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POEMAS

NEGROS
Um diálogo poético
de Jorge de Lima e Gilberto Freyre
VAGNER CAMILO

VAGNER CAMILO
é professor de Literatura
Brasileira da USP e autor
de Drummond: da Rosa
do Povo à Rosa das Trevas
O presente ensaio reproduz, com
(Ateliê Editorial). pequenas modificações, a comu-
nicação apresentada na Jornada
de Estudos Gilberto Freyre, organi-
zada pelos professores Ethel V.
Kosminsky, Fernanda Arêas Peixo-
to e Claude Lèpine na Universida-
de Estadual Paulista (Unesp), em
novembro de 2000, por ocasião
das comemorações do centenário
de nascimento do antropólogo
pernambucano.

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“Era a negra Fulô que nos chamava

de seu negro vergel […]

canções de lavadeira ao pé da fonte,

era a fonte em si mesma, eram nostálgicas

emanações de infância e de futuro,

era um ai português desfeito em cana”

(Carlos Drummond de Andrade,

“Conhecimento de Jorge de Lima”).

Publicado em 1947, Poemas Negros reunia textos de 1927

(1) até cerca de 1940. “Pode-se pensar”, com Alexandre


Eulálio, “que a edição promovida pela Revista Acadêmica

de Murilo Miranda tenha sido inspirada pelo apareci-

mento em 46, em Buenos Aires, do Mapa de la Poesía

Negra Americana, compilado, prefaciado e anotado pelo


poeta cubano Emilio Ballagas, autor do Cuaderno de

Poesía Negra (1931) e, ao lado de Nicolás Guillén e Manuel


del Cabral, um dos estabilizadores da poesia afro-antilha-

na. (‘Essa Negra Fulô’ em edição bilíngüe é a única peça


1 Já recolhidos em coletâneas an-
teriores: Poemas (1927), No-
vos Poemas (1929) e Poemas
Escolhidos (1932). Todas as
menções feitas aos poemas de
Jorge de Lima referem-se à se-
guinte edição: Poesias Com-
pletas, Rio de Janeiro/Brasília,
José Aguilar/INL, 1974.
2 Alexandre Eulálio, “A Obra e
os Andaimes: os Trinta Anos da
Morte de Jorge de Lima”, in
Escritos, Campinas/São Pau-
lo, Ed. da Unicamp/Ed. da
brasileira da coletânea)” (2). Unesp, 1992, p. 481.

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REVISTA USP, São
São Paulo,
Paulo, n.59,
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Não bastasse o privilégio das ilustra- viva constituída por elementos genuina-
ções de Segall, a edição numerada de Poe- mente brasileiros, essenciais ao desenvol-
mas Negros trazia ainda um prefácio da- vimento da nossa cultura em expressão ho-
quele cujo pensamento, afinal de contas, nesta do nosso ethos, da nossa história e da
havia atuado, em boa medida, na gênese nossa paisagem e em instrumento de nos-
desses mesmos versos: Gilberto Freyre. O sas aspirações e tendências sociais como
prefácio interessa por mais de um motivo, povo tanto quanto possível autônomo e
além, é claro, do que revela sobre a poesia criador”.
negra de Jorge de Lima – da qual me ocu-
parei adiante. Essa influência é reconhecida, inclusi-
Primeiramente, ele surpreende por nada ve e sobretudo, em uma das expressões mais
ostentar da antiga animosidade para com o autênticas desse movimento nordestino: a
modernismo paulista, ao qual se refere poesia afro-nordestina do autor de “O
expressamente. Rompe-se, assim, com a Mundo do Menino Impossível”.
imagem do líder empenhado em reivindi- Afora a atitude em face do modernis-
car a todo custo não só a maior importân- mo, o prefácio também surpreende pelo
cia, como também a plena autonomia do modo como Freyre rompe certo consenso
movimento regionalista do Nordeste, so- em torno do confronto entre a poesia negra
bretudo em relação a possíveis influências do Brasil e a dos Estados Unidos: enquanto
provenientes do modernismo paulista – esta, feita pelos próprios negros, parece,
visto como produto da emulação européia para alguns, guardar certa vantagem (se é
e, portanto, longe das nossas raízes autên- possível colocar a questão nesses termos)
ticas. Tamanho empenho já foi interpreta- em relação à primeira, feita predominante-
do como decorrência do ressentimento pela mente por brancos, numa atitude que bem
perda do poder econômico e político da atesta sua dimensão paternalista, para
região nordestina em benefício, justamen- Freyre, ao contrário, a vantagem estaria
te, do Centro-Sul (em especial, São Paulo). conosco. A seu ver, a poesia negra norte-
Buscava-se, assim, agonicamente, uma americana, justamente porque feita por
compensação, no plano da cultura, a essa negros, revelaria um caráter segregacionista
perda, reivindicando para o Nordeste o e ressentido, hostil em relação ao branco,
papel de depositário das raízes mais auten- ao passo que a brasileira seria produto do
ticamente brasileiras, porque não sujeito, fraternalismo e da democracia, de que é
como o Centro-Sul, às influências vindas exemplo a obra de, entre outros, um Castro
de fora (3). Alves, um Ascenso Ferreira, o próprio
Sem deixar de insistir na importância e Mário de Andrade e, é claro, Jorge de Lima.
distinção de “um movimento nordestino de Passemos enfim a este último – ou
renovação das letras, artes e cultura brasi- melhor, às considerações de Freyre a pro-
leira”, o fato é que o prefácio de Freyre fala pósito da poesia afro-brasileira do poeta
agora em termos de troca, de reciprocida- alagoano em que se reconhece muito da
de. Uma via de mão dupla entre o moder- influência de seu próprio pensamento. Lei-
nismo paulista e o “movimento do Nordes- tor e mentor intelectual encontram-se, as-
te”, definido (numa humildade em boa sim, na nostalgia do bangüê e das relações
medida retórica, é verdade) como uma es- cordiais por ele engendradas, em oposição
pécie de “parente pobre”, capaz entretanto, à usina; no mito da “democracia racial”; ou
no dizer de Freyre, mesmo no “estilo franciscano” da lírica
3 Ver, em especial, José Maurí- limiana. Além disso, é possível reconhecer
cio Gomes de Almeida, A Tra-
dição Regionalista no Roman-
“de dar ao [parente] rico valores já quase em muitos poemas um movimento solidá-
ce Brasileiro, Rio de Janeiro, despercebidos de outras partes do Brasil e rio em direção ao negro – ressaltado, aliás,
Topbooks, 1999; e Moema
Selma D’Andreia, A Tradição necessitados apenas de novos estímulos pelo próprio prefaciador – que, sem refutar
Re(des)coberta: Gilberto Freyre vindos do Sul e do estrangeiro para se inte- de todo, tende todavia a relativizar o fa-
e a Literatura Regionalista, Cam-
pinas, Ed. Unicamp, 1992. grarem no conjunto da riqueza circulante e migerado compromisso de classe da ótica

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de Freyre (ótica da casa-grande, diriam Por vezes, é fato, essa metade aristocrá-
alguns) e dos que se orientaram por ela. tica parece avultar e comprometer a ótica
Vejamos alguns desses aspectos ressalta- por que é flagrada a realidade do negro, tal
dos pelo prefaciador, a começar pela tão como ocorre no poema justamente intitula-
polêmica democracia racial. do “Bangüê”, correspondente em verso à
Se, de acordo com Hermano Vianna, o prosa homônima de Lins do Rego. Em meio
mito da “democracia racial” imputado a a um verdadeiro ubi sunt, a evocação nos-
Freyre é expressão completamente ausente tálgica dos bangüezinhos da infância – fei-
em Casa-Grande & Senzala, sendo uma ta, inclusive, pela ótica infantil, visível no
atribuição mal-intencionada da crítica, re- uso recorrente dos diminutivos –, temos
sultante de uma “leitura apressada, tenden- uma visão paternalista, condescendente e
ciosa ou burra” (4), o fato é que, ao menos festiva do negro entregue a momentos de
no referido prefácio, ela figura com todas ócio e à bebida em meio à lida, que encon-
as letras. tra respaldo em Freyre e Lins do Rego ao
Mas veja que, ao admitir a presença caracterizar as relações cordiais de senho-
dessa referência explícita, não preciso ne- res e cabras nos engenhos por oposição às
cessariamente engrossar o coro daqueles usinas.
leitores burros ou tendenciosos, contra os Todavia, por mais nostálgico e compro-
quais investe tão acerbamente o mesmo metido que seja, esse retrato do trabalho
Vianna, pois sou o primeiro a reconhecer negro no engenho também não deixa de ser
que o aparente comprometimento ideoló- um modo de resistência à ética protestante
gico associado à expressão tende a ser do trabalho, na esteira da preguiça ingênita
relativizado quando Freyre especifica a celebrada pelo Macunaíma de Mário de
natureza dessa democracia, que nada tem Andrade e pelos demais modernistas do sul
de ingenuamente igualitária, pois o prefá- – conforme sinalizou Roberto Schwarz, ao
cio fala, de forma diferençada, em “contato tratar da “visão desideologizada do esfor-
democratizante para os brancos e degra- ço” em Machado de Assis e no grupo de 22
dante para os negros”. (5). Ora, essa ética protestante comparece
É bem verdade que nos versos do justa- nos versos de “Bangüê” associada à Usina
mente intitulado “Democracia”, Jorge não Leão, “triste como uma igreja sem sino”,
chega a sinalizar esse duplo movimento, como “um templo evangélico”. Assim
na medida em que ressalta apenas o que como, nela, o cozinhador Mister Cox “tira
resultou da mistura para o branco (no caso, da cana o que a cana não pode dar/ e […]
para o próprio sujeito lírico), ou seja, a dis- não deixa nem bagaço/com um tiquinho de
solução do eu para melhor amar “em todas caldo/para as abelhas chupar”; também ela
as línguas de branco, de mouro ou de pa- extrai o prazer e a “alegria das bagaceiras”,
gão”. Apesar disso, pode-se dar crédito a traduzidas nas “cantigas da boca da moen-
esse empenho amoroso e solidário, pois da” entoadas pelos cabras do eito, nas ses-
outros poemas do livro tratarão de confirmá- tas em meio à lida dos “bebedores de resto
lo ao flagrar a realidade do negro por uma de alambique”, nas missas e feiras domin-
ótica que se poderia dizer mais próxima à da gueiras em torno à capela do velho bangüê.
4 Hermano Vianna, “Equilíbrio
senzala. Isso, é claro, sem se confundir com Isso, certamente, pela disciplina austera da de Antagonismos”, Suplemen-
ela – o que, mais do que ingênuo, seria ideo- ética protestante associada ao trabalho (6). to Mais! da Folha de S. Paulo,
São Paulo, 12/mar./2000,
logicamente comprometedor –, pois Jorge Nessa oposição marcante ao protestan- p. 21.
tem consciência da realidade e da distância tismo e à ética que ele impõe não só ao 5 Roberto Schwarz, Um Mestre
na Periferia do Capitalismo;
social de sua condição. Como bem nota o trabalho, mas a toda a existência regida pela Machado de Assis, São Pau-
prefaciador, “a metade aristocrática desse observância daquele princípio de constân- lo, Duas Cidades, 1990.

nordestino total, de corpo colorido por cia que, segundo Edmund Leites, resume a 6 A referência à ética protestan-
te, aqui, é, sem dúvida, o clás-
jenipapo e marcado por catapora, não [es- totalidade da visão de mundo protestante, é sico estudo de Max Weber, A
quece] que ‘a bisavó dançou uma valsa com ainda possível reconhecer a presença sor- Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, São Paulo, Pio-
D. Pedro II’, nem que o avô teve bangüê”. rateira de Freyre. Penso aqui não só na for- neira Thomson Learning, 2001.

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mação protestante do antropólogo de Api- rísticos mais profundos da vida, do passa-
7 Paul Freston apud Ricardo
Benzaquen de Araújo, Guerra
pucos, com a qual viria se desencantar de- do e da paisagem das nossas várias regiões;
e Paz: Casa-Grande & Senza- pois, acabando, segundo Freston, por con- geômetras que desconhecem as intimida-
la e a Obra de Gilberto Freyre
nos Anos 30, Rio de Janeiro, ceber “uma teoria do Brasil baseada preci- des de nossa paisagem humana”.
Ed. 34, 1994, p. 100. samente no que poderá ter sido o centro de Por mais relevantes que me pareçam os
8 Idem, ibidem, p. 101. seu conflito com o protestantismo. Pois argumentos de Freyre, não posso deixar de
9 Alfredo Bosi, História Concisa nada mais distante da moral sexual protes- considerar que certa concessão ao pitores-
da Literatura Brasileira, São
Paulo, Cultrix, 1975. tante do que a prática sexual do português co foi reconhecida até mesmo por admira-
10 E o franciscanismo é outro tra- desgarrado nos trópicos” (7). Penso ainda, dores confessos de Jorge de Lima, como
ço afim à ótica de Gilberto e principalmente, na interpretação de Ri- Alexandre Eulálio. Talvez tendo em men-
Freyre, que inclusive reconhe-
ceu nele, no fraternalismo cardo Benzaquen de Araújo, para quem o te a perspectiva por vezes exterior, distan-
franciscano, uma forma de re-
sistência ao autoritarismo pa- protestantismo é uma presença em negati- ciada e brejeira do negro. Ou quem sabe o
triarcal (cf. Ricardo Benzaquen vo que atravessa toda a opus magnum de gosto pelos grandes mosaicos obtidos à
de Araújo, op. cit.). Ele compa-
rece, entre outros momentos de Freyre. Basta apenas, diz ele, “que nos lem- custa da enumeração (11), pois já houve
sua obra, no ensaio sobre
Whitman, uma das referências
bremos, por exemplo, da vigorosa afirma- quem falasse que ela se esgota com fre-
para a poesia de Jorge – que ção da magia, do ócio e de todos os tipos de qüência no gosto pela enfiada de nomes
chega a evocá-lo como o
interlocutor ideal de “Democra- excesso, particularmente os sexuais, para bantos e bundos de comidas, lugares, mitos
cia”. Esse interesse partilhado que se confirme que estamos realmente e feitiços. Seja como for, a dita concessão
pelo grupo em torno de Gilber-
to Freyre far-se-ia ainda sentir, diante de uma civilização povoada pelo ao pitoresco, nem sempre devidamente
de forma literariamente mais
produtiva, no estilo humilde (ser- pecado, o exato oposto, por conseguinte, precisada pelos críticos, não chega a com-
mo humilis) da lírica bandei- daquele ideal de perfeição terrena, funda- prometer o conjunto da coletânea, e a meu
riana, como demonstra a co-
nhecida análise de Davi do no elogio do trabalho sistemático, da ver se faz sentir nos poemas mais antigos
Arrigucci Jr., Humildade, Pai-
xão e Morte: a Poesia de Ma-
ética, do isolamento e do autocontrole que – nos quais a visão distanciada, objetiva e
nuel Bandeira (São Paulo, Com- a doutrina puritana costuma pregar” (8). por vezes brejeira do negro pelo branco que
panhia das Letras, 1990). No
caso de Jorge, o franco interes- Todas essas considerações vão encontrar fala de outro lugar social não chega, entre-
se por S. Francisco compare- ressonância no poema de Jorge de Lima. tanto, a abolir a notação sociologicamente
cerá em mais de um poema e
em uma biografia para crian- Mas, à exceção dessa ótica comprome- precisa.
ças (Vida de S. Francisco de
Assis). tedora por que é figurado o negro em Já nos poemas posteriores que constitu-
11 O uso e o sentido das enumera-
“Bangüê”, há mais de um poema do livro em, de fato, a parte nova da antologia de 47,
ções na poesia de Jorge de Lima de 47 em que a distância de classe do neto é que vemos como a ação do tempo – a par
foram examinados em perspec-
tivas diversas por Ledo Ivo ( “Rol do senhor de engenho não impede aquele daquela interiorização progressiva que,
de Insulíndias”, in Poesia Ob- movimento solidário a que me referia ante- segundo Waltensir Dutra (12), marca a tra-
servada, São Paulo, Duas Ci-
dades, 1978) e Roger Bastide riormente. Essa ótica fraterna já havia sido jetória poética de Jorge de Lima – favore-
(“Doçura do Leite das Negras”,
in Letras e Artes, São Paulo, 22/ assinalada de passagem por Alfredo Bosi a ceu a adoção de uma perspectiva mais
fev./1948). Devo a cópia do propósito do poema que dá fecho à coletâ- aprofundada e de uma atitude solidária, in-
artigo de Bastide a Fernanda
Peixoto. nea (“Olá! Negro”), observando, inclusi- sistentemente referida aqui. Para melhor
12 Cf. introdução à obra comple- ve, que ela irmana a poesia negra à bíblico- apreendê-las, vale a pena confrontar alguns
ta de Jorge de Lima.
cristã de Jorge de Lima na “assunção das poemas mais antigos com outros mais re-
13 Mas se a intenção era apagar dores do oprimido, socialismo inerente a centes que tratam exatamente dos mesmos
tais traços, por que fazer figu-
rar as duas versões na obra toda interpretação radical dos Evangelhos” temas, como se Jorge buscasse retomá-los
completa, quando poderia ter
substituído uma pela outra? Essa (9). E será justamente evidenciando essa para melhor aprofundá-los.
indagação é feita por Rodolfo “cordialidade crioula”, cristã ou, mais es- Esse aprofundamento poderia, em dada
Ilari, que busca outras razões
além dessa para a segunda pecificamente, “franciscana” (10), que medida, ser também considerado na rees-
versão do poema (ver “Os Poe-
mas Negros de JL”, in Nossa
Gilberto Freyre buscará rebater a acusação critura de um poema como “Xangô”, cuja
América, São Paulo, nov.-dez./ de gulodice de pitoresco, freqüentemente versão final, constante do livro de 47, foi
1991, pp. 8-13). Seja como
for, o fato é que esses traços de endereçada aos poemas afro-nordestinos de vista por alguns como uma “tentativa de
sujeira e animalidade apare- Jorge, justamente por aqueles que, segun- apagar alguns traços de sujeira e anima-
cem ainda, de forma mais ou
menos ambígua, em dois ou três do o prefaciador, são os “menos autoriza- lidade” (13), demasiadamente fortes, na
outros poemas, representando,
sem dúvida, a dimensão com- dos para fazê-la, tal a sua pobreza de expe- descrição da macumba, presentes na pri-
prometedora das figurações riência genuinamente brasileira; pois são meira versão de Poemas (1927). Mais in-
mais antigas do negro em Jor-
ge de Lima. cosmopolitas pouco sensíveis aos caracte- teressante, entretanto, me parece flagrar o

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aprofundamento de visão e o gesto solidário Viram que sabia fazer tudo,
em poemas como “História” quando con- até molecas para a Casa-Grande.
frontado com a antológica “Negra Fulô” do Depois falou só,
livro anterior, que dá a impressão de saltar só diante da ventania
diretamente das páginas de Casa-Grande que ainda vem do Sudão;
& Senzala. Apesar das imagens afins, es- falou que queria fugir
pecialmente no que toca à sedução do sinhô dos senhores e das judiarias deste mundo
pela negra e à vingança da sinhá enciumada, para o sumidouro”.
a perspectiva brejeira com que Lima en-
focava Fulô é aqui abandonada em favor da Precursor de “Maria Diamba”, “Joa-
ótica solidária, irmanada ao sofrimento da quina Maluca” já tateava também, nos anos
ex-princesa africana, adquirida por um 20, as causas e o significado da leseira da
“caco de espelho”, deflorada pelo capitão, negra, embora de maneira ainda um tanto
possuída pelos marinheiros e ferrada com dubitativa e comprometida pela já mencio-
uma âncora nas ancas, durante a travessia nada visão moral de sujeira e vício. Não
para o Brasil, onde elevou em vão a voz em deixava, entretanto, de eximi-la de qual-
nagô para Oxalá, surdo a seus apelos. quer culpa:
O que me parece significativo em poe-
mas como “História” é o modo como o “Joaquina Maluca, você ficou lesa
enfoque lírico de Jorge, sem dispensar a não sei por que foi!
notação direta e objetiva, tende a privilegi- Você tem um resto de graça menina,
ar os mecanismos compensatórios, acio- na boca, nos peitos,
nados imaginariamente pelo negro na ten- não sei onde é…
tativa de evadir-se (14) vicariamente (ao
menos) do horror de sua condição, à qual Joaquina Maluca, você ficou lesa,
não faltam, bem o sabemos, requintes de não é?
perversidade de que Casa-Grande & Sen- Talvez pra não ver
zala é pródigo em exemplos, a despeito da o que o mundo lhe faz.
“visão edulcorada da colonização” em que Você ficou lesa, não foi?
insistem muitos de seus leitores. Tais me- Talvez pra não ver o que o mundo lhe fez.
canismos traduzem-se ora na religião, na Joaquina Maluca, você foi bonita, não foi?
magia e nas mandingas, como no próprio Você tem um resto de graça menina
“História”, em “Xangô”, “Quando Ele não sei onde é…
Vem”, entre outros; ora no fumo (maco-
nha), como no mesmo “Xangô” e “Cachim- Tão suja de vício,
bo do Sertão”. Podem, ainda, assumir for- nem sabe o que o foi.
mas mais elaboradas, inclusive artistica- Tão lesa, tão pura, tão limpa de culpa,
mente, de que é exemplo a música, em sua nem sabe o que é!”
riqueza e variedade de ritmos, como se vê
em poemas como “Pra Donde Você me Mas, quando nem mesmo a loucura é
Leva” e “Olá! Negro”. suficiente para aliviar os padecimentos da
Mas há ainda formas extremadas de realidade aviltante, resta a decisão trágica
evasão e alienação, como a loucura de “Ma- que corresponde à derradeira forma de eva-
ria Diamba”, falando só diante da ventania são: a morte, representada pelo afogamen-
que vem do Sudão: to de Celidônia, a “linda moleca ioruba” de
“Ancila negra”, que foi babá de Jorge na
“Para não apanhar mais infância e com quem – como de praxe –
falou que sabia fazer bolos: parece ter despertado para o sexo, confor-
virou cozinha. me sugerem alguns dos versos. A curiosa
Foi outras coisas para que tinha jeito. ênfase na necessidade de “recalque”, reite- 14 Esse caráter evasivo já foi, em
parte, sinalizado por Rodolfo
Não falou mais: rada no poema e associada à lembrança da Ilari no ensaio citado.

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morte de Celidônia, talvez se justifique pelo obra que se estende até o último livro (In-
fato de ela ter-se tornado verdadeira “ob- venção de Orfeu). Tanto um quanto outro
sessão durante toda a vida [do poeta], em versam sobre um tema caro à lírica de Jor-
particular no final, nas insônias trazidas pela ge de Lima, embora recorrente na nossa
doença”, segundo depoimento do amigo e tradição: a imagem das lavadeiras durante
confidente José Fernando Carneiro (15). ou depois da lida.
A meu ver, entretanto, isso não explica Na verdade, o primeiro retrata mais as
tudo. Tamanha ênfase parece atender à cantigas melancólicas entoadas pelas lava-
necessidade de aplacar a consciência dolo- deiras pensativas durante a lavagem e que,
rosa de uma culpa evidentemente social, pela sua beleza e leveza, têm o poder de
de classe, própria do neto de senhor de lavar “as almas dos pecadores”. Ou me-
engenho, que se sente responsável pela lhor, de lavar “as almas negras” que “pe-
morte da moleca, para quem essa era a única sam tanto” e “são tão sujas como a roupa”.
forma de fuga e libertação de sua condição Já no poema em prosa, vemos o poeta es-
– e é bem o número considerável de suicí- preitando o banho da lavadeira, após a fai-
dios entre os negros mergulhados no ban- na (como o faria em outro poema em prosa
zo. Nesse sentido, as duas últimas estrofes do livro, na companhia de um amigo de
do poema são mais significativas: infância). O quadro belíssimo é traçado com
a delicadeza da mão de um mestre – maestria
“Há muita coisa a recalcar e esquecer: de poeta-pintor –, num crescendo de ero-
o dia em que te afogaste, tismo que acompanha as rotas da mão de
sem me avisar que ias morrer, Zefa pelo corpo moreno até chegar ao sexo,
negra fugida na morte, no qual, diz o fecho do poema, “a África
contadeira de histórias do teu reino, parece dormir o sono temeroso de Cam”:
anjo negro degredado para sempre,
Celidônia, Celidônia, Celidônia! “[…] Depois de lavar a roupa dos outros,
Zefa lava a roupa que a cobre no momento.
Depois: nunca mais os signos do regresso. Depois, deixa-a corando sobre o capim.
Para sempre: tudo ficou como um signo Então Zefa lavadeira ensaboa o seu própria
[ressoando. corpo, vestido do manto de pele negra com
E eu parado em pequeno, que nasceu. Outras Zefas, outras negras vêm
mandingando e dormindo, lavar-se no rio. Eu estou ouvindo tudo, eu
muito dormindo mesmo”. estou enxergando tudo. Eu estou relem-
brando a minha infância. A água, levada
Diante de poemas como esse, torna-se, nas cuias, começa o ensaboamento; desce
mesmo, difícil afirmar uma perspectiva em regatos de espuma pelo dorso, e some-
exterior e puramente pitoresca, como que- se entre as nádegas rijas. As negras aparam
riam alguns dos críticos de Jorge de Lima, a espuma grossa, com as mãos em concha,
obrigando-nos a dar razão a Gilberto Freyre. esmagam-na contra os seios pontudos,
Mesmo que eles não correspondam à tota- transportam-na, com agilidade de símios,
lidade, nem sequer à maior parte da coletâ- para os sovacos, para os flancos; quando a
nea, com certeza obrigam os intérpretes pasta branca de sabão se despenha pelas
mais conseqüentes a certa cautela na acu- coxas, as mãos côncavas esperam a fugia
sação em bloco de gulodice de pitoresco. espuma nas pernas, para conduzi-la aos
Um derradeiro confronto poderia ser sexos em que a África parece dormir o sono
estabelecido entre o mais antigo “Canti- temeroso de Cam”.
gas” e o posterior “Zefa Lavadeira”, um
dos três poemas em prosa do livro, que é, O confronto entre ambos os poemas,
na verdade, um trecho de A Mulher Obscu- por um lado, revela um ganho para “Zefa
ra (1939), num exemplo do constante rea- Lavadeira” no sentido do aprofundamento
15 Apud Rodolfo Ilari, op. cit. proveitamento e ressignificação da própria de visão e de abandono daquela imagem

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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 meio de catequizar populações antes en-
1234567890123456789012345678901212345678901234567890
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 tregues ao fetichismo ou ao domínio do
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 Islão. Mercadores e ideólogos religiosos
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 do sistema conceberam o pecado de Cam
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 e a sua punição como o evento fundador
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 de um sistema imutável”. Por mais para-
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doxal que pareça, foi justamente com o
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 mito da danação de Cam e seus descen-
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 dentes que o vate libertário de 1868 deu
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 forma poética às suas “Vozes d’África”. O poeta Jorge
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 Vozes de uma África que, através da proso-
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de Lima
1234567890123456789012345678901212345678901234567890 popéia, alcança o estatuto de um ser indi-
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 vidual, ao qual se une a voz do poeta para,
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juntos, sofrerem e suplicarem, impoten-
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 tes, a um deus absconditus num céu de-
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 serto. “Aqui triunfa o absurdo de um cas-
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 tigo por uma culpa remota: daí a tra-
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 gicidade da situação de um continente in-
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 teiro à mercê [da] cólera onipotente” de
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1234567890123456789012345678901212345678901234567890 um “Deus terrível”, inamovível diante dos
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apelos de uma raça que, sem mesmo saber
comprometedora de sujeira, que ainda des- o motivo de sua pena, vê-se irremediavel-
ponta de forma ambígua em “Cantigas”. mente sujeita ao efeito do anátema que “se
Por outro lado, entretanto, desponta um reproduz de geração em geração, de tal
comprometimento de natureza diversa, que modo que a seqüência dos tempos […] em
não se limita à comparação com os símios, nada altera a intensidade da maldição ori-
mas diz respeito ainda à explicação mítica ginal.” Assim, ao inscrever o destino dos
da escravidão, evocada ao final do poema. africanos na esfera do mito, o nosso poeta
Nessa evocação do mito bíblico de Cam da abolição acabava, por mais contraditó-
(16), Jorge foi antecedido por Castro Alves rio que pareça, por reiterar e justificar o
– a quem, vale lembrar, o poeta alagoano irremediável da condição escrava (17).
dedicaria uma espécie de biografia em ver- Muito embora não haja, em Jorge, a
sos, bem ao sabor do cancioneiro popular. contradição de base da poesia castralvina,
A menção ao mito em “Vozes d’África” entre o anseio libertário e a naturalização
foi objeto de uma análise arguta de Alfredo mítica da escravidão, esta entretanto ten-
Bosi, que nela reconheceu um “arcaísmo de a ser perpetuada: uma vez fecundado,
de perspectiva” e uma contradição de base o ventre de Zefa fará despertar a antiga
no projeto libertário do nosso poeta dos maldição que paira sobre sua raça, justifi-
escravos, na medida em que, ao explicar o cando o horror da condição a que se en-
fenômeno total do cativeiro como produ- contra relegada. Nesse sentido, a forma- 16 Como se deve saber, trata-se
to de uma culpa exemplarmente punida, ção e a perspectiva cristãs de Jorge se, por de um dos filhos de Noé, que,
ao ver a nudez do pai embria-
acaba por justificá-la. Como lembra o crí- um lado, possibilitaram a atitude fraterna, gado e denunciá-la aos irmãos,
franciscana em relação à dor do negro, foi reduzido à condição de
tico, a “referência à sina de Cam circulou
escravo destes por maldição
entre os séculos XVI e XVIII, quando a tão louvada por Freyre, por outro ameaça- paterna. À descendência de
Cam, correspondente ao povo
teologia católica ou protestante se viu ram-no de descambar para aceitação con- africano, caberia expiar a cul-
confrontada com a generalização do tra- formista dessa mesma dor expiatória – nis- pa de seu antepassado, redu-
zido à condição escrava.
balho forçado nas economias coloniais. O so se afastando por completo da lição do
17 Alfredo Bosi, “Sob o Signo de
velho mito serviu então ao novo pensa- mestre de Apipucos que, de acordo com Cam”, in Dialética da Coloni-
zação, São Paulo, Companhia
mento mercantil, que o alegava para jus- um de seus melhores intérpretes, furtou- das Letras, 1995, pp. 254-61.
tificar o tráfico negreiro, e ao discurso se por completo à explicação mítico-cris-
18 Ricardo Benzaquen de Araú-
salvacionista, que via na escravidão um tã da escravidão (18). jo, op. cit.

REVISTA USP, São Paulo, n.59, p. 224-231, setembro/novembro 2003 231

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