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OS MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA E A

CONSTITUIÇÃO
Análise crítica ao Acórdão do TRE, de 18/06/2019, referente ao Proc. N.º
90/16.4GFSTB.E1.E1, da Juíza Relatora Ana Barata Brito.

André Paulo Antunes Fontes

SUMÁRIO: ABORDAGEM À PROBLEMÁTICA DA CRIMINALIZAÇÃO DOS MAUS TRATOS AOS


ANIMAIS DE COMPANHIA À LUZ DA LEI PENAL PORTUGUESA E DA CONSTITUIÇÃO, TENDO

COMO PONTO DE PARTIDA O ACÓRDÃO PROFERIDO PELA RELAÇÃO DE ÉVORA.

PALAVRAS-CHAVE: ANIMAIS DE COMPANHIA , MAUS TRATOS, CO-AUTORIA,

CRIMINALIZAÇÃO, CONSTITUCIONALIDADEE

LISTA DE ABREVIATURAS
Ac.: Acórdão
CP: Código Penal
CPC: Código de Processo Civil
CPP: Código de Processo Penal

INTRODUÇÃO
A nossa sociedade está cada vez mais consciente e sensibilizada para a dor e sofrimento
infringidos aos animais. Tal se materializou, dentre outras formas, na Lei n.º 69/2014, de
29 de agosto, alterada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, que veio aditar ao Código
Penal o atual regime de criminalização dos maus tratos e abandono de animais de
companhia.

No presente estudo, partiremos do Acórdão do TRE, de 18/06/2019, referente ao Proc.


N.º 90/16.4GFSTB.E1.E1, da Juíza Relatora Ana Barata Brito, no qual a Relação de
Évora se pronuncia relativamente a um caso de manifestos maus tratos a animais de
companhia, em que um dos co-autores vem interpor recurso por alegada
inconstitucionalidade da letra da lei, usando-o como rampa de lançamento para uma breve
abordagem à temática deste tipo de crime.

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Será nosso objetivo observar a lei, sua interpretação e possíveis aspetos a alterar, bem
como o seu fundamento constitucional que legitime, ou não, a sua tipificação enquanto
crime.

I. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

1. Matéria de facto

No presente acórdão1, debruça-se o Tribunal a quem acerca dos presentes factos dados
como provados em 1.ª Instância, a saber: o Arguido, adiante HP, deteve em sua casa uma
cadela, de raça Pastor Alemão, desde 2012 até aos fatídicos eventos ocorridos no dia 3 de
fevereiro de 2016. Nesta data, o animal entrou em processo de parto, situação que, sendo
da perceção do Arguido não seguir os seus moldes naturalmente, decide intervir por sua
própria mão, ao invés de recorrer aos serviços veterinários adequados.

O Arguido, que se depreende não ter conhecimentos ou qualquer experiência médica e/ou
veterinária, com o auxílio do Arguido PB, que aceitara livremente auxiliar a imobilizar a
cadela, esventrou-a com recurso a um objeto cortante, efetuando uma “incisão vertical
grosseira e irregular com certa de 15 cm, cortando a parede abdominal e o útero”;
processo este executado encontrando-se o animal vivo e consciente.

De seguida, o Arguido HP retirou do interior do útero da cadela várias crias em número


não inferior a seis, três delas se havendo apurado encontrarem-se com vida, deixando
ainda dois fetos no interior. Por fim e, reitera-se, encontrando-se o animal vivo e
consciente, este fechou a ferida com pontos, mas apenas no seu abdómen, deixando ainda
o útero aberto. A cadela, ainda viva, foi deixada no chão do quintal, coberta em sangue e
outros fluídos corporais, em extrema dor e sofrimento, aos quais os Arguidos foram
indiferentes. Pelas lesões causadas, o animal acabou por sucumbir e vir a falecer.

1
Cf. Acórdão do TRE, de 18/06/2019, referente ao Proc. N.º 90/16.4GFSTB.E1.E1, da Juíza Relatora
Ana Barata Brito, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/25681f00e96289ab802584340039568a
?OpenDocument (consultado a 19/01/2022).

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Mais havendo ao agir do Arguido HP, aquele colocou todas as crias retiradas do útero do
animal, incluindo as três que se encontravam vivas, dentro de um saco de plástico, o qual
descartou no contentor de lixo. Não podendo deixar de conhecer das necessidades de
calor e alimento dos animais recém-nascidos, vieram todos a falecer por hipotermia.

2. Matéria de Direito

Vem o Arguido HP condenado, enquanto co-autor, de um crime de maus tratos a


animais de companhia agravado, cometido sobre a cadela, plasmado no Art.º 387.º, ns.º
1 e 2, do Código Penal, em pena de dez meses de prisão, e como autor material e em
concurso efetivo de três crimes de maus tratos a animais de companhia agravados,
sobre as três crias, por força do postulado nos suprarreferidos preceitos legais, em pena
de seis meses de prisão, sendo-lhe aplicada pena única de 16 meses de prisão efetiva em
cúmulo jurídico, mais tendo-lhe sido aplicada a pena acessória de proibição de detenção
de animais de companhia por período máximo de cinco anos.

O Arguido PB veio, por seu turno, condenado, enquanto co-autor, de um crime de maus
tratos a animais de companhia agravado, cometido sobre a cadela, nos mesmos termos
que o primeiro, na pena de 90 dias de multa, calculados à taxa diária de €6,00.

Interpôs o Arguido HP o presente recurso para a Relação, arguindo pela suposta violação
dos dispostos constitucionais nos Arts.º 18.º, 27.º e 62.º, da Constituição da República
Portuguesa. O Tribunal veio-se pronunciar no sentido de confirmar a sentença da 1.ª
Instância, ditando manifesta improcedência dos argumentos apresentados, alterando, no
entanto, a medida da pena inicialmente determinada em prisão efetiva, passando a
entender-se adequada a pena de prisão suspensa.

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II. O CRIME DE MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA E O
SEU ENQUADRAMENTO LEGAL

A tipificação do crime em apreço foi aditada ao Código Penal Português através da Lei
n.º 69/2014, de 29 de agosto2. Plasmado no seu Art.º 387.º, diz-nos este o seguinte:

“ 1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de
prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave
lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou


perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um
terço.

3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos
físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou
com pena de multa de 60 a 120 dias.

4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de


importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de
locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial
censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2
anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por
força de outra disposição legal.

5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem


os n.os 2 e 4, entre outras, a circunstância de:

a) O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de


crueldade que aumente o sofrimento do animal;

b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou


particularmente perigosos;

2
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Lei 69/2014 (2014), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_busca_art_velho.php?nid=109&artigonum=109A0387&n_versao=1&so
_miolo= (consultado a 03/02/2022).

4
c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para
excitação ou por qualquer motivo torpe ou fútil.”3

A letra da lei encontra-se, no entanto, alterada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, pese
embora o conteúdo originalmente aditado e vigente à data da prática dos factos se
mantenha, essencialmente, inalterado, na medida dos tipos de crime e medidas da pena,
tão-só o legislador se tendo limitado a clarificar e especificar cada tipo de crime.

1. Questão prévia - noção de animal de companhia

Impõe-se uma importante questão, a fim de ditar o âmbito de aplicabilidade do presente


Artigo, a saber: qual é, em sede do Direito Penal, a noção de animal de companhia? Esta
é-nos esclarecida no Art.º 389.º, que nos diz ser animal de companhia “qualquer animal
detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu
entretenimento e companhia”4, excluindo-se, no entanto, “a utilização de animais para
fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a
factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou
outros fins legalmente previstos”.

Do postulado, retiramos em primeira linha uma importante característica para delimitar o


escopo de aplicabilidade das normas – quais factos que se materializam em maus tratos a
animais o são contra animais de companhia, para efeitos de intervenção penal – e, em
segunda, quais aqueles factos que, em si mesmos, não se podem valorar enquanto maus
tratos.

No primeiro aspeto ditado pelo n.º 1 da norma, serão animais de companhia aqueles que
serão destinados a ser detidos por seres humanos para seu entretenimento e companhia –

3
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Código Penal (2022), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=109A0387&nid=109&tabela=leis&pa
gina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo (consultado a 03/02/2022).
4
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Código Penal (2022), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=109A0387&nid=109&tabela=leis&pa
gina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo (consultado a 03/02/2022).

5
importando que, por um lado, importa a idoneidade da espécie do animal para aquele
fim; por outro, não releva que aquele animal em concreto fosse, ou não, detido para esses
mesmos fins, se bastando a sua idoneidade.

Tal reconduz alguns problemas interessantes: se, por um lado, será entendimento comum
que um cão ou um gato serão necessariamente animais de companhia, tal consenso se
dissipará relativamente a animais exóticos, como uma iguana ou uma tarântula, que
alguns entusiastas detêm em suas casas “para seu entretenimento e companhia”, não
obstante a maioria da população poder vir a discordar seres destinados àquele fim – mais,
mesmo que se argumente que estes animais, quando destinados a esse fim, devem possuir
o registo imposto pela Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna
e da Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção5, o que por si mesmo importaria
necessariamente a sua inclusão ao abrigo da lei, poderá, naturalmente, excluir aqueles
animais que, não possuindo tal registo (por motivo que lhes é, naturalmente, alheio), não
são efetivamente detidos por seres humanos.

Relativamente ao segundo aspeto, plasmado no seu n.º 2, excluem-se como factos


juridicamente relevantes aqueles destinados à pecuária ou a atividades culturais. Este
postulado parece-nos resultado necessário das motivações políticas que ditaram a
aprovação daquele preceito, na medida em que a maioria das forças partidárias
representadas na Assembleia da República à data da promulgação do Diploma se
afigurava protecionista da pecuária e atividades culturais, sendo aquela de mais relevo no
nosso país, naturalmente, as touradas. A fim de aditar ao sistema penal português normas
que protejam os animais, houve que compatibilizar com essas motivações e vontades
políticas, neste preceito se materializando-essencialmente, uma proteção das atividades
em questão.

5
Cf. PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Convenção sobre o Comércio Internacional das
Espécies da Fauna e da Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (1980), disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1854&tabela=leis&nversao= (consultado a
03/02/2022).

6
Poder-se-á depreender ser entendimento do legislador que, no decorrer de atividades de
pecuária ou aquelas culturais conformes ao supracito postulado, aqueles factos que se
enquadrariam em maus tratos, nos termos do Art.º 387.º, não são tidos enquanto tal.

2. O bem jurídico subjacente aos maus tratos a animais de companhia

É comummente aceite que o bem jurídico subjacente à tipificação do crime de maus tratos
a animais subjaz no n.º 1, do Art.º 66.º. da Constituição da República Portuguesa, que nos
diz o seguinte: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e
ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.”6

É percetível do preceituado que o âmbito do postulado não é o reconhecimento de direitos


aos animais a si mesmos, mas a proteção do ambiente lato sensu (aqui se incluindo,
necessariamente, os seres vivos) à luz da pessoa humana – o foco será, assim, o dever
de tratamento humano do meio ambiente e, por consequente, dos animais (que,
aparentemente, o ser humano considere dignos desse tratamento).

Colocamos a questão relativa à eventual necessidade da revisão constitucional que


consagre concretamente a existência de um direito fundamental – dos animais e/ou do
meio ambiente – que não esteja dependente de uma lógica decorrente do ser humano
enquanto ponto de partida e, em si mesmo, o fim do direito. Como nos diz FERNANDA
PALMA7, o bem jurídico poder-se-á entender, entre outros, num interesse coletivo
assumido pelo Estado de Direito como condição essencial da incriminação, ou uma
sugestão de necessidade intersubjetiva que carece de ser protegida. Assim, verificando-
se uma ampla concordância na nossa sociedade atual, será legítima tal revisão – contando
que exista um amplo estudo doutrinário prévio o qual, não obstante a nossa presente
modesta tentativa, se nos parece ainda não estar solidificado nos nossos dias.

6
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, Constituição da República Portuguesa (2022),
disponível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=4A0066&nid=4&tabela=leis&pagina
=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo (consultado a 03/02/2022).
7
PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal (2017), p. 78.

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CONCLUSÃO
No acórdão em apreço, a cadela, de nome Pantufa, foi mutilada, das ações injustificadas
praticadas pelos co-arguidos tendo vindo a falecer, bem como as crias recém-nascidas.
Todas estas ações foram praticadas livre e conscientemente, demonstrando uma frieza de
ânimo para com os animais de companhia, factos punidos pela lei penal portuguesa.

Não obstante a argumentação da defesa, a Relação de Évora veio confirmar a decisão de


condenação sentenciada em 1.ª Instância, pese embora haja-se pronunciado quanto à
medida da pena.

Este acórdão, tendo assim findado a discussão in casu, suscita importantes questões da
aplicabilidade e legitimidade da tipificação do crime de maus tratos a animais de
companhia, plasmado no Art.º 387.º, do Código Penal. Através do nosso estudo, pudemos
concluir que, embora adequada à luz da Constituição da República Portuguesa, a letra da
lei se nos parece demasiado exclusiva das situações que se poderão entender como maus
tratos a animais, desde logo limitando pela vaga noção de animais de companhia, a que a
lei se repercute, postulada no Art.º 389.º, seguidamente afastando por completo aqueles
factos decorrentes da atividade pecuária, ou daquelas atividades culturais conformes ao
preceituado, do âmbito do tipo de crime.

Entendemos que tal problema resulta de uma tentativa de compatibilizar interesses e


agendas políticas pelas várias forças partidárias que se consubstanciam na figura do
legislador, que naturalmente terão procurado proteger o setor pecuário e cultural, pese
embora, no nosso entender, a solução devesse, ao invés, passar por uma reforma
legislativa que melhor regularizasse as práticas nestes setores, a fim de evitar situações
de verdadeiros maus tratos e práticas desumanas no seu desenvolvimento.

Em última medida, coloca-se a hipótese de uma reforma constitucional que


expressamente consagre a proteção do meio ambiente e os animais, ao invés do atual
regime decorrente do Art.º 66.º, n.º 1, da CRP, que o pressupõe lato sensu, mais se
versando no ser humano como princípio e fim do direito. Tal possibilidade, não obstante,
encontrar-se-ia determinada por amplos estudos doutrinários e uma clara vontade social
que dite este dever social, o que, no nosso entender, ainda não existe.

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BIBLIOGRAFIA
Ac. do TRE, de 18/06/2019, referente ao Proc. N.º 90/16.4GFSTB.E1.E1, da Juíza
Relatora Ana Barata Brito;

PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal (2017)

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