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A pena de prisão perpétua encontra-se abolida do sistema penal português desde … Não

obstante, um crescente movimento político tem alimentado o tema na discussão pública e


suscitado o debate se fará sentido, dentro de uma profunda reforma penal e constitucional,
trazer de volta esta anciã restrição máxima ao direito constitucional à liberdade.

Se o tema poderá suscitar ao leitor, suportado nos valores fundamentais plasmados na


Constituição da República Portuguesa, uma ideia de clara inutilidade no estudo, porquanto a
experiência social, jurisprudencial e doutrinária há muito julgou tal punição desproporcional,
cabe-nos elaborar: sendo certo existirem vetores valorativos e experiência histórica e social
que permitam alcançar a factualidade do desenquadramento de tal pena nos princípios da Lei
Fundamental portuguesa, bem como, possivelmente, enquanto resposta aos problemas e fins
que a pena logra alcançar, a pronta resposta dogmaticamente fundada em sentido negativo dá
aso, no nosso entender, ao crescente discurso em favor da prisão perpétua deixado sem
contra-argumentação ou, até mesmo, base de estudo científica que melhor a possa enquadrar
no nosso ordenamento jurídico.

Nestes termos, cumpre o presente estudo responder à seguinte questão: existe fundamento à
pena de prisão perpétua no nosso ordenamento jurídico, alcançando fins que as penas
atualmente previstas não cumprem e podendo, eventualmente, se enquadrar nos atuais
valores consagrados na nossa Constituição?

A fim de dar resposta à problemática apresentada supra, cumpre definir como princípios
fundamentais à breve investigação que nos segue, primeiramente, a máxima objetividade que
o tema permite a qualquer jurista – neste sentido, subjaz no nosso discurso a ausência de
preconceções a favor e contra esta conceção, sendo mister separá-la dos movimentos e figuras
políticas a que naturalmente se encontra associada, logrando meramente expor, face a todos
os pontos que merecem a nossa análise, diferentes posições e seu enquadramento, tendo em
vista alcançar uma resposta no seguimento lógico das conclusões que se possam obter –
seguidamente, procuraremos enquadrar o nosso estudo com a praxe de sistemas jurídicos
estrangeiros da família romano-germânica, que não só não se afiguram alienígenas face à lei
portuguesa, como muitas vezes servem de base e estudo ao legislador português.

Será forçoso aceitar que, após a nossa tentativa de despersonalização face ao tema, caberá
uma análise crítica da investigação e conclusões obtidas, porquanto a imparcialidade
expositiva que será nosso objetivo alcançar não poderá reconduzir a um mero resumo jus-
ideológico, desprovido de pensamento necessário a qualquer estudo.

Primeira etapa: o ordenamento jurídico português

Comecemos a nossa abordagem explicitando uma importante premissa que rege todo o
estudo subsequente: o Estado português afigura-se um Estado de Direito Democrático e Social
e, em tais termos, por um lado, se os seus valores e princípios fundamentais, consagrados na
Constituição da República Portuguesa, positivam a vontade da ampla maioria da sociedade,
não poderão ser mutáveis através de um movimento radical contrário àquele entendimento
sedimentado na experiência histórica e cultural da comunidade, carecendo sempre de uma
vontade coletiva que reflita a eminência de tal mudança; por outro, não se verificando tal
alteração da vontade coletiva, vigora e subsiste um princípio social subjacente a todo o
funcionamento do Estado, incluindo no fundamento e aplicação de penas pelas quais restringe
os direitos, liberdades e garantias dos indivíduos.
Resumidamente, cabe tomar como pressuposto necessário a fim de alcançar uma resposta à
pergunta que guia a nossa jornada que, a existir fundamento à pena de prisão perpétua no
ordenamento jurídico português, terá que se conciliar com os princípios fundamentais da
sociedade portuguesa e, por consequente, com as funções inerentes ao Estado Social.

Uma reforma não poderá cair numa revogação completa daquilo que caracteriza o nosso
ordenamento jurídico contemporâneo – pelo menos, sem uma vontade coletiva generalizada –
e um estudo, dentro dos moldes e âmbito daquele a que nos propomos, nunca alcançaria uma
resposta firme a uma pergunta que, na ausência daquela vontade coletiva, jamais fora
colocada.

Assim, é devido partir toda a abordagem do cerne do nosso sistema, expandindo a


problemática à medida que o enquadramento, respostas e fundamentos forem alcançados,
culminando numa apreciação crítica de todas as conclusões obtidas pelo nosso esforço
sistemático. No presente capítulo, focar-nos-emos na experiência histórica da pena de prisão
perpétua, sua eventual compatibilização com a Constituição da República Portuguesa e com os
fins que as penas logram alcançar no nosso ordenamento jurídico-penal.

A prisão perpétua e a Constituição: os valores fundamentais face à extensão da restrição à


liberdade

Se a lógica dita que não deve a solução antever o problema, impõe-se que a admissibilidade da
medida de prisão perpétua resulte primeiramente da sua compatibilidade com os valores
fundamentais plasmados na Constituição da República Portuguesa.

Da leitura da nossa Constituição, consideramos possuir estrito relevo com a problemática em


apreço os Artigos ns.º 1.º, 18.º, 27.º e 30.º, plasmando, respetivamente, os princípios
fundamentais da dignidade da pessoa humana, do qual deriva o princípio da culpa, princípio
da necessidade da pena, direito à liberdade e proibição de penas perpétuas ou
indeterminadas.

A dignidade da pessoa humana afigura-se como uma bitola fundamental à medida e fins das
penas. Enquanto valor inerente à condição humana pela sua simples personalidade, conclui
também a proibição das penas enquanto instrumentalização estadual. Como nos ensina
GOMES CANOTILHO1, esta noção realça a proibição de conceções transpessoalistas de Estado e
Nação – ilustrando o autor com a conhecida máxima da Ditadura Salazarista “tudo pelo Estado
nada contra o Estado”, culminando na rejeição do sacrifício dos direitos individuais para
prossecução dos fins do Estado. Importa ao nosso estudo aferir se é possível conceber a pena
de prisão perpétua enquanto medida que não instrumentalize o agente criminoso a fim de
seguir os fins de segurança do Estado2, através do afastamento da sociedade do agente
criminoso, conforme observaremos no tocante ao enquadramento dos fins das penas.

1
Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes, Constituição da República Portuguesa Anotada (1993), pág. 52.
2
O direito à segurança resulta do Art.º 27.º, n.º 1, da CRP. Cf. CANOTILHO, J. J. G., Constituição …, pág.
184. Este direito manifesta-se, numa vertente positiva, enquanto a proteção contra ameaças e violações
aos direitos individuais por outros sujeitos, com recurso aos poderes públicos.
A necessidade da pena consagra que as penas legalmente previstas 3, enquanto restrição aos
direitos, liberdades e garantias, devem-se limitar ao mínimo indispensável para salvaguardar
os bens jurídicos. O postulado contrapõe-se à dignidade da pessoa humana, cabendo não se
traduzir numa conceção supra-individualista, fundada nos fins do Estado. 4 Enuncia ainda
FERNANDA PALMA relevar o princípio a fim de legitimar a incriminação, especificamente
quanto à carência de proteção penal do bem jurídico, falta de alternativas à penalização, e
eficácia concreta da incriminação5. In casu, importa distinguir a necessidade da pena da
medida da pena, sendo crível que uma conduta seja punida, mas não necessariamente em
pena tão gravosa quanto a prisão perpétua.

O direito à liberdade será, sem dúvida, aquele que mais releva no âmbito do nosso estudo,
demonstrando-se restrito, na sua totalidade, pela pena de prisão perpétua. Em conjugação a
dignidade da pessoa humana, é possível deduzir, na nossa Constituição, o princípio da culpa6.

Afigurando-se um dos critérios de determinação da medida da pena no nosso sistema penal,


através dos Arts.º 40.º, n.º 2, 71.º e 72.º, do CP, ainda é entendido justificar igualmente a
própria pena, bem como se afigurando princípio da responsabilidade subjetiva 7 - neste último
se interligando com o direito à liberdade, na medida em que a presunção de livre-arbítrio
pressupõe, também, a responsabilidade dos atos seja imputada a quem os pratica. Importará
conjugar ambos os princípios com as noções já conhecidas da dignidade da pessoa humana e
a necessidade da pena, a fim de razoabilizar a restrição à liberdade individual, tendo como
pressuposto e limite a culpa e a sua medida8.

Por fim, dentre os princípios que consideramos ter estrita conexão com a problemática sob a
qual nos debruçamos, encontra-se a proibição de penas perpétuas ou indeterminadas que, a
priori, serviria de imediata resposta negativa a todo o estudo. Não sejamos incautos –
concluímos que a sociedade é aversa à pena de prisão perpétua lato sensu; mas tal não exclui
um sistema análogo àqueles positivados noutros países da família romano-germânica, sobre os
quais aprofundaremos na segunda etapa desta estudo, baseados numa premissa de um
período máximo, findo o qual é feita uma reavaliação ao agente e, dependendo do (in)sucesso
da sua reintegração social através da pena, poderá a mesma ser estendida por sucessivos
períodos de tempo determinados.

De facto, e conforme a anotação de GOMES CANOTILHO 9, este preceito proíbe as penas e


medidas de proteção restritivas da liberdade, enquanto medidas de caráter definitivo ou
indefinido. Não obstante, aquele regime sucintamente exposto no parágrafo anterior não é
estranho ao nosso ordenamento, seguindo idênticos moldes que se encontram
compatibilizados com o presente princípio fundamental, no que cerne às medidas de
segurança.

3
O princípio da legalidade, extrapolado tanto da letra do Art.º 18.º n.º 2, como mais diretamente do
29.º, n.º 1, ambos da CRP, é outro já conhecido importante pilar das penas no Direito Penal, não
obstante menos relevante ao nosso estudo em função da natureza da problemática.
4
Cf. PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal (2017), p. 92.
5
Cf. MAYER, M. E., Der Allgemeine Teil des Deutschen Strafrechts (1923), p. 23 (citado por PALMA, M. F.,
Direito Penal …, p. 92).
6
Cf. PALMA, M. F., Direito Penal …, p. 87.
7
Cf. Adições de Direito Espanhol de PUIG, S. MIR, e CONDE, F. MUÑOZ, ao Tratado de Derecho Penal de
Jescheck, I (1978), p. 36 (citado por PALMA, M. F., Direito Penal …, p. 87).
8
Cf. DIAS, J. F., Direito Penal …, p. 82.
9
Cf. CANOTILHO, J. J. G., Constituição …, p. 197.
Denote-se que, nesse regime aplicável ao agente que tenha praticado um facto ilícito típico e
for considerado inimputável, crime este punível com pena superior a 8 anos, e em que se
verifique um perigo de novos factos da mesma espécie de tal modo grave que desaconselhe
a libertação, o internamento aplicado poderá ser prorrogado por períodos sucessivos de 2
anos, sem nunca exceder o limite máximo da pena correspondente, tudo conforme o Art.º
92.º, CP. Concebendo-se a reforma do sistema penal no sentido de prever a pena de prisão
perpétua, enquanto um teto máximo da pena não definitivo (portanto, de duração
determinada), cumprido ao períodos sucessivos e de duração mais reduzida, entre os quais se
encontra sujeito a reavaliações quanto ao risco de reincidência, tal não se nos parece um
regime inconstitucional.

A prisão perpétua e os fins das penas

A adequação da medida da pena à luz das conceções finalistas das penas

Na génese doutrinária maioritária do pensamento contemporâneo, podemos distinguir os fins


das penas, ou seja, os objetivos finalísticos que a sua aplicação roga alcançar, em três
conceções ou pensamentos: o fim retributivo, o fim de prevenção geral, que se ramifica nas
orientações positiva e negativa, e o fim de prevenção especial, os quais merecem breve
exposição.

A pena como retribuição

A tese retributiva do Direito Penal afigura-se minoritária no nosso ordenamento jurídico. De


larga tradição histórica e filosófica-jurídica, era no passado distante entendida como uma
teoria absoluta, através do qual se justificava a pena pela compensação do mal do crime,
independentemente de qualquer fim pragmático 10.

Esta premissa, comummente ilustrada pelo seu epítome presente na conhecida Lei de Talião,
através do comando “olho por olho, dente por dente”, que perdurou e teve o seu auge na
Idade Média, impunha um mal na pessoa do criminoso e na sua honra como fim da pena.

Como nos explica FERNANDA PALMA 11, a retribuição era usualmente associada à presunção de
culpa ética no agir do agente enquanto pressuposto, o qual o Estado não tem legitimidade
para punir automaticamente – afinal, no modelo de Estado de Direito Democrático, não lhe
cabe a promoção de uma ética ou moral em si mesmas, conforme resulta inclusivamente do
princípio da necessidade da pena, plasmado no Art.º 18, n.º 2, da nossa Constituição, que
consagra que a pena só seja aplicada quando for necessária à preservação da sociedade.

Esta linha de pensamento parte das conceções apresentadas por KANT e HEGEL. Segundo o
primeiro pensador, o agente da prática de um crime, através da sua ação, expressa uma
negação do próprio Direito em geral – incluindo face a si mesmo. Adaptando as suas palavras,
“Aquele que rouba torna insegura a propriedade de todos os demais, portanto priva-se a si
mesmo da segurança de toda a possível propriedade” 12.

10
PALMA, M. F., Direito Penal …, p. 50.
11
Cf. PALMA, M. F., Direito Penal …, pp. 51 – 52.
Já na ótica de HEGEL, a pena materializa-se enquanto um conceito inerente ao crime; entenda-
se, um resultado necessário e objetivo em si mesmo, pois que a violação do Direito acaba por
manifestar o próprio Direito e, assim, ao negá-lo afirmá-lo-ia. 13 HEGEL separa a conceção de
pena de uma perspetiva moral, repercutindo-a a um plano racional e objetivo do Estado. 14

FERNANDA PALMA conclui o seu pensamento na medida em que, para a autora, a pena
enquanto retribuição se traduz numa necessidade lógica de reafirmação do Direito perante a
sua violação15, balanceando a pena na medida do princípio da culpa e do princípio da
necessidade da pena.

A presente conceção é criticada pela doutrina maioritária, em específico, no entendimento de


FIGUEIREDO DIAS16, que julga a teoria numa entidade independente de fins; mais
considerando inadequada à legitimação, fundamentação e ao sentido da intervenção penal
que, no entendimento do autor, devem os poderes do Estado restringir ao mínimo necessário
os direitos, liberdades e garantias individuais para assegurar os direitos da comunidade. Por
fim, aponta o autor como sentido máximo da tese o mal que faz sofrer ao agente da prática do
crime, afigurando-se contrária a qualquer intenção de socialização do delinquente e
restauração da paz jurídica.

A pena como prevenção geral

A pena como prevenção específica

A prisão perpétua e as presentes conceções

Cabe enquadrar a eventual compatibilidade da pena de prisão perpétua nas correntes


conceções de fins das penas. Naturalmente, somos conduzidos a crer prima facie que tal
medida somente se enquadraria naquela conceção: afinal, a eventualidade de manter o agente
criminoso privado da sua liberdade, para o resto da sua vida, mais seguramente se afirmará na
vertente retributiva que na conceção de prevenção geral, dificilmente se enquadrando na ideia
de prevenção especial.

Conforme pudemos concluir, uma conceção moderna da tese retributiva das penas não se
manifesta pela simples retribuição de um mal provocado pelo agente: tal linha condutora
legitimaria, em ultima ratio, a pena de morte, a aplicar a um homicida. Importaria aferir se,
através desta pena, é possível reafirmar o Direito, perturbado pelo agir criminoso do agente
penal, sempre basilada nos princípios fundamentais da culpa e da necessidade da pena. Em
tais termos, é válido admitir que, em circunstância tal que a culpa subjacente à conduta do
agente, bem como a sua gravidade inerente à luz do Direito, fosse de tal ordem manifesta, a

12
Cf. KANT, Immanuel, Metafísica dos Costumes (1764), trad. e notas de JOSÉ LAMEGO, 2004, pp. 209 –
211. (citado por PALMA, M. F., Direito Penal …, p. 52).
13
PALMA, M. F., Direito Penal, p. 52.
14
Cf. HEGEL, G. F. W., Princípios da Filosofia do Direito (1820), trad. de ORLANDO VITORINO, p. 209.
(citado por PALMA, M. F., Direito Penal …, p. 52).
15
PALMA, M. F., Direito Penal, p. 54.
16
Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal – Parte Geral Tomo I (2007), pp. 47 – 49.
pena de prisão perpétua se poderia apresentar adequada a fim de reafirmação do Direito face
à sua negação resultada pela prática do crime.

Não obstante, subscrevemos o pensamento de FIGUEIREDO DIAS 17, recusando uma conceção
retributiva dos fins da pena na medida em que, num Estado social, não poderá valer a simples
punição enquanto reafirmação sistémica, desprovida de qualquer intenção de ressocialização
do agente ou de restauração da paz jurídica. Sendo nosso objetivo aferir a viabilidade desta
medida no nosso ordenamento jurídico, será contraproducente responder à questão num
sentido que contraria os seus próprios valores fundamentais, devendo focar o nosso estudo
nas conceções de prevenção.

Partindo de uma perspetiva da pena enquanto medida preventiva geral, não é incrédulo
considerar a medida de prisão perpétua uma forma máxima da sua vertente negativa – afinal,
a total restrição ao direito fundamental de liberdade traduz seria quiçá das medidas com
caráter intimidatório mais demarcado. Tal vertente, em medida idêntica à conceção anciã da
tese retributiva, legitimaria a pena de prisão perpétua, bem como outras indubitavelmente
contrárias aos valores fundamentais da nossa sociedade, como o seriam a pena de morte,
enquanto violação ao direito fundamental à vida, ou o degredo, traduzindo-se na total
negação ao caráter ressocializador do Direito social pelo ato de expulsão do agente da própria
comunidade. Mais, atente-se na manifesta evidência da crítica que os autores apontam a esta
conceção: a aplicação de uma pena gravosa em medida tal que prive o agente, por completo,
do seu direito à liberdade, com o objetivo de intimidar contra a prática do crime, traduz-se
numa completa instrumentalização da pessoa do agente, devendo-se rejeitar tal conceção por
violação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Numa outra via, mais próxima da conceção manifesta no nosso ordenamento jurídico,
colocando a hipótese de uma eventual vertente positiva da medida em apreço, tal exercício de
incorporação aparenta-se mais forçoso. Sendo certo que, em crimes que manifestem
perversidade e movidos por tal grau de culpa que a medida da pena se justificasse à luz do
princípio da necessidade da pena, se poderia admitir a pena de prisão perpétua como “reforço
dos padrões de comportamento adequado às normas” 18, tal medida stricto sensu se
encontraria desprovida de qualquer finalidade integradora do agente na sociedade. Não
obstante, e conforme exploraremos de seguida, noutros ordenamentos jurídicos não é atípica
a conceção da medida de prisão perpétua como uma ultima ratio finda uma série de tentativas
de reinserção social do agente, ao longo de intervalos regulares no cumprimento da pena.

Em idêntico sentido, poderemos concluir em relação à pena de prisão perpétua enquanto


medida preventiva especial. Se muito à semelhança das conceções retributivas e de
prevenção geral na modalidade negativa, a medida da pena poder-se-ia enquadrar numa tese
neutralizadora, através da sua separação da sociedade, culminando na neutralização da sua
perigosidade social19.

Tal entendimento pecaria, à semelhança dessas outras teorias relativas aos fins das penas,
pela ausência de intenção ressocializadora do agente na sociedade, a conceção mais restritiva
da pena de prisão perpétua não poderia ser admitida na estirpe socializadora da prevenção
especial, porquanto não daria ao agente a oportunidade de se corrigir e se adequar às normas
sociais. Reitera-se, porém, que tal não exclui eventuais entendimentos da pena de prisão

17
Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal …, pp. 45 – 49.
18
Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal …, p. 51.
19
Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal …, p. 54.
perpétua enquanto cominação de múltiplas sucessivas tentativas falhadas de reinserção do
agente criminoso, conforme se procurará abordar pela experiência de outros ordenamentos
jurídicos, na segunda etapa da nossa abordagem.

Segunda etapa: experiência internacional na família romano-germânica

Tendo presente o panorama jurídico-político em Portugal historicamente contrário à pena de


prisão perpétua, a verdade é que a ampla maioria dos ordenamentos jurídicos da família
romano-germânica tem prevista, na sua lei penal, alguma forma de medida de prisão perpétua
– inclusive ordenamentos comummente referidos pela doutrina portuguesa como referências
de estudo e inspiração ao legislador nacional.

Experiência Espanhola

Desde 2015 que a lei penal de Espanha prevê o regime de prisão perpétua, por força da Ley
Orgánica 1/201520. O regime em vigor aplica a prisão perpétua apenas em determinados
crimes contra a vida, relevando para a sua aplicação a gravidade dos factos. Os casos
tipificados que admitem prisão perpétua estão plasmados no Art.º 140.º, do presente
Diploma, com a seguinte redação:

1. El asesinato será castigado con pena de prisión permanente revisable


cuando concurra alguna de las siguientes circunstancias:

1.ª Que la víctima sea menor de dieciséis años de edad, o se trate de


una persona especialmente vulnerable por razón de su edad, enfermedad o
discapacidad.

2.ª Que el hecho fuera subsiguiente a un delito contra la libertad sexual


que el autor hubiera cometido sobre la víctima.

3.ª Que el delito se hubiera cometido por quien perteneciere a un


grupo u organización criminal.

2. Al reo de asesinato que hubiera sido condenado por la muerte de más de dos
personas se le impondrá una pena de prisión permanente revisable. En este caso, será
de aplicación lo dispuesto en la letra b) del apartado 1 del artículo 78 bis y en la letra b)
del apartado 2 del mismo artículo.

A lei penal espanhola prevê ainda a punição mediante pena de prisão perpétua para quem
assassine o Monarca ou outro membro da Família Real das Astúrias, através do seu Art.º 485.º,
de um Chefe de Estado ou outra pessoa internacionalmente protegida por Tratado que se
encontre em território espanhol, por força do seu Art.º 605.º, e ao crime de genocídio, na
conceção plasmada no Art.º 607.º.

20
GOBIERNO DE ESPAÑA (2015), Ley Orgánica 1/2015, de 30 de marzo, por la que se modifica la Ley
Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre, del Código Penal, disponível em:
https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2015-3439 (consultado a 22/01/2022).
Denote-se, não obstante, que a lei penal espanhola sempre se refere à prisão perpétua como
revisable, no sentido de passível de revista. Efetivamente, as condições para a revista vêm
plasmadas nos seus Arts.º 78.º e 92.º, donde resulta, sucintamente, a possibilidade do Tribunal
rever a sentença e, eventualmente, atribuir a liberdade condicional ao condenado, em ultima
ratio conduzindo à suspensão da pena remanescente, findo o cumprimento de um período da
pena não superior a 30 anos (em tal caso, resultante de cúmulo de crimes, vide Art.º 78.º, n.º
2, al. b), do presente Diploma). Mais resulta da leitura da lei que, subjacente a este regime,
vigora um princípio de reinserção na sociedade de agentes criminosos, cuja perigosidade, na
letra do legislador, impõe tal medida.

Experiência Alemã

À semelhança do regime jurídico-penal espanhol, o StGB21 alemão tipifica a prisão perpétua


em casos que se afigurem de especial gravidade e perigosidade, regida em igual medida pela
possibilidade de liberdade condicional finda parte da pena. Na § 57a, (1), determina-se que,
verificando-se cumulativamente os pressupostos do condenado haver cumprido 15 anos da
pena, a medida da culpa não requerer a continuação da sentença, bem como se verificarem os
requisitos constantes da §57, (1), nomeadamente, a suspensão se justificar em vista da
segurança pública e o condenado assim consentir (ou, depreende-se, requerer), o Tribunal
suspende a aplicação da pena, aplicando-se um regime de liberdade condicional durante um
período de cinco anos. Por fim, caso o pedido de suspensão da pena não tenha provimento,
poderá o agente interpor novo período em prazo a determinar pelo Tribunal, não superior a
dois anos, conforme (4), da §57a.

A extensão da aplicabilidade da pena de prisão perpétua é, no entanto, mais ampla que aquela
prevista na lei espanhola. Para além de crimes tipificados que visem atingir o bem jurídico vida
humana, prevê ainda a aplicabilidade a específicos crimes de guerra.

Conclusão

Não se afigurando um estudo exaustivo de todos os múltiplos ordenamentos jurídicos que


demonstrem alguma conexão ao português, a escolha destes dois exemplos deve-se à estrita
proximidade de conceitos e posições que a nosso ver são manifestas na doutrina; os fins das
penas (inclusive a pena de prisão perpétua) se demonstrarem basilados nas noções de
prevenção geral positiva e prevenção especial socializadora, como tal, demonstrativas da
compatibilidade da pena com os valores fundamentais da sociedade portuguesa;
eventualmente, passível de adaptação ao regime penal português.

Não obstante o fundamento na perigosidade de reincidência e na medida da culpa, bem


como na regular possibilidade de suspensão da pena e processo transitório subsequente em
vista à reintegração do agente na sociedade, ambos os regimes não estipulam um teto máximo
à aplicação da pena, afigurando-se, verdadeiramente, definitiva, caso todas as múltiplas
sucessivas avaliações ao sucesso de reintegração do agente não sejam julgadas procedentes.
Tais regimes pecam, assim, face ao já analisado princípio de proibição de penas perpétuas,
vigente no nosso ordenamento, pois que não deixarão de instrumentalizar o agente criminoso,

21
FEDERAL MINISTRY OF JUSTICE (2019), Strafgesetzbuch (tradução oficial em língua inglesa), disponível
em: https://www.gesetze-im-internet.de/englisch_stgb/ (consultado a 22/01/2022).
bem como o neutralizar da sociedade, na eventualidade de o Estado falhar na sua função de
ressocialização através do Direito Penal (vide Art.º 40.º, n.º 1, CP).

Terceira etapa:

A prisão perpétua e a resposta sem pergunta –os objetivos da medida

Finda a análise objetiva do possível enquadramento da pena de prisão perpétua no nosso


ordenamento jurídico, à luz dos princípios fundamentais da sociedade portuguesa postulados
na Constituição, cabe a derradeira questão: afigura-se necessária a medida? – ou, noutros
termos, falham os limites das penas restritivas da liberdade plasmados na lei penal portuguesa
no alcance dos seus fins ideais, tipificados no Art.º 40.º, CP, de tal modo que seja mister
proceder a uma reforma que admitisse a prisão perpétua, através de um limite
(presumivelmente elevado) à medida da pena, ou até mesmo da revisão constitucional que
lograsse alterar o postulado no seu Art.º 30.º, n.º 1, no tocante à proibição de penas com
caráter perpétuo?

Observe-se que, na experiência de outros países de tradição romano-germânica que admitem


a medida de prisão perpétua, o período findo o qual é admissível a suspensão da pena é
próxima da pena máxima de 25 anos vigente em Portugal – ou mesmo significativamente
inferior, como é o já estudado caso alemão. Mais: o regime de liberdade condicional,
plasmado no Art.º 61.º, do CP, já em si mesmo se assemelha à aplicabilidade da prisão
perpétua, na medida que se aplica em modo proporcional à medida da pena aplicada ao caso
concreto e se encontra adstrita aos princípios de segurança e reintegração social, a aferir pelo
Tribunal.

Conclusão

Num caso em que potencialmente seja aplicada a pena restritiva da liberdade máxima
legalmente permitida, as bitolas da culpa e da necessidade da pena a que se encontram os fins
das penas adstritos relevam para determinar se o condenado cumpre, ou não, a pena aplicada
na sua totalidade; ou, se por outro lado, a mesma foi eficaz para o reintegrar na sociedade,
não se afigurando um risco demarcado para a sociedade para a reincidência, em prejuízo do
direito fundamental à segurança.

Poderemos concluir que o limite máximo tipificado para a pena de prisão, se por um lado não
se afigura manifestamente superior àquele em que o agente criminoso noutros principais
sistemas romano-germânicos poderá solicitar a liberdade condicional; por outro permite a
reinserção ao arguido quando colocado em liberdade, não lhe furtando a chance de se
reintegrar finda a pena, evitando-se uma instrumentalização do agente ou preferência de
interesses estaduais com prevalência às liberdades individuais.

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