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Resenha Final (14/07/22) - A Carnavalização do Brasil:

Por Gabriel Vera Machado


TEXTO ESCOLHIDO: `Entre o Erudito e o Popular´ - José Miguel Wisnik

Wisnik defende que o período que vai do início do movimento modernista à


inauguração de Brasília é um período próspero e fecundo da vida social e cultural
brasileira. Alguns aspectos desta prosperidade se veem representados em grandes obras
literárias do período, como Macunaíma e Grande Sertão de Veredas; grandes
movimentos musicais e filosóficos, como a Bossa Nova de Tom Jobim e João Gilberto e
a Antropofagia de Oswald de Andrade; arquitetônicos, como as obras de Oscar Niemeyer,
entre outros.
Cada obra ou movimento não necessariamente segue a mesma linha ou corrente
modernista, mas todos, de fato, apresentam o Brasil como ele foi ou como se dava no
presente por uma ótica diferente, olhares cheio de expectativas, esperanças, estigmas e
proposições típicas deste período. E é claro que este período seria carregado de dilemas:
o Brasil havia acabado de atingir o status de República juntamente à tardia abolição. Os
movimentos modernistas chegavam à ex-colônia, também tardios, com toda força, e
somados às inovações tecnológicas da época e suas possibilidades, como a de gravação
(registro sonoro e, posteriormente, visual), enchiam o imaginário coletivo de euforia.
Dessa maneira, muito se pensava na direção de caminhar do país, tanto em relação
ao futuro, quanto em relação ao passado. E ressurgiam as discussões de identidade e
pertencimento: O Manifesto Pau Brasil e o Manifesto Antropofágico resgatavam os
primórdios da civilização no território brasileiro e propunham (Antropofagia) uma
identidade baseada na deglutição de todas as interferências culturais posteriores com
prevalência, sempre, da primeira - dos povos originários. Propunham também uma
subversão dos valores conservados intrincados na sociedade brasileira, como o machismo
e o patriarcado, propondo uma Revolução – A Revolução Carnaíba – que, por si só, já é
uma consequência de uma sociedade eufórica.
Em relação à música, temos a Bossa Nova, que conversa muito, em um paralelo
imagético, com o trabalho de Oscar Niemeyer. Os dois, fruto de uma influência e ideal
estrangeiros de progresso.
Para um país cuja cultura e cuja vida social se defrontavam a
cada passo com as marcas e os estigmas do subdesenvolvimento, a
Bossa Nova representou, pode-se dizer, um momento privilegiado da
utopia de uma modernização dirigida por intelectuais progressistas e
criativos, plasmada também a essa mesma época na construção de
Brasília, e que encontrava correspondência popular no futebol da
geração de Pelé. (WISNIK, José; Entre o Erudito e o Popular)

É de se pensar, também, o que a Bossa significava neste contexto. A música de


Caetano ilustra bem este símbolo:
Sobre a cabeça os aviões//sob os meus pés os
caminhões//aponta contra os chapadões//meu nariz//eu organizo o
movimento//eu oriento o carnaval//eu inauguro o monumento no
planalto central//do país//viva a bossa-sa-sa-sa//viva a palhoça-ça-ça-
ça-ça. (VELOSO, Caetano; Tropicália)

O estilo, para além da utopia de modernização, era a cara de um país


subdesenvolvido que tentava mostrar progresso - mas um progresso aos moldes
estrangeiros e para os estrangeiros. Era uma tentativa do Brasil de se posicionar no cenário
internacional, ou dos próprios brasileiros de se colocarem à altura de tal posicionamento
(não é à toa que a Bossa é uma mescla do Samba, que já vinha sido produzido a muito no
território, e o jazz, estilo que fervia nos EUA naquele momento). Uma tentativa tal qual
foi a bem-sucedida de Villa Lobos (que será tratado adiante) e tal qual seria, pouco tempo
depois, a bem-sucedida de Carmen Miranda – cada um à sua maneira, mas sempre criando
uma imagem de Brasil estereotipado, que ao final sempre se sujeita à análise e aprovação
do estrangeiro.
Havia, porém, outras maneiras de encarar a modernização do Brasil. Houve quem
acreditasse que ela poderia se dar pelos signos exclusivamente brasileiros, ou, ao menos,
o mais brasileiros possíveis. Tal movimento é representado, principalmente, pela
Tropicália, que criticava essa utopia advinda da influência estrangeira e estabelecia uma
visão realista do Brasil, com suas possibilidades mas também com seus problemas
(críticas sociais) – simbolizando tal ideia através do resgate do Samba (contradição
Bossa-Samba) e outros estilos nacionais.
Tal contradição representada pelo Samba-Bossa carrega raízes ainda mais
profundas: ela se dá no aspecto erudito-popular da música brasileira. Apesar de a Bossa
não ser um gênero erudito, em termos gerais, têm intersecções com o erudito em uma
perspectiva social. Tanto a Bossa quanto a música erudita da época tinham relação com
o estrangeiro (visto que, antes de Villa-Lobos, o país nunca teve uma produção
autoral/própria relevante de música erudita), e traziam os estigmas e as visões próprias,
diferentes das populares – e, claro, diferentes da realidade e da vida da massa.
E, como visto na relação Bossa-Samba, a cultura Erudita-Popular também
caminhava, com seus contrastes, lado a lado no período em análise – tudo isso como
consequência do caldeirão sociocultural enfrentado pelo país nessas décadas. Um perfeito
exemplo disso é Villa-Lobos e sua obra. Nascido e musicado em um meio erudito, desde
criança Villa se interessava por música popular, comparecendo a rodas de samba e choro
na capital onde morava (na época, RJ) – não surpreende que fora apelidado de ``Violão
Clássico´´ pelos amigos músicos populares.
Ao longo de sua carreira, Villa se consolidou como um músico erudito, mas
sempre sofrendo fortes influências populares em sua obra. Sua evidente participação na
Semana de Arte Moderna escancarou este aspecto Erudito-Popular não só de sua música,
mas na produção brasileira em geral. Outro forte exemplo disso foi Ernesto de Nazareth,
que ambicionava ser concertista, mas era o rei do maxixe com suas síncopes e o swing
(descritos como um ``nada tipicamente brasileiro´´ por Milhaud).
A obra de Villa-Lobos chegou no auge de sua representação Erudita-Popular
quando realizou sua famosa viagem ao Nordeste para estudar, compreender e registrar as
músicas populares da região – e depois, claro, internalizá-las e incorporá-las ao seu
trabalho. Após essa viagem a obra de Villa se popularizou ainda mais, e se fortaleceu
internacionalmente, propiciando suas diversas viagens à Europa – principalmente à
França.
Disso, tira-se duas conclusões: a inevitável mistura entre o popular e o erudito, e
o estrangeiro e o nacional - as utopias progressistas frente à realidade das massas – na
cultura brasileira destas décadas; e a fetichização que o país sofria frente à sua cultura
popular – o Carnaval era lindo, o popular era maravilhoso, mas desde que apresentados
aos estrangeiros nos moldes deles (e, mesmo assim, essa beleza carregava uma carga
exótica e exotérica, muito diferente da seriedade e respeito com que eram enxergadas as
músicas eruditas-europeias pelos próprios).
Ou seja, o país ainda continuava sendo enxergado como subdesenvolvido pelos
estrangeiros, fato que se comprova com a ascensão midiática internacional de Carmen
Miranda – sua arte não era admirada e sim servia de diversão ao estrangeiro, assim como
o Brasil. A imagem do Carnaval em Carmen Miranda desilude toda a construção eufórica
de modernização quando comtemplada em sua totalidade; então a ficha cai: o que era,
para os brasileiros, algumas décadas atrás, um símbolo forte e progressista de identidade
nacional agora é motivo de chacota internacional. O que ocorre, portanto, depois da
construção de Brasília e do governo de JK simboliza bem essa desilusão: o governo de
Jânio Quadros e a desestabilização da política brasileira; e logo depois, a ditadura militar.
O que o Carnaval, por fim, tem a ver exatamente com isso tudo? Para Oswald de
Andrade, ``O Carnaval é o acontecimento religioso da raça´´, para Wisnik, a fala
oswaldiana é metáfora musical da cultura:
[...] a um só tempo séria e debochada, que constata com
realismo a força de um fenômeno popular de massas nascente (o
carnaval urbano na capital de um país mestiço e tardo-escravocrata),
ao mesmo tempo que projeta nele as energias utópicas de um novo
modelo de arte que engolfaria consigo os modelos tradicionais de
importação europeus. (WISNIK, José; Entre o Erudito e o Popular)

O Carnaval é tudo isso que acaba de ser descrito: é o sentimento eufórico que
moveu (quase) todos os movimentos artísticos, sociais e políticos desde o início do
Movimento Modernista até a construção de Brasília e a desilusão com a ditadura. É
apenas mais uma – apesar de extremamente relevante – das tentativas de se construir uma
imagem e uma identidade forte ao Brasil, com todos os seus problemas e suas qualidades.
Seria, pois, a carnavalização da história e da cultura brasileira não só o primeiro
movimento forte de massa e identidade nacional, mas uma maneira de lidar com o passado
violento, excludente e escravocrata? Será que Villa-Lobos é tão carnavalesco quanto
Carmen Miranda? Ou a elite brasileira era tão conservadora que a dose inicial de
modernismo demonstrado por Villa na Semana de Arte Moderna concedeu-o passe livre,
automaticamente, para entrar na farofa do Carnaval? Qual é a dose de Carnaval existente
em uma Revolução? Na Revolução Carnaíba, especificamente. E qual a dose de
Revolução existente no Carnaval?
Após uma tentativa revolucionária sempre há repressão. Seria, pois, a ditadura,
uma resposta à voz do Carnaval? É de se pensar. Fato inegável, porém, é que a ditadura
foi uma resposta à tentativa de Carnavalização do Brasil – e ainda não se sabe se ela foi
contida.

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