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Introdução
A nossa sociedade está cada vez mais consciente e sensibilizada para a dor e sofrimento
infringidos aos animais. Tal se materializou, dentre outras formas, na Lei n.º 69/2014, de 29 de
agosto, alterada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, que veio aditar ao Código Penal o atual
regime de criminalização dos maus tratos e abandono de animais de companhia.
Será nosso objetivo observar a lei, sua interpretação e possíveis aspetos a alterar, bem como o
seu fundamento constitucional que legitime, ou não, a sua tipificação enquanto crime.
De facto
No presente acórdão1, debruça-se o Tribunal a quem acerca dos presentes factos dados como
provados em 1.ª Instância, a saber: o Arguido, adiante HP, deteve em sua casa uma cadela, de
raça Pastor Alemão, desde 2012 até aos fatídicos eventos ocorridos no dia 3 de fevereiro de
2016. Nesta data, o animal entrou em processo de parto, situação que, sendo da perceção do
Arguido não seguir os seus moldes naturalmente, decide intervir por sua própria mão, ao invés
de recorrer aos serviços veterinários adequados.
O Arguido, que se depreende não ter conhecimentos ou qualquer experiência médica e/ou
veterinária, com o auxílio do Arguido PB, que aceitara livremente auxiliar a imobilizar a cadela,
esventrou-a com recurso a um objeto cortante, efetuando uma “incisão vertical grosseira e
irregular com certa de 15 cm, cortando a parede abdominal e o útero”; processo este
executado encontrando-se o animal vivo e consciente.
De seguida, o Arguido HP retirou do interior do útero da cadela várias crias em número não
inferior a seis, três delas se havendo apurado encontrarem-se com vida, deixando ainda dois
fetos no interior. Por fim e, reitera-se, encontrando-se o animal vivo e consciente, este fechou
a ferida com pontos, mas apenas no seu abdómen, deixando ainda o útero aberto. A cadela,
ainda viva, foi deixada no chão do quintal, coberta em sangue e outros fluídos corporais, em
extrema dor e sofrimento, aos quais os Arguidos foram indiferentes. Pelas lesões causadas, o
animal acabou por sucumbir e vir a falecer.
1
Cf. Acórdão do TRE, de 18/06/2019, referente ao Proc. N.º 90/16.4GFSTB.E1.E1, da Juíza Relatora Ana
Barata Brito, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/25681f00e96289ab80258434003956
8a?OpenDocument (consultado a 19/01/2022).
Mais havendo ao agir do Arguido HP, aquele colocou todas as crias retiradas do útero do
animal, incluindo as três que se encontravam vivas, dentro de um saco de plástico, o qual
descartou no contentor de lixo. Não podendo deixar de conhecer das necessidades de calor e
alimento dos animais recém-nascidos, vieram todos a falecer por hipotermia.
De Direito
O Arguido PB veio, por seu turno, condenado, enquanto co-autor, de um crime de maus tratos
a animais de companhia agravado, cometido sobre a cadela, nos mesmos termos que o
primeiro, na pena de 90 dias de multa, calculados à taxa diária de €6,00.
Interpôs o Arguido HP o presente recurso para a Relação, arguindo pela suposta violação dos
dispostos constitucionais nos Arts.º 18.º, 27.º e 62.º, da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal veio-se pronunciar no sentido de confirmar a sentença da 1.ª Instância, ditando
manifesta improcedência dos argumentos apresentados, alterando, no entanto, a medida da
pena inicialmente determinada em prisão efetiva, passando a entender-se adequada a pena de
prisão suspensa.
A tipificação do crime em apreço foi aditada ao Código Penal Português através da Lei n.º
69/2014, de 29 de agosto2. Plasmado no seu Art.º 387.º, diz-nos este o seguinte:
“ 1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de
6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber
por força de outra disposição legal.
3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos
a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de
multa de 60 a 120 dias.
2
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Lei 69/2014 (2014), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_busca_art_velho.php?
nid=109&artigonum=109A0387&n_versao=1&so_miolo= (consultado a 03/02/2022).
ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de
multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação
ou por qualquer motivo torpe ou fútil.”3
A letra da lei encontra-se, no entanto, alterada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, pese
embora o conteúdo originalmente aditado e vigente à data da prática dos factos se mantenha,
essencialmente, inalterado, na medida dos tipos de crime e medidas da pena, tão-só o
legislador se tendo limitado a clarificar e especificar cada tipo de crime.
No primeiro aspeto ditado pelo n.º 1 da norma, serão animais de companhia aqueles que
serão destinados a ser detidos por seres humanos para seu entretenimento e companhia –
importando que, por um lado, importa a idoneidade da espécie do animal para aquele fim; por
outro, não releva que aquele animal em concreto fosse, ou não, detido para esses mesmos
fins, se bastando a sua idoneidade.
3
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Código Penal (2022), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?
artigo_id=109A0387&nid=109&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo
(consultado a 03/02/2022).
4
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Código Penal (2022), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?
artigo_id=109A0387&nid=109&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo
(consultado a 03/02/2022).
Tal reconduz alguns problemas interessantes: se, por um lado, será entendimento comum que
um cão ou um gato serão necessariamente animais de companhia, tal consenso se dissipará
relativamente a animais exóticos, como uma iguana ou uma tarântula, que alguns entusiastas
detêm em suas casas “para seu entretenimento e companhia”, não obstante a maioria da
população poder vir a discordar seres destinados àquele fim – mais, mesmo que se argumente
que estes animais, quando destinados a esse fim, devem possuir o registo imposto pela
Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Selvagens
Ameaçadas de Extinção5, o que por si mesmo importaria necessariamente a sua inclusão ao
abrigo da lei, poderá, naturalmente, excluir aqueles animais que, não possuindo tal registo
(por motivo que lhes é, naturalmente, alheio), não são efetivamente detidos por seres
humanos.
É comummente aceite que o bem jurídico subjacente à tipificação do crime de maus tratos a
animais subjaz no n.º 1, do Art.º 66.º. da Constituição da República Portuguesa, que nos diz o
seguinte: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente
equilibrado e o dever de o defender.”6
Conclusão
No acórdão em apreço, a cadela, de nome Pantufa, foi mutilada, das ações injustificadas
praticadas pelos co-arguidos tendo vindo a falecer, bem como as crias recém-nascidas. Todas
estas ações foram praticadas livre e conscientemente, demonstrando uma frieza de ânimo
para com os animais de companhia, factos punidos pela lei penal portuguesa.
Este acórdão, tendo assim findado a discussão in casu, suscita importantes questões da
aplicabilidade e legitimidade da tipificação do crime de maus tratos a animais de companhia,
plasmado no Art.º 387.º, do Código Penal. Através do nosso estudo, pudemos concluir que,
embora adequada à luz da Constituição da República Portuguesa, a letra da lei se nos parece
demasiado exclusiva das situações que se poderão entender como maus tratos a animais,
desde logo limitando pela vaga noção de animais de companhia, a que a lei se repercute,
postulada no Art.º 389.º, seguidamente afastando por completo aqueles factos decorrentes da
atividade pecuária, ou daquelas atividades culturais conformes ao preceituado, do âmbito do
tipo de crime.
Entendemos que tal problema resulta de uma tentativa de compatibilizar interesses e agendas
políticas pelas várias forças partidárias que se consubstanciam na figura do legislador, que
naturalmente terão procurado proteger o setor pecuário e cultural, pese embora, no nosso
entender, a solução devesse, ao invés, passar por uma reforma legislativa que melhor
regularizasse as práticas nestes setores, a fim de evitar situações de verdadeiros maus tratos e
práticas desumanas no seu desenvolvimento.
7
PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal (2017), p. 78.