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Schopenhauer e a arte de conhecer a si mesmo

Rodrigo Vieira Marques

Texto publicado em O Popular em: 03/08/2010.

A Martins Fontes lança mais uma tradução dos textos menores de Arthur
Schopenhauer, a saber, A arte de conhecer a si mesmo. Seguindo o título,
provavelmente a primeira reação do leitor é de que se trata de
um manual de auto-ajuda. Contudo, ao ler o livro, logo pode
emergir o sentimento de que, ao contrário de um roteiro de
autoconhecimento, o que se apresenta é uma espécie de diário,
um conjunto fragmentado de ideias que guiaram o filósofo em
sua vida prática. A pergunta não poderia ser outra: “De que
modo, então, aquilo que Schopenhauer utilizou para ele mesmo
pode nos servir de inspiração”? Como conciliar ideias que nos são
hoje tão controversas, como, por exemplo, aquelas diante das
quais qualquer feminista não teria nenhuma dificuldade em imputar-lhe um processo
de misoginia? Antes, porém, precisamos compreender o contexto no qual se insere
essa obra.
A presente edição, na verdade, é uma tentativa de reconstruir um manual que,
mesmo o filósofo nunca tendo escondido a sua existência, nunca chegou a torná-lo
público. Este livrinho secreto, denominado por ele Eis heautón [Do grego: Em
direção a si mesmo] em homenagem às memórias de Marco Aurélio, certamente, não
teria nenhuma dificuldade em servir de inspiração a mais um romance de Umberto
Eco. Iniciado por volta de 1821 e composto certamente de anotações autobiográficas,
citações preferidas, normas de conduta etc, após a morte de seu autor, o livro viu-se
mergulhado em uma verdadeira aventura. Conforme relato de seu executor
testamentário, Wilhelm Gwinner, o filósofo teria pedido para que ele fosse destruído.
Contudo, para muitos dos seguidores e amigos de Schopenhauer, ao invés de
fazê-lo, Gwinner teria antes feito uso dele para compor um romance no qual,
conforme suspeitas, conteria trechos inteiros da obra do filósofo. O mesmo teria
acontecido com a biografia de Schopenhauer que ele viria a escrever. Frente a isso, a
acusação de plágio logo não tardou a ser feita, deixando Gwinner em grandes apuros.
Mesmo assim, apesar das acusações, a verdade dos fatos e os esclarecimentos
esperados o acompanharam até seu túmulo, eles nunca vieram à luz. Anos depois, seu
filho teria presenteado a Biblioteca de Frankfurt com textos e documentos próprios
de Schopenhauer que Gwinner ainda detinha, mas, para aumentar o suspense, o
material doado nunca fora encontrado. Sendo assim, o que constitui o livro ora
publicado?
Trata-se, na verdade, de uma reconstrução elaborada por Grisebach,
responsável pela edição das obras de Schopenhauer, e isso tendo por base os trechos
de Gwinner considerados provavelmente pertencentes ao manuscrito perdido. Trata-
se, pois, de um trabalho rigoroso tendo por referência o estilo, conteúdo e períodos
nos quais foram escritos. Além do trabalho de Grisebach, esta edição conta também
com as mesmas tentativas de reconstrução operadas por Arthur Hübscher, o qual
levou em conta também os demais textos autobiográficos do filósofo. Por
conseguinte, essa reconstrução é composta por duas partes, intituladas,
respectivamente, “A arte de conhecer a si mesmo” e “Máximas e citações preferidas”.
Na segunda parte, encontramos um rico e vasto conjunto de citações feitas pelo
filósofo, desde os clássicos da antiguidade até expressões e autores de sua época.
Contudo, na parte que serve de título a este trabalho, o que podemos encontrar? O
que seria essa “arte de conhecer a si mesmo”?
A nosso ver, mais do que um manual, o que encontramos é uma reflexão rica e
profunda do que constitui e marca a própria experiência do pensamento. Trata-se
antes de marcas e fragmentos de um pensador refletindo sobre si mesmo e, por
conseguinte, assinalando ao seu leitor o modo como ele empreendera a tarefa de
tornar concreta aquilo que ele considerava ser uma atitude autêntica e radical diante
da vida. O que ele nos ensina? Conhecer a si mesmo, antes de tudo, é uma atitude
concreta, ela deve acompanhar nossa prática moral. Neste aspecto, o que se
denomina “pessimismo” passa a ser antes um “realismo”, o reconhecimento de que,
frente às adversidades da vida, o que resta é uma espécie de “otimismo prático”,
aquele que nasce de nossa sabedoria, de nossa capacidade de percorrer um caminho
de redenção quando fazemos de nossa vida também uma espécie de obra de arte. Se
apenas a arte pode proporcionar redenção ao homem, por que não transformar nossa
vida mesma em arte? É claro que se trata aqui de uma breve apresentação de suas
ideias, há de se levar em conta também os limites e o contexto filosófico no qual ele se
encontra inserido. Contudo, ao falar em arte, o que se pretende, em primeiro lugar, é
mostrar que o caminho, aliás, o método que se faz presente no autoconhecimento não
será, com certeza, o mesmo utilizado pelas Ciências da Natureza.
Por conseguinte, a quem queira acompanhar as reflexões do filósofo, há de se
ter em conta que, provavelmente, mais do que um manual, o que poderá encontrar
será a explicitação de um itinerário no qual conhecer a si mesmo implica, sobretudo,
fazer a experiência de um saber crítico frente à realidade, de um caminho que nos
leve a romper com uma visão idealizada e cristalizada de nós mesmos; um caminho
no qual antes vale a virtude e a sabedoria do que as mentiras e superficialidades das
ilusões que podem nos corromper. No conhecimento de si, por fim, seria preciso
encontrar aquela prudência que, conforme Chamfort, consiste, primeiramente, “(...)
em seguir audaciosamente o próprio caráter, aceitando com coragem as desvantagens
e os inconvenientes que daí possam surgir”, pois, no final das contas, “é melhor
deixar os homens serem o que são, a tomá-los pelo que não são”.

Dados do Livro:
A arte de conhecer a si mesmo. Organização e ensaio de Franco Volpi. São Paulo:
Martins Fontes.

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