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São Paulo
2018
FACULDADES INTEGRADAS RIO BRANCO
São Paulo
2018
Presidente da Fundação de Rotarianos de São Paulo
Dr. Nahid Chicani
Orientação
Prof. Dr. Sérgio Gil Marques dos Santos
CDD – 320.973
A meus sobrinhos
A Sérgio Gil, meu professor e orientador, que não só abraçou o tema de minha
monografia, como se disponibilizou a receber-me em sua casa para termos nossa última
orientação. Apesar de minha ausência na maioria das orientações, agradeço pela paciência e
pelos conselhos, tanto acadêmicos quanto pessoais. Espero que possamos estender nossos
debates gastronômicos sempre que possível.
A meus pais, Luiz Carlos e Marlene, pelo amor incondicional. Agradeço o esforço que
realizam em tempo integral em prol do sucesso e felicidade de seus filhos. E aos meus irmãos,
Gabrielle e Luis Henrique, pelo apoio em meus projetos e por presentear-me com sobrinhos
tão amados.
A meus melhores amigos Rafael Torres, Adriano Nevado e Giovani, que estiveram ao
meu lado em todos os meus momentos, fossem eles tristes ou felizes. Agradeço por ter vivido
junto a vocês tantas fases e descobertas nesses sete anos de amizade e companheirismo.
A Marina Maranhão, amiga que tive a sorte de conhecer na Hamburg-Süd, e que sabe
como ninguém o quanto o ano de 2018 contribuiu para nosso amadurecimento, mesmo que da
forma mais dura. Agradeço pelo apoio, ensinamentos e pela companhia na hora de descontar
os problemas em comida.
A Marina Kao e Bárbara Carvalho, pela paciência e pelos conselhos nestes últimos
meses realizando o presente trabalho.
Aos amigos que fiz nas Faculdades Integradas Rio Branco Victória, Marina, Michelle,
Natalia, Bruna, Larissa, Lucas e Bianca, pela companhia nas aulas e por compartilhar a
mesma jornada de conquistas e desespero de nossa graduação.
Ao corpo docente das Faculdades Integradas Rio Branco, pela imensa contribuição em
minha formação profissional, acadêmica e pessoal nos quatro anos de graduação. Apesar de
colaborar com o amadurecimento de minha visão de mundo e da sociedade, afirmo que os
sonhos do Adriano de 2015 não mudaram.
RESUMO
A presente monografia versa sobre a alimentação e o ativismo político nos Estados Unidos
durante as décadas de 1960 e 1970. O trabalho destaca a alimentação norte-americana desde o
início do século XX até o final da década de 1970, relacionando-a a um agente político a
partir da análise da propaganda alimentar disseminada durante e após a Segunda Guerra
Mundial, e da simbologia alimentar presente nos movimentos de rejeição ao consumo de
alimentos industrializados. O trabalho baseia-se tanto em fontes primárias (websites e
documentários), quanto em fontes secundárias (livros e artigos de periódicos). Ao final do
trabalho, conclui-se que a difusão da cultura dominante norte-americana pela propaganda de
alimentos industrializados contribuiu para a valorização do alimento fresco como forma de
resistência e identidade dos movimentos políticos das décadas de 1960 e 1970.
The present monograph has, as a main theme, food and political activism in the United States
during the 1960s and the 1970s. The study highlights the American food habits since the
beginning of the 20th century until the 1970s, regarding it to a political agent by the analysis
of food propaganda disseminated during and after World War Two, and food symbology
included in movements that rejected the consumption of industrialized food. The study
grounds itself in primary sources (websites and documentaries) and secondary sources (books
and periodical articles). By the end of this study, it is concluded that the diffusion of the
dominant American culture by the food industry advertising contributed to the valorization of
fresh food as a form of resistance and identity of the political movements from the 1960s and
1970s.
Key words: Food, Organic food, Food Industry, Counterculture, Political activism.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA III – Can all you can, it’s a real war job! (1943) ………………………………..…21
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 9
CAPÍTULO I: A ALIMENTAÇÃO NORTE-AMERICANA NA PRIMEIRA METADE DO
SÉCULO XX ........................................................................................................................................ 12
1.1 Da Primeira Guerra Mundial ao período Entreguerras.......................................................... 13
1.2 A Segunda Guerra Mundial................................................................................................... 15
CAPÍTULO II: A ALIMENTAÇÃO NORTE-AMERICANA APÓS A SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL ............................................................................................................................................ 24
2.1 A indústria de alimentos e o American way of life ...................................................................... 34
2.2 A indústria de alimentos e a Guerra Fria..................................................................................... 37
CAPÍTULO III: A ALIMENTAÇÃO NORTE-AMERICANA E O ATIVISMO POLÍTICO NAS
DÉCADAS DE 1960 E 1970 ................................................................................................................ 39
3.1 O movimento dos Direitos Civis e do Black Power.................................................................... 41
3.2 O movimento Hippie ................................................................................................................... 43
3.3 O movimento ambientalista ........................................................................................................ 46
3.4 O movimento dos alimentos orgânicos ....................................................................................... 47
CONCLUSÃO ...................................................................................................................................... 51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................. 53
INTRODUÇÃO
1
Festa do Chá de Boston (tradução do autor).
10
relacionem a alimentação além dos estudos científicos voltados aos valores nutricionais do
alimento. Esse trabalho busca, portanto, contribuir para o estudo da alimentação como ator
político e social, contextualizando com o estudo das relações internacionais.
No primeiro capítulo, destaca-se a alimentação norte-americana desde o início do
século XX ao fim da Segunda Guerra Mundial. A partir da análise histórica do
desenvolvimento tecnológico norte-americano ao final do século XIX, é abordada a alteração
dos hábitos alimentares dos cidadãos norte-americanos com o crescimento da população
urbana e com o advento de duas guerras mundiais. Durante o período da Segunda Guerra
Mundial, é analisada a propaganda do programa de racionamento de alimentos do governo
norte-americano, que buscava balancear a demanda interna de alimentos com o envio de
suprimentos às forças armadas e aos aliados em guerra, e que contribuiu para a inserção dos
alimentos processados nos hábitos alimentares norte-americanos.
No segundo capítulo, são abordados os motivos os quais contribuíram para o sucesso
da indústria de alimentos após a Segunda Guerra Mundial. Dentre eles, o principal é a
propaganda disseminada pela indústria de alimentos para estimular o consumo de alimentos
congelados, enlatados e desidratados, com a promessa de preço baixo e facilidade e rapidez
no preparo. É posto em análise que, de uma forma direta, a propaganda de alimentos
estimulava a defesa do estilo de vida desejável pelo norte-americano de classe média e, de
uma forma indireta, a propaganda de alimentos foi um meio de disseminação da política da
Guerra Fria em defesa da supremacia do capitalismo norte-americano sobre ao socialismo da
União Soviética.
No terceiro capítulo, é analisada a relação entre a rejeição do consumo de alimentos
industrializados e os movimentos políticos das décadas de 1960 e 1970. A Segunda Guerra
Mundial contribuiu para o desenvolvimento tecnológico que não só deu origem a alimentos
industrializados, como também criou os pesticidas e os fertilizantes artificiais, aumentando a
disponibilidade de alimentos ao mercado consumidor. Entretanto, uma onda de desconfiança
na utilização de químicos artificiais para produção de alimentos se une às insurgências sociais
da década de 1960, descontentes com a guerra, a segregação racial, desigualdade econômica e
de gênero.
11
CAPÍTULO I: A ALIMENTAÇÃO NORTE-AMERICANA NA PRIMEIRA METADE
DO SÉCULO XX
14
geraram uma queda nos preços e nas exportações. Esse conjunto de eventos internos norte-
americanos, e não somente a quebra da bolsa de valores de Nova York (1929), foram os
fatores principais para a crise mundial, transferindo-se à Europa e gerando uma queda do
comércio internacional e uma onda de desemprego. Os países novos foram afetados pela
queda do consumo de produtos agrícolas pela Europa (CERVO, 2007).
O período do Entreguerras não alterou a situação do consumo de alimentos pelos
cidadãos norte-americanos. Ainda havia um alto índice de desnutrição causada pela má
distribuição de renda no país. Esse cenário foi intensificado no período da Depressão, quando
os níveis de desemprego e pobreza atingem seu pico mais alto da metade do século. A crise
também afetou os agricultores, ao passo que a alta produção voltada à exportação não era
suportada pela baixa demanda, criando um excedente. De acordo com o documentário Food
Fight: revolution never tasted so good (2008), dirigido por Christopher Taylor, o excedente
agrícola produzido no período da Depressão fez com que diversos agricultores fossem à
falência. Sendo assim, Estado norte-americano financiou os agricultores para que não
produzissem tanto, mantendo minimamente seus suprimentos, visando manter uma
estabilidade de seu lucro (FOOD FIGHT, 2008).
2
Dados extraídos do sítio na internet do Museu Nacional da Segunda Guerra Mundial de Nova Orleans, EUA.
15
por não estarem no peso ideal para contribuir para as forças armadas norte-americanas. O
Estado norte-americano busca, frente a este problema, formas de contribuir com o consumo
diário de calorias pelos soldados. Com efeito, neste período, a indústria de alimentos galga
seu sucesso com a produção de rações para soldados. O Estado necessitava de alimentos que
apresentassem fácil manuseio, durabilidade e que contemplassem o maior número de calorias
a serem consumidas pelos soldados em cada refeição (FOOD FIGHT, 2008). Além de
fornecer alimentos aos soldados, o Estado procurava balancear o consumo interno de produtos
alimentícios e as exportações aos países em guerra.
Visando à estabilização da economia e a suficiência de produtos alimentícios face à
iminência de uma participação efetiva na Guerra, o presidente Franklin Roosevelt criou o
Office of Price Administration 3 (OPA) em abril de 1941. Segundo Cantrell (2018), as
mulheres eram o público alvo da OPA no planejamento alimentar. A OPA esperava
que participação feminina no consumo e no preparo de alimentos pudesse contribuir para a
distribuição democrática e uniforme de alimentos no país. Sendo assim, em conjunto com o
Office of War Information4 (OWI), órgão criado em junho de 1942, a propaganda voltada à
alimentação e as políticas de racionamento durante a Guerra enfatizavam o papel da mulher
na alimentação da família e de suas escolhas como consumidora dentro dos esforços para a
Guerra (CANTRELL, 2018).
O programa principal realizado pela OPA consistia no racionamento de alimentos
oferecidos à população norte-americana. Para isso, após o registro, o Estado distribuía cupons
à população e, separado em comunidades espalhadas pelo país, o programa concedia às
mulheres a função de controle e distribuição de cupons. Uma vez que os alimentos enlatados
eram o principal produto enviado aos soldados e aos aliados, houve uma carência de materiais
para o enlate voltados ao mercado interno. Sendo assim, os alimentos que sofreram
racionamento durante a Guerra foram carnes, legumes e vegetais enlatados, bem como
papinhas para bebês. Além disso, a OPA racionou uma variedade de alimentos com grande
quantidade de proteína, como alguns laticínios, queijos e a maioria das carnes disponíveis no
mercado. Os alimentos que não foram racionados foram a carne de frango, ovos, leite fresco e
miúdos (CANTRELL, 2018).
3
Escritório de Administração de Preços (tradução do autor). O órgão tinha como função o controle de gastos
durante a Segunda Guerra Mundial.
4
Escritório de Informações de Guerra (tradução do autor). O órgão tinha como função a informação
governamental à população norte-americana sobre a Segunda Guerra Mundial.
16
FIGURA I
Do with less, so they’ll have enough! (1943)
18
FIGURA II
19
direita levantada, ela realiza o juramento escrito no cartaz: “I make this pledge: I pay no more
than top legal prices; I accept no rationed goods without giving up ration stamps”.6
As cores presentes no cartaz na Figura II também refletem a propaganda do Estado
sobre a Guerra. O fundo azul com estrelas brancas, em conjunto com o vestido vermelho e o
avental branco, fazem menção às cores da Bandeira Nacional dos Estados Unidos, evocando
um sentimento militar no fronte civil. Nesse sentido, o juramento da frente civil norte-
americana indicado no cartaz faz uma alusão a um juramento à Bandeira Nacional e, por
conseguinte, assim como os soldados que lutavam na Guerra, as mulheres ao seguir este
juramento se mostrariam fiéis à sua pátria e contribuiriam para os esforços da Guerra.
Outro fator ligado ao cartaz da Figura II é a utilização da imagem da mulher norte-
americana ideal: jovem, branca, saudável e que representava tanto uma imagem maternal e
protetora, fiel ao seu lar e à sua família, quanto a imagem de uma mulher séria, forte e fiel à
sua pátria. Cantrell (2018) analisa que o maior obstáculo enfrentado pela propaganda da OWI
para efetuar o programa de racionamento era justamente basear seus informativos em uma
imagem ideal da mulher norte-americana. Por conseguinte, grande parte da população
feminina norte-americana, em especial a população negra, latina e indígena, não de
identificava com as propagandas do Estado (CANTRELL, 2018).
A conotação das propagandas que entoavam imagens femininas e equiparava o
compromisso ao programa de racionamento ao serviço militar e à contribuição efetiva aos
esforços para a Guerra, fizera com que o programa da OPA tivesse seu sucesso. Segundo
Weatherford (2009), um artigo semanal de 1941 exprimia que “milhares de mulheres se
sentem incapazes de encontrar maneiras construtivas de contribuir com defesa nacional, e
organizações femininas foram abafadas” (WEATHERFORD, 2009, p. 229).7 Sendo assim, a
OPA tornou o racionamento de alimentos a raíz do patriotismo e da contribuição feminina
durante a Segunda Guerra Mundial e, de alguma forma, influiu na defesa feminina do
American way of life.
6
Eu faço este juramento: eu não pagarei nada além dos preços ilegais; eu não aceitarem bens racionados sem
antes entregar meus cupons de racionamento (tradução do autor).
7
Tradução do autor.
20
FIGURA III
Can all you can, it’s a real war job! (1943)
21
que entoa “can all you can, it’s a real war job!”.8 Com esse cartaz, que apresenta um pote de
vidro com tampa com a finalidade de um recipiente para conservas caseiras rodeado por
coloridas frutas e hortaliças. O cartaz não só fomentava ao processamento caseiro de
alimentos, como também a produção e consumo de alimentos locais. A intenção da OWI era
fazer com que os alimentos enlatados produzidos industrialmente fossem direcionados para os
soldados norte-americanos e aliados, encorajando a conservação caseira de frutas, vegetais e
carnes. A produção local ainda era muito presente, uma vez que boa parte da população norte-
americana ainda era rural.
Mais uma vez, a propaganda da Figura III tinha seu cerne na participação feminina do
fronte civil. Dessa vez, a participação vinha no ato de preparar o alimento e processá-lo em
casa, ao invés de se dirigir ao programa de consumo de alimentos racionado por cupons.
Cantrell (2018) analisa que o sucesso deste cartaz se deu justamente devido ao apelo pelo
esforço feminino na preparação do alimento e da nutrição da família como um esforço efetivo
nos esforços da Guerra (CANTRELL, 2018). A frase “é um trabalho efetivo para a Guerra!”
conduzia a uma dona de casa não só o reconhecimento de sua importância na esfera
doméstica, como também sua contribuição militar.
Segundo Siebel (2016), em um dos guias distribuídos pela OWI9 em 1945 havia uma
lista de métodos e técnicas de conservação de alimentos. As publicações incluíam “secagem
em forno convencional; enlate caseiro de carne; conserva de vegetais em salga ou salmoura;10
11
e muito mais” (SIEBEL, 2016, p. 53). Sendo assim, as conservas de alimentos não só
beneficiavam o programa de racionamento de alimentos ao diminuir o consumo doméstico,
mas também iriam auxiliar, mais tarde, nos hábitos de consumo e na alimentação dos norte-
americanos. Uma vez exercitado o ideal de que alimentos processados eram mais seguros,
saudáveis e claro, demonstravam o patriotismo a uma nação em meio a uma guerra mundial, o
paladar e a saúde de toda uma nação estava pronta para a indústria de alimentos.
A transformação dos hábitos alimentares dos norte-americanos a partir do advento da
indústria de alimentos tem ligação direta com o contexto interno e externo causado pela
8
Enlate tudo o que puder, é um trabalho efetivo para a Guerra! (tradução do autor).
9
Durante a Segunda Guerra Mundial, o Escritório de Informação de Guerra (OWI) produzia e distribuía, além de
cartazes, revistas com guias para o programa de racionamento do Escritório de Administração de Preços (OPA).
Estes guias continham não só métodos e técnicas de processamento de alimentos, como também de reutilização
de vestes e plantio de frutas e vegetais em casa (CANTRELL, 2018).
10
A diferença básica entre os termos salga e salmoura se dá pela adição de água durante o processo de
conservação do alimento. A conservação no sal a seco é chamada de salga, utilizada com freqüência na
conservação de carnes na charcutaria. Uma solução de água e sal é chamada de salmoura, utilizada na
conservação de vegetais (WRIGHT e TREUILLE, 2014).
11
Tradução do autor.
22
Segunda Guerra Mundial. Apesar de desenvolvimento significativo da produção a partir do
início do século XX, a população urbano-industrial em crescimento não tinha acesso a estes
alimentos, sobretudo, em razão da má distribuição de renda. O quadro de má alimentação se
perdura durante a Primeira Guerra Mundial e se intensifica no período da Grande Depressão.
Com o início da Segunda Guerra Mundial, a situação da alimentação dos cidadãos nos
Estados Unidos começa a ser modificada. Com os programas de racionamento de alimentos
da OPA, o Estado norte-americano pôde equilibrar a demanda interna de alimentos e o envio
de suprimentos às forças armadas nacionais e aliadas. Com a propaganda criada pela OWI, a
população civil, em especial as donas de casa, foi estimulada ao consumo de processados
como forma nacionalista de contribuição para os esforços da Guerra. Assim, ao final da
Segunda Guerra Mundial, a população norte-americana estava condicionada ao consumo de
alimentos industrializados, restando somente aos fabricantes a tarefa de inovar para a criação
de alimentos industrializados que fossem visualmente atrativos e que prometessem
conveniência aos consumidores.
23
CAPÍTULO II: A ALIMENTAÇÃO NORTE-AMERICANA APÓS A SEGUNDA
GUERRA MUNDIAL
A Segunda Guerra Mundial trouxe consigo uma alteração em toda a lógica política,
econômica e social no mundo. A partir do grande desenvolvimento tecnológico e militar, os
Estados Unidos da América ascendem como novo e exclusivo centro do capitalismo mundial.
O evento principal nas relações internacionais é o da intensificação da atividade dos Estados
Unidos da América com países do continente europeu e asiático, principalmente no que toca o
comércio internacional. É a partir deste evento que notamos, portanto, uma transmissão dos
hábitos de consumo norte-americanos a esses países e, sobretudo, na América Latina, onde os
EUA já apresentavam maior contato.
Segundo Saraiva (2007), o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, em 1945,
simbolizou não só a ruína da velha ordem mundial, como também o declínio de mais uma
potência emergente do período do Entreguerras: o Japão, derrotado em conjunto de Berlim.
Nos quinze anos seguintes, a nova ordem internacional só teria dois polos fundamentais:
Washington e Moscou (SARAIVA, 2007). Diferentemente do ocorrido após a Primeira
Guerra Mundial, os Estados Unidos tomam medidas muito diferentes do tradicional
isolacionismo. Visto os efeitos causados pela Grande Depressão e a oportunidade de se
posicionar internacionalmente como centro mundial do capitalismo, os EUA toma as rédeas
para se tornar uma nova potência hegemônica, dando fim ao ciclo anterior.
O fim da Guerra representou também o fim dos programas de racionamento do
governo norte-americano. Não era mais necessário o envio de alimentos para os soldados
norte-americanos e aliados, e muito menos a diminuição do consumo doméstico de alimentos.
Nesse contexto, a indústria de alimentos norte-americana não se deparava somente com a
expansão de seu mercado fora dos EUA, até a metade da década de 1960, os alimentos
industrializados desempenham grande papel no estilo de vida do cidadão norte-americano.
Durante a Segunda Guerra, o Estado norte-americano buscou balancear o consumo
doméstico de alimentos com o envio de suprimentos aos soldados e aliados por meio dos
programas de racionamento, os quais enfatizavam o consumo controlado de alimentos e o
processamento caseiro de alimentos em conservas como parte dos esforços da Guerra,
incitando ao patriotismo ao equiparar o serviço militar com o racionamento de alimentos. Por
24
conseguinte, os alimentos processados se fizeram presentes nos hábitos alimentares dos
cidadãos norte-americanos, seja no fronte doméstico, com a presença de conservas caseiras,
enlatados e de substitutos de alimentos racionados, 12 ou no campo de batalha, onde os
soldados consumiam rações que continham alimentos industrialmente processados, como
enlatados, biscoitos e alimentos desidratados.
O pré-condicionamento da população norte-americana ao consumo de alimentos
processados durante a Segunda Guerra Mundial foi crucial para o auge da indústria de
alimentos durante os quinze anos seguintes a 1945. Segundo Siebel (2016), a propaganda
disseminada pelo governo norte-americano, incentivou o consumo de alimentos
industrializados e, dado o esgotamento das conservas caseiras como um dever patriota após a
Segunda Guerra, os cidadãos norte-americanos já estariam aptos a consumir os produtos da
indústria de alimentos ao passo que produtos similares já eram produzidos e consumidos em
suas próprias cozinhas (SIEBEL, 2016).
12
Durante o período da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, alguns alimentos industrializados se
popularizam na alimentação dos cidadãos norte-americanos. A margarina, por exemplo, presente nos EUA desde
o final do século XIX, teve seu consumo popularizado por ser mais barata e durável que a manteiga.
25
FIGURA IV
26
O cartaz de 1943 da OPA intitulado “Eat the basic 7...every day!” 13 presente na Figura IV
exemplifica o quadro nutricional da alimentação dos cidadãos norte-americanos durante e
após a Segunda Guerra. Nele estão presentes sete grupos de alimentos sugeridos a serem
consumidos diariamente. Não há distinção de valor nutricional entre alimentos frescos e
processados nestes grupos. Igualmente, há a indicação de substitutos de alimentos frescos,
equiparando seus valores nutricionais. Nota-se, por exemplo, que no Grupo um, é
recomendado o consumo diário de vegetais verdes e amarelos, sejam eles frescos, congelados
ou conservados em salmoura. Já no Grupo quatro, recomenda-se o consumo diário de leite e
derivados, sejam eles fluidos (frescos), evaporados, em pó ou em forma de queijo. Além
disso, em volta do círculo que indica os sete grupos, estão presentes desenhos acompanhados
de frases que reforçam os benefícios do consumo dos alimentos apontados; há frases como:
“te protege de doenças”, “alcança sucesso para a energia”; “combate a sensação de cansaço”,
“constrói músculos” e “te ajuda a concluir as tarefas”. 14 Siebel (2016) analisa que, “ser
encorajado alimentar-se de um produto de cada grupo diariamente significava consumir uma
miríade de alimentos industrializados no lugar de frescos ou não industrializados para suprir
uma quota diária” 15 (SIEBEL, 2016, p.53).
Amy Bentley, autora do livro Inventing Baby Food: Taste, Health and the
Industrialization of American Diet (2014), estuda o papel da industrialização da comida
infantil – as “papinhas” – na cultura ocidental e, sobretudo, nos hábitos alimentares norte-
americanos. As papinhas tiveram, assim como a maioria dos alimentos processados, seu auge
durante as décadas de 1950 e 1960 onde, em pleno período de Guerra Fria, havia o
pensamento nos Estados Unidos de que se deveriam criar crianças fortes e competitivas. Tal
pensamento ia de conjunto às propagandas de comida infantil, que prometiam todos os
nutrientes necessários para a alimentação infantil (BENTLEY, 2014).
O desenvolvimento científico, militar e tecnológico foi nevrálgico para o êxito da
indústria de alimentos a partir de 1945. De fato, durante os períodos de guerra, os Estados
participantes se vêem coagidos a participar de uma corrida de desenvolvimento científico-
tecnológico e, sobretudo, militar, para efetuar sucesso nas batalhas. O período da Segunda
Guerra não foi diferente: como nunca antes, houve um intenso esforço de todos os
participantes da Guerra para este desenvolvimento. Com isso, a humanidade avançou seus
estudos em diversos campos: na medicina, com a criação de novos medicamentos; na química
13
Coma os 7 alimentos básicos...todos os dias! (Tradução do autor).
14
Tradução do autor.
15
Tradução do autor.
27
e na física, com a criação de armas nucleares; na indústria bélica, com o surgimento de novos
armamentos; e na indústria de alimentos que, com o desenvolvimento químico, impulsionou o
surgimento de novos produtos alimentícios artificiais.
A partir do final da década de 1930, a indústria de alimentos inicia uma corrida de
inovação e desenvolvimento de novos produtos. A experiência da Segunda Guerra mundial
proporcionou à indústria a oportunidade de criar produtos voltados ao consumo no campo de
batalha, sobretudo, os alimentos enlatados, desidratados e solúveis, que proporcionavam fácil
manuseio e durabilidade ao conferir calorias aos soldados. Segundo Shapiro (2004), com o
fim da Guerra, a indústria de alimentos finda sua produção voltada aos soldados, e encontra a
tarefa mais desafiadora de sua história: criar um mercado lucrativo para os alimentos da
Guerra. Durante o período da Segunda Guerra, fabricantes de alimentos e de embalagens
desenvolveram grande eficiência nos esforços da guerra, não se limitando somente à tarefa de
manter as prateleiras dos mercados norte-americanos devidamente abastecidos, mas também
ao desenvolver uma miríade de alimentos projetados para o consumo das forças armadas em
qualquer lugar. Assim, após 1945, as indústrias estavam dispostas a não só preservar, como
também a desenvolver ainda mais suas criações (SHAPIRO, 2004).
Muito do que foi produzido pela indústria de alimentos após a metade da década de
1940 mantinha a mesma ideia seguida durante o período Guerra: os produtos deveriam ser
baratos, duráveis e, sobretudo, convenientes. Muitos dos alimentos produzidos
industrialmente após a Guerra seguiam os moldes das rações enviadas aos soldados. A ração
mais popular durante a Segunda Guerra foi a Ração K, demonstrada na Figura V, oferecia três
refeições aos soldados. A Ração K foi criada em 1942, e seu conteúdo era maior e mais
nutritivo do que as rações anteriores. As Rações K sempre continham algum alimento
enlatado, como ovos e presunto, carne suína ou bovina, os quais deveriam ser aquecidos para
o consumo; bebidas solúveis, como chocolate maltado, sucos e café; doces, como chocolates,
caramelos e chicletes; cigarros e fósforos; e, por fim, condimentos em pó e lenços de papel.16
16
Dados extraídos do sítio da internet Box Vox.
28
FIGURA V
17
Tradução do autor.
29
A conveniência foi, e ainda é intensamente enfatizada pela indústria de alimentos para
induzir os consumidores a comprarem seus produtos. A Guerra viabilizou o surgimento de
equipamentos que facilitariam a produção e consumo de alimentos. Com efeito, o avanço do
desenvolvimento de aparelhos refrigeradores, fornos de microondas e produtos de plástico,
tornaram a produção, o consumo e o conservação de alimentos mais simples e prática. Com
isso, a indústria de alimentos inicia uma corrida de inovações em nome da conveniência.
Além da variedade de produtos enlatados, popularizados desde antes da Segunda Guerra
Mundial, que ofereciam uma infinidade de carnes, sopas e cremes, a indústria surgiu com
novas ideias para atrair consumidores. Desse modo, a especialização dos fabricantes em seu
ramo aumentava de maneira proporcional à sua popularidade. Todavia, muitos destes
produtos enfatizavam a facilidade e velocidade do preparo no lugar na excelência do produto.
Um exemplo destas novas invenções foi a torta de maçãs da companhia General Mills,
nomeada “Pyequick”, 18 oferecia uma torta inteira em um pacote. Uma caixa de Pyequick
continha um saco de maçãs desidratadas e um saco de mistura de massa. Ao comprar
Pyequick, a “Sra. Dona de Casa” preparava a sobremesa favorita dos Estados Unidos da
forma mais fácil possível. Na propaganda do produto, havia duas imagens: uma mostrava a
situação onde a dona de casa preparava uma torta de maçãs da forma tradicional, executando
muito esforço e bagunça; na outra situação, havia a facilidade do preparo de Pyequick, na qual
a dona de casa se mostrava extremamente tranquila em seu preparo (SHAPIRO, 2004).
De todos os produtos que estavam sendo inventados após a metade da década de
1940, aqueles que mais lograram sucesso eram as comidas congeladas. De maneira distinta às
comidas enlatadas e desidratadas, a comida congelada proporcionava não só a ilusão de
frescor, como também a eliminação da maioria do esforço do preparo de alimentos. Shapiro
(2004) analisa que os produtos congelados se faziam presentes nos mercados desde a década
de 1930, porém, a maioria dos norte-americanos só foram introduzidos ao conceito dos
alimentos congelados durante o período de guerra. Enquanto fabricantes de alimentos
enlatados e desidratados direcionavam sua atenção ao consumo no campo de batalha,
oferecendo durabilidade, a indústria de congelados abastecia as casas do fronte doméstico
(SHAPIRO, 2004). Ao final da Guerra, a indústria de congelados desenvolve uma infinidade
de produtos que iam desde simples vegetais congelados, como ervilhas e cenouras, a pratos
sofisticados como bouillabaisse 19 e gumbo. 20 Notando o sucesso das vendas de suco de
18
O nome Pyequick foi criado a partir da aglutinação dos termos em inglês pie (torta) e quick (rápido).
19
Prato tradicional da culinária mediterrânea da França. É um ensopado de peixes e frutos do mar (WRIGHT e
TREUILLE, 2014).
30
laranja congelado, fabricantes experimentaram a venda de vinho congelado, o que não
resultou sucesso.
FIGURA VI
21
Jantar de televisão (tradução do autor).
22
Dado extraído do livro Something from the oven: reinventing dinner in 1950s America, de Laura Shapiro.
23
Jantar de peru (tradução do autor).
32
O desenvolvimento agrícola presenciado após a Segunda Guerra Mundial se deve
também ao crescimento da exploração de petróleo nos Estados Unidos. Com a exploração do
petróleo, notamos o avanço da fabricação de embalagens de plástico, que simplificaram a vida
de todos os fabricantes e consumidores da década de 1950, contribuindo para a diminuição de
horas gastas no preparo de alimentos e facilitando a logística de produtos. Porém, a maior
contribuição da indústria petrolífera para a disponibilidade de alimentos nos Estados Unidos
após a Guerra não se deu pela produção de plástico ou pelo combustível que alimentava novas
máquinas, e sim na miríade de pesticidas criados a partir do petróleo que surgiram após a
Guerra (FOOD FIGHT, 2008). A mesma tecnologia empregada na criação de armas durante a
Guerra proporcionou o desenvolvimento dos agrotóxicos, que triplicaram a produção agrícola
norte-americana. Assim, de acordo com Michael Pollan (2013), o mesmo processo do pós-
guerra que industrializou a agricultura, criando fertilizantes sintéticos e novos pesticidas
desenvolvidos a partir do gás sarin, também industrializou os hábitos alimentares do mundo
inteiro (POLLAN, 2013).
Os desenvolvimento da produção agrícola também contou com apoio financeiro do
Governo. Desse modo, os agricultores puderam não só mecanizar sua produção, como
também utilizar fertilizantes sintéticos e pesticidas para garantir maiores colheitas. E assim o
fizeram: durante a década de 1950, os agricultores produziam mais do que poderia ser
consumido, fazendo com que o Estado investissse em culturas que beneficiassem a indústria
de alimentos, sobretudo, no cultivo de batatas e de milho (FOOD FIGHT, 2008).
A popularidade dos automóveis durante o final da década de 1940 contribuiu para o
surgimento dos restaurantes de fast-food, que juntavam a conveniência da rapidez no preparo
dos alimentos, dada a uma linha de produção automatizada, com o baixo custo do produto,
onde não havia a necessidade dos clientes de sair de seus carros. Assim, redes como
McDonald’s, Burger King e Subway puderam se popularizar nos hábitos alimentares norte-
americanos.
Nota-se, a partir de 1945, que interesse no desenvolvimento da indústria de alimentos
não se limita somente aos fabricantes, mas também ao Estado norte-americano. Desde as duas
primeira décadas do século XX, o Estado norte-americano investe esforços para o
desenvolvimento da indústria e, sobretudo, visando maior disponibilidade de alimentos para a
população. Desse modo, após 1945, o consumo diário de calorias efetuado pelos cidadãos dos
Estados Unidos triplicou em comparação ao início do século XX (SIEBEL, 2016).
33
Segundo Robert J. Gordon (2016), a chamada “Era da Propaganda” teve seu início
após a Segunda Guerra Mundial. Por meio de propagandas veiculadas nos rádios e televisões,
a indústria de alimentos alcançou um número maior de consumidores ao afirmar um mundo
utópico onde as pessoas não precisavam mais cozinhar, onde os preços dos alimentos eram
baratos e a variedade de produtos era imensa. A indústria de cereais matinais e os alimentos
congelados foram as mais beneficiadas nesse processo ao oferecerem refeições práticas que
necessitavam de pouco ou nenhum esforço para serem preparadas. Adicionalmente, existe um
desenvolvimento do marketing da venda de alimentos com a criação de supermercados onde
os clientes puderam escolher uma variedade de produtos espalhados em gôndolas. Dessa
maneira, os fabricantes se esforçaram para criar novas formas de atrair a atenção dos
consumidores em suas compras (GORDON, 2016).
24
Resulta da expressão em inglês Baby Boom, que representa a geração nascida entre 1945 e 1965 dada a
explosão da taxa de natalidade ocorrida a partir da melhora da qualidade de vida nos EUA após a Segunda
Guerra Mundial.
25
Estilo de vida [norte] americano (tradução do autor).
26
“Foi sem querer”, no Brasil.
27
“Papai sabe tudo”, no Brasil.
34
diversas séries da década de 1950 simbolizavam a família que qualquer norte-americano
sonhava em conquistar (SIEBEL, 2016).
A comida industrializada era exibida aos cidadãos norte-americanos como meio para
atingir o estilo de vida tão desejado socialmente. Comerciais como do purê de batatas
instantâneo da companhia Pillsbury enfatizavam que o produto era um “segredo de mulher”,
uma vez que não necessitava de esforço algum para ser preparado e que seu gosto era igual a
um purê de batatas caseiro. Desse modo, a propaganda de alimentos industrializados prometia
às donas de casa uma refeição prática e sem esforço, nas quais seus maridos nunca iriam
descobrir a diferença entre caseiro e industrializado (SIEBEL, 2016). Outro exemplo da ilusão
disseminada pela propaganda de alimentos industrializados está presente na propaganda da
companhia A&P, 28 o pão enriquecido da Jane Parker (ver Figura VII) já vinha fatiado,
facilitando seu consumo.
Na propaganda da Figura VII é apresentado uma mulher e seus dois filhos, alegres ao
saborear uma fatia do pão com geléia, em outras palavras, a família ideal. Mais uma vez,
nota-se a imagem idealizada da mulher norte-americana: branca, jovial e que transmite não só
um sentimento materno, como também um ideal de confiança e maturidade. Acima, há a frase
“Nós comemos, você deve comer também!”.29 Ao se deparar com a representação da família
ideal nesta propaganda e em muitas outras, os cidadãos norte-americanos foram induzidos ao
consumo do que se era produzido industrialmente. Aliás, a comida industrializada não era
vendida somente por oferecer praticidade, segurança e saúde, ela também aproximava os
cidadãos do ideal do American way of life.
28
A The Great Atlantic and Pacific Tea Company, conhecida somente por A&P, foi uma cadeia norte-americana
de mercearias com grande sucesso durante os anos 50.
29
Tradução do autor.
35
FIGURA VII
36
Assim como a propaganda da OWI para o programa de racionamento de alimentos
durante a Segunda Guerra Mundial, o alvo principal da indústria de alimentos eram as
mulheres. No período da Segunda Guerra Mundial nota-se um expressivo aumento das
mulheres na força de trabalho industrial contribuindo para a renda de suas famílias. A Guerra
possibilitou novas oportunidades de emprego não só pela ida de mais de 11 milhões de
homens ao serviço militar, mas também pelo surgimento de uma indústria bélica que
necessitava de mão de obra para ser operada. A saída das mulheres da cozinha para trabalhar
possibilitou a entrada da indústria de alimentos nas casas dos cidadãos norte-americanos
(POLLAN, 2013).
A Segunda Guerra Mundial proporcionou oportunidades de emprego em fábricas, que
posteriormente desapareceram com o retorno dos veteranos aos Estados Unidos. Um artigo de
Margaret Pickel publicado em 1946 sob o título “Por que não há trabalhos para as mulheres?”
30
expressava o desejo das mulheres em contribuir como força de trabalho tanto por motivos
pessoais, quanto econômicos (PICKEL, 1946). Havia, portanto, um impasse na situação
feminina ao final da década de 1940: não era possível trabalhar fora e ser a dona de casa
perfeita aos olhos da sociedade norte-americana. E nisso, a indústria de alimentos pôde se
beneficiar ao oferecer produtos que facilitariam a vida da mulher que trabalhava fora e ainda
efetuava as tarefas de casa.
Segundo Paul Freedman, Joyce E. Chaplin e Ken Albala no livro Food in Time and
Place: the American historical association companion to food history (2008), durante o
período da Guerra Fria, os alimentos industrializados já haviam conquistado os hábitos
alimentares dos norte-americanos. Diferentemente do marketing utilizado durante os
primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial, que garantiam aos consumidores a ilusão do
estilo de vida norte-americano, ao longo da Guerra Fria, o Estado norte-americano apresenta
grande participação na propaganda da indústria de alimentos. A partir das tensões da Guerra
Fria, o consumo de alimentos industrializados se tornam referência à superioridade civil
norte-americana sobre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Dessa maneira,
os alimentos industrializados representavam os hábitos da sociedade norte-americana como
30
Tradução do autor.
37
instrumento de concorrência a URSS em meio à Guerra Fria (FREEDMAN, CHAPLIN e
ALBALA, 2008).
Enquanto a propaganda direta da indústria de alimentos enfatizava a idealização de um
estilo de vida a partir do consumo de alimentos industrializados, o período da Guerra Fria
trouxe a propaganda indireta de superioridade civil à URSS e ao mundo socialista. De acordo
com Siebel (2016), durante o Debate da Cozinha ocorrido em 24 de julho de 1959 durante a
Exposição Nacional Americana em Moscou, o vice-presidente norte-americano Richard
Nixon debateu informalmente com o primeiro-ministro da URSS Nikita Khrushchev
visando informar aos soviéticos sobre o capitalismo norte-americano. Na Exposição, o
Departamento de Estado dos Estados Unidos contou com o apoio de companhias como
General Foods, General Mills e Pepsi-Cola para fornecer alimentos industrializados para
serem exibidos ao povo soviético. Dessa maneira, Nixon buscava enfatizar a superioridade do
capitalismo norte-americano pelas novas invenções e técnicas que a indústria de alimento
performou para contribuir com maior disponibilidade de alimentos. A Exposição foi
televisionada para milhares de cidadãos norte-americanos que então associaram o consumo de
alimentos industrializados com a defesa da superioridade política, econômica e cultural dos
Estados Unidos (SIEBEL, 2016).
Após a Segunda Guerra Mundial, os alimentos industrializados destinados ao
consumo pelas forças armadas foram modificados para o consumo civil. Dessa forma, os
fabricantes de alimentos iniciaram a produção de alimentos baratos, visualmente atrativos e
que expressassem a conveniência da facilidade do preparo. Uma vez estando pré-
condicionados ao consumo de alimentos processados pelo programa de racionamento durante
a guerra, a população norte-americana permitiu que a indústria de alimentos cozinhasse para
suas famílias. Para isso, a indústria utilizou de forma direta propagandas que encorajavam o
consumo de alimentos industrializados como meio de alcançar um estilo de vida desejável por
todo norte-americano. De maneira indireta, o consumo de alimentos industrializados fazia
parte da propaganda do Estado norte-americano durante a Guerra Fria, associando o consumo
de alimentos industrializados com a defesa da superioridade do capitalismo norte-americano
sobre a URSS.
38
CAPÍTULO III: A ALIMENTAÇÃO NORTE-AMERICANA E O ATIVISMO
POLÍTICO NAS DÉCADAS DE 1960 E 1970
39
hábitos alimentares norte-americanos. Segundo Jeffrey Haydu (2011), o Grahamismo não se
baseava somente em uma reforma alimentar, como também moral. A partir da publicação do
Graham Journal of Health and Longevity,31 o Grahamismo propôs uma dieta estritamente
32
vegetariana e que evitava alimentos demasiadamente processados ou temperados,
acompanhados somente por água gelada. O Grahamismo fazia a ponte entre a alimentação
saudável e a moral presbiteriana. Na dieta, o consumo de carne e álcool era ligado à
intensificação do apetite sexual e a depravação (HAYDU, 2011).
Assim como o século XIX contou com o Grahamismo, as décadas de 1960 e 1970
presenciaram a consolidação de movimentos sociais nos Estados Unidos. Estes movimentos
criticavam não só o Estado norte-americano em suas políticas internas e externas, como
também a disseminação do estilo de vida ideal norte-americano à população. Nestas críticas, a
questão alimentar não era deixada de fora. Uma vez existindo forte participação financeira do
Estado norte-americano na produção de alimentos, agrícola ou industrialmente, e havendo a
associação de consumo de alimentos industrializados com o enaltecimento do American way
of life e das políticas da Guerra Fria, defendendo a supremacia do capitalismo norte-
americano ao socialismo soviético, uma onda de insatisfação popular toma as ruas nos
Estados Unidos.
De uma forma geral, os movimentos insurgentes da década de 1960 rejeitavam a
industrialização de alimentos, pois esta reproduzia as políticas internas e externas defendidas
pelo Estado norte-americano. Todavia, tema da alimentação era abordado de forma distinta
para cada um dos movimentos. Cada movimento apresentava uma subcultura característica,
definida por valores, normas, artefatos, linguagens, símbolos e formas de
autoidentificação que os diferiam da cultura dominante norte-americana. Portanto, é
necessária a separação de cada movimento ocorrido a partir da década de 1960 para que seja
tratada de forma mais específica a relação entre alimentação e ativismo político.
31
O Diário da Saúde e Longevidade de Graham (tradução do autor) foi uma série de artigos publicados pelo
aliado de Graham, David Campbell, entre 1837 e 1838 (HAYDU, 2011).
32
O processamento de alimentos ocorrido durante o século XIX era diferente ao da metade do século XX. O
Grahamismo abominava o consumo de farinha de trigo processada (que ainda era menos processada que a versão
criada na década de 1920), dando origem a pães e bolachas feitas de outros cereais. As famosas graham
crackers, bolachas que se assemelham aos biscoitos de maisena, são um dos legados da dieta de Graham.
40
3.1 O movimento dos Direitos Civis e do Black Power
33
O Boicote aos Ônibus Montgomery foi um ato de manifestação da população negra em 1955 à segregação
racial ocorrida nos transportes públicos do sul dos Estados Unidos, e que teve seu gatilho após Rosa Parks, uma
costureira negra, se recusar a ceder seu assento no ônibus para um homem branco em Montgomery, Alabama. O
boicote durou mais de um ano até que a Suprema Corte dos Estados Unidos, pressionada pelas companhias de
ônibus, acatou por modificar a segregação institucional nos transportes públicos.
41
Em comparação à alimentação da população branca norte-americana, a culinária soul
utiliza pouco ou nenhum produto industrializado. Isso se dá, primeiramente, pelo motivo de
que boa parte dos negros no sul dos EUA, lugar o qual este movimento culinário tem origem,
vivia em áreas rurais. Portanto, a disponibilidade de alimentos frescos era imensamente maior.
Além disso, a propaganda disseminada pela indústria de alimentos não alcançava a população
negra. A não identificação entre o consumidor negro e a propaganda que incentivava o
consumo de alimentos industrializados para alcançar o estilo de vida ideal da população
branca foi mais um dos motivos o qual a culinária soul se torna identidade do movimento.
A comida soul ganhou força com a disseminação do slogan “black is beautiful” 34
entoado pelos ativistas do Black Power. Assim, restaurantes eram encorajados a colocar a
comida soul em seus cardápios. Isso contribuiu não só para o orgulho de classes mais pobres
de negros nos EUA, como também aproximou as classes de negros mais ricos ao movimento.
Sendo assim, a alimentação da comida soul proporcionou um senso de comunidade entre as
diferentes classes de negros nos EUA, morassem eles nas áreas rurais do sul, quanto nas
grandes cidades ao norte do país (JOHNSON, 2012).
No final da década de 1960 e durante a década de 1970, ao passo em que o movimento
do Black Power se tornou mais militante, há o início de um debate em relação à comida soul.
De acordo com Frederick Opie (2008), apesar de boa parte dos intelectuais do movimento
concordassem que a comida soul é uma parte única da cultura negra norte-americana, críticas
vindas de fora e de dentro do próprio movimento começam a surgir. Brancos do sul dos EUA
defendiam que a comida denominada “soul” não era restritamente negra, mas comum nos
estados sulistas. Estudantes universitários negros, defensores de uma dieta mais saudável e
que mantinham contato com os ideais alimentares da Contracultura, e membros da Nação do
Islã (NOI) concordavam que a culinária soul era prejudicial à saúde e que estava matando a
população negra. Malcolm X, líder o movimento do Black Power e membro da NOI, defendia
que os negros norte-americanos deviam banir a dieta soul e a carne de porco (de consumo
proibido na religião muçulmana). Malcolm também relacionava que a dieta soul foi um mau-
hábito ensinado para os escravos negros pelos brancos (OPIE, 2008).
Durante a década de 1960, os líderes do movimento dos Direitos Civis conseguiu
pressionar o Estado norte-americano para conceder à população negra igualdade. Além como
o direto ao voto, maiores oportunidades de emprego, educação de graça, os líderes
conseguiram com que o almoço nas escolas também fosse de graça. Enquanto as mudanças
34
O negro é lindo (tradução do autor).
42
ainda não chegavam em alguns locais nos EUA, ativistas do movimento do Black Power
criaram um “programa de sobrevivência”, que distribuía comida para áreas onde a revolução
de direitos ainda não tinha se estabelecido. Em janeiro de 1969, em Oakland, Califórnia,
ocorreu o primeiro Café da Manhã de Graça,35 como foram chamados os eventos organizados
pelo movimento para a distribuição de alimentos. Fornecidos por negócios locais, os
alimentos eram distribuídos por estudantes voluntários às crianças negras. O ato dos eventos
contribuiu para a popularidade do movimento aos locais aonde os direitos iguais não eram
garantidos (JOHNSON, 2012).
Diferente do restante dos movimentos políticos que tiveram início na década de 1960,
o movimento dos Direitos Civis e do Black Power tem uma relação única com a alimentação.
O alimento para os ativistas negros não é uma forma de rejeição a um estilo de vida ou um
apelo à alimentação saudável. A comida soul é uma forma de resistência à dominação branca.
A comida consumida pelos brancos representava a cultura branca e todas as questões
negativas afetavam a cultura negra. Os negros das décadas de 1960-1970, por meio da
alimentação, puderam mostrar orgulho à sua herança africana.
35
Tradução do autor.
43
de identificação revolucionária à cultura dominante. Segundo Belasco (2007), “os hippies
viam na dieta uma maneira de transformar conscientemente, de modo a integras corpo e
36
mente, de superar a alienação pessoal, e de contribuir com a responsabilidade social”
(BELASCO, 2007, p. 60). De certo modo, havia uma intensa preocupação com a saúde na
alimentação hippie, uma vez que os movimentos dos alimentos orgânicos e do ambientalismo
já haviam se difundido na subcultura hippie.
No movimento hippie, havia grande senso de coletivismo, uma vez que o
individualismo representava a cultura capitalista norte-americana. Dessa maneira, a mudança
só poderia ocorrer a partir de uma ação coletiva. O exemplo claro da coletividade hippie foi a
criação das comunidades alternativas. Segundo Johnson (2012), após as manifestações
ocorridas em São Francisco durante o Verão do Amor (1967), os criadores do movimento
hippie encontraram um caminho para experimentar um novo e mais livre modo de viver: as
comunidades alternativas. Assim, deixaram a cidade e migraram para o campo, esperando
construir uma sociedade alternativa que melhor refletissem seus ideais de paz, harmonia e um
modo de vida mais saudável e natural. Cada comunidade alternativa estabelecida durante esse
período apresentava diferentes razões para abandonar a vida urbana e diferentes ideologias
que serviam como base para sua formação social. Entretanto, apresentavam um consenso na
importância da saúde e, sobretudo, em sua dieta. Em rejeição às comidas congeladas e
enlatadas, as quais geraram dinheiro e poder sobre a vida e saúde de milhares de norte-
americanos, manifestantes da Contracultura reivindicavam comidas simples, cultivadas
localmente e preparadas do começo ao fim (JOHNSON, 2012). Segundo a historiadora
Stephanie Hartman (1980), “A comida era inseparável, ou ao menos coincidente, dos valores
mais defendidos pelos residentes de comunidades, que tentaram viver o que acreditavam por
meio do que comiam, pelo modo em que cultivavam sua comida, e pelo modo como dividiam
o trabalho” 37 (HARTMAN, 1980, p. 29).
A contracultura iniciou o processo de criação de cooperativas de alimentos como um
negócio alternativo ao comércio de alimentos industrializados, o qual deixou de ser confiável
e responsável para os manifestantes. Segundo Belasco (1989) “as cooperativas de alimentos
foram um espaço onde se encontrava fontes de alimentos sem fins lucrativos, e para lutar
contra o capitalismo corporativo de forma silenciosa e não-violenta” (BELASCO, 2007, p.
89). Além disso, as cooperativas de alimentos inspiraram a gastronomia da contracultura,
voltada à população urbana. O surgimento de restaurantes hippies também é um exemplo dos
36
Tradução do autor.
37
Tradução do autor.
44
negócios alternativos, nos quais mais importava um local onde o debate era livre, do que
houvesse a provisão de alimentos não industrializados. O Chez Panisse, criado por Alice
Walters, foi o primeiro restaurante nos Estados Unidos a iniciar uma rede de fornecedores
locais e de servir alimentos aos moldes da dieta hippie (FOOD FIGHT, 2008).
É nesse contexto em que se nota um crescimento do movimento vegetariano nos
Estados Unidos, ao passo que a maioria das comunidades alternativas tinha o vegetarianismo
como prática dominante. Segundo Houriet (1971), tanto pelo ceticismo às comidas
industrializadas quanto pela influência de religiões e estilos de vida orientais, a maioria dos
residentes de comunidades tinha grande cuidado com o que comiam, e isso incluía seguir uma
dieta que diminuísse ou excluísse a carne. Notava-se que grande parte das comunidades não
era radicalmente vegetariana, porém, o consumo excessivo de carne era tido como uma
prática típica do norte-americano convencional (HOURIET, 1971).
Apesar de o movimento hippie defender uma dieta que rejeitava os moldes da cultura
dominante norte-americana, e estar diretamente ligado aos temas de saúde e estilo de vida
alternativos, a manifestação política era presente. Tendo em vista a urgência da Guerra do
Vietnã, os hippies relacionavam o consumo de alimentos industrializados com a indústria da
guerra. Empresas como Monsanto e DOW Chemicals, além de produzirem fertilizantes
artificiais e pesticidas, também eram responsáveis pela criação de armas químicas utilizadas
na guerra, como o gás sarin e o napal. Dessa maneira, lutar pelos alimentos orgânicos também
era um ato político contra a guerra (FOOD FIGHT, 2008).
De maneira diferente ao movimento dos Direitos Civis, o movimento hippie rejeitava
aquilo que remetia à cultura dominante norte-americana em seu estilo de vida. Apesar de
realizar críticas ao sistema político e econômico capitalista, bem como defender o
desarmamento e a liberdade de expressão, o movimento hippie centralizava sua preocupação
na criação de uma cultura alternativa, que os identificassem como incomuns ao sistema.
Quanto a alimentação, influenciados por crenças orientais e pelos movimentos ambientalista e
dos Organic Advocates, a relação do alimento com a saúde e bem-estar era maior para os
hippies que a de resistência política.
45
3.3 O movimento ambientalista
Em seu artigo Cultural modeling in two eras of U.S. food protest: Grahamites and
Organic Advocates38 (2011), o sociólogo norte-americano Jeffrey M. Haydu (2011) realiza
uma análise comparativa entre o movimento dos Grahamitas no início do século XIX e dos
ativistas da alimentação orgânica, denominados por ele como Organic Advocates,39 durante os
anos 1960 e 1970. Segundo Haydu, ambos os movimentos compartilhavam contextos
semelhantes. De um lado, para os Grahamitas (1830), o crescimento das cidades durante o
início do século XIX e o fortalecimento das relações comerciais nos EUA, resultou em um
distanciamento entre o consumidor e o produtor. Tal distanciamento não era somente físico,
dada a distância entre os centros urbanos e as fazendas, mas também social, uma vez que a
distância gera uma impessoalidade do comércio de alimentos. O distanciamento também
contribuiu para o início do processamento industrial de alimentos, em especial, da farinha de
trigo, visto a urgência da criação de novas maneiras de preservar o alimento. De outro lado, o
movimento dos Organic Advocates (1960-1970), a partir da metade do século XX, o
desenvolvimento científico-tecnológico resultante da Segunda Guerra Mundial, proporcionou
a criação de novos instrumentos para o plantio, como os fertilizantes artificiais e os pesticidas,
além do surgimento de alimentos industrializados. A grande urbanização contribuiu para o
distanciamento total entre consumidor e produtor, e a impessoalidade comercial se
intensificou. Portanto, as novas técnicas de processamento de alimentos e a impessoalidade
comercial gerada a partir do distanciamento físico entre cidade e fazenda, tanto no início do
século XIX como na metade do século XX, concebeu grande desconfiança da população
norte-americana, que se mobilizou ao rejeitar o sistema alimentar vigente em cada época
(HAYDU, 2011).
38
Modelos culturais em duas eras de protestos alimentares nos EUA: Grahamitas e Defensores Orgânicos
(tradução do autor).
39
Defensores Orgânicos (tradução do autor).
47
Segundo David Nowacek (1997), o problema principal pontuado pelos Organic
Advocates é relacionado à saúde. O movimento enfatizava o risco que os pesticidas borrifados
nas plantações e os químicos artificiais utilizados na produção de alimentos industrializados
podiam trazer à saúde dos norte-americanos. Desde a adulteração do leite de vaca com
resíduos da produção de destilados, aos hormônios nas rações de animais para abate e aos
pesticidas em todos as frutas e vegetais, a indústria estava deixando as pessoas doentes
(NOWACEK, 1997).
O movimento dos Organic Advocates ganha força durante a década de 1960, quando a
revista Organic Gardening and Farming (OGF), escrita por Jerome I. Rodale, se populariza.
Em 1962, estima-se que a revista contava com 300 mil assinantes, que eram majoritariamente
formados por pequenos produtores e entusiastas. Num período de dez anos, a OGF recebeu
uma explosão de assinaturas, contando com aproximadamente 850 mil assinantes em 1972.
Essa nova onda de seguidores do movimento da alimentação orgânica era formada por uma
população mais jovem, urbanizada e instruída. Apesar da existência de fazendeiros orgânicos
pré-datar a década de 1960, uma vez que a primeira edição de OGF tenha ocorrido em 1942, a
expansão do movimento dos alimentos orgânicos durante a década de 1960 se dá pela
insurgência de vários outros movimentos sociais, abordando novos temas ao relacionar a
industrialização da produção de alimentos com as críticas ao Estado norte-americano
(HAYDU, 2011). De acordo com Belasco (2007), o movimento criado por Rodale a partir da
publicação de OGF, celebrava a alimentação e os métodos de cultivo uma ligação direta entre
cidadão e uma realidade mais natural, senão primitiva. Os Organic Advocates argumentavam
sobre o contraste entre a alimentação natural primitiva e o consumo de alimentos
industrializados pela sociedade moderna (BELASCO, 2007).
No movimento dos Organic Advocates, havia uma forte rejeição e ceticismo à
medicina e a ciência moderna. Mesmo que utilizassem argumentos de cunho científico em sua
crítica alimentar, os Organic Advocates enfatizavam que a ciência estava ligada aos interesses
da indústria de alimentos. Por sua vez, a comunidade científica aliada à indústria de alimentos
considerava a agricultura orgânica uma obsessão ignorante que nunca seria comparada à
realidade da sociedade moderna. Segundo o Secretário da Agircultura Earl Butz 40 (1972),
“antes de voltar para a agricultura orgânica, alguém terá de decidir quantas 50 milhões de
pessoas teremos de deixar famintas” (1972 apud HAYDU, 2011, p. 470).
40
Earl Butz foi Secretário da Agricultura dos Estados Unidos entre 1972 a 1976, nos mandatos de Richard Nixon
(1969-1974) e Gerald Ford (1974-1977). Butz era graduado em agricultura pela Purdue University, e criticava a
burocracia estatal na agricultura, defendendo a utilização de agrotóxicos na produção de grandes agricultores.
Butz renunciou o cargo em 1976, devido a escândalos desencadeados a partir de seus discursos.
48
Apesar de centralizar o movimento em relação aos impactos à saúde e bem-estar que a
indústria de alimentos causava, os Organic Advocates prestavam alguns argumentos de cunho
político. Em algumas publicações da OGF, constatava-se que a difusão dos fertilizantes
artificiais e pesticidas nas colheitas eram causados pela mesma sociedade industrial que lotou
as cidades e as tornou mais perigosas (HAYDU, 2011). Para os Organic Advocates, a
produção e o consumo de alimentos orgânicos privaria a sociedade de uma dominação
tecnológica. Segundo Rodale, “Enquanto hoje ser orgânico é um conforto – um adicional que
possibilita textura e significado à vida – amanhã ser orgânico pode ser a única alternativa para
o estilo de vida de um campo de concentração tecnológico.” (RODALE, 1971, p. 33).
A nomeação de Earl Butz para a Secretaria da Agricultura dos Estados Unidos em
1972 viria por intensificar o movimento dos alimentos orgânicos. Butz representava o
agronegócio e assumiu a posição de Secretário da Agricultura criticando a grande
burocratização do setor agrário e prometendo maior liberalização aos grandes agricultores.
Era evidente, portanto, que os pequenos produtores não estavam incluídos em suas propostas.
Durante seu mandato, Butz investiu na mecanização da agricultura e beneficiou grandes
produtores de culturas vitais para a indústria de alimentos, sobretudo, as plantações de milho e
batatas. Isso resultou não só na ruína de pequenos produtores, como também na carência da
disponibilidade de frutas e vegetais ao mercado consumidor (FOOD FIGHT, 2008).
O movimento dos alimentos orgânicos pôde ir além de uma simples proposta de
reforma alimentar. De forma a evitar os alimentos industrializados e a medicina moderna, os
Organic Advocates criaram instituições alternativas. Com a publicação de OGF, em 1942,
contribuindo para a disseminação dos ideais defendidos pelo movimento, os pioneiros da
agricultura orgânica puderam criar uma rede de produtores locais de alimentos orgânicos, bem
como ampliar uma rede de consumidores favoráveis à causa. Para isso, estes sistemas
alternativos contaram com programas de certificação que garantiam a conformidade aos
padrões da produção orgânica (HAYDU, 2011).
Ainda que o movimento dos alimentos orgânicos seja abordado de maneira específica
neste trabalho, seu tema permeia todos os principais movimentos sociais da década de 1960.
Após 20 anos angariando novos agricultores orgânicos, o movimento ganha maior apoio e
visibilidade a partir da difusão à Nova Esquerda, emergindo das manifestações dos direitos
civis, e aos movimentos da Contracultura no final dos anos 60, até a convergência com o
movimento ambientalista. Pouco a pouco, os Organic Advocates foram se engajando em
outros movimentos sociais, participando de atos políticos de todas as subculturas das
49
manifestações das décadas de 1960 e 1970. Podemos afirmar, portanto, que apesar do
movimento dos Organic Advocates ter surgido na década de 1940, sua difusão em outras
subculturas na década de 1960 foi essencial para o desenvolvimento do conceito dos
alimentos orgânicos. Diferentemente da segregação racial, da cultura dominante e do
desenvolvimento nuclear, a saúde e a relação entre homem e campo foi a motivação central
do movimento dos Organic Advocates, e pela disseminação do conceito de alimentos
orgânicos.
50
CONCLUSÃO
51
a política da Guerra Fria. O alimento é associado à defesa de uma ideologia, ao consumir
alimentos industrializados, o cidadão norte-americano contribuía para a defesa da supremacia
do capitalismo norte-americano sobre o socialismo soviético.
A análise dos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 contribuiu para
concretizar a relação alimento-sociedade. Cada movimento apresentava uma subcultura
característica, definida por valores, normas, artefatos, linguagens, símbolos e formas de
autoidentificação que os diferiam da cultura dominante norte-americana. Dentre estes fatores,
a alimentação está presente de forma explícita. A alimentação serviu de meio para a defesa de
valores, pela identificação e pela expressão da resistência ao sistema norte-americano. De
todos os movimentos estudados, o movimento dos alimentos orgânicos talvez seja o mais
significativo para a inclusão do alimento no ativismo político. O movimento dos alimentos
orgânicos criticava o distanciamento criado entre consumidor e produtor a partir da
industrialização e da urbanização, dessa maneira, a impessoalidade do comércio de alimentos
tornou o alimento algo sem identidade cultural, senão a do estilo de vida e política norte-
americana. O movimento dos alimentos orgânicos, inicialmente, não ser dava por um
movimento político, e sim pela busca da reaproximação do homem ao campo, e da
identificação do alimento como parte cultural da sociedade. A saúde e o bem-estar são os
principais aspectos defendidos pelo movimento dos alimentos orgânicos. Toda a base que o
movimento dos alimentos orgânicos proporciona é difundida nos movimentos subsequentes
durante as décadas de 1960 e 1970, cada qual utilizando o alimento como forma de
identificação alternativa à cultura dominante.
Conclui-se, portanto, que durante os quinze anos que sucederam a Segunda Guerra
Mundial, a propaganda da indústria de alimentos contribuiu para a assimilação do consumo de
alimentos industrializados com o enaltecimento de um estilo de vida e a defesa de uma
políticas de cunho ideológico num período de bipolarização mundial. São esses fatores que
intensificam a rejeição à indústria de alimentos nas décadas de 1960 e 1970. Ao relacionar os
símbolos utilizados pela indústria de alimentos com os fatores negativos do sistema político,
econômico e social norte-americano, os manifestantes da Contracultura e dos Direitos Civis
criaram uma identidade própria pela alimentação e pela cultura. Por meio da alimentação, os
ativistas puderam expressar sua resistência e seu senso de comunidade, reverberando nas
tendências alimentares atuais.
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