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MESTRADO EM DIREITO E PRÁTICA JURÍDICA

Medida da Pena e Direito de Execução da Pena


Determinação da medida da pena: paroxismo da Constituição Penal.

DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA: Caso modelo

A, com 18 anos, consumidor de estupefacientes, furtou a carteira de B, enquanto esta estava distraída a fazer
compras nas Amoreiras, no dia 14/10/2016. Dentro da carteira – uma Louis Vuitton avaliada em 4.000 euros –
encontrava-se um conjunto de cheques ao portador, um pequeno cofre fechado dentro do qual – depois de
forçosamente aberto – se encontrava um anel no valor de 10.000 euros, e uma pen com a versão do orçamento de
Estado que teria que ser entregue à Assembleia da República no dia do furto (para além de outros bens de valor
menos significante).

No dia seguinte, A pegou nos cheques e, tendo inscrito o seu próprio nome nos mesmos, tentou proceder ao seu
levantamento num balcão do BCP, pelo valor global de 6.000 euros. Como havia já sido dado o alerta do furto dos
cheques, a polícia foi chamada ao local, procedendo à detenção de A. Os restantes bens furtados nunca foram
recuperados. A é arguido primário e revela antecedentes pessoais de pobreza, exclusão social e desintegração
familiar.

Opção A) A foi libertado na 2.ª feira seguinte, dia 17/10/2016, e sujeito a apresentações periódicas semanais.
Entretanto, durante os anos de 2017 e 2019, A submeteu-se a tratamento de substituição (metadona), regressou à
escola e encontra-se a frequentar um curso profissional que dará equivalência ao 12.º ano. O julgamento irá realizar-
se em 2019.

Opção B) A foi libertado na 2.ª feira seguinte, dia 17/10/2016, e sujeito a apresentações periódicas semanais.
Entretanto, durante o ano de 2017, A praticou mais um crime de furto simples, um crime de roubo (foi dado um
encontrão à vítima) e um crime de tráfico de estupefacientes (de menor gravidade). O julgamento pelo primeiro
crime de furto irá realizar-se em 2019. O julgamento pelos dois outros crimes, furto e roubo, e pelo crime de tráfico
apenas se irá realizar em 2020.

1. Identifique os crimes praticados e determine a moldura penal do facto(s) concreto(s), referindo os critérios
fundamentais para a determinação da medida da pena, admitindo que o arguido era julgado logo após a
prática do facto em processo sumário.
2. Determine a moldura penal do facto(s) concreto(s), referindo os critérios fundamentais para a
determinação da medida da pena, admitindo que o arguido era julgado em 2019, considerando a opção A).
3. Admitindo que foram fixadas as seguintes penas parcelares – furto qualificado: 3 anos de pena de prisão
suspensa na execução; tentativa de burla – 1 ano de prisão, suspensa na execução; e falsificação de
documentos: 2 anos de pena de prisão suspensa na execução – como determina a pena única?
4. Admitindo que a data da prática dos factos referidos em B) ocorreu após o trânsito em julgado do crime de
furto qualificado (julgamento em processo sumário), como determinaria as penas parcelares do crime de
furto simples, roubo e tráfico de estupefacientes, atendendo ao fator reincidência?
5. Admita, considerando o cenário B), que em 2019, já depois do transito em julgado da primeira condenação,
A pratica um outro crime de furto simples. Sabendo que foram fixadas as seguintes penas única e parcelares
– julgamento de 2019, 3 anos de prisão suspensa na execução; julgamento de 2020: pena do furto de prisão
de 6 meses; pena do crime de tráfico de menor gravidade, pena de prisão de 1 ano; pena do roubo, 3 anos
de prisão; pena única de 2020, pena de prisão de 2 de prisão efetiva – como determina a pena do crime de
furto, que está a ser julgado em 2021?
6. Uma vez que os bens nunca chegaram a ser recuperados (pensando no cenário A), e sabendo que o arguido
foi condenado ao pagamento de uma indemnização no valor de 15.000 euros à ofendida lesada, poderia o
tribunal fixar um valor de 14.000, nos termos do art. 111.º do CP, para ser perdido a favor do Estado?
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Determinação da medida da pena: paroxismo da Constituição Penal.

Questão 1: DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA: 3 fases fundamentais

Identifique os crimes praticados e determine a moldura penal do facto(s) concreto(s), referindo os


critérios fundamentais para a determinação da medida da pena, admitindo que o arguido era julgado logo
após a prática do facto em processo sumário.

1.1. Determinação da moldura penal do facto concreto (furto qualificado)


a) Identificação do tipo legal de crime aplicável ao caso;
b) Identificação de eventuais tipos qualificados ou privilegiados;
c) Identificação de circunstâncias modificativas agravantes ou atenuantes (agravações pelo
resultado/circunstâncias agravantes ou atenuantes previstas em tipos de ilícitos agravados,
tentativa, cumplicidade, omissão, etc.) assentes na maior ou menor ilicitude do facto;
d) Identificação de circunstâncias modificativas agravantes ou atenuantes assentes na maior ou
menor culpabilidade (medida concreta da ilicitude material, medida concreta da culpa do
agente, necessidades de prevenção especial) do agente (regime especial para jovens e art.
72.º do CP)
e) Identificação – a esta luz – dos limites mínimos e máximos da moldura penal do facto concreto
(em princípio, são os indicados no tipo e resultantes das circunstâncias agravantes ou
atenuantes, por vezes, os limites mínimos ou máximos não são indicados no tipo, pelo que é
necessário recorrer à aplicação dos arts. 41.º e 47.º do CP)

No caso, está em causa o tipo previsto no art. 203.º do CP, que indica como penas principais prisão
ou multa, sem indicar o limite mínimo da pena de prisão, nem os limites mínimos ou máximos da pena de
multa.
No entanto, é necessário verificar se existem circunstâncias qualificantes. E existem. O furto
alcançou um valor elevado (este valor é suportado pelo dolo do agente, que identificou tratar-se de uma
mala valiosa e, por isso, escolher esta particular vítima como alvo): 15.000 euros (superior às 50 unidades
de conta). Está verificada a circunstância prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º. Uma vez que foi ainda
furtada uma peça que se encontrava num cofre/dispositivo fechado, está ainda verificada a circunstância
prevista na alínea e) do n.º 1 do art. 204.º. Não se encontra verificada a circunstância prevista na alínea
b) do n.º 2 do art. 204.º, pois apesar de o orçamento possuir importância para a economia, o orçamento
não foi furtado, apenas foi furtada uma das cópias da última versão, havendo mais cópias nos discos
rígidos dos computadores do Estado (tarefa de interpretação do tipo de ilícito à luz do especial desvalor
da ação e do resultado – sentido normativo do tipo). Por outro lado, uma vez que o agente desconhecia
o conteúdo da pen, o dolo do agente não suportaria esta qualificação, que sempre teria que ser dolosa.
Assim, a moldura penal será encontrada no art. 204.º, n.º 1, que prevê uma pena de prisão até 5
anos ou de multa até 600 dias. Uma vez que não são fixados os limites mínimos, é necessário recorrer ao
disposto nos arts. 41.º (pena de prisão) e 47.º (pena de multa) do CP. A moldura penal é de 1 mês a 5 anos
de prisão ou de 10 a 600 dias de multa.
Visto que se trata de jovem de 18 anos, é necessário ponderar a aplicação do regime Especial para
Jovens Delinquentes (REJD), DL n.º 401/82, de 23 de setembro. Nos termos do art. 4.º, o juiz deverá
atenuar a pena sempre que tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a
reinserção social do jovem condenado. Este regime obriga o juiz a fazer uma ponderação de prevenção
especial positiva já neste momento inicial, a qual deverá obedecer aos seguintes critérios: deve ser

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aplicada a atenuação sempre que se trata de arguido primário (salvo circunstâncias excecionalmente
graves); mesmo perante arguidos não primários, deverá aplicar-se a atenuação sempre que se trata de
factos de gravidade baixa/média praticados num curto espaço de tempo ou quando se trate de factos
distintos (não permitam um verdadeiro juízo de reincidência). Aplicando, ao caso, esta atenuação
especial, a moldura concreta do facto seria de 1 mês a 3 anos e 4 meses; de 10 a 400 dias de multa.
Uma vez que a moldura penal do facto concreto tanto pode ser fixada em pena de prisão ou em
pena de multa é necessário optar por uma dela para passar à fase seguinte (determinação da medida
concreta da pena).

Ora, tratando-se de um jovem estudante sem meios de subsistência e de um facto com elevada
ilicitude, a determinação da pena em sede de multa poderia ser frontalmente contrária às finalidades da
pena de multa ou uma forma encapotada de alcançar uma pena de prisão efetiva. O sistema português
de fixação da pena de multa permite uma adequada ponderação entre as necessidades da pena –
determinação dos dias de multa em função da gravidade do facto, medida da culpa e necessidades de
prevenção – e da situação económica do agente, através da fixação do valor diário da multa, entre os 5 e
os 500 euros. No entanto, neste caso, não dispondo o agente de qualquer meio de subsistência, a fixação
de qualquer valor para a multa seria incomportável para o agente. Nesta fase, portanto, deve ser feita
uma primeira avaliação para determinar se a pena de multa responde à gravidade do facto e necessidades
de prevenção e se, ainda, se é possível alcançar tais finalidades através da multa atendendo à situação
concreta do agente no momento da condenação (art. 70.º do CP). Neste caso, é a ponderação da
adequação – dada a manifesta insuficiência económica do agente – que aconselha a opção pela pena de
prisão, sabendo-se que esta pode vir a ser substituída por outras penas.

1.2. Determinação da medida da pena (pena de prisão):


Aqui segue-se de perto a teoria do espaço de liberdade ou da moldura da culpa, como teoria de
enquadramento da tarefa da determinação da medida da pena. De acordo com esta tese – em respeito,
principalmente, pelo disposto no n.º 2 do art. 40.º do CP, corolário do princípio da culpa, expresso pelos
arts. 1.º e 27.º, n.º1, da CRP – deverá determinar-se a moldura da culpa, dentro da moldura concreta do
facto, ponderando apenas critérios de culpabilidade nesta fase, devendo as considerações de prevenção
(geral e especial) ser relevantes na determinação da medida concreta da pena e na escolha da pena. Uma
vez que se entende que a prevenção geral esgota quase toda a sua função penal na seleção das molduras
legais (cabendo ao legislador interpretar, na sociedade, a valoração dada aos bens jurídicos e a
correspondente necessidade de maior ou menor punição para cada categoria de crimes e bens jurídicos
lesados e expressar tal interpretação através da fixação das molduras legais), uma vez fixada a medida da
culpa, será a prevenção especial negativa e positiva a quem caberá, em primeira linha, determinar a
medida da pena e orientar a escolha concreta da pena. Assim, e para que haja integral respeito pelo
princípio da culpa e maiores garantias de ponderação autónoma dos critérios em causa, deverá realizar-
se o seguinte:
a) Identificação dos factos concretos relevantes para avaliação da culpabilidade, em sentido amplo
[alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 71.º do CP]: gravidade da ilicitude material (ainda suportada
pelo dolo do agente pela previsibilidade do facto) – modo de execução, gravidade concreta do
facto, grau de sofrimento ou impacto direto do crime na vítima/sociedade; relações especiais
entre o agente e o bem jurídico, intensidade do dolo e negligência (premeditação ou persistência
na vontade/mera resignação/dúvida ou aceitação do risco; número e importância dos deves de
cuidados violados pelo agente); grau de censurabilidade do agente (motivações para o facto,

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relacionamento com a vítima, aspetos da personalidade do agente revelados no modo de


execução do facto),
b) Identificação dos factos concretos relevantes para graduação da medida da culpa (culpabilidade
em sentido estrito) [alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 71.º do CP, parcialmente e apenas no que
respeita ao comportamento anterior ou concomitante á prática do facto]: percurso pessoal do
agente, processo de socialização, integração social, circunstâncias relevantes no momento da
prática do facto relativas à tomada de consciência da ilicitude e à capacidade de determinação
pela norma;
c) Avaliação conjunta dos elementos referidos em cima e fixação do limite máximo da culpa (medida
máxima da pena que ainda é compatível com a medida da culpa do agente) – não é necessário
fixar um limite mínimo da culpa (não há uma verdadeira moldura da culpa) pois à luz da CRP, art.
18.º, n.º 2, a prevenção especial pode impor a aplicação de uma pena inferior à culpa do agente
quando tal seja exigido pelas finalidades de ressocialização;

Neste caso, temos uma gravidade média/baixa da ilicitude (esta avaliação é feita dentro da moldura legal
concreta do facto: forma de execução é ligeira, não há indícios de premeditação ou persistência, embora
haja dolo direto, o valor é elevado, mas situa-se no mínimo do conceito de “valor elevado”, a vítima não
ficou em situação económica difícil, embora tenha perdido um anel valioso, quiçá, até com valor
estimativo); de média/baixa culpa (o agente tem percurso de desintegração familiar/exclusão social), pelo
que o limite máximo da culpa não poderia ir além dos 2 anos de prisão.

d) Revisão da moldura concreta do facto à luz da medida máxima da culpa: limite mínimo legal e
limite máximo da culpa: de 1 mês a 2 anos de prisão.
e) Identificação dos factos relevantes para avaliação das necessidades de prevenção especial
negativa (aspetos da personalidade do agente ilustrativos da probabilidade de reincidência)
[alíneas d) a f) do n.º 1 do art. 71.º do CP, parcialmente e apenas no que respeita ao
comportamento posterior à prática do facto e às circunstâncias do agente no momento da
condenação];
f) Identificação dos factos relevantes para avaliação das necessidades de prevenção especial
positiva (aspetos da personalidade do agente ilustrativos da consciencialização pata o facto, de
eventual arrependimento e tentativa de reparação do facto, de alteração significativa das
circunstâncias pessoais/familiares, etc.) [alíneas d) a f) do n.º 1 do art. 71.º do CP, parcialmente e
apenas no que respeita ao comportamento posterior à prática do facto e às circunstâncias do
agente no momento da condenação];
g) Avaliação conjunta das necessidades de prevenção para a determinação da medida concreta da
pena e escolha da pena (embora estas tarefas sejam autónomas, acabam por não se poder
autonomizar completamente já que na determinação da medida concreta da pena são logo
ponderadas as possibilidades de eventual substituição da pena de prisão:
i) até 6 meses, dispensa de pena ou substituição por multa ou qualquer outra pena não
privativa ou permanência na habitação;
ii) até 1 ano, substituição por multa ou qualquer outra pena não privativa ou permanência
na habitação;
iii) até 2 anos, substituição por qualquer outra pena não privativa (trabalho a favor da
comunidade/suspensão/proibição de exercício de profissão) ou permanência na
habitação;

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iv) até 3 anos, substituição por qualquer outra pena não privativa (trabalho a favor da
comunidade/suspensão/proibição de exercício de profissão);
v) até 5 anos, substituição pela suspensão da pena.
h) Assim, embora as razões de escolha da pena não sejam já definitivamente avaliadas, a
determinação da medida concreta da pena tem já como pressuposto um pré-juízo sobre o leque
de penas alternativas que podem ser aplicadas ao caso concreto;
i) Por outro lado, ao determinar a medida concreta da pena (em função das necessidades de
intimidação e/ou neutralização do agente – prevenção especial negativa) importa avaliar se esta
medida concreta não inviabiliza a realização das finalidades de prevenção especial positiva
(ressocialização);

No caso concreto, não está em causa a dispensa da pena (trata-se de arguido toxicodependente, com
necessidades médias/altas de prevenção especial negativa), mas, dado que se trata de arguido
primário, muito jovem interessa manter em aberto as possibilidades de substituição.

j) Determinação da medida concreta da pena: 2 anos de prisão (tendo em vista a necessidade de


um período alargado de suspensão com regime de prova, face ao disposto no n.º 5 do art. 50.º
do CP).

1.3. Escolha da pena

Na escolha da pena devem ter papel preponderante as considerações de prevenção especial positiva,
já que a pena não deve assumir uma função contraproducente à ressocialização do agente.
No caso, o arguido é toxicodependente e encontra-se em exclusão social sem grande apoio familiar,
com um percurso escolar interrompido. Não parecendo adequada (às finalidades de prevenção) a pena
de multa, nem sendo possível aplicar a pena de proibição do exercício de profissão, restam as seguintes
opções:
- Permanência na habitação (desaconselhada devido á desintegração familiar);
- Trabalho a favor da comunidade;
- Suspensão da pena de prisão.
As finalidades de prevenção especial aconselham o seguinte para este jovem: mudança de ambiente,
tratamento da toxicodependência e regresso à formação/escola. Neste contexto, poderia ser aplicada
uma de duas penas:
- Trabalho a favor da comunidade, 480 horas (se for em tempo parcial de 4 horas/dia, 2 dias por
semana, são mais de 5 meses de trabalho, devendo ter-se em consideração que um dos objetivos da pena
é que a mesma seja compatível com o regresso à escola ou formação profissional), acrescido de regras de
conduta, arts. 58.º, n.º 6 e 52.º (as regras de conduta seriam: proibição de contactos com potenciais
fornecedores de droga ou companheiros do crime identificados, sujeição a tratamento de metadona); ou,
como parece mais adequado,
- Suspensão da pena de prisão com regras de conduta, por 2 anos, arts. 50.º e ss. (as regras de conduta
seriam: proibição de contactos com potenciais fornecedores de droga ou companheiros do crime
identificados, sujeição a tratamento de metadona), com regime de prova (com plano de reinserção social),
condicionado ao pagamento parcial do dano provocado à ofendida lesada (dado o valor total em causa,
exigir o pagamento total seria desrazoável).

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Circularidade da teoria geral da infração, progressividade constritora na determinação da medida da


pena e proibição de dupla valoração:

A “dupla” valoração do mesmo elemento ou facto surge, após a verificação do preenchimento do


tipo, em três momentos distintos: i) fixação de limites mínimos e máximos da pena para o caso concreto
(determinação da moldura da pena do facto); ii) determinação concreta da medida da pena; e iii) escolha
da pena concretamente aplicada. E pode também ocorrer uma “dupla” valoração do mesmo elemento
sobre três perspetivas distintas: i) determinação do limite máximo da culpa do agente; ii) determinação
das necessidades de prevenção geral; e iii) determinação das necessidades de prevenção especial. O que
implica que, só nesta tarefa final do julgador, já possa haver uma sêxtupla valoração do mesmo elemento.
Se a este panorama acrescermos os momentos de verificação do tipo incriminador num contexto de
necessária e garantística circularidade da teoria geral da infração, a “dupla” valoração torna-se
exponencial.
Os juízos são, por vezes, muito similares (por exemplo, os conhecimentos especiais do agente têm
relevância no plano da imputação objetiva, no dolo e na culpa) e incidem sobre o mesmo facto
naturalístico. O juízo de ilicitude incide sobre o facto típico e o juízo de culpa sobre o facto ilícito. O dolo
e a violação do dever de cuidado têm uma tripla relevância, na tipicidade, na ilicitude e na culpa5. Outros
elementos subjetivos, referentes à atitude interna do agente, assumem também uma dupla relevância na
ilicitude e na culpa. Por isso, pretender que, sempre que se reconhecesse uma dupla ou tripla relevância
ao mesmo facto naturalístico no processo de determinação da punibilidade e da medida da pena do crime,
estaria a comprometer-se o princípio do ne bis in idem, implicaria que se desconhecesse que o facto
subjacente ao crime, no seu sentido normativo-social global, é sempre o mesmo. O que implica que se
possa ter que realizar, ao longo da análise do crime, um duplo (ou múltiplo) juízo sobre a mesma entidade
normativo-social, sem qualquer violação do ne bis in idem. E nem por isso se estará a realizar uma dupla
valoração censurável ou proibida, pois cada um destes juízos procura dar resposta a diferentes questões
e exerce uma função autónoma, no âmbito da teoria geral da infração.
Uma perspetiva rígida da proibição de dupla valoração (mesmo facto naturalístico) tornaria
impossível a determinação da medida da pena. Por exemplo, neste caso, os factos ponderados para a
atenuação especial do regime para jovens (a juventude, o facto de ser arguido primário) não poderia ter
mais relevância na determinação da medida da pena, o que seria desfasado da correta culpabilidade do
agente.
Também na avaliação da culpabilidade foram ponderados os valores furtados e a perda do anel
(esforço do arguido para arrombar o cofre e a perda definitiva do bem), elementos estes que já constam
do tipo e foram determinantes para qualificar o furto. Terá havido violação da proibição de dupla
valoração? Não, pois o que se proíbe não é qualquer dupla valoração de um elemento de facto – ainda
que descrito no tipo. O que se proíbe é a dupla valoração redundante, isto é, que seja reiterada, sob a
mesma perspetiva e tendo em vista a mesma finalidade (assim provocando um aumento
injusto/injustificado da pena), a valoração do mesmo elemento normativo-social. Nesta medida, ZIPF
esclarece que o sentido da proibição da dupla valoração é o de impedir que um elemento que possua uma
graduação de valor neutro para a aferição da gravidade concreta do facto (e inerente culpabilidade),
assuma depois um papel decisivo na determinação da medida da pena.
No que respeita aos elementos típicos e aos que serviram de fundamento para a escolha do tipo
de crime, os mesmos podem e devem ser valorados como fatores de individualização da pena, na sua
concreta intensidade (quando admitam variações expressivas de intensidade). O próprio art. 71.º o refere
expressamente, obrigando a uma interpretação teleológica das suas várias disposições. Pelo que a dupla
relevância ou dupla valoração das mesmas circunstâncias, ao longo da teoria geral da infração e depois

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em fases distintas da individualização da pena, desde que feita em função de distintas finalidades e
diversos pontos de vista normativos, não se encontra proibida. O que, reforça-se, não constitui qualquer
exceção à proibição de dupla valoração, mas antes consequência do próprio conteúdo material da
proibição de dupla valoração, enquanto regra de densidade axiológica, expressão de racionalidade
decisória6569 e decorrência do ne bis in idem.
Há violação da proibição de dupla valoração quando, na pena a fixar pelo crime de homicídio, é
ponderada a morte da vítima como elemento indiciador da especial ilicitude do facto. Não há violação da
proibição de dupla valoração quando, na pena a fixar pelo crime de homicídio, é ponderado o grau de
sofrimento da vítima provocado pela forma de execução do homicídio.
Haveria proibição de dupla valoração se tivéssemos valorado os 14.000 euros como indício de
especial ilicitude dentro da moldura do furto qualificado (o valor mínimo da qualificação ronda os 10.000
e vai até aos 40.000 euros, valor máximo) já que estaríamos a valorar duplamente o facto de o valor
exceder as 50 unidades de conta (elemento do tipo) e não já – autonomamente – o facto de, dentro deste
intervalo, ser um valor elevado, para graduar a medida concreta do ilícito/culpabilidade. Já se o valor
furtado fosse superior a 30.000 euros, poderia este ser valorado como expressivo de uma ilicitude elevada
(dentro de uma moldura legal dependente de valores compreendidos entre os 10.000 e os 40.000), pois
um tal valor já se aproximaria de modo relevante do limite máximo da ilicitude expresso pela moldura
legal.

Concurso furto qualificado e a falsificação de documentos e/ou burla

Como se pode ver, a operação de determinação da pena para os crimes de tentativa de burla (art.
217.º) e de falsificação de documento (neste caso, punível nos termos do n.º 3 e do n.º 1 do art. 256.º do
CP) seria muito semelhante à que já feita (sendo aqui ponderados apenas os factos relativos à utilização
dos cheques), não havendo necessidade de repetição.
Na densificação do âmbito de proteção e do sentido constitucional do ne bis in idem, deverá
procurar-se, dentro dos sentidos possíveis dos conceitos que compõem a proibição constitucional, o
sentido desejável; isto é, aquele que permite uma proteção máxima do direito fundamental, sem
desproteção absoluta dos valores conflituantes. Sendo certo que um conceito normativo tipológico de
crime poderia, em tese, incluir-se no âmbito dos sentidos possíveis do conceito de crime, já por esta via
não se alcançará a máxima (nem, talvez, a mínima) proteção possível do ne bis in idem. Pelo contrário,
estar-se-ia aqui a proceder a uma delimitação do âmbito de proteção do direito fundamental, partindo
de um nível de proteção mínima: ficaria apenas vedada a dupla punição ou o duplo julgamento pelo
mesmo tipo de crime. Ora, como se disse também, uma restrição aos direitos fundamentais que se faça
sob a designação de densificação ou materialização não poderá escapar aos princípios constantes do art.
18.º da CRP, em especial, aos da necessidade e proporcionalidade. É neste ponto que falham
redondamente as teses normativistas. A adoção de um conceito tipológico de crime, assente na
qualificação jurídica, não é necessária face aos valores constitucionais conflituantes – realização de Justiça
e proteção de outros direitos fundamentais –, nem se revela proporcional face ao imenso vazio (de
proteção) que provoca.
Deverá também ficar afastada qualquer equiparação entre o termo “efetivamente” e a mera
identidade do bem jurídico, dada a complexidade e diversidade das formas de execução dos crimes e a
própria multiplicidade de interesses subjacentes a cada incriminação: principalmente, por causa da
criação de bens jurídicos artificiais (por exemplo, segurança rodoviária, quando no fundo é vida e

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integridade física; ou ordem pública, face à utilização de menor na mendicidade, art. 296.º, quando no
fundo é a saúde do menor que está em causa, etc.) para antecipação da tutela de bens jurídicos.
Caso se pretenda que o ne bis in idem represente um limite ao poder punitivo público, há que
reconhecer na distinção entre concurso aparente e concurso efetivo um mecanismo de controlo da
decisão legislativa, a partir do qual passa a ser possível realizar juízos de inconstitucionalidade. Em
contrapartida, uma interpretação da proibição constitucional assente na unidade ou pluralidade da ação,
em sentido naturalístico, tornaria impossível a cumulação de sanções punitivas em todos os planos,
podendo ferir de inconstitucionalidade o sistema de penas acessórias, entre muitos outros. No plano do
concurso de normas, uma tal opção transportaria para a delimitação do facto um conjunto de critérios
extremamente imprecisos, difíceis de delimitar e propensos à arbitrariedade decisória, como demonstra
a jurisprudência alemã (caso dos carrinhos de bebé).
Que sentido dar, então, ao termo “efetivamente”? Parece que a única conclusão conforme ao ne
bis in idem é a que impõe ao intérprete que relacione o termo “efetivamente”, não com o preenchimento
dos pressupostos da responsabilidade penal, nem com um critério único – como a ação, o resultado ou o
bem jurídico –, mas antes com o conjunto de critérios sobre os quais se assentou a proibição de um bis in
idem e que são os seguintes:
a) identidade do agente,
b) unidade normativo-social do facto (tipo social unitário na execução do facto);
sentido social unitário:
i) reiteração enquanto fenómeno social (modus operandi necessário ou com forte
reiteração – agressões e dano na roupa, “furto por esticão” – que é roubo e sempre seria
um só crime, ainda que fossem necessários dois tipos penais para o expressar);
ii) teleologia comportamental (ausência de sentido para a ação quando desacompanhada
de outra – aproveitamento dinheiro/ocultação corpo – recetação ou “branqueamento”);
iii) identidade narrativa (pertença a uma mesma história – sequencia necessária ou
intrinsecamente ligada de eventos – mas não a mera coincidência espácio-temporal);
iv) assimilação pela linguagem ou correspondente compreensibilidade jurídica (roubo,
latrocínio em algumas ordens jurídicas, lenocínio, etc.);
c) identidade funcional da norma de valoração (identidade do ilícito típico, com ponderação do
tipo social);
d) identidade funcional da norma sancionatória

No plano do concurso, estando em causa a proibição da dupla valoração, interessa avaliar a


identidade normativo-social dos factos que constituem cada tipo incriminador e que não poderão deixar
de ser valorados, em sede da determinação da medida da pena. Assim, não basta o preenchimento do
tipo incriminador, é preciso que, subjacente a cada um dos tipos em concurso, resulte, efetivamente, um
desvalor autónomo, sobre o qual possa ser realizado um juízo de censura jurídico-penal, também
autónomo.
O juiz terá que realizar um juízo de unicidade do facto para que possa determinar o número de
crimes, ou seja, o número de unidades que poderão ser autonomamente sujeitas um terceiro conjunto
de valorações: as respeitantes à determinação da medida da pena. Mas o facto naturalístico, neste
processo, permanece sempre o mesmo. Enquanto as primeiras valorações jurídicas permitem dizer-nos
que este conjunto de factos naturalísticos constitui um crime; o segundo conjunto de valorações jurídicas
permite-nos dizer que este conjunto de factos naturalísticos constitui um só crime; e o terceiro conjunto
de valorações jurídicas permite dizer-nos que este crime deve ser punido nesta medida de pena (ou

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Determinação da medida da pena: paroxismo da Constituição Penal.

penas). Qualquer pretensão de fazer corresponder a proibição de dupla valoração a uma proibição de
dupla relevância jurídica do mesmo facto naturalístico fica, assim, frustrada.

Caso do homicídio e ocultação de cadáver: na pena do homicídio poderia não se ponderar a


ocultação (é possível, mas seria difícil), mas na pena da ocultação seria impossível – a sentença não faria
sentido, a narrativa estaria incompleta, haveria uma irracionalidade na fundamentação/falta de
fundamentação – sem a ponderação do homicídio. Assim, a provocação da morte da vítima seria
duplamente valorada para fundamentar (justificar/aumentar) a pena do homicídio (o que é correto) e
ainda para fundamentar (justificar/aumentar) a pena da ocultação de cadáver. Estas penas (a segunda
maior por causa da primeira) iriam depois determinar a pena única, pelo que a pena final não seria apenas
a pena do homicídio, mas a pena do homicídio mais o aumento pela pena do homicídio e da ocultação. É
aqui que surge a proibição da dupla valoração. O que é mais correto – face ao n.º 5 do art. 29.º e á justiça
da medida da pena – é ponderar todas as circunstâncias do tipo social (ilicitude material) na medida da
pena do crime mais grave, mais compreensivo ou mais adequado ao grau de culpa do agente (caso dos
tipos privilegiados).

Paralelamente, para decidir se pode haver concurso efetivo entre o crime de furto e os crimes de
burla/falsificação de documentos é necessário responder a três questões:
a) O tipo social do furto (de cheques) inclui a sua falsificação com posterior tentativa de
utilização (endosso) do cheque?
b) É possível determinar a medida da pena dos crimes de tentativa de burla ou de falsificação do
cheque sem ponderar as circunstâncias do correspondente furto?
c) Existe suficiente autonomia do conteúdo material do ilícito face aos factos praticados para
fundamentar o concurso efetivo?
O respeito integral pela proibição de dupla valoração – ne bis in idem material – exige uma
resposta positiva às três questões.
A resposta à questão a) é claramente negativa, pois os elementos do tipo social – especialmente
os da reiteração e teleologia comportamental – apontam inequivocamente para a instrumentalidade
necessária entre a subtração dos cheques e o subsequente uso ilícito dos mesmos. Mais, a subtração dos
cheques – em si – não constitui dano relevante de direitos patrimoniais (face à irrelevância económica do
custo dos cheques) apenas ganhado sentido social (finalidade do comportamento e danosidade social)
quando associada à utilização fraudulenta dos mesmos.
A resposta à questão b) é claramente negativa. Não é impossível condenar (e determinar a medida
da pena) de um agente que seja “encontrado” na posse de cheques falsificados, dolosamente
pretendendo utilizá-los, já que pode suceder que não se prove a forma de aquisição dos respetivos
cheques. Contudo, tendo sido provado que a forma de aquisição foi o furto, o juiz não consegue “apagar”
do juízo global de censurabilidade este conhecimento, sendo ilusório supor que o furto não seria – efetiva
ou inconscientemente – valorado de modo prejudicial na determinação da medida da pena, quer da
tentativa de burla, quer da falsificação.
A resposta à questão c) é distinta. De uma estrita perspetiva formal do ilícito – bem jurídico
tutelado – os crimes de burla e de falsificação, apesar de tutelarem também (ou indiretamente, no caso
da falsificação) direitos patrimoniais, acrescentam a tutela da confiança no tráfego jurídico que se
encontra ausente no crime de furto. Mais, mesmo numa ótica de ilícito material, pode argumentar-se que
a falsificação e a tentativa de desconto do cheque colocam ainda em causa – efetivamente – a
credibilidade conferida aos cheques e a sustentabilidade das operações bancárias, valores autónomos
face aos que são afetados pelo furto de esticão. Por outro lado, este caso – globalmente – não se reduz a

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um caso de furto e uso do cheque, foi praticado um furto que corresponde ao tipo social do furto de
esticão e que implicou a perda patrimonial de outros bens, sendo a perda e uso dos cheques apenas uma
das suas componentes.
O argumento de que a utilização dos cheques seria apenas um aproveitamento inevitável do furto
(globalmente considerado) é fraco, pois nem todo o uso dado às coisas furtadas irá ser integrado no tipo
social e sujeito à consunção (o homicídio praticado com a arma furtada, por exemplo): o critério é a
flexibilidade máxima do tipo social (com a correspondente compreensibilidade jurídica, decorrente da
ponderação de critérios de ilicitude material) e não a mera teleologia comportamental (isoladamente
considerada). Se a finalidade do furto de uma arma é, comummente, a sua utilização na prática de outros
crimes (por exemplo, o homicídio), estando verificados os critérios da reiteração e teleologia
comportamentais (tipo social em sentido estrito), ou mesmo da identidade narrativa (em alguns casos),
para que haja um só crime é ainda necessária a compreensibilidade jurídica (identidade do ilícito típico
ou compreensibilidade dos diversos sentidos de ilicitude num tipo de crime), o que não se verifica em tais
casos.
Como solução possível poderia autonomizar-se o furto/falsificação/uso dos cheques – em si, um
tipo social autónomo – face ao furto dos restantes bens, que corresponde a um tradicional furto de
esticão. Teríamos assim dois crimes, dois factos autónomos, que poderiam ser autonomamente
valorados, fundamentando cada uma a sua pena. O furto de esticão seria punido na moldura legal do
furto qualificado, sem qualquer referência ou ponderação dos cheques. O furto/falsificação/uso dos
cheques seriam ponderados noutro(s) tipo(s) legal(ais), sem ponderação das circunstâncias do furto. Esta
solução não é a ideal, por duas razões: porque se entende – com razão – que o furto se mantém um só
crime independentemente do número de objetos furtados (uma carteira pode ter um telemóvel ou 30
telemóveis, é sempre praticado um só furto); e porque dificilmente o juiz respeitaria a autonomização
destes factos na determinação da medida da pena.
Outra solução possível seria escolher o tipo penal mais gravosos e punir todas as condutas –
referindo expressamente os vários crimes em concurso aparente – numa só moldura legal. De acordo com
esta solução – preferível – o agente seria condenado pelos crimes de furto qualificado (art.204.º, n.º 1) -
tentativa de burla (arts. 217.º e 23.º) e falsificação de documentos (art. 256.º, n.º 3). As molduras penais
em concreto, para cada um destes crimes, são as seguintes:
- Furto qualificado (art.204.º, n.º 1): 1 mês a 5 anos de prisão ou de 10 a 600 dias de multa (com
a atenuação do regime especial para jovens);
- Tentativa de burla (arts. 217.º e 23.º): 1 mês a 1 ano de quatro meses de prisão ou 10 a 160 dias
de multa (com a atenuação devida pela mera forma tentada e ainda a do regime especial para jovens1);
- Falsificação de documentos (art. 256.º, n.º 3): 1 mês a 5 anos de prisão ou de 10 a 600 dias de
multa (com a atenuação do regime especial para jovens).

1
O art. 72.º, n.º 3, do CP, apenas veda a dupla valoração da mesma circunstância atenuante e não uma proibição
absoluta de dupla atenuação especial. Sobre o mesmo facto naturalístico, podem recair diversas atenuações
especiais, desde que se ponderem distintas circunstâncias sob distintas valorações normativas. Nada obsta a que,
sobre o mesmo facto jurídico, incidam duas atenuações especiais, desde que com fundamentos normativo-sociais
distintos. As atenuações da omissão (art. 10.º, n.º 3), da cumplicidade (art. 27.º, n.º 2) e da tentativa (art. 23.º, n.º
2) são cumuláveis entre si, com a atenuação do regime especial para jovens e com atenuações em função da culpa
(art. 72.º). O critério é – tal como na cumulação de agravações ou concurso de crimes – o da diversidade funcional.
As atenuações em função do ilícito típico são cumuláveis entre si desde que respeitem a aspetos distintos da ilicitude
(desvalor da ação, modos de comparticipação e desvalor do resultado) e cumuláveis com atenuações em função da
culpa ou com outras decorrentes de valorações de política-criminal em função de critérios de prevenção especial,
como ocorre com a atenuação do regime especial para jovens.

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Sendo iguais as molduras legais do furto e da falsificação, deveria escolher-se a que melhor
expressa a ilicitude material do facto, sendo de preferir a moldura do furto qualificado. Na determinação
da medida da pena, quando se selecionam os factos relevantes para medir o grau de ilicitude e o grau de
culpa do agente, devem ser incluídos todos os factos relevantes: circunstâncias do furto, falsificação dos
cheques, tentativa de levantamento dos cheques. Estas circunstâncias devem também ser globalmente
ponderadas da escolha da pena. Nem por isso se alteraria a opção feita atrás.

Questão 2: A importância do comportamento posterior do agente e da ressocialização


espontaneamente feita
Determine a moldura penal do facto(s) concreto(s), referindo os critérios fundamentais para a
determinação da medida da pena, admitindo que o arguido era julgado em 2019, considerando a opção
A).

A filosofia do CP1982 – acentuada de modo substancial nas suas várias reformas – aponta para o
caráter subsidiários de último recurso da pena de prisão, com forte aposta nas penas de substituição. Um
os pontos centrais é a rejeição da aplicação de penas curtas de prisão efetiva (até três anos), tendência
que ficou claríssima na reforma de 2007, com a introdução de uma pena principal de inibição de funções
(art. 43.º, n.º 3) e a preferência pela execução coerciva da multa (em detrimento da prisão coerciva), ou
a possibilidade de substituição da multa por trabalho a favor da comunidade.
Por outro lado, a tensão entre a função retributiva (ou, em alternativa preventivo-geral) da pena,
assente na valoração do facto e na consideração global do comportamento do agente no momento da
pratica do facto, e a função ressocializadora da pena (em si, também uma imposição constitucional, art.
18.º, n.º 2 da CRP), que obriga à consideração do agente no momento da decisão, implica que, garantidos
os mínimos exigidos pela censurabilidade do crime, seja a ressocialização da ditar a escolha concreta da
pena preferindo-se sempre a pena mais favorável à reintegração do agente na sociedade. Esta escolha é
ainda mais relevante quando, por força da morosidade habitual do sistema penal, o agente acabou por
realizar espontaneamente, a ressocialização que poderia decorrer da aplicação da pena. Sempre que,
entre a data da prática do facto e o momento da condenação, o agente tenha procurado realizar a
reparação do facto ou tenha procurado corrigir as circunstâncias ou condicionalismos que estiveram na
base da prática do facto, mantendo uma conduta conforme ao Direito [alíneas c) e d) do n.º 2 do art. 72.º
que, aliás, fundamentam atenuações especiais], caso a pena concreta não vá além dos 5 anos de prisão,
o juiz deverá preferir uma pena substitutiva. A vinculação constitucional da pena á ressocialização do
agente (também, uma imposição legal nos termos do n.º 1 do art. 40.º do CP) implica que não possam ser
aplicadas penas manifestamente contrárias à ressocialização do agente, sempre que esta esteja garantida
pela aplicação da pena alternativa, e, acima de tudo, quando a ressocialização esteja já em curso, podendo
a aplicação da pena de prisão revelar-se contraproducente.
Neste caso, retomando os passos sumários da determinação da medida da pena, a moldura penal
teria que ser encontrada no art. 204.º, n.º 1, que prevê uma pena de prisão até 5 anos ou de multa até
600 dias. Uma vez que não são fixados os limites mínimos, é necessário recorrer ao disposto nos arts. 41.º
(pena de prisão) e 47.º (pena de multa) do CP. A moldura penal é de 1 mês a 5 anos de prisão ou de 10 a
600 dias de multa. Visto que se trata de jovem de 18 anos, é necessário ponderar a aplicação do regime
Especial para Jovens Delinquentes (REJD), DL n.º 401/82, de 23 de setembro. Nos termos do art. 4.º, o juiz
deverá atenuar a pena sempre que tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens
para a reinserção social do jovem condenado. Este regime obriga o juiz a fazer uma ponderação de
prevenção especial positiva já neste momento inicial, a qual deverá obedecer aos seguintes critérios: deve
ser aplicada a atenuação sempre que se trata de arguido primário (salvo circunstâncias excecionalmente

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graves); mesmo perante arguidos não primários, deverá aplicar-se a atenuação sempre que se trata de
factos de gravidade baixa/média praticados num curto espaço de tempo ou quando se trate de factos
distintos (não permitam um verdadeiro juízo de reincidência). Aplicando, ao caso, esta atenuação
especial, a moldura concreta do facto seria de 1 mês a 3 anos e 4 meses; de 10 a 400 dias de multa. Mas,
como se verifica a alínea d) do n.º 2 do art. 72.º do CP, era ainda necessário aplicar esta atenuação especial
em função do comportamento posterior do agente (prevenção especial), nos termos do art. 73.º, pelo
que a moldura concreta do facto seria de 1 mês a 2 anos e 2 meses ou de 10 a 267 dias de multa.
Como já se referiu em cima, seria preferível fixar a pena concreta em prisão, e não em multa.
Refazendo os passos da questão 1, à luz da nova moldura concreta do facto:
- Temos uma gravidade média/baixa da ilicitude (esta avaliação é feita dentro da moldura legal concreta
do facto: forma de execução é ligeira, não há indícios de premeditação ou persistência, embora haja dolo
direto, o valor é elevado, mas situa-se no mínimo do conceito de “valor elevado”, a vítima não ficou em
situação económica difícil, embora tenha perdido um anel valioso, quiçá, até com valor estimativo); de
média/baixa culpa (o agente tem percurso de desintegração familiar/exclusão social), pelo que o limite
máximo da culpa não poderia ir além de 1 ano e meio de prisão.
- Tendo em contra os critérios referidos em cima, e, neste caso, as fracas necessidades de prevenção
especial a medida concreta da pena não poderia ir além de 1 ano de prisão (qualquer pena fixada entre
os 6 meses e o 1 ano seria adequada).
- Uma vez que o agente já se encontra ressocializado, a pena não precisa de reforçar este caminho,
podendo apenas revelar-se compatível com o caminho espontaneamente seguido pelo agente. Caso a
pena fosse fixada até 6 meses de prisão, poderia equacionar-se a dispensa de pena. Caso fosse fixada em
número superior, a pena adequada seria a de trabalho a favor da comunidade.

Questão 3: determinação da pena única e proibição da dupla valoração


Admitindo que foram fixadas as seguintes penas parcelares – furto qualificado: 3 anos de pena de
prisão suspensa na execução; tentativa de burla – 1 ano de prisão, suspensa na execução; e falsificação
de documentos: 2 anos de pena de prisão suspensa na execução – como determina a pena única?

No caso de concurso de crimes – sendo todos julgados no mesmo ou em diversos julgamentos –


é sempre fixada uma pena única respeitando as regras dos arts. 77.º e 78.º do CP. A pena única tem como
limite máximo a soma das penas parcelares e como limite mínimo a pena mais elevada das penas
parcelares, desde que seja respeitado o máximo de 25 anos de prisão e de 900 dias de multa (art. 77.º,
n.º 2). Na pena única – dentro desta moldura concreta da pena (e não do facto, porque não existe um só
facto) são ponderados, em conjuntos, os factos (todos os factos) e a personalidade do agente
(necessidades de prevenção especial).
É porque a pena única implica o respeito por estas regras que a sujeição ao regime do concurso
efetivo de factos com sobreposição do ilícito (neste caso, o furto e o furto dos cheques, o furto e a
falsificação, a falsificação e a burla) que se gera um risco insustentável de dupla valoração proibida, o qual
convoca o princípio do ne bis in idem como impositor da preferência pelo regime do concurso aparente.
Se o nosso agente fosse condenado por todos estes crimes – furto, tentativa de burla e falsificação – em
concurso efetivo, sucederia o seguinte: o facto furto seria ponderado nas penas parcelares do furto, da
falsificação e da tentativa de burla; o facto falsificação seria ponderado nas penas parcelares da
falsificação e da tentativa de burla; o facto burla seria ponderado nas penas parcelares da falsificação e
da tentativa de burla. Como já se explicou, a forma de aquisição dos cheques não poderia ser
razoavelmente ignorada pelo juiz na fixação das penas parcelares dos crimes de falsificação e de burla.

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No âmbito da burla e da falsificação, é o próprio legislador que torna inevitável esta dupla valoração, ao
incluir, no crime de burla, a referência à “criação de erro ou engano, astuciosamente” e, no crime de
falsificação, a referência à “intenção de causar prejuízo”. Assim, o que é, essencialmente, o mesmo
conjunto de factos, iria ser determinante para a fixação das 3 penas parcelares – determinando os limites
mínimo e máximo da moldura da pena única (provocando um aumento do limite máximo em função da
dupla valoração – o que é substancialmente distinto do que sucede na determinação da pena no crime
singular) e iria ainda ser determinante na fixação da medida concreta da pena. Haveria, assim, uma dupla
valoração do grau de ilicitude e da medida da culpa, podendo ainda ocorrer uma dupla valoração das
necessidades de prevenção especial.

Neste caso, a moldura concreta da pena única seria de 3 anos de prisão a 6 anos de prisão. Assim
se revela o problema dos “falsos” concursos efetivos e da dupla valoração proibida. Se a pena de qualquer
um dos crimes em falso concurso efetivo for fixada com valoração de factos subjacentes a qualquer outro
dos crimes em concurso, esta pena estará a ser “inflacionada” através da dupla valoração proibida do
mesmo facto. Tal pena “inflacionada” irá, depois, servir de pena mínima da moldura concreta da pena
única, podendo assim implicar uma dupla punição pelo mesmo facto, contrária ao ne bis in idem e
inconstitucional á luz do n.º 5 do art. 29.º da CRP. Uma das formas que alguma jurisprudência utiliza para
neutralizar este efeito de “inflação” injusta das penas parcelares reside na fixação da pena única pelo seu
limite mínimo (ou próximo). Assim, num caso como este, o arguido seria punido de modo muito próximo
ao da pena mínima da pena única, em 3 anos e 6 meses de prisão, por exemplo. Embora esta estratégia
possa reduzir o risco de dupla punição em alguns casos, não se revela adequada a neutralizar os efeitos
perniciosos dos “falsos” concursos efetivos. Num caso como este, veja-se, a pena concreta seria sempre
superior aos 3 anos de prisão, o que afastaria algumas penas alternativas e mais facilmente conduziria à
aplicação de uma pena de prisão efetiva.
Uma vez fixada a moldura concreta da pena única - de 3 anos de prisão a 6 anos de prisão –
seguem-se, de novo, os passos indicados na questão 1, no que respeita à determinação concreta da
medida da pena e à escolha da pena. A única diferença poderá ser a dispensa de fixação do limite máximo
da culpa nos termos do n.º 2 do art. 40.º, pois, uma vez que as penas concretas parcelares já se consideram
compatíveis com o limite máximo da culpa por cada um dos factos, não é necessária nova avaliação deste
fator. Contudo, precisamente tendo em conta a proliferação dos “falsos” concursos efetivos, é mais
cauteloso que se procure fixar um limite máximo da culpa global do agente (num juízo amplo da
culpabilidade que o agente revelou face à prática reiterada ou sucessiva dos factos em concurso), como
garantia contra penas excessivas face à culpa. De outro modo, aliás, nos casos de concurso entre muitos
crimes, o único limite da pena única seria o do cúmulo jurídico (25 anos), o que se revelaria
manifestamente desproporcional face à culpa do agente quando, pelo menos, se tratasse de pequena
criminalidade (vários pequenos furtos) ou criminalidade negligente (especialmente, nos casos de
comportamento negligente único com pluralidade de resultados).

Questão 4: reincidência / DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA- REINCIDÊNCIA:


Admitindo que a data da prática dos factos referidos em B) ocorreu após o trânsito em julgado do
crime de furto qualificado (julgamento em processo sumário), como determinaria as penas parcelares do
crime de furto simples, roubo e tráfico de estupefacientes, atendendo ao fator reincidência?

Bastante duvidoso, em face da proibição de dupla valoração, parece o esquema de determinação


da medida da pena da reincidência proposto por FIGUEIREDO DIAS, que radica na ideia de que a reincidência
traduz sempre uma culpa agravada. De acordo com o autor, o juiz deveria determinar, em primeiro lugar,

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a medida da pena concreta sem a reincidência; num segundo momento, deveria fixar a medida da pena
devida dentro da moldura legal da reincidência, que é agora mais estreita, por força da agravação do
limite mínimo, constante do n.º 1 do art. 76.º do CP, pelo que será sempre uma medida superior à
anteriormente fixada; e, por fim, num terceiro momento, o juiz deverá comparar a medida da pena, com
e sem reincidência, pois a agravação não poderá ultrapassar a medida da pena mais grave de alguma das
condenações anteriores, limite resultante da mesma norma.

Crime de roubo (210.º)


Modelo conforme ao 29.º, n.º 5 Modelo de Figueiredo Dias
Moldura legal – de 1 a 8 anos Moldura legal – de 1 a 8 anos
Moldura da culpa: 1 ano a 5 anos Moldura da culpa: 1 ano a 5 anos
Medida concreta: 3 anos Medida concreta: 3 anos
Substituição: suspensão Substituição: suspensão
Moldura legal – de 1 a 8 anos Moldura legal – de 1 a 8 anos
Moldura da culpa: 1 ano a 5 anos Moldura da culpa com reincidência: 1 ano e
Moldura da reincidência: 1 ano e 4 meses a 4 meses a 5 anos 6 meses (assume-se que a
5 anos culpa do reincidente é necessariamente mais
gravosa, e mantém-se a obrigação de elevar
o limite mínimo)
Medida concreta: 3 anos ou mais, consoante Medida concreta: 3 anos e 6 meses (pelo
as concretas necessidades de prevenção menos, sendo ainda ponderadas as
necessidades de prevenção)
Substituição: ? Substituição: ?

A mesma tarefa é feita para o crime de furto simples e para o crime de tráfico de estupefacientes
(pequena gravidade). Uma vez que, independentemente do concurso de crimes, o juiz tem, nos termos
do art. 77.º, n.º 2, obrigatoriamente de fixar as penas parcelares – e tem que as fixar respeitando
integralmente as regras de terminação da medida da pena – caso se entenda que a reincidência tem como
função a alteração dos limites da pena do facto concreto, esta deverá ser ponderada em cada uma das
penas parcelares.
Assim:

Furto simples (203.º)


Modelo conforme ao 29.º, n.º 5 Modelo de Figueiredo Dias
Moldura legal – até 3 anos Moldura legal – até 3 anos
Moldura da culpa: 1 mês a 1 ano Moldura da culpa: 1 mês a 1 ano
Medida concreta: 6 meses Medida concreta: 6 meses
Substituição: suspensão Substituição: suspensão
Moldura legal – até 3 anos Moldura legal – até 3 anos
Moldura da culpa: 1 mês a 1 ano Moldura da culpa com reincidência1,5
Moldura da reincidência: 1,5 meses a 1 ano meses a 1 ano e 6 meses (assume-se que a
culpa do reincidente é necessariamente mais

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gravosa, e mantém-se a obrigação de elevar


o limite mínimo)
Medida concreta: 6 meses ou mais, Medida concreta: 8 meses (pelo menos,
consoante as concretas necessidades de sendo ainda ponderadas as necessidades de
prevenção prevenção)
Substituição: ? Substituição: ?

Tráfico (art. 25.º do DL 15/93)


Modelo conforme ao 29.º, n.º 5 Modelo de Figueiredo Dias
Moldura legal – de 1 a 8 anos Moldura legal – de 1 a 8 anos
Moldura da culpa: 1 a 3 anos Moldura da culpa: 1 a 3 anos
Medida concreta: 1 ano e 6 meses Medida concreta: 1 ano e 6 meses
Substituição: suspensão Substituição: suspensão
Moldura legal – de 1 a 8 anos Moldura legal – de 1 a 8 anos
Moldura da culpa: 1 e 4 meses a 3 anos Moldura da culpa com reincidência: 1 ano e
Moldura da reincidência: 1 ano e 4 meses a 4 meses a 4 anos (assume-se que a culpa do
3 anos reincidente é necessariamente mais gravosa,
e mantém-se a obrigação de elevar o limite
mínimo)
Medida concreta: 1 ano e 4 meses ou mais, Medida concreta: 2 anos (pelo menos, sendo
consoante as concretas necessidades de ainda ponderadas as necessidades de
prevenção prevenção)
Substituição: suspensão? Substituição: ?

Admitindo que o aumento é de 6 meses (roubo), de 4 meses (furto) e de 6 meses (tráfico), a


reincidência (o mesmo crime anterior, o mesmo indício de especiais necessidades de prevenção especial)
já importou uma ponderação tripla num total de 1 ano e 4 meses de aumento das penas. Este efeito pode
vir a ser atenuado na determinação da pena única, ou não. Ou não, quer porque a pena mínima da
moldura legal da pena única já é superior – em vez de 1 ano (furto simples) seria de 1 ano e 4 meses, e
porque a pena máxima é também superior em 6 meses; quer porque, na pena única, sendo valoradas
globalmente a personalidade do arguido e as necessidades de prevenção especial, terá quer ser
novamente valorada a reincidência. Ou seja, foi a reincidência que determinou os limites mínimos e
máximos da moldura penal do facto concreto em sede de pena única e é a reincidência que vai também
determinar a medida concreta da pena única, numa dupla valoração progressiva (e não progressivamente
redutora) proibida.
Este esquema, seguindo a conceção de FIGUEIREDO DIAS, coloca logo um problema: como valorar o
limite máximo da culpa do agente sem ponderar a reincidência, se a reincidência – como o autor entende
– constitui uma circunstância agravante da culpa? Mais, a garantia de que a pena não excede a medida
da culpa ficaria assim debilitada, já que o limite máximo da pena concreta seria ponderado, a partir do
segundo momento, como contendo já a ponderação da reincidência. E ainda mais importante, a
reincidência seria determinante para o limite máximo da culpa do agente, ditaria o limite mínimo da
moldura penal do facto e ainda uma agravação da medida concreta da pena, face a uma ponderação do
facto sem a reincidência, o que torna praticamente impossível evitar uma dupla valoração proibida.

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Assim, ao contrário do que fazem FIGUEIREDO DIAS2 e PINTO DE ALBUQUERQUE3, entende-se que o
termo “agravação”, constante desta norma, diz respeito à elevação do limite mínimo e não a uma suposta
agravação da medida concreta da pena, que pode nem sequer ocorrer. Pensa-se que o pressuposto de
que irá ocorrer sempre uma agravação da pena, do qual partem os autores citados, assenta na ideia de
que a reincidência constitui uma agravante da culpa do agente pois assim sempre haveria uma maior
amplitude máxima da pena. E se, como FIGUEIREDO DIAS, se entender que a reincidência incide também
nas necessidades de prevenção especial, então é praticamente impossível evitar uma agravação da
medida da pena4. O juiz pode perfeitamente concluir que a medida concreta da pena que resultaria da
ponderação dos vários elementos de prevenção especial e culpa, sem contar com a reincidência, não
deverá alterar-se em função desta. Pode a reincidência ser apenas uma comprovação, em sede de
prevenção especial, da imagem global de prevenção resultante do facto e do agente. Ou pode ainda a
reincidência indicar não um aumento, mas uma diminuição da culpabilidade, por ser reflexo da fraca
capacidade de o agente se motivar pela norma ou da relevância das influências exógenas sobre o agente.
Embora demonstre também, e sem contradição, uma elevada necessidade de prevenção especial. Num
tal caso, o papel da reincidência na medida poderá ser tão-só, no limite, o de aconselhar a fixação da pena
no limite máximo conferido pela medida da culpa. Entende-se, aliás, que o princípio do ne bis in idem
exige que a reincidência, mesmo quando seja indicativa de maiores necessidades de prevenção especial,
não determine obrigatoriamente uma agravação da medida da pena. E, especialmente, que não obrigue
a tal, quando esta indicação seja meramente confirmativa dos restantes elementos disponíveis ao
julgador. Portanto, em respeito ao ne bis in idem e à proibição da dupla valoração, a reincidência é
valorada apenas em sede de prevenção especial, tendo como efeito, por força da lei e verificados os seus
pressupostos, um aumento do limite mínimo da pena “aplicável” ao facto – e não um aumento obrigatório
da medida concreta da pena – e, eventualmente, um aumento da medida concreta da pena quando,
conjugada a valoração da reincidência com os restantes elementos expressivos da prevenção especial, tal
aumento seja necessário à intimidação do agente e ainda compatível com a ressocialização deste.

Questão 5: determinação da pena única e conhecimento superveniente


Admita, considerando o cenário B), que em 2019, já depois do transito em julgado da primeira
condenação, A pratica um outro crime de furto simples. Sabendo que foram fixadas as seguintes penas
única e parcelares – julgamento de 2019, 3 anos de prisão suspensa na execução; julgamento de 2020:
pena do furto de prisão de 6 meses; pena do crime de tráfico de menor gravidade, pena de prisão de 1
ano; pena do roubo, 3 anos de prisão; pena única de 2020, pena de prisão de 2 de prisão efetiva – como
determina a pena do crime de furto, que está a ser julgado em 2021?

A solução deste caso não está prevista, nem se pode aplicar a jurisprudência do STJ (2014 –
1031/10). Todos os crimes (dos primeiros dois processos) foram praticados entre 2016 e 2017, ou seja
antes do trânsito em julgado da condenação por “qualquer um deles”. Assim, nos termos do art. 78.º -
conhecimento superveniente do concurso – os crimes julgados no processo de 2020 encontram-se em
concurso com o crime julgado em 2019, devendo efetuar-se o cúmulo superveniente. O crime praticado
em 2019 não se encontra em concurso com o crime julgado em 2019 (foi praticado após o trânsito em
julgado). Contudo, porque os crimes praticados em 2017 só foram julgados em 2020, há tecnicamente

2
As consequências jurídicas do crime, cit., p. 273.
3
Comentário do Código Penal…, cit., p. 282.
4
As consequências jurídicas do crime, cit., p. 272.

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Medida da Pena e Direito de Execução da Pena
Determinação da medida da pena: paroxismo da Constituição Penal.

concurso entre estes e o crime praticado em 2019. No julgamento de 2020 deverá ser feito o cúmulo
jurídico com o crime de 2016 (julgado em 2019). Deverá ser feito outro cúmulo, com todos os crimes, em
2012? Se tal for feito, estamos a regressar ao cúmulo por arrastamento (corrente jurisprudência contrária
aos arts. 77.º e 78.º do CP, entretanto já abandonada). Se não foi feito estamos a violar o disposto no art.
78.º quanto ao crime de 2019.

A jurisprudência do STJ (2014 – 1031/10) poderia aplicar-se caso o arguido tivesse praticado
outros crimes em 2019, 2020 e 2021, antes e depois do trânsito em julgado do julgamento de 2020. Mas
se o último crime é este de 2019 e não existem mais factos, poderá ser o arguido condenado numa pena
sucessiva só para este crime? Nestes casos, é mesmo necessário recorrer ao cúmulo por arrastamento,
dando preferência à teleologia do CP e à preferência pela regra do cúmulo jurídico por ser mais favorável
à ressocialização do arguido. Até porque, não se tendo ainda iniciado o cumprimento de qualquer pena
de prisão, a condenação em pena de prisão deve privilegiar uma pena única, de cumprimento conjunto,
no âmbito da qual se promova globalmente a ressocialização do recluso.

Questão 6: A perda alargada de bens, o conceito material de pena e o ne bis in idem


Uma vez que os bens nunca chegaram a ser recuperados (pensando no cenário A), e sabendo que
o arguido foi condenado ao pagamento de uma indemnização no valor de 15.000 euros à ofendida lesada,
poderia o tribunal fixar um valor de 14.000, nos termos do art. 111.º do CP, para ser perdido a favor do
Estado?

Nos termos do n.º 2 do art. 111.º do CP, as vantagens (produto do crime) são declaradas perdidas
a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido. Nos termos do n.º 4 do art. 111.º, caso estes
bens não possa ser perdido em espécie (nunca forem recuperados), a perda pode ser substituída pelo
respeito valor pecuniário. O problema que este caso suscita – numa perspetiva simplista – é o da
compatibilização entre a perda alargada de bens (perda dos proveitos do crime) fixados numa quantia
monetária assente em ficções de lucro com a prática do facto, quando a perda seja cumulada com a pena
principal e não assente no efetivo proveito (demonstrado) do crime. Neste caso, o arguido é também
condenado ao pagamento de uma indemnização à vítima (ofendida), sendo que pelo menos parte desta
indemnização é fixada tendo em vista os valores e objetos furtados. Assim, a indemnização já garante a
perda do proveito do crime para o arguido; embora se trate de um mecanismo civil de uma indemnização,
a própria indemnização já prossegue finalidades jurídico-penais de reparação do facto e de prevenção
geral e especial, já que a subtração do proveito do facto responde à máxima de “o crime não compensa”.
O arguido irá, também, sofrer uma pena pela prática do facto, assim se obtendo a satisfação das
finalidades preventivas da pena.
Caso se viesse também a aplicar o disposto no art. 111.º, ficcionando um valor de proveito do
crime que não corresponde a um lucro efetivo e que já foi contabilizado na fixação da indemnização,
através da “perda de bens” estar-se-ia, efetivamente, a aplicar uma nova pena ao arguido, pois tal
aplicação teria finalidades essencialmente punitivas (prevenção geral e especial). A cumulação de uma
pena principal com tal forma de fixar a perda de bens implicaria a violação do ne bis in idem.

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