso e legislador.

Abraão, como representante do seu povo, recebeu a lei (a aliança) de Deus,


então conhecido como Yahweh. Assim Deus elegeu o povo judeu, conce-
dendo-lhe o direito de viver e governar a antiga terra de Canaã, que hoje
corresponde mais ou menos aos territórios do Estado de Israel (incluindo
Jerusalém), Palestina, Jordânia e Líbano.

Para os israelitas, este foi o início de um longo e difícil período de insta-


bilidade, exílio, conflito, guerra, fome, migração e colonização ao longo
de várias centenas de anos. As histórias, mitos e realidades deste período
são irremediavelmente entrelaçadas por diferentes autores, historiadores,
espectadores e propagandistas. Eles incluem a passagem das doze tribos,
cada uma liderada por um filho de Jacó de uma mãe diferente, vários enga-
nos familiares improváveis mas coloridos, uma incrível ladainha de proe-
zas sexuais, físicas e ginecológicas, as Dez Pragas, um êxodo milagroso do
Egito, quarenta longos anos no deserto, o estabelecimento da Torá (a lei
divina), a recepção dos Dez Mandamentos, a separação do Jordão e a en-
trada final (bem, não tão final) na «Terra Prometida».

Em muitas ocasiões, durante este período agitado, rico em mitos e lendas,


avisos gráficos e severos procuravam enfatizar a importância do monoteís-
mo. Estas advertências surgiram regularmente, como se os vários autores
quisessem lembrar aos seus leitores a ameaça permanente que representa a
adoração de «falsos ídolos» e outros desvios da lealdade exclusiva exigida
pelo Deus judeu. Muitos textos deste período da história judaica são lidos

21
menos como relatos de séries incomuns de eventos do que como avisos
judiciosos aos fiéis para serem exclusivos no objeto de sua fé, como uma
versão religiosa primitiva do «foco no caminho».

No capítulo 32 do Êxodo, por exemplo, quando Moisés subiu ao Monte


Sinai para falar com Deus, ele esteve ausente por quarenta dias e quarenta
noites. Depois de esperar muito tempo por ele, a multidão de Israel ficou
impaciente e pediu a Aarão, irmão mais velho de Moisés, que fizesse ima-
gens de deuses para passar o tempo. Arão então reuniu todos os brincos e
ornamentos de ouro que encontrou e os derreteu para construir um «be-
zerro de ouro», anunciando à multidão: «Estes são os teus deuses, ó Israel,
que te fizeram subir da terra do Egito».

No dia seguinte foi realizada uma festa, o que ajudou a passar o tempo.
Deus, vendo é claro tudo o que estava acontecendo, disse a Moisés e amea-
çou destruir os israelitas a fim de criar uma nova geração de crentes, desta
vez de Moisés - uma reação exagerada muito interessante de um Deus mui-
to ciumento e malévolo, mas obviamente todo-poderoso. Moisés implorou
para que os israelitas fossem poupados. Deus acabou por se arrepender (a
Bíblia até diz que ele estava «arrependido»). Moisés desceu da montanha
com duas tábuas de pedra nas quais Deus tinha escrito os Dez Mandamen-
tos e quando ele viu o bezerro de ouro (que ele esperava ver), ele ficou com
raiva e quebrou as tábuas de pedra. Ele também rasgou o bezerro de ouro
em pedaços, moeu-o em pó, espalhou-o sobre a água e forçou os israelitas
a bebê-lo. Esta história desempenhou um papel bastante preventivo.

No quinto livro do Antigo Testamento, Deuteronômio (capítulo 12), Moisés


faz um discurso de despedida aos israelitas antes que eles finalmente entrem
na Terra Prometida depois de sua difícil viagem. Os discursos que compõem
este discurso recordam o passado de Israel, reiteram as leis que Moisés tinha
comunicado ao povo no Sinai e enfatizam que a observância dessas leis é
essencial para o bem-estar do povo na terra que está prestes a possuir.

É talvez o primeiro e mais extraordinário resumo do monoteísmo, pois


Moisés nota a importância e os benefícios da fidelidade a Javé e da obe-
diência aos seus mandamentos; a maldição de adorar deuses como ídolos
estrangeiros e negligenciar as leis de Javé; a proposta de que Javé só pode

22
ser adorado em Jerusalém por todo o Israel; e que todos, incluindo sacer-
dotes, profetas e reis, estão sujeitos à lei de Javé, tal como foi transmitida
através de Moisés.

Da independência à servidão e à rebelião


O reino de Judá foi conquistado pelo exército babilônico de Nabucodo-
nosor em 587 AC. Jerusalém, incluindo o primeiro templo, foi reduzida a
escombros. A elite do reino e muitos de seu povo foram para o exílio na
Babilônia (hoje Iraque), onde a religião se desenvolveu e diversificou. Ou-
tros fugiram para o Egipto. A Babilônia tinha uma população crescente de
cerca de um milhão de descendentes5 de Judá no final do primeiro século
EC, que subiu para cerca de dois milhões nos quatrocentos anos seguin-
tes, tanto através do crescimento natural como da imigração da Judéia e
Samaria. Após a queda de Jerusalém, a Babilônia permaneceu o centro do
judaísmo por cerca de 1.400 anos, até o século XI EC, quando o dinamismo
cultural e educacional hebraico começou a mudar para a Europa.

A Judéia foi conquistada pelo general romano Pompeu em 63 AC e rees-


truturada como um estado cliente do Império. Em 6 EC, a província ro-
mana da Judeia foi fundada como um anexo da Síria Romana. O Império
era frequentemente impiedoso e brutal no tratamento dos seus súbditos
judeus. Em 66 d.C., os judeus começaram novamente a rebelar-se contra o
domínio romano na Judeia. A rebelião foi derrotada e durante o cerco de
Jerusalém em 70 d.C., após uma nova insurreição contra o domínio roma-
no, os romanos destruíram o Templo em Jerusalém e dispersaram quase
todos os judeus da cidade.

Quase todas as décadas seguintes foram marcadas por um conflito civil


contínuo na Judéia, caracterizado por rebeliões judaicas, incluindo o assas-
sinato de oficiais e soldados romanos, em uma série de eventos relacionados
que hoje poderiam ser descritos como uma violenta campanha terrorista.
Os fundamentos práticos do monoteísmo foram então estabelecidos. A fé
era mais forte que a identidade cívica, mais forte que a obediência civil, que
a estabilidade política e as garantias de residência civil no Império Romano

5 Membros da tribo de Judá, uma das 12 tribos de Israel, se estabeleceram na Babilônia.

23
ou em qualquer outro lugar. Os documentos históricos desse período são
poucos, mas parece que os terroristas judeus eram destemidos em sua guer-
rilha e temidos pelas populações locais mais dóceis entre as quais viviam e
com as quais mal colaboravam.

Pode-se imaginar a política local da época, com romanos e judeus con-


servadores exigindo mais repressão contra os terroristas, a eliminação dos
seus direitos e privilégios, o endurecimento das suas sanções.

Quando Jesus, o rabino viajante, chegou, entregou suas mensagens de paz


e amor depois de séculos de conflito civil causado por uma minoria de agi-
tadores irritantes que se diziam membros de uma raça escolhida por Deus.
Jesus não teria sido o único agitador judeu a ser julgado e condenado pelo
seu próprio povo, cansado de ser amontoado junto com simpatizantes do
terrorismo, mesmo que o terrorismo não estivesse na lista de acusações do
Messias. Seus seguidores e discípulos, no entanto, teriam simplesmente re-
tomado o caminho do terrorismo contra o poder romano após sua morte.

O judaísmo se reverteu criando um novo culto com diferentes objetivos, re-


gras religiosas e rituais, baseado na vida e nos ensinamentos do Messias, e
que já começava a partir de suas origens. No entanto, o novo culto empregou
as mesmas táticas de desobediência civil que os agitadores judeus haviam
usado antes e estava rapidamente construindo o seu seguimento. O judaísmo
continuou a desenvolver-se com os seus rituais, rebeliões e outras dispersões.

História da identificação judaica


Desde o início do século XX, o estado moderno de Israel tem sido conce-
bido principalmente por pessoas não religiosas. Os primeiros colonos ten-
taram abraçar ideias políticas e sociais internacionais modernas derivadas
do nacionalismo cívico, do pacifismo e da social-democracia. O movimen-
to kibbutz das comunidades agrícolas, inspirado nos princípios marxistas,
é um exemplo.

Uma nova oportunidade para os judeus finalmente terem seu próprio


mundo e sociedade foi aproveitada após séculos de perda e discriminação,

24
e muitos viram o nascimento de Israel moderno como o momento de um
renascimento social e político moderno. Mesmo muitos judeus que per-
maneceram apegados à tradição se esforçaram para abandonar os elemen-
tos arcaicos, mantendo apenas os atributos externos. Isso marcou uma rara
virada na história: por que alguém iria querer reintegrar toda a bagagem de
preconceitos religiosos arcaicos?

Muitos dos primeiros sionistas eram europeus em cultura, educação e ci-


dadania. Uma proporção significativa de jovens judeus, especialmente os
da Europa Ocidental e Central, aderiram a várias versões de radicalismo
e socialismo. Rejeitaram firmemente a religião quando chegaram ao novo
estado, com o argumento de que era retrógrada, inadequada e tradicional.

Hoje, a religião tem um papel proeminente na vida espiritual e material do


Israel moderno. Ele rege de perto todos os eventos relacionados ao ciclo
de vida de um israelense, do nascimento à morte, o que tem um impacto
sobre aqueles que não são religiosos em termos de acesso à alimentação,
liberdade de movimento, educação, saúde e outros elementos centrais das
sociedades modernas.

Como é que isto aconteceu? Como o judaísmo conseguiu fundir suas dou-
trinas e práticas com a ideologia modernista e humanista do nacionalismo
judaico? A resposta está em parte na história e em parte na questão da
identidade.

Até cerca do século XIX, os membros das comunidades tradicionais na Eu-


ropa eram definidos mais pela religião do que pela classe, riqueza ou local
de residência. Para a maioria dos judeus, especialmente os que vivem na
Europa Oriental e no Império Russo, a religião continuou a ser o critério
determinante para a sua identificação. A religião permitiu-lhes dividir o
mundo em «nosso» e «deles» e serviu como meio de identificação, tanto
dentro como fora da comunidade judaica.

Este forte sistema de identificação começou a quebrar durante o século


XIX. O movimento mais influente para apagar as fronteiras ideológicas e
geográficas do gueto judeu foi o Haskala (Iluminismo judaico), um movi-
mento intelectual baseado na Europa Central e Oriental. Foi ferozmente

25
oposta pela elite rabínica tradicional, que procurava preservar e ampliar
os antigos valores judaicos. Eles sentiram que os valores tradicionais não
podiam coexistir com a natureza radical do movimento Haskala. Na altura,
isto deve ter-lhes parecido correcto.

Foi nesta época que a popularidade de tendências políticas como o na-


cionalismo, o socialismo e outras ideologias aumentou nas comunidades
judaicas. Ao mesmo tempo, os judeus emancipados e assimilados foram
acolhidos pelas novas elites imperiais emergentes das grandes potências
europeias, aliviados pelo novo movimento social que parecia indicar o
abandono pelos judeus da exclusividade e dos shibboleths da sua religião.

O início do Sionismo
Os primeiros sionistas, a maioria dos quais não eram religiosos, tinham di-
ficuldade em recrutar. Foi necessário estabelecer definições precisas, espe-
cialmente para os membros. Entretanto, era impossível determinar quem
era e quem não era «judeu», já que faltava uma pátria nacional, sem aplicar
o marcador judeu mais óbvio: o critério religioso. O movimento não pode-
ria progredir sem apelar aos membros das comunidades judaicas europeias
que ainda se identificavam desta forma.

As comunidades religiosas tradicionais tiveram assim uma segunda opor-


tunidade inesperada depois de terem caído em decadência. Os judeus na-
cionalistas que se emanciparam recentemente e os deixaram tiveram que
recorrer a eles para pedir ajuda. Não havia uma definição clara de judaísmo
além da de pertencer à tribo que professou o judaísmo.

Este enigma foi praticamente sem precedentes na história do mundo cada


vez mais nacionalista e irredentista pós-Napoleônico. O sionismo teve de
evoluir para um movimento de massas. A única forma, contra-intuitiva-
mente, era através da tradição religiosa e ignorar (temporariamente) a ne-
cessidade nacionalista de modernização da sociedade. Assim, uma religião
que parecia ser estranha a um fenómeno tão modernista como o nacio-
nalismo judeu foi inesperada e rapidamente integrada nele através destas
circunstâncias históricas.

26
A igreja judaica e o sionismo desfrutaram de uma união que teria sido con-
siderada improvável em 1945, mas que agora é vista como um desenvolvi-
mento natural. O monoteísmo voltou a atacar, mesmo com o nascimento
de uma nação que parecia estar à beira de prescindir totalmente da religião.

Do consenso incomum que deu à religião uma nova chance de espalhar


a fé, levou muito tempo até que seu discreto monoteísmo fosse expres-
so. Aceito inicialmente como passageiro em um carro cheio de apóstatas
e agnósticos, logo se tornaria o principal motor do movimento religioso
e político que agora define a criação de Israel. Não demorou muito para
que a religião mais antiga se aproveitasse da mais nova estrutura política
nacional do mundo.

Inevitavelmente, o sionismo começou a dar mais importância à religião


para distinguir um judeu de um não-judeu. Em última análise, foi a pressão
do factor religioso (assim como uma certa lógica) que levou o movimen-
to sionista a exigir a construção de um Estado-nação judeu na Palestina.
Assim, a essência da religião entrou no próprio coração do nacionalismo
judeu moderno. A localização da pátria judaica na Palestina tornou pos-
sível conciliar a autodeterminação nacional com as tradições religiosas e a
história. O sionismo tornou-se uma opinião religiosa e a religião foi para
casa para ficar.

Religião e Modernidade no Estado de Israel


Na época da criação do Estado de Israel, o movimento sionista já havia
adotado a definição de judaísmo com base na lei religiosa medieval «Ha-
lakha», mas com o acréscimo de uma importante emenda que permitia
não só aos próprios judeus, mas também aos seus descendentes de casa-
mentos mistos até a terceira geração, obter a cidadania israelense. Ironica-
mente, ao fazê-lo, o Estado judeu adoptou o mesmo método de definir a
origem judaica dos seus cidadãos que tinha sido estabelecido nas Leis de
Nuremberga da Alemanha nazi.

Assim, a ideia inicial de criar um estado nacional para os judeus europeus


foi transformada na tarefa messiânica de reconstituir um estado bíblico

27
que se tornaria um lar religioso para os judeus de todo o mundo. A religião
foi ainda definida como o fundamento da identidade nacional judaica, sem
ser separada do Estado. Os feriados religiosos tornaram-se feriados nacio-
nais. As práticas seculares e os rituais do ciclo de vida (batismos, casamen-
tos, funerais6) eram da responsabilidade das comunidades religiosas. Os
cristãos e muçulmanos em Israel também foram obrigados a celebrá-los
dentro das suas próprias comunidades religiosas, o que é um caso interes-
sante de regulamentação imposta em nome das religiões monoteístas. A
religião estava entrelaçada com um Estado-nação modernista.

A relação entre nacionalismo e religião tem sido descrita como uma série
de contradições: nacionalismo modernista versus arcaico e religiosidade
retrógrada. Contudo, no caso do sionismo que se desenvolveu com a cria-
ção do Estado de Israel, estes fenómenos fundiram-se numa trindade: «Re-
ligião-Estado-Nacional». Em vez de rejeitar a religião, os sionistas usaram
uma narrativa histórica secular que considerava os judeus como um povo
mono-confessional.

Este foi um movimento pragmático, porque se os judeus não fossem uma


nação, mas apenas um grupo religioso, a legitimidade do Estado teria sido
comprometida. Afinal de contas, Israel foi criado em meados do século
XX, apenas cem anos após as revoluções de 1848 terem feito do Estado-
-nação o conceito europeu predominante. O nacionalismo já estava assim
bem avançado e começava mesmo a mostrar alguns sinais de tensão, tendo
produzido duas guerras mundiais e contribuído para a ascensão do fascis-
mo em vários países europeus.

O erro cometido pelos sionistas seculares na formação do Estado, e que


ainda hoje é cometido por muitos israelenses seculares, é a crença de que a
religião pode ser isolada para ocupar apenas uma parte limitada da estru-
tura do Estado. Na realidade, o judaísmo tem aumentado constantemente
sua influência através de símbolos, ideologia e um mundo judeu que os
judeus religiosos são supostamente os únicos a preservar.

O mito de que não há identidade judaica sem judeus religiosos está pro-
fundamente enraizado na consciência da sociedade israelita secular e da
6 Comumente conhecido como «hatch, match and dispatch» em todo o Reino Unido.

28
diáspora judaica fora de Israel. O liberalismo dos primeiros colonos não
era páreo para o monoteísmo dos fiéis.

Tendência para a teocracia


A maioria dos israelenses contemporâneos concorda com a necessidade de
uma colaboração formal entre a religião e o Estado. No entanto, os motivos
e o grau de envolvimento da religião na vida do Estado e da sociedade estão
sujeitos a um debate sério.

Cerca de 25% dos israelitas identificam-se como judeus não-religiosos e


não associam a sua identidade judaica à religião. A maioria deste grupo
são judeus da ex-URSS que emigraram para Israel nos últimos 30 anos. Por
outro lado, 7-10% deles são israelenses liberais que não reconhecem uma
relação formal entre a religião e o Estado. De acordo com eles, a religião é
um assunto privado e não público.

Cerca de 50% dos israelenses vêem o judaísmo como uma combinação


de elementos religiosos e nacionais, e essa porcentagem está aumentando
constantemente. Eles acreditam que a religião é parte integrante da identi-
dade judaica e, portanto, não pode ser separada do Estado judaico.

Cerca de 10-12% dos israelitas são sionistas religiosos. Eles percebem a


religião e a nação como uma unidade, e não duvidam da necessidade de
fortalecer o componente religioso na educação e na vida pública. Os sionis-
tas religiosos constituem a maioria dos colonos nos territórios palestinos.
Eles se vêem como agentes ao serviço de Deus no retorno aos israelitas da
terra que lhes foi legada por Deus na Torá. Motivados por razões religiosas,
eles implementam um projeto de reassentamento e colonização em grande
escala que beneficia o movimento sionista.

Finalmente, cerca de 10-12% dos israelitas são Haredim, judeus ultra-or-


todoxos. Este grupo aspira abertamente a estabelecer um estado religioso.
A grande maioria de Haredim despreza o sionismo, embora reconheça o
Estado de Israel. Ao contrário dos sionistas religiosos, eles não cumprem
qualquer dever para com o Estado: em particular, eles não servem no

29
exército israelense. Isto poderia ser visto como um eco inconsciente dos
primeiros cristãos fundamentalistas que recusaram o serviço militar nos
últimos anos do Império Romano. Tal como os sionistas religiosos, os Ha-
redim estão a crescer em número.

A tendência de absorção gradual do Estado secular pelo Estado religioso


em Israel tornou-se mais evidente nas últimas décadas. Muitos estudio-
sos acreditam que esta é uma tendência excepcional, específica apenas dos
últimos anos. No entanto, este fenómeno não é uma coincidência. É uma
manifestação das suas raízes. A aproximação com o judaísmo foi um gran-
de erro dos primeiros sionistas seculares, pois eles se tornaram dependen-
tes dele depois de se aliarem à igreja para buscar maior influência como um
lobby dentro do novo estado.

O generoso anfitrião ainda não pode ser destruído, mas ao se esforçar por
permear todas as esferas do estado e da vida pública, o judaísmo tornou-se
agora integrado e está à beira de alcançar seu objetivo principal de ganhar
controle absoluto sobre a sociedade de uma forma natural.

30
Cristianismo: o vírus deixa
seu tempo para trás
Avante, soldados de Cristo
Durante os primeiros anos após a morte sangrenta de Cristo na cruz do
Gólgota, os primeiros cristãos, discípulos e seguidores, vaguearam pela
região como mercadores gananciosos, recrutando com sucesso milhares
para se juntarem ao culto cristão. Não havia nenhuma taxa a pagar, exceto
para aceitar a palavra do Senhor.

Esta é uma fase extraordinária no desenvolvimento do cristianismo. Jesus


Cristo, durante sua vida, confirmou repetidamente que era o filho de Deus
(ou, para ser mais preciso, não o negou), ou seja, um homem pacífico que
ensinou o poder do amor. Ele tinha vindo para salvar o mundo e perdoar
os pecados da humanidade. Jesus estava sem dúvida convencido da imensi-
dão do poder e do amor de Deus. Ele fez uma conhecida abordagem social
e pessoal a isto e prometeu que os pobres e miseráveis teriam muito mais
facilidade em chegar ao céu do que os ricos e ricos. O apelo teria atraído
muitos apoiantes, mas poucos patrocinadores. Os ricos estavam um pouco
preocupados. No entanto, o trabalho promocional tinha começado bem.

Paulo de Tarso (também conhecido como Saulo), um convertido, tinha


mobilizado uma equipa regional para recrutar adeptos. Esta não foi uma
tarefa difícil. Milhares de pessoas se juntaram a eles. A maioria dos pri-
meiros recrutas era impotente (mas os recursos humanos são sempre úteis
para liderar uma revolução). A religião foi a primeira a apelar para aqueles
que estavam no fundo da escada. Foi talvez esta nova abordagem que deu
ao cristianismo tantos novos seguidores entre aqueles que nunca tinham
tido poder de qualquer tipo. Em particular, foi popular entre as mulheres
que podem ter visto nestes ensinamentos um sinal de respeito pelas mu-
lheres e pelo seu papel, quando elas estavam atoladas em drudgery, depen-
dência e servidão.

As cartas de Paulo, em particular, são fascinantes pela descrição detalhada

31
de suas próprias viagens e encontros para levar a palavra do Senhor àque-
les que pareciam prontos para serem convertidos. O próprio Paul já era
o convertido mais famoso do mundo. Ele recebeu a revelação do Senhor
enquanto caminhava em direção a Damasco. De acordo com o livro de
Atos (9:1-9), ele foi atingido «por uma luz do céu que o envolveu em seu
brilho» e caiu no chão.

A descrição faz lembrar as experiências de Moisés, o israelita, quando foi


encarregado por Deus de fundar a religião judaica, mas Paulo hesitou mui-
to menos que Moisés antes de aceitar este novo papel, mesmo depois de
três dias de cegueira forçada após uma súbita explosão de luz (nem lhe foi
pedido que matasse o seu filho).

Como personalidade, Paulo foi o modelo dos primeiros cristãos: apai-


xonado, obsessivo, ascético, persuasivo, capaz de ser o que chamaríamos
hoje um moralizador, um verdadeiro revolucionário cujo único propósito
guiou todo o seu pensamento. É improvável que ele tenha sido capaz de
se acalmar facilmente, e ele foi certamente percebido pela pessoa comum
como tenso, apaixonado e perseverante, que não tinha medo de qualquer
reação negativa às notícias que trazia.

Paul tornou-se responsável pela proselitismo cristão. Ele trabalhou como


um louco e comunicou suas experiências e observações pessoais como
diretor chefe da promoção do cristianismo. Paulo converteu todos os re-
cém-chegados, não apenas os judeus, mas todos aqueles que o ouviam,
incluindo os soldados romanos enviados para prendê-lo.

A administração romana, voltada para a lei, tinha longa experiência em


lidar com judeus rebeldes e cristãos fugitivos, e muitas vezes tinha conse-
guido virar os judeus uns contra os outros em eventos famosos. Mas Paulo
desencadeou uma enorme onda de conversões pacíficas, um verdadeiro
arco-íris de raças, tribos, cores, ocupações e culturas.

Os seguidores de Cristo nunca o tinham ouvido falar de revolução como


um ato violento, nem o tinham feito eles mesmos. A mensagem cristã era
uma mensagem de amor aos inimigos. Os romanos tinham tido dificul-
dade em prender legalmente Cristo ou seus seguidores sob suas próprias

32
regras. Foi embaraçoso, mas não impossível, para eles impedirem Paulo de
andar por aí promovendo a paz na terra e o amor por todos. Eles continua-
ram a perseguir judeus e cristãos rebeldes, mas as mensagens essenciais da
revolução cristã eram, à primeira vista, difíceis de criminalizar ou desafiar.

Paulo foi um dos principais porta-vozes da mensagem do Deus cristão que


Jesus tinha deixado em várias cidades (nomeado nas epístolas paulinas).
Tendo ele próprio perseguido os cristãos e testemunhado o apedrejamento
do discípulo Estêvão antes da sua conversão, Paulo foi perseguido, preso e
depois decapitado em Roma entre 58 e 67 EC.

A mensagem cristã original de amor perfeito não era sustentável. Será que
a razão finalmente percebeu os erros e deficiências de um programa tão
idealista? Qualquer que seja a causa dessa mudança, ela ocorreu mais ou
menos na mesma época em que o cristianismo foi aceito no panteão da
religião romana.

O vírus das religiões monoteístas estava ativo novamente. Do seu triunfo


político com a aprovação oficial de Roma do abandono da palavra de Jesus
e do ganho da energia viral do monoteísmo, a sede permanente de poder
político foi reafirmada. Menos de 150 anos depois, o Império Romano de-
sapareceu e o Cristianismo, armado com o seu vírus, voltou-se para os seus
próximos alvos. Seu trabalho em Roma foi feito, confirmado pelo simbóli-
co Estado-nação que o cristianismo deixou em seu coração.

Talvez o mais importante, as mensagens foram complementadas e até alte-


radas na prática. Os cristãos ainda deviam amar seus inimigos, mas tam-
bém podiam matá-los, massacrá-los, saqueá-los e destruí-los.

Um poder divino disruptivo


O cristianismo começou a radicalizar e a inovar de muitas maneiras. Hoje,
nós o saudaríamos por sua capacidade de «perturbar». Interrompeu sua tra-
dição e fonte judaica; certamente perturbou a hierarquia romana e o sistema
político; também perturbou a ordem das coisas de maneiras menos materiais.

33
O judaísmo não havia abordado diretamente o conceito de poder divino,
exceto em fábulas e histórias, embora estas fornecessem pistas poderosas
sobre a natureza do Deus que Moisés e outros enfrentaram. Inicialmente, o
cristianismo reivindicava o acesso e a compreensão do poder divino, como
diferente do poder político, que fazia parte de um circuito alternativo de
influência que incluía resistência, interação e até mesmo aprovação ou
apoio. O poder divino proposto pelo cristianismo era distintamente dife-
rente. Era um poder máximo, um poder que não podia sequer ser avaliado.
Tinha pouco a ver com o poder temporal (ou político), e muito menos com
o poder humano. O poder divino no monoteísmo não provoca reação nem
resistência, já que ambos são inexistentes e inúteis.

O cristianismo parece assim ter sido a primeira grande religião a exigir a


submissão completa e exclusiva do crente ao Deus único, todo-poderoso,
sem concessões. É como se a religião viesse à frente e imediatamente se
recusasse a reconhecer qualquer outra fonte de poder ou a ser introduzida
em qualquer outro tipo de pensamento sobre autoridade. Este não é o tipo
de personalidade que você gostaria de ter à sua mesa.

O poder divino não corre o risco de perder seu status, pois o conceito de
onipotência não existia fora do judaísmo no momento do nascimento
de Cristo e, mesmo assim, faltava-lhe clareza. Para entender melhor esse
conceito, imagine que os terroristas (políticos ou religiosos) decidem não
reconhecer o tribunal que os condena por terrorismo. O acusado pode so-
frer o julgamento, mas nunca reconhecerá a sua validade. Neste sentido, o
poder divino nada tem a ver com o poder temporal, mesmo para fins de
comparação, uma vez que é suposto existir separadamente dele.

Este conceito também é obviamente familiar na política. Muitas vezes não


é reconhecida qualquer tipo de autoridade e este princípio não é raro na
política, especialmente no que diz respeito ao terrorismo, assassinato e ou-
tros crimes extremos. O poder divino, reduzido a sua própria fórmula, é
equivalente à violência, pois o poder não é exercido por uma pessoa sobre
outra, mas pelo sujeito (Deus) sobre o objeto (o povo). O poder de Deus
sobre as pessoas é infinito e, portanto, inatacável. Deus é, por definição,
imbatível.

34
O poder total torna-se legítimo através da sua associação com Deus, como
diz a famosa fórmula da Epístola aos Romanos: «Todo o poder vem de
Deus». Moisés estabeleceu o monoteísmo, por um lado, e a autoridade ab-
soluta de Deus, por outro, que são dois lados da mesma moeda. De acordo
com os cristãos, a legitimidade da autoridade de Moisés deriva inteiramen-
te de sua submissão voluntária a Deus. Ele é ao mesmo tempo um legisla-
dor político e um legislador religioso, mas ele se entrega ao seu líder sem
hesitar.

Como o triunfo de Cristo levou


à perda de Roma
Enquanto o cristianismo apareceu aos seus seguidores como uma religião
de amor e tolerância infinitos, a relação do cristianismo com as sociedades
em que cresceu e floresceu pela primeira vez foi caracterizada pela intole-
rância absoluta, marcada pela auto-exclusão desafiadora.

Nunca antes a religião tinha sido um fim em si mesma. O conceito de po-


der divino no novo culto exigia, portanto, uma compreensão exclusiva da
espiritualidade e do Reino de Deus. Enquanto na antiguidade o poder po-
lítico estava no topo da pirâmide social, o advento do cristianismo estabe-
leceu a primazia absoluta da ordem metafísica: Deus governa sobre tudo
e todos. Os cristãos lutaram implacavelmente contra qualquer poder que
não se encaixasse nesta descrição.

Roma era o seu alvo ideal. Desde o início, a religião dos romanos era poli-
teísta e muito tolerante. Eles estavam felizes em acrescentar cultos estran-
geiros, a maioria de nações conquistadas, ao seu panteão. Eles até se absti-
veram de impor seus próprios deuses àqueles que haviam conquistado, o
que consideraram desnecessário, já que já os haviam derrotado.

Para os romanos, a religião era uma questão cultural e cívica não relacio-
nada com a salvação das almas. Era sobre rituais e jóias, comemorações
e elogios públicos. Em Roma, as expressões individuais de fé não eram
consideradas importantes ou relevantes, ao contrário da estrita adesão a

35
um conjunto rígido de rituais, que era um requisito civil e cívico. Não se
tratava de convicções ou sentimentos íntimos, e muito menos de compor-
tamento pessoal e moral. Mas o cristianismo penetrou em todas as esferas
da vida: personalidade, crenças, moral e sentimentos. A invasão era viral e
não encontrou resistência romana.

Os governantes romanos temiam acima de tudo o seu monoteísmo intran-


sigente, porque a implicação política do poder divino definido pelo cris-
tianismo afectava directamente os poderes do Estado e especialmente do
imperador.

Foi difícil debater com cristãos porque eles não aceitaram nenhuma base
de discussão. O cristianismo não era racional, liberal ou tolerante. Não ad-
mitiu outra divindade a não ser o seu próprio Deus. Isto fez de todos os
cristãos pelo menos rebeldes, se não violentos revolucionários.

Os cristãos recusaram-se a honrar os deuses nativos (ou domésticos); opu-


seram-se ao culto imperial (o que significa que se opuseram directamente à
autoridade imperial). A ideologia cristã não só afirmou ser o caminho cer-
to, a verdade e a luz, mas também afirmou que, por extensão, qualquer ou-
tro caminho estava errado e deveria ser eliminado. Os cristãos foram salvos;
outros não foram. Os cristãos estavam certos, outras religiões estavam er-
radas. Pior ainda: estavam doentes, loucos, maus, condenados e inferiores.

Para muitos romanos imperialistas, os cristãos também ofenderam o pax


deorum ou «paz dos deuses». O deorum pax foi de facto seriamente amea-
çado em vários aspectos. O cristianismo, oposto aos valores fundamentais
da Roma politeísta e tolerante, apareceu ao mundo antigo como um siste-
ma de crenças excepcional e estranho.

A crença dos cristãos no seu futuro reino celestial deixou-os perigosamen-


te indiferentes às necessidades do seu reino terreno. Evitaram o serviço
militar e conseguiram colocar a oração, o sofrimento, a paciência e o ego-
centrismo dos crentes antes da preservação do Estado, privando-os assim
de qualquer interesse pelas virtudes da vida pública. Vastas somas de di-
nheiro público foram gastas não para proteger o Império, mas esbanjadas
nos incontáveis monges e freiras da Igreja.

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O cristianismo não era apenas uma cobertura eclesiástica tranquilizadora
para os males do mundo, nem era um outro modo de vida a ser acrescen-
tado ao panteão romano. Não era sequer uma questão de vida ou morte.
Era muito mais importante. Era uma guerra pelo poder eterno e divino.

James George Frazer acreditava que o cristianismo e outras «religiões


orientais» tinham ajudado a aniquilar a racionalidade e a cultura romana
«saturando os povos europeus com ideais estrangeiros, minando gradual-
mente todo o tecido social da antiga civilização. As sociedades grega e ro-
mana baseavam-se no conceito de subordinação do indivíduo à comuni-
dade, do cidadão ao Estado...Tudo isso foi transformado pela difusão das
religiões orientais que inculcavam a comunhão da alma com Deus e a sua
salvação eterna como únicas razões de existência.

O ataque cristão à herança clássica no final do período imperial foi tanto


físico como cultural, desde o assassinato de Hipatia em 415 d.C. e a des-
truição de estátuas pagãs, até o fechamento de templos e a destruição de
livros (estima-se que 99% da literatura latina produzida há 1600 anos foi
perdida ou destruída).

Os romanos poderiam facilmente ter dizimado o cristianismo após a mor-


te de Cristo. No entanto, a agressão romana contra os cristãos visava punir
os rebeldes, não eliminar a religião e os seus crentes. Os romanos eram
pacientes e confiantes, e invariavelmente seguiam os procedimentos legais
em vigor quando os cristãos quebravam as regras, dando-lhes tempo para
desaparecerem ou se arrependerem.

Isto tem sido interpretado como fraqueza, o mesmo que tem sido demons-
trado pelas democracias liberais modernas ao lidarem com conflitos vio-
lentos e terrorismo nos dias de hoje. Em ambos os casos, seja perante o
Império Romano ou perante a colonização europeia do pós-guerra, as for-
ças da religião monoteísta escrutinam e testam incansavelmente o arsenal
liberal, procurando a mínima fraqueza, como um vírus que tenta constan-
temente entrar num corpo.

37
O conflito entre secularismo e espiritualidade
A consolidação do princípio de dominação divina inerente ao monoteísmo
encontra-se nos escritos de Santo Agostinho, que distingue duas «Cida-
des»: «A primeira é aquela que vive sob a lei do homem, a outra é aquela
que vive sob a lei de Deus». Destas duas comunidades, uma está destinada
a reinar graças a Deus e a outra a sofrer o castigo eterno do diabo.

Pela Cidade da Terra ou pessoas que vivem numa sociedade de homens,


Agostinho significa o estado no seu sentido tradicional, governado por
um homem. Este era o caso na Roma antiga até que apareceu uma nova
religião. O reinado do cristianismo trouxe uma contradição entre os prin-
cípios de «todo poder de Deus» (o Um) e «todo poder do homem» (o prin-
cípio romano).

O nascimento do imperador Constantino, cerca de 300 anos após o nas-


cimento de Cristo, deu início a uma era marcada pela difícil separação do
poder secular e espiritual. Ao aceitar o cristianismo, o Imperador Cons-
tantino foi guiado por considerações pragmáticas. Ele usou a nova reli-
gião para salvar o império em declínio, para controlar mais de perto a sua
população e para fortalecer a sua autoridade. O imperador poderia apelar
para a natureza divina de sua autoridade e afirmar, como muitos outros
monarcas, ser o defensor da fé.

Para Constantino, assim como para o imperador Teodósio, que fez do cris-
tianismo a religião estatal do império no final do século IV, não havia dúvi-
da de que o cristianismo (e especialmente a sua Igreja) era um instrumento
valioso ao serviço do poder secular do imperador.

Constantino deixou isso claro ao presidir deliberadamente várias das reu-


niões mais importantes do próprio Conselho de Nicaea. Ele era, no entanto,
um político, não um prelado. A sua conversão ao cristianismo foi principal-
mente um movimento político calculado e oportunista. No momento de sua
conversão, ele pode ter colocado esse gesto importante no contexto de uma
simples afiliação com outro grupo influente, a fim de fortalecer seu poder,
através da afixação de uma nova insígnia que reforçou seu apelo político.

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No entanto, o Cristianismo tinha finalmente ganho aceitação. Tinha pe-
gado. O vírus estava em acção. Não podia ser parado. Interpretações dos
textos sagrados que legitimaram a mais alta autoridade da igreja romana
apareceram quase imediatamente.

O Evangelho de Mateus, o primeiro dos Evangelhos, foi escrito para uma


audiência cristã judaica que vivia perto de Jerusalém, a segunda geração
após a morte de Jesus. Nos 300 anos seguintes, elementos chave do texto
foram analisados em profundidade por Tertuliano no século II, e por Cri-
sóstomo e Agostinho no século IV.

Pela primeira vez, a famosa citação de Mateus sobre Jesus construindo sua
igreja sobre uma pedra foi usada como uma ferramenta política. Ele quali-
ficou imediatamente Pedro, pelo raciocínio post hoc ergo propter hoc, como
o primeiro Papa, e mais tarde se tornou um dos fundamentos teológicos
sobre os quais a Igreja reivindicou o poder.

«Eu vos darei as chaves do Reino dos céus; tudo o que ligardes na terra será
ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu».
Eu vos darei as chaves do reino dos céus; tudo o que ligardes na terra será
ligado no céu, e tudo o que perderdes na terra será solto no céu. (Mateus
16:18-19)

Estes dois versículos foram usados para provar que Deus tinha confiado
o poder terreno ao apóstolo Pedro e aos seus herdeiros escolhidos: os pa-
pas e todo o poder temporal sob eles que tinha sido desenvolvido nos três
séculos que se seguiram à morte de Jesus e, claro, do próprio Pedro, que
nunca teve conhecimento da sua importante elevação temporal. Além das
referências dos escritos de Agostinho que distinguiam as duas cidades, esta
situação formou o terreno comum para os debates sobre o primado da
Igreja sobre o Estado.

No século seguinte, o Papa Gelasius I (492-496) desenvolveu as idéias de


Agostinho, enfatizando a ligação inseparável entre o poder secular e espi-
ritual no cristianismo e usando essas idéias para suas próprias ambições
de grandeza além dos reis. Ele escreveu que o imperador tinha que obede-
cer ao papa e que os mundos espiritual e secular eram um perante Deus.

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A queda do Império Carolíngio na Europa Ocidental também gerou uma
casta de guerreiros de fé cristã duvidosa, comumente glorificados e depois
romantizados como os Cavaleiros Errantes, que, até a justificação da vio-
lência pela palavra de Deus, provavelmente pouco mais tinham a fazer do
que lutar entre si por direitos de gabarolice e para conquistar as mulheres.

Milhares de soldados cristãos foram mais tarde autorizados a continuar a


sua marcha implacável para a guerra desde o século XI até pelo menos
ao final do século XIX (quando missionários cristãos americanos, france-
ses, belgas e britânicos se apressaram a entrar na recém-colonizada África
pagã e islâmica). Por um século ou mais, os sacerdotes foram chamados a
abençoar armas, balas, bombas e um arsenal de armas enquanto nações
européias travavam batalhas incoerentes provocadas por seu desejo de ex-
pandir seus reinos, mercados e poder «com a Cruz de Jesus diante deles».

A luta pelo direito de nomear bispos alemães serviu como causa oficial do
conflito entre poder secular e poder espiritual em meados do século
IX a.C. Esta luta pela investidura foi a conclusão lógica da história de coe-
xistência entre a Igreja e o poder secular desde a época de Agostinho.

No século XI, numa disputa entre o Papa Gregório VII e o Santo Impera-
dor Romano Henrique IV sobre o primado do poder eclesiástico sobre o
poder secular, a Igreja declarou pela primeira vez, num milénio de gestação
institucional e espiritual, que não só se considerava superior ao poder se-
cular, como estava preparada para pôr em prática esse poder.

Após longas disputas com o Santo Imperador Romano Henrique IV, in-
cluindo as consequências do Sínodo dos Verbos sobre as nomeações epis-
copais em Munique, o Papa Gregório excomungou Henrique IV no Sínodo
Quaresmal de 1076 em Roma, citando as hostilidades anteriores. Ele tam-
bém deu ao Henry um ano para ceder ou perder a sua coroa. O imperador
foi então descalço a Canossa para implorar o perdão do papa. Com este
triunfo, o fundamentalismo cristão atingiu o seu auge totalitário. No en-
tanto, ele pode não ter sabido que este era o clímax; um declínio constante
e persistente já estava no horizonte.

40
As Cruzadas e a purga reformadora
As Cruzadas, que começaram dentro de vinte anos após o incidente de
Canossa, podem, portanto, ser reconhecidas como uma espécie de triun-
falismo religioso. Jesus, um milênio antes, nunca teria feito o que o Papa
Urbano II, sucessor de seu amigo Pedro, fez em 1095 quando proclamou a
primeira cruzada e pediu apoio militar através do recrutamento para fazer
uma peregrinação armada a Jerusalém. Este foi o início de uma série de
guerras religiosas sancionadas pela Igreja com o objetivo explícito de liber-
tar a Terra Santa do domínio islâmico.

Uma das principais diferenças entre estas campanhas e muitos outros con-
flitos religiosos cristãos foi que a Igreja declarou que a participação seria
considerada como uma penitência pelo perdão dos pecados.

Em 1095, o apelo do Papa Urbano II às cruzadas foi muito popular e po-


pulista, e isso provocou uma reação considerável. Enquanto alguns não
acreditavam na penitência proposta pela Igreja, havia outras motivações,
incluindo a perspectiva de uma ascensão coletiva ao paraíso em Jerusalém
(assim como aos terroristas islâmicos modernos é prometido um caminho
rápido ao paraíso pelos clérigos fundamentalistas se morrerem em batalha),
a satisfação das obrigações feudais, a fama e a riqueza. Os primeiros suces-
sos levaram à criação de quatro estados Cruzados: o Condado de Edessa,
o Principado de Antioquia, o Reino de Jerusalém e o Condado de Trípoli.

A presença dos Cruzados continuou de uma forma ou de outra na região até


a queda da cidade do Acre em 1291, resultando na rápida perda de todo o
território restante no Levante. Depois disso, não houve mais cruzadas para
recuperar a Terra Santa. Historicamente falando, as cruzadas acabaram.

As Cruzadas conseguiram limitar a propagação do Islão e podem até ter


impedido a Europa Ocidental de cair no domínio muçulmano. Contudo,
eles também reforçaram a cisão entre o cristianismo oriental e o cristianis-
mo católico romano. Além disso, o mundo islâmico via os Cruzados como
invasores violentos, viciosos e cruéis. Isto criou uma nova desconfiança
e ressentimento em relação ao mundo cristão. A memória colectiva das

41
Cruzadas sobreviveu durante mil anos, e os activistas cristãos e islâmicos
ainda falam de Cruzados com conotações claramente contraditórias.

Para definir o cenário, novos e inesperados cismas estavam surgindo den-


tro do cristianismo e entre o cristianismo e o islamismo. Sendo ambas as
religiões monoteístas e agressivas, estas divisões causaram profundas cica-
trizes: uma sensação de vitória equivocada entre os cristãos e um ressenti-
mento profundo de derrota e desacordo entre os muçulmanos. A divisão
definitiva entre cristianismo e islamismo foi então confirmada.

Após as tréguas inconclusivas da Concordata dos Vermes, no início do sé-


culo XIII, o conflito entre o poder secular e eclesiástico tornou-se mais
pronunciado. O Papa Inocêncio III expressou sua visão clara do lugar da
Igreja na sociedade temporal: «inferior a Deus, mas superior ao homem».
Também se deu um novo título e novos poderes: «o Vigário de Cristo na
Terra», nome que lembra um dos títulos autoproclamados de um ditador
totalitário africano ou asiático.

Os cristãos também mataram os seus por se desviarem do modelo oficial.


Há muitos exemplos deste tipo de violência extremista. Numa série de
massacres no sudoeste da França do século XIII, os cristãos tradicionais
mataram cátaros, que eram conhecidos por serem fundamentalistas. Em
Béziers, durante a Cruzada Albigensiana em 1209, quando os soldados da
cidade partiram em uma excursão, foram rapidamente derrotados e depois
perseguidos pelos cruzados que os levaram de volta aos portões da cidade.
Arnaud Amaury, comandante dos cruzados, foi questionado sobre como
distinguir os católicos dos outros. A sua resposta arrepiante foi: ‘Caedite
eos’. Novit enim Dominus qui sunt eius», que significa «Mata-os a todos,
Deus reconhecerá os seus».

Nas igrejas e noutros locais, os refugiados eram arrastados e massacrados.


Pelo menos 7.000 homens, mulheres e crianças foram mortos no local por
forças católicas, e vários milhares mais na região. Os prisioneiros eram ce-
gos, arrastados atrás de cavalos e usados como alvos de tiro. O que restava
da cidade foi arrasado pelo fogo. Arnaud-Amaury escreveu ao Papa Ino-
cêncio III: ‘Hoje, Vossa Santidade, vinte mil hereges foram postos à espada,
independentemente do grau, idade ou sexo.

42
Ou a religião deles, ao que parece. Os cismas e os cultos são frequentemen-
te uma ameaça maior ao monoteísmo do que o inimigo comprovado que
fala uma língua completamente diferente. Ainda assim, é chocante para
a tradição liberal, que está mais ou menos hesitante nas três religiões nos
tempos modernos.

Entretanto, mesmo quando a Igreja se deu a si mesma poderes espirituais


crescentes na Terra, o seu poder político começou a diminuir com o colap-
so da ordem feudal, a nova era do humanismo e a Reforma. Mas a derrota
da Igreja não significou o abandono do seu desejo de controlar a sociedade.
O vírus ainda estava vivo e ativo, mesmo se a Igreja tivesse perdido o cami-
nho estreito indicado por Cristo para se juntar a outro grande caminho. O
temporal tinha consumido e depois expulsado o espiritual, que se dissol-
veu em filosofia, psicologia e misticismo.

Jesus Cristo pregou amor, submissão e sacrifício independentemente da


fé na qual ele cresceu, mas seus seguidores e discípulos se tornaram mais
agressivos e anti-sociais nas gerações desde sua morte violenta. A imagem
dele, ensanguentado, em agonia sobre uma cruz de madeira é extrema-
mente perturbadora. Muitas representações da sua morte são tão gráficas
que requerem um aviso, mas é o logotipo oficial do cristianismo, carinho-
samente afixado num lugar proeminente nas paredes das suas casas pelos
amáveis e gentis cristãos do mundo.

Depois que o cristianismo ajudou a destruir o Império Romano por den-


tro, ele se tornou agressivo por fora, apesar de suas mensagens fundamen-
tais de paz e amor. Suas igrejas e seus seguidores têm atacado e matado
não crentes, bem como crentes que procuraram um cristianismo menos
monoteísta, menos totalitário e mais tolerante durante seus 2000 anos na
Terra. Seu declínio parece ser a história de um vírus vivo que tem constan-
temente ameaçado se aproximar e matar seu hospedeiro, mas que até agora
não o fez. Ainda há tempo de sobra.

43
Islamismo: Cumprir a Missão
Expandindo a sua influência
A história do Islão inclui momentos em que os poderes secular e eclesiás-
tico têm estado alternadamente em conflito, em harmonia, separados ou
fundidos. O exemplo clássico da história islâmica primitiva é o califado
político abássida e as estruturas estatais que o precederam, criadas pelo
profeta Maomé, que começou sua vida adulta como soldado.

Desde o início, a filosofia islâmica não fez distinção entre o poder secular e
eclesiástico. As duas cidades de Agostinho não têm sentido no Islã, já que
a fé foi definida e apresentada desde o início como uma religião política. É
por isso que os primeiros governantes do crescente império árabe tinham
o título de califas, ou seja, os líderes espirituais do Ummah muçulmano.
Durante o Califado, o estado político era o único veículo para a religião, e
a religião era a fundação do estado. Isto é o que o cristianismo ainda está
a tentar alcançar.

A expansão da influência do Islão e o desenvolvimento de conflitos in-


ternos, cismas e seitas dentro da religião levaram a uma divisão de facto
de funções entre o poder religioso e secular. Contudo, mesmo quando o
Império Otomano se tornou o Estado muçulmano mais poderoso, o califa
(«comandante dos fiéis») ocupava o segundo papel mais importante sob o
sultão otomano e muitas vezes orientava as suas políticas.

Ao mesmo tempo, o Islão é caracterizado pela ausência de uma hierarquia


vertical unificada do poder religioso. Isto pode ser explicado pela integra-
ção do Islão na hierarquia vertical do Estado, o que torna supérflua qual-
quer hierarquia eclesiástica.

O Islão teve origem militar, entrou na política, suportou como uma ideolo-
gia, e depois desenvolveu uma missão comum através da conquista e uma
doutrina religiosa através do controle.

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Como muitas ideologias de sucesso, o Islão funciona melhor com multidões.
Seu maior progresso tem sido feito com uma grande população, embora seja
uma religião que se concentra principalmente na salvação pessoal. Mais
recentemente, as suas campanhas militantes têm sido apoiadas por muitos
países muçulmanos. De fato, as campanhas precisam de popularidade para o
recrutamento, assim como as cruzadas cristãs do último milênio.

Na sua maioria, o Islão já tinha cumprido a missão de se integrar plena-


mente com o Estado e estabelecer o controlo sobre a vida secular e espiri-
tual de todos os muçulmanos em várias regiões, em grande parte porque o
movimento inicial tinha uma dimensão política e tal desenvolvimento era
universalmente esperado.

Os impérios muçulmanos entraram em declínio durante o século XVIII,


em relação ao seu poder anterior e aos poderes em ascensão na Europa.
Este foi o prelúdio para o domínio europeu, simbolizado e iniciado pela
conquista do Egipto por Napoleão em 1798. Em 1818, o poder britânico
já controlava a Índia, e muitas outras colónias e mandatos se seguiram ao
longo do século seguinte. Nem todos os territórios muçulmanos foram co-
lonizados, mas quase todos experimentaram alguma forma de dependên-
cia e muitos capitularam em sentido político. Somente o regime saudita
poderia ser considerado como tendo escapado de qualquer forma de de-
pendência, mas mesmo assim, a exploração de petróleo, lançada na década
de 1930, levou a uma indesejável interferência europeia. No século XIX, a
ocidentalização e o activismo islâmico coexistiram e competiram. No virar
do século XX, o nacionalismo étnico secular tinha-se tornado o modo de
protesto mais comum nos países do Islão.

A tensão entre a identificação islâmica e nacional continuou a ser crucial


para os muçulmanos no início do século XX, tal como, ironicamente, se ti-
nha tornado para os judeus. Em países sob o domínio colonial ocidental, a
luta pela independência nacional foi muitas vezes liderada por intelectuais
reformistas para reiterar o que assumiram ser a mensagem autêntica da
comunidade muçulmana original.

O Islão sempre teve uma grande variedade de movimentos políticos. Al-


guns deles baseiam-se na história e dependem do regresso da «era dourada»

45
do Islão para purificar o próprio Islão. Para eles, os principais inimigos são,
acima de tudo, hereges islâmicos. Outros movimentos islâmicos consistem
em modernistas que não se opõem ao progresso científico e tecnológico,
mas que, de um modo mais geral, vêem a influência ocidental como uma
ameaça ao Islão. Várias tendências islâmicas modernas assimilaram mais
características dos movimentos anticoloniais e socialistas do que da teolo-
gia islâmica. No entanto, todos estes movimentos partilham características
comuns: são dogmáticos, monoteístas e agressivos, e a sua agressão é ali-
mentada por tudo o que a possa sustentar. As políticas religiosas do Oriente
Médio são notoriamente difíceis de seguir, por isso, alguns exemplos repre-
sentativos dessas tendências são apresentados abaixo.

Wahhabismo
É no wahhabismo que reside a génese do sucesso do Islão sobre o Estado
político, o cumprimento da missão. O Islão passou por uma fase de desape-
go mesmo quando se espalhou para outras partes do mundo, por exemplo
para a Ásia e Europa, resultando numa fusão das práticas islâmicas com as
crenças e tradições locais. Um exemplo notável é o surgimento de cultos
que celebram santos muçulmanos, assim como muitas variantes do misti-
cismo islâmico.

Estes desenvolvimentos saíram pela culatra e levaram à emergência de mo-


vimentos conservadores que advogavam um regresso às fontes, leis e práti-
cas islâmicas da «Idade de Ouro do Islão», o período do primeiro reinado
dos quatro califas justos (Al-Salaf al-Salih) no século VII. Esta ideologia,
conhecida como Salafismo, tem sido comparada por muitos estudiosos à
emergência do protestantismo europeu, caracterizado pela sua simples e
brutal intenção de purificar a religião existente, que era percebida como
estando em perigo de corrupção (devido à exposição ao mundo real).

Mohammed bin Abdelwahhab tornou-se um dos salafistas de maior su-


cesso. O sucesso do seu ensino, que leva o seu nome, está ligado à aliança
única estabelecida entre o pregador e as autoridades seculares do Nejd, a
região central da Península Arábica. Al-Wahhab se opôs a todas as práticas

46
que não eram baseadas em textos sagrados, incluindo as celebrações do
aniversário do Profeta Maomé, do Sufismo, do Sunnismo e dos cultos dos
santos islâmicos.

Em seus tratados, Al-Wahhab descreveu a maioria das práticas não relacio-


nadas com os textos sagrados e incompatíveis com a Sharia como idolatria
ou shirk, o único pecado imperdoável no Islã.

Este «retorno radical ao básico» e apelos à pureza religiosa foram forte-


mente contestados pela maioria dos teólogos sunitas, que rotularam seus
ensinamentos como heresia. Na realidade, Al-Wahhab, juntamente com
outros Salafis, tinha uma razão muito concreta e específica para procurar
reviver o período em que o Islão e o Estado eram um só.

O regresso à «idade de ouro» do Islão, restaurando as regras sociais do


século VII, foi certamente um regresso aos fundamentos do Islão, mas foi
acima de tudo uma iniciativa política. O slogan ‘de volta ao básico’ ainda é
relevante dentro da tradição política autoritária. É também uma caracterís-
tica recorrente do monoteísmo.

Eventualmente, o pregador rebelde encontrou proteção de Mohammed ibn


Saud, um dos xeques das tribos do deserto árabe. Este foi o início de uma
colaboração que levaria à criação do estado que controlaria uma grande
parte da Península Arábica, e especialmente a região Hijaz da Arábia Sau-
dita com suas cidades sagradas muçulmanas de Meca e Medina.

A Arábia Saudita foi criada no início da década de 1930, quando ainda an-
tes, após o fim da Primeira Guerra Mundial, a união entre o clero wahhabi
e a dinastia saudita formou uma aliança política altamente eficaz e dinâmi-
ca. A transformação da dinastia wahhabi saudita em guardiã dos grandes
santuários muçulmanos trouxe o wahhabismo, de forma algo inesperada,
para a corrente islâmica.

O grande poder do xeque e a influência religiosa do clero Wahhabi foram


os pilares complementares e entrelaçados do estado saudita. Esta aliança
também explica porque a Arábia Saudita continua a ser um dos regimes
semi-teocráticos mais conservadores do mundo moderno.

47
A Irmandade Muçulmana e o anticolonialismo
Embora frequentemente citada como exemplo da «ideologia salafista», a
organização islâmica egípcia, os «Irmãos Muçulmanos», fundada em 1928
por Hassan al-Banna, distingue-se claramente do wahhabismo pelo seu
reconhecimento das conquistas da civilização modernista. Enquanto os
Wahhabis consideram a vida espiritual e secular do século VII como um
tempo ideal a ser repetido, os Irmãos Muçulmanos podem ser definidos
como radicais religiosos da «Idade de Ouro» apenas no sentido espiritual,
mas não no sentido material ou político.

O fim do califado islâmico em 1924 catalisou a criação dos Irmãos Mu-


çulmanos. As origens anticolonialistas da Irmandade são óbvias. Não é
por acaso que o movimento da Irmandade começou no Egipto, um país
que tinha sido controlado pelo Império Britânico desde 1882. O domínio
colonial europeu das sociedades muçulmanas tradicionais estava no seu
auge nessa época. Os Estados europeus modernizados tinham acabado de
conquistar vários Estados islâmicos, o que levou a uma crise ideológica na
filosofia islâmica. A ordem mundial ideal foi derrotada, e muitas vezes sub-
jugada, por cristãos que estavam longe de ser piedosos. Isto foi um desastre
cultural e religioso.

O Egipto tornou-se o centro intelectual incomparável do anticolonialismo


muçulmano moderno, com a prestigiada universidade islâmica Al-Azhar.
Rashid Rida, o mais influente modernista muçulmano de seu tempo, pregou
no Cairo pouco antes da fundação dos Irmãos Muçulmanos. Foi Rashid Rida
quem cunhou o termo «novo estado islâmico» após a dissolução do califado.

A Irmandade Muçulmana nasceu em Ismailia, nas margens do Canal de


Suez, o maior projecto de engenharia moderna do Egipto. O canal não era
detido ou gerido pelo Egipto, mas directamente pelos europeus. A ideolo-
gia dos Irmãos Muçulmanos incorporou as idéias dos modernistas islâmi-
cos e também incorporou outros elementos anticolonialistas emprestados
de idéias seculares européias. Tal é a ironia da ideologia algo importada da
Irmandade Muçulmana. Enquanto defendeu os valores islâmicos, a Irman-
dade baseou-se em ideias religiosas não islâmicas e pós-islâmicas próximas

48
do nacionalismo e mesmo do socialismo, que não poderiam ser descritas
como genuinamente islâmicas.

No entanto, os Irmãos Muçulmanos certamente viram o Islão como o fun-


damento espiritual da modernidade. O seu lema era «O Islão é a solução» e
a Irmandade acabou por se revelar um movimento terrorista militante, bem
como um partido político. A ideologia da violência era particularmente evi-
dente nos ensinamentos dos Irmãos Muçulmanos após a morte de Hassan
al-Banna, quando Sayyid Qutb se tornou o principal ideólogo do movimento.
Muitos estudiosos modernos chamam-lhe o «avô do terrorismo islâmico».

Revolução Islâmica no Irã:


o sucesso do xiismo político
Sob a influência da entrada dos valores culturais e materiais da Europa
Ocidental no mundo muçulmano, a religião parece ter ocupado um lu-
gar secundário e perdido o lugar que tinha adquirido. Ao mesmo tempo,
a partir do final do século XIX, os professores muçulmanos procuravam
sombriamente uma explicação para o sucesso do Ocidente cristão. Este
desenvolvimento foi inexplicável para a maioria dos filósofos muçulma-
nos devido à sua crença inabalável de que o Islão, a última religião Abraâ-
mica, era superior a todas as anteriores e tinha recebido a mais recente e
logicamente mais precisa revelação de Deus, e que aqueles que aceitaram
esta revelação devem obviamente superar os seguidores das versões mais
antigas, nomeadamente os cristãos e os judeus, nas suas realizações. Mas a
realidade era diferente destas construções intelectuais e teóricas.

Em termos estritamente econômicos e tecnológicos, este novo mundo mo-


derno de judeus e cristãos parecia superior ao mundo do islamismo tra-
dicional. Assim, o papel do Islão tradicional na vida cultural e espiritual
dos seus seguidores foi questionado, assim como a sua necessidade para
os Estados muçulmanos como parte da estrutura estatal. Foi esta pressão
do Ocidente «cristão» e a receptividade das sociedades muçulmanas a ele
que levou à formação de ideologias islamistas radicais destinadas a purificar
as comunidades muçulmanas da nociva influência espiritual do Ocidente

49
«cristão» ou «pagão», a remover os colonizadores e «cruzados» e a reavivar
o único sistema de estado correcto: o Califado, um estado religioso unitário.

Ao mesmo tempo, a denominação minoritária islâmica, Shi’ism, tem tido


mais sucesso neste esforço radical, tão natural para uma religião Abraâmi-
ca. Ao contrário da maioria sunita, os xiitas atribuem grande importância
à linhagem de um determinado profeta-teólogo e exigem um certo nível
de formação e aprendizagem teológica islâmica antes de poderem exercer
influência: do simples mulá ao grande ayatollah.

Assim, no Islão Xi’a, especialmente na sua versão mais difundida, há sem-


pre uma hierarquia, bem como o culto do líder espiritual. Estes factores,
juntamente com as peculiaridades da sociedade iraniana, a sua estrutura
social e as suas contradições, permitiram ao Ayatollah Ruhollah Khomeini,
um dos líderes radicais do xi’ismo iraniano, estabelecer um sistema políti-
co semi-teocrático no qual o Islão se tornou, contra todas as probabilida-
des, parte integrante da estrutura estatal iraniana.

Como uma civilização antiga, o Irão sempre foi menos influenciado pelas
ideias fundamentalistas islâmicas do que outras partes do mundo islâmico.
As diretrizes islâmicas foram menos respeitadas no Irã e nos territórios
culturais de influência iraniana: por exemplo, a proibição de retratar pes-
soas e animais foi quase totalmente violada. No entanto, a conquista Safa-
vid do Irã no século XVI e a transição para o xiita significou que o clero
desempenhou um papel particular na cultura iraniana.

O culto dos governantes levou primeiro à formação da ideia da figura sa-


grada do Imã em xiita, e depois à ideia messiânica de que o último e déci-
mo segundo Imã al-Mahdi não está morto, mas sim escondido e irá reapa-
recer no final dos tempos. A idéia geral da busca do Messias, combinada
com a admiração da cultura tradicional persa por carisma e habilidades
oratórias, ajudou a criar cultos locais de teólogos indígenas.

O Ayatollah Rouhollah Khomeini é um exemplo notável deste tipo de ado-


ração. Muitas vezes apresentado como parte da Idade Média Islâmica, este
culto é no entanto possível nas condições exclusivamente modernistas do
Irão do século XX.

50
As raízes da revolução de 1978-79 não estavam na religião, mas no sistema
social. Muitos estudiosos (especialmente entre os emigrantes iranianos)
opõem-se com firmeza ao rótulo «islâmico» da revolução iraniana, expli-
cando que o ultraje que levou à revolução foi em grande parte causado por
factores socioeconómicos e, acima de tudo, pela humilhação da coloniza-
ção do Irão desde o final do século XIX.

De facto, a situação do Irão no século XIX, à beira da desintegração, e a de-


pendência do sul do Irão em relação à Grã-Bretanha, e de todo o norte do
Irão em relação à Rússia, deixou um profundo sentimento de humilhação
na sociedade iraniana.

A sociedade iraniana nunca levou a sério a situação semicolonial do seu


país. A religião, porém, tem desempenhado um papel menor neste ressen-
timento. Ao contrário dos Irmãos Muçulmanos, o movimento anti-colonial
iraniano tem confiado mais na identidade social e (mais tarde) nacional do
que no Islão. Foi o caso da primeira revolução iraniana de 1905-07, bem
como em 1953, quando a tentativa do primeiro-ministro Mohammad Mos-
sadegh de nacionalizar a indústria petrolífera se transformou num golpe
de Estado organizado pelos serviços de segurança britânicos e americanos.

Na primeira metade do século XX, a sociedade iraniana foi submetida a


projectos de modernização, os mais importantes dos quais foram realiza-
dos por Reza Shah nos anos 20 e 30. Em particular, Reza Shah lutou acti-
vamente contra o clero xiita, procurando substituir a identidade religiosa
pelo nacionalismo iraniano. Muitos estudiosos acreditavam que depois das
reformas de Reza Shah e depois de quase quarenta anos de governo do seu
filho Mohammed Reza Shah, a identidade islâmica deixaria finalmente de
desempenhar um papel significativo na política nacional iraniana.

O Ayatollah Khomeini provou que estavam errados. Entusiasticamente em-


penhada na tendência socio-económica e anti-colonial, Khomeini propôs à
sociedade iraniana um programa para superar o fracasso da dinastia Pahla-
vi, que visava a construção de uma nova identidade nacional imperial.

A maioria dos iranianos que apoiaram este ‘novo Mahdi’ não esperava seria-
mente que o princípio do ‘Velayat-e faqih’ (a regra dos teólogos islâmicos)

51
fosse aplicado. Para eles, Khomeini simbolizava uma nova resposta ofen-
siva ao colonialismo ocidental, que parecia funcionar. Muitos deles teriam
aceitado qualquer coisa que funcionasse naquela época.

Khomeini se apresentou como um líder «anti-monárquico, anti-imperialista


e objetivamente progressista» envolto em trajes religiosos, mas na verdade
ele era um líder religioso fundamentalista envolto em trajes anti-imperialis-
tas. Ele havia conseguido fazer do Islã o poder político no Irã, como qualquer
muçulmano fiel teria feito. O Islão estava prestes a cumprir a sua missão com
uma máscara anticolonialista. O vírus foi activado no momento certo.

O Irão estava agora a desenvolver uma resposta nova, agressiva e consisten-


te ao colonialismo ocidental. No final da década de 1970, o colonialismo foi
desaprovado pelos iranianos devido ao contínuo controlo europeu sobre as
receitas petrolíferas iranianas (sob concessão forçada da Anglo-Iraniana
Oil Company) e à expansão cultural dos valores ocidentais, considerada
inadequada. Neste contexto, Khomeini e outras autoridades islâmicas até
usaram um termo especial para descrever os «bajuladores ocidentais». Em
Farsi, este termo é pronunciado «gharbzadegi» e pode ser traduzido para o
francês como «Occidentalite».

Os iranianos que esperavam que Khomeini os libertasse do colonialismo


ocidental estavam em grande parte satisfeitos. No entanto, depois de che-
gar ao poder, ao implementar a agenda anti-ocidental, Khomeini conse-
guiu fazer o que um verdadeiro líder islâmico deve fazer. Ele transformou
o país numa teocracia. O vírus do monoteísmo voltou a atacar depois de
esperar pacientemente pela sua vez.

Estado islâmico
A última tentativa da ideologia política islâmica de reunir o secular e o es-
piritual num único estado pan-islâmico levou à criação do Estado Islâmico
(ISIS) como uma organização.

O projeto assimila muitas das idéias dos movimentos anteriores. Tem um


carácter anticolonial, manifestado na promoção activa do anti-ocidentalismo

52
e da luta contra Israel como a descendência colonial do Ocidente (esta activi-
dade chama-se «Jihad contra os Cruzados»).

Muitos comentadores descreveram o aparecimento do ISIS como uma res-


posta directa à tradição colonial no Médio Oriente. Isto não está errado.
A promoção activa do antiamericanismo e a luta implacável contra Israel,
definida como um ataque colonial do Ocidente, fornecem fortes provas
para esta explicação.

Os planos dos apoiantes do ISIS eram ideologicamente mais ambiciosos do


que os dos primeiros salafistas. Não tinham a intenção de criar o lugar do
Islão puro, mas de reavivar a pureza do Islão no «mundo do Islão», ou seja,
nos territórios do antigo califado árabe e em outras áreas onde os muçul-
manos estavam estabelecidos em grande número. Esta distinção foi subtil,
mas politicamente pragmática, dada a elevada probabilidade de fracasso
do protótipo original.

Este foi um exemplo tangível de um projeto islâmico «normal», ao qual


todo crente verdadeiro deveria aspirar. Difere da maioria dos outros pro-
jectos religiosos na sua amplitude de ambição, mas a sua ideia central é
comum a todos os movimentos religiosos monoteístas: a religião e a políti-
ca devem tornar-se uma só, as regras religiosas devem tornar-se as leis do
Estado. No caso do Islão, esta concepção é particularmente clara, uma vez
que já tinha sido implementada no início do califado e poderia ser imple-
mentada novamente.

O ISIS é mais semelhante ao wahhabismo do que aos movimentos moder-


nistas, como os Irmãos Muçulmanos ou a Revolução Islâmica Iraniana. Os
proponentes do renascimento do califado vêm dos círculos salafistas, que
encontram o verdadeiro Islão na interpretação literal dos textos sagrados e
num renascimento dos costumes sociais do século VII.

O renascimento islâmico
Muitos movimentos islamistas surgiram em resposta a problemas sociais
e económicos como o desemprego juvenil e a pobreza. No entanto, os

53
movimentos islamistas não se limitam de forma alguma aos países pobres
ou a grupos desfavorecidos e marginalizados, e não são todos extremistas
ou revolucionários. De facto, os membros destes movimentos são geral-
mente muito instruídos, principalmente em campos seculares, graças a
projectos de modernização liderados pelo Estado. Os partidos islâmicos
tradicionais, em particular, são geralmente liderados por jovens de ambos
os sexos que são profissionais com formação avançada.

Para alguns, a ascensão do islamismo é uma consequência directa do fra-


casso do pan-árabe no Médio Oriente Árabe e do nacionalismo secular
no mundo islâmico. Quando a sua identidade árabe ou nacional se des-
morona, de acordo com esta visão, as pessoas nestes países voltam-se para
o islamismo como um substituto. No entanto, as formas anteriores de
nacionalismo nos países islâmicos também foram influenciadas pela re-
ligião. Além disso, as instituições públicas desses países regulamentaram
e influenciaram as manifestações legais do Islão, especialmente através da
sua educação pública.

Além de ter sido politizado por movimentos de oposição e governos na se-


gunda metade do século XX, o Islão também passou por um renascimento
ligado a transformações educacionais, demográficas e sociais. Na verdade,
é um renascimento social.

Uma nova geração chegou à idade adulta nos anos 60 sem ter experimenta-
do directamente o colonialismo, apenas as suas repercussões a longo prazo,
misturadas com alguns benefícios. O acesso generalizado à educação e a
maior disponibilidade da literatura islâmica também lhes deu a oportu-
nidade de formar as suas próprias interpretações do Islão. Os muçulma-
nos poderiam estudar o Alcorão e Sunnah sem a mediação do ulama, que
ofereceu uma interpretação mais institucionalizada do Islão. O próprio
Muhammad pode ter aprovado esta mudança.

As inovações tecnológicas têm permitido que alguns dos pregadores islâ-


micos mais populistas sejam ouvidos ou lidos, e até mesmo ganhar um se-
guimento mundial. Nos anos 70, o ayatollah Khomeini e o pregador egíp-
cio Sheikh Kishk transmitiram seus discursos e sermões através de fitas
cassete. Nos anos 90, a televisão e a Internet abriram o acesso internacional

54
às ideias islâmicas. No final dos anos 90, o egípcio Amr Khaled tornou-se
um dos muitos pregadores populares com alcance global. Seu site publicou
conselhos sobre o Islã vivo como um princípio ético geral.

No século XXI, muitos muçulmanos ocidentais ainda não estão totalmente


integrados na sociedade americana e europeia. Muitos mantiveram laços
estreitos com os seus países de origem. Os jovens muçulmanos ocidentais
começaram a contar com autoridades religiosas autoproclamadas que não
estavam ligadas às instituições tradicionais de ensino islâmico, como seus
pares cristãos americanos já estavam fazendo com a direita cristã. Para esta
geração mais jovem, as opiniões oficiais sobre a doutrina islâmica (também
conhecida como fatwas) tendem a representar o Islão como uma comuni-
dade moral e não como uma comunidade política.

Foi neste contexto que ocorreram os ataques de 11 de Setembro de 2001.


Eles foram perpetrados pela Al Qaeda, uma organização islamista transna-
cional radical fundada e promovida no final da década de 1980 na Arábia
Saudita. Osama Bin Laden, seu líder, viu o mundo dividido por uma guerra
entre muçulmanos, por um lado, e «cruzados e sionistas», por outro. Esta
ideia foi reforçada pela invasão americana do Afeganistão em 2001, a guer-
ra no Iraque em 2003 e o conflito em curso entre a Palestina e Israel. Estes
acontecimentos podem ser vistos como o início de uma nova era assassina
do terrorismo islâmico.

55
Continuidade entre todos
os terroristas religiosos
Respondendo ao terrorismo islamista
O ano de 2015 foi um ano negro na Europa, e particularmente na França.
Em 7 de janeiro de 2015, fundamentalistas islâmicos assassinaram doze
pessoas que trabalhavam na revista satírica Charlie Hebdo, em Paris. O
jornal publicou frequentemente desenhos animados zombando de assun-
tos religiosos e figuras de autoridade islâmica, incluindo o Profeta Maomé.
Tais representações são inaceitáveis no Islão.

Quatro dias depois, quase quatro milhões de franceses (incluindo um mi-


lhão e meio em Paris) saíram às ruas para mostrar a sua solidariedade para
com as vítimas do terror. Na semana seguinte, foi publicada uma nova edi-
ção de Charlie Hebdo, com um novo desenho animado do Profeta Maomé
na capa, que provocou indignação e protestos no Paquistão, Turquia, Afe-
ganistão e Jordânia.

A onda de ataques mortais a uma grande variedade de alvos, incluindo


Charlie Hebdo, já vinham se aproximando há algum tempo. Parecia prová-
vel que o mundo secular moderno fosse directa e repetidamente alvo dos
ataques violentos e assassinos da fé fundamentalista.

Este provou ser o caso. No final do mesmo ano e também em Paris, a 13 de


Novembro de 2015, terroristas mataram mais 130 pessoas, na sua maioria
jovens, em seis ataques coordenados, mas separados, que ocorreram du-
rante meia hora em diferentes partes de Paris, incluindo o teatro Bataclan,
onde morreram 90 pessoas. Os actos diferiram significativamente dos de 7
de Janeiro em intenção e escala. Os assassinatos de Charlie Hebdo tiveram
como alvo pessoas acusadas de insultar o Profeta Maomé. Os ataques ao Ba-
taclan e restaurantes próximos, por outro lado, tinham como objetivo matar
qualquer pessoa em seu caminho, embora um grupo que se intitulava Exér-
cito do Islã tenha dito aos serviços de segurança franceses em 2011 que um
ataque ao Bataclan estava planejado porque seus proprietários eram judeus.

56
Não houve manifestações após os ataques de 13 de Novembro em Fran-
ça. As pessoas estavam aterrorizadas, muitas pareciam perder a esperan-
ça, como se estivessem congeladas no medo à beira de um precipício. A
população também se tornou mais reticente. Uma pergunta circulou na
mente de todos, sem encontrar uma resposta satisfatória: em que estavam
os bombistas suicidas a pensar? Estes jovens franceses foram educados na
cultura francesa, em escolas e colégios; como poderiam matar tão facil-
mente, tão calmamente, tão sadicamente os seus concidadãos indefesos,
incluindo outros muçulmanos? Talvez o choque tenha sido salutar, fa-
zendo as pessoas comuns entenderem a essência do terror quando usado
como arma política.

Depois que os desenhos animados foram republicados em setembro de


2020 por Charlie Hebdo para marcar o julgamento dos acusados do pri-
meiro ato terrorista cinco anos antes, um professor que mostrou os dese-
nhos animados aos seus alunos no mês seguinte como parte de um curso
cívico para todas as escolas francesas primárias e secundárias, foi decapita-
do na rua por um homem de 18 anos que gritou «Allahu Akbar» enquanto
atacava o professor. O atacante muçulmano, da Chechénia, foi morto a tiro
pela polícia após o incidente.

Os terroristas que perpetraram esses atos não são psicopatas; eles são pes-
soas normais, mas eles acreditam que seus corpos pertencem inteiramen-
te ao Ummah, a comunidade muçulmana global, e que eles deveriam ser
sacrificados sem hesitação se o Ummah alguma vez estiver em perigo. Os
bombistas suicidas e descapitalizadores de países pobres e subdesenvolvidos
são identificados como «armas de guerra». Isto permite-lhes misturarem-se
com o passado das nações escolhidas para a sua auto-imolação terrorista.
Quase todos estão sob o controle de outros que permanecem escondidos.

Os bombistas suicidas não matam num ataque de paixão ou raiva. Eles o


fazem num esforço calmo e deliberado para mostrar que estão determina-
dos a pagar o preço final pela destruição do status quo e dos valores das
sociedades judaico-cristãs e seculares.

Os terroristas não são párias, nem viciados em drogas nem párias; muitos
deles estão entre a elite entre aqueles que receberam a mesma educação

57
religiosa. Os melhores alunos são aqueles que rejeitaram todas as coisas
materiais deste mundo em busca de um sonho espiritual e abraçaram a re-
ligião com paixão, abnegação e amor. Eles vivem pela fé, como os cruzados
afirmaram no início do último milênio.

Os terroristas religiosos não são cobardes. Pelo contrário, eles são pessoas
motivadas, consistentes e corajosas que fazem o que acham que é certo. Os
políticos, especialmente os ditadores, sacrificam apenas a vida dos outros,
mas os terroristas religiosos também estão dispostos a sacrificar a sua. Eles
sacrificam as suas vidas pelo seu Deus. Os seus companheiros crentes con-
sideram-nos mártires. Se cada crente levasse sua fé tão a sério, todos fariam
o mesmo, e o mundo inteiro estaria em apuros.

Os verdadeiros crentes não estão conscientes de nada além da sua fé. Tho-
mas More certamente teria compreendido isto. O terrorismo islâmico é a
única forma de arranjar espaço para Deus. Tudo o resto é secundário e,
portanto, sem importância. De um ponto de vista profundamente religio-
so, esta atitude é totalmente justificada: Deus precisa de espaço. Alguns
até argumentam que os terroristas têm particular prazer em causar terror
e agonia humana porque a vêem como uma manifestação de um poder
superior universal e essencialmente indescritível.

Apenas o Islão é actualmente uma potência terrorista activa e globaliza-


da, que é atractiva para os verdadeiros crentes. É difícil negar que o Islão
continua a ser a religião mais forte e mais atractiva do nosso tempo. Gerou
uma enorme onda de fervor e devoção religiosa entre muitos muçulmanos
particularmente jovens e impotentes que, até muito recentemente, perma-
neciam passivos. Conseguiu reunir milhões de novos militantes. O sucesso
do Islão é particularmente evidente quando, todos os anos, milhares de eu-
ropeus se convertem ao Islão e milhares de «velhos» e «novos» muçulma-
nos se juntam às fileiras dos terroristas. Isto apesar dos sangrentos ataques
terroristas dos últimos vinte anos.

Os comentadores também notaram que grande parte do terrorismo islâ-


mico dos últimos trinta anos foi impulsionado pela sensação de que o Islão
está envolvido numa guerra santa permanente contra o que ele percebe
como os «inimigos de Deus» à sua volta.

58
Esta frase foi frequentemente usada durante os anos 90 em processos judi-
ciais e declarações políticas de líderes iranianos, que apresentaram os Esta-
dos Unidos como o principal inimigo de Deus. No entanto, a idéia de que
Deus tem inimigos e, portanto, precisa da ajuda do homem para identifi-
cá-los e combatê-los, não é exclusiva do Islã. É encontrada na antiguidade
pré-clássica e clássica, no Antigo e no Novo Testamento, bem como no
Alcorão e nos textos hebraicos.

Se os combatentes que fazem a guerra pelo Islão, ou seja, a guerra santa «no
caminho de Deus», estão lutando por Deus, segue-se que os seus oponen-
tes estão lutando contra Deus. Como Deus é em princípio o governante, o
líder supremo do estado islâmico, é óbvio que ele comanda o exército. O
dever dos soldados de Deus é matar o maior número possível de inimigos
de Deus.

Tem sido argumentado que o terrorismo islâmico é o produto da islamofo-


bia. A islamofobia é a reacção à percepção do terrorismo e da criminalidade.
Pelo menos 65% dos reclusos nas prisões francesas são imigrantes de países
muçulmanos (a lei francesa proíbe a publicação de estatísticas oficiais nesta
área). Além da França, o argumento de que o terrorismo islâmico é causado
pela islamofobia pré-existente quebra porque uma grande proporção dos
terroristas condenados são imigrantes de países muçulmanos.

Actualmente, no início do século XXI, existe claramente um problema de


terrorismo islâmico exportado do Médio Oriente e um estranho fascínio
pela organização de incidentes terroristas na Europa.

Nem sempre foi este o caso. Há 900 anos, um padrão claro de ataques ter-
roristas gerados por cristãos na Europa começou e continuou por vários
séculos. Nos dois milênios anteriores à chegada do cristianismo, o Oriente
Médio viveu um longo período de violência tribal por parte dos israelitas.
Tudo, e mais, em nome de Deus. Hoje, este problema, que se apresenta
como uma jihad contra a Europa, deve ser abordado e resolvido.

Mais uma vez, o princípio subjacente ao Islão não é diferente daqueles já


discutidos, nomeadamente o judaísmo e o cristianismo. Apesar de suas
inimizades, percebe-se que ao longo de quase três milênios, a família de

59
Abraão está em guerra consigo mesma, mesmo quando cada um de seus
membros luta para estabelecer o controle total dentro de suas esferas de
influência e além delas, em todo o mundo.

No contexto atual, pode-se ver muitas semelhanças com o ambiente po-


lítico, cultural e social de Roma que levou à queda do Império Romano,
retratado na época e mais tarde como um declínio moral, e visto por alguns
como o resultado da política de abertura e tolerância do império em rela-
ção às religiões que não compartilhavam nenhuma dessas características.
O vírus da religião invariavelmente tira proveito da fraqueza e degeneração
social de uma comunidade. O terrorismo que a religião gera não será der-
rotado enquanto a religião gozar de um estatuto privilegiado nos governos,
sociedades, comunidades e na vida dos cidadãos.

Análise do terrorismo religioso


O terrorismo religioso nunca será eliminado, a menos que as suas raízes
sejam destruídas. As suas raízes prosperam, multiplicam-se e espalham-se
no lugar mais lógico e provável: nos lugares sagrados da própria religião.

Não há nada de misterioso no terrorismo religioso; ele sempre foi o reves-


timento interior da religião monoteísta. Está ligado ao próprio fenómeno
da fé e ao sentimento de culpa, o seu parente próximo. Nas três religiões
monoteístas, Deus dá e Deus tira. O cristianismo pôs fim à prática neo-pagã
de colocar no caixão objetos preciosos que poderiam ser úteis ao corpo na
vida após a morte. No Islã e no Cristianismo, há uma forte crença numa
vida após a morte para o espírito e não para o corpo como recompensa por
uma vida justa, fiel e dedicada. Essa crença transforma essas religiões em
um culto à morte porque a vida perde todo o valor e só a morte o traz de
volta à vida eterna.

O mito principal de todas as religiões monoteístas é a tese de que a vida vem


de Deus. Não da união de um homem e de uma mulher, nem de uma cegonha
ou de uma amoreira, mas de uma divindade sobrenatural. Por conseguinte,
Deus é livre para dar, mas também para receber de volta o que Ele deu.

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Confiar no dogma religioso como única fonte de verdadeira moralidade
inspira uma veemente rejeição das leis seculares e justifica qualquer crime
cometido com a intenção ordenada por Deus de destruir as instituições
seculares e sociais. Esta é a versão religiosa do álibi para crimes passionais.

O absolutismo moral (que separa o mundo em bom e mau, santo e pecami-


noso, crentes e outros) gera o extremismo religioso e a aplicação impiedosa
das leis religiosas.

Até se pode ser perdoado por ter compaixão por terroristas. Os verdadei-
ros crentes sempre levaram uma vida difícil, tentando conciliar as diferen-
ças gritantes entre os mandamentos de Deus e os princípios morais reli-
giosos, por um lado, e a realidade cotidiana, por outro. Eles se recusam a
ter quaisquer dúvidas sobre os princípios subjacentes da religião, que dão
sentido às suas vidas, e são muito desconfortáveis com o que vêem na rua,
especialmente nos países desenvolvidos. Eles são agressivos com os não-
-crentes por medo de que suas crenças sejam desmentidas. Na realidade,
se é possível viver sem ele, por que se submeter a todas as provações e
tribulações que vêm com fé?

Os terroristas acreditam que a discrepância entre a realidade quotidiana


e as expectativas criadas pela sua fé indica que existe um problema com a
vida, não com a sua fé. A vida obstinadamente se recusa a se emendar de
acordo com as regras do seu deus (que ainda tem que provar sua existência
fora da mente dos fiéis). O imperativo de proteger a pureza da sua fé não
lhes deixa outra escolha senão acabar com as suas vidas. Eles suprimem as
suas próprias dúvidas, matando outros no mundo real durante o processo.

Esta doutrina produz um fanatismo religioso hardcore que rapidamente


leva ao terrorismo. Uma vez que você é um terrorista, você está a caminho
de se tornar um bombista suicida, ou o seu equivalente pré-bomba.

Esta é a essência do terrorismo religioso. É uma flor venenosa no jardim


da religião, que a semeia, a fecunda, a nutre, a faz frutificar com amor, e
finalmente a colhe.

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Os terroristas não estão esperando a vinda do Messias ou o Dia do Julgamen-
to porque já estão correndo para estas recompensas o mais rápido que po-
dem. Há dois mil anos, foi o cristianismo que lutou pela igualdade universal
de acordo com o seu entendimento religioso. Hoje, é o Islão político que luta
pela igualdade universal de acordo com a sua própria concepção religiosa.

Não podemos culpar os indivíduos pelos ataques terroristas em Paris, Lon-


dres, Madrid, Bruxelas, Nova Iorque, Indonésia e muitos países africanos,
mas devemos culpar as religiões monoteístas. Os exemplos que acabamos de
mencionar são o ponto de partida para uma maior tempestade global. Se não
nos defendermos a tempo, esta tempestade vai nos engolir a todos.

Como eliminar o terrorismo religioso


Perdemos a nossa oportunidade de parar o terrorismo mais cedo, quando
ainda não estava generalizado. A situação atual é muito pior do que a des-
crita pela mídia.

O número de pessoas dispostas a se tornar «mártires» e sacrificar suas vi-


das por sua fé está aumentando. É uma epidemia religiosa, um terrorista
Covid-19. Mais preocupantemente, aqueles que se preparam para se tornar
mártires também têm um número crescente de adeptos apaixonados.

As consequências trágicas da «guerra ao terror» liderada pelos EUA são


óbvias. No início da luta, os grupos fundamentalistas eram pequenos e os
atos de terror religioso eram poucos e distantes. Menos de vinte anos de-
pois, o fundamentalismo islâmico ganhou ampla influência nas sociedades
muçulmanas e causou considerável alarme e mesmo angústia nas socie-
dades ocidentais. Toda uma infra-estrutura religiosa terrorista foi criada
em partes do Iraque, Síria, Afeganistão, Somália, Mali e norte da Nigéria,
atingindo seu auge em 2014. As suas perdas desde então, especialmente
em 2019, forçaram-no a retirar-se da maioria destas áreas. No entanto, ela
permanece no Iraque, de onde está a licitar o seu tempo e a reunir as suas
forças para avançar, dadas as inegáveis vantagens que a incoerente política
externa dos EUA trouxe ao longo dos últimos dois anos. O parasita pode
esperar o tempo que for preciso.

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Os políticos juram que os terroristas serão capturados e punidos, mas isso é
inútil. Eles querem mesmo ser mártires e não têm medo de morrer. Poucos
terroristas são capturados vivos; eles sabem muito bem que a resistência é
inútil e todos eles preferem morrer como mártires do que continuar vivendo.

Se continuarmos a combater o terrorismo desta forma, nunca o acabare-


mos. Nenhum exército é igual ao compromisso dessas pessoas altamente
motivadas que sonham em sacrificar suas vidas. As marchas de solidarie-
dade para as vítimas não vão mudar nada, mesmo que toda a população da
Europa tenha saído às ruas todos os dias.

Não erradicaremos o terrorismo tratando seus sintomas (onde ele dói),


mas olhando a religião como um todo, ou seja, o «mundo do terrorismo» e
o «mundo da religião», que são inseparáveis.

A luta contra o terrorismo é a secularização da sociedade e a privação da


religião de qualquer estatuto especial. É uma batalha entre o pensamento
racional e uma quimera mística. Ela será ganha se deixarmos de acredi-
tar nas afirmações de que a religião monoteísta cria uma forma especial e
inconcebível de espiritualidade, moralidade divina absoluta e vida após a
morte no paraíso. Essas afirmações encorajam as religiões a se comporta-
rem como um vírus, infiltrando-se em todas as células vitais do organismo
social: educação das crianças, ensino, política, exército, e até mesmo cemi-
térios. Eles lançam as sementes de futuros conflitos por toda a parte.

Imagina que não há céu...


Não há necessidade de religião para regular a vida pública: os valores hu-
manos incluem respeito pela humanidade, meritocracia, tolerância e liber-
dade, mas não há razão para acreditar que o céu ou o inferno existem num
sentido metafísico.

Todos os sacrifícios são em vão: o paraíso não existe, nunca existiu e nunca
existirá. Uma crença apaixonada na existência do paraíso não é um raio de
esperança. É um mito, estilhaçado como os cintos do Shahid.

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O extremismo vacila e desvanece-se assim que a aura da religião se desva-
nece e a crença inabalável de que um deus Big Brother vingativo e protetor
nos espera no céu desaparece.

Ao contrário da propaganda religiosa, a propaganda secular é ineficaz e só


pode exercer a sua influência se os governos se envolverem. Ao longo dos
séculos, o Renascimento, o Iluminismo e o liberalismo democrático com-
binaram-se para forçar os governos a defender os valores humanos, não os
de qualquer religião, seja ela judaica, cristã ou muçulmana.

Só um governo lúcido e inteligente pode impedir a sacralização da existên-


cia humana e fazer do secularismo uma prioridade política. Os cidadãos
serão mais equilibrados e felizes quando tiverem removido tudo o que é
supostamente sagrado e sagrado. O agnosticismo e o ateísmo podem até
tornar-se populares novamente.

Só os governos podem retirar o financiamento público à religião e remover


o seu estatuto, apoio e respeito formal na sociedade. Não é uma questão
de governos seculares negando que alguns cidadãos possam ser religio-
sos. Aqueles que realmente querem acreditar e sentir a necessidade de uma
cosmovisão idealista e o argumento da «Primeira Causa» não sofrerão no
mínimo; eles podem se agarrar à sua crença em um Deus abstrato. Entre-
tanto, o governo deve colocar a religião em seu lugar e confirmar que ela é
assunto pessoal de cada indivíduo, evitando idealmente torná-la um tópico
normal de conversa na sociedade.

A maioria dos governos ocidentais apoia nominalmente o princípio da se-


paração da Igreja e do Estado, a fim de manter uma posição neutra em
relação aos cultos religiosos e de garantir a liberdade religiosa. No entanto,
em muitos aspectos, a realidade fica muito aquém do ideal.

Por que outro motivo os governos exigiriam a obediência às regras secu-


lares universais, reconhecendo e permitindo as leis religiosas? O governo
deve tratar cada fé religiosa com a mesma deferência e indiferença.

Não é óbvio que os perigos de preservar e promover o extremismo au-


mentam a cada conversa sobre proteger ou respeitar as religiões? Devemos

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proteger a organização terrorista nigeriana Boko Haram? É em seu nome
que encontramos a pista para a sua principal política de proibição da edu-
cação secular. Porque nos surpreendemos que capturem alunas e as trans-
formem em prostitutas para soldados?

O politicamente correto pode ser visto como um traço cultural apropria-


do de uma sociedade tolerante e respeitosa, preocupada em não provocar
hostilidade desnecessária ou maus sentimentos em relação a certas comu-
nidades ou interesses. No entanto, a tolerância é por vezes mal aplicada,
o que pode levar a ressentimentos entre as comunidades que não estão
preocupadas ou que sentem que não é justificada. A religião é uma parte
importante disto, pois a democracia liberal ensina a tolerância particular
para a prática da fé religiosa como um direito fundamental. Talvez esteja na
hora de abandonar este privilégio.

Até que ponto este respeito e tolerância devem ser estendidos? Os cristãos,
por exemplo, devem seguir o conselho de Jesus e dar a outra face quando
ameaçados ou atacados na rua? O politicamente correto atualmente pa-
rece querer aplicar mal os aspectos mais frágeis da democracia liberal a
situações já tensas. Ela enfraquece os laços que unem a sociedade e dilacera
os componentes da sua cultura, facilitando a intolerância e novos precon-
ceitos para substituir os que foram eliminados.

A única relação verdadeiramente saudável que um governo pode ter com or-
ganizações religiosas é uma relação inexistente. Até o Egipto, a terra tradicio-
nal do Islão, reconheceu isto. Uma sociedade secular saudável será alcançada
quando os ministérios e comitês do governo para a religião forem abolidos.

Grandes religiões e impérios religiosos só são construídos e quebrados a


partir de dentro. O cristianismo, que desempenhou um papel preponde-
rante no declínio e queda do aparentemente inabalável Império Romano,
também ele próprio declinou na aurora da civilização ocidental, graças ao
Iluminismo e aos valores liberais que ele incutiu, privilegiando o indivíduo
em detrimento do coletivo. Esta não foi uma má notícia para a sociedade,
pois uma sociedade saudável prospera quando todos os seus membros es-
tão bem e quando os casos de sacrifício da felicidade pessoal para o bem da
sociedade continuam excepcionais. As ambições políticas e as tendências

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extremistas do cristianismo se desintegraram junto com suas congrega-
ções. Devíamos aprender com este sucesso.

Os muçulmanos vêem o mundo como qualquer pessoa profundamente re-


ligiosa. Eles não estão nada convencidos com o argumento de que, como os
antigos cristãos e judeus já não se preocupavam mais com os nossos deuses
sendo zombados e criticados, eles deveriam nos deixar gozar com os deles.
Os cristãos viam o mundo exatamente desta maneira e dificilmente teriam
tolerado que alguém gozasse de Jesus Cristo ou fizesse piadas sobre ele na
Idade Média.

O peso do apoio aos valores religiosos do Islão ainda é considerável quan-


do choca com os valores seculares. Esta é claramente uma emoção forte e
popular, que praticamente desapareceu no cristianismo e no judaísmo nas
democracias liberais. A história da Abrahams é caracterizada por muitos
contratempos. O choque de culturas espirituais é provável que continue.

Não há maneira rápida ou fácil de contornar a única solução realista, que é


garantir que a religião monoteísta seja relegada para as margens da socie-
dade, governo e lugares privados onde a liberdade de culto ainda é garan-
tida. Esta será uma tarefa longa e difícil. Mas é a única maneira de tornar a
vida melhor e mais harmoniosa para as gerações futuras.

Preparando-se para uma nova era secular


Alguns cristãos acreditam que o cristianismo na Europa se tornou mais flexí-
vel e compassivo, que até encontrou o seu lugar e razão de ser. Na opinião de-
les, os terríveis crimes das Cruzadas, da Inquisição e de outros genocídios de
inspiração cristã são coisa do passado, uma aberração inédita e um pesadelo.

Outros argumentam que, na maioria dos países ocidentais, o cristianismo


foi simplesmente marginalizado. O culto cristão em países tradicional-
mente cristãos tem diminuído acentuadamente no último século na maio-
ria dos países europeus e nos Estados Unidos, e o número de agnósticos e
ateus tem aumentado. Além disso, a falta de apelo do cristianismo parece
estar relacionada com a idade, sendo os mais jovens os menos religiosos e
os mais velhos os que têm o maior número de seguidores.

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Um terceiro grupo vai ainda mais longe e trabalha em prol de uma nova
civilização secular e pós-cristã.

O cristianismo tem certamente perdido terreno, especialmente na Europa


Ocidental. Em bastiões do catolicismo como a Polônia, Espanha e partes
da América Latina, os jovens se reúnem para saudar o papa visitante por
causa de seu status de celebridade global e apelo Rockstar, em vez de seu
status de chefe da Igreja Católica. Outras igrejas cristãs estão em dificulda-
des por causa do que elas chamam de crise de fé. Até mesmo o antigo Ar-
cebispo de Cantuária, antigo chefe da Igreja da Inglaterra, Lord Williams,
anunciou em abril de 2014 que a Grã-Bretanha de hoje não é mais uma
«nação de crentes», mas um país «pós-cristão».

O cristianismo ainda afirma ser a única fonte da verdadeira moralidade


humana, assegurando que ela seja absoluta e divina. Tal como o judaísmo
e o islamismo, considera a moralidade pública inadequada, temporária e
necessitada de mais regulamentação.

As últimas utopias sociais, socialismo e comunismo, herdaram a ideologia


cristã e agora pregam valores religiosos quase idênticos em diferentes for-
mas. No curso da evolução da sociedade, alguns pensadores românticos
entusiastas se cansaram de esperar que o Messias voltasse e nos redimisse,
como prometido, e tomaram as coisas em suas próprias mãos. Cristo nunca
voltou e eles próprios decidiram tentar construir o Reino de Deus na Terra.

O Messias não veio. O fato de ele nunca ter vindo é o maior desafio à nar-
rativa judaico-cristã. Os crentes esperaram por ele por tanto tempo com
esperança, mas quem quer que ele fosse, foi em vão. Ele não só não veio
para nos poupar da adversidade e dar sentido à nossa existência, mas pare-
ce que ele nunca teve a intenção de vir.

O Mashiach não veio para trazer a paz política aos judeus. Os judeus não
começaram a vida em uma sociedade ideal da Torá, muito menos depois
de 1948. A Segunda Vinda de Cristo não aconteceu, nem na vida dos
primeiros cristãos que esperavam vê-lo, nem nos dois milênios seguintes
(a menos, é claro, que ele inexplicavelmente se tenha escapado). Estamos
agora em 2020 e o Reino de Deus ainda é um castelo no ar. Não só o mal

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ainda existe no mundo, ele não diminuiu, como pode até ter aumentado. A
morte e o sofrimento desnecessários continuam a ocorrer e o pecado está
tão presente como sempre.

Podemos ser perdoados, então, por perguntar se existe uma razão real para
a fé religiosa? Não podemos simplesmente usar os critérios universais co-
muns de outras áreas da nossa vida?

Não é tempo de a humanidade assumir a responsabilidade pelo seu pró-


prio destino e aprender a expiar os seus pecados sem a ajuda dolorosa e
indutora de culpa de Deus, Jesus, Javé, Deus, de todos os profetas e santos?
E sem Deus, há realmente tantos pecados para expiar?

Na segunda metade do século XX, tornou-se finalmente claro que o Reino


de Deus não pode ser construído na Terra. O politicamente correto ga-
nhou grande influência em nossa cultura, que atuou como a segunda vinda
de Cristo, desafiando os poderosos, os ricos e os intelectuais. Voltou tudo
à estaca zero. Os poderosos continuaram a criar os seus próprios valores
e a viver uma vida pessoal gratificante. Os vulneráveis, conscientes da sua
própria fraqueza, tentaram (muitas vezes com sucesso) fazê-los sentir-se
culpados, acusando-os de exploração e de falta de preocupação.

Este livro não pretende resolver nada, e muito menos manter a verdade
absoluta. Primeiro de tudo, não há verdade absoluta, não há magia por trás
de uma revelação divina. Os humanos são o que eles são, nem bons nem
maus. Nada e ninguém pode mudá-los, quanto mais ajudá-los a se torna-
rem deuses. Isto é impossível assim como inútil; somos os únicos humanos
que viveram, vivem e viverão neste planeta.

O sistema de valores mais eficaz para a humanidade seria aquele que não
dependesse da religião e das suas quimeras, nem da promessa de vida após
a morte, no céu, no inferno ou em qualquer outro lugar...

«Imagine que não há religião. É fácil se você tentar. Nenhum inferno abai-
xo de nós, só o céu acima.

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