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Os maus-tratos a animais de companhia e a Constituição

Análise crítica ao Acórdão do TRE, de 18/06/2019, referente ao Proc. N.º 90/16.4GFSTB.E1.E1,


da Juíza Relatora Ana Barata Brito.

Introdução

A nossa sociedade está cada vez mais consciente e sensibilizada para a dor e sofrimento
infringidos aos animais. Tal se materializou, dentre outras formas, na Lei n.º 69/2014, de 29 de
agosto, alterada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, que veio aditar ao Código Penal o atual
regime de criminalização dos maus tratos e abandono de animais de companhia.

No presente estudo, partiremos do Acórdão do TRE, de 18/06/2019, referente ao Proc. N.º


90/16.4GFSTB.E1.E1, da Juíza Relatora Ana Barata Brito, no qual a Relação de Évora se
pronuncia relativamente a um caso de manifestos maus tratos a animais de companhia, em
que um dos co-autores vem interpor recurso por alegada inconstitucionalidade da letra da lei,
usando-o como rampa de lançamento para uma breve abordagem à temática deste tipo de
crime.

Será nosso objetivo observar a lei, sua interpretação e possíveis aspetos a alterar, bem como o
seu fundamento constitucional que legitime, ou não, a sua tipificação enquanto crime.

De facto

No presente acórdão1, debruça-se o Tribunal a quem acerca dos presentes factos dados como
provados em 1.ª Instância, a saber: o Arguido, adiante HP, deteve em sua casa uma cadela, de
raça Pastor Alemão, desde 2012 até aos fatídicos eventos ocorridos no dia 3 de fevereiro de
2016. Nesta data, o animal entrou em processo de parto, situação que, sendo da perceção do
Arguido não seguir os seus moldes naturalmente, decide intervir por sua própria mão, ao invés
de recorrer aos serviços veterinários adequados.

O Arguido, que se depreende não ter conhecimentos ou qualquer experiência médica e/ou
veterinária, com o auxílio do Arguido PB, que aceitara livremente auxiliar a imobilizar a cadela,
esventrou-a com recurso a um objeto cortante, efetuando uma “incisão vertical grosseira e
irregular com certa de 15 cm, cortando a parede abdominal e o útero”; processo este
executado encontrando-se o animal vivo e consciente.

De seguida, o Arguido HP retirou do interior do útero da cadela várias crias em número não
inferior a seis, três delas se havendo apurado encontrarem-se com vida, deixando ainda dois
fetos no interior. Por fim e, reitera-se, encontrando-se o animal vivo e consciente, este fechou
a ferida com pontos, mas apenas no seu abdómen, deixando ainda o útero aberto. A cadela,
ainda viva, foi deixada no chão do quintal, coberta em sangue e outros fluídos corporais, em
extrema dor e sofrimento, aos quais os Arguidos foram indiferentes. Pelas lesões causadas, o
animal acabou por sucumbir e vir a falecer.

1
Cf. Acórdão do TRE, de 18/06/2019, referente ao Proc. N.º 90/16.4GFSTB.E1.E1, da Juíza Relatora Ana
Barata Brito, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/25681f00e96289ab80258434003956
8a?OpenDocument (consultado a 19/01/2022).
Mais havendo ao agir do Arguido HP, aquele colocou todas as crias retiradas do útero do
animal, incluindo as três que se encontravam vivas, dentro de um saco de plástico, o qual
descartou no contentor de lixo. Não podendo deixar de conhecer das necessidades de calor e
alimento dos animais recém-nascidos, vieram todos a falecer por hipotermia.

De Direito

Vem o Arguido HP condenado, enquanto co-autor, de um crime de maus tratos a animais de


companhia agravado, cometido sobre a cadela, plasmado no Art.º 387.º, ns.º 1 e 2, do Código
Penal, em pena de dez meses de prisão, e como autor material e em concurso efetivo de três
crimes de maus tratos a animais de companhia agravados, sobre as três crias, por força do
postulado nos suprarreferidos preceitos legais, em pena de seis meses de prisão, sendo-lhe
aplicada pena única de 16 meses de prisão efetiva em cúmulo jurídico, mais tendo-lhe sido
aplicada a pena acessória de proibição de detenção de animais de companhia por período
máximo de cinco anos.

O Arguido PB veio, por seu turno, condenado, enquanto co-autor, de um crime de maus tratos
a animais de companhia agravado, cometido sobre a cadela, nos mesmos termos que o
primeiro, na pena de 90 dias de multa, calculados à taxa diária de €6,00.

Interpôs o Arguido HP o presente recurso para a Relação, arguindo pela suposta violação dos
dispostos constitucionais nos Arts.º 18.º, 27.º e 62.º, da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal veio-se pronunciar no sentido de confirmar a sentença da 1.ª Instância, ditando
manifesta improcedência dos argumentos apresentados, alterando, no entanto, a medida da
pena inicialmente determinada em prisão efetiva, passando a entender-se adequada a pena de
prisão suspensa.

O crime de maus tratos a animais de companhia e o seu enquadramento legal

A tipificação do crime em apreço foi aditada ao Código Penal Português através da Lei n.º
69/2014, de 29 de agosto2. Plasmado no seu Art.º 387.º, diz-nos este o seguinte:

“ 1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de
6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber
por força de outra disposição legal.

2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou


perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço.

3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos
a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de
multa de 60 a 120 dias.

4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de


importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de
locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade

2
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Lei 69/2014 (2014), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_busca_art_velho.php?
nid=109&artigonum=109A0387&n_versao=1&so_miolo= (consultado a 03/02/2022).
ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de
multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem os n.os 2


e 4, entre outras, a circunstância de:

a) O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de


crueldade que aumente o sofrimento do animal;

b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou


particularmente perigosos;

c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação
ou por qualquer motivo torpe ou fútil.”3

A letra da lei encontra-se, no entanto, alterada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, pese
embora o conteúdo originalmente aditado e vigente à data da prática dos factos se mantenha,
essencialmente, inalterado, na medida dos tipos de crime e medidas da pena, tão-só o
legislador se tendo limitado a clarificar e especificar cada tipo de crime.

Questão prévia - noção de animal de companhia:

Impõe-se uma importante questão, a fim de ditar o âmbito de aplicabilidade do presente


Artigo, a saber: qual é, em sede do Direito Penal, a noção de animal de companhia? Esta é-nos
esclarecida no Art.º 389.º, que nos diz ser animal de companhia “qualquer animal detido ou
destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu
entretenimento e companhia”4, excluindo-se, no entanto, “a utilização de animais para fins de
exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos
relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins
legalmente previstos”.

Do postulado, retiramos em primeira linha uma importante característica para delimitar o


escopo de aplicabilidade das normas – quais factos que se materializam em maus tratos a
animais o são contra animais de companhia, para efeitos de intervenção penal – e, em
segunda, quais aqueles factos que, em si mesmos, não se podem valorar enquanto maus
tratos.

No primeiro aspeto ditado pelo n.º 1 da norma, serão animais de companhia aqueles que
serão destinados a ser detidos por seres humanos para seu entretenimento e companhia –
importando que, por um lado, importa a idoneidade da espécie do animal para aquele fim; por
outro, não releva que aquele animal em concreto fosse, ou não, detido para esses mesmos
fins, se bastando a sua idoneidade.
3
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Código Penal (2022), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?
artigo_id=109A0387&nid=109&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo
(consultado a 03/02/2022).
4
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Código Penal (2022), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?
artigo_id=109A0387&nid=109&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo
(consultado a 03/02/2022).
Tal reconduz alguns problemas interessantes: se, por um lado, será entendimento comum que
um cão ou um gato serão necessariamente animais de companhia, tal consenso se dissipará
relativamente a animais exóticos, como uma iguana ou uma tarântula, que alguns entusiastas
detêm em suas casas “para seu entretenimento e companhia”, não obstante a maioria da
população poder vir a discordar seres destinados àquele fim – mais, mesmo que se argumente
que estes animais, quando destinados a esse fim, devem possuir o registo imposto pela
Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Selvagens
Ameaçadas de Extinção5, o que por si mesmo importaria necessariamente a sua inclusão ao
abrigo da lei, poderá, naturalmente, excluir aqueles animais que, não possuindo tal registo
(por motivo que lhes é, naturalmente, alheio), não são efetivamente detidos por seres
humanos.

Relativamente ao segundo aspeto, plasmado no seu n.º 2, excluem-se como factos


juridicamente relevantes aqueles destinados à pecuária ou a atividades culturais. Este
postulado parece-nos resultado necessário das motivações políticas que ditaram a aprovação
daquele preceito, na medida em que a maioria das forças partidárias representadas na
Assembleia da República à data da promulgação do Diploma se afigurava protecionista da
pecuária e atividades culturais, sendo aquela de mais relevo no nosso país, naturalmente, as
touradas. A fim de aditar ao sistema penal português normas que protejam os animais, houve
que compatibilizar com essas motivações e vontades políticas, neste preceito se
materializando-essencialmente, uma proteção das atividades em questão.

Poder-se-á depreender ser entendimento do legislador que, no decorrer de atividades de


pecuária ou aquelas culturais conformes ao supracito postulado, aqueles factos que se
enquadrariam em maus tratos, nos termos do Art.º 387.º, não são tidos enquanto tal.

O bem jurídico subjacente aos maus tratos a animais de companhia

É comummente aceite que o bem jurídico subjacente à tipificação do crime de maus tratos a
animais subjaz no n.º 1, do Art.º 66.º. da Constituição da República Portuguesa, que nos diz o
seguinte: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente
equilibrado e o dever de o defender.”6

É percetível do preceituado que o âmbito do postulado não é o reconhecimento de direitos


aos animais a si mesmos, mas a proteção do ambiente lato sensu (aqui se incluindo,
necessariamente, os seres vivos) à luz da pessoa humana – o foco será, assim, o dever de
tratamento humano do meio ambiente e, por consequente, dos animais (que, aparentemente,
o ser humano considere dignos desse tratamento).

Colocamos a questão relativa à eventual necessidade da revisão constitucional que consagre


concretamente a existência de um direito fundamental – dos animais e/ou do meio ambiente
– que não esteja dependente de uma lógica decorrente do ser humano enquanto ponto de
5
Cf. PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da
Fauna e da Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (1980), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1854&tabela=leis&nversao= (consultado
a 03/02/2022).
6
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Constituição da República Portuguesa (2022), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?
artigo_id=4A0066&nid=4&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo (consultado a
03/02/2022).
partida e, em si mesmo, o fim do direito. Como nos diz FERNANDA PALMA 7, o bem jurídico
poder-se-á entender, entre outros, num interesse coletivo assumido pelo Estado de Direito
como condição essencial da incriminação, ou uma sugestão de necessidade intersubjetiva que
carece de ser protegida. Assim, verificando-se uma ampla concordância na nossa sociedade
atual, será legítima tal revisão – contando que exista um amplo estudo doutrinário prévio o
qual, não obstante a nossa presente modesta tentativa, se nos parece ainda não estar
solidificado nos nossos dias.

Conclusão

No acórdão em apreço, a cadela, de nome Pantufa, foi mutilada, das ações injustificadas
praticadas pelos co-arguidos tendo vindo a falecer, bem como as crias recém-nascidas. Todas
estas ações foram praticadas livre e conscientemente, demonstrando uma frieza de ânimo
para com os animais de companhia, factos punidos pela lei penal portuguesa.

Não obstante a argumentação da defesa, a Relação de Évora veio confirmar a decisão de


condenação sentenciada em 1.ª Instância, pese embora haja-se pronunciado quanto à medida
da pena.

Este acórdão, tendo assim findado a discussão in casu, suscita importantes questões da
aplicabilidade e legitimidade da tipificação do crime de maus tratos a animais de companhia,
plasmado no Art.º 387.º, do Código Penal. Através do nosso estudo, pudemos concluir que,
embora adequada à luz da Constituição da República Portuguesa, a letra da lei se nos parece
demasiado exclusiva das situações que se poderão entender como maus tratos a animais,
desde logo limitando pela vaga noção de animais de companhia, a que a lei se repercute,
postulada no Art.º 389.º, seguidamente afastando por completo aqueles factos decorrentes da
atividade pecuária, ou daquelas atividades culturais conformes ao preceituado, do âmbito do
tipo de crime.

Entendemos que tal problema resulta de uma tentativa de compatibilizar interesses e agendas
políticas pelas várias forças partidárias que se consubstanciam na figura do legislador, que
naturalmente terão procurado proteger o setor pecuário e cultural, pese embora, no nosso
entender, a solução devesse, ao invés, passar por uma reforma legislativa que melhor
regularizasse as práticas nestes setores, a fim de evitar situações de verdadeiros maus tratos e
práticas desumanas no seu desenvolvimento.

Em última medida, coloca-se a hipótese de uma reforma constitucional que expressamente


consagre a proteção do meio ambiente e os animais, ao invés do atual regime decorrente do
Art.º 66.º, n.º 1, da CRP, que o pressupõe lato sensu, mais se versando no ser humano como
princípio e fim do direito. Tal possibilidade, não obstante, encontrar-se-ia determinada por
amplos estudos doutrinários e uma clara vontade social que dite este dever social, o que, no
nosso entender, ainda não existe.

7
PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal (2017), p. 78.

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