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13290-Texto Do Artigo-16263-1-10-20120517
13290-Texto Do Artigo-16263-1-10-20120517
NEGROS
Um diálogo poético
de Jorge de Lima e Gilberto Freyre
VAGNER CAMILO
VAGNER CAMILO
é professor de Literatura
Brasileira da USP e autor
de Drummond: da Rosa
do Povo à Rosa das Trevas
O presente ensaio reproduz, com
(Ateliê Editorial). pequenas modificações, a comu-
nicação apresentada na Jornada
de Estudos Gilberto Freyre, organi-
zada pelos professores Ethel V.
Kosminsky, Fernanda Arêas Peixo-
to e Claude Lèpine na Universida-
de Estadual Paulista (Unesp), em
novembro de 2000, por ocasião
das comemorações do centenário
de nascimento do antropólogo
pernambucano.
REVISTA USP,
REVISTA USP, São
São Paulo,
Paulo, n.59,
n.59, p.
p. 224-231,
224-231, setembro/novembro
setembro/novembro 2003
2003 225
Não bastasse o privilégio das ilustra- viva constituída por elementos genuina-
ções de Segall, a edição numerada de Poe- mente brasileiros, essenciais ao desenvol-
mas Negros trazia ainda um prefácio da- vimento da nossa cultura em expressão ho-
quele cujo pensamento, afinal de contas, nesta do nosso ethos, da nossa história e da
havia atuado, em boa medida, na gênese nossa paisagem e em instrumento de nos-
desses mesmos versos: Gilberto Freyre. O sas aspirações e tendências sociais como
prefácio interessa por mais de um motivo, povo tanto quanto possível autônomo e
além, é claro, do que revela sobre a poesia criador”.
negra de Jorge de Lima – da qual me ocu-
parei adiante. Essa influência é reconhecida, inclusi-
Primeiramente, ele surpreende por nada ve e sobretudo, em uma das expressões mais
ostentar da antiga animosidade para com o autênticas desse movimento nordestino: a
modernismo paulista, ao qual se refere poesia afro-nordestina do autor de “O
expressamente. Rompe-se, assim, com a Mundo do Menino Impossível”.
imagem do líder empenhado em reivindi- Afora a atitude em face do modernis-
car a todo custo não só a maior importân- mo, o prefácio também surpreende pelo
cia, como também a plena autonomia do modo como Freyre rompe certo consenso
movimento regionalista do Nordeste, so- em torno do confronto entre a poesia negra
bretudo em relação a possíveis influências do Brasil e a dos Estados Unidos: enquanto
provenientes do modernismo paulista – esta, feita pelos próprios negros, parece,
visto como produto da emulação européia para alguns, guardar certa vantagem (se é
e, portanto, longe das nossas raízes autên- possível colocar a questão nesses termos)
ticas. Tamanho empenho já foi interpreta- em relação à primeira, feita predominante-
do como decorrência do ressentimento pela mente por brancos, numa atitude que bem
perda do poder econômico e político da atesta sua dimensão paternalista, para
região nordestina em benefício, justamen- Freyre, ao contrário, a vantagem estaria
te, do Centro-Sul (em especial, São Paulo). conosco. A seu ver, a poesia negra norte-
Buscava-se, assim, agonicamente, uma americana, justamente porque feita por
compensação, no plano da cultura, a essa negros, revelaria um caráter segregacionista
perda, reivindicando para o Nordeste o e ressentido, hostil em relação ao branco,
papel de depositário das raízes mais auten- ao passo que a brasileira seria produto do
ticamente brasileiras, porque não sujeito, fraternalismo e da democracia, de que é
como o Centro-Sul, às influências vindas exemplo a obra de, entre outros, um Castro
de fora (3). Alves, um Ascenso Ferreira, o próprio
Sem deixar de insistir na importância e Mário de Andrade e, é claro, Jorge de Lima.
distinção de “um movimento nordestino de Passemos enfim a este último – ou
renovação das letras, artes e cultura brasi- melhor, às considerações de Freyre a pro-
leira”, o fato é que o prefácio de Freyre fala pósito da poesia afro-brasileira do poeta
agora em termos de troca, de reciprocida- alagoano em que se reconhece muito da
de. Uma via de mão dupla entre o moder- influência de seu próprio pensamento. Lei-
nismo paulista e o “movimento do Nordes- tor e mentor intelectual encontram-se, as-
te”, definido (numa humildade em boa sim, na nostalgia do bangüê e das relações
medida retórica, é verdade) como uma es- cordiais por ele engendradas, em oposição
pécie de “parente pobre”, capaz entretanto, à usina; no mito da “democracia racial”; ou
no dizer de Freyre, mesmo no “estilo franciscano” da lírica
3 Ver, em especial, José Maurí- limiana. Além disso, é possível reconhecer
cio Gomes de Almeida, A Tra-
dição Regionalista no Roman-
“de dar ao [parente] rico valores já quase em muitos poemas um movimento solidá-
ce Brasileiro, Rio de Janeiro, despercebidos de outras partes do Brasil e rio em direção ao negro – ressaltado, aliás,
Topbooks, 1999; e Moema
Selma D’Andreia, A Tradição necessitados apenas de novos estímulos pelo próprio prefaciador – que, sem refutar
Re(des)coberta: Gilberto Freyre vindos do Sul e do estrangeiro para se inte- de todo, tende todavia a relativizar o fa-
e a Literatura Regionalista, Cam-
pinas, Ed. Unicamp, 1992. grarem no conjunto da riqueza circulante e migerado compromisso de classe da ótica
nordestino total, de corpo colorido por cia que, segundo Edmund Leites, resume a 6 A referência à ética protestan-
te, aqui, é, sem dúvida, o clás-
jenipapo e marcado por catapora, não [es- totalidade da visão de mundo protestante, é sico estudo de Max Weber, A
quece] que ‘a bisavó dançou uma valsa com ainda possível reconhecer a presença sor- Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, São Paulo, Pio-
D. Pedro II’, nem que o avô teve bangüê”. rateira de Freyre. Penso aqui não só na for- neira Thomson Learning, 2001.