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Boletim RD 30 Anos
Boletim RD 30 Anos
Sumário
Editorial ................................................................................................................................ 03
Redução de Danos
Fabio Mesquita....................................................................................................................... 10
As Diferenças entre Queixa e demanda no Trabalho de Redução de Danos: possibilidades para uma
escuta clínica em espaços heterogêneos
Rodrigo Alencar..................................................................................................................... 124
Editorial
N
este momento inacreditável pelo qual bem como para o combate ao preconceito e
passa a Saúde em nosso país, frente ao aos discursos sem fundamentação científica.
desmonte das conquistas sociais e da Como estratégia de políticas públicas,
a Redução de Danos promoveu alternativas à
promoção de um Estado de Bem-Estar Social
“guerra contra as drogas”, diante da ineficácia,
advindas da Constituição Federal de 1988 e da
inviabilidade prática e de suas consequências
criação do Sistema Único de Saúde (SUS), não nefastas e segregativas sobre a população de
poderíamos deixar de comemorar os 30 anos usuários de álcool e drogas. Como estratégia
da Redução de Danos no Brasil. internacional, abriu caminhos para a crítica aos
antigos pactos e para a proposição de novas
A Redução de Danos como estratégia possibilidades para intervir tanto na Saúde, co-
de abordagem sobre a prevenção e o uso de mo nas legislações sobre essas substâncias,
drogas provocou uma “revolução” na compre- revendo regulamentações tanto sobre o uso,
ensão, na interlocução e no tratamento de usu- como, em alguns casos, sobre a própria ven-
ários de substâncias psicoativas, ao trazer não da ou classificação de drogas consideradas
apenas um olhar científico para a questão, mas ilegais.
também singular, humanista e de consideração
com os Direitos Humanos dessas pessoas. Por isso o Instituto de Saúde, juntamen-
te com a Rede Brasileira de Redução de Danos
Como estratégia de Saúde, trouxe a e Direitos Humanos (REDUC) prepararam esta
compreensão de que o usuário é uma pessoa publicação, procurando dar a visibilidade a uma
que tem direitos, que precisa ser respeitada, parte da história da Redução de Danos, ao re-
ouvida e que pode receber tratamento indepen- latar como se deu a sua adoção e utilização in-
dentemente da forma que faz ou não uso de ternacional e no Brasil, as conquistas fruto da
álcool e outras drogas, pois a relação com as luta de muitos profissionais e organizações que
substâncias psicoativas requer elaboração do a propuseram e defenderam, além de trazer
vínculo estabelecido entre a pessoa, a subs- exemplos sobre as experiências de implemen-
tância e a cultura onde o uso ocorre. Como es- tação nas áreas de Direito, Saúde, Educação
tratégia de educação, trouxe a reflexão à ideia e na abordagem social sobre o uso de drogas
irreal de abstinência de drogas, considerando lícitas e ilícitas. Desse modo, faz-se porta voz
não só o uso de drogas legais e ilegais, mas das várias personalidades que assinam os ar-
também de drogas “invisíveis” que fazem par- tigos, traz modelos implementados internacio-
te do cotidiano da sociedade ocidental, como o nal, nacional e localmente, relata a luta pela
consumo de açúcar e de café, entre outras. Co- implementação e pela manutenção da Redução
mo estratégia discursiva, abriu o caminho para de Danos no Brasil, demonstra sua eficácia, im-
a revisão de valores culturais, éticos e morais, portância e alcance na promoção da saúde e
C
om toda honra, homenageamos o grande O professor Carlini sempre foi vanguar-
mestre Prof. Dr Elisaldo Carlini, um dos da: foi fundador da Associação Multidisciplinar
precussores da abordagem científica da de Estudos sobre Drogas (ABRAMD), publicou
Redução de Danos em pesquisas, discussões boletins sobre atualizações na área para difun-
acadêmicas e políticas de drogas e de saúde. dir o conhecimento para além da universidade,
realizou vários seminários sobre cannabis me-
Carlini, com sua atuação como profes-
dicinal e lutou por anos para a retirada da Can-
sor emérito da Escola Paulista de Medicina da
nabis da Lista IV de drogas pesadas, da Organi-
Universidade Federal de São Paulo (EPM/UNI-
zação das Nações Unidas (ONU).
FESP), fundou o Centro Brasileiro de Informa-
ções sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), for- Muitas de suas lutas foram bem sucedi-
mou diversos alunos com a especialidade de das, conseguiu que a Agência Nacional de Vigi-
estudo e tratamento dessas substâncias, tanto lância Sanitária (ANVISA) e os conselhos profis-
quanto ao uso de álcool e outras drogas pela sionais ouvissem as mães que precisavam de
população brasileira, quanto na abordagem dos cannabis para tratar convulsões persistentes
usos abusivos. de seus filhos e presenciou a vitória da lega-
lização terapêutica desta. Porém, quando em
Além de ser o pioneiro no estudo da câ-
12 de dezembro de 2020, a ONU aprovou a re-
nabis e outros psicotrópicos no Brasil e profes-
tirada da cannabis da Lista IV, Carlini já havia
sor por mais de 70 anos, também foi o precur-
nos deixado, em setembro de 2020. Contudo, a
sor em Psicofarmacologia do uso terapêutico
luta continua, assim como seu legado por uma
da maconha, auxiliando no tratamento de milha-
política de drogas multidisciplinar, mais inclusi-
res de pessoas em todo o mundo. Combaten-
va, antimanicomial e antiproibicionista.
do o preconceito e introduzindo várias formas
de estudos das drogas, foi um grande defensor Gratidão por tudo, professor!
da Redução de Danos no país e internacional-
Instituto de Saúde (IS/SES-SP)
mente, sendo membro do Expert Advisory Pa-
nel on Drug Dependence and Alcohol Problems Rede Brasileira de Redução de Danos (REDUC)
da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do
Conselho Econômico Social das Nações Unidas
(ECOSOC/ONU).
- Barato no Divã
É um grupo de especialistas que desde 2010 oferece formações
para profissionais de saúde em Clínica Psiquiátrica e Psicanalítica volta-
das para pessoas com problemas associados ao uso de álcool e outras-
drogas, visando motivar práticas que promovam os Direitos Humanos, a
autonomia dos pacientes tratados e que estimulem seus potenciais e que
considerem o contexto micro e macrossocial na construção do projeto te-
rapêutico. Inclui conhecimentos socioeducativos, de educação inclusiva,
justiça restaurativa, práticas grupais e associativas de caráter afirmativo,
grupos de autoajuda, movimentos sociais de defesa dos direitos dos usu-
ários de drogas e de Redução de Danos e questionamento sobre os mo-
delos legislativos que discriminam e punem os usuários.
https://www.obaratonodiva.com.br/
Redução de Danos
Harm Reduction
Fábio MesquitaI
Resumo Abstract
A política de guerra contra as drogas tem se mostrado completa- The war on drugs has been shown to be completely unable to contain
mente incapaz de conter o consumo e as consequências sociais e the consumption and the social and health consequences of the
de saúde do consumo de drogas. Dentre as opções que vem toman- use of drugs. Among the options that has taken shape and gaining
do corpo e ganhando cada vez mais espaço, está a Política Pública more and more space, is the Public Health driven Harm Reduction.
de Redução de Danos. Este artigo mostra a história de sucesso des- This paper shows the success story of the Harm Reduction Policy
ta política de Redução de Danos no Brasil e no mundo, não apenas in Brazil and in the world, not only from the perspective of the
sob a perspectiva do controle do HIV/aids, mas também como uma HIV/AIDS control, but mainly as a humanitarian and tolerant public
política pública humanitária e tolerante, que aceita a diversidade da policy that accepts the diversity of the humanity.
humanidade.
Keywords: Harm Reduction in the world; War on drugs; Health; Law
Palavras-chave: Redução de danos no mundo; Guerra às drogas; enforcement.
Saúde; Aplicação da lei.
Introdução
N
o dia 26 de novembro de 2019, a Câmara No mesmo ano de 1989, Telma de Souza
Municipal de Santos, por iniciativa da en- estava em seu primeiro ano de mandato como
tão Vereadora Telma de Souza, conduziu prefeita do “Governo Democrático e Popular”II da
uma sessão de celebração dos 30 anos de Redu- Cidade de Santos e tinha um sanitarista bastante
ção de Danos no Brasil. A celebração rememora- conhecido na história da construção do Sistema
va o lançamento público da proposta de troca de Único de Saúde (SUS) no Brasil, o médico David
seringas para pessoas que injetavam drogas na Capistrano da Costa Filho, como Secretário Muni-
cidade, feito durante o I Seminário Santista sobre cipal de Saúde; e como coordenador do Programa
Aids, em dezembro de 1989 . 1
Municipal da Luta Contra a Aids desta cidade, o
autor deste artigo.
I
Fábio Mesquita (mesquitaberkeley@hotmail.com) é médico pela Universida-
de Estadual de Londrina (UEL), Doutor em Saúde Publica pela Faculdade de Naquele ano, Santos foi um dos mu-
Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), Membro do Corpo
Técnico da Organização Mundial de Saúde (OMS) em Myanmar, como Líder nicípios pioneiros no Brasil em estabelecer
do Time de HIV e Hepatites Virais e é Membro Honorário Permanente e Fun-
dados International Harm Reduction Association (em português, Associação
Internacional de Redução de Danos). II
Representado pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
programas municipais de aids e se destacou por • a pior das consequências, foi a postergação
medidas ousadas que incluíam: a distribuição de da implementação da estratégia na Cidade de
preservativos em toda a rede municipal do SUS, Santos por alguns anos – posteriormente imple-
em ser a primeira cidade a adquirir, com recursos mentada pela organização não governamental
próprios, medicamentos antirretrovirais e, tam- (ONG) Instituto de Estudos e Pesquisas em Aids
bém, a primeira cidade a propor uma estratégia de Santos (IEPAS);
de Redução de Danos para conter o avanço da • como consequência positiva, o episódio “abriu
epidemia de HIV entre usuários de cocaína injetá- a porta” para um amplo debate nacional sobre do
vel, que eram, à ocasião, associados a 50% dos tema, que gerou, dentre outras consequências, a
casos de aids da cidade2. discussão e aprovação da Lei no 9.758, do então
Fomos na época, duramente atacados pe- deputado estadual por São Paulo, Paulo Teixeira
lo Ministério Público de São Paulo, que utilizou (do Partido dos Trabalhadores), e a sua promulga-
a Lei no 6.388 de 1976 (vigente à época) para ção, pelo então governador Mario Covas (do Par-
julgar a iniciativa, pressupondo que, ao distribuir- tido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no
mos seringas para conter a epidemia de aids, es- dia da abertura da Conferência Internacional de
taríamos auxiliando e incentivando as pessoas a Redução de Danos em São PauloV,4.
utilizar drogas ilegais (o texto da Lei dizia: “induz, • também facilitou para que a Bahia, gover-
instiga ou auxilia alguém a usar entorpecentes”) nada, então, por Antônio Carlos Magalhães, em
e, portanto, nos enquadrou no crime de tráfico de 1994, sob o comando do médico e grande ativis-
drogas, com possíveis penas de 3 a 15 anos de ta de Redução de Danos, Tarcísio Andrade, imple-
prisão3. mentasse de fato o primeiro programa de troca
Nossa defesa, foi feita formal e volunta- de seringas no Brasil no Centro de Estudos e
riamente por um advogado criminal especializado Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Fe-
no temaIII e contou com outros apoios importan- deral da Bahia (CETAD/UFBA)5. Embora não for-
tes no Parlamento, na mídia e também no Conse- malmente legal, o Programa foi tolerado e seguiu
lho Regional de Medicina de São Paulo (CRM-SP). com extremo sucesso.
O CRM-SP, por exemplo, entendeu que, • mas, certamente, a mais importante de to-
em nosso juramento de médicosÎV, confirmava o das as consequências, foi que a iniciativa abriu
dever de fazermos tudo o que a evidência cientí- o debate sobre as estratégias de como melhor
fica demonstrasse importante para prevenir epi- lidar com o problema da dependência de drogas
demias e disseminações de doenças, e isto niti- de outra forma que não fosse a repressão e/ou
damente incluía distribuir seringas para pessoas a abstinência, como únicas opções6. Reduzir os
que injetavam drogas para evitar o seu compar- danos era uma proposta mais objetiva e prag-
tilhamento, causa da transmissão do HIV e de mática, visto que considerando ser o comércio
várias outras doenças transmitidas pelo sangue. ilícito de drogas o terceiro maior produtor de ri-
Este episódio, teve uma série de conse- quezas no planeta, não havia como se iludir de
quências, algumas negativas e outras positivas: que ele acabaria com políticas públicas toscas e
Alberto Toron, ex-presidente do então Conselho Estadual de Entorpecentes
III
ri, como Coordenador de Saúde Mental à época, Psicologia da Universidade de São Paulo.
e lá tomar banho, comer, assistir televisão, ler, Poderíamos citar inúmeras alternativas
passar o tempo com jogos de tabuleiro e acessar protetoras, mais racionais e mais eficientes que
a Internet. É um local acolhedor, que funciona das se desenvolveram pelo mundo adentro para re-
sete horas da manhã às dez da noite, com por- solver essa questão, situaçõeos em que o Es-
tas sempre abertas à população atendida. Aonde tado, e não o crime organizado e/ou a religião,
estes locais de acolhimento funcionam, a polícia cuidam das pessoas que usam drogas.
não chega perto, a fim de não inibir a procura Sem dúvida, uma das políticas públicas
pelos usuários. São como espaços de proteção mais bem sucedidas e que passou por inúmeras
para as pessoas que usam drogas e tornam-se avaliações externas é a de Portugal21. Com uma
portos-seguros para aqueles que foram social- legislação pragmática e eficiente, em 2001 Portu-
mente excluídos, seja das escolas, das famílias, gal foi o primeiro país no mundo a descriminalizar
dos empregos ou de outras formas de convivên- a posse e o consumo de todas as substâncias e
cia social. É um local em que podem passar o dia a tratar a dependência de drogas como um pro-
e recuperar uma importante parte da dignidade blema de saúde e não como um crime. O porte
perdida. de drogas em uma quantia que seja razoável para
A metadona, um medicamento sintético consumo próprio– quantia claramente estabele-
foi inicialmente desenvolvida como analgésico a cida na legislação – é considerado apenas como
base de ópio, durante a II Guerra Mundial na Ale- uma infração administrativa e punido desta for-
manha nazista e registrada neste país, como um ma. A pessoa sofre uma advertência, uma multa
medicamento sintético, em 1941. Utilizada como ou é obrigada a comparecer a uma comissão lo-
medicamento de substituição da heroína, teve clí- cal composta por médico, advogado ou assisten-
nicas de terapia utilizando esta técnica criadas te social e assim receber orientação sobre trata-
em meados do século XX e, com a evolução tec- mento, Redução de Danos e serviços de apoio
nologica, passou a ser produzida pela indústria disponíveis para o dependente.
farmacêutica20. Há, ainda, serviços que tratam
os pacientes também com buprenorfina ou até Consideração final
com a própria heroína, este último procedimento
Enfim, não é preciso reinventar a roda
é menos comum. As clínicas de metadona aten-
para se ter políticas públicas sobre drogas mais
dem milhares de pacientes e têm 70% de suces-
próximas da necessidade do cidadão. Uma adap-
so no tratamento de dependência de heroína,
tação em algumas das políticas públicas de Re-
uma taxa de sucesso que não foi possível atingir
dução de Danos que estão tendo resultados posi-
em nenhum outro tratamento de dependência de
tivos em todo o mundo, já seria um grande passo
drogas lícitas ou ilícitas (incluindoo álcool e o ta-
a frente, no caso do Brasil.
baco). Comum na América do Norte, na Europa
e na região onde eu atualmente atuo, a Ásia, o
tratamento de dependência de heroína utilizando Referências
metadona tem um tremendo sucesso em lugares
1. Carvalho HB, Mesquita F, Massad E, Bueno RC, Lo-
como Hong Kong (onde foram estabelecidos os pes GT, Ruiz MA, Burattini MN. HIV and Infections of Si-
primeiros serviços na região), Vietnam, China, In- milar Transmission Patterns in a Drug Injectors Community
donésia, Malasia e aqui em Myanmar. of Santos, Brazil. Journ. Acquir. Imm. Defic.Syndr. Human
Retrov. 1996; 12(1): 84-92. 14. Mesquita F, A perspectiva de Redução de Danos. São
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In: Almeida AR, Nery Filho A, Macrae E, Tavares LA, Ferreira ção de danos. São Paulo; 12 abr 2019.
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set 2020]. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/dis- 20. Organização Mundial de Saúde Europa (OMS – Euro).
Vera da RosI
Resumo Abstract
Advocacy e ativismo não são palavras intercambiáveis, mas no Advocacy and activism are not interchangeable words but in Brazil
Brasil estão sendo usadas como sinônimos. Com foco na Redução they are being used as synonymous. Focusing on Harm Reduction
de Danos, a fim de mostrar sua trajetória no Brasil e no mundo, o in order to show its trajectory in Brazil and in the world, based on
artigo abrange a história, o conceito e as políticas públicas sobre the history, concept and public policy on drugs. Talking about Harm
drogas. Falar sobre Redução de Danos refere-se a um Brasil que Reduction referring to a country, Brazil that more than thirty years
há mais de trinta anos aprendeu com a epidemia de aids traba- ago learned from the AIDS epidemic to work with the diverse, build
lhar com o diverso, construir parcerias e, assim, criar um tripé: so- partnerships and thus create a tripod: civil society, government
ciedade civil, governo e instituições internacionais. Evidenciam-se and international institutions. UN contributions and obstacles besi-
também contribuições e obstáculos impostos pela ONU, além dos des the civil society efforts to teach what is to take care of the edu-
esforços da sociedade civil para ensinar o que é cuidar e oferecer cation in drugs. The UN Conventions on drugs and other possibili-
educação em drogas. As convenções da ONU sobre drogas e ou-
ties of understand their undercover meanings. Highlight the role of
tras possibilidades de entender seus significados encobertos. O
civil society through an example how to be an international activist.
papel da sociedade civil é destacado através de um exemplo de
como ser um ativista internacional. Keywords: Activism; Harm reduction; UN.
Introdução - o ativismo
D
efinir ativismo em Redução de Danos é construir parcerias e, assim, criar um tripé: socie-
mostrar que intrinsecamente caminharam dade civil, governo e instituições internacionais.
juntos e sua trajetória no Brasil e no mun- Mas não foi nada fácil a introdução da Redução
do foi desenhada por várias mãos como é possí- de Danos na cultura brasileira que já havia intro-
vel entender ao se apropriarem das informações jetado o conceito de proibicionismo com todos
dos textos de outros autores que precedem este, os seus matizes ideológicos, tendências políticas
e rejeição de cunho pseudo-religioso. Um traba-
tais como: o histórico e o conceito de Redução de
lho de base para promover mudanças se fez ne-
Danos e políticas públicas sobre drogas.
cessário. O modelo brasileiro de ativismo replica,
Falar de Redução de Danos remete a um portanto, alguns movimentos internacionais. A
Brasil que há mais de trinta anos aprendeu com história e exemplo das sufragistas pelo mundo,
a epidemia de aids a trabalhar com o diverso, das organizações afroamericanas, da luta pelos
direitos humanos em países pós-guerras, da co-
I
Vera Da Ros (veradaros@gmail.com) é psicóloga e mestre em Linguística munidade LGBT incentivaram o ativismo brasilei-
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidente da
Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC). ro em Redução de Danos.
Por algum tempo usamos a palavra ingle- • eficácia se tem uma abordagem não contradi-
sa advocacy1 como sinônimo intercambiável en- tória ou mais suave.
tre os termos que definiam ações de mudança. Ativismo caracteriza-se por:
Atualmente, não temos usado o termo em inglês,
• política ou ação de usar campanhas vigorosas
mas é necessário que saibamos que os seus sig-
para promover mudanças políticas ou sociais;
nificados são diversos. Em princípio, o ativista
• às vezes, usar táticas como desobediência
“fala” em nome da causa, tem voz. Quando se
civil e ação direta não violenta como estratégias
faz advocacy, principalmente se escuta. Mas, tan-
deliberadas;
to o advocacy, quanto o ativismo são ferramentas
usadas para criar mudanças sociais e políticas. • tender a ser reativo a um problema;
Conferencia Internacional de Redução de Danos encarceramento das pessoas que usam, pro-
realizada em 1998, em São Paulo6. duzem ou fornecem drogas. Sabe-se que essas
Outro caminho que já percorríamos nacio- tentativas foram malsucedidas: apesar de todo
nalmente era o de influenciar as políticas públi- o investimento político e financeiro em políti-
cas para a inclusão de leis específicas locais e cas repressivas adotadas nos últimos 50 anos,
nacionais de Redução de Danos. Tínhamos vivi- as substâncias controladas internacionalmente
do, no início das ações de Redução de Danos, estão mais disponíveis e mais amplamente uti-
as consequências de não termos leis apoiando lizadas do que nunca. Segundo o “Drug Police
tais intervenções. Este histórico, no Brasil, evi- Guide”8:
dencia essa lacuna ao relatar prisões de agentes “…teoricamente, reduções na escala
redutores de danos realizando seu trabalho: tais dos mercados de drogas poderiam levar
ações punitivas baseavam-se na lei que crimina- a redução de danos, mas na prática o
lizava aqueles que incentivassem ou facilitassem contrário geralmente ocorreu. Por exem-
o uso de substancias proibidas pela lei e pelas plo, operações contra uma rede de ne-
convenções internacionais que serão detalhadas gociação podem aumentar a violência
em tópico próximo. com gangues concorrentes em luta e
A falta de leis que nos amparassem e uma ação contra uma substância espe-
as convenções extremamente restritas da ONU cífica pode levar as pessoas a mudarem
eram dois lados de uma moeda: para que fun- para substâncias que podem ser mais
cionassem as mudanças nas leis nacionais terí- prejudiciais” (p.8).
amos de influenciar as regras internacionais que A Redução de Danos, inicialmente, era
atingiam o Brasil e a todos os países. As confe- uma intervenção para minimizar os riscos de
rências e organizações internacionais, grupos da crescimento da epidemia da aids. Mas ques-
sociedade civil regionais e ativistas de Redução tões amplas de saúde, para além da infecção
de Danos se uniram em torno da necessidade de pelo HIV e também questões de direitos huma-
influenciar os nossos países e, assim, provocar nos, como o direito à saúde, à moradia, à edu-
algum eco na própria ONU e em outros financia- cação e ao trabalho tornaram-se um bloco con-
dores, como o Fundo Global, o Banco Mundial e sistente, o que amplificou e deu maior corpo
outras ONGs e fundações internacionais7. ao conceito de reduzir danos8. Tal conjunto de
preceitos tinha em seu arcabouço a diversida-
Metas desfocadas de de experiências e conhecimentos que une
países e pessoas, funcionando como um desa-
Os governos, até então, concentravam
fio que aproxima a todos, uma vez que desvela
grande parte de seus esforços na redução da
as dificuldades e soluções a dilemas que unem
escalada dos mercados de drogas acreditando
e separam a humanidade.
que isso eventualmente reduziria os danos rela-
cionados a essas substâncias. A linguagem em O único objetivo que se apresentava an-
que foram elaboradas as convenções da ONU so- terior à proposta de Redução de Danos era o
bre drogas insinua que somente alcançaremos de uma sociedade livre de drogas, mas perce-
os objetivos sociais e de saúde, através da in- beu-se que isso:
terrupção do fornecimento ilícito de drogas e do “..não é uma política sustentável e levou
a orientação incorreta da atenção e dos fazer um ativismo mais consistente, foram forma-
recursos para programas ineficazes, en- das ONGs e redes no Brasil. A Associação Bra-
quanto os serviços sociais e de saúde sileira de Redução de Danos (ABORDA), a Rede
com programas que comprovadamente Brasileira de Redução de Danos e Direitos Huma-
reduzem danos relacionados a drogas nos (REDUC) e a Rede Latino Americana de Re-
estão famintos de recursos e apoio po- dução de Danos (RELARD) foram criadas no final
lítico”8 (p.8). dos anos 19909, sendo as duas primeiras ativas
até hoje. O ativismo em rede se iniciava no Brasil
e na América Latina, envolvendo especialistas de
Parcerias e metas
vários campos e fortalecendo temas caros à nos-
Outra busca, que foi (e ainda é) desgas-
sa realidade.
tante para o ativismo em Redução de Danos,
Um dos primeiros temas que divergíamos
é a de projetos, trabalhos e financiamentos.
das propostas internacionais e que, até hoje, re-
Como a história da Redução de Danos no Bra-
tomamos e esclarecemos a necessidade de in-
sil aponta, no inicio de sua implementação em
tervenções de Redução de Danos para usuários
programas e políticas públicas havia o financia-
de drogas estimulantes, com o uso também não
mento federal para a realização de suas ativi-
injetado, ao contrário de todas as intervenções,
dades. Uma segunda fase, de descentraliza-
que primariamente são desenvolvidas para dro-
ção, ocorreu e as verbas tornaram-se controla-
gas injetáveis, problema este que aflige principal-
das em nível estadual, o que mudou totalmente
mente o hemisfério norte.
o panorama das ações, que passaram a de-
pender das autoridades locais para a manuten- Em 2010, a revista Lancet10 publica os 12
ção do trabalho proposto7. Pouco a pouco, tais mitos que estudiosos e público em geral tinham
verbas se diluíram em outras ações e poucos sobre uso de drogas e à medida que11:
estados e municípios seguiram implementando “…o debate internacional avança em rela-
atividades. De duas centenas ou mais de pro- ção à temática do HIV entre pessoas que
jetos, hoje, talvez tenhamos duas dezenas ou usam drogas, fortemente vinculada à via
menos. injetável de transmissão do vírus, outros
A ampliação das parcerias com institui- elementos vão surgindo, relacionados a
ções internacionais permitiu que alguns traba- questões estruturais de contextos de gran-
lhos importantes de Redução de Danos aconte- de vulnerabilidade social nos quais vivem
cessem. A ida a conferencias e visitas de cam- estas pessoas e que precisam ser consi-
po em outras realidades, que muitos redutores derados em relação à exposição ao vírus
de danos e especialistas em políticas de dro- e fortemente ligadas ao estigma e ao pre-
gas puderam realizar, acrescentaram experien- conceito como barreiras de acesso aos
cia às brasileiras e permitiram que levássemos serviços” (p.20).
nossas vivências, no mais amplo sentido, a ou- O ativismo principalmente da America La-
tros colegas do mundo. tina e muitas vezes encabeçado pelo Brasil, trou-
Dentro dessa perspectiva de unir nacio- xe para as mesas de discussão e, principalmente
nalmente os envolvidos para poder melhor atin- para pesquisadores, o desafio de ampliar ainda
gir as políticas públicas, trocar experiências e mais o conceito e mostrar a efetividade dessas
intervenções para abarcar outros usos de drogas. envolvidas nos projetos, como os profissionais da
O enfoque ganhou força quando se perce- área de saúde e social puderam ter contato com
beu que o principal problema nem sempre era o as realizações de Redução de Danos fora do pa-
uso de drogas, mas sim os ligados ao contexto ís, principalmente ativistas e redutores de danos,
socioeconômico desses usuários, quase sempre que nos anos 1990 eram, muitas vezes eles
marginalizados e com uma vasta gama de limita- mesmos, os próprios usuários dos projetos com
ções sociais e de saúde. A Redução de Danos, capacidade de liderança13. Em 1990, foi realiza-
assim, passa a incorporar além de facilidades de da em Liverpool a primeira conferência da Harm
higiene e repouso, o tema da moradia como prin- Reduction International (HRI); depois, anualmen-
cipal fator de proteção de redução dos riscos a te, essas conferências aconteceram em diversos
que esses usuários estão expostos. países14, como a já citada conferência realizada
no Brasil, em 1998. Em 1996, foi lançada a In-
Um excelente documento da Mainline12,
ternational Harm Reduction Association (IHRA), de
sobre uso de drogas estimulantes, alerta que:
forma a criar, internacionalmente, uma rede de
“… o uso problemático de estimulantes é,
comunicação e conhecimento na área.
em muitos casos, um problema social que
Resumindo, no Brasil democratizado dos
necessita de soluções estruturais. Isso re-
anos 1990 e estimulado pelos exemplos de ati-
quer centralização do foco não na substân-
vismo internacional, criaram-se as redes citadas.
cia per se. Pois, aquelas intervenções que
Os organismos multilaterais unem-se em uma re-
não se concentram na substância, como o
de de informações. O Programa de Aids do Minis-
alojamento e centro de convivência , por
tério da Saúde em parceria com o United Nations
exemplo, são capazes de diminuir o uso de
Drug Control Programme (UNDCP), hoje UNODC,
estimulantes e promovem consumo mais
lançou um projeto incluindo a Redução de Danos
controlado. Além do tratamento do abuso
para prevenção de HIV entre usuários de drogas
de drogas e serviços de redução de danos,
injetáveis15.
as pessoas precisam de programas que
promovam segurança, acolhida e estabili- Tal conjunto de trocas e conhecimentos
dade” (p.126). fez com que o Brasil se tornasse modelo e pas-
sasse a difundir formas de trabalhar, como o ou-
treach, ou seja, a estratégia de ir ao encontro
Internacionalização ou (des)nacionalização
dos usuários em seus locais de uso, como busca
Como já comentado, conferências interna- ativa. Essa estratégia foi, durante muito tempo,
cionais sempre permitiram trocas de saberes e uma vitrine da Redução de Danos no Brasil, pois
foram a primeira vertente de ativismo internacio- abordava toda a nossa diversidade de cenários
nal. Principalmente, porque o Programa de Aids de usos de drogas e territórios14 desde as pala-
do Brasil tinha seu financiamento internacional fitas, na Bahia, aos canos de esgoto, em Porto
intermediado pelo UNODC, naquela ocasião coor- Alegre. Visitantes de diversos países vieram co-
denado, no país, por uma pessoa que incentivou nhecer nosso programa e admiravam-se com a
ações e intervenções de Redução de Danos den- grandiosidade do número de seringas recolhidas
tro de nosso territórioIII.
Tanto os especialistas das universidades III
O Representante Regional do UNODC na época era o sr. Giovanni Quaglia,
italiano que trabalhou para a ONU de 1974 a 2009.
e a variada gama de intervenções de saúde e ser possuidor de cultura e isso o distingue dos
sociais. outros animais - comunicação oral, fabricação de
As intervenções in loco e abrangentes lo- instrumentos, modificação da natureza para ade-
go trouxeram à tona uma verdade escondida: a quar as suas necessidades e transmissão dos
discriminação racial, social, de gênero, LGBT e conhecimentos. A vida social é uma troca cons-
muitas outras. O que fazia lembrar as primeiras tante, um contínuo dar e receber. Didaticamente,
leis antiópio da década de 1870 adotadas nos podemos decompor a cultura em dois segmentos
Estados Unidos, dirigidas a imigrantes chineses. básicos: os elementos ambientais e objetivos da
Também nos Estados Unidos, as primeiras leis cultura e os elementos psicológicos ou subjeti-
anticocaína, do início dos anos 1900, foram diri- vos. Quando pensamos nos elementos objetivos
gidas a homens negros do sul do país, da mesma da cultura, podemos pensar em arquitetura, arte
forma que, as primeiras leis anti-maconha das e normas da comunidade para comportamentos
décadas de 1910 e 1920, no centro-oeste e no adequados e aceitos. Já os elementos subjetivos
sudoeste, foram direcionadas a migrantes mexi- dizem respeito a crenças, expectativas, valores e
canos e mexicanos-americanos16. normas familiares. Tais elementos, subjetivos e
objetivos formam um conjunto integrado que pos-
Hoje, as comunidades latinas e especial-
sibilita a solução de problemas por caminhos cul-
mente as negras ainda estão sujeitas a práticas
turalmente aceitos e prescritos. E, qualquer pro-
desproporcionais de aplicação de sentenças judi-
posta de trabalho no campo das drogas, precisa-
ciais nos casos de autuação por drogas. O Brasil
va e precisa conhecer e respeitar tais caminhos.
teve uma historia semelhante, ao discriminar mi-
norias, e o uso de drogas aqui também funcionou
como metonímia para diferenças que não eram Nada sem mim
aceitas pelas classes sociais mais poderosas. Na comunidade na qual estamos inseri-
Tal constatação mostrou aos grupos que dos, há jogos de influência que frequentemente
seriamente faziam trabalho focado nas políticas percebemos, mas que, às vezes, nem em nossa
de drogas, que fazer ativismo em Redução de Da- cultura percebemos claramente as forças que es-
nos era muito mais do que imaginavam: atingia tão em ação quando surge uma tensão, uma difi-
a seara dos direitos humanos14. A discriminação culdade. Como exemplo, primeiro pensemos em
“olha” o pobre com desprezo e, se esse pobre for como as regras (elementos subjetivos) de uma
usuário de drogas, não têm direitos, pois é desu- família tradicional afetam a pessoa; segundo, co-
manizado. O branco usuário de drogas precisa de mo atua o machismo; terceiro, como é encarado
tratamento, o negro usuário de drogas é visto co- o uso de álcool de um adolescente. Assim, te-
mo alguém que merece cadeia. O heterossexual mos um quadro de uma comunidade em que a
usuário de drogas é moderno, o LGBT usuário de correlação entre essas variáveis torna os jovens
drogas é depravado. mais suscetíveis e vulneráveis ao uso de álcool e
Por isso, projetos ou propostas precisa- outras drogas. A Redução de Danos, justamente,
vam ser adequadas a cada comunidade a que se leva em consideração esse conjunto de fatores
propunham, focando o conjunto de práticas, com- para pensar suas estratégias e ao mesmo tempo
portamentos, ações e instituições pelas quais as inclui todos os elementos da cultura e seus pro-
pessoas se interrelacionam. O homem é o único tagonistas. Temos aí a realização da forma mais
Não criminalizar desagradou os dois pa- universal e unificado de controle de drogas. Sua
íses que queriam rigor e punições a quem não diretriz é claramente intolerante e proibicionista
seguisse as normas. Assim, Estados Unidos e em relação à produção e fornecimento de estupe-
China, se retiraram das negociações que levaram facientes, exceto pela produção e fornecimento
à Convenção Internacional do Ópio de 1925, pois para fins médicos e científicos.
consideravam suas medidas insuficientemente Mas, a expansão das medidas de controle
restritivas. Além das drogas citadas, os Estados impactou diretamente os produtores tradicionais
Unidos pretendiam garantir a proibição da produ- da Asia, América Latina e África, onde o cultivo
ção e uso não médico de álcool, tentando repro- e o uso tradicional generalizado de papoula, fo-
duzir em escala internacional seu regime de proi- lha de coca e maconha estavam concentrados
bição de álcool, conhecido como Lei Seca, que na época.
permaneceu em vigor entre 1920 e 193316.
A Convenção Única estabeleceu a meta de
Os países proibicionistas sofreram reve- abolir os usos tradicionais de ópio em 15 anos e
ses por não conseguirem o apoio das potências os usos tradicionais de coca e cannabis em 25
europeias França, Grã-Bretanha, Portugal e Ho- anos. Ou seja, de 1964 quando começa a vigorar
landa, pois estas através de suas colônias, man- cria-se a expectativa de que, em 1979, o ópio
tinham o monopólio lucrativo de drogas (ópio, estaria eliminado do mundo e, até 1989, tam-
morfina, heroína e cocaína) destinadas ao mer- bém a cocaína e a maconha. Ao mesmo tempo
cado farmacêutico na Europa e nos Estados foram propostas tabelas de outras substâncias
Unidos16. que também deveriam ser classificadas e subme-
Com o sucesso e conquista de poder polí- tidas a controle em graus diferentes12.
tico, militar e econômico pós segunda guerra, os Nesse encontro, percebeu-se a necessi-
Estados Unidos impuseram um novo regime de dade de um novo tratado para fazer a distinção
controle de drogas e puderam aplicar a pressão (cientificamente questionável) entre os “narcóti-
necessária para impor a outros países o cenário cos” controlados pela Convenção de 1961 e as
das Nações Unidas. O clima político permitiu a chamadas “substâncias psicotrópicas”, concei-
globalização dos ideais proibicionistas antidrogas tos recém criados sem uma definição clara. Com-
para realizar seu intento de impor uma linha dura parado aos rígidos controles que as normas da
às drogas no resto do mundo12. Convenção Única impuseram aos medicamentos
derivados de plantas, o tratado de 1971 estabe-
A idéia de ter uma convenção única so-
leceu uma estrutura de controle menos rígida,
bre drogas foi mais uma vez uma iniciativa dos exceto o grupo 1, que inclui substâncias que re-
Estados Unidos, país determinado a impor um re- presentam um sério risco à saúde pública e que
gime restritivo a outras nações. Essa proposta não seriam reconhecidas pela Comissão de Es-
fez surgir a Convenção Única das Nações Unidas tupefacientes (CND) como tendo qualquer valor
sobre Estupefacientes, de 196116, visando subs- terapêutico. Isso inclui psicodélicos sintéticos
tituir os acordos internacionais anteriores que como o LSD e MDMA, comumente conhecido co-
haviam sido implementados desde a Convenção mo ecstasy; substâncias derivadas da cannabis
Internacional do Ópio. Esse novo tratado sistema- foram inicialmente colocadas no grupo 1IV, o mais
tiza e inclui novas disposições que não aparece- IV
Em 2020, seguindo uma recomendação da Organização Mundial de Saúde
ram nos tratados anteriores e cria um sistema (OMS), a Comissão de Estupefacientes (CND) reclassificou as substâncias
derivadas da cannabis para o grupo 2, menos restritivo17.
proibicionista ou a política local. Isto se viu nu- de candidatura, que envolveu desde tradução pa-
merosas vezes em documentos que passam pelo ra o inglês de todos os seus documentos e até
crivo de governos proibicionistas, que entendem relatórios detalhados.
“consequências adversas” a pessoa não ir para a Este trabalho compensa porque a REDUC,
prisão ou ter internação forçada quando usa dro- além de enviar representantes para reuniões co-
gas do grupo ilegal. Nesse raciocínio, será que mo as assembleias gerais da ONU, conhecidas
a indústria do álcool considera o uso de bebida como Special Session of the General Assembly
por jovens como minimização de riscos desses UNGASS (UNGASS), pode também transitar pelas
jovens usarem drogas ilegais? reuniões anuais da Comission on Narcotic Drugs
(CND)22, pode participar e também convidar estu-
Considerações finais - possíveis caminhos do diosos, acadêmicos, membros de ONGs do Brasil
ativismo internacional em Redução de Danos e do mundo para assistir reuniões que tenham
como foco a Redução de Danos, a política de dro-
O trabalho em rede tem se mostrado um
gas, os direitos humanos, o meio ambiente, as
forte aliado do ativismo; desde a criação das re-
políticas e discussões sobre mulheres ou qual-
des já citadas (REDUC, ABORDA e RELARD), per-
quer outro tema de interesse. Obter passes para
cebemos a sua força. Mais recentemente, criou-
entrar em reuniões da ONU, seja em Viena, Nova
-se a Plataforma Brasileira de Política de Drogas
Iorque ou Genebra, abrem portas, possibilitando
(PBPD)20 que não é específica em Redução de
o aumento do networking, atualização e apropria-
Danos, como as outras três, mas que possui em
ção de temas que ampliam a ação da REDUC e
seu bojo várias ONGs de Redução de Danos ou
das ONGs parceiras.
que encampam tais ações em sua prática.
Os cem anos de proibicionismo represen-
Um exemplo de ativismo em rede é o da
taram um tempo perdido em educação sobre dro-
REDUC, que além de ser parceira da ABORDA em
gas, que precisa ser recuperado. A Redução de
algumas intervenções, integra a PBPD. A REDUC
Danos poderá ser a forma de possibilitar o pre-
é também membro da ONG internacional Interna-
enchimento da lacuna secular que fez com que
tional Drug Policy Consortium (IDPC), que amplia o
a maioria das pessoas ficasse sem saber usar
ativismo e reforça ações conjuntas, principalmen-
drogas de forma segura, mesmo com uso cada
te na América Latina.
vez maior de drogas e cada vez mais potentes.
Outro forma de ativismo internacional pos-
Em termos de educação sobre drogas, um novo
sível para ONGs é ter status consultivo no United
ativismo acontece através da difusão das mídias
Nations Economic and Social Coucil (ECOSOC)21,
sociais e se espera poder recuperar parcialmente
ou seja ter acesso à ONU como observador e com
este hiato. A Internet, com sua linguagem obje-
voz em certas reuniões. O status consultivo for-
tiva e de agrado dos mais jovens tem se torna-
nece às ONGs acesso não apenas ao ECOSOC,
do uma grande difusora de educação em drogas
mas também a seus muitos órgãos subsidiários,
através de aplicativos, vídeos e debates.
aos vários mecanismos de direitos humanos das
Nações Unidas, bem como a eventos especiais Pela falta da cultura de uso de drogas se-
organizados pelo presidente. Para isso, a REDUC guro, nem mesmo o álcool que é uma droga legal
como qualquer outra organização da sociedade e não restrita pelos tratados da ONU, não vem
civil, seguiu um detalhado e trabalhoso processo recebendo, na maioria dos países, um cuidado
tudos e pesquisas. O ativismo de acadêmicos da 2. Hall S. Advocacy versus activism: what is the differen-
área da neurociência, em parceria com a socie- ce? Ruminating.org; 2018. (on line). [acesso em: 30 mar
2020]. Disponível em: https://ruminating.org/news/
dade civil engajada, tem trazido esses temas à
advocacy-versus-activism-what-is-the-difference/.
tona, mas ainda estamos longe do desenvolvi-
mento científico e aplicação terapêutica que po- 3. Representação como processo: a relação Estado/socie-
dade na teoria política contemporânea. Rev. Sociol. Polit.
deríamos ter alcançado.
2014. 22(50):175-199. (on line). [acesso em: 30 mar 2020].
A cannabis medicinal é a substância ile- Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
gal, segundo critérios dos tratados da ONU, mais arttext&pid=S0104-44782014000200011&lng=en&nrm=
discutida, tanto pelo ativismo nacional quanto pe- iso>.
lo internacional, essa aliança tem tornado o tema 4. Surjus LTLS, Silva PC. (Orgs.). Redução de danos: am-
mais aceito pelos políticos e, principalmente, pe- pliação da vida e materialização de direitos. São Paulo: Di-
versa, UNIFESP, UNIVESP; 2019. (on line). [acesso em: 21
la sociedade em geral. O uso comprovado para
abr 2020]. Disponível em: https://www.unifesp.br/campus/
as epilepsias graves de crianças e doenças dos san7/images/E-book-Reducao-Danos-versao-final.pdf
idosos ganhou a simpatia e o respeito da popu-
5. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS).
lação em geral, o que vem pressionando a mu- Wolrd Health Organization (WHO). AIDS epidemic upda-
dança de legislações e aceitação. É um primeiro te – december 2001. Genebra, 2001. (on line). [acesso
passo, mas ainda lento, pois com medidas mais em: 21 abr 2020]. Disponível em: http://data.unaids.org/
cias no tratamento do sofrimento psíquico, como 6. Gomes T.B, Dalla Vecchia M. Estratégias de redução de
danos no uso prejudicial de álcool e outras drogas: revi-
é o caso dos chamados psicodélicos, do daime
são de literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2018; 23(7):2327-
(ayuasca), ou da ibogaína.
2338. (on line). [acesso em: 30 mar 2020]. Disponível em
Portanto, muitos caminhos do ativismo : https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.21152016
foram abertos. Alguns ainda são pequenas tri- 7. Fonseca EM, Ribeir JM, Bertoni N, Bastos FI. Syringe ex-
lhas pouco estruturadas e sem pavimentação. change programs in Brazil: preliminary assessment of 45
Mas a Redução de Danos já tem uma história programs. Cad. Saúde Pública. 2006; 22(4):761-770. (on li-
ne). [acesso em: 30 mar 2020]. Disponível em: http://www.
longa24 e pode permitir que o futuro das políticas
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2
de drogas seja mais humano e menos repressi- 006000400015&lng=en&nrm=iso.
vo, pois, segundo Denis Petuco25, a Redução de
8. International Drug Policy Consortium (IDPC). Drug Policy
Danos “não apenas se favorece da democracia, Guide. (on line). [acesso em: 30 mar 2020]. Disponível em:
mas participa ativamente de sua construção e http://fileserver.idpc.net/library/IDPC-drug-policy-guide_3-
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rights-drugpolicy.org/site/assets/files/1/hrdp_guideli- poder. Curitiba: CRV; 2019.
nes_2019_v19.pdf.
Resumo Abstract
O consumo de substâncias psicoativas é hábito milenar, mas des- The consumption of psychoactive substances is an ancient habit,
de o século XIX, se observa um movimento proibicionista, que but since the 19th century, there has been a prohibitionist move-
tem papel hegemônico na questão das drogas e dita um controle ment, which has a hegemonic role in the issue of drugs and dicta-
social usando ferramental penal. A questão das drogas, sob um tes social control using criminal tools. The issue of drugs, under a
viés bélico e criminalizante, não traz efeito positivo esperado: a warlike and criminalizing bias, does not have the expected positive
erradicação ou diminuição do uso de drogas; e, ao contrário, traz effect: the eradication or reduction of drug use; and, on the contra-
malefícios como a marginalização do usuário, o cerceamento do ry, it brings harm such as the marginalization of the user, the res-
seu direito à saúde e de poder escolher pela aquisição de drogas triction of their right to health and of being able to choose by pur-
de melhor qualidade. A marginalização impacta, ainda, em seleti- chasing better quality drugs. Marginalization also has an impact on
vidade penal, onde, na sua maioria, homens, jovens e negros, são criminal selectivity, where, mostly, men, young people and blacks
parte de altos índices de encarceramento em razão de crimes re- people are part of high incarceration rates due to crimes related to
lacionados a delitos de drogas. Ainda se verificam relações entre drug crimes. There are still relationships between the phenomenon
o fenômeno da violência e sua articulação com as drogas. Como of violence and its articulation with drugs. As an alternative policy
política alternativa ao probicionismo, a Redução de Danos leva em to probationism, Harm Reduction takes into account the complexi-
consideração a complexidade do fenômeno e a multiplicidade de ty of the phenomenon and the multiplicity of variables, the indivi-
variáveis, a individualização do risco na cena do uso de drogas. Tal dualization of risk in the scene of drug use. Such a policy has hu-
política tem o direito humanitário como princípio basilar e consi- manitarian law as a basic principle and considers vulnerability as
dera a vulnerabilidade como critério de eleição para a adoção de the criterion of choice for the adoption of Harm Eeduction actions.
ações de Redução de Danos.
Keywords: Harm reduction; Prohibitionism; Drugs.
Palavras-chave:Redução de danos; Proibicionismo; Drogas.
Introdução
O
consumo de drogas e o conhecimento de
seus efeitos decorrem de hábitos milena-
I
Maurides de Melo Ribeiro (mauridesribeiro@uol.com.br) é advogado. Mes- res, sendo que “o limite do consumo, do
tre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (FD-USP) e Pesquisador do Laboratório de Estu- hábito, do apego, da paixão e do vício é sempre
dos de Política e Criminologia (PolCrim) do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP). determinado pelo contexto particular de cada
II
Antonio Carlos Bellini Júnior (bellini@bellinijunior.com.br) é advogado. época e sociedade” (p.52)1.
Doutorando em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas da Uni-
versidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP) e Pesquisador do Labora- Durante o período das grandes navega-
tório de Análise Espacial de Dados Epidemiológicos (epiGeo) do DSC/FCM/
UNICAMP. ções, o que se inicia no século XVI, um grande
ser observada com o claro processo de seletivi- “a maior parcela da vitimização por intervenções
dade penal10. policiais, com 33,6% das vítimas neste extrato
O Levantamento Nacional de Informações etário” (p.61)11.
de Penitenciárias, no período de julho a dezembro Sobre essa relação da juventude e jovens pobres:
de 201910, informa – referente aos presos daque- ”As favelas e periferias urbanas pas-
le sistema - a quantidade de incidências por tipo sam a ocupar um lugar estratégico para
penal; no total foram 989.263 incidências, sen- o forte mercado de drogas, recrutando jo-
do que desta totalidade, 200.853 incidências es- vens pobres para o tráfico. As disputas por
tão relacionadas a delitos de drogas (20,28%). E, pontos de venda de drogas entre facções
destas incidências em tipos penais de drogas, os inimigas e o enfrentamento direto com a
homens representavam 183.077 casos e as mu- polícia agregaram ao mercado de drogas o
lheres os outros 17.506 casos. As informações mercado de armas, dando início a uma ver-
gerais acerca de toda a população prisional, por dadeira guerra civil que se encontra inseri-
faixa etária, mostra que jovens de 18 a 24 anos da num “ciclo global de guerras” (p.155)12.
são 23,29% de toda esta população e, de 25 a
Ainda decorrente dessa guerra às drogas,
29 anos, mais 21,5%; a somatória dessas duas
observa-se o fenômeno da violência e sua arti-
faixas de idade atingem 44,44% de toda popula-
culação com as drogas. Esse fenômeno é muito
ção carcerária no período averiguado. Quanto à
complexo13 e a “demonização do tráfico de dro-
composição dessa população prisional por raça-
gas fortaleceu os sistemas de controle social,
-cor, pardos compõe 328.108 presos, ou seja,
aprofundando seu caráter genocida” (p.135)14. E,
49,88% da população, e pretos são 110.611 pre-
essa violência, em suas diferentes vertentes, im-
sos (16,81%), compondo ambos a população ne-
pacta substancialmente no sistema de saúde:
gra, segundo a classificação adotada pelo IBGE
“Por ser um fenômeno sócio-histó-
que soma pretos e pardos, ainda que o levanta-
rico, a violência não é, em si, uma ques-
mento não se utilize desta terminologia, totalizam
tão de saúde pública e nem um problema
66,69% do total de pessoas encarceradas.
médico típico. Mas ela afeta fortemente a
Chama a atenção que, entre 2017 e 2018,
saúde: 1) provoca morte, lesões e traumas
no Brasil, foram analisadas 7.952 mortes por
físicos e um sem-número de agravos men-
intervenção policial. Ao se analisar o perfil das
tais, emocionais e espirituais; 2) diminui a
vítimas nesses casos, verifica-se que a sobrer-
qualidade de vida das pessoas e das co-
representação de determinados grupos sociais
letividades; 3) exige uma readequação da
é a mesma que aquela observada no aprisiona-
organização tradicional dos serviços de
mento: 99,26% das vítimas de letalidade policial
saúde; 4) coloca novos problemas para o
são do sexo masculino (mas só cerca de 48% da
atendimento médico preventivo ou curativo
população é deste sexo); o percentual de negros
e 5) evidencia a necessidade de uma atua-
mortos pela polícia é de 75,4% (mas só aproxima-
ção muito mais específica, interdisciplinar,
damente 55% da população brasileira é negra);
multiprofissional, intersetorial e engajada
e, por fim, jovens de até 29 anos representam
do setor, visando às necessidades dos ci-
78,5% das vítimas letais das intervenções poli-
dadãos” (p.45)15.
ciais, sendo que jovens entre 20 e 24 anos são
Redução de Danos: uma política pública danos a usuários” (p.116)16. Em Portugal, o Plano
alternativa - definição, principiologia e critério Nacional Estratégico 2005-2012 se assenta em
de adoção seis grandes eixos; o eixo que trata que cuida
da redução da demanda dá ênfase a cinco sub-
Como verificado, os impactos da política
-áreas, uma delas, a redução de riscos e danos
proibicionista são extensos e complexos, e, jus-
(p.128)16.
tamente por isso exigem uma discussão que não
pode, nem deve ser simplista ou rasa. O estudo aponta:
o pragmatismo das intervenções” (p.129)6. Essa 11. Bueno S, Forum Brasileiro de Segurança Pública. Aná-
é a política de Redução de Danos, que se mos- lise da letalidade policial no Brasil. Anuário brasileiro de
Segurança Pública 2019. São Paulo: Fórum Brasileiro de
tra como alternativa viável na “questão das dro-
Segurança Pública; 2019. 13:61-63. (on line). [acesso em:
gas”, já tendo sido adotada em diversos países, 25 set 2020]. Disponível em: https://www.forumseguran-
e que pode ser abordada com maior amplitude no ca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FI-
NAL_21.10.19.pdf
Brasil.
Resumo Abstract
Tomando como ponto de partida a etimologia do termo cultura Taking as a starting point the etymology of the term culture, and a
realiza-se uma rápida exposição da noção de cultura na antropo- quick exposure of the notion of culture in anthropology, from ethno-
logia, do etnocentrismo a diversidade, da cultura como signo hu- centrism to diversity, culture as a human sign, subjectivities and
mano, subjetividades e os usos de drogas como cultura constran- the use of drugs as culture constrained by the intensity of market
gidos pela intensidade dos processos de mercado e pela ideologia processes and neoliberal ideology.
neoliberal.
Introdução
A
escrita deste texto trouxe uma série de di- dentro de um mundo que alarga e escancara ca-
lemas por envolver uma relação tão ampla da vez mais as diferenças: a alta concentração de
entre o termo “Redução de Danos” e todo renda, com consequente aumento da pobreza, e a
o campo de significado que pode ser abrangido defesa cínica e aberta de tudo aquilo que se julga-
pela noção de “cultura”. O grande desafio que se va indefensável.
colocava ao lado e ao largo é também uma certa Tempo de declínio das reflexões e da “cul-
insatisfação contemporânea em relação ao trata- tura”, do predomínio das, assim chamadas redes
mento que vem sendo dado ao campo de reflexão “sociais” e que, ao se apropriarem do termo “so-
da ciência, das instituições, da vida social e das cial” se propiciam, por um lado de uma rápida e
palavras. Para além de uma generalidade e de um intensa conectividade positiva, inclusive para o de-
aviltamento da reflexão em torno de textos e pala- bate, e por outro, reduzem o sentido da palavra
vras ditas, continuamos a acreditar que as pala- “social” da reflexão sobre os modos de vida, os
marcadores de diferença e o estado das pessoas
vras devem fazer sentido e que se tornam também
em sociedade. Essa denominação redes sociais
um terreno de navegação difícil, pois estão cada
passou a designar o circuito das relações pesso-
vez mais atravessadas por um campo político,
ais, supondo uma homogeneidade entre todos os
seres, até que se tornem por algum motivo uma
I
Rubens Adorno (rubens.adorno@gmail.com) é antropólogo com Especia-
lização, Mestrado e Doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São “celebridade”. Tempo de refletir até que ponto
Paulo, Professor Aposentado da Universidade de São Paulo, atualmente par-
ticipa dos Programas de Pós Gradução em Sustentabilidade e Saúde Global a cada vez maior aceleração desse mundo e da
e Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da mesma universidade.
disputa nessas “redes” não traz um desbalanço Pois, apenas para iniciar, provoco que uma
para a própria rotação e devir do mundo. das possibilidades de incorporar o termo das cul-
Além dessas questões, me pus a pensar turas talvez seja uma forma de encontrar linhas de
quem seria de fato o leitor /interlocutor de uma fuga para manter a diversidade do mundo e, nesse
publicação sobre a Redução de Danos. Os pró- sentido, aumentar as chances de voz e os espa-
prios praticantes da redução, movimentos sociais, ços para as infinitas opressões presentes hoje, no
profissionais assalariados do setor Saúde? Isso mundo.
fez com que fizesse e refizesse os temas e o en- O termo “cultura”, talvez em um sentido di-
cadeamento do texto. Também tomei a decisão de ferente do que apontamos para o termo “social”,
não me estender demais nas trilhas, indagações vem há longo tempo também sofrendo um intenso
e possíveis desdobramentos do assunto, buscan- desgaste em seu significado, não só pela exten-
do uma abordagem se não genérica, pelo menos são e generalidade de seu uso, mas pelo esvazia-
mais geral sobre esses temas amplos. Nesse sen- mento do debate em torno dos seus significados
tido, também me justifico desde já pela ausência
que ficam reduzidos, a mais das vezes, a ícones
de muitas citações que poderiam ser referidas em
preconizados, pré-definidos e pré-estabelecidos.
um trabalho mais extenso e exaustivo.
Ícones que, por trazer já sua definição, correm o
Por fim, fiquei a pensar no sentido da Re-
risco de estimular verdades essencialistas e cren-
dução de Danos; trata-se de algo que vem sem
ças fundamentalistas como sinônimos de “cultu-
dúvida com a intenção e o gesto de aproximar pes-
ra”. Esse desgaste promovido pela promoção de
soas, possibilitar espaços de liberdade e autono-
um novo conservadorismo aliado ao mercado e a
mia para grupos colocados na invisibilidade, dis-
“saúde” do capital financeiro, também opera em
criminados e, certamente, no patamar do que o
filósofo Agamben retoma como o “homo sacer”1,II: relação às chamadas “Ciências Humanas” ou hu-
a vida nua, aqueles que podem deixar de viver. manidades. Entretanto, em determinados circuitos
Quem sabe nós todos, numa altura desse mundo, acadêmicos e em algumas áreas e movimentos
se não for detida toda essa onda que alia pen- sociais, assistimos a um intenso debate que sus-
samentos de extrema direita e liberalização dos tenta a reserva crítica necessária à sobrevivência
mercados e fluxos intensos de capitais, não nos de ideais de autonomia e reflexão.
tornaremos todos “homo sacer”. Mas, voltando ao Discorrer um pouco mais sobre uma narra-
fio do assunto, a Redução de Danos trata-se de tiva a respeito das culturas(s) e da compreensão
uma “rede” que envolve militâncias, saberes, cul-
do conceito de “homem”, como diversidade, torna-
turas, ações e luta por espaços das políticas am-
-se nesse tempo uma Redução de Danos à falta
plas abrangidas pelo amplo campo contemporâ-
completa da percepção. Seja pela generalidade e
neo, que envolve a Saúde e que aqui estou alargo
apropriação desses termos (cultura e sociedade)
seu significando como a defesa do direito das pes-
considerados não técnicos e, por isso, passíveis
soas a decidir e ter apoios, quando necessários,
sobre a gestão de seus corpos e de suas vidas. de serem interpretados sem restrições ao fazerem
Um campo que envolve subjetividades e, portanto, parte daquilo que todos sabem e todos podem
culturas. opinar.
II
Homo sacer era uma expressão jurídica usada na antiguidade clássica para
se referir àqueles que poderiam morrer.
trabalhos etnográficos que foram problematizando essa ação pós-colonial se intensifica, no sentido
o próprio conceito etnocêntrico de cultura. Desde de deslegitimar as diferenças e a diversidade so-
então, um grande desafio da Antropologia tem si- bre os outros que vivem nas fronteiras nacionais
do o de identificar e estender os limites do huma- ou não das sociedades.
no, encontrando sua síntese em diferentes modos Tornou-se então imperativo para o deba-
de vida e de cultura como parte de um mesmo te e o conhecimento produzido no campo da An-
mundo/natureza, construindo a evidência da ideia tropologia a crescente percepção da diversidade
de homem, como uma espécie a ser caracteriza- dos homens e de suas especificidades culturais
da por sua diversidade, e a percepção que a his- que incorporam seus modos de vida, bem como
tória das sociedades e suas mudanças possibili- o desafio de compreender e reconstruir os crité-
tam ampliar o campo das diversidades entre os rios internos que cada cultura utiliza para a sua
homens. autorreflexão4.
Necessário frisar que esse processo, que A percepção da existência de uma diversi-
não foi um processo pacífico; se o confronto ori- dade cultural trouxe duas implicações de caráter,
ginou um entendimento da diversidade como ine- digamos, teórico-político; a primeira, de instaurar
rente a cultura, o projeto expansionista europeu a reflexão relativista ou a noção de relativismo cul-
foi, talvez, um dos processos mais violentos da tural, que por si só incorria e incorre em levar a um
história. Michel Taussig3 descreve e interpreta co- profundo círculo vicioso de algo como “cada um
mo a dramaticidade do confronto foi também pro- cada um”; e daí a segunda implicação, que era e
dutora da violência e do extermínio, reproduzindo, que tem sido a de confrontar as diferenças com
a partir de narrativas e relatos de colonizadores e a hegemonia da cultura dita ocidental; ou seja, a
viajantes, a inscrição da dominação e da morte do compreensão de que existem diversos e muitos
“outro”, como parte desse empreendimento. modos de vida e que posicionam os homens na
Por outro lado, será a partir das culturas vida contradiz construções fundamentadas em or-
“nativas” que a modernidade pode, no plano cultu- dens originárias da força e do poder e, também,
ral, possibilitar a partir das “culturas” do “outro”, confronta a ideia de que isso ou aquilo seria algo
das sensações, cheiros, aromas, paladares, plan- natural ou próprio do homem; quer isso dizer: a
tas exóticas, desde a comida, aos cheiros, ritmos que homem está-se “naturalmente” referindo?
e sons e o alargamento dos dispositivos senso- Conforme então citam Gilberto Velho e Vi-
riais e estéticos; um processo de reencantamento veiros de Castro4:
do mundo e certamente do campo da cultura.
“A Antropologia completou a “devora-
Se essa trama se desenvolveu a partir de ção” ocidental das diferenças, ao se propor
um originário projeto colonial de expansão das eco- como “tradutora” para o discurso científico
nomias de mercado desde o século XV, podemos da multiplicidade vivida de esquemas cogni-
arriscar dizer que as fronteiras desse projeto/ação tivos e emocionais que os homens usaram
colonial, tomado como um projeto etnocêntrico e para se pôr no mundo. Mas esse canibalis-
evolucionista, se mantém através de uma razão mo evita um outro pior — a destruição ce-
de força e de impositividade de forma latente e ga, em nome dos benefícios da civilização
manifesta na contemporaneidade. Para além das ocidental, de tudo aquilo que é diferente.
fronteiras geográficas, continentais e territoriais, Assim, com a decadência do evolucionismo
ingênuo que a marcou em sua infância, a pode pensar nos homens na vida, a partir de
Antropologia inscreve-se definitivamente no múltiplas naturezas ou condições.
movimento geral de autoquestionamento A diferença cultural tornou-se, portanto,
da civilização ocidental. O espelho do Outro um dado irredutível. Entretanto, notamos que,
assola a consciência do século XX. Os movi- por inércia ou por repetição, o uso da expressão
mentos culturais fundamentais que iniciam “natureza humana” ou a referência abstrata “os
esta época — o surrealismo, a lingüística, a homens sempre foram assim ou assado”, para
psicanálise e o socialismo — estão marca- além do denominado senso comum, segue a
dos pela negação dos “centrismos” narcísi- aparecer inclusive como um jargão repetitivo em
cos que dominaram o Ocidente. E tais movi- alguns produtos acadêmicos, notadamente os
mentos muito devem à Antropologia, como da área da “Saúde Pública/Coletiva” latu sensu.
se pode observar” (p.6).
E, como veremos na chamada área das
Apesar de todo esse movimento que ao drogas ditas ilegais, essa noção genérica e abs-
olhar para a multiplicidade de modos de vida dos trata de homem ou natureza humana é que tem
humanos e, inclusive, para o desvelamento de ló- fundamentado as bases dos pregões proibicio-
gicas que passaram também a deconstruir noções nistas e repressivos.
de moralidade e da alma, como citam ao final os
Por fim, há que se destacar, no desen-
autores em relação ao Surrealismo, a Psicanálise
rolar da discussão de cultura no campo da An-
e ao Socialismo, persiste como a visão restrita,
tropologia e perante uma visão mais recente da
fundamentalista e simplista uma noção de huma-
interpretação das relações dos diferentes “ho-
no pretensamente calcada na unidade biológica,
mens” com os seus mundos/cultura, de que
que inclusive parte de uma noção descontextuali-
essa se apresenta como uma linguagem, um
zada e individualizada da vida. Dizemos isso por-
conjunto de significados incorporado aos mo-
que, partindo dos pressupostos das diversidades
vimentos, às agências e as sensibilidades dos
e dos distintos modos de estar no mundo, o con-
corpos. Uma linguagem serve para interligação e
ceito de “vida” também se requalifica como algo
comunicação; linguagens são compostas de sig-
que só pode existir a partir de conjuntos diversos
nos e significados; assim também, os códigos,
e complexos que relacionam homens aos lugares
símbolos, significados compõem linguagens pró-
e ao mundo.
prias da cultura que passam a ser incorporadas
O reconhecimento da diversidade cultu- a determinados contextos. De acordo com Cli-
ral implica, inclusive, na desmontagem do Mode- fford Geertz5, que por sua vez se baseia em uma
lo Evolucionista de homem e de cultura, quando frase clássica de Max Weber, o homem é um
mostra que há diferentes formas, modos, manei- animal que vive em uma teia de significados que
ras de se fazerem os homens. ele mesmo construiu. Este entendimento leva a
Importante, considero, sublinhar que a evi- uma ruptura não apenas interpretativa, mas fun-
dência da diversidade cultural de onde se depre- dante da própria espécie: dá conta de que, pa-
ende que a ideia de “homem”, enquanto espécie, ra sobreviver, os homens, além de se alimenta-
só pode ser tomada e reconhecida a partir da di- rem para restituir digamos as energias, necessi-
ferença; ou seja, falar de natureza humana pode tam de estar imersos em universos simbólicos,
ser tomado como um mito, pois na verdade só se sejam eles apoiados em crenças, tradições,
representações, relações de proximidade e paren- contribuir inclusive para ajudar a demonstrar teo-
tesco que tenham significados, etc. Entender a cul- ricamente novas maneiras de olhar para drogas,
tura como linguagem que perpassa e dá vitalidade usuários e cuidados.
e sentido aos corpos humanos significa compreen- Cita MacRae6:
der que, nos mais variados grupos, contextos da
“Howard Becker, um dos pioneiros
sociedade e em grupos e sociedades específicas,
do estudo das dimensões sociológicas da
essas linguagens significam um compartilhamento
questão das drogas, chama atenção para
e, ao mesmo tempo, operam como um sistema de
a importância de um saber sobre as subs-
interpretação do mundo e dos outros externos a
tâncias que se difunde entre seus usuários.
esses grupos/contextos.
Constatando que as idéias do usuário sobre
Compreender a cultura como uma lingua- a droga influenciam como ele as usa, inter-
gem, que interliga e faz parte da vida e sentido preta e responde a seus efeitos, Becker ar-
ao movimento dos corpos humanos, também pro- gumenta que a natureza da experiência de-
blematiza uma noção prevalente na Biomedicina pende do grau de conhecimento que lhe é
contemporânea: a de que a vida está limitada ao disponível. Já que a divulgação desse saber
funcionamento, movimento e “instintos” do corpo é função da organização social dos grupos
como um organismo físico, inerte e isolado, a um onde as drogas são usadas, os efeitos do
sistema de órgãos que demandam e que reagem uso irão, portanto, se relacionar a mudan-
a estímulos exteriores e obstruções e ao funciona- ças na organização social e cultural” (p.2).
mento interno desse sistema. Os corpos, seus de-
sejos, movimentos, sensações, afetividades têm
Uma referência clássica de Howard Becker
seus sentidos na vida perpassados pela cultura,
é o seu didático e famoso artigo sobre o uso da
esse complexo e diverso e, no caso da contem-
cannabis e os músicos de jazz7. Um dos pontos
poraneidade, cada vez mais incessante e inten-
altos desse trabalho é demonstrar que o uso de
sa produção de conjunto de símbolos, imagens,
uma substância envolve um processo complexo
crenças, gostos, paladares, consumos etc.. que
de educação estética e sensorial e o de como um
passam e interligam os corpos humanos, dando
uso de substância potencializa o domínio de apri-
sentido a vida cotidiana e aos diferentes modos
moramento de estética e da sensibilidade no cam-
de vida.
po da música, em particular da carreira do jazz que
ele etnografa.
Da cultura como campo de significados e o olhar
Ainda, é MacRae que registra os trabalhos
sócio-cultural no campo das drogas
pioneiros que no Brasil iniciaram uma abordagem
Coube, no Brasil, a Edward MacRae6 ini- das Ciências Sociais, contribuindo para deslocar a
ciar as narrativas sobre um olhar cultural sobre as reflexão sobre o campo de consumos de drogas/
drogas e seus modos de uso. Essa percepção é psicoativos ao domínio das subjetividades produ-
contemporânea às primeiras ações de Redução zidas no contexto ainda do período da Ditadura
de Danos, que surgem no contexto da epidemia Militar brasileira: cita que foi Gilberto Velho que
do HIV/aids. Este autor, que descreve como deter- introduziu os trabalhos de Howard Becker no Brasil
minados textos das Ciências Sociais tornaram-se e que também apresentou talvez a primeira tese
importantes para iniciar esse debate e puderam em que etnografa o uso de drogas consideradas
ilegais entre as classes médias no Rio de Janeiro8. surgimento de várias etnografias no Brasil e em
Refere ainda MacRae, a pesquisa da antropóloga outros contextos, surge a partir da visibilidade que
Janirza Cavalcante da Rocha Lima que, inspirada o tema das drogas vai readquirir a partir da década
pela tese e pela metodologia de Gilberto Velho, de 90 do século XX, em vários países
realizou possivelmente a primeira etnografia bra-
sileira sobre usuários de drogas injetáveis, ao tra-
Neoliberalismo, subjetividades e as cenas
tar do uso de AlgafanIV,9. Também o autor registra,
de uso público: cultura, mercado e territórios
como primeiros estudos nesse campo no Brasil,
psicotrópicos
a pesquisa etnográfica de Fernandez, iniciada em
A “questão das drogas” ganha intensa visi-
1988 e terminada em 1993, que constatou vários
bilidade a partir de contextos urbanos do final do
casos de uso de drogas injetáveis, a estigmatiza-
século XX. Trata-se de uma questão complexa, que
ção que os cercava e a consequente dificuldade
envolve processos de intensificação da sociedade
de acessá-los por parte dos serviços de saúde10.
capitalista de mercado, a intensificação das mo-
Em relação à ação de Redução de Danos,
bilidades, transações comerciais e financeiras e
no âmbito do uso de drogas injetáveis, podemos
o desenvolvimento de mercados paralelos/ilegais
citar o trabalho de Cristiano Gregis, em Porto Ale-
que acentuam os processos de concentração de
gre11. O autor também vai registrar como o traba-
renda e o empobrecimento de grandes parcelas
lho de Redução de Danos pode se constituir numa
de populações, processos políticos e suas conse-
“competência cultural”, na formação de Enferma-
quências internacionais, nacionais e locais. Esses
gem. Citando seu trabalho de campo desenvolvi-
processos aumentam grandemente as pressões
do no âmbito do Programa de Redução de Danos
sobre grande parte da população que, além de
de Porto Alegre, entre 1998 e 2000, o autor afir-
sua sobrevivência, afetam a possibilidade de sua
ma que, para além da troca de seringas, pode-se
autonomia. Esses processos de aprofundamento
apreender maiores complexidades ante a questão
das diferenças contrastam com a intensificação
das drogas12.
da oferta de consumo. O consumo e a oferta, am-
As referências que citamos, reiteramos, pliação e velocidade dos consumos, que represen-
dão conta, no caso do Brasil, do início da reflexão tam também a intensidade, livre fluxo e liberdade
sobre o uso das chamadas drogas ilícitas a par- de circulação e acumulação do dinheiro nas mãos
tir de uma abordagem sócio-cultural. A partir de dos cada vez mais ricos, talvez se torne a expres-
então, desenvolve-se praticamente um campo de são mais visível dessa intensificação da economia
estudos e debates sobre o fenômeno das drogas, capitalista; processo que vem sendo conhecido
sociedade e cultura que não pretendemos aqui como o de uma investida “neoliberal” ou da he-
esgotar, mas que pode ser exemplificado, no Bra- gemonia de uma teoria “neoliberal sobre a vida e
sil, pelos diversos temas e níveis de abordagem a sociedade” e que terá consequências bastan-
presentes na coletânea: “Drogas e Cultura: Novas te devastadoras na destituição de modos de vida,
Perspectivas”13. sobrevivência das populações mais empobrecidas
Um campo mais complexo, que envol- e limitadas ao acesso à vida e ao consumo.
ve o tema dos usos e da Redução de Danos e o Como cita David Harvey14, a respeito dos
pressupostos da teoria neoliberal:
IV
Algafan é o nome comercial do medicamento analgésico do grupo de
narcóticos. “ O neoliberalismo é , antes de tudo,
uma teoria sobre práticas politico econô- países, mas também as respostas constrangi-
micas que afirma que a melhor maneira das que os sujeitos procuram criar ante a essas
de promover o bem-estar do ser humano situações. Através das subjetividades, se realiza
consiste em não restringir o livre desenvol- o efeito das estruturas econômicossociais sobre
vimento de suas capacidades e liberdades as pessoas e também a expressão que elas pos-
empresariais do indivíduo dentro de um sam ter como resistências e linhas de fuga às
marco institucional caracterizado pela de- situações a que lhes são colocadas. Nesse senti-
fesa forte dos direitos da propriedade priva- do, as subjetividades devem ser entendidas mui-
da, mercados livres e liberdade de comércio to mais como um conceito cultural/social do que
“ e continuando : “o processo de neolibera- como forma de expressão da vivência subjetiva
lização trouxe um processo de “destruição como tradicionalmente conceituado15. A expres-
criativa” (sic) não só nos marcos dos pode- são de processos de constituição que envolvem
res institucionais existentes ( desafiando in- a construção das subjetividades contemporâne-
clusive as formas tradicionais de soberania as tem sido referidos também pelo conceito de
estatal) nas relações sociais, nas áreas de “sofrimento social”.
proteção social, nas combinações tecnológi- Os chamados “territórios psicotrópicos”
cas, nas formas de vida e pensamento, nas e a construção do uso de drogas como um “pâni-
atividades de reprodução, nos vínculos com co moral” são epifenômenos desses processos
a terra e nos hábitos do coração...” (p. 6-7)V. de mudanças na economia capitalista e de seu
Ou seja, a adoção e prática de uma dou- projeto contemporâneo fortemente embasado e
trina/ideologia neoliberal veio significar uma no- justificado pela ideologia neo-liberalVI.
va investida colonial sobre a vida das pessoas e Os usos públicos/visíveis de drogas con-
da sociedade e um efeito opressor e avassalador sideradas ilegais em espaços urbanos contem-
sobre a cultura como expressão da vida humana. porâneos são fenômenos complexos que envol-
Trata-se pois da imposição da ideia de instalação vem, além da produção dessas “subjetividades”,
de um único modo de vida, que une a a ação em- a existência e expansão de mercados considera-
presarial de realizar negócios, acumular dinheiro e dos ilegais, mas que se constituem como empre-
ter como garantia um Estado que deixa de prover endimentos paralelos perfeitamente conectados
proteção social e se torna um defensor forte das com a expansão sem fronteiras dos livres merca-
atividades privadas e, consequentemente, da re- dos capitalistas fortemente protegidos pela pro-
pressão de outros modos de vida. priedade privada e pelo Estado.
As consequências das transformações No Brasil, o aparecimento do que foi pro-
causadas pela intensificação do capitalismo con- duzido midiaticamente e registrado de múltiplas
temporâneo, estimulado, justificado e orientado formas, inclusive no terreno acadêmico, como
pela doutrina neoliberal vem sendo descrita, in- “cracolândias”, representa um tipo de expres-
terpretada e denunciada através do que vem sen- são que designou os “territórios psicotrópicos”,
do chamado de “subjetividades”, que significa parte referida da produção de estudos de etno-
não apenas a interpretação da opressão desse grafias urbanas sobre drogas. Podemos citar as
movimento global sobre os sujeitos, localidades,
VI
Usamos aqui propositalmente o termo ideologia, pois se trata delibera-
damente de um pressuposto doutrinário imposto através de uma razão de
V
tradução e grifos nossos. mercado e de poder.
pesquisas mais conhecidas de Bourguois16, nos Braços Abertos28. Além disso, a Redução de Da-
Estados Unidos; Fernandes17 e Vasconcelos18, em nos passou a ser adotada em muitos municípios
Portugal e no Brasil, entre muitas publicações19-27. na atenção básica em saúde29.
Os “territórios psicotrópicos” são, portan- Importante salientar que as questões con-
to, efeitos e construções inseridas no panorama temporâneas nesse campo, que envolvem a pre-
das investidas de mercado e produção das subjeti- sença de atores sociais em espaços quando não
vidades; neles, registram-se ações de assistência apenas discriminados, alvo de verdadeiras estra-
e de defesa de direitos, realizadas por movimen- tégias de guerra, demonstram cenas e embates
tos e atores sociais, e a atividade de repressão,
que se inscrevem nas construções de subjetivi-
extremamente intensa e constante no caso dos
dades contemporâneas. Através de conflitos, re-
territórios brasileiros. São nesses territórios que
sistências, linhas de fuga às mais variadas opres-
atualmente podemos registrar conexões entre
sões que os sujeitos sofrem a partir de estruturas
ações de Redução de Danos e a construção de no-
locais, nacionais e globais, resultado das forças
vas formas de subjetividades entre intervenções,
direitos e usos. de mercado e da disseminação e aplicação de
princípios de uma ideologia neoliberal e de sua
Algumas etnografias apresentam a própria
postura de medo e insegurança consignada em
presença das ações de Redução de Danos, como
também os registros de ações de Redução de Da- estratégias como a propagação de “pânico moral”
nos presentes no cotidiano do uso das drogas e consignados em políticas de governo e de Esta-
que são desenvolvidas pelos próprios usuários. do, empreende-se a cínica política de repressão e
A tese de Taniele Rui21 tem grande parte de sua defesa de extermínio de determinados sujeitos da
entrada em campo e registro a partir do acompa- sociedade, estimulando por outro lado os empre-
nhamento de uma equipe de redutores na cidade endimentos de livre ação de mercados, inclusive
de Campinas, estado de São Paulo; Selma Lima os ilegais, chamados também de “paralelos” e que
da Silva19, ao centrar sua etnografia nas mulhe- acabam por impor formas e produtos de consumo
res que usavam crack e participavam do mercado de psicoativos e incluir, no regime de mercado, as
sexual da região do bairro da Luz, em São Paulo, populações mais destituídas e marginalizadas. A
mostra como o controle do uso do crack era fei- presença de mercado também se coloca em re-
to através de um regime de super alimentação –
lação ao considerado regime de tratamento dos
comer muito reduzia a intensidade do uso e era
diagnosticados como “dependentes químicos”,
assimilado como um cuidado com o corpo; assim
que por razões de mercado, também serão sujei-
também como o distanciar-se dos territórios psi-
tos tratados pelas drogas medicamente prescritas
cotrópicos. Essas ações de estratégia de redução
e também ligadas ao mercado. E, novamente, a
de uso desenvolvidas pelos sujeitos também se
constituíam em buscar momentos de afastamento história se desdobra na resistência e nas ações
dos locais de uso ou de perceber equipamentos de poder em determinado momento reduzir/resis-
dispostos no território da cidade que evocavam a tir/exterminar esse maior dano; por aqui, essas li-
vontade de usar mais as drogas18. Nesse sentido, mitadas armas da utopia da cultura da reflexão.
também as políticas públicas, como as desenvolvi-
das na cidade de São Paulo, como o Programa de
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Dizer a droga ouvir as drogas – estudos teóricos e empíricos
Antonio Nery FilhoI, Eroy Aparecida da SilvaII, Patrícia Maia von FlachIII
Resumo Abstract
Este artigo tem como objetivo apresentar a história, trajetórias e This article aims to present the history, trajectories and move-
movimentos do Coletivo Intercambiantes Brasil nos campos da ments of Coletivo Intercambiantes Brazil in the fields of Mental
Saúde Mental, álcool e outras drogas, sob a perspectiva contra Health, alcohol and other drugs, from the perspective of hegemony
hegemônica e emancipatória com as pessoas que habitam as and emancipation with the people who inhabit the streets, valuing
ruas, valorizando as possibilidades dos encontros potentes e the possibilities of powerful and transforming encounters.
transformadores.
Keywords: Intercambiantes Brasil; Psychoactive substances; Stre-
Palavras-chave: Intercambiantes Brasil; Substâncias psicoativas; et people; Harm reduction.
Gente de rua; Redução de danos.
A
orientação central deste trabalho consis- TQI+, dentre outros – tornando-se, após a Decla-
te no relato histórico e crítico do Coletivo ração Universal dos Direitos Humanos de 10 de
Intercambiantes Brasil, através de seus dezembro de 1948 (que não é em verdade univer-
movimentos de resistência, das conquistas e sal, mas eurocêntrica) – a referência na luta pelo
desafios travados em diferentes tempos e espa- direito à vida digna para todos os humanos1.
ços sócio-político-institucionais, considerando a Apesar das vitórias e conquistas, no cam-
atual conjuntura política do Brasil, e instigados po social, as derrotas também são grandes e ge-
pelas vozes da rua, dos hospícios, das prisões, radoras de um contexto de medo do presente e
dos guetos, das periferias, das fronteiras, cujos da desesperança em relação ao futuro, principal-
históricos muros coloniais de dominação – reais mente com o fortalecimento incontestável do ne-
e simbólicos – apenas serão derrubados na arti- oliberalismo, que ataca os direitos econômicos e
culação ética e bioética entre todas as gentes e sociais, bem como da emergência da extrema-di-
todos os saberes, assim emancipatórios e gera- reita em todo o mundo, pondo em risco os direi-
dores de justiça e liberdade. tos civis e políticos. Imersos numa crise econômi-
Para tanto, nos apoiaremos, inicialmente, ca sem fim e em meio a uma pandemia causada
nos trabalhos contra-hegemônicos de diversos por um vírus desconhecido – o novo coronavírus
autores do campo das Ciências Sociais e Políti- e sua consequente doença, a COVID 19 – os tra-
cas, a exemplo de Boaventura de Sousa Santos, balhadores são cada vez mais destituídos de di-
sociólogo ativista dos Direitos Humanos na luta reitos, os povos de diversas culturas são alvo
contra a globalização neo-liberal e seus efeitos de mais preconceitos e violências; as mulheres
perversos. e as pessoas LGBTQI+ são vítimas constantes
de agressões simbólicas e reais; os fundamenta-
A história dos Direitos Humanos deve ser
lismos religiosos nunca foram tão escancarados,
refletida e tornada experiência compreendida,
a natureza tão ameaçada pela perturbação/des-
através dos seus momentos luminosos e, tam-
truição de ecossistemas, aquecendo o planeta e
bém, obscuros, marcados pela contradição de
sufocando a vida e a democracia tão fortemente
ser, por um lado, a linguagem e a referência de
ameaçada por governos voltados à garantia do
luta para todos os excluídos de oportunidades
benefício de poucos, em detrimento da maioria,
sociais na defesa de uma sociedade mais justa
sob o olhar cúmplice da Justiça.
e mais pacífica; e, por outro, pelo instrumento de
opressão capitalista e colonialista na manuten- As questões a serem levantadas e refle-
ção de uma sociedade cada vez mais desigual. tidas pelas pessoas e coletivos em luta por uma
Ao longo da história das lutas humanas no campo sociedade para todos podem ser: são os Direitos
dos direitos, desde o século XVI - que certamente Humanos, ainda, um instrumento capaz de trans-
refletem o jogo de correlação de forças pelo po- formar o medo e o desespero em esperança?V A
der no mundo -, tratados e convenções interna-
cionais foram sendo construídos, entre avanços V
Santos1 considera, a partir do filósofo do sec. XVII, Baruch Espinoza, que
medo sem esperança leva à desistência e esperança sem medo pode levar a
e recuos no campo de alcance dos direitos civis, uma autoconfiança destrutiva, referindo-se ao medo cada vez mais desespe-
rançado, parte da vida cotidiana dos oprimidos, e a autoconfiança destrutiva
políticos, sociais, econômicos e culturais para dos opressores que transformando as fundações dos direitos humanos em
ruínas mortas, caem no esquecimento; mas, se transformadas em ruínas
as minorias mais invisibilizadas – como os povos vivas, podem alimentar um aprendizado para a ação/construção de direitos
humanos contra-hegemônicos.
é que, apesar destas serem lutas de longa dura- sentido de um paradigma capaz de apreender a
ção, pois que civilizatórias, não temos todo esse experiência social no mundo, entendendo ”Sul”,
tempo frente à destruição ocasionada pela vora- como uma metáfora do sofrimento social huma-
cidade do fascismo social e desenvolvimentista, no, produzido pelo capitalismo, pelo colonialismo
entrelaçando tempo presente e futuro e exigindo e pelo patriarcado e considerando que a ”Rein-
insurgentes reinvenções; venção da Emancipação” é uma necessidade his-
tórica e sua potencialidade está nos aprendiza-
• a uma necessária luta pela justiça históri-
dos advindos do/com o Sul. Configura-se, assim,
ca, frente à violência de outros tempos, que con-
outra racionalidade nos caminhos emancipató-
voca diferentes conceitos de representatividade
rios através de uma “Sociologia das Ausências”VI,
politica, considerando que a representatividade
que transforma invisibilidades em presenças, e
quantitativa ou por maioria não contempla a defe-
de uma “Sociologia das Emergências”, que subs-
sa de povos que são minorias por terem sido dizi-
titui o vazio do futuro por possibilidades diversas.
mados (e continuam sendo) pelos colonizadores,
Por outro lado, a identificação e revelação dessas
e que lutam por um futuro que não é só deles,
experiências potentes exige um trabalho de “tra-
mas de todos, como por exemplo, a defesa por
dução”, processo fundamental para a construção
um planeta “vivo”;
de alianças e articulações entre movimentos e
• a necessária luta por uma globalização
vivências emancipatórias, revelando sentidos e
contra-hegemônica – e seu embate com a globali-
direções de transformação social e exigindo para
zação neoliberal – com a articulação de todas as
tanto uma “Ecologia dos Saberes”, que faz entre-
gentes e povos na/para a construção de outros
laçar vivências e conhecimentos distintos incor-
caminhos emancipatórios:
porados nas diversas realidades sociais. Na luta
“...a desumanidade e a indignidade do hu-
mano não perdem tempo a escolher entre VI
“Sociologia das Ausências”, investigação que visa demonstrar que o que
não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é,
as lutas para destruir a aspiração humana como uma alternativa não credível ao que existe.
pelo futuro, Santos3 propõe uma democracia radi- Foi este, exatamente, o trabalho crítico
cal de todos os espaços-tempos, transformando desenvolvido pelo professor-pesquisador baiano
relações de poder desigual em relações de res- Gey EspinheiraVIII. Ele defendia que as Ciências
peito reciproco e solidário, com a construção de Sociais precisavam estar a serviço das transfor-
novas formas de sociabilidade amparadas por no- mações sociais e utilizava a “Sociologia de Inter-
vos valores, novas concepções de mundo, nova venção”, de Rémi Hess, como prática nos traba-
ética, reinventando(nos) na emancipação, numa lhos desenvolvidos em comunidades periféricas
utopia crítica possível e necessária para constru- de Salvador8 (p.16). Considerava esta sociologia
ção de outros mundos4-5. uma metodologia emancipatória, cujo campo de
No Brasil, os sociólogos/militantes do atuação é a vida social em determinado espaço
“Sul”, a exemplo de Jessé Souza, consideram social, com as pessoas reais, em relação, na ar-
que o conhecimento é uma estratégia politica te das convivências, cabendo ao sociólogo “...re-
utilizada por diferentes grupos de interesse. Nu- alizar o desencobrimento, o de revelar o oculto,
ma perspectiva emancipatória, faz-se necessário o de esclarecer o enigma da vida social. Reler,
o desencobrimento dos “discursos de verdade” também, o que já conhecido poderia aparecer de
que sustentam os grupos dominantes no poder outro modo aos nossos olhos” (p.26).
pelo monopólio das ideias, utilizadas como práti- Para além da aparência há sempre outros
cas nas lutas pela apropriação dos capitais eco- sentidos, ou existências possíveis a serem reve-
nômicos e políticos. Nesta perspectiva, Souza6 ladas e, nesse processo, nos afetamos e gera-
argumenta que “...a “crítica das ideias dominan- mos uma ação transformadora que constrói ou-
tes” é a primeira trincheira de luta contra os ‘in- tras existências, numa interação implicada entre
teresses dominantes’ que se perpetuam por se pensamento, emoção e ação. “...ação de saber e
travestirem de supostos interesses de todos” de fazer, portanto de conhecer, de desencobrir”8
(p.13) e afirma que o seu esforço tem sido o de (p.79).
utilizar o conhecimento como “arma de comba- Gey Espinheira destacava a convivência
te”, possibilitando ao cidadão brasileiro destituí- como essencial nesse processo de construção
do das disposições para compreender a “ordem do conhecimento-transformação, argumentando
das coisas”7,VII, tornar-se sujeito de seu destino. que “...o impacto da sociologia de intervenção
À Ciência Social crítica cabe, segundo Souza6: está no fato de que o conhecimento produzido é
“...dar voz ao sofrimento, à humilhação e transmitido aos atores envolvidos para o conheci-
à dor silenciados pelas interpretações do- mento de si mesmos e do mundo em que estão,
minantes daqueles a quem faltam armas a partir da experiência vivida, da intervenção”9
para expressar e fazer valer sua indigna- (p.71).
ção e revolta justa [...] Seu dever é, em
resumo, parafraseando Pierre Bourdieu, A “ordem das coisas” se refere ao que faz acontecer o discurso dominante,
VII
Com estes autores, sociólogos militan- história individual e coletiva, presente e futura,
tes, aprendemos que toda resistênciaIX se revela de toda gente. ”Contar” é colocar-se como sujeito
no cotidiano, na relação, incontida, incontrolável, na história, é marcar posição política no espaço
pulsante. Essa potência da vida e luta política, social e nas lutas por existências com dignidade.
que só pode ser construída a partir de/no encon-
tro e convivência entre os humanos, nas práticas
- ... e como tudo começou?XII
cotidianasX, nos espaços possíveis – quer seja
Recorro, para iniciar este relato, à fórmula
a rua, a casa, as instituições, as Universidades
empregada por Roberto Calasso em seu livro “As
- tornados lugares praticados12 erigidos entre as
Núpcias de Cadmo e Harmonia”14. Tudo tem mais
vicissitudes e as potências, entre/nos corpos
de um começo, porque acode a várias memórias
que dos sofrimentos sociais fazem resistências
e circunstâncias. No caso do Coletivo Intercam-
e transformações13. O Coletivo Intercambiantes
biantes, não é possível atribuir seu início a uma
Brasil insere-se nesta dimensão, como veremos
decisão antecipadamente refletida, mas a várias
a seguir.
histórias que confluem no tempo e que podem, a
posteriori, ser compreendidas e resignificadas à
O Coletivo Intercambiantes: ativistas dos Direitos luz de doutrinas do campo da Sociologia, como
Humanos contra-hegemônicos, nos campos da acima apresentadas.
Saúde Mental, álcool e outras drogas - trajetórias
Uma das histórias diz respeito ao traba-
e movimentos
lho construído pelo Centro de Estudos e Terapia
O Coletivo Intercambiantes nasceu e se do Abuso de Drogas (CETAD), ao longo de mui-
configura enquanto movimento social que articu- tos anos, sob a égide da Faculdade de Medicina
la sujeitos em luta por justiça social. Trataremos, da BahiaXIII, voltado para o cuidado aos usuários/
aqui, de suas trajetórias e movimentos enquanto usuárias de produtos psicoativos e seus familia-
possibilidade de reflexão, trabalho e luta anti-he- res. As diversas ações e invenções de seus téc-
gemônica, revelados através da história e voz dos nicos ultrapassaram as fronteiras da cidade de
“oprimidos”XI, fundamental para a produção de Salvador e da Bahia, possibilitando que eu fosse
outra “visão de mundo”, já que “o incons33cien- convocado pelo Secretário Nacional de Políticas
te é a história – a história coletiva que produziu Sobre Drogas Leon Garcia, em nome de sua equi-
nossas categorias de pensamento, e a história in- pe, em 2015, para participar na condição de Con-
dividual por meio da qual elas nos foram inculca- sultor do Projeto RedesXIV, ocupando o mesmo
das”13 (p.19). Quem conta e como conta a história
faz e fará toda a diferença para a construção da XI
Colocamo-nos aqui como parte dos cidadãos do mundo oprimidos pelo
capitalismo feroz e suas formas de dominação antidemocráticas, coloniais
e patriarcais.
IX
Peter Pál Pelbart considera que existe uma potência da vida que ele chama XII
Toda essa história é aqui apresentada a partir do relato do autor, Antonio
de biopotência que compreende “as modalidades de resistência vital” que Nery Filho, idealizador do Coletivo Intercambiantes.
se concretizam na vida se fazendo, “...a vida em estado de variação. Esses
modos menores de viver que nos habitam e que nos rodeiam e com os quais O CETAD foi inaugurado em 25 de julho de 1985, no Centro Social Urbano
XIII
nós, na maioria, aqui, trabalhamos”10 (p.19). ruínas mortas, caem no esque- da Caixa d’Agua, equipamento da antiga Secretaria do Trabalho e Bem Estar
cimento; mas, se transformadas em ruínas vivas, podem alimentar um apren- Social. Inicialmente, Atividade de Extensão do Departamento de Anatomia
dizado para a ação/construção de direitos humanos contra-hegemônicos. Patológica e Medicina Legal, Universidade Federal da Bahia, foi transferido
para o bairro do Canela em 1993. Seu fundador, Prof. Antonio Nery Filho,
X
Para Michel de Certeau11, “...o cotidiano se inventa com mil maneiras de dirigiu este Centro até abril de 1994, quando se aposentou.
caça não autorizada” (p.38), com suas múltiplas táticas de resistência, silen-
ciosas ou não, inventivas sempre, pelas quais as pessoas se reapropriam do XIV
Projeto REDES, desenvolvido pela Secretaria Nacional de Política Sobre
espaço (praticado) compondo uma rede de “antidisciplina” não reconhecida Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça entre 2014 e 2017, tinha por obje-
formalmente, mas legítima enquanto forma de enfrentamento a ordem das tivo, fortalecer a intersetorialidade nas cinco Regiões do Brasil, envolvendo
coisas. 54 municípios.
título do saudoso Antonio LancettiXV. Deste mo- presente Ruth Dreifuss, ex-presidente da Suíça,
do, pude trabalhar com 28 localidades, reunindo discordei da expressão ”sala de uso seguro”, im-
gestores, técnicos dos serviços de Saúde Mental plantadas com sucesso naquele país, propon-
e, em particular, aqueles voltados para o cuidado do denominá-las ”sala de uso protegido”, posto
de pessoas usuárias de álcool e outras drogas. que não há uso seguro e sempre pode acontecer
Também participei de encontros com pessoas da um acidente. Uso protegido, significava, protegi-
comunidade em ”sessões abertas ao público”XVI. do das diversas violências, passível de cuidados
Minha trajetória no campo do cuidado de médicos e psicológicos quando problemas sur-
pessoas usuárias e com problemas de álcool, gissem. Nisto, fui apoiado por Antonio Lancetti.
medicamentos e outras drogas foi marcada pe- Em outra reunião, com Leon Garcia e Melissa
la inabalável convicção da importância das his- Azevêdo – responsável/protetora por toda minha
tórias e vicissitudes humanas, longe da impor- aventura no RedesXIX –, me foi solicitado ”ani-
tância que se atribuía - e se atribui, ainda – aos mar as pessoas e os grupos”. Entendi isto como
produtos psicoativos, convicção nascida da mi- ”acender a chama do cuidado e da alegria junto
nha convivência com os ‘loucos perigosos’, que aos trabalhadores”. E, assim, pude reencontrar
haviam cometido delitos graves, em geral homi- velhos amigos e fazer novos.
cídios, quando trabalhei no Manicômio Judiciário Em alguns lugares, encontrei equipes
da Bahia, por dois períodos distintosXVII. Depois, cansadas, desanimadas pelas imensas dificulda-
com o Claude OlievensteinXVIII, fortaleci este en- des oriundas de administrações que pouco en-
tendimento e tive seu apoio incondicional para tendiam das necessidades próprias do trabalho
enfrentar as oposições e dificuldades nos traba- no campo da Saúde Mental e, em particular, do
lhos desenvolvidos, alguns inspirados em seu cuidado aos usuários de produtos psicoativos
texto mais conhecido, ”Os Drogados Não São Fe- ilícitos. Em outro lugares, encontrei equipes re-
lizes”15. Impossível deixar de reconhecer algumas sistentes, inventivas, incansáveis, verdadeiras
semelhanças entre nossas iniciativas, guardadas equipes “irredutíveis”. Com pesar, constatei a au-
as devidas proporções e importâncias. Se em Pa- sência, em quase todas as localidades, de ati-
ris, Olievenstein apontou que todo o trabalho foi vidades voltadas para a formação e supervisão
difícil, aqui, abaixo do Equador, às dificuldades permanentes, indispensáveis para o trabalho, e
beiravam, às vezes, o impossível. para a proteção da saúde física e mental dos(as)
Sob efeito de minhas histórias, levei para trabalhadores(as).
o trabalho no Redes a experiência acumulada ao Enquanto transitava pelo Brasil, convo-
longo de mais de trinta anos. Em uma das primei- cado pelas equipes que se ”candidatavam” para
ras reuniões em torno do Projeto, na qual estava me receber, percebia as ”nuvens de tempestade”
XV
Antonio Lancetti nasceu na Argentina e foi exilado político no Brasil desde mento), num primeiro período entre fevereiro de 1971 e agosto de 1973,
1979. Psicanalista e militante da luta antimanicomial, liderou a intervenção depois, entre fevereiro de 1978 e março de 1979.
que fez de Santos a primeira cidade brasileira sem manicômios. Foi consultor
do Ministério da Saúde e idealizador do Programa De Braços Abertos. Dirigiu
XVIII
Claude Olievenstein, abriu as portas do Centre Médical Marmottan, em
a valiosa coleção SaúdeLoucura, publicada pela editora Hucitec. É autor de Paris, no dia 21 de julho de 1971, orientado por princípios éticos, distancian-
“Clínica Peripatética” e “Contrafissura e plasticidade psíquica”. Faleceu 14 do-se das práticas médicas autoritárias e segregadoras. Para ele, a Liberda-
de dezembro de 2016, aos 67 anos. de era fundamental e as pessoas, mais importantes do que os produtos. Ver
seu livro: “Os drogados não são felizes”15. Do original francês: Il n’y a pas de
XVI
Embora não caiba neste texto descrever toda esta extraordinária e enrique- drogués heureux. Conheci Marmottan em 1983, iniciando frutosa colabora-
cedora experiência, produtora de conhecimentos, efeitos e afetos. ção, sustentada durante os dez anos seguintes.
XVII
Trabalhei no antigo Manicômio Judiciário (hoje Casa de Custódia e Trata- XIX
Como Nara Vieira, entre outros.
1975, e Presidido pela Dra. Graciela Touzé. Argentina; Julio Calzada e Esperanza Hernandez, do Uruguai.
em 2015, o programa radiofônico “Drogas, Fique um blog, através do qual têm sido divulgados tex-
por Dentro”XXV, atividade semanal que possibilita- tos produzidos por diversos(as) intercambiantes,
va a discussão de questões quase nunca abor- além de inúmeras e importantes lives. Em maio
dadas pela grande mídia, longe do sensaciona- de 2019, além dessas atividades, foi realizado
lismo redutor e causa de desinformação. Neste o “Encontro Regional Nordeste”, envolvendo os
programa, profissionais de diversas regiões do núcleos da Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Nor-
país apresentaram, ao longo dos últimos seis te e Pernambuco. Neste importante evento foram
anos, seus trabalhos e refletiram sobre questões discutidas questões relacionadas às particulari-
de sociedade, sempre que possível, esclarecen- dades nordestinas e locais, resultando em pla-
do a importância e o lugar das substâncias psi- nejamentos e encaminhamentos voltados para
coativas e seus consumos; a segunda atividade, o fortalecimento dos Núcleos Intercambiantes,
denominada ”Diálogos Intercambiantes’, apoiada para o desenvolvimento de atividades orientadas
pela Defensoria Pública da Bahia, especializada pela Redução de Danos, para a melhor ocupação
em Direitos Humanos, consistiu-se em entrevis- dos espaços existentes, dentro e fora da acade-
tas transmitidas ao vivo. Esta atividade, mensal, mia, além da ampliação das atividades culturais
foi interrompida após sua terceira edição, tendo e alianças com outras instâncias organizadas da
repercutido largamente, e, por isso, merece ser, sociedade. Cabe, também, destacar as precio-
oportunamente, retomada; a terceira atividade sas referências bibliográficas sugeridas semanal-
consistiu na ocupação de um haut lieu de Salva- mente, aos domingos, pelo intercambiante Wag-
dor, a pequena Igreja do Largo de Santana ergui- ner Caldeira Filho, do Pará.
da no século XIX e situada no bairro do Rio Ver-
melho, local de renomadas atividades culturais e - ...e para onde caminhamos?...
religiosas, a exemplo da festa de Iemanjá, reali- Seguiremos no reconhecimento das po-
zada no dia 2 de fevereiro. Nesses locais, foram tências do Coletivo Intecambiantes que se faz e
iniciadas, em 2019, diversas atividades deno- refaz nos encontros respeitosos entre “todos” e
minadas ”Conversando na Praça, escutando na com cada um, on line ou presencialmente, como
for possível. Para além das experiências e efeitos
Rua”, envolvendo saraus músico-literários, rodas
já mencionados ao longo do texto, em um pro-
de conversa em particular sobre o consumo de
cesso políticossocial contraditório marcado por
psicoativos e as infecções sexualmente transmis-
avanços e recuos, afirmamos que há uma poli-
síveis (IST), ”troca-troca” de livros, exposições,
tização em prática – especialmente nesses tem-
dentre outras intervenções sociais. Estas ativida- pos de pandemia – em torno da dor tornada luta
des continuam sob o modo virtual em razão da – palavra que não é utilizada ao acaso. A atuação
pandemia de coronavírus. Destacam-se, ainda, cotidiana do Coletivo Intercambiantes, implicado
as atividades desenvolvidas pelo Núcleo Inter- eticamente, é luta, é impulso de libertação, é mo-
cambiantes de São Paulo, capital, através de su- vimento de resistência intenso e insistente, que
as inúmeras atividade de rua e do fortalecimento exige tempo, que envolve riscos e uma ética das
de parcerias. Mais recentemente, inauguraram situaçõesXXVI (e não das verdades e realidades
XXV
Este programa, inicialmente patrocinado pela Secretaria Municipal de Saú-
de de Salvador, foi mantido por decisão da Direção da Rádio Metrópole (FM XXVI
Diz Badiou20, em relação à Ética: “...vamos referi-la a situações. Em
101.3 mHz), sob minha condução e contando com a participação permanen- lugar de fazer dela uma dimensão de piedade pelas vítimas, torná-la-emos a
te das psicólogas Patrícia Flach e Renata Pimentel e, mais recentemente, máxima duradoura de processos singulares. Em lugar de pôr em jogo apenas
com a bioeticista e professora da Faculdade de Medicina da UFBA, a advoga- a boa consciência conservadora, traremos à tona o destino das verdades
da Camila Vasconcelos. (p.17)”.
sempre temporárias e diversas)20; também envol- Caminhando sob a proteção ética, para
ve investimento entre humanos para que mudan- construções emancipatórias: encontros nas ruas
ças cognitivas, perceptivas e corporais sejam ha- - a vida pulsaXXVIII
bilitadas nos/pelos sujeitos em interação, nesse Como intercambiante e ativista dos di-
campo que é sempre um campo político, pois, reitos humanos trabalhando e transitando pelas
como afirmava Rosemeire Silva (in memoria): “Já ruas da cidade de São Paulo, escutando e aco-
não nos contentamos em assistir passivamente lhendo pessoas excluídas usuárias de substân-
aos efeitos da fome e da miséria, da violência cias psicoativas e lutando por anos em defesa de
e da morte como destino único para brasileiros políticas antiproibicionistas e antirracistas, cons-
desprivilegiados. Estamos em luta”21 (p.132). truídas nas potências dos encontros entre pesso-
Assinalemos, para não concluir, a impor- as, no meio de lixos, escombros, “arvores habi-
tância e contribuição da Bioética – entendida em tacionais”, matagais, barracas, malocas e/ou em
sua proposição inicial como ”uma ética de pro- buracos escuros secretos, meus olhos já assisti-
teção da vida” – para nossos movimentos inter- ram muitas tragédias e meus ouvidos escutaram
cambiantes, como foi afirmado na “Declaração narrativas inacreditáveis. Estes locais são “abri-
de Salvador”18, nas situações compartilhadas e gos criativamente” arquitetados como alternativa
refletidas, nas estratégias de resistência plane- de moradias nos bairros longínquos e periféricos
jadas e implementadas de várias formas e em nas grandes cidades. Imprescindíveis à escuta e
vários espaços – inclusive aqui –, pois que são ao acolhimento, com uma postura (bio)ética para
as denúncias bioéticas que suscitam discussões iniciarmos o trabalho de cuidado orientado pelas
e a busca de soluções em uma perspectiva da práticas protetivas emancipatórias; ou seja, uma
ética aplicada às situações da vida cotidiana. As aposta e crença na potência dos humanos mes-
atuações do Coletivo Intercambiantes apoiam- mo frente às atrocidades físicas, econômicas e
-se, em sua essência, na Bioética, na medida em sociais. Vários sentimentos paradoxais tomam
que trata do sofrimento social, existencialmente conta de mim, porque os cenários são vivos, ver-
humano, na/para proteção dos oprimidos e na dadeiros e representativos do mais completo es-
construção conjunta de saídas coletivas, com tado de desamparo e abandono. Mas, ao mesmo
respeito à autonomia, às singularidades contex- tempo, muita vida resistente, trabalho, luta diária
tuais e às liberdades individuais, num movimento contra a investida policial que retira seus poucos
de luta e resistência política, considerando que pertences, encontros solidários entre eles mes-
não existe neutralidade – mas sim radicalidade mos e, também, aonde as substâncias psicoa-
– como evidenciam duas das Escolas Bioéticas tivas estão presentes, talvez como um apelo ou
Brasileiras: de Intervenção e de ProteçãoXXVII. caminho para o sonho e a vida! Em meio aos es-
combros, a vida pulsa! E insiste em continuar...
Muitas histórias de pessoas que encontrei viven-
XXVII
A Bioética de Intervenção foi proposta em 2002, pelos Professores Vol- do nas ruas da cidade poderiam ser narradas
ney Garrafa e Dora Porto22, e se caracteriza pela inclusão neste campo, das
situações persistentes e situações emergentes, próprias aos países do aqui, são muitas... tragédias, vidas matadas,
Hemisfério Sul, enquanto que a Bioética da Proteção, proposta por Firmim
Schramm e Miguel Kottow23, sustenta ser responsabilidade do Estado, prote- des(amores), nascimento de filhos na rua; “noita-
ger os vulnerados/vulneradas (feridos/as).
das noiadas”, desaparecimentos de pessoas, do-
Narrativas descritas pela autora Eroy Aparecida da Silva, a partir de seus
XXVIII
registros no diário de campo por suas itinerâncias intercambiantes em vá- cumentos e identidades perdidas, comemorações
rios bairros periféricos da cidade de São Paulo.
de encontro com os irmãos de rua, violência re- dia seguinte, rasgava os papéis porque achava
lacionais/familiares e de Estado, fugas, prisões, que aquilo era algo sem importância nenhuma,
solturas, encontro de familiares desaparecidos bobagens de sua cabeça. Ao perceber que gosta-
por muito tempo, internações, perda de memória va de tudo isso, eu o convidei a não rasgar mais
e identidade, doenças, mortes... as histórias que escrevia. Sua história rendeu
Selecionei apenas algumas delas para mais de duzentas e cinquenta páginas!
ilustrar as minhas itinerâncias nas ruas, acom- Aos poucos, ele foi escrevendo sobre sua
panhando e intervisonando equipes de profissio- própria vida e como chegou a São Paulo. Lem-
nais ou coletivos que militam em defesa da vida. brou da primeira namorada, ainda em Ilhéus, na
A rua é um espaço de encontros humanos! São Bahia, com quem começou a fumar maconha aos
eles que importam, me transformam e, também, 16 anos e a beber socialmente. Seus pais bebiam
vezes sim e outras não, fazem da rua, casa, não muito e batiam nos filhos com a intenção de edu-
porque “optaram” por isso, mas por condições cá-los, ambos faleceram em Ilhéus, quase que si-
adversas de um contexto social em que a vida multaneamente, quando ele tinha uns 18 anos; o
humana se coisifica. pai morreu primeiro, de tanto beber cachaça, e a
mãe, nove meses depois, também de beber. Ele
- a casa entre árvores: tinha muita raiva de apanhar, às vezes até sem
Meu encontro com Letrado, 38 anos, ne- saber por quê, pois quando os pais “pegavam pa-
gro, baiano, separado, sem filhos, morando na ra bater” em um, todos apanhavam. Caçula de
rua desde os 23 anos de idade, se deu em 2019, quatro filhos, todos homens, assim que os pais
através de uma equipe de redutores de danos faleceram, os três irmãos mais velhos partiram
que atuava com ele. Fui incluída no seu grupo para o garimpo, nunca mais os encontrou e não
sem enfrentar nenhuma resistência. Ele mora em sabe onde estão. Ele ficou morando na casa de
uma mata na região sul da cidade de São Pau- uma vizinha em Ilhéus, cujos dois filhos estuda-
lo, com seu cachorro Piloto, junto com mais dois ram com ele e lá tomou gosto pela leitura. Mas,
amigos e uma amiga. Eles se conheceram na rua, sentia que precisava ir embora; queria mesmo
em 2018, e cansados de dormir em viadutos aon- era viver na cidade grande, sonhava muito com
de comumente viviam e tinham seus pertences prédios altos, ter liberdade, não morar na casa
roubados ou retirados por policiais, perceberam dos outros. Trabalhou como pedreiro em Ilhéus,
existir em plena cidade uma mata. Então, porque ganhou um pouco de dinheiro para poder sair dali.
não conhecê-la e construir seus barracos? Letra- Muitas lembranças tristes e de maus tratos. Um
do é o apelido que o grupo lhe deu porque, além belo dia, colocou “as trouxas” nas costas e de
de gostar bastante de funk, lê também notícias carona seguiu para São Paulo. Demorou mais de
de jornais e revistas que acha nas ruas, mesmo vinte dias viajando. Quando chegou ao Mercado
que sejam antigas. Municipal, aonde o caminhão da carona o deixou,
Letrado foi me contando sobre sua vi- ficou espantado com os prédios que via: eram
da. Tinha um caderno, em que escrevia algumas semelhantes aos dos seus sonhos. Demorou-se
idéias que lhe vinham à cabeça, principalmente sentado ali, se perguntando para onde iria. Tinha
quando estava “meio alto” de pinga barata Coro- um pouco de dinheiro, mas não muito. Resolveu
te, ou chapado de maconha. Após “a brisa”, no ficar por ali mesmo. Lembra, com emoção, que
ficava encantado vendo a Catedral da Sé. Passou ela. Escrever me fez lembrar dela, Bandi-
a trabalhar descarregando caminhões no Merca- da como eu a chamava. Nosso amor era
do Municipal e a dormir na rua para economizar. bandido, mas eu gostava. A vida nas ruas
À noite, tudo tem movimento no centro de São tem muitas coisas ruins, mas também vá-
Paulo; e foi logo se juntando aos outros compa- rias outras boas, porque nelas não existem
nheiros, também carregadores, que foram lhe barreiras, proibições como nos abrigos por
apresentando a cidade, principalmente a região exemplo. Nestes anos todos aprendi muito
da Luz. Ali, passava a noite bebendo e com as com os irmãos da rua. Estes três escudei-
“mulheres da vida” que foram suas grandes ami- ros, que estão comigo, eu conheci na rua,
gas. Se divertia muito, até antes de se apaixonar morando junto nos viadutos, nos juntamos
por uma delas, com quem passou a morar em um e viemos para cá, porque aqui dentro da
“mocózinho” no Centro e a continuar o trabalho mata, tamo sossegados, eu tenho também
de descarregar caminhões. Com esta mulher, se- meu cachorro, o Piloto. Aqui sinto que é
gundo seu relato, começou sua “perdição”. Tinha minha casa, não tenho a preocupação de
muito ciúmes dela com outros homens, passou a dormir deitado em cima da mochila para
bater nela, fumar pedra com ela; depois, com ou- não ser roubado, como as vezes é a rua.
tras, aumentou a bebida. Quando ela estava se Eu fiz minha casa suspensa entre estas
arrumando para ir trabalhar, começava a loucura duas árvores, as únicas pessoas que nos
dele: a seguia e, por diversas vezes, pensou em visitam são vocês, é muito bom quando es-
matá-la. Um belo dia, chegou ao “mocó” cansado tão aqui escutando a gente, se interessam
e não havia ninguém. Ela tinha ido embora, desa- por nós, é um interesse verdadeiro mes-
pareceu. Ele diz que ainda a procura em muitos mo. Não vem com os “conselhos de alma-
lugares, mas, nunca mais a encontrou. Precisava naques”. É encontro do coração como eu
sair dali do Centro, porque não aguentava a dor escrevi aqui. Chegam aqui se preocupam
de procurar e não encontrá-la mais. Por suges- com nossa vida e saúde, até mais do que
tão de alguns amigos de rua, foi para a periferia a gente mesmo.
da Zona Sul da cidade. A princípio, morava em Aqui é ruim apenas quando chove,
um pequeno quarto e fazia bicos de pedreiro; de- eu que moro entre as arvores preciso jo-
pois, trabalhou na construção civil e aos finais gar uma lona, e também não posso des-
de semana encontrava com todas “as mulheres cer para trabalhar porque fica tudo “lame-
da vida”, com as quais bebia e fumava pedras de ado”, conhecemos toda a mata, ela não é
crack. O centro da cidade tem mais trabalho, mas grande. Eu não preciso de muito para viver,
tudo é mais caro. Por uns quatro anos foi assim, gasto pouco. Ganho para comprar a minha
até perder o trabalho e ir morar na rua definitiva- cachaça, mas já diminui muito de beber,
mente. Bebia e fumava crack, mas trabalhava e por minha conta mesmo, e as pedras tam-
tinha seu próprio dinheiro, teve outras mulheres, bém posso dizer que comparado ao que já
várias, mas, nunca mais sentiu amor como com fumei, hoje fumo muito menos. Não adian-
a primeira: ta a pessoa querer convencer a outra de
“...me enlouqueceu aquela mulher, até parar de beber, fumar cigarro ou fumar pe-
hoje sonho com ela, acho que ainda amo dra. A pessoa tem que sentir lá de dentro
dela o que é bom pra ela mesma. To per- uma equipe de profissionais especializados em
cebendo que o meu caderno está ficando intervenções comunitárias desenvolvemos um
cheio das minhas histórias ou será que trabalho de escuta e acolhimento, com quem ali
são as memórias? Eu acho que pode ser está vivendo. É difícil? Sim, mas também é um
as duas coisas, antes eu achava que as compromisso clínico-politico de encontrar tempo
pessoas que viviam nas ruas não tinham para escutar as histórias das pessoas que estão
histórias, nem memórias quando parei de habitando as ruas, sempre buscando conhecer o
rasgar as folhas do meu caderno, eu fui que elas próprias querem.
juntando as partes da minha vida inteira. Em meados de dezembro de 2019, as
Eu comecei agora a fazer alguns desenhos seis horas da manhã, rumo para uma pequena
junto com as histórias, eu estou tomando favela de um bairro muito periférico da cidade de
gosto pelo desenho, eu levava muito jeito São Paulo, para estar lá oito e meia, no nosso
para desenhar quando era jovem, mas a si- “ponto de encontro”. Na mochila, carrego sempre
tuação não favoreceu que eu levasse este preservativos, cachimbos novos, protetores la-
gosto adiante. Fico aqui esperando quan- biais e água; são os insumos mais requisitados,
do vocês chegam para eu conversar, es- tanto nas ruas como nas comunidades, principal-
sa conversa tem mudado minha vida. Mui- mente no calor.
tas vezes chega o dia de conversarmos eu
É um lugar definitivamente esquecido, no
estou trabalhando seja no farol vendendo
extremo sul da cidade. Muito lixo e escombros.
água, ou catando papelão lembro: vou vol-
Um território marcadamente dominado por dispu-
tar para minha casa na arvore e esperar
tas de toda natureza. Eu e alguns companheiros
a escutadora. Sim, você é minha escuta-
de trabalho chegamos devagarinho, por intermé-
dora, nem eu mesmo havia me escutado
dio de duas colegas que lá estavam e que foram
antes. Imagine eu escrevia minhas histó-
aceitas. Trabalho cuidadoso; “é muito perigoso
rias amassava e jogava fora. Eu estava me
este lugar”, ouvíamos constantemente dos cole-
jogando fora. Agora não me jogo mais fora.
gas. Demoramos aproximadamente um mês pa-
Essa semana depois que conversamos eu
ra fazer nossas vinculações; estávamos lá todas
fiquei pensando de talvez daqui um tempo
as semanas. Nos apresentaram o “Chefe do Pe-
voltar para a construção civil, arrumar um
daço”. Nos recebeu, conversamos sobre nossos
lugarzinho para eu, Piloto e os escudeiros
objetivos e ele deu permissão para que permane-
irmos morar, todos trabalhando pode ser
cêssemos lá; ele ficaria conosco. Ali estava o iní-
mais fácil. Voltei a sonhar e desta vez não
cio de uma grande parceria, nesta comunidade.
foi mais com a Bandida, mas comigo” (Le-
O Chefe, um homem negro, quarenta e
trado, 2018).
três anos, morando na comunidade aproxima-
damente há doze anos, inteligente, amante de
- o “Chefe do Pedaço”: música principalmente o soul, gosta de cinema,
Duas a três vezes por semana, antes da separado, pai de um filho, olhar de lince, presta
pandemia do Coronavírus, ocorriam as conversas atenção em tudo. Trabalha como ”faz tudo”, tem
de rua e, mensalmente, um encontro nas praças, as mãos calejadas pelo trabalho. Ele nasceu em
comunidades, ou matas aonde comumente eu e São Paulo, tem mais sete irmãos, três homens
e quatro mulheres; ele é o quinto filho, mas tam- sempre de roupas pretas; austero, acompanhava
bém poderia ser, como disse, o “esquinto dos as nossas atividades que, a princípio, se resu-
infernos”. miam a ouvir as histórias das pessoas. Muitos
A princípio carrancudo e sério, com o de- ali com tuberculose e/ou com outros problemas
correr do tempo se revelou dançarino, engenho- pulmonares, feridas no corpo ou no coração. Nas
so, poeta e cantor. Começou a me contar sua rodas de escuta e conversa, eram levantadas
história depois de mais de dois meses de meu todas as histórias; obviamente aquelas que qui-
trabalho na comunidade. Foi o primeiro a chegar sessem contar. Com o tempo, fomos ampliando
nesta comunidade, quando tudo ainda era ma- o trabalho e a pedido deles passamos a levar
to, há mais de 12 anos, e montar seu barraco. violão e a cantar. Passamos a fazer também os
Passou a morar lá, após sua mulher ter abando- nossos cafés e almoços coletivos.
nado a casa e levado o filho junto; até hoje não Álcool barato é a substância mais consu-
tem a menor idéia por onde eles andam. Depois, mida, mas, como o próprio chefe diz:
outras pessoas foram chegando; e hoje ninguém “...a cachaça e a pedra são as nossas di-
sabe ao certo quantas pessoas vivem ali; é flu- versões, mas aqui também temos nossas
tuante, tem muita gente que entra e sai. Seus regras, trabalhamos; nossas carroças po-
pais morreram e ele teve várias “tretas” com os dem ficar perto de nós assim como os
irmãos por causa de herança, mas com a saída bichos; já perceberam como aqui tem bi-
da mulher de casa, achou que a rua era o seu chos? Os “noiados” adoram os bichos, ca-
lugar; porque nas ruas “as tretas são resolvidas chorros e gatos principalmente” (Chefe,
na hora e depois fica tudo bem”. Me contou que 2019).
as pessoas na rua são mais livres, mais despren-
Entramos aos poucos na comunidade e
didas porque estão todos na mesma situação,
lá estamos, com nosso trabalho de escuta, mú-
formando uma irmandade. Também me disse que
sicas, danças, arte-cultura, bazares, almoços ao
para “aguentar” a vida da rua não é fácil: “tem a
ar livre e os cafés. Outras equipes se juntaram
irmandade mas também tem muitas maldades,
a nós e o Chefe, conforme ele mesmo diz, “nos
muitas traições e caguetagens”. Ele passou a be-
adotou: “deixei de usar roupas pretas, eram mui-
ber muito depois da separação, “travou geral”;
to pesadas; talvez como estava a minha vida”.
bebia até cair nas ruas sem direção e várias ve-
Seu barraco foi totalmente transformado e têm,
zes acordou na cadeia. Fumou maconha, tomou
agora, dois cômodos. Atualmente, ele é um redu-
rebites, bebia à noite e trabalhava ”rebitado”.
tor de danos na sua comunidade. Nós acolhemos
O barraco do Chefe é minúsculo, apenas sua chefia e ele nos acolheu. O trabalho desen-
os plásticos o mantém, capengamente, em pé; e volvido lá somente é possível, porque ele e a sua
ninguém pode entrar. Também, a princípio, foram história permitiram; e se misturaram a outras his-
combinadas as regras para a nossa permanência tórias que, como a dele, podem se transformar.
lá. Sempre cumprimos à risca, “palavra é pala-
vra”. Atualmente, podemos caminhar por lá sem - a grávida imaginária:
qualquer senha; mas, no princípio, tudo foi muito Transitando em uma cena de uso na Re-
acertado. gião Oeste da cidade, encontrei Luiza e começa-
O Chefe começou a estar conosco, mos a conversar. Tem 32 anos, com aparência de
bem mais velha. Um olhar profundo estampado, namorar e ela engravidou no segundo mês mo-
de sofrimento e desamparo. É mineira de Belo rando com ele. Entretanto, perdeu o bebê. E “até
Horizonte. Vem de uma família pobre; o pai, ela não gostava muito dele”, mas, ter engravidado
não conheceu, e a mãe a deixou juntamente com lhe trouxe alegria. Com a interrupção da gravidez
o irmão dois anos mais velho, com os avós mater- achava que precisava ir para outro lugar; foi fican-
nos, quando eles eram ainda crianças; sumiu no do insuportável continuar com o caminhoneiro;
mundo com um grupo de ciganos e nunca mais ele viajava e ela ficava muito sozinha, morando
voltou. Começou a trabalhar em casa de família, em um quarto pequeno, mofado e sombrio. Co-
cedo, para ajudar os avós. Quando tinha 17 anos meçou a fazer pequenos programas com alguns
engravidou de um homem casado e 20 anos homens que encontrava alí por perto de sua ca-
mais velho do que ela; um vizinho dos avós. Ele sa, até ir trabalhar à noite em algumas ruas da
não quis ter a criança e providenciaram, através cidade, como profissional do sexo, porque ganha-
de uma conhecida dele, parteira, o abortamento. va mais. Trabalhava dia e noite e, por uns quatro
Ela passou muito mal e quase morreu de tristeza anos, ganhou algum dinheiro, passando a ter um
porque queria ter o filho, mas foi ameaçada - até quarto melhor aonde atendia seus clientes. Bebia
de morte - pelo amante, que a abandonou em constantemente porque nas atividades com ho-
seguida. Uns quatro meses depois, perdeu o avô; mens na noite é necessário beber, não tem jeito
seu irmão casou e mudou para Corumbá; a avó e às vezes cheirava cocaína.
foi morar com um tio materno, numa casa aonde Até que conheceu um cliente traficante e
não tinha lugar para ela. se apaixonou perdidamente por ele. Por uns seis
Ficou nas ruas do centro de Belo Horizon- meses, foi muito bom, ele a levava para jantar
te por alguns dias e conheceu uma amiga que tra- em lugares bonitos que ela jamais pensou em ir.
balhava em uma boate; ela lhe fez o convite para Mas, começou a lhe fazer ‘propostas estranhas’-
trabalhar lá, porque era possível morar no local que passasse a transar com mais homens jun-
e fazerem programas noturnos com os clientes; tos. Nesses programas, começou a fumar crack
ganhariam mais dinheiro. Como achava que tinha e engravidou novamente. Seu namorado trafican-
um corpo bonito e, para não ficar na rua, acei- te estava ficando cada vez mais desinteressante
tou o convite. Conseguiu ficar lá um ano, depois e violento e, quando ela engravidou, ”encanou”
não aguentou mais; passou a beber bastante e a que o filho não era dele e passou a agredi-la. Em
cheirar cocaína para aguentar o trabalho, apren- uma das brigas, quando ela já estava entre três
deu a dançar e a cantar, mas ganhava pouco para e quatro meses de gravidez, foi espancada pelo
o tanto de homens que atendia. Tinha que deixar companheiro e perdeu o bebê. Depois que per-
quase tudo no trabalho. Um pouco antes de sair deu este filho saiu do hospital e foi morar na rua:
de lá conheceu um caminhoneiro paulistano, que embaixo dos viadutos seria melhor do que voltar
lhe ofereceu carona para vir para São Paulo, por- para casa; já estava bastante comprometida com
que aqui teria chance de ganhar mais dinheiro. o uso do crack.
Não teve dúvida, veio, com a cara e a co- Passou a fazer programas para comprar o
ragem. Há 12 anos está vivendo em São Paulo. crack, era uma estratégia de vida. Conta que era
O caminheiro lhe ofereceu sua casa para morar, sempre aconselhada e cuidada pelas equipes de
enquanto ela arrumava trabalho. Começaram a rua (de acolhimento), para maneirar o uso, mas
não conseguia; ela se apaixonou pelo crack: O trabalho deve ser guiado pelas deman-
“Não era o crack, era eu mesma que que- das dos que vivem nas ruas, pelo que querem.
ria ele. Gostava e até esperava as pesso- A construção de mini-equipes de trabalho é im-
as, para conversar, porque “falar é muito portante para a aproximação e o acolhimento,
bom, quando as pessoas escutam a gente. incluindo, aqui, redutores e redutoras de danos;
Podia falar a verdade, sem mentir” (Luzia). equipes de referência, através de uma contextu-
alização ampliada da pessoa. Articulações com
as redes de Justiça (acesso à Justiça), Saúde,
Dizia que o crack a ajudava a ter esperan-
Educação e Assistência Social são fundamentais
ças. Passou a ter sonhos quase diários com os
no fortalecimento da autonomia das pessoas que
bebês que havia perdido e então se via grávida.
nunca tiveram ou não têm mais documentos e
Olhava no espelho e via a barriga de grávida e
referências e para aquelas que são encarceradas
achou que estava enlouquecendo; quando fica-
injustamente ou estão em situação de custódia,
va menstruada se decepcionava, mas continua-
e que, por isso, perderam seus direitos básicos
va acreditando que estava grávida. Continuou na
de existir. Acompanhá-los presencialmente faz
rua, reencontrou seu parceiro traficante, ainda
parte desta construção de luta pela garantia de
tentaram ficar juntos, mas “já tinha passado a
direitos e de preservação da existência. Isto não
hora”; ele tentou tirá-la da rua, mas ela não acre-
é possível sem afeto, disponibilidade, confiança
ditava mais nele. Fiquei sem encontrar Luiza por
e laços construídos nos ”bons encontros” entre
várias semanas, apesar de procura-lá. Soube,
humanos, restauradores e transformadores.
através de sua amiga, que ela foi “desapareci-
As “coisas sem importância” para o Es-
da” pelo ex-companheiro. O silêncio impera, Luiza
tado atual “desprotetor”, são, para nós do Cole-
morreu sem ter o filho ora desejado ora negado.
tivo Intercambiantes Brasil, uma fonte produto-
Descanse Luiza, em paz. A eternidade irá prote-
ra de resistência. Estamos em luta, contínua e
gê-la, para sempre.
permanente.
Considerações finais
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Resumo Abstract
Este artigo tem por objetivo fazer uma retrospectiva histórica do Pro- This article aims to make a historical retrospective of the Programa
grama de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD) no que de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD) regarding the
se refere à adoção de modelos de Redução de Danos no cuidado adoption of Harm Reduction strategies in the care of drug addicts.
a dependentes químicos. Desde sua criação o Programa desenvol- Since its creation, the Program has developed assistance, teaching
ve atividades de assistência, ensino e prevenção sob a ótica da Re- and prevention activities from the perspective of Harm Reduction mo-
dução de Danos. No rol dessas atividades estão os grupos de aco- dels. These activities include host groups, specific Harm Reduction
lhimento, programas específicos de Redução de Danos (como, por programs (such as for injecting drug users), publications in the health
exemplo, intervenções junto a usuários de drogas injetáveis), publica- field and scientific research that address a wide range of topics, from
ções para a àrea da saúde e pesquisas científicas que abordam uma the spontaneous substitution of crack by cannabis among depen-
ampla gama de temas, desde a substituição espontânea do crack dents, up to Harm Reduction in the context of prevention in schools.
pela cannabis entre dependentes, até a Redução de Danos no âmbito
Keywords: Harm reduction; Drugs; Risks.
da prevenção em escolas.
Introdução
O
Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD), do De-
I
a transmissão da aids entre usuários de drogas Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas (CO-
injetáveis (UDIs). NED-SP), o PROAD apresentou um estudo pioneiro
Ainda que a Constituição6 de 1988, em no Brasil, referente ao fenômeno observado entre
seu artigo 196, já descrevesse a saúde como um usuários de crack que procuraram tratamento e
direito de todos que deve ser garantido pelo Es- referiram, nas primeiras consultas, a utilização de
tado “mediante políticas sociais e econômicas maconha como uma forma de atenuar os sinto-
que visem a redução do risco de doença e de ou- mas de abstinência do crack9. Ao longo de um pe-
tros agravos e ao acesso universal e igualitário às ríodo de nove meses, os pesquisadores acompa-
ações e serviços para sua promoção, proteção e nharam um grupo-piloto de 25 pacientes do sexo
recuperação”, a iniciativa da Secretaria Municipal masculino, com idades entre 16 e 28 anos, grave-
de Santos, de fornecer seringas e agulhas des- mente dependentes de crack, diagnosticados pe-
cartáveis para a prevenção do HIV entre UDIs, foi la Entrevista Diagnóstica Internacional Composta
interpretada como crime de incentivo ao uso de (CIDI), de acordo com os critérios de diagnóstico
drogas e, por isso, foi interrompida pelo Ministério CID-10 e DSM-IV. A maioria dos indivíduos (68%)
Público7. deixou de usar crack e relatou que o uso de canna-
bis reduziu seus sintomas de “fissura” e produziu
Nesta mesma linha, como alternativa à
mudanças subjetivas e concretas em seu compor-
distribuição de seringas entre usuários, o PROAD
tamento, ajudando-os a superar a dependência
iniciou um trabalho pioneiro na cidade de São Pau-
de crack. Aspectos psicológicos, farmacológicos e
lo, com outreach worker, em que os usuários de
culturais desses achados também passaram a ser
drogas deste Programa passaram a ir a campo
amplamente discutidos10.
implantar estratégias de prevenção e Redução de
Danos junto a usuários de drogas que não procu- Ainda em 1998, ano marcado por um gran-
ravam serviços de assistência. Desta forma, em de desenvolvimento das estratégias de Redução
1991, os pacientes atendidos pelo serviço foram de Danos no Brasil, o PROAD participou ativamen-
treinados para distribuir hipoclorito de sódio e teV da organização da IX Conferência Internacional
orientar os UDIs a desinfetarem suas seringas e de Redução de Danos, realizada na cidade de São
a não compartilharem seus equipamentos de inje- Paulo. O evento enfocou experiências desenvol-
ção com outros usuários8. vidas no âmbito da Redução de Danos, em dife-
rentes contextos socioculturais, contando com a
Em 1994, com o estabelecimento de um
presença de mais de 50 países e mais de 1.000
convênio com o Ministério da Saúde (via Coorde-
pessoas. Na abertura do evento, no Palácio dos
nação Nacional de DST e AIDS), o PROAD passou
Bandeirantes, foi anunciada a regulamentação da
a coordenar ações preventivas relacionadas ao
Lei nº 9.758, de 17 de setembro de 199711, em vi-
abuso de drogas e à infecção pelo HIV em âmbi-
gor até hoje, que autorizou a Secretaria da Saúde
to nacional, com subsídios da United Nations Drug
do Governo do Estado de São Paulo a distribuir se-
Control Programme (UNDCP) (hoje United Nations
ringas descartáveis aos usuários de drogas injetá-
Office on Drugs and Crime – UNODC) e do Banco
veis. Em outubro, a mesma psicóloga da equipe do
Mundial.
PROAD participou da criação da Rede Brasileira de
No Encontro denominado “SOS Crack”,
Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC).
organizado em 1998 pelo então Conselho Esta-
dual de Entorpecentes (CONEN-SP), atualmente V
Representado por Mônica Gorgulho, psicóloga de sua equipe.
um remédio, para outros, um veneno. O significa- – prevenção e tratamento. São Paulo: Conselho Estadual de
Entorpecentes de São Paulo; 1998.
do desta experiência pode se revestir de aspectos
10. Labigaline E, Ribeiro L, Silveira DX. Therapeutic use
criativos, transformadores para a personalidade
of cannabis by crack addicts in Brazil. Journ. Psych. Drugs.
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Resumo Abstract
Em São Paulo, os projetos baseados nos princípios de Redução de In São Paulo, projects based on the principles of Harm Reduction,
Danos tiveram início na capital, em 1988, com a pesquisa e inter- started in the capital in 1988 with the research and intervention of
venção do Projeto Bleach do Centro de Referência e Tratamento de the Bleach Project by STD/AIDS Reference and Treatment Cente and
DST/Aids e, com o Projeto de distribuição de seringas e agulhas em with the project of distribution of syringes and needles in Santos in
Santos, em 1989. A presença de duas psicanalistas neste projeto 1989. The presence of two psychoanalysts in this pioneering São Pau-
paulistano pioneiro e, posteriormente, entre 1991 e 1994 no Proje- lo project, and later, between 1991 and 1994 at Drug Abuse and AIDS
to Prevenção ao Uso Indevido de Drogas e Aids constitui uma rara Prevention Project constitutes a rare approximation in Public Health of
aproximação, na Saúde Pública, de campos teórico e práticos de theoretical and practical fields of independent paths: Psychoanalysis
caminhos independentes: a Psicanálise e a Redução de Danos. In- and Harm Reduction. Investigating how this approach can amplify the
vestigar como esta aproximação pode amplificar as potências des- strengths of these practices was one of the main objectives of this
tas práticas é um dos principais objetivos deste artigo. Os projetos article. The projects highlighted in this text bring an ethical commit-
destacados trazem o compromisso ético com o incremento da au- ment to increase the autonomy of people who have suffered losses
tonomia de pessoas que sofreram prejuízos decorrentes de suas due to their complex conditions of vulnerability, amplified by the abu-
complexas condições de vulnerabilidade, amplificadas pelo abuso se or dependence on alcohol and other drugs; and justify the search
ou dependência de álcool e outras drogas e justificam a busca de op- for options beyond the clinic, which can gain potency in singular and
ções, para além da clínica, que possam ganhar potência no cuidado collective care.
singular e coletivo.
Keywords: Harm reduction; Psychoanalysis; Extended clinic.
Palavras-chave: Redução de danos; Psicanálise; Clínica ampliada.
Introdução
A
Redução de Danos fez 30 anos no
I
Celi Cavallari (celicavallari@outlook.com) é psicóloga pelo Instituto Unifica- Brasil; foi motivada pela pandemia de
do Paulista (IUP); psicanalista pelo curso de especialização em psicanálise
coordenado pelo Prof. Dr. Fábio Landa e Mestre em Psicologia Clínica pela aids e a urgência em prevenir a infec-
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atua na Clínica, é
conselheira da Rede Brasileira de Redução de Danos e DH (REDUC) e consul- ção pelo HIV em usuários de drogas injetáveis
tora da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil –
Seção São Paulo (OAB-SP), membro da Associação Brasileira Multidisciplinar (UDIs)1. A legislação de drogas da época restrin-
de Estudos sobre Drogas (ABRAMD), da Rede Proteção contra o Genocídio
Jovem, do Coletivo Intercambiantes Br e da Rede Nacional Feminista e Anti- gia severamente qualquer ação preventiva de
proibicionista (RENFA).
maior eficácia envolvendo os usuários de dro-
II
Diva Reale (divareale@gmail.com) é psiquiatra pela Universidade de São
Paulo (USP), com formação independente em Psicanálise, Mestre em Medi- gas ilícitas; foi necessário adaptar os projetos
cina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(FM/USP) e Estagiária do Hospital Marmmotan, em Paris, Coordenou o Pro- às restrições típicas de uma política proibicio-
jeto Prevenção ao Uso Indevido de Drogas e Aids (PPUID-Aids/ERSA-2) da
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e concebeu e Coordena o Curso
nista2. A emergência da Redução de Danos im-
Independente ”O Barato no Divã” no Instituto Sedes Sapientiae e Membro da
Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD).
posta pela Aids, mesmo em países que tinham
rede – preventivas, terapêuticas e redutoras de pois é uma elaboração por escrito da leitura psi-
danos – no dia a dia dos trabalhadores destes canalítica feita das dinâmicas relacionais entre
serviços. duplas e grupos, estabelecidos de modo mais
estável ou pontualmente, durante o trabalho de
campo das educadoras de rua junto a uma rede
Jogos de identificação: a escuta e olhar psicana-
de usuários de drogas em seu meio. A supervi-
lítico de uma prática de Redução de Danos
são dessas dinâmicas tinha o intuito de garantir
A experiência compartilhada no Projeto de
a singularidade na escuta e na interpretação so-
Prevenção ao Uso Indevido de Drogas (PPUID),
bre cada pessoa contatada e também de esta-
desenvolvido na Secretaria de Estado da Saúde
belecer dispositivos preventivos mais sensivel-
de São Paulo, pelas autoras deste textoVI, per-
mente capazes de serem transmitidos e disse-
mitiu que recuperássemos o encontro da Psica-
minados entre os UDs e também multiplicados
nálise com os princípios da Redução de Danos,
por eles.
presentes nesse projeto.
A elaboração desse texto visava à época
Um dos produtos deste projeto foi o texto
compartilhar a experiência desse trabalho origi-
“Jogos de Identificação e seu Papel na Prevenção
nal de campo e explorar as potencialidades des-
Especializada”VII,12, no qual foi usado um recor-
se aprendizado para outras áreas de atuação
te psicanalítico para investigar qualitativamen-
com usuários de drogas, como o do tratamen-
te trocas afetivas ocorridas nas relações entre
to das toxicomanias e adições. Sua reprodução
as educadoras de rua e os usuários de drogas
parcial hoje visa demonstrar o potencial amplifi-
participantes do projeto PPUID13. Nele podemos
cado dessa mestiçagem, interdisciplinar que a
encontrar um caráter misto ou interdisciplinar14,
psicanálise aporta a outras práticas e campos15
VI
Diva Reale, é autora e coordenadora do Projeto de Prevenção ao Uso Inde-
e cuja presença ainda hoje permanece pontual e
vido de Drogas (PPUID) e Celi Cavallari trabalhou como assistente de coorde-
nação deste, na condição de psicanalista supervisora, entre 1991 e 1993.
pouco reconhecida.
Trabalho de autoria de Diva Reale apresentado no Simpósio: “Aids e Uso
VII Objetivava-se com o estudo elucidar a
de Drogas Injetáveis”, organizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em agosto, 1992; utilizamos a versão da autora, não publicada 12. compreensão de possíveis mecanismos de
transformação que poderiam estar subjacentes como alguém cruel com ele, que o deu, que o
às intervenções preventivas e postas em ação, abandonou, que o maltratou; falava com ódio e
nas relações entre educador de rua e usuário e mágoa, afirmando, inclusive, que tivera até o de-
drogas. Um último esclarecimento sobre a es- sejo de matá-la. Mas, ao tentar explicar o por-
colha do nome: “jogos de identificação” foi usa- quê de não a ter matado, não encontrou pala-
do para designar o produto da análise das in- vras. Noutro momento, revelou: “os assaltos eu
terações que foram relatadas nas supervisões, não fazia por dinheiro, não precisava disso, tinha
bem como das interações que ocorreram entre quanta droga quisesse... fazia por prazer”. Suas
membros da coordenação e os usuários atendi- ações antissociais foram descritas como atos
dos pelo projeto. Buscávamos respostas às se- de prazer, reiterando o caráter desafiador. Talvez
guintes questões: quais as representações sub- esse traço pudesse estar relacionado com uma
jacentes à conversa? - que funções afetivas tais certa “tendência antissocial”16. Queixou-se, nos
representações desempenhavam em seu uso de encontros seguintes com as educadoras, de su-
drogas e na sua relação com os diferentes “ou- as dificuldades com mulheres: “Sempre sou eu
tros” (amigos, chefes, médicos, pai, mãe, par- quem me apaixono; elas nunca querem; transo
ceiro (a), etc.)? uma vez e já estou caído. Começo a cobrar, exi-
gir ... e elas caem fora”.
Aos poucos, foi possível reconhecer que
suas principais preocupações não eram nem o
Primeiro contato: e se vocês forem “ratos”?
uso de drogas, nem as atividades ilícitas, nem
R., 21 anos, era um jovem usuário de álco-
a falta de trabalho, mas as afetivas. Um tempo
ol, maconha e cocaína. No primeiro contato com
depois, contou: “estou estudando para prestar
as educadoras estava ameaçado/ameaçador:
um concurso público”; “estou muito sem dinhei-
“Vocês vieram num carro azul e o estacionaram
ro (pois deixara as atividades de tráfico e dos
a três quadras daqui”. Com esta frase de abertu-
assaltos), tentando dar um tempo com as dro-
ra ele estabeleceu o clima e o problema daquele
gas”. Neste período, procurou as educadoras al-
encontro. R. já sabia “coisas” sobre elas, pré-
gumas vezes à tarde, fora do bar, para conversar
vias ao contato; ele observara seus passos sem
“dar um tempo para a cabeça”; afinal “a pressão
que elas percebessem; posteriormente, ele re-
era grande, para ficar em casa estudando dire-
velaria ter ficado muito “ligado” naquele primei-
to”. Ele sumiu por um período e as educadoras
ro encontro, pois L. (educadora) chamou-o pelo
receberam a notícia de que, além de manter os
nome antes que ele tivesse sido apresentado a
estudos, começara a namorar, que tinha dado
ela; e complementaria que já tivera problemas
um tempo das drogas; por isso, dava um tempo
no passado com “mulheres bonitas, comíveis”,
da turma de usuários acompanhados pela equi-
que eram, na verdade, informantes da Polícia
pe – enquanto aguardava ser chamado no con-
(“ratos”).
curso que havia passado, como escriturário do
Sua atitude, no grupo, era de deboche, setor administrativo da Secretaria da Saúde do
aquele que “zoa”, que é mais ousado, mais re- Estado de São Paulo, justamente onde a equipe
belde, com falas escancaradas sobre o uso e o do projeto era lotada.
tráfico, paradoxalmente se expondo. Um certo
dia, ele se “abriu”: descreveu a mãe na infância
O que poderia ter acontecido? permitindo que arrumasse uma tão desejada
A discussão feita à época propunha re- namorada.
lacionar a boa evolução da trajetória de R. ao A figura arcaica e terrivelmente ameaça-
efeito “terapêutico” – efeito benéfico não bus- dora – aquela representação da “mãe-que me-
cado intencionalmente – favorecido pelo vínculo receria-ser-morta” – pôde ser, em algum grau,
formado com as educadoras. Tal efeito pode ser relativizada pela experiência positiva, numa rela-
entendido como resultado de algo similar ao que ção de confiança atualizada com as educadoras.
se conhece como transferência17, em Psicaná- Desta atualização sem repetição, soluções no-
lise. A capacidade das educadoras de susten- vas puderam ser arriscadas. Esta hipótese pa-
tar a relação sem retaliar as forças disruptivas rece ter sido corroborada, visto que este rumo
que puderam ser expressas discursivamente, tomado por R. permaneceu estável pelos 3 anos
sem a necessidade de atuá-las em ações igual- seguintes em que o projeto foi mantido.
mente disruptivas, pode ser relacionada a este
impacto positivo na guinada que R. deu a sua
Uma última representação merece destaque:
vida naquele período. É possível conceber que
“uso responsável”
a principal “desintoxicação” que aconteceu com
Esta representação do uso do “uso respon-
R. foi menos relacionada à interrupção do uso
sável” oferece um valor heurístico, pois alinha-
de drogas em si e mais à redução das toxicida-
-se a um aspecto seminal da Redução de Danos
des internas, relacionadas por ele à sua histó-
e que se propõe a ampliar as soluções existen-
ria de abandono. O ódio e mágoas profundos,
ciais positivas que as pessoas usuárias de dro-
relacionados a este fato narrado, podem estar
gas buscam para si, indo além do binômio abs-
na origem de sua vulnerabilidade que se reve-
tinência é igual a saúde versus uso de drogas é
lava na relação turbulenta e fracassada com as
igual a doença. Logo nas primeiras semanas do
mulheres, além da adoção de um estilo de vida
trabalho de campo, C. apresenta às educado-
transgressor.
ras a um jovem D., 28 anos, que se destaca do
É provável, seguindo em nossa explica-
grupo. D. tem uma escolaridade maior do que a
ção hipotética, que R. tenha encontrado na figu-
maioria do grupo (possui Ensino Médio comple-
ra das educadoras a chance de poder ser bom
to) e a profissão de vendedor. É um dos únicos
frente a figuras femininas que o aceitaram e
que já foi casado oficialmente e agora está se-
permaneceram se relacionando com ele; talvez,
parado e tem dois filhos para os quais paga uma
elas tenham inaugurado ou resgatado para R.
pensão combinada.
a possibilidade de arriscar-se a sair do campo
Numa tardezinha, estavam reunidos
defensivo a que estava acostumado – ou apri-
mais ou menos sete desses jovens, num bar,
sionado – e construir uma imagem positiva de
com as educadoras e animadamente conversa-
si próprio.
vam. D. e C. estavam presentes e brindavam à
Talvez, passasse a existir a possibilida-
formação do “nosso grupo”. A umas tantas, “ro-
de de gratificação (prazer) numa relação positi-
lou” uma conversa sobre drogas – D. faz ques-
va. Diminuídas as suas ansiedades persecutó-
tão de se distinguir dos demais quanto ao uso
rias diante da “figura feminina-cruel”, seu con-
de drogas. Justifica esta distinção, usando a ex-
tato tornou-se menos tempestivo e impulsivo,
pressão “uso responsável”. Explica: alguém que
usa drogas e trabalha, cumpre com suas obriga- alcançado evidencia que não apenas os usuá-
ções; é diferente de quem usa drogas e não tem rios de drogas injetáveis podem ser alcançados,
obrigação nenhuma. “Ser responsável implica mas também as pessoas usuárias de drogas,
em trabalhar”, esclarece D., e ele trabalha. em geral.
Esta ideia de “uso responsável” parece Reale18 aponta que, embora fosse indis-
ter calado fundo nos presentes. Ninguém argu- cutível a necessidade de prevenção da Aids en-
mentou ou refutou. Instaurou-se um dito cujos tre UDIs, a Redução de Danos associada aos
efeitos seriam revelados a posteriori. usos de drogas é muito mais abrangente; por
D. havia oferecido ao grupo uma identi- isso, devido ao Ministério da Saúde ter repro-
dade restauradora: o trabalho passou a ser um duzido acordos internacionais proibicionistas,
elemento purificador dos aspectos negativos as- terminou por postergar as ações que reduziriam
sociados ao uso de drogas. Uma solução van- prejuízos associados ao uso de drogas e que po-
tajosa, se comparada à abstinência total das deriam ter eficácia na diminuição de problemas
drogas, correntemente conhecida como o único relacionados ao uso.
caminho de construção de papéis sociais posi- Já no início da década de 1990, em tra-
tivos e almejáveis –. “ascetismo” este que não balhos nacionais e internacionais19-20 demons-
oferecia uma compensação vislumbrável pelo tramos a necessidade da ampliação de ações
grupo. preventivas para usuários de drogas não injetá-
Assim, “ecos” ocorreram, mostrando que veis, foco principal no Brasil até mesmo para
alguns iniciaram movimentos na direção de mo- prevenção à infecção pelo HIV; e, somente nos
dificar seu consumo de drogas recente. Mas, is- últimos anos a Organização das Nações Unidas
to é uma história para outro momento. (ONU)21 tem tomado iniciativas nessa direção.
No ano de 1995, uma assistente so-
cial , que fora uma das educadoras do PPUID,
VIII
Lições aprendidas: encontro com a psicanálise e
potencialização transformativa da Redução elaborou e coordenou o Projeto Aids e o Uso
de Danos de Droga Injetável (Projeto UDI), na Associação
para Prevenção e Tratamento da Aids (APTA)22,
A escuta atenta às narrativas das falas
uma organização não governamental, localizada
dos usuários, feita pelas educadoras e desen-
na cidade de São Paulo. A APTA, coordenada por
volvida no acompanhamento sistemático dos
Teresinha Reis Pinto, foi a primeira Organização
relatos dos trabalhos de campo, por meio das
Não Governamental (ONG), no município de São
supervisões realizadas por psicanalistas, possi-
Paulo, a incluir Redução de Danos para UDIs e
bilitaram resultados psicossociais significativos
para todos os projetos preventivos desta ONG:
e mudanças na vida, para algumas pessoas e
“Aptateen” (sobre protagonismo de adolescen-
grupos abordados.
tes), “Barong”, “Caminhoneiros”, “Rua Paim” (di-
Este método de abordagem de Redução de
rigido a profissionais do sexo), de Educação Pre-
Danos com compreensão psicanalítica comple-
ventiva em DST/aids, de formação continuada e
mentar, sem exigência de abstinência a priori,
o projeto do “Encontro Nacional de Educadores
demonstrou a viabilidade de ações preventivas,
de mudança de atitudes e, em alguns casos, VIII
Cristina Maria Brites.
para a Prevenção de DST/Aids e Drogas (EDUCAI- esses usuários e os serviços de saúde. Essa
DS), que teve 14 edições. extensão dos serviços de saúde, que passaram
Para supervisionar a equipe a coordenado- a se esmerar para acessar os usuários em seu
ra do projeto UDI convidou a psicóloga e psicana- meio, inaugurou no âmbito coletivo o mesmo sig-
listaIX que havia sido supervisora no PPUID. No nificado de amparo e aproximação que o gesto
projeto UDI, agentes de campo, que contataram de estender a mão carrega no plano individual.
redes de usuários de drogas, passaram a fazer No intuito de implantar esta nova perspectiva
ações de Redução de Danos, tanto com trocas junto aos profissionais de tratamento, foi neces-
de seringas com usuários de drogas injetáveis, sário ampliar o entendimento e possibilitar que
como com orientações preventivas para todos aceitassem a profunda transformação dos pres-
os usuários e parceiros sexuais acessados. supostos que orientaram por várias décadas a
lógica do tratamento da dependência. Para is-
Em 1998, a equipe do Projeto UDI retirou-
so se efetivar, foi necessário muitas vezes não
-se da APTA. Posteriormente, Cristina Brites e
apenas treinamentos e formação convencional
Andrea Domanico inauguraram o É de Lei23, con-
siderado o primeiro Centro de Convivência para – transmissão de informações científicas produ-
pessoas usuárias de drogas do Brasil. Desde o zidas –, mas outras possibilidades transforma-
início, este Centro tem feito importantes e di- doras de compreensão, como a promovida pe-
versificados trabalhos na área de Redução de la supervisão clínico institucional psicanalítica.
Danos e Direitos Humanos, além de contribuir Elaborar os efeitos de décadas de mentalidade
com a formação e a ampliação do conceito de proibicionista não se faz por apreensão exclusi-
Redução de Danos no Brasil. vamente racional, é necessário elaborar os afe-
tos e emoções que foram moldados pelo medo
Apenas em 2003, a Redução de Danos foi
e pelos tabus associados aos usuários de dro-
incluída na área de Saúde Mental, como lógica
gas e rever papel de controle delegado aos pro-
ampliada e compatível com os princípios da Re-
fissionais. Incluir a tolerância, a confiança e a
forma Psiquiátrica. Refletindo a predominância
esperança de obter alguma transformação signi-
de uma mentalidade proibicionista dentro da
ficativa é resultado de uma conjunção incomum
Saúde Mental, a atenção ao usuário de drogas
e inovadora de estratégias e posturas diante da
tinha, até então, ficado restrita, na medida em
desmedida vulnerabilidade, às vezes extrema,
que o único tratamento oferecido permanecia
que os usuários excluídos de múltiplos direitos
pautado predominantemente na abstinência. A
sofrem. Os profissionais precisaram receber for-
partir da epidemia de Aids, como afirmamos, e
mação e supervisão para trabalhar com Redu-
com a estratégia de Redução de Danos, o uso
ção de Danos, acolhimento e cuidado, mesmo
de drogas retornou às práticas de cuidado em
que o usuário não quisesse ou não conseguisse
saúde em outra perspectiva: mesmo que as
ficar abstinente.
pessoas continuassem a usar drogas, poderiam
se prevenir da transmissão de doenças. Esta perspectiva foi assimilada no momen-
to da estruturação nacional da Rede de Aten-
Os redutores de danos acessavam os usu-
ção Psicossocial (RAPS). Houve a implantação
ários que não chegavam aos equipamentos de
dos Centros de Atenção Psicossocial de Álcool
saúde e estabeleciam vínculos de confiança que
e outras Drogas (CAPS-ad), com a proposta de
serviam para constituir uma nova ligação entre
oferecer um projeto terapêutico singular de cui- Seibel, S. Dependência de drogas. 2a ed. São Paulo: Athe-
dado para cada usuário; também foram implan- neu; 2010. pp.795-809.
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MacRae E, Adorno R. (Orgs.). Livro do VI Congresso Inter-
dente a necessidade de se aprofundar um tra-
nacional da ABRAMD de 2017. Belo Horizonte: ABRAMD;
balho que reconheça a complexidade de cada (no prelo).
pessoa. 5. Cavallari CD, Pollo-Araujo MA. A Redução de Danos no
Novamente o repertório da Psicanálise vol- contexto proibicionista do Brasil. In: Andrade ALM, Michelli
ta à cena, pois esta é concebida para assegu- DD, Silva EA, Reichert RA, Pinheiro BO, Lopes FM. (orgs.)
rar o tratamento pela palavra e pela presença Drogas e comportamento humano: aspectos biopsicosso-
ciais do uso de substâncias psicotrópicas. (no prelo).
sensível, numa relação terapêutica sustentada,
6. É de Lei. Do baque ao crack: 30 anos de Redução de
viabilizando uma clínica do inconsciente capaz
Danos no Brasil, São Paulo; 2019. (on line). [acesso em 20
de possibilitar uma escuta individualizada e a
out 2020]. Disponível em: https://edelei.org/wp-content/
elaboração de processos complexos que respei- uploads/2019/07/linha-do-tempo-menor2.pd
tem as escolhas por outras maneiras de viver.
7. São Paulo (estado). Decreto n. 34.074 institui o Pro-
Há altas compatibilidades entre a Redução grama Permanente de Prevenção ao Uso Indevido de Dro-
de Danos e a Psicanálise, pois ambas buscam a gas e dá providências correlatas. São Paulo; 29 out 1991.
interlocução e o profundo respeito às particulari- [acesso em 20 out 2020]. (on line). Disponível em: https://
www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1991/
dades do outro e à autonomia que possibilitam
decreto-34074 29.10.1991.html
o processo de reconhecimento e consideração
8. Bastos FI, Mesquita F. Estratégias de Redução de Da-
pelas demandas pessoais, por vezes, terapêu-
nos. In: Seibel SD, Toscano Junior A. Dependência de dro-
tico; com acolhimento, escuta aberta e disponi-
gas. São Paulo: Editora Atheneu; 2001. pp.181-190.
bilidade ao novo. A meta, em ambos os casos,
9. Cavallari CD. A clínica das toxicomanias. In: Fernandez
busca contribuir para o aumento da capacidade OFRL, Andrade MM, Nery Filho A. (eds.) Drogas e políticas
de autorregulação e de autoconhecimento. públicas: educação, saúde coletiva e direitos humanos.
Ao longo desses trinta e dois anos, pude- Salvador: EDUFBA; 2015. pp.203-210.
mos testemunhar um percurso no qual o encon- 10. Andrade TM. Condições psicossociais e exposição ao
tro entre a Redução de Danos e a Psicanálise risco de infecção pelo HIV entre usuários de drogas inje-
táveis, em uma comunidade marginalizada de Salvador-
tem sido gerador de uma maior potência trans-
-Bahia. (Tese). Universidade Federal da Bahia. Salvador;
formadora quando praticadas em conjunto. Par-
1996. 161p.
tilhar esta experiência motivou a escrita deste
11. Reale D. O caminho da redução de danos associados
artigo.
ao uso de drogas: do estigma à solidariedade. (Disserta-
ção). Universidade de São Paulo. São Paulo; 1997. 216p.
Referências 12. Reale D. Jogos de identificação e seu papel na pre-
1. Mesquita FC, Bastos FI. Drogas e AIDS: estratégias de venção especializada. Simpósio: “Aids e Uso de Drogas
redução de danos. São Paulo: HUCITEC; 1994. Injetáveis” Rio de Janeiro: UFRJ; agosto, 1992.
2. Cavallari CD, Sodelli M. Redução de danos e vulnera- 13. Kirsch H, Reale D, Osterling J. Hard-to-eeach or out-of-
bilidades enquanto estratégia preventiva nas escolas. In -reach? São Paulo outreach workers and inner-city addicts.
Resumo Abstract
O Centro de Convivência “É de Lei” é o primeiro espaço de convi- The Centro de Convivência “É de Lei” is the first social space for
vência para pessoas que usam drogas no Brasil, esse artigo tem people who use drugs in Brazil, this chapter aims to tell the story
como objetivo contar a história dessa organização da sociedade ci- of this civil society organization from its founding in the 90s until
vil desde sua fundação nos anos 90 até os dias de hoje. Apresen- today. The projects developed over the course of twenty-two years
ta-se os diversos projetos desenvolvidos ao longo de vinte e dois are presented, in addition to discussing the institutional changes
anos, além de discutir sobre as mudanças institucionais vivencia- experienced over the years. “É de Lei” has been dedicated to de-
das no decorrer dos anos. O “É de Lei” têm se dedicado a defe- fending the rights of drug users, creating technologies related to
sa dos direitos das/os usuárias/os de drogas, criado tecnologias inputs for STI/HIV prevention, health promotion and contributing
relacionadas aos insumos para prevenção das IST/HIV, promoção for the dissemination of Harm Reduction on different fronts: fiel-
dwork, teaching, research, advocacy and communication.
em saúde e contribuído para a disseminação da Redução de Da-
nos em diferentes frentes: trabalho de campo, ensino, pesquisa,
Keywords: Harm reduction; Drug abuse; HIV/AIDS; STI.
advocacy e comunicação.
N
a década de 1990, com a crescente epi-
I
In english: “It’s of Law”, it means something that always happens, it is an
demia do HIV/aids, o Ministério da Saúde
expression that drug users like to use to refer to the moment of use (“É da Lei” criou uma área dentro da Vigilância em
significa algo que sempre acontece, é uma expressão que o usuário de droga
gosta de usar para se referir ao ponto de uso). Saúde para agregar as ações políticas de preven-
Andrea Domanico (andreadomanico@gmail.com) é, psicóloga clínica, Mes-
ção e tratamento do HIV, a Coordenação Nacional
II
forma de empréstimos internacionaisV para fo- assegurava a ajuda de custo para a equipe, e o
mentar as ações de prevenção e tratamento do fornecimento dos preservativos (disponibilizados
HIV/aids1. pelo Ministério da Saúde) e dos kits para a inje-
A partir de 1994, o Ministério de Saúde ção segura (dispensados pelo Programa Estadu-
passa a financiar diversas organizações para de- al). O kit era composto por um estojo de óculos,
senvolver ações de prevenção e tratamento do contendo frascos vazios para a diluição da droga,
HIV/aids junto às diferentes populações que es- frascos de água destilada, sachês de álcool, se-
tavam se infectando em maior número, naquele ringas e folhetos informativos sobre o HIV/aids.
contexto: os homossexuais masculinos, as pro-
fissionais do sexo e os/as usuários/as de drogas A “caça” aos Injetáveis
injetáveis1-3.
De início, já no primeiro campo, no bairro
Naquele mesmo ano, um grupo de profissionais do Brás, no município de São Paulo, estabeleceu-
que atuavam com educação de rua na cidade de -se uma conversa com um UDI que, de imediato,
São Paulo se vincularam a uma organização não solicitou um kit, o “Kit Baque” (expressão para
governamental (ONG) que trabalhava com preven- uso de droga injetável), conforme apelido dado
ção e tratamento do HIV/aids para desenvolver pelas/os UDIs. Conhecido pelo apelido de Perna,
um projeto de prevenção do HIV entre usuários/ foi o primeiro usuário do projeto, que, em 25 de
as de drogas injetáveis (UDI) que preconizava a janeiro de 1995, fez com a equipe sua primeira
troca de seringas usadas por novas. troca de seringas usadas por novas, devolvendo
Como parte de um trabalho de campo de 7 seringas. Ele foi uma referência importante, já
busca ativa, a equipe começou a mapear os luga- que nos remetia a uma realidade da época, o fan-
res de uso de drogas injetáveis no Centro da cida- tasma do HIV que estava percorrendo as cenas
de de São Paulo para iniciar suas ações e, neste de uso. Perna relatou que muitas pessoas que
processo, identificou a necessidade de alguém usam drogas já estavam infectadas e que havia
que introduzisse a equipe nas cenas grupais de uma tendência de uso domiciliar para os que ti-
uso de drogas injetáveis, momento no qual foi nham domicílio, obviamente. Ou seja, as reuniões
convidada uma psicólogaVI para integrar a equipe para o uso de drogas em grupo, as “festinhas”,
com esta finalidade. tinham diminuído substancialmente por conta do
Assim, no início de sua implantação, o medo do HIV e pelo fato de que alguns usuários
“Projeto UDI” contava com uma coordenação já estavam infectados3.
compartilhada entre uma assistente socialVII Naquele contexto, o grande desafio do
e uma psicóloga e duas supervisoras, uma de projeto era o de encontrar estes UDIs nos seus
campo e outra institucional. O projeto foi parcial- locais de uso e, mais uma vez, o percurso nos foi
mente financiado pelo Ministério da Saúde e re- dado por outro usuário, que nos remeteu a dois
cebia apoio institucional e material do Programa lugares, os arredores de uma quadra de escola
Estadual de DST/Aids de São Paulo. Com isso, se de samba e os arredores de uma casa de rock.
O projeto UDI contratou mais alguns mem-
V
A partir de então, começou a se discutir e escolher as formas de financia-
mento tanto para Serviços Públicos de Saúde como para Organizações Não bros da ONG que tinham afinidade com usuários
Governamentais.
VI
A psicóloga Andrea Domanico, que ainda integra a equipe.
de drogas e a equipe começou a frequentar os
VII
Cristina Maria Brites. ensaios de uma escola de samba, a Colorados
do Brás, localizada no bairro do Brás. Investiu-se da lei de drogas da época (Lei no 6.368/19764),
nesta estratégia por aproximadamente seis me- todos os redutores de danos portavam, duran-
ses, sem que se identificasse algum contato ou te o trabalho de campo, uma carta do Conselho
referência ao uso de drogas injetáveis na região. Regional de Enfermagem de São Paulo (COREN-
A partir daí, houve uma reorganização das -SP), uma da Coordenação de Nacional e outra
atividades, a equipe foi reduzida às integrantes da Coordenação Estadual de Aids de São Paulo,
da coordenação e investiu-se no trabalho de cam- afirmando o reconhecimento da troca de seringas
po nos bares da região próxima à casa de rock. como estratégia de prevenção ao HIV/aids, além
Foi lá, numa noite de intervenção de campo, que de dispor de contato direto, via pager, com as
um UDI se aproximou e nos disse, quero este kit, duas coordenadoras, uma do projeto e outra do
porque “eu tomo baque”; e disse mais: “quero campo.
um trampo desse”. Assim, marcamos com ele Mas, nem tudo foram flores para o desen-
uma reunião na ONG no dia seguinte e efetuamos volvimento do projeto. Além da perseguição por
sua contratação: com nosso primeiro redutor de uma parte da sociedade que considerava a estra-
danos UDI. Havíamos entrado em mais uma rede tégia de Redução de Danos como um incentivo
de UDIs. Após seis meses de campo, acabou a ao uso de drogas, algumas dificuldades começa-
“caça”, era a hora de implementar as ações2-3. ram a ficar muito evidentes.
A primeira dificuldade foi institucional,
Troca de seringas usadas por novas com a direção da ONG, já que o projeto estava ga-
nhando visibilidade midiática (no canal MTV, em
O projeto tinha como objetivo central
programa regionais de televisão e reportagens e
“conter a disseminação do HIV/aids e outras do-
artigos para jornais). Nestas reportagens, era a
enças sexualmente transmissíveis (DST) (hoje in-
equipe do projeto que aparecia, sempre referen-
fecções sexualmente transmissíveis (IST)), entre
ciando a ONG em questão, mas sem dar detalhes
usuários de drogas injetáveis”. Fazia-se ações de
dos locais de trabalho; por conta disso, as entre-
campo oferecendo a troca de seringas para as/
vistas ou eram com as coordenadoras do projeto
os usuárias/as de drogas injetáveis e sua de re-
ou com as/os usuárias/os.
de de interação social, além da oferta de preser-
vativos e o acompanhamento para testagem de A segunda dificuldade deveu-se a uma re-
HIV. Fazíamos reuniões semanais para discussão comendação para a equipe do projeto quanto à
das ações e supervisões, sendo uma mensal ins- restrição da presença das/os UDIs na sede da
titucional, com a coordenação do grupo, e uma ONG, transferidos para os horários em que não
quinzenal, com a equipe de rua. A supervisão ins- houvesse mais ninguém, além da própria equipe
titucional se manteve até meados de 1998, a da do projeto; ou seja, as reuniões deveriam ocorrer
equipe durou até 1997. em momentos em que a ONG não deveria estar
ocupada por outros grupos, pois a presença das/
Podemos considerar que 1995 foi o ano
os UDIs poderia servir de mau exemplo para os/
da “caça” e os anos de 1996 e 1997 foram os de
as jovens que frequentavam as outras atividades
implementação das ações. A equipe do projeto
da instituição. Além disso, houve outras ques-
aumentou, contratando vários UDIs como redu-
tões com relação à representatividade e adminis-
tores para atuar em diversas frentes e horários.
tração financeira do projeto, situação que criou
Por conta das restrições e do caráter autoritário
um clima muito ruim entre a equipe do projeto e A articulação com o NEPAIDS e a fundação do
a própria ONG. “É de Lei”
Diante de tais recomendações, a equipe Uma das coordenadoras do projeto UDIIX,
do projeto se reuniu e decidiu que faria uma con- estava fazendo o curso “Metodologia de Pesqui-
sulta ao agente financiador sobre poder mudar o sa em Aids”, oferecido e financiado pelo Núcleo
local de execução do projeto, levando o financia- de Estudos para Prevenção da Aids (NEPAIDS),
mento que tinha recém-recebido no ano de 1998. ligado ao Instituto de Psicologia da Universidade
A Coordenação Nacional de DST e Aids informou de São Paulo (IP/USP). Assim, diante dos entra-
que o projeto deveria ser realizado até o fim na ves institucionais, solicitou-se uma reunião com a
própria instituição que havia recebido o financia- coordenação deste Núcleo, para a apresentação
mento; ou seja, se saíssemos para outra insti- da proposta de abertura de um Centro de Convi-
tuição ficaríamos sem recursos para as nossas vência para usuárias/os de drogas, de forma a
ações com UDIs. Conversando com a equipe do ser avaliada a possibilidade de articulação des-
projeto decidimos que terminaríamos aquele fi- ta proposta com o NEPAIDS, que, de imediato,
nanciamento e que iríamos “pensar” em outro lo- se dispôs a abrigar o projeto. Construímos uma
cal onde poderíamos alocar o projeto, sem tantas proposta para criação do Centro de Convivência,
intervenções e questionamentos em relação ao cuja sede seria instalada no centro de São Paulo.
perfil da equipe. Começou então uma articulação com as
Assim, formada somente por usuárias/os coordenações nacional e estadual de aids para
de drogas, a equipe do projeto UDI começou a a efetivação de um Programa de Redução de Da-
fazer reuniões nos locais de campo, discutindo nos e no dia 5 de dezembro de 1998, o Centro de
com as/os UDIs sobre como deveria ser uma no- Convivência “É de Lei” foi fundado, na Rua 24 de
va sede do projeto, quais atividades deveriam ser maio, no centro da cidade de São Paulo.
oferecidas, quem poderia participar, etc. Mas já Em 2000, a vinculação com o NEPAIDS foi
tínhamos o novo nome para esse local, seria “É interrompida de modo consensual entre as equi-
de Lei”. Este nome surgiu por sugestão da assis- pes, em decorrência de uma série de denúncias
tente social da equipeVIII em uma das reuniões, públicas sobre as Fundações de Direito Privado
por conta da expressão “É de Lei” ser muito usa- criadas sob a gestão do então Presidente Fernan-
da pelas pessoas usuárias de drogas da época; do Henrique Cardoso e que estavam fazendo ar-
“É de Lei tomar cerveja na sexta”, “É de Lei ouvir recadação financeira no âmbito das instituições
um rock”. Desta forma, após longas e cansati- públicas. O NEPAIDS era um grupo de pesquisa
vas reuniões decidiu-se pela criação do Centro de ligado a uma univesidade pública estadual, por
Convivência “É de Lei”, com o objetivo de garantir isso, a coordenação deste núcleo ficou temerosa
os direitos humanos e à saúde aos/às usuários/ que o financiamento dos projetos desenvolvidos
as de drogas. pelo É de Lei fosse confundido com as práticas
duvidosas de arrecadação financeira das Funda-
ções denunciadas. Neste sentido, após algumas
reuniões, a equipe do É de Lei desencadeou um
processo de discussão e criação de uma Organi-
VIII
Cristina Maria Brites.
zação Social de Interesse Público (OS), em 2001.
IX
Andrea Domanico.
usuários e no âmbito das políticas setoriais de desigualdade social são fatores que dificultam o
Saúde, Assistência Social e Cultura. desenvolvimento de planos de vida8.
reflexão sobre o uso de drogas e o autocuidado. e a possibilidade de diálogo entre a/o profissio-
Neste sentido, reunimos informações de nossos nal e a pessoa em situação de vulnerabilidade
arquivos, de conteúdos científicos sobre cada social.
droga, informações discutidas com as/os UDs,
além de atualizar a equipe sobre as drogas.
Formação, pesquisa e eventos
Os protetores labiais diminuem as fissu-
O É de Lei sempre teve a educação popu-
ras causadas pelo uso das drogas fumadas, em
lar e a educação entre pares como premissa bá-
especial o crack no cachimbo, pela desidratação
sica para provocar transformações na realidade
e frio; além de possuírem fator de proteção solar;
das pessoas que vivem em contextos de vulne-
para isso foram pensados e produzidos em tama-
rabilidade, pois o reconhecimento, a valorização
nho pequeno, pois sendo menores, cada pessoa
de experiências e de saberes de todos garante a
recebe alguns, o que propicia que o material não
diversidade nos espaços de fala e a participação
seja compartilhado12.
ativa das pessoas que frequentam o Centro de
As piteiras de silicone incentivam o uso Convivência. Com essas premissas, contribui-se
individual de crack, diminuindo as chances de in- com o desenvolvimento da autonomia e do prota-
fecção pela tuberculose e outras doenças. Ade- gonismo, além da multiplicação dos saberes.
mais, como a maioria dos cachimbos utilizados é
No ano de 2002, o É de Lei realizou, em
de metal, a piteira também auxilia na prevenção
parceria com a Associação Pró-Saúde Mental
de queimaduras e feridas nos lábios. Essa é uma
(PROSAM), um seminário nacional que contou
tecnologia barata e pode ser distribuída em pe-
com a participação de 200 redutoras e reduto-
quenas quantidades.
res de danos do Brasil. O “Seminário Nacional de
Outro insumo que elaboramos, em 2005, Redução de Danos: outras estratégias são pos-
é o “Kit Sniff”, composto por uma carteira de uso síveis”, foi estruturado com conferências, mesas
pessoal, onde são guardados os demais itens: redondas e grupos de discussão a partir das for-
preservativos internos e externos e gel lubrifican- mas de uso das diferentes drogas (injetadas, as-
te para práticas sexuais; folders informativos so- piradas e inaladas, ingeridas e fumadas) e popu-
bre drogas e serviços de saúde, incluindo folhe- lações vulneráveis. Após os debates travados em
tos sobre cocaína e crack, além de um cartão in- torno dos temas apresentados nas conferências
formativo rígido, que serve como superfície para e mesas redondas, os grupos tinham a tarefa de
estender a substância a ser aspirada; além de indicar as estratégias de Redução de Danos para
canudos/piteiras e bloco de cartões menores e cada forma de uso de drogas e pontos prioritá-
maleáveis que, ao serem enrolados, se transfor- rios para a construção de uma agenda nacional
mam em mais canudos descartáveis12. de lutas em defesa da Redução de Danos como
Os insumos são fundamentais no traba- política pública. O relatório final do Seminário foi
lho das/os redutora/es de danos, pois favorecem publicado e disponibilizado para uma parcela sig-
a busca ativa nos territórios como um instrumen- nificativa dos projetos de Redução de Danos exis-
to facilitador de abordagens e propiciam o vínculo tentes em todo o país13.
entre a pessoa que faz uso de drogas e quem os Afora a realização de eventos, forma-
oferta (o agente de Redução de Danos). A partir ções e pesquisa contribuímos com o proces-
da distribuição destes materiais se dá o encontro so da produção de saúde de diferentes grupos
ter conhecido o Coletivo Balance, de Salvador - líderes emergentes nesta estratégia e aliadas/os
Bahia, que construía o cuidado das pessoas que e representa a Redução de Danos em diferentes
frequentavam o festival de música eletrônica Uni- espaços de participação, inclusive perante as au-
verso Paralello. toridades eleitas.
O ResPire teve diversos desdobramentos É fundamental que o advocacy esteja di-
que vão, desde a participação em eventos cientí- retamente associado à comunicação, principal-
ficos internacionais, diferentes contextos de fes- mente porque é necessário articular e construir
ta, até que nos anos de 2018 e 2019 passou coligações, construir liderança entre as pessoas
a realizar formações para produtoras/es de fes- que usam drogas e outras populações diretamen-
tas eletrônicas, atuar em festas de rua e tam- te afetadas e um compromisso com a justiça ra-
bém diretamente com a população de lésbicas, cial, com a pauta feminista e com a mudança na
gays, bi e transexuais, queers, intersexos e ou- política de drogas16.
tros (LGBTQI+). Além disso, o advocacy também busca fa-
Trabalhar com a Redução de Danos pro- vorecer a conscientização pública e política sobre
picia um rico encontro entre as pessoas, a criati- os direitos e as necessidades sociais das pes-
vidade e as necessidades imediatas que geram soas que usam drogas por meio de pesquisas,
vínculos importantes e marcam pessoalmente, relatórios, engajamento estratégico de mídia e
tanto as/os redutoras/es de danos, quanto as campanhas, treinamento em monitoramento de
pessoas que em algum momento necessitaram violações de direitos humanos, mapeamento de
de acompanhamento. Experiências como as do grupos de usuários de drogas, fornecimento de
Coletivo Balance, o Balanceará e o ResPire con- apoio técnico a redes de usuárias/os de drogas,
tribuíram para a criação de diversos coletivos de monitoramento de reformas de política de drogas
Redução de Danos que atuam em contextos de visando assegurar um ambiente político mais fa-
festas no Brasil, que atualmente se constituem vorável e a proteção dos direitos humanos das
em aproximadamente 40 coletivos. pessoas que usam drogas, além de incidir na for-
mulação de políticas públicas.
Comunicação e Advocacy em Redução de Danos Os principais objetivos do advocacy é con-
tribuir para que as esferas de poder compreen-
O advocacy em Redução de Danos busca
dam que possuem responsabilidades como a
eliminar o abismo existente entre os serviços de
de: (1) garantir o acesso ao tratamento assistido
saúde e as demais políticas sociais públicas e os
por medicação, cuidados médicos e serviços de
usuárias/os de drogas e suas comunidades. De-
Redução de Danos; (2) minimizar os danos e as
fende a aceitação e a expansão das abordagens
violações de direitos humanos por parte da segu-
de Redução de Danos para práticas saudáveis
rança pública contra os UDs; e (3) assegurar que
de Saúde Pública, buscando a inclusão de UDs
os serviços de saúde e sociais tenham atuação
em discussões sobre as políticas, visando criar
para que os direitos fundamentais deste público
mudanças nas esferas local, estadual, nacional
sejam transversais.
e internacional.
O advocacy em Redução de Danos tem
O advocacy monitora tendências de polí-
sido muito importante para que as pessoas
ticas de Redução de Danos locais e estaduais
em mais alta vulnerabilidade tenham sua voz
relevantes, busca construir relacionamentos com
escutada, seus direitos defendidos e o seu pro- garante saneamento básico e habitação para to-
tagonismo incentivado e fortalecido, pois essas da a população.
pessoas devem ter sua cidadania reconhecida e Os núcleos do É de Lei possuem atribui-
respeitada. É fundamental disseminar informa- ções e autonomias diferentes. No entanto, sem-
ções baseadas na realidade para que possamos pre alinhados com o antiproibicionismo, o antirra-
contribuir para uma sociedade que entenda o que cismo, o feminismo e o antipunitivismo, porque
são os direitos humanos, que lute pela dignidade entende-se que esses problemas estruturais so-
das pessoas que fazem uso de drogas e compre- mente produzem desigualdade no acesso às po-
enda o que são as estratégias de Redução de líticas públicas e afasta as pessoas do cuidado
Riscos e Danos. pautado na garantia de direitos.
O investimento na autonomia como meta
Considerações finais - a luta continua... e como parte da estratégia do trabalho, no qual
Atualmente, o É de Lei se destaca como as pessoas atendidas exercitam a liberdade de
uma das principais referências nacionais de Re- escolha dentro das atividades propostas, é um
dução de Danos no Brasil e mantém seu compro- dos pontos altos da nossa organização. Para tan-
misso de contribuir para uma mudança da cultura to, também é necessário estarmos conectados
no campo das drogas, visando a diminuição do com as violações que ocorrem com as mulheres
estigma e do preconceito em relação às pessoas e com a população trans. Por isso, sempre bus-
que usam essas substâncias e, com isso, pro- camos retomar as atividades específicas para
movendo a diminuição dos agravos à sua saúde, mulheres, inclusive com a contratação de uma
sua marginalização, da violência e das violações maioria de mulheres para a equipe; além de con-
de direitos humanos que lhes acometem. tarmos com pessoas trans e conviventes no nos-
so quadro de colaboradoras/es.
No atual contexto de crise estrutural bra-
sileira, de avanço de práticas fundamentalistas A alta rotatividade de pessoas envolvidas
e conservadoras e, especialmente, de regressão neste esforço – tanto os conviventes, pela vul-
no campo democrático e dos direitos, vê-se como nerabilidade social, quanto os/as redutoras/es
os programas, as políticas e tantas iniciativas po- e coordenadoras/es, devido aos salários baixos
dem ser sucateadas e desmanteladas. Portanto, e à instabilidade do trabalho, constitui um desa-
o papel dos segmentos e movimentos sociais de- fio para o planejamento e o desenvolvimento das
mocráticos são cada vez mais essenciais na de- atividades. Nesse sentido, a luta pelo reconheci-
fesa dos direitos fundamentais, do financiamento mento da Redução de Danos no âmbito da inter-
público da seguridade social e de programas e setorialidade como princípio das políticas sociais
projetos estratégicos e da participação popular públicas é fundamental para garantir a continui-
na formulação de políticas públicas. dade de serviços que atuam nessa perspectiva.
Entende-se que a política de drogas é
transversal e intersetorial, portanto, deve ser
Referências
reconhecida na sua potencialidade de integra-
1. Domanico A. “Craqueiros e cracados: bem-vindo ao mun-
ção às políticas de promoção e acesso aos di-
do dos noias!” – estudo sobre a implementação de estra-
reitos, especialmente em um país que possui tégias de redução de danos para usuários de crack nos
uma dívida histórica com a cidadania e sequer
cinco projetos-piloto do Brasil. (Tese). Universidade Federal protagonismo, educação entre pares e Redução de Danos.
da Bahia. Salvador; 2006. São Paulo: Centro de Convivência É de Lei; 2018. pp.32-40.
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Danos: Outras Estratégias são possíveis = Relatório Final,
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de Convivência É de Lei. In: Cultura, juventudes e redução
de danos São Paulo: Córrego, Centro de Convivência É de
Lei; 2015.
Dênis PetucoI
Resumo Abstract
A Redução de Danos, conceito polissêmico que abarca um conjunto Harm Reduction, a polysemic concept that encompasses a set of
de práticas e concepções relacionadas ao cuidado de pessoas que practices and concepts related to the care of people who use drugs,
usam drogas, tornou-se conhecida no Brasil a partir de sua incorpora- has become known in Brazil since its incorporation as part of the
ção como parte da resposta nacional à epidemia de HIV/Aids. Com o national response to the HIV/AIDS epidemic. Over time, the concept
passar do tempo, o conceito foi sendo apropriado por outros campos has been appropriated by other fields of reflection and intervention,
de reflexão e intervenção, como saúde mental e desenvolvimento so- such as mental health and social development. This article proposes
cial. O presente artigo propõe uma narrativa da experiência brasileira a narrative of the Brazilian experience with Harm Reduction that takes
com Redução de Danos que toma as ondas do mar como metáfora the waves of the sea as a metaphor to contemplate an accumulation
para contemplar um processo de acúmulo, contra uma concepção process, against a stageist conception based on historical ruptures.
etapista baseada em rupturas históricas. Conclui-se com uma breve It concludes with a brief reading of the current moment and the chal-
leitura do momento atual e dos desafios a serem enfrentados. lenges to be faced.
Palavras-chave: Redução de danos; História; Brasil. Keywords: Harm reduction; History; Brazil.
E
xistem muitas formas de se contar uma his- A história das teorias, técnicas e políticas
tória. Pode-se optar entre pequenos resu- públicas de cuidado dirigidas a pessoas que
mos ou narrativas grandiloquentes, entre o usam álcool e outras drogas tem sido uma pai-
resgate dos processos estruturais ou das histo- xão para mim, mesmo antes de virar projeto de
rietas cotidianas, entre o texto seco e os parágra- doutorado e livro1. Desde que comecei a traba-
fos que se estendem por páginas e mais páginas lhar na área, eu me interessei por narrativas, cau-
(evoé Saramago!). E não se trata só de estilo; afi- sos, textos antigos e diários de campo em perdi-
nal, a própria historiografia reúne pesquisadores das pastas de computador. Daí vieram artigos e
em acirrados debates com respeito às fontes, ao convites para seminários, nos quais fui dividindo
modo de lidar com os documentos, o lugar dos acúmulos e ensaiando formas. Muitas vezes fui
grandes personagens e dos emudecidos cida- procurado por colegas que generosamente corri-
dãos comuns. giam, não apenas detalhes e incorreções, como
I
Dênis Petuco (denis.petuco@fiocruz.br) é sociólogo pela universidade Fe- as próprias estratégias narrativas.
deral do Rio Grande do Sul (UFRS), Mestre em Educação pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) e Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Nas próximas páginas, gostaria de corrigir
Federal de Juiz de Fora (UFJF), e Professor e Pesquisador do Laboratório de
Educação Profissional em Atenção à Saúde da Escola Politécnica de Saúde algumas coisas que afirmei nos últimos anos, em
Joaquim Venâncio na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fun-
dação Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRZ). eventos e artigos2-3. Um dos principais aspectos
diz respeito à divisão da história da Redução de “O SUS era uma proposta que garan-
Danos (RD) em “nascimentos”, que teriam ocor- tia acesso universal, mas que não consi-
rido em diferentes campos de saberes, demar- derava prostitutas, travestis, e principal-
cados por técnicas de cuidado diferenciadas e mente as pessoas que usam drogas. Os
sem comunicação. Foi Márcia Colombo, amiga e gays também, em certa medida. Dentro
técnica do Departamento de Condições Crônicas da exclusão, da pobreza, da miséria, tinha
e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Mi- uma extra exclusão de alguns segmen-
nistério da Saúde, quem chamou minha atenção tos. E parecia-me um absurdo que aque-
para a possibilidade de substituir a ideia estáti- les segmentos da população fossem extra
ca dos nascimentos, pela sobreposição sinérgica marginalizados”III.
das ondas que se seguem umas às outras e se A tarefa de gerir a saúde em Santos ficaria a
reúnem na praia. Valeu Márcia! cargo de David Capistrano Júnior, importante mili-
tante do Movimento de Reforma Sanitária. Capis-
Primeira onda: prevenção ao HIV/aids e às hepa- trano cercou-se de uma equipe técnica tão quali-
tites virais ficada quanto ousada. A política para o HIV/aids
seria conduzida por Fábio Mesquita, que já tivera
Poderiam haver tempo e lugar mais apropria-
contato com o tema por conta de sua atuação co-
dos para o início da experiência brasileira com
mo médico da rede municipal santista. À época,
Redução de Danos do que a cidade de Santos,
a cidade era conhecida como “Capital da Aids”,
em 1989? Mal terminara a ditadura civil-militar e
com uma incidência de 217 casos para cada 100
a “pátria vermelha”4 ou “moscouzinha brasileira”5
mil habitantes entre 1980 e 19928, sendo que
já colocava a esquerda na gestão municipal, ele-
mais de 50% destes casos estavam diretamen-
gendo a petista Telma de Souza como prefeita.
te relacionados ao compartilhamento de seringas
À beira do mar e “contra a maré”II,6, os santistas
entre pessoas que faziam uso de drogas por via
deram início à uma série de experiências inovado-
injetável9.
ras em áreas como educação, urbanismo, meio
ambiente e participação. A literatura internacional já descrevia inicia-
tivas bem sucedidas para a prevenção do HIV/
Mas seriam as realizações na área da saú-
aids e outras doenças de transmissão parente-
de que tornariam Santos uma referência. No
ral: a disponibilização de seringas e outros ape-
contexto de criação do Sistema Único de Saúde
trechos necessários ao uso de drogas por via
(SUS)7 os santistas não apenas materializaram
injetável. Cientes de que a estratégia era ade-
consignas da Reforma Sanitária brasileira (o que
quada ao contexto santista, os gestores anuncia-
já seria extremamente avançando), como imple-
ram que a troca de seringas passaria a compor
mentaram políticas que seriam vanguarda den-
a resposta ao HIV/aids no município. O Ministério
tro da vanguarda, especialmente nos campos da
Público, entretanto, entenderia a proposta como
Saúde Mental e do enfrentamento ao HIV/aids,
um incentivo ao uso de drogas, impedindo a sua
como dito por uma das pessoas envolvidas na
implementação.
gestão santista à época:
As barreiras de ordem legal fariam com que
Referência ao livro “Contra a maré à beira mar: a experiência do SUS em
II
injetável ocorressem na clandestinidade. Esta si- Assim como diversas outras populações ini-
tuação de impedimento legal só seria superada cialmente estigmatizadas como “grupos de ris-
a partir de 1995, em Salvador. No ano seguinte, co”, os usuários de drogas também foram incen-
outras cidades também conseguiram dar início tivados a se organizarem em associações para
aos seus programas, e antes do final do milênio, facilitar sua participação na construção da res-
já existiam dezenas de iniciativas espalhadas por posta brasileira à epidemia de HIV/aids. Mesmo
todo o país. em programas governamentais, a presença de
O desenvolvimento da experiência brasileira pessoas com experiência pessoal no uso de dro-
com Redução de Danos no contexto do HIV/aids gas era considerada fundamental para garantir
teve implicações, não apenas no que tange ao capilaridade das ações preventivas junto a pes-
impacto nos indicadores epidemiológicos, como soas que, por conta da criminalização, esforça-
também para a definição de elementos éticos, vam-se para manterem-se invisíveis aos agentes
estéticos e políticos. Afinal, o campo social cons- do Estado.
tituído em torno da construção de respostas à Nos primeiros anos do século XXI, uma
epidemia foi (e ainda é) extremamente receptivo transformação interpelaria os grupos envolvidos
à participação de grupos considerados marginais com Redução de Danos. Já conhecido em São
em outras esferas da vida pública. Neste sentido, Paulo desde a década de 1990, o crack come-
é importante conceber a aids não apenas como çaria a se espalhar por todo o país, fazendo com
uma doença relacionada a um vírus, mas como que o uso de drogas por via injetável diminuísse
um fenômeno social: ao ponto de ser considerado epidemiologicamen-
“À aids, acontecimento biológico, so- te irrelevante. O repasse de recursos do Depar-
mava-se a aids como acontecimento políti- tamento de IST, HIV/Aids e Hepatites Virais do
co e cultural, interpelando comportamen- Ministério da Saúde diminuiu drasticamente e a
tos e obrigando o debate de temas-tabu, responsabilidade quanto ao uso de álcool e ou-
como sexualidade e uso de drogas. Na tras drogas passou para a Coordenação Nacio-
saúde pública, a Aids interrogava moralis- nal de Saúde Mental, Álcool e Outras DrogasIV.
mos arraigados nas práticas mais cotidia-
Nesta esteira, diversas organizações de Redução
nas de cuidado, naturalizados pela quase
de Danos fechariam suas portas e muitos Pro-
total ausência de questionamento e refle-
gramas de Redução de Danos (PRD) vinculados a
xão. Grupos minoritários, como gays, tra-
políticas municipais de HIV/aids passaram a ser
vestis, prostitutas e usuários de drogas,
chamados ao debate sobre a construção subordinados à Saúde Mental.
de estratégias de enfrentamento à epide- Mas o desaparecimento das relações entre
mia, deram visibilidade a questões situa- doenças infectocontagiosas e uso de drogas não
das para muito além da própria aids, como passava de mera suspeita. Em 2014, a publica-
políticas de ação afirmativa, denúncias de ção de uma pesquisa mostraria que a prevalên-
violação de direitos humanos, luta por re- cia do HIV/aids entre brasileiras e brasileiros que
conhecimento (inclusive profissional, como faziam uso de crack era oito vezes maior que na
no caso das prostitutas), e o enfrentamen- população geral10 (e duas vezes maior também
to de vulnerabilidades, estigmas e precon-
ceitos”1 (p.154). IV
Este ponto será aprofundado quando falarmos da segunda onda da Redu-
ção de Danos..
para a hepatite tipo C (p.77-78): não só. Especificamente sobre o HIV/aids, Parker
“Os resultados apresentados e Camargo18 partiram do conceito de “sinergia
apontam claramente para a necessida- coletiva de pragas”19 para descrever uma “siner-
de de ações preventivas e de controle gia de vulnerabilidades” no âmbito individual. Es-
de doenças específicas para a popula- ta concepção, fundamental para a superação da
ção usuária de drogas, alertando para noção de “grupo de risco”, anunciava o próximo
as formas de transmissão característi- paradigma na organização da resposta global à
cas desta população, com o propósito epidemia de HIV/aids: a “Prevenção Combinada”,
de minimizar os problemas de saúde adotado no final da década de 2010:
decorrentes de sua inserção em con- “A Prevenção Combinada oferece as
textos adversos”10 (p.81). melhores perspectivas para abordar os
A relação com o compartilhamento de pontos fracos documentados nos progra-
cachimbos parecia óbvia, mas as pesquisas mas de prevenção e para gerar reduções
não conseguiram refutar ou comprovar esta significativas e sustentadas na incidência
hipótese11-14. Se não fosse esta, qual seria do HIV em diversos contextos. As evidên-
então a conexão entre o uso não injetável cias sustentam a maior efetividade de es-
de drogas e a maior exposição ao HIV/aids tratégias complementares de prevenção
e hepatites? Uma resposta já estaria presen- comportamental, biomédica e estrutural.
te nas conclusões da pesquisa de Bertoni e Esta concepção permite operar em dife-
Bastos10: rentes níveis (indivíduos, relacionamentos,
comunidades, sociedades) para atender às
“Os achados do presente estudo
necessidades específicas, mas diversas,
evidenciam a vulnerabilidade da popu-
das populações em risco de infecção pelo
lação de usuários de crack e/ou simi-
HIV” (p.5)20.
lares frente ao risco de contrair doen-
ças infecciosas. Isso se deve ao fato de O Departamento de IST, HIV/Aids e Hepa-
que grande parte da população apre- tites Virais do Ministério da Saúde incorporou a
senta diversos comportamentos de ris- perspectiva da Prevenção Combinada como dire-
co e estão inseridos em contextos pau- triz central para a coordenação da resposta brasi-
perizados, violentos e frequentemente leira à epidemia de HIV/Aids, incluindo a Redução
carentes de qualquer infraestrutura, de Danos, como um componente estratégico, a
mínima que seja (como uma fonte de partir da compreensão de que “...diversos agra-
água corrente) [...]. Essas ações não vos à saúde (incluindo a própria Aids) decorrem
devem ficar restritas à esfera da saú- não apenas do uso de drogas, mas das políticas
de, uma vez que estas situações de de drogas”21 (p.36).
risco [...] possuem profundas raízes so- As experiências com Redução de Danos
ciais” (p.81). desencadeadas pela resposta ao HIV/aids es-
tão longe de se esgotar, não apenas por conta
da alta prevalência de infecções entre pessoas
As conclusões de Bertoni e Bastos10
que usam álcool e outras drogas ou por novas
corroboram a tradição de estudos das deter-
modalidades de uso e vulnerabilidade, como o
minações sociais de saúde e doença15-17, mas
“chemsex”V,22, mas pela capacidade inventiva en- onda do HIV/aids e das hepatites virais, por al-
sejada pelo território reflexivo organizado em tor- guns anos. Ainda que redutoras e redutores de
no da epidemia. Não obstante, deixaremos por danos nunca tenham se limitado à prevenção dos
ora esta onda. agravos infectocontagiosos, afirmando em ato
uma profunda ampliação do cuidado de pessoas
Segunda onda: Saúde Mental que usam álcool e outras drogas, cabe salientar
que a reflexão acerca destas práticas se mante-
As técnicas e políticas de saúde dirigidas
ve, por algum tempo, circunscrita ao contexto do
a pessoas que usam álcool e outras drogas no
HIV/aids.
Brasil foram, por muito tempo, exclusividade da
Psiquiatria. A eugeniaVI ditaria as regras durante Em meados da década de 2000, entretanto,
a primeira metade do século XX; na ditadura civil- a dispersão do uso de crack por todo o territó-
-militar, seria a vez do tecnicismo reacionárioVII. rio nacional passaria a ser utilizada para atacar
Não obstante, os “anos de chumbo” acolheriam a Política Nacional de Saúde Mental27 e a Refor-
a primeira edição nacional de um livro de Claude ma Psiquiátrica como um todo. Entidades como a
Olievenstein, “Os Drogados Não São Felizes”23, Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), e sin-
referência para toda uma geração de brasileiras dicatos médicos de alguns estados passaram a
e brasileiros descontentes com tratamento dado ganhar espaço midiático para divulgar relatórios
aos usuários de drogas, em nosso paísVIII. que responsabilizavam o fechamento de hospi-
tais psiquiátricos por uma pretensa desassistên-
A Reforma Psiquiátrica brasileira, entretan-
cia às pessoas que faziam uso de crack.
to, custaria a encarar a questão do cuidado diri-
gido a pessoas que usam álcool e outras drogas, Este ataque organizado encontraria respos-
ainda que importantes narrativas da violência ma- ta a partir de uma articulação que já vinha sendo
nicomial, muito inspiradoras para o movimento, construída desde o final da década de 1990, no
tenham sido produzidas justamente por pessoas encontro entre as políticas e movimentos de Saú-
internadas por conta do uso de substâncias24-26. de Mental e de HIV/aids. O lançamento da Políti-
As razões para este vazio reflexivo são controver- ca de Atenção Integral para Pessoas que usam
sas, mas o reconhecimento da demora no acolhi- Álcool e Outras Drogas28, fruto do esforço de téc-
mento do tema é, até onde sei, um consensoIX. nicos de diversas áreas do Ministério da Saúde,
foi um marco deste momento. O documento tra-
A experiência brasileira com Redução de
duzia oficialmente, pela primeira vez, uma pers-
Danos, por seu turno, também demorou para
pectiva que transformava a Redução de Danos
encontrar a Saúde Mental, “surfando” apenas a
em diretriz do cuidado no Sistema Único de Saú-
Termo que se origina da expressão chemical sex (sexo químico, em inglês) e
de (SUS), como um todo:
V
aumentar o grau de liberdade, de co-res- que isto não significa a ausência de conflitos e
ponsabilidade daquele que está se tratan- tensões. Um bom encontro caracteriza-se, não
do. Implica, por outro lado, no estabeleci- pela paz, mas pelo aumento da “potência de agir
mento de vínculo com os profissionais, que no mundo”29 (p.66). No caso em questão, a Redu-
também passam a ser co-responsáveis ção de Danos oferecia à Saúde Mental, não res-
pelos caminhos a serem construídos pela postas prontas, mas reflexões éticas que exigiam
vida daquele usuário, pelas muitas vidas
movimento e invenção. Do mesmo modo, a Saú-
que a ele se ligam e pelas que nele se ex-
de Mental permitia à Redução de Danos a supe-
pressam” (p. 10)28.
ração definitiva de qualquer resquício de redução
A política do Ministério da Saúde se tor- da questão do uso de drogas à uma dimensão
nou a principal referência do SUS no que tange meramente instrumental de caráter preventivista.
à atenção integral a pessoas que usam álcool
Mas que não reste dúvidas: isto não signi-
e outras drogas. Não obstante, a Redução de
fica que trabalhadores, militantes e pesquisado-
Danos expressa no documento não possuía a
res comprometidos com a Saúde Mental tenham
mesma objetividade daquela que orientava o en-
sempre encontrado respostas satisfatórias pa-
frentamento do HIV/aids, o que dificultava a sua
ra traduzir o conceito de Redução de Danos no
materialização no cotidiano dos serviços: o que
cotidiano dos serviços de Saúde Mental. Rose
seria, concretamente, uma prática de Redução
Meyer, coordenadora do Centro de Referência em
de Danos em um Centro de Atenção Psicossocial
Redução de Danos da Escola de Saúde Pública
especializado em álcool e drogas (CAPS-ad)?
do Rio Grande do Sul, sempre lembrava que a
A política não oferecia respostas concretas Redução de Danos nunca fez mais do que lem-
para este tipo de questionamento, mas induzia brar que os princípios do SUS também valiam pa-
elaborações inovadoras a partir de imperativos ra as pessoas que usam drogas. Ao lembrar o
éticos. Ao afirmar que as pessoas sob efeito de compromisso com a equidade, a universalidade
drogas têm o direito de ser atendidas, impunha e a integralidade, a Redução de Danos estimulou
a reflexão sobre como fazer isto; ao dizer que os a Saúde Mental a buscar respostas construídas
serviços devem acolher àqueles que não querem através da experimentação e do movimento de
ou não conseguem abandonar o uso, interrogava tentativa e erro.
as ofertas a estes sujeitos; ao recomendar a in-
O “Projeto Caminhos do Cuidado”30 foi mais
tegralidade no cuidado, questionava a medicali-
um momento desta onda. A ampliação das ofer-
zação e a psicologização.
tas de cuidado para pessoas em sofrimento psi-
Em outro artigo2, já me vali de Spinoza29 pa- cossocial e com problemas relacionados ao uso
ra afirmar que a aproximação entre Saúde Mental de álcool e outras drogas exigia a mobilização
e Redução de Danos poderia ser caracterizada dos serviços de Atenção Primária à Saúde, ense-
como um “bom encontro”, produtor de “paixões jando um processo formativo para trabalhadores
alegres”X. Mas creio que seja o caso de explicar de nível médio da Estratégia de Saúde da Família
(ESF), em todo o Brasil. Dadas as dimensões do
X
Para Spinoza, os encontros fazem circular afetos que tocam as partes que
se encontram, aumentando ou diminuindo sua potência de agir no mundo. SUS e a imensa capilaridade da ESF por todo ter-
Os bons encontros resultam em alegria, considerada a mais nobre das pai-
xões, porque resulta em ampliação da potência de agir. Os maus encontros, ritório nacional, não seria exagero suspeitar que
por outro lado, produzem tristeza, que diminui a potência. Pela chave de
Spinoza pode-se observar encontros entre pessoas, grupos, ideias, coisas,
ou mesmo entre entes de natureza distinta, como pessoas e coisas, ideias
este talvez tenha sido um dos maiores projetos
e grupos, etc.
de formação em Redução de Danos já vistos no nos CAPS-ad, por exemplo, muitas vezes apon-
mundo. taram na direção de uma articulação complexa e
Outro resultado desta busca de tradução é radicalmente intersetorial. Em ato, as experimen-
o “Consultório de Rua”. Inicialmente vinculado à tações iam pouco a pouco alimentando uma nova
política de Saúde Mental, este projeto acabaria onda.
se transformando em “Consultório na Rua”, su- Caberia também valorizar o impacto de
bordinado à política nacional de Atenção Básica. contribuições trazidas por novos atores. O con-
Não obstante, sua inspiração seguiu sendo tribu- vite feito pela Coordenação Nacional de Saúde
tária da experiência brasileira com Redução de Mental para que o sociólogo Jessé Souza ousas-
Danos, sobretudo no que diz respeito ao trabalho se pensar a questão do uso de crack a partir de
de campo desenvolvido por redutoras e redutores suas elaborações sobre a “ralé brasileira”32, por
de danos, especialmente no contexto da primeira exemplo, permitiu importantes ampliações desta
ondaXI,31. temática. Em paralelo, toda uma nova geração de
Seria possível falar de outros esforços, co- militantes cobrava o reconhecimento de intersec-
mo a inclusão de redutoras e redutores de danos ções da mesma com questões de raça, gênero e
em equipes de CAPSad, experiência desenvolvi- orientação sexual. A Redução de Danos brasilei-
da em algumas cidades brasileiras; ou ainda, das ra, tensionada, esgarçada, dobrada e reconfigura-
transformações de algumas organizações não go- da, aproximava-se de uma nova síntese.
vernamentais (ONGs) de Redução de Danos, em Uma primeira sistematização mais robus-
direção ao campo da Saúde Mental. Não obstan- ta desta nova onda seria desenvolvida em Per-
te, o mais importante seria reforçar que os ques- nambuco, durante a gestão de Eduardo Campos,
tionamentos lançados pela Redução de Danos do Partido Socialista Brasileiro (PSB). À época,
seguiram movendo experimentações e reflexões alguns técnicos envolvidos com a gestão de polí-
no âmbito da Saúde Mental. E não seria exage- ticas de proteção a crianças e adolescentes ame-
ro afirmar que esta busca por respostas termina- açados de morte perceberam que grande parte
ria por conduzir-nos ao que chamo de “terceira da demanda vinha de pessoas que faziam uso de
onda”. drogas. Em paralelo, percebia-se que esta mes-
ma população era também a mais vitimada por
crimes de morte.
Terceira onda: direitos humanos e desenvolvimen-
to social A história da Redução de Danos, em Per-
nambuco renderia um capítulo à parte. O Institu-
Seguindo o esforço de revisão a que me
to Papai, por exemplo, foi uma ONG pioneira na
proponho neste artigo, quero iniciar esta parte
reflexão sobre o uso de drogas e masculinidades.
dizendo que a passagem para uma terceira onda
Recife, por seu turno, foi a primeira capital a rea-
não implica em ruptura com as ondas anteriores,
lizar concurso público para contratar redutoras e
mas em um acúmulo crítico. Um olhar retrospec-
redutores de danos, além de implementar a “Ca-
tivo não teria problemas para encontrar indícios
sa do Meio do Caminho”, inspiração para as Uni-
desta nova etapa nas ondas anteriores. Os Pro-
dades de Acolhimento (UA) propostas pela Políti-
jetos Terapêuticos Singulares (PTS) construídos
ca Nacional de Saúde Mental27. Sem falar na ges-
XI
Uma ótima referência desta experiência é o documentário “Redutores de tão estadual, que já havia inovado com a criação
Preconceitos”, de 200331.
de serviços de assistência social especializados “O Corra pro Abraço atua também na redu-
no atendimento de pessoas que faziam uso de ção de danos sociais relacionados ao consumo
drogas. de drogas, como a estigmatização dos usuários,
Todo este acúmulo seria condensado no a violência e o racismo institucional. A partir des-
“Programa Atitude”, criado em 2011. Lotado na sa estratégia, o programa oferece, por exemplo,
Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social orientação sobre como se portar diante de uma
e Direitos Humanos de Pernambuco, o programa abordagem policial”34 (p.3)
constituiu-se em uma ampla articulação interse- Em 2014, seria a vez da cidade de São Pau-
torial que permitia concretizar o cuidado integral: lo implementar aquela que se tornaria a proposta
proteção à vida, abrigamento, testagem para o de maior visibilidade nacional no que diz respeito
HIV, encaminhamento para CAPS-ad, geração de à terceira onda. O programa “De Braços Abertos”
trabalho e renda, acesso à educação e cultura, oferecia trabalho, renda e moradia, em articula-
compunham um leque de ofertas que ampliava ção com um amplo cardápio de ofertas de saúde,
conscientemente os sentidos da Redução de educação, cultura, direitos humanos e assistên-
Danos: cia social, dentre outras políticas públicas35. O
“A redução de danos, no contexto la- foco eram as pessoas que faziam uso de crack
tino-americano, deve ir além da definição no Bairro da Luz, região que ficou conhecida co-
convencional que tem nos contextos norte- mo “Cracolândia”.
-americanos ou europeus. Nessa região, o Provavelmente inspirada por estas experiên-
conceito deve incorporar a proteção contra cias, a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Dro-
a violência e o desencarceramento como gas (SENAD) lançaria, também em 2014, o “Pro-
um elemento intrínseco e definidor de tal jeto Redes”, com o objetivo de financiar e apoiar
ideia. O principal dano que se quer reduzir iniciativas municipais semelhantes às descritas
é a violência e o encarceramento que es- acima. Este projeto marcou um momento ímpar
tão ligados, principalmente, às dinâmicas na história da SENAD, que seguia uma mesma
dos mercados de drogas”33 (p. 3) linha política desde os tempos de Fernando Hen-
Em 2013, seria a vez dos baianos desen- rique Cardoso até quase o final dos governos pe-
volverem uma iniciativa semelhante. O “Corra Pro tistas. Nos dois anos que precederam o impeach-
Abraço”, lotado na Secretaria de Justiça, Direitos ment da presidenta Dilma Rousseff, entretanto, a
Humanos e Desenvolvimento Social do Estado SENAD foi ocupada por um conjunto de pessoas
da Bahia, também se caracterizou pela amplia- comprometidas com a construção de novas polí-
ção do conceito de Redução de Danos para além ticas. Neste curto período, o “Projeto Redes” via-
da saúde, pelo menos no sentido estrito do ter- bilizou o repasse de recursos para que mais de
moXII . Esta perspectiva pode ser encontrada nos trinta cidades desenvolvessem ações interseto-
documentos oficiais do programa, que criticam riais para garantia de trabalho, renda e moradia a
dimensões estruturais e práticas cotidianas de pessoas que faziam uso de drogas em situações
opressão e violência institucional: de vulnerabilidade social, conferindo mais consis-
tência à “terceira onda da experiência brasileira
com Redução de Danos”.
XII
É importante salientar que para as vertentes críticas (caso da Reforma
Sanitária brasileira), a saúde não depende apenas das técnicas e políticas
de cuidado, mas de uma miríade de determinações sociais.
num contexto de avanço do ideário neoliberal, 10. Bertoni N, Bastos FI. Pesquisa nacional sobre uso
de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares
caracterizado pelo enfraquecimento das políti-
do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de
cas de assistência e desenvolvimento social?
Janeiro: ICICT/Fiocruz; 2014.
Que estratégias de resistência estamos cons- 11. Porter J, Bonilla L, Drucker E. Methods of smoking
truindo? Que articulações? Que alianças? crack as a potential risk factor for HIV infection: ‘crack
A narrativa chega ao seu final, mas não a smokers’ perceptions and behavior. Contemp. Drug Pro-
bl. 1997; 25(2):319-347.
história que se busca narrar.
12. Haydon E, Fischer B. Crack use as a public health pro- Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.
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Resumo Abstract
O artigo discute a estratégia de Redução de Danos e sua relação The article discusses the Harm Reduction strategy and its rela-
com o campo de trabalho do redutor. Seguindo uma linha histórica tionship to the worker’s field of work. Following a historical line, the
se analisa as diversas faces deste encontro, desde a formação do different aspects of this meeting are analyzed, from the formation
redutor até o envolvimento emocional com os usuários. Tratando of the reducer to the emotional involvement with users. Treating
a questão de direitos como prioritário para a aproximação e em- the issue of rights as a priority for approaching and empowering
poderamento dos atingidos pelas ações de Redução de Danos. those affected by Arm Reduction actions. It also raises fundamen-
Levanta ainda questões de fundo das exigências dos usuários nos tal questions about the demands of users in public health facili-
equipamentos públicos de saúde, chegando a ponto de se colocar ties, going to the point of placing total abstinence as a fundamen-
a abstinência total como questão fundamental para a frequência tal issue for the frequency in those spaces. Finally, to conclude
naqueles espaços. Por fim concluir que, após um período de en- that, after a period of enthusiasm and support, these actions are
tusiasmo e apoio, atualmente tais ações estão fragilizadas e inti- currently weakened and intimidated, almost without government
support, and that they only exist thanks to civil society actions,
midadas, quase sem apoio governamental e que somente existem
with fine tuning with users and their social environments.
graças a ações da sociedade civil, com fina sintonia junto a usuá-
rios e seus entornos sociais.
Keywords: Drugs; Harm reduction; Work field; Human rights
Introdução
S
empre se soube que o uso de drogas vem
acompanhando o desenvolvimento de civi-
lizações, embora tenhamos consciência
que esse uso de forma epidêmica é uma carac-
terística dos tempos atuais. Mesmo consideran-
do que o desejo de “transcender” é inerente ao
I
Domiciano Siqueira (domicianos.siqueira@gmail.com) é autodidata, Consul-
tor de Direitos Humanos e Drogas, Fundador e atual Conselheiro da Associa- ser humano, verificamos que esse desejo tornou-
ção Brasileira de Redução de Danos (ABORDA).
se um risco e um grande perigo, agravado pe-
Alvaro Mendes (alvaroacre@uol.com.br) é administrador de empresas e eco-
II
nomista pela Faculdade de Ciências Politicas e Economicas do Rio de Janeiro las doenças que se desenvolveram junto a esse
com Especialização em Politicas Sociais e ex-presidente e atual Conselheiro
da ABORDA. avanço.
tários de Saúde (PACS) e a Estratégia de Saúde das e valores, a partir de um pensamento críti-
da Família (ESF), os Centros de Testagem e Acon- co, a compreenderem o seu comportamento e o
selhamento (CTA) e os Servições de Assistência do “outro”, a tomarem decisões responsáveis,
Especializada em Doenças Sexualmente Trans- desenvolvendo conhecimentos e atitudes em
missíveis ea aids (SAEs), os Centros de Atenção questões relacionadas ao próprio uso de drogas,
Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-ad), além de à sexualidade, à violência, aos preconceitos e aos
outros serviços e dispositivos sócioassistenciais Direitos Humanos; ou seja, que lhes propiciem
(instâncias envolvendo secretarias de Bem-Estar a escolha de um modo de vida saudável. Ferra-
Social, Direitos Humanos e Cidadania, Educação, mentas estas, portanto, que constituem-se como
Justiça e Segurança Pública, etc. – locais onde importantes para aqueles que acreditam na soli-
os programas de Redução de Danos, estariam dariedade humana, principalmente, entre os que
articulados ou não à Atenção Básica, que figura vivem em situação de rua.
enquanto uma das portas de entrada, devido ao
contato precoce do usuário de drogas com os
Redução de Danos, Direitos Humanos, ética
serviços de saúde.
e cidadania
A abordagem do usuário de álcool e
Os Direitos Humanos, expressos na
outras drogas sempre se constituiu como um
Declaração Universal dos Direitos Humanos,
desafio, requerendo um amplo conhecimento
constituem uma base universal de princípios e
sobre o assunto, um domínio de métodos de
valores que dizem respeito às garantias mínimas
abordagem e atuação e informações e técnicas
de uma vida digna à qual todo ser humano tem
adequadas, uma vez que a questão do uso des-
direito. Essa Declaração é reconhecida por quase
sas substâncias traz à tona questões relativas
todas as nações signatárias da Organização das
ao preconceito, mitificações, desinformação e
Nações Unidas (ONU), que constituem a maioria
manejos baseados no senso comum e não na
dos países atuais, sendo incorporada, inclusive,
relação de acolhimento humanizado, que respei-
pela maioria, em suas constituições nacionais.
te individualidade e desejos5-6.
A realidade Brasileira tem demonstrado
Nestes tempos atuais, o grupo que atua
insistentemente que, apesar do caráter univer-
na Redução de Danos está passando por um
sal dos direitos afirmados nesta Declaração, sua
desafio, em um esforço no sentido de uma as-
efetivação não depende exclusivamente de seu
sistência mais igualitária - promovendo o debate
reconhecimento. Ao contrário, depende de uma
e incentivando a discussão entre as instâncias
luta cotidiana cuja responsabilidade é de todos
públicas e a sociedade civil na implantação de
e de cada um de nós e de quem acredita na
políticas sintonizadas com a realidade e os direi-
Redução de Danos como uma ferramenta impor-
tos dos usuários de drogas.
tante de inclusão do afeto.
Isso implica, principalmente, em desen-
A violação dos Direitos Humanos e da ci-
volver e manter ferramentas importantes para
dadania tem sido uma prática constante em nos-
entender e desenvolver o trabalho preventivo,
sa realidade e os fatores que contribuem para
com foco no cuidado aos usuários de drogas com
essa situação são muitos e de várias ordens. Ela
relação a outros agravos correlatos. Ao mesmo
expressa, em grande medida, o grau de violência
tempo, favorecendo que elaborem suas deman-
de nossas relações sociais e o nível de intolerân-
Barreiras nas Ação com Usuários de Drogas Ministério da Saúde como a lógica a ser utilizada
Ilícitas nos serviços de atenção diária que integram a
Nos desafios cotidianos das intervenções rede de cuidados em Saúde Mental, no atual
na rua são encontradas várias barreiras, que vão, governo federalIII, deixando a população de rua
desde a incompreensão da sociedade, até a ati- mais expostas aos determinantes sociais.
tude de muitos governantes que apelam para a A invisibilidade que cerca a questão das
higienização e limpeza social como forma de res- drogas e seus usuários é um fato notório e tem
olutividade para acabar com a mazela de quem, reflexos no relacionamento entre profissionais de
na verdade, está em vulnerabilidade social devido saúde e seus pacientes. Muito raramente, esse
à falta de políticas públicas mais humanizadas de tema é incluído nas anamneses, entrevistas e
inclusão social e seus desafios, tanto no campo consultas de avaliação clínicas. Em muitas situ-
da prevenção, como da assistência a esta popu- ações, o profissional de saúde tem fortes indícios
lação específica que são os usuários de drogas. de que o paciente seja um usuário de drogas,
Além da alta vulnerabilidade individual e mas prefere “não tocar no assunto” ou tratar o
das estimativas epidemiológicas que acometem sujeito de um modo parcial e sem se ocupar em
essas pessoas, contundentes no mundo contem- incluir esse dado nas suas avaliações de risco
porâneo7, algumas avaliações clínicas também à saúde, nas suas hipóteses diagnósticas, nos
indicam que os consumidores de drogas, quando seus aconselhamentos ou nos projetos terapêuti-
infectados pelo vírus da tuberculose e HIV e/ou cos9. Na maior parte das vezes, quando esse as-
doentes de aids, costumam ter um dos piores sunto é clinicamente abordado, ainda prevalecem
prognósticos relativos à manutenção da saúde, às exigências para uma abstinência total, moral-
além de ter a morbidade e a letalidade aumenta- mente apresentada aos pacientes como uma
das, se comparadas às de outros grupos popula- pré-condição para que algum tratamento seja em-
cionais8. preendido.
Apesar disso, não é difícil observar É consensual, o reconhecimento de que
o quanto, em muitos municípios brasileiros, a epidemia da aids provocou, na sociedade bra-
as ações de prevenção e assistência voltadas sileira, uma visibilidade um pouco maior para
para essa população específica ainda são insu- os comportamentos relacionados com o uso de
ficientes, irregulares ou, na sua grande maioria, drogas, os padrões de consumo envolvidos, os
inexistentes. O Ministério da Saúde, ao apresen- tipos de usuários e os possíveis danos à saúde
tar suas diretrizes nacionais para uma Política de resultantes do abuso de substâncias psicoativas.
Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Vale ressaltar, no entanto, que essa visibilidade
Drogas4, em 2004, reafirmou ser esse tema “um permanece circunstancial e descontínua, sendo
grave problema de Saúde Pública”, reconhecendo frequentemente embaçada por estigmas, pre-
a necessidade de superar o atraso histórico de conceitos e discriminações que, invariavelmente,
assunção desta responsabilidade pelo SUS e, são os principais responsáveis por manter na ex-
propôs o enfrentamento da questão através do clusão social essa população específica.
subsídio de uma construção coletiva9 (p.5). O que se vê mais frequentemente, por
A aplicação desse tipo de estratégia pas-
sou a não ser mais reconhecida pelo próprio III
Gestão de Jair Bolsonaro, iniciada em 2019.
parte de muitos profissionais de saúde, no trato do Sul, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(2):382-392.
(on line). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-
com esse tipo de usuário, é a adoção de estraté- 311X2009000200017
gias repressivas, com intervenções marcadas por
4. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Coorde-
noções de culpa de certo e errado, tentando pro- nação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da
mover um ideal de “pureza humana” e de saúde Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras
drogas. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.
a serem alcançados unicamente pela abstinência
às drogas. Não raro, “essas intervenções costu- 5. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde enten-
dido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos
mam ser associadas a uma pedagogia do terror RA (orgs.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes
enfatizando o medo como uma forma de afastar e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ; Abrasco;
2003.
o sujeito das drogas, livrando-o de um suposto
caminho que o levaria, inevitavelmente, ao crime, 6. Teixeira RR, Ferigato S, Lopes DM, Matielo DC, Sanden-
berg ML, Silva P & cols. Apoio em rede: a Rede Humani-
à doença e à morte”9 (p.10). zaSUS conectando possibilidades no ciberespaço. In: In-
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Considerações finais dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.1217
Ainda são muito tímidas as ações con- 7. Santos NTV. Vulnerabilidade e prevalência de HIV e sífilis
tínuas de prevenção centradas em estratégias de em usuários de drogas no Recife: resultados de um estudo
respondent-driven sampling. 2013. (Tese). Centro de Pesqui-
Redução de Danos na rua e que tenham como sas Aggeu Magalhães, Recife; 2013. 151 f.
meta a promoção e o desenvolvimento de uma
8. Giacomozzi AI, Itokazu, Luzardo AR, Figueiredo CDS, Vieira
consciência crítica desses sujeitos, avaliando, M. Levantamento sobre uso de álcool e outras drogas e vul-
junto com eles, seus riscos e os fatores viáveis nerabilidades relacionadas de estudantes de escolas públi-
cas participantes do programa saúde do escolar/saúde e
de proteção que cada um efetivamente dispõe. prevenção nas escolas no município de Florianópolis. Saude
As estratégias preventivas de Redução Soc. 2012, 21(3):612-622. (on line). [acesso em: 27 out
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112.
Resumo Abstract
O objetivo deste artigo foi contextualizar a história do desenvolvi- The objetive of this article was to contextualize the history of the
mento da Redução de Danos no Brasil a partir dos contextos socio- development of Harm Reduction in Brazil form the socio-political
políticos garantidos na constituição de 1988, com a mudança dos contexts guaranteed in the 1988 constitution, with the change of
paradigmas de cuidados em relação ao cuidado de saúde mental/ paradigms of care in relation to mental health care/alcohol and
álcool e outras drogas, e as aproximações dos pressupostos da other drugs, and tthe approximations of the assumtions of Integra-
Terapia Comunitária Integrativa junto a essa população com a Re- tive Community Therapy with this population with Harm Reduction
dução de Danos como prática emancipatória. as an emancipatory practice.
Introdução
D
e modo geral, Redução de Danos é uma não é único nem tampouco consensual, pois
filosofia e estratégia de cuidado com usu- advém de diferentes campos e práticas1. Espe-
ários de álcool e outras drogas que tem cialmente no Brasil, a evolução histórica des-
por objetivo acolher as pessoas em sofrimento te tema e suas práxis de cuidado em relação
garantindo a elas direitos, fortalecendo as es- aos usuários de substâncias psicoativas são
tratégias de proteção e a ampliação deste te- marcadamente múltiplas, com uma diversidade
ma no campo da Bioética. Porém, este conceito construtiva de práticas e estratégias1.
Passados 30 anos de história sobre a Re-
I
Eroy Aparecida da Silva (eroyntc@gmail.com) é psicóloga pela Faculdade
Paulistana Organização Paulista de Educação e Cultura (UNIPAULISTANA) dução de Danos no Brasil, atravessamos várias
Psicoterapeuta Familiar e Comunitária e Doutora em Ciências pela Univer-
sidade de São Paulo (UNIFESP), membro da Associação Fundo de Pesquisa ondas, que não podem estar desvinculadas do
Psicofarmacologia (AFIP), pesquisadora e ativista social e colaboradora de
vários coletivos que trabalham com pessoas em situação de rua na cidade contexto tanto sociopolítico e econômico que
de São Paulo.
repercutiram fortemente nas práticas, tanto
II
Regina Tuon (reginatuon@uol.com.br) é assistente social pelas Faculdades
Metropolitanas Unidas (FMU), Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Uni- de saúde mental, como nas políticas sobre ál-
versidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Especialista em Dependência de
Drogas pela UNIFESP de São Paulo e do Ministério da Saúde. cool e outras drogas. Alguns deles são: (1) os
avanços no campo da Saúde Mental na déca- Operação Interna e Centros de Operação e De-
da de 1980, com a constituição de 1988; (2) fesa Interna (DOI-CODI) do Exército Brasileiro,
o enfrentamento das políticas proibicionistas do assassinato do operário Manuel Fiel Filho e
de cuidado, de forma verticalizada, cuja única o espancamento do bispo Dom Adriano Hipóli-
possibilidade das propostas de tratamento era to, um grupo de sanitaristas na cidade de São
a abstinência; (3) a incorporação das diversas Paulo se juntam e formam o Centro Brasilei-
propostas de Redução de Danos nas políticas ro em Estudos em Saúde (CEBES) e fundam a
de cuidado em relação ao consumo de substan- “Revista Saúde em Debate”, cuja proposta foi
cias psicoativas; (4) o golpe político de 2016, debater e defender pública e criticamente as
que trouxe um retrocesso no avanço das estra- práticas no campo da Saúde Pública e Saúde
tégias de cuidado em Saúde Mental no geral Mental no Brasil. Paralelamente houve a cons-
e consequentemente nas garantia das estraté- trução do Movimento de Renovação Médica, a
gias de Redução de Danos, nas suas propostas partir do Rio de Janeiro, que levantava bandei-
originais de acolhimento, escuta valorização do ras importantes em relação ao movimento sin-
encontro singular e horizontalizado entre profis- dical “entreguista” implantado desde o Golpe-
sionais e usuários. Militar de 1964, quando houve fechamento das
O objetivo deste capitulo é discutir as os- instituições democráticas e a implantação do
cilações dessas diferentes fases, bem como regime ditatorial.
relacionar avanços de algumas intervenções Em 1978, no Rio de Janeiro, a partir de de-
psicossociais comunitárias que incluem as es- núncias significativas de médicos psiquiatras
tratégias de Redução de Danos no cuidado de sobre a desumanização em relação às pessoas
usuários de drogas vulnerabilizados; ou seja, em situação de sofrimento mental, foi funda-
aqueles que habitam as ruas e, de modo geral, do o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
não buscam os serviços formais diretamente. Mental (MTSM). Este se constituiu, em pouco
Será dada ênfase também as aproximações da tempo, em uma base importante para a reno-
Terapia Comunitária Integrativa (TCI) com as vação no campo da Saúde Mental brasileira,
estratégias de Redução de Danos, propositora constituindo assim o forte Movimento de Re-
de respeito, cuidado humanizado e potenciali- forma Psiquiátrica, cuja proposta foi a de com-
zados de encontros singulares entre as pesso- bater a institucionalização nas políticas públi-
as usuárias de substâncias psicoativas. cas de Saúde Mental; ou seja, a modificação e
O Movimento de Reforma Psiquiátrica transformação das internações em manicômios
no Brasil surge a partir de tentativa de reor- em abordagens psicossociais humanizadas. O
ganização social contra a Ditadura Militar, que Movimento de Reforma Psiquiátrica tomou for-
matou e torturou brasileiros que se opunham ça a partir das lutas dos movimentos médicos
ao governo na década de 1970. Em 1976, com e sociais e conseguiu ocupar o lugar de um pro-
a edição da Lei Falcão, bombas na Associa- cesso permanente de construção e transforma-
ção Brasileira da Imprensa (ABI), Ordem dos ções rápidas nos campos assistencial, cultural
Advogados do Brasil (OAB) e em várias outras e social, a partir da superação dos estereóti-
instituições, além da cassação de vários par- pos, estigmas, segregações relacionadas às
lamentares, de mortes no Departamento de pessoas em sofrimento mental e psíquico2.
O Movimento de Reforma Psiquiátrica 1900 até 2000, concluindo que, no século XX,
precisou lidar com mais de duzentos anos de a discussão sobre o consumo de drogas psi-
práticas desumanizadas no tocante à Saúde coativas esteve demasiadamente atrelada às
Mental em nosso meio. As lutas efervescen- práticas psiquiátricas e ao estatuto da “doen-
tes, neste campo, lideradas por sanitaristas, ça mental”, seja como condicionante ou como
psiquiatras e trabalhadores foram capazes de resultante do uso de substâncias psicoativas4.
sustentar as mudanças substancias dos cui- Nota-se que as discussões no ambiente
dados hospitalocêntricos e manicomiais para científico atual se organizam frente a duas ló-
o início de modelos paradigmáticos de cuida- gicas: a da repressão e proibição, à contenda
do baseados nas denominadas abordagens da segurança pública, e o da Redução e Danos
psicossociais, fortalecidas a partir de 1988, e cuidado no território, a partir da Saúde Men-
com a implantação do Sistema Único de Saúde tal. Na prática, parece ainda não ter aconteci-
(SUS) que, no tocante a todas as suas dificul- do uma completa fusão entre os dois tipos de
dades de funcionamento, passou a garantir o políticas públicas nos termos da temática do
cuidado mínimo de saúde a todos os brasileiros uso de drogas, até o final dos anos 2000 4. Atu-
publicamente. almente, ainda é visível a influência da Psiquia-
Estudos, entretanto, apontam inúmeras tria na manutenção e sustentação das ideias
lacunas em relação ao campo de Saúde Mental repressivas da justiça e da patologização do
e as políticas sobre drogas, sendo estas últi- consumo dessas substâncias; apesar disso,
mas demarcadas por visões hegemônicas, mo- é evidente e inegável que a consolidação da
ralistas, antiproibicionistas e judicialistas, ain- Redução de Danos foi um grande avanço em
da na atualidade. No Brasil, sempre houve uma um movimento nacional, para a mudança de
tendência em considerar o uso de substâncias paradigma no cuidado, impulsionando novos
psicoativas como comportamentos delituosos, paradigmas na criação de uma política sobre
sujeitos a sanções criminais. Isso foi um dos fa- drogas democrática, participativa e inclusiva e
tores que produziu “uma importante lacuna na se opondo firmemente a toda e qualquer forma
política pública de saúde, deixando-se a ques- coerciva fruto das visões moralizantes presen-
tão das drogas para as instituições da justiça, tes nos pressupostos da “guerra às drogas”,
segurança pública, pedagogia, benemerência, que, por diferentes interesses, defende a abs-
associações religiosas” (p.40). O uso dessas tinência como única possibilidade de cuidado
substâncias perde sua complexidade quando em nome de suposto cuidado.
é avaliado como uma conduta desviante dos Entretanto, a onda dessa consolidação
padrões morais estabelecidos; frente a isso, a da Redução de Danos como movimento nacio-
única solução proposta para a regeneração da nal acompanhou toda uma conjuntura política
pessoa, além da pena, é a abstinência. de avanço no campo, tanto da Psiquiatria como
Isso é evidenciado, historicamente, e da Psicologia democráticas. As primeiras expe-
apontado em um importante estudo realizado riências com Redução de Danos tiveram início
por Varga e Campos 4. Neste, os autores fazem na Inglaterra, em 1926, onde um grupo de mé-
uma revisão sobre a trajetória das legislações dicos ingleses, preocupados com os riscos ad-
em Saúde Mental e álcool e outras drogas, de vindos do consumo de ópio e pelo sofrimento
e cuidado das pessoas, já naquela época, ela- No Brasil, em 1989, na cidade de Santos,
boram um documento que ficou mundialmente a epidemia da aids se disseminava entre usu-
conhecido como “Relatório de Rolleston”. Esse ários de drogas injetáveis, o que fez com que
documento continha um conjunto de recomen- médicosIII e demais equipes de saúde implan-
dações de uma comissão interministerial, cujo tassem a primeira atividade reconhecida como
ministro da saúde inglês era sir Humphrey Rol- atividade de Redução de Danos, com a distri-
leston. Ficou estabelecido, neste documento, o buição de seringas aos usuários de drogas,
direito dos profissionais (médicos ingleses) de com o objetivo de reduzir a contaminação do
prescreverem regularmente ópio e derivados a vírus HIV5 (p.25). Frente a essa iniciativa, o Mi-
pessoas dependentes dessas substâncias em nistério Público acusou as equipes de incentivo
ocasiões em que a pessoa estivesse sujeita a ao uso de drogas e as obrigaram a responder
riscos importantes. processos a despeito do resultado das ações
No tocante a todas as questões políticas de saúde ter demonstrado uma diminuição da
envolvidas, a preservação e o respeito à vida contaminação pelo HIV entre usuários, após a
dos dependentes ingleses no início do século distribuição das seringas.
XX, prevaleceu sobre as questões morais, se O movimento em defesa da Redução de
diferenciando prementemente da política de Danos foi tomando força, tanto entre os usu-
“guerra às drogas” dos Estados Unidos, a qual ários, como entre os profissionais/cuidadores.
o Brasil foi sempre signatário, modelo que tra- Em 1993, ocorreu na cidade de Florianópolis, o
ta a questão da dependência de drogas como I Seminário Nacional Sobre Aids entre os usuá-
algo a ser combatido com jurisprudência auto- rios de drogas injetáveis (UDIs). Neste evento,
ritária, julgadora, estigmatizadora e unicista, ficou evidenciado a necessidade do cuidado es-
que criminaliza e descontextualiza o consumo pecifico em relação aos UDIs. Posteriormente,
da sociedade. A droga, na política armamentis- em 1995, em Salvador, Bahia, através do Cen-
ta americana, é um inimigo que deve ser com- tro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas
batido, na defesa da construção irreal de um (CETAD) teve início pioneiramente, no Brasil, o
mundo sem drogas psicoativas. primeiro programa oficial de Redução de Da-
Entretanto, apenas no início dos anos de nos, que propôs a troca de seringas.
1980, as ações baseadas nos princípios de Em 1997, Assembleia Legislativa de São
Rolleston passaram a ser sistematizadas pro- Paulo aprovou a primeira lei que legalizou a tro-
gramaticamente na Holanda, por força e inicia- ca de seringas6, que serviu de impulso para
tiva de um movimento de usuários de drogas que outros Estados também pudessem promul-
psicoativas, que construíram uma associação, gar suas leis de forma semelhante; antes des-
pois estavam preocupados com a dissemina- sa, o profissional de saúde que fosse flagrado
ção e a contaminação das hepatites virais en- com seringas podia ser preso e criminalizado
tre os consumidores. Com o advento do vírus como traficante.
HIV, as propostas de Redução de Danos toma- É inegável o fato de que o advento da epi-
ram força entre os usuários de drogas injetá- demia da aids fortaleceu o movimento em de-
veis e passou a fazer parte de um novo paradig- fesa da filosofia e do proposito clinico-ético e
ma ético, clínico e político de cuidado.
I
Fabio Mesquita e Davi Capistrano.
dos programas de Redução de Danos no Brasil. Atenção Psicossocial (RAPS), esta passou a ser
Segundo Andrade8, em 2003, estes somavam centro de atenção às pessoas em sofrimento
279 e, em 2005, 136. mental, incluindo os usuários de substâncias.
Com o avanço das lutas, o cuidado aos Integrada ao SUS, esta rede é formada por
usuários de substâncias psicoativas passou a dispositivos diversos tais como: os CAPS e os
ter lugar e espaço ampliados nas políticas de CAPS-ad); os Centros de Convivência e Cultura
Saúde Mental, Em 2003, a o Ministério da Saú- (CCC), os Serviços Residenciais Terapêuticos
de apresentou a “Política de Atenção Usuários (SRT); as Unidades de Acolhimento (UAs) e os
de Álcool e Outras Drogas”9-10, incluindo como leitos de atenção integral em hospitais gerais e
práxis de cuidado as concepções das aborda- nos CAPS III). Além de ampliar os dispositivos
gens psicossociais defendidas pelo Sistema de cuidados em saúde mental “a articulação e
Único de Saúde (SUS) e da luta antimanicomial a integração dos pontos de atenção das redes
para os usuários de álcool e outras drogas. de saúde no território, qualificando o cuidado
Nesta ocasião o conceito de redução de danos por meio do acolhimento, do acompanhamento
vinha sendo “consolidado como um dos eixos contínuo e da atenção às urgências”11.
norteadores da política do Ministério da Saúde As políticas específicas sobre álcool e
para o álcool e outras drogas”10 (p.43). outras drogas caminharam sob três vertentes
Assim, muitas “ondas” e transformações principais que, com o decorrer dos anos, foram
ocorreram no campo das drogas quando o mo- amadurecendo e se fortalecendo sob princípios
vimento da Redução de Danos saiu da área da diferentes da política de “guerra às drogas”,
prevenção e controle das doenças sexualmente bem como do modelo clássico e hegemônico
transmissíveis (DST), incluindo a aids, e pas- de doença, substituindo-os pela Redução de
sou para área de Saúde Mental9. Embora vários Danos, sempre acompanhada pelas lutas dos
retrocessos tenham ocorrido nas propostas movimentos sociais e de Saúde Mental.
originais da Redução de Danos, quando estas Centros de Tratamentos para dependen-
passaram a fazer parte na Política de Atenção tes de álcool e outras drogas ligados a várias
Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, Universidades foram construídos na década de
do Ministério da Saúde, este tema passou a 1980, assim como associações de classe repre-
ser um ponto central na construção de um mé- sentativas deste campo, inicialmente a Asso-
todo clínico-político, juntando e atualizando di- ciação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras
ferentes dispositivos de cuidado em relação à Drogas (ABEAD), que defendia e ainda defende
Saúde Mental; colocando como ponto central a concepção de doença das dependências e,
a desconstrução dos modelos hospitalocentri- mais tarde, em 2005, outro grupo formado por
cos e a substituição desses pelas intervenções ex-membros da ABEAD e advindos também da
psicossociais como: centros de dispositivos de Reforma Psiquiátrica, Movimento Antimanico-
atenção e cuidado, como os Centros de Aten- mial e da Redução de Danos, fundando a As-
ção Psicossocial (CAPS) e Centros de Atenção sociação Brasileira Multidisciplinar de Estudos
Psicossocial para Usuários de Álcool e Outras sobre Álcool e Outras Drogas (ABRAMD), que
Drogas (CAPS e CAPS-ad). passou a atuar mais no fortalecimento das es-
Em 2011, com a implantação da Rede da tratégias de ações clinico-politica-bioética da
olhar uns para os outros. No início, as equipes abandono, negligência, violência, tanto inter
dão as boas vindas, normalmente com uma como intra familiar e consumo problemático
música sugerida pela comunidade; e há a cele- de substâncias, mortes por overdose, envol-
bração de datas de aniversários e a discussão vimento no tráfico, prisões das pessoas com
de algumas regras, como a de silêncio, quan- droga são bastante frequentes nas rodas e,
do cada pessoa estiver falando, a de falar da quando estes surgem, as equipes precisam es-
própria experiência usando o verbo na primeira tar preparadas para organizar os diálogos sem
pessoa; não dar conselhos, nem julgar; e res- julgamentos.
peitar a história de cada um. A roda é um espa- Quando o tema do dia escolhido está
ço de escuta. especialmente relacionado ao sofrimento da
• a escolha: é a definição do tema a ser pessoa e ou familiares com consumo pro-
debatido no dia. Isso se dá no início, quando a blemático de substâncias psicoativas, todos
equipe de cuidadores pergunta quem gostaria os esforços das equipes estão no sentido de
de falar sobre o que está lhe afligindo, tirando trabalhar horizontalmente com a comunidade,
o sono e/ou incomodando. exercitando a escuta generosa, sem julgamen-
• a contextualização: é a fase em que são to, regra, aconselhamentos ou definições de
solicitadas mais informações sobre o assunto metas e nem focalizando a abstinência, por
para que o tema possa ser contextualizado. exemplo; condutas estas semelhantes às das
equipes que estão trabalhando com as estraté-
• a problematização: seguido à
gias de Redução de Danos.
contextualização, ocorre quando a pessoa,
em silêncio e apenas escutando a reflexão Nesse caso, a pessoa é convidada a falar
do grupo, sobre quem já passou por situação de si, sempre na primeira pessoa: “eu”. É con-
semelhante e o que fez para superar ou lidar vidada a falar livremente para o grupo sobre
com ela; como, por exemplo, as situações de: o que está incomodando em relação aos seus
perda, traição, vida na rua, relações familiares, vínculos consigo mesma, com os outros e tam-
prisão, brigas, facções, uso de substâncias bém com as substâncias que utiliza. A ênfase
psicoativas, abandono, etc. é dada a história de vida dela, com quem vive,
do que gosta, de qual é a sua rede social, se
Esta etapa final propicia que todas as pes-
está trabalhando e como está os sentimentos
soas possam fazer suas trocas de histórias e
dela naquele momento. Ao permitir a fala sobre
organizarem suas experiências através da apre-
si mesmas, muitas histórias surgem antes do
ciação e valorização e, em seguida, o grupo se
contato com as substâncias. Após o relato, a
prepara para o encerramento do encontro, uti-
equipe agradece a disponibilidade do narrador
lizando rituais de agregação, de conotação po-
de sua história e questiona o grupo sobre quem
sitiva e de valorização da força e coragem de
já passou por experiência semelhante a que ou-
cada um, como por exemplo, todo o grupo abra-
viu e o que fez para lidar com ela. Invariavel-
çar em pé as pessoas que trouxeram seus te-
mente, no grupo comunitário várias outras pes-
mas, acolhendo-as, etc. Os participantes falam
soas apontam que estão vivendo ou já viveram
do que estão levando de aprendizado coletivo
situações semelhantes e este sentimento de
dessa troca de experiências com a roda.
pertença faz com que a pessoa que relatou seu
Temas como tristeza, medo, solidão,
próprio caso se sinta acolhida e não julgada. estou sendo julgada porque eu bebo de-
Este momento é bastante intenso, a comunida- mais, eu sou acolhida, as pessoas não
de troca entre si histórias que organizam suas olham para mim como se eu fosse um
experiências. As narrativas abaixo ilustram co- “pé de cana”, eu me sinto querida mes-
mo as pessoas são acolhidas em várias rodas mo, então este sentimento de ser escu-
de Terapia Comunitária Integrativa, em que o tada e valorizada na minha história, me
tema escolhido foi o sofrimento relacionado ao ajudaram muito a parar de beber como
uso de uso de substâncias. eu bebia. Era um buraco ou um vazio que
“Eu vim aqui nesta roda pra falar da batia dentro de mim, que a bebida ajuda-
droga e falei sobre a minha história on- va eu não sentir” (Depoente C);
de o uso está presente, mas eu não sou “Sabe de uma coisa, eu já fiquei in-
apenas isso”; “Eu vim porque me falaram ternada, já fui presa vendendo maconha
da roda, confesso que vim meio receoso e pedra e em todo lugar que passei tinha
porque já estive muitas vezes no NA, e gente falando o que era para eu não fa-
quando chegava lá eu ficava maluco de zer, ai eu ia e fazia o contrário. Aqui na
tanto ouvir falar de droga, cheguei a sair roda foi diferente, ninguém nunca disse
de lá e ir usar maconha, cocaína ou be- o que eu deveria ou não fazer, em rela-
ber várias vezes, mas quando cheguei cá ção ao uso dos troços, se interessaram
e falo sempre de mim, e falar na primeira em saber de mim, da minha pessoa, eu
pessoa me ajuda bastante: - primeiro eu também aprendi sobre o meu próprio
preciso me responsabilizar por tudo que eu, escutando os outros, hoje eu diminui
faço, sinto e falo; segundo não culpabili- muito o uso, por minha própria conta”
zar os outros quando faço uso de crack; (Depoente D);
terceiro não achar que é o crack que me “Eu trabalhei mais de cinco anos
domina, não, sou eu que vou atrás dele” na noite, como michê, para pagar minha
(Depoente A) faculdade e colocar comida em casa por-
“Eu passei a ver as coisas de ou- que minha mãe cuida de uma Irma mi-
tra forma aqui na roda, quando ouço os nha que é excepcional, somos nós três,
outros falando também dos seus proble- meu pai caiu no mundo”. A vida na noi-
mas eu percebo que não sou apenas eu te é bruta, a cocaína me deu força para
o perdido e abandonado. Antes eu me aguentar trabalhar, eu fui parando sozi-
xingava, me dava pontapés, mas sempre nho quando decidi deixar de trabalhar
depois que bebia a cachaça, de uns tem- na noite, não dava mais, essa roda me
pos para cá eu presto mais atenção em acolhe me escuta muito mais do que em
mim, no que é conversado aqui, não é a casa” (Depoente E);
tentação, sou eu mesmo que aprendi a “Eu quero hoje aqui pedir ajuda nes-
beber cedo demais com meu pai, inclu- ta roda, para um dor que estou sentin-
sive e isso virou um hábito, que eu fazia do que dói, dói e dói, perdi dois irmãos
mecânico” (Depoente B); já por envolvimento com o tráfico, um
“Aqui nas rodas eu sinto que não foi morto por causa de dívidas que foi
fazendo e o outro no mês passado foi na roda. Várias pessoas dizem que a roda é o
morto em uma briga na porta de um bar, único lugar onde ela podem tanto falar, como
onde ele segundo nos contaram vendia escutar.
cocaína e crack. Agora ficamos apenas Embora a Terapia Comunitária Integrativa
eu, minha irmã e meus pais, sem rumo, trabalhe com as pessoas em grupos, nas comu-
porque os rapazes um com 32 anos e nidades, acolhendo os temas diversos, espe-
o outro com 29 morreram em três anos cialmente ao tratar o uso de substancias psico-
perdemos eles dois. Estou muito deprimi- ativas se aproxima de estratégias de Redução
da” (Depoente F); de Danos, principalmente no que diz respeito
“Eu quero trazer aqui para vocês o à valorização da pessoa, ao não julgamento, à
que eu sinto por estar morando na rua: a escuta e ao acolhimento, à baixa exigência em
pessoa que vive na rua usa a droga para relação à frequência e metas de uso dessas
continuar viva, comigo foi assim, porque substâncias.
é muita situação triste que a gente vê en- Assim, a Terapia Comunitária Integrativa é
tão o uso é como se fosse uma diversão um espaço de fala, de acolhimento e escuta ge-
para aquelas desgraceiras todas” (Depo- nerosa e, desde 2004, através de uma parceria
ente G); realizada como Secretaria Nacional de Políticas
“Eu quero conversar com vocês so- sobre Drogas (SENAD), capacitou mais de 800
bre minha família, embora eu saiba que trabalhadores da área de álcool e outras dro-
todos em casa, preferissem que eu não gas e passou a fazer parte da Rede SUS e da
usasse drogas, eu uso assim mesmo, Estratégia de Saúde da Família. Várias equipes
não fui destruído por isso, trabalho, não que estão nos consultórios de rua são também
tiro nada de ninguém, compro o bagulho terapeutas comunitários.
com meu dinheiro e uso, ai eu adotei os A Terapia Comunitária Integrativa ganhou,
meus parceiros de rua como meus pa- finalmente, status de Política Pública do SUS,
rentes” (Depoente H); em 2017, com sua inclusão Política Nacional
“A pessoa que vive na rua de cara de Práticas Integrativas (PNPIC)19 e na Portaria
já é rotulada como usuária de drogas, va- GM nº 84920 do Ministério da Saúde. A Terapia
gabunda, desocupada, todos passam e Comunitária, juntamente com outras 19 práti-
não te vê você é como se fosse um lixo, cas “ampliam as abordagens de cuidado e as
essa sensação me maltrata, eu nem faço possibilidades terapêuticas para os usuários,
uso de nada, meus colegas usam, mas garantindo maiores integralidade e resolutivida-
eu não sonho em sair da rua com minha de da atenção à saúde” (p.08).
namorada” (Depoente I);
Os relatos que surgem nas rodas relacio- Considerações Finais
nadas ao consumo de substâncias são acolhi- Terapia Comunitária é uma estratégia de
dos, debatidos e a atenção voltada para a pes- atenção à saúde referência territorial, consi-
soa e não apenas para o uso de substâncias derando o território não apenas um ponto geo-
psicoativas possibilita que sua história possa gráfico, mas um local de pertencimento do in-
ser contada e valorizada, suportada e dividida divíduo, aonde estão seus familiares, amigos,
The Differences between Complaint and Demand on Harm Reduction’s Work: possibilities for a clinical
listening in heterogeneous spaces
Rodrigo AlencarI
Resumo Abstract
O presente artigo aborda os aspectos políticos da história da Re- This article approaches the political aspects Brazilian Harm Re-
dução de Danos no Brasil, bem como algumas especificidades de duction history, as well as some particularities of its practice, as
sua prática, a saber, a escuta em meio a troca de insumos e as es- the clinical listening among the distribution of preventive gears and
tratégias de vinculação e acolhimento no território. Destacamos o the strategies of bonding and caring on territory. The period which
período de maior reflorescimento da Redução de Danos no Brasil, starts at the year of 2010, when a bunch of health policies on seve-
a partir dos anos de 2010, quando uma série de políticas públicas ral areas started to respond the appeal for face the crack, consis-
em diversos âmbitos começam a articular respostas ao clamor ted in a time of expansion of psychonalitical theories among Harm
pelo combate ao crack, e às cenas de uso em diferentes capitais Reductors. It is on this context that we target to expose and refine
do Brasil. É nesse contexto que apontamos para a circulação de the theory which has been developed by means of the work among
teorias oriundas da psicanálise por meio dos Redutores de Danos the users on the streets. Finally, we highlight the meaning of clini-
e apoiadores, possibilitando a aplicação e atualização de referen- cal listening, building a difference between the complaint and the
ciais teóricos nos encontros que acontecem no território. Por fim, demand on the listening of the drug users, in a way to make possi-
apontamos a importância de se poder lançar mão de uma escuta ble a practice of caring with a subjacent refinement, as well as on
clínica, operando uma diferença entre queixa e demanda na escu- the process to the other services and treatments.
ta dos usuários atendidos, de modo a possibilitar uma prática de
cuidado com um refinamento subjacente, assim como formas de Keywords: Harm reduction; Drugs; Psychoanalysis.
encaminhamento mais precisas.
Introdução
sob ataque de agentes da segurança pública,
A
o longo dos últimos trinta anos no Bra- passou a gozar de certa notoriedade e reflores-
sil, tivemos a difusão e consolidação cimento no início da última década.
das práticas de Redução de Danos. O
É importante situarmos que a partir de
que antes ocorria por meio da sociedade civil
2010 a retórica anticrack tomou de assalto os
organizada, muitas vezes de modo marginal e
discursos eleitorais e os editoriais dos grandes
I
Rodrigo Alencar (r.alencar@gmail.com) é psicanalista e Doutor em Psicologia
Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP),
órgãos de imprensa; o combate ao crack pau-
Professor convidado na Pós-Graduação da Fundação Escola de Sociologia e tou debates dos candidatos à presidência e ao
Política de São Paulo (FESP), atua em consultório particular e é membro da
Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD). governo do Estado de São Paulo, funcionando
como uma espécie de para-raios ideológico assim, o trabalho dos redutores de danos se-
com respostas similares em todo o espectro gue com suas dificuldades específicas que de-
político1. pendem mais ou menos da oficialidade estatu-
Após a vitória de Dilma Rousseff para a tária. Dessas dificuldades, podemos destacar:
Presidência da República, que comportou um os desafios impostos pelo território, suas cor-
significativo corpo profissional alinhado aos relações de força, seus eventos intempestivos,
princípios da Reforma Psiquiátrica e da Redu- a violência que assola quem vive na rua e a
ção de Danos em sua gestão, pudemos reco- desarticulação dos diferentes setores de polí-
nhecer certa continuidade de avanços na ofi- ticas públicas, como o da saúde, assistência
cialidade das práticas de Redução de Danos, social e segurança pública.
diminuindo a sua carga de marginalidade e ga- Com um certo esforço diante do tumul-
nhando corpo em diversos serviços de Saúde tuado contexto de trabalho que nos encontra-
Mental por todo o território brasileiro. mos, gostaria de adentrar algumas especifici-
Apesar de todo o pânico moral e do dades da Redução de Danos e quais desafios
crescimento das comunidades terapêuticas, a essas especificidades suscitam. Para iniciar-
Redução de Danos aumentou sua presença na mos, é importante lembrar que a Redução de
assistência de caráter territorial dos usuários. Danos compõe uma perspectiva liberal, dado
Pudemos perceber o medo ser sucedido pela que o seu trabalho de assistência toca dire-
constatação da ignorância, visto que os méto- tamente no direito à liberdade de escolha, de
dos de tratamento tradicionais só faziam insis- modo muito estratégico, aspecto importante de
tir em seus fracassos — o que possibilitou que ser ressaltado, dado que a Redução de Danos
algumas experiências e projetos extremamente não confunde conduta antissocial com o uso de
ricos e inovadores pudessem surgir em meio uma substância ilícita.
ao turbulento cenário políticoII. É comum que uma postura conservado-
Com a implementação de redutores de ra, comum à de muitos usuários de substâncias
danos em serviços como os Centros de Aten- ilícitas, estranhe e rechace esse refinamento,
ção Psicossocial – álcool e drogas (CAPS-ad) dado que, desse ponto de vista, o uso de subs-
e as implantações dos Consultórios de Rua, tância ilícita seria merecedor de toda sorte de
as ações de caráter mais democrático ganha- abandono e/ou punição. Quando o usuário tem
ram certa oficialidade. Não nos livramos das esse posicionamento a respeito da substância,
contendas morais, mas testemunhamos uma isso diz muito mais a respeito de si, do que pro-
abertura e o reconhecimento de lacunas no sa- priamente da substância.
ber do poder instituído, incorporando práticas Essa questão entre Redução de Danos
inovadoras na formulação de novas políticas e política foi muito bem abordada por Denis
públicas. Petuco2, que identificou um histórico de pos-
Essa incorporação não está assegurada turas heterogêneas em relação às drogas até
e sabemos da onda obscurantista que se so- a metade do século passado no Brasil. O que
brepõe às instituições acadêmicas, serviços de é apontado por este autor, é que estratégias e
saúde e à sociedade brasileira em geral. Ainda visões próprias a Redução de Danos na histó-
II
Dentre os projetos, podemos citar o “De Braços Abertos”, realizado pela ria do Brasil, não detinham interpretações de
Prefeitura de São Paulo.
pertencimento a determinadas matizes no es- que cultivaram uma leitura autodidata de Freud,
pectro político. Isso ocorreu até o momento em além dos psicanalistas e pesquisadores.
que a questão das drogas é incorporada como Sobre a aproximação entre psicanálise
bandeira por grupos de esquerda que possuem e Redução de Danos, podemos citar passagens
uma postura progressista. elogiosas e outras nem tanto.
Já a relação entre psicanálise e Redu- As práticas e princípios de Redução de
ção de Danos, é marcada por uma coloração Danos constituem um pilar importante na forma
nacional, visto que, a Saúde Pública brasilei- como as drogas são inscritas simbolicamente
ra, possui a marca da atuação de profissionais em nossa sociedade. Sua contribuição consis-
que se posicionaram de maneira antagônica à te em trazer para um discurso mais amplo os
Ditadura Militar e que trabalharam na constru- meandros da cultura de uso de drogas das ruas
ção de duas grandes reformas que podemos e a desinstitucionalização da associação entre
considerar como peças-chave para a Redução drogas e marginalidade. Essa contribuição tam-
de Danos no Brasil. Nos referimos à Reforma bém opera de modo a desmistificar a droga en-
Sanitária, que culmina na criação do Sistema quanto instância não fálica na vida do sujeito.
Único de Saúde (SUS), e a Reforma Psiquiátri-
É importante frisar que, na história, as
ca, responsável pelo movimento de fechamen-
práticas e as pesquisas em torno da Redu-
to dos grandes manicômios e pela criação de
ção de Danos no Brasil contêm um potencial
uma rede de atenção psicossocial com caráter
de contribuição até mesmo pedagógico para
comunitário.
os psicanalistas que se dispõem a se debru-
A psicanálise, com seu forte acento ar- çar sobre o tema. Isso porque o trabalho de
gentinoIII, teve importante participação na cons- pesquisadores, aliados aos relatos de experi-
trução da Reforma Psiquiátrica brasileira, de ências de campo, possibilita a transmissão de
modo que, quando as drogas foram ganhando uma perspectiva das cenas de uso, seus rituais
espaço no debate público e sendo objeto de e seus meandros, ainda inéditos, porém fun-
foco de ações políticas, parte dos atores des- damentais para muitos psicanalistas que não
ta Reforma foi endossando gradualmente uma possuem tais experiências em sua trajetória.
postura progressista na questão das drogas. O teor desses trabalhos nos permite romper o
viés próprio de lugares de classe e raça, além
Encontros e desencontros de certa carga moral que inevitavelmente sur-
ge em um trabalho ou outro, dificultando uma
Não é absurdo afirmar que, em um con-
apreensão e a construção de uma prática que
texto internacional, a Psicanálise opera alheia
possa se firmar como inovadora diante dos pro-
à Redução de Danos e, por vezes, até mesmo
blemas decorrente do uso de substâncias.
a critica como algo pouco imbuído de valor clíni-
co2. A articulação entre psicanálise e Redução Como exemplo desse olhar enviesado,
de Danos tem traços de um produto nacional. podemos citar o posicionamento do psicanalis-
Opera e se constitui por meio dos redutores ta lacaniano irlandês Rick Loose 3, que afirma
que, ou passaram por cursos de psicologia ou “...você diria a um alcoolista crônico que
está estirado no chão, bêbado e fora de
Tendo dentre os seus maiores nomes, Antonio Lancetti, falecido no ano
III
si, para moderar a bebida, para refinar o
de 2016.
menos expostas. Mais ou menos moralizadas. que com as suas estereotipias identitárias e
falsetes, pode resultar no entendimento de um
É parte do trabalho do redutor de danos
descaso, imperícia, ou até no não reconheci-
desfazer o mal-entendido de que a Redução de
mento do sofrimento como ele se apresenta.
Danos é um pacto pelo uso, ao contrário é sim
Isso pode afetar inclusive os psicanalistas. O
um pacto pelo cuidado. Para muitos usuários,
sentimento de pertença em relação ao seu sa-
esse pacto só existe por meio da promessa de
ber e suas insígnias de reconhecimento pode
abstinência e, nesse sentido, é que o pacto
resultar em resistência diante desses casos.
pelo cuidado se constrói por vias que podem
Como bem apontou Waks6, fazem do paciente
ocorrer paralelas ao uso. Diferentemente da si-
alguém psicanaliticamente inadequado.
tuação em que a promessa de abstinência se
torna uma grande armadilha, se aderida pelo É sabido que os psicanalistas buscam ou-
profissional, eliminando toda a possibilidade de vir além da queixa; mas isso nem sempre se
subjacência e fixando os significantes da rela- entrega fácil, o que torna necessário pagar com
ção na monotonia do “usei” e “não usei”. O a presença pelo próprio ofício, de modo a omitir
redutor de danos pode operar com a suspen- suas posições a respeito do sofrimento daque-
são dessa queixa sem enfrentá-la diretamente, le que se queixa e se conformar a esperar pelo
para que ela possa ecoar de outra na forma momento oportuno, ou seja, abrir caminho para
construção de uma demanda que envolva as- a construção de uma demanda. Os supostos
pectos particulares da relação entre o usuário grandes objetivos de uma análise, como a éti-
e o redutor. ca do desejo7, ou a singularidade do sujeito se
colocam aquém ou além da tarefa de receber
O pedido de parar de usar drogas costu-
alguém com problemas com drogas 8.
ma surgir com um endereçamento familiar; algo
que, estabelecida a transferência, terá de ser Já no contexto das ruas, a queixa que
atualizado para uma demanda que vá além da por vezes é inexistente e geralmente pode sur-
droga, como queixa. Porém, esse primeiro tra- gir como fome, uma ferida na perna, o acesso
jeto é um dos mais difíceis de ser percorrido, a algo que a rua não permite, ou mesmo na ne-
visto que a paixão e a fé na própria dor, alicer- cessidade de material para uso da própria dro-
çadas na rigidez identitária de usuário, tendem ga, só torna a demanda possível quando não
a pensar a droga como um problema e a sua estanca a relação por meio da necessidade. Ou
ausência como uma solução, dificultando que seja, aquele que oferece algo, põe em perspec-
se traga à baila fatores que possam ser impor- tiva um ponto de interesse mais além do obje-
tantes na dinâmica da adicção. to, que, se houver sorte, se deslocará ao longo
da relação.
Esse é um ponto em comum para os re-
dutores de danos e para os psicanalistas que Não se trata de pensar melhores meios
recebem usuários em seus consultórios. de salvar um usuário ou de garantir sua saí-
da da rua, mas de interditar a ilusão de que a
droga basta. Até mesmo a demanda de insu-
Redução de Danos e clínica psicanalítica em
mo pode ser objeto de manejo, dadas as con-
consultório privado
dições e os tensionamentos que uma relação
Não ter sua patologia reconhecida, ainda permite sustentar. Por mais que a distribuição
de insumos faça parte dos programas de pre- ponto cego nas políticas de Redução de Danos
venção, é fundamental que esteja sempre à é o fato de que o dano não necessariamente
disposição dos profissionais para manejarem ocorre por mero descuido ou falta de informa-
segundo o critério que julguem relevante no tra- ção, mas pode ser buscado ativamente pelo
balho com os usuários. usuário, vivido e praticado como uma escolha.
Consentimos com a visão de Conte4, Esta foi a lição freudiana por meio do conceito
ainda que não necessariamente reconheçamos de pulsão de morte e dos impasses na noção
uma remontagem fantasmática, como exposto de princípio do prazer 9. O indivíduo não só bus-
no fim da citação que fizemos de seu trabalho, ca prazer e evita o desprazer: esses dois ele-
dado que a posição do sujeito em relação à fan- mentos podem se mesclar, de modo que não
tasia inconsciente seja um dos objetivos mais seja possível desassociar um de outro. No ca-
caros ao tratamento analítico. Deste modo, a so dos usuários, não é raro que o prazer da
própria Redução de Danos conserva um limi- droga esteja psiquicamente associado ao dano
te dentro de sua perspectiva política: a crítica que ela causa.
ao modelo institucional fechado se opera como Considerando a carga simbólica de algu-
um ideal de cura que alguns usuários tentem mas substâncias ilícitas, não é surpresa que
incorporar, da mesma forma que incorporam o um usuário busque o seu uso justamente por
ideal de abstinência. meio do seu potencial de dano. Sobre isso,
Nesse ideal, o direito de usar pode se para além da mescla pulsional, podemos reco-
confundir com a obrigatoriedade da evitação nhecer como suporte dessa pulsão, uma força
da abstinência, produzindo uma falsa dualida- superegoica que busque ativamente a punição;
de na qual o praticante de Redução de Danos esta recai sobre si e sobre o “outro” endereça-
seria mais bem resolvido em relação às dro- do pelo sujeito. Esse outro, ocupando o lugar
gas do que o abstinente. Portanto, ressaltamos de referência no campo social, tende a viver a
que não se trata de transmitir um modelo ideal autodestruição do usuário como um ataque a
de como um usuário deve lidar com as drogas, si — algo que podemos facilmente identificar
mas se servir dos fatos que vão se apresentan- em familiares de usuários, o que nos remete à
do como possíveis ao longo da trajetória. Te- importância da demanda de amor em jogo nes-
mos a crítica à colocação da abstinência como ses casos.
saída única e exclusiva para o uso crônico, mas
não negamos a importância de que o sujeito A Redução de Danos e suas potencialidades
possa realizar essa escolha. Nesse sentido, em um campo heterogêneo
entendemos que a Redução de Danos, ao ata-
Se as modalidades de internação, ou mes-
car um establishment moralista que priva os
mo dos hospitais-dia, propõem o tratamento e a
usuários de seus direitos, sempre detém a pos-
cura, as ações de Redução de Danos propõem
sibilidade de abarcar os usuários que podem
uma abordagem que vise ao cuidado; porém,
se beneficiar de suas técnicas, ainda que não
é importante que não se confunda uma estra-
pactuem necessariamente com o seu posicio-
tégia de abordagem com uma modalidade de
namento no campo social.
tratamento. Ao longo de nossa primeira pesqui-
O que também pode se caracterizar como sa sobre o tema10, também pudemos encontrar
sileiro, impedem essa modalidade de atenção 5. Oury, J. O coletivo. São Paulo: Ed. Hucitec; 2009.Alen-
de oferecer instalações e efetivo corpo profis- car, R. O atendimento aos usuários de drogas nos ser-
sional proporcional à demanda por tratamen- viços de CAPS-A.D. [Monografia]. Faculdades de Guaru-
lhos. Guarlhos; 2008.
to que se faz necessária, bem como enfrenta
dificuldade quanto à possibilidade de oferecer 6. Waks CEM. Toxicomania e psicanálise: a clínica psica-
nalítica da toxicomania. [Dissertação]. Pontifícia Univer-
resguardo aos pacientes que se encontram em
sidade Católica de São Paulo. São Paulo; 1998.
condições mais vulneráveis.
7. Lacan, J. O seminário: livro 7, a ética da psicanálise.
Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar; 2008.
Considerações finais
8. Antonietti, M. El tóxico em los márgenes del psicoaná-
Considerando o exposto, gostaria de fri- lisis. Buenos Aires: Ed. Lazos; 2008.
sar que, apesar dos atuais prejuízos e ameaças
9. Freud, S. Além do princípio do prazer. São Paulo: Com-
às políticas progressistas no Brasil atual, a Re-
panhia das Letras; 2010.
dução de Danos ainda pode operar com cada
vez mais refinamento de técnica em suas fren- 10. Alencar, R. Alencar, R. O atendimento aos usuários
de drogas nos serviços de CAPS-ad. [Monografia de con-
tes de atuação. Entretanto, não nos deixemos
clusão de curso]. Faculdades de Guarulhos (UNIESP).
enganar com uma falsa dicotomia entre Redu- Guarulhos; 2008.
ção de Danos “contra” outras modalidades de
Resumo Abstract
Este artigo apresenta a experiência das Rodas de Conversa “Redu- This article reports the experience of the circles of dialogue Harm
ção de Danos: Cadê Você?” que ocorrem desde dezembro de 2017 Reduction: “Where Are You?” that have been taking place since
na cidade de Porto Alegre. Por meio das rodas de conversa reuni- December 2017. Through the circles methodology, collectives ha-
ram-se indivíduos e coletivos visando rearticular o movimento de ve been held to reactiveated Harm Reduction until it became the
Redução de Danos, resultando na volta à ativa do Fórum Estadual State Forum for Harm Reduction in Rio Grande do Sul (FERD-RS
de Redução de Danos do Rio Grande do Sul (FERD-RS), movimen- acronym in portuguese), a social movement in which activists, pro-
to social no qual participam ativistas, profissionais, estudantes fessionals, students and those interested in Harm Reduction. A
e interessados no tema. Apresenta-se uma breve história desta brief history of this strategy in the state is presented and the dis-
estratégia no Rio Grande do Sul e o desmonte desta política. O ob- mantling of this policy that accompanied the setbacks in policies
jetivo das “Rodas” é reunir pessoas engajadas com a Redução de on drugs, mental health and social assistance. The objective of the
Danos como ética do cuidado, estratégia clínico-política e diretriz circles is to bring together people engaged with Harm Reduction
de trabalho, de forma a construir possibilidades de resistência e such as ethics of care, clinical-political strategy and work guide-
intervenção. Elegeu-se o método da Roda como ferramenta meto- line, in order to build possibilities of resistance and intervention;
dológica para facilitar o exercício da democracia e da cogestão, based on the method of the “Wheel”, the circles of dialogue enable
descritas e analisadas no texto a partir de intervenções realizadas the exercise of democracy and co-management, and in this text
no território. Discutem-se os problemas de sustentabilidade desse some interventions made are described and analyzed. The proble-
espaço e as estratégias de atuação política utilizadas, e ressalta- ms of sustainability and strategies of collective spaces of clinical-
-se a importância de o FERD-RS se manter como uma “trincheira” -political action are discussed and the importance of FERD-RS is
de resistência e espaço de inventividade para que a Redução de maintained as a “trench” of resistance and space of inventiveness
Danos siga forte e se adaptando às novas demandas e cenários so that the Harm Reduction remains strong and adapts to new
das políticas públicas sobre álcool e outras drogas. demands and public policy scenarios on alcohol and other drugs
Palavras-chave: Redução de danos; Método da roda; Movimento Keywords: Harm reduction; Wheel method; Social movement.
social.
Introdução
E
este artigo apresenta a experiência do Fó-
I
Luciane Raupp (lucianemraupp@gmail.com) é psicóloga (UFRGS), Mestre
em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), Doutora em Saúde Pública pela rum Estadual de Redução de Danos do Rio
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), pós-
-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Grande do Sul (FERD-RS) que reúne ativis-
Federal de Santa Catarina (UFSC), foi professora visitante do Department
of Sciences da Utrecht University (UU-Netherlands), é membro do Grupo de tas, profissionais, estudantes e interessados na
Pesquisa Clínica da Atenção Psicossocial e Uso de Álcool e outras Drogas da
UFSC e atual presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos discussão sobre políticas e ações de cuidado
sobre Drogas (ABRAMD).
tendo por base a Redução de Danos (RD), com-
II
Marta Conte (martacte@gmail.com) é psicóloga (UNISINOS), Mestre em Psi-
cologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul preendida de forma ampliada. Após uma breve
(UFRGS) e Doutora em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP) e atua como docente e orientadora convidada nos reflexão sobre a trajetória da Redução de Danos
cursos de Especialização e Residência Integrada da Escola de Saúde Pública
da Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul. neste estado, busca-se compreender o papel
ocupado por esse fórum e refletir sobre as Rodas Começa a ser articulada no Brasil, inicialmente,
de Conversa ”RD: Cadê Você?”, ação desenvolvi- como uma estratégia de prevenção para o com-
da desde 2017 como dispositivo de acolhimento bate à disseminação do vírus HIV entre usuários
de quem atua com esta abordagem, em um con- de drogas injetáveis (UDI), passando, posterior-
texto de desmonte das políticas públicas sobre mente, a ser considerada de forma mais ampla.
álcool e outras drogas. Atualmente, a Redução de Danos é com-
As rodas de conversa são desenvolvidas preendida e pode ser operada através de três
tendo por inspiração teórico-metodológica o Mé- dimensões: como ética do cuidado, estratégia
todo da Roda1, como forma de compreensão e clínico-política e diretriz de trabalho. A ética do
ferramenta de análise da experiência do coleti- cuidado aponta para o respeito às singularida-
vo, geridas a partir do exercício da democracia e des, às possibilidades e ao desejo de cada su-
da cogestão. Este trabalho toma como referência jeito ou coletivo. Como estratégia clínico-política,
teórica a articulação entre a Clínica Ampliada, a entende-se a política como uma atividade reflexi-
Psicanálise e a Redução de Danos no campo da va que orienta uma ação num coletivo, portanto,
Saúde Coletiva. que convive com a ética em defesa da vida, ética
da cidadania e dos direitos humanos e a ética do
Trajetórias da Redução de Danos no Rio Grande desejo. E, como diretriz de trabalho, a Redução
do Sul de Danos se oferece como um método, no senti-
do de methodos, caminho e, portanto, não exclu-
Novas formas de cuidado dirigido a pessoas
dente de outros4:
com problemas relacionados ao uso de drogas
que se diferenciassem do discurso médico-psi- “...pode estar no fazer de qualquer profis-
quiátrico de orientação eugênica, que toma por sional do campo das políticas públicas ao
base a norma da abstinência2, surgiram no Brasil transversalizar as ações do cuidado com
a partir do final da década de 1980, mais espe- pessoas que usam álcool e outras drogas,
cificamente a partir do que ficou conhecido como com intervenções que passem por propi-
“a experiência de Santos”. ciar o estabelecimento de novas formas de
relação com a drogas, fortalecendo o pro-
Conforme Petuco3, vozes dissonantes ao
tagonismo e promovendo a capacidade de
modelo hegemônico no campo das drogas exis-
transformação”5 (p. 153).
tiam desde a década de 1970, em muito, liga-
das aos ventos da contracultura e sob influência Durante a década de 1990 a Redução de
da Psicanálise. No entanto, uma transformação Danos se expandiu no Brasil e, em torno de 200
maior no campo das práticas surgiu de fato na Programas de Redução de Danos (PRDs) foram
esteira das transformações ocorridas durante o criados com o apoio do governo federal, via Minis-
processo de redemocratização do país, que de- tério da Saúde – Programa de DST/Aids, impulsio-
ram origem à Reforma Psiquiátrica, mas, sobre- nados pela organização dos redutores de danos
tudo, frente à necessidade de controlar a disse- e usuários de drogas em associações e coletivos
minação do vírus HIV entre usuários de drogas nacionais. O Rio Grande do Sul foi um dos esta-
injetáveis. Nesse processo, estava aberto o cam- dos pioneiros a implantar a Redução de Danos,
po para uma abordagem mais humanizada e não de forma mais estruturada, por meio da criação
estigmatizante, denominada Redução de Danos. do primeiro PRD da região, em 1995, mesmo ano
da implantação do primeiro implantado no Brasil estado foi o Centro de Referência para o Asses-
na cidade de Salvador, Bahia4. Antes deste mar- soramento e Educação em Redução de Danos da
co, alguns municípios do estado já vinham desen- Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul
volvendo suas primeiras experiências em práti- (CRRD-ESP/RS) que, desde 1999, ocupava um
cas e equipes de Redução de Danos, por meio papel importante como aglutinador de experiên-
de financiamentos vindos de editais do Progra- cias, ponto de encontro e estudo com a realiza-
ma Nacional de DST/Aids, o que possibilitou o ção de ações diversas, como o Grupo de Estudos
surgimento de experiências importantes, embora sobre Redução de Danos, ativo até hoje.
marcadas por descontinuidades devido à depen- Simoni e colegas6 atribuem às descontinui-
dência dos editais6. dades nos financiamentos o principal motivo para
A Redução de Danos no Rio Grande do Sul a desarticulação dos programas, fator também
foi criada e mantida tanto por iniciativas de or- apontado por Rigoni e Nardi8 ao referirem que,
ganizações não governamentais (ONGs), quanto durante os três anos de realização de seu estu-
governamentais, com variações quanto a quanti- do, várias ações de Redução de Danos surgiram,
dade de investimentos e tempo de manutenção enquanto outras acabaram. Os PRDs que conse-
das ações. A instabilidade que marcou o traba- guiam uma durabilidade maior sofriam com a pre-
lho das equipes deveu-se a fatores sobretudo carização do trabalho e com a constante incer-
de cunho político, mas também por questões teza de recursos para sua manutenção6. Em um
de ordem moral, ideológica, técnica ou religiosa. mapeamento da Rede de Atenção Psicossocial
Um fator que provocou uma influência acentua- (RAPS), realizado em 2011, foram identificados
da nesse cenário ocorreu com a descentralização apenas 11 PRDS, demonstrando uma redução
do financiamento federal para programas ligados expressiva do quadro de ações. De acordo com
à prevenção de HIV/aids. O estado, assim como esses autores, esse cenário seria explicado pe-
no resto do país, seguiu a esteira do movimento la mudança de rumos dos investimentos que, de
de municipalização das ações de saúde que, a 2007 a 2010, passaram a priorizar investimen-
partir de meados de 2000, passam a ser respon- tos em leitos hospitalares e vagas nas chamadas
sabilidade dos estados e municípios, deixando o “Comunidades Terapêuticas”.
investimento na área de drogas na dependência Passado esse período de retração, mudan-
das diferentes orientações de poder local. Con- ças vindas com a gestão que assume o estado a
forme levantamento realizado por Rigoni e Nardi7, partir de 2011 redesenharam as formas do cui-
no mês de maio de 2006, o Rio Grande do Sul dado em Saúde Mental por meio do fortalecimen-
contava com 26 programas/ações em Redução to da RAPS. Em 2014, foi aprovada a portaria
de Danos em funcionamento. Destes, 15 PRDs que estabeleceu a Redução de Danos como dire-
eram ligados a municípios e os demais estavam triz das políticas da Atenção Básica, DST/aids e
vinculados a ONGs. Na Região Metropolitana de Saúde Mental e instituiu recursos para a criação
Porto Alegre, havia 9 programas/ações financia- de “Composições de Redução de Danos”, criando
dos. Além desse quantitativo, os autores referem assim um meio para financiar equipes mínimas
a existência de vários encontros e fóruns que para trabalho em cenas de uso de drogas, vincu-
discutiam o tema. Nesse cenário, um ator funda- ladas à Atenção Básica9. Segundo dados divulga-
mental para a qualificação das experiências no dos informalmente pela Secretaria de Saúde do
Estado, o Rio Grande do Sul contaria atualmen- ABRAMD-RS propiciou uma reaproximação entre
te com 33 equipes Composições de Redução de pessoas que trabalhavam na área de drogas e
Danos10. A criação dessa forma de financiamento que constatavam um vácuo nas discussões so-
da Redução de Danos foi importante para a con- bre Redução de Danos no estado e a necessida-
tinuidade de ações em cenas de uso – contexto de de fortalecer essas ações. O reaquecimento
de ação de outro equipamento importante na his- orquestrado por esse encontro deu origem à pri-
tória mais recente da Redução de Danos no es- meira Roda de Conversa “RD Cadê Você?”, re-
tado, as equipes de Consultório na e da Rua as alizada em dezembro de 2017 na Universidade
quais, embora não atuando de forma específica Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A denomi-
com a questão das drogas, têm a Redução de nação “RD Cadê Você?” foi proposta como pro-
Danos como uma de suas diretrizes de atuação. vocação, para chamar os atores da Redução de
A partir de 2006, com a criação do coletivo Danos no estado, que estavam desmobilizados
Balance de Redução de Danos e Riscos na ci- e com pouquíssimos espaços de atuação. Essa
dade de Salvador, a abrangência da Redução de primeira experiência gerou outros encontros que
Danos se ampliou, passando a promover ações ocorrem até hoje, bem como a rearticulação do
de conscientização, testagem e apoio a experiên- FERD-RS. Por sua vez, a reunião em forma de fó-
cias difíceis em contextos festivos, com o intuito rum abriu espaços para a ampliação das Rodas
de estimular à reflexão, ao autocuidado e conhe- para outros contextos e a ocupação de espaços
cimento sobre as substâncias comumente utili- de controle social e participação em editais.
zadas nesses contextos. Atualmente atuam dois
coletivos no Rio Grande do Sul - Coletivo Changa A escolha do método
e Coletivo Lótus -, além de iniciativas indepen-
A escolha de um método para as Rodas de
dentes realizadas por coletivos como o Movimen-
Conversa assumia o desafio de acolher pesso-
to Nacional da População de Rua (MNPR), que
as que vinham de diferentes contextos, necessi-
desenvolve ações de forma autônoma.
dades, experiências, trajetórias e inserções com
relação à Redução de Danos. E, também, visava
FERD-RS: o (re)nascimento de um coletivo compor na dimensão do coletivo o reconhecimen-
O Fórum Estadual de Redução de Danos do to das vivências subjetivas e o exercício da coges-
Rio Grande do Sul possui uma trajetória carac- tão. Considerou-se, como assinala Lebrun12, que,
terizada por diferentes momentos e alianças, as no contemporâneo, os efeitos do individualismo,
quais refletiram distintas conjunturas. Segundo próprio do capitalismo, permeiam as subjetivida-
dados informais11, surgiu em 2004 como Fórum des e podem dificultar a reunião das pessoas em
Metropolitano de Redução de Danos, atuando co- torno de algo comum que faça sentido para elas.
mo catalisador de ações e atores até 2006. De A concepção de Clínica Ampliada é uma fer-
2010 a 2012, os atores se rearticularam como ramenta conceitual para pensar a dimensão de
fórum, o FERD RS. Após uma pausa de dois anos, escuta e da ação próprias à Redução de Danos.
de 2014 a 2015, houve uma nova organização, Na Clínica Ampliada13 considera-se o saber po-
em torno da Frente Nacional Drogas e Direitos pular, a cultura, as crenças e as experiências de
Humanos, período após o qual ficou inativo. cada pessoa, grupo ou instituição, visando o pro-
Em 2017, a realização do 1° Seminário da tagonismo dos sujeitos, em uma narratividade
um núcleo operacional que se responsabilizava que se repete e, portanto, coloca-se como base
pelo desenvolvimento das atividades. do trabalho em questão, como aos acontecimen-
De 2017 a 2019 as Rodas funcionaram tos que produziam diferenciações, delimitando as
com base na discussão de um tema principal que discussões empreendidas e os rumos tomados
emergia durante os momentos de apresentação pelo coletivo.
e análise de conjuntura; os momentos finais do Como o espaço das rodas buscava prio-
encontro eram reservados para acordos e enca- rizar os vínculos e a análise das conjunturas e
minhamentos. A partir de 2019, frente à diminui- contextos implicados nas práticas, muitas foram
ção da presença mensal de novos participantes as questões que surgiam durante os encontros.
e de pessoas do interior do estado (que não con- Algumas se repetiam tais como: O que somos?
tavam com auxílio financeiro para deslocamento), Quais concepções de Redução de Danos compar-
buscou-se novas estratégias para dar dinamici- tilhamos? Que práticas desenvolvemos? Quais
dade às Rodas e atrair um público que ainda não são nossas estratégias e compromissos? Nesse
conhecia a Redução de Danos. Passou-se então processo, cada participante teve espaço para ex-
a desenvolver Rodas temáticas bimensais, com por sua trajetória, apontando para algo comum:
a presença de convidados para expor temas re- a importância de apreender questões da macro
lacionados a políticas e práticas sobre drogas e e da micropolítica na análise das práticas e con-
seus desdobramentos. A 14ª Roda ocorreu na se- textos; necessidade de dar visibilidade à Redu-
de do MNPR, no formato de sarau, com o tema ção de Danos; o foco na pessoa e não na droga;
“Resistência”; a 15° Roda de Conversa RD Cadê o antiproibicionismo como princípio; o embasa-
Você? debateu sobre “Os Desafios da Redução mento das experiências na ciência, na vida práti-
de Danos no Brasil”; a 16ª Roda, o tema “Guerra ca e na política; a busca de inserção em espaços
às Drogas e o Genocídio da Juventude Negra” e de controle social, entre outras.
a 17ª o tema “30 Anos de Redução de Danos no Nas Rodas foram analisadas: as Leis de
Brasil”. drogas, a criminalização, o racismo e interseccio-
As Rodas Temáticas têm trazido novos sim- nalidades, as políticas higienistas de internação
patizantes, ampliando a discussão sobre as polí- compulsória, e a dificuldade de acesso à rede de
ticas de drogas e cuidados, bem como valorizan- saúde e de abrigagem. Constatou-se a dificulda-
do a produção de parceiros que têm se ocupado de de sustentar, nas equipes de saúde e inter-
do tema da Redução de Danos, em diferentes setoriais, a diretriz de trabalho da Redução de
perspectivas, e que muito tem colaborado com o Danos devido aos preconceitos das equipes.
avanço conceitual do tema e suas intervenções Conforme colocado anteriormente, a conti-
clínico-políticas. nuidade da realização das Rodas ensejou a re-
tomada do FERD-RS como uma iniciativa perma-
Relato da experiência das Rodas de Conversa nente. Assim, seguiu-se com reuniões internas
do núcleo organizador que planejou e desenvol-
Visando exemplificar a diversidade de te-
veu ações durante 2018 e 2019, bem como a
mas trabalhados durante as já 17 rodas realiza-
realização de quatro encontros regionais prepa-
das, a seguir serão apresentados acontecimen-
ratórios para a coorganização da segunda edi-
tos significativos, registrados nas atas resultan-
ção do Encontro Estadual “Outras Palavras sobre
tes dos encontros. Busca-se dar ênfase tanto ao
Álcool e Outras Drogas”, financiados pelo Conse- Frente a esta demanda, o núcleo operativo
lho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul do FERD-RS se organizou para estar semanalmen-
(CRP/RS). Em paralelo ao desenvolvimento de no- te presente na ocupação. Lá, recebiam deman-
vas atividades, seguiu-se com a realização das das para ações de Redução de Danos, assumin-
Rodas em diferentes formatos e espaços. Essa do um papel educativo, característico da ação do
abertura aproximou a equipe de duas demandas redutor de danos, que envolve um engajamento
que geraram ações importantes. ativo na comunidade, buscando compreender a
A seguir são apresentadas as experiências realidade das pessoas que usam drogas, a exis-
de apoio e consultoria do FERD-RS ao MNPR, por tência de práticas de uso danosas e das doenças
meio de ações na Ocupação Zumbi dos Palmares infecciosas relacionadas, bem como mapear re-
e a assessoria à Escola Porto Alegre (EPA) de for- des sociais e dificuldades comunitárias, desem-
mação em Redução de Danos. penhando um papel de educador em saúde7. Al-
guns integrantes do núcleo operativo do FERD-RS
participavam também das assembleias de orga-
- ocupação liderada pela população de rua
nização do espaço e de planejamento da relação
“Aldeia Zumbi dos Palmares”
do coletivo com a cidade. Através da participação
Em março de 2018, integrantes do MNPR do MNPR nas Rodas, se conseguiu potencializar
foram expulsos pela Guarda Municipal de Porto a dinâmica que os próprios integrantes da ocu-
Alegre de uma praça pública e, como reação, ocu- pação organizaram para lidar com seus usos de
param um terreno baldio do poder público munici- substâncias, sem prejudicar o espaço de luta. A
pal em frente à praça da qual foram despejados. Redução de Danos serviu como ferramenta pa-
Essa breve ocupação, que teve duração de cin- ra reduzir danos e riscos relacionados, inclusive,
co meses, foi a primeira totalmente formada por à criminalização do movimento social e de seus
pessoas em situação de rua. Foi uma experiência integrantes.
potencializadora da autonomia dessas pessoas,
Segundo a fala de um dos integrantes da
caracterizada pelo viés comunitário e coletivo no
Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares, durante
trabalho para lidar com as dificuldades cotidia-
uma Roda:
nas de uma ocupação e da sobrevivência de seus
“A ocupação em si é redução de da-
integrantes, entre as quais se destacavam os
nos, porque a gente tem que se respon-
usos de drogas por parte de alguns ocupantes
sabilizar por várias frentes: o não uso de
e a necessidade de consensuar sobre estas prá-
drogas, a solicitação de doações, a limpe-
ticas no espaço da ocupação, constantemente
za do terreno e a nossa própria higiene,
ameaçada de dissolução. O uso de drogas dentro
o cuidado com as crianças, a preparação
da ocupação poderia atuar como um fator de de-
dos alimentos, cuidado com a segurança
sagregação e de visibilidade negativa, diminuindo
no portão, a organização de assembleias
as chances de seu sucesso. Frente a esse desa-
de atividades culturais e festivas e a con-
fio, integrantes do MNPR que participavam das
versa com parceiros e com a guarda mu-
Rodas de Conversa RD Cadê Você? pediram au-
nicipal” (Relato informal de residente da
xílio ao FERD-RS para o desenvolvimento de uma
ocupação).
intervenção da diretriz da Redução de Danos na
luta por moradia. Nesse processo de luta articulada,
aconteceram diversas atividades de visibilidade de Porto Alegre, sendo a única entre as 99 es-
da ocupação, tais como: rodas de conversa de colas existentes a atender exclusivamente a po-
Redução de Danos; cinema ao ar livre; debates pulação em situação de rua. Tem um histórico
diversos; articulação com a UFRGS e serviços de lutas pela sua manutenção e uma direção e
públicos; ações de geração de renda, entre ou- corpo docente que se identificam com o acesso
tras. Observou-se que a diretriz da Redução de à educação como direito fundamental, embora há
Danos foi estratégica na Ocupação Aldeia Zumbi anos sofra ameaças de ser fechada pelas suces-
dos Palmares, e que se qualificou com a rede sivas gestões municipais.
de apoio, acesso à educação, saúde, cultura e O pedido de assessoria se originou de uma
ampliou as formas de “ler o mundo”, como falou demanda da diretora da EPA durante uma reunião
uma professora e apoiadora do MNPR. Pode-se do FERD-RS no início de 2019. Nesta, foi argu-
afirmar que todas as atividades organizadas na mentado que no projeto político pedagógico da
ocupação e realizadas com apoio da rede de par- EPA constava a Redução de Danos como diretriz,
ceiros contribuíram para fortalecer a identidade mas que os professores não entendiam no que
dos coletivos, que hoje seguem articulados. ela modificava a abordagem do tema com alunos,
Após cinco meses foi decretada a desocu- além de terem dificuldades em pensar a apren-
pação do terreno e a “Aldeia Zumbi dos Palma- dizagem para pessoas usuárias de substâncias
res” acabou. Hoje, a maioria de seus integrantes psicoativas. Segundo o relato, os professores
não está mais em situação de rua, o que sinaliza precisavam de apoio para apreender uma outra
que a luta pelos direitos sociais mobiliza recur- lógica sobre os usos de substâncias psicoativas,
sos e potencializa os envolvidos. A maioria dos do tratamento em liberdade e da construção de
ocupantes seguem articulados ao MNPR e a ini- estratégias para a redução do uso para além do
ciativas de geração de renda como o “Jornal Boca paradigma da abstinência, dado o público com
de Rua”, a iniciativa de produção e venda de pão o qual trabalhavam. Existiam também relatos de
artesanal “Amada Massa”, entre outras. O MNPR aumento das situações de violência envolvendo
se mantém vinculado ao FERD-RS e esta parti- alunos e professores, o que trazia dificuldades
cipação tem colaborado para abertura de novas adicionais ao grupo.
frentes para ações de Redução de Danos, vincu- Após uma série de reuniões de planejamen-
ladas ao exercício pleno da cidadania. Esta expe- to foram organizadas seis oficinas de Redução
riência resultante de toda a organização social de Danos voltadas a professores, residentes,
desenvolvida na ocupação está referendada por alunos e direção escolar; além de um Sarau de
outras pesquisas realizadas com população em integração. Durante as oficinas, surgiu uma de-
situação de rua17, que confirmam que a participa- manda para a produção de ‘verbetes’ pelo gru-
ção em movimentos sociais promove a inserção po, os quais serviriam como dispositivo para dar
na vida política e social de forma a dar visibilida- visibilidade e fazer circular entre professores e
de às reivindicações dessa população18. alunos suas impressões e pensamentos, forta-
lecendo o grupo e oferecendo um produto que
- assessoria à Escola Porto Alegre (EPA) refletisse a experiência da EPA à comunidade. A
A Escola Porto Alegre (EPA) está vinculada partir do surgimento dessa ideia, os encontros
à Secretaria Municipal de Educação do Município posteriores visaram à produção desses verbetes
de forma coletiva, resultando em uma apresen- o testemunho, trata-se de construir uma respos-
tação do resultado final do trabalho no sarau de ta possível à crise da verdade que se instalou
final de ano realizado para encerrar o trabalho de nas sociedades modernas, uma saída da posição
assessoria do FERD-RS na EPA. Há a intenção de passiva na qual o sujeito é colocado, no encontro
encaminhar esse material para publicação. com uma realidade que ele não dispõe de discur-
Compreende-se que utilizar a Redução de so para decifrar.
Danos como diretriz nessa assessoria permitiu Nesta experiência o crescimento foi mútuo;
exercitá-la de uma forma ampliada, aproximando- pode-se considerar que a própria EPA e seus re-
-a de uma ética das relações, A partir desse exer- presentantes engajaram-se numa busca que visa
cício, os vínculos foram se dando de forma mais recuperar a experiência marginal no campo do en-
fluída por meio da livre expressão dos pontos de sino voltado a populações vulnerabilizadas. Além
vista e da escuta pautada na ética do cuidado19, disso, a busca pela edição dos verbetes mostra o
dado que seu emprego facilitou a relação entre compromisso com a difusão cultural da Redução
a assessoria e os participantes, pois na medida de Danos explicitando a função social e cidadã
em que os julgamentos morais eram suspensos, da educação.
todos os segmentos se sentiam acolhidos e res-
peitados e a palavra circulou livremente. Ocor-
Considerações finais
reu tanto a problematização do que era exposto,
Nesse artigo, procuramos apresentar a tra-
quanto o testemunho20, ambas as posições im-
jetória da Redução de Danos no Rio Grande do
plicadas com questões subjetivas, sociais e po-
Sul, através do relato de seus principais momen-
líticas presentes nas vivências compartilhadas.
tos históricos, constituídos por diferentes carac-
Com a problematização, buscou-se diferentes
terísticas epidemiológicas, sociais e políticas.
pontos de análise sobre fatos do cotidiano da vi-
Nessa relação, vale sublinhar, conforme aponta-
da escolar, pluralizando significados e amplian-
do por Nery e Flash22, que o paradigma proibicio-
do a capacidade de análise, a administração de
nista gera um campo plural constituído por inte-
sentimentos e a criação de novas intervenções,
resses econômicos e políticos e, nessa esteira,
inclusivas e resolutivas. Com os testemunhos,
faz com que cada sociedade enquadre de dife-
incrementou-se um modo de inclusão da expe-
rentes formas os usuários de drogas e proponha
riência singular, transformando-a em uma repre-
determinadas terapêuticas como dominantes.
sentação compartilhada.
A Redução de Danos surgiu como uma rup-
Na perspectiva social e clínica, conforme di-
tura com o paradigma da abstinência que, até
zem Costa e Kehl21, o testemunho tem uma di-
então, era uníssono no campo de opções tera-
mensão ética, na medida em que amplia o cam-
pêuticas e preventivas no RS. Dada a urgência
po da produção simbólica de uma determinada
de lidar com a disseminação do HIV e a pragma-
sociedade, a fim de incluir nela, continuamente,
ticidade das respostas orientadas por essa pers-
o emergente, aquilo que até então era tido co-
pectiva junto aos UDIs, ela cresce e se expande,
mo irrepresentável. As autoras ainda referem
embora marcada por rupturas e descontinuida-
que, quando fracassa a recuperação de uma ex-
des. Essas dificuldades, no entanto, não conse-
periência marginal, não é só o indivíduo que a
guiram minimizar as inovações, pautadas pelas
viveu que fracassa, é o próprio laço social. Com
inventividades que surgiam do encontro singular
de redutores de danos com pessoas e as cenas produção de pesquisas e intervenções que não
de uso de substâncias psicoativas, testemunha- falem sobre as pessoas sem a sua participa-
das pelos movimentos sociais que sustentam a ção23. Neste sentido, as Rodas de Conversa “RD
Redução de Danos. Cadê Você?” têm atuado como um dispositivo po-
Com a mudança para o século XXI, vieram tente para o estabelecimento dessas pontes.
também câmbios nas práticas de uso e nas subs- A partir do Método da Roda e das interven-
tâncias utilizadas, o que convocou a Redução de ções relatadas, pôde-se evidenciar que a retoma-
Danos a se reinventar, dadas as mudanças de da do FERD-RS caracterizou-se pela formação de
contexto político e de alocação de recursos. Nes- uma força política que viabilizou o exercício da
se contexto, as frentes de luta se recompuseram, democracia, mesmo que reconhecendo seus limi-
e as disputas no campo sempre tenso das po- tes. A importância deste movimento social é a de
líticas sobre drogas se acirraram. Esse cenário ter se constituído como um lugar, sem endereço
reforçou a urgência da recomposição de espaços e sem CNPJ, que empoderou os sujeitos e consti-
de luta coletiva, como o FERD-RS, que ressurge tuiu coletivos que passaram a ter pautas de luta
em 2018 para reativar as redes de usuários, de em comum. Ancorado em parcerias e ativistas,
profissionais e ativistas de segmentos antimani- revigorou e abriu novos espaços à Redução de
comiais, antiproibicionistas e progressistas. Danos no estado do Rio Grande do Sul, funcio-
Nesse caminho, um desafio ainda presente nando como “trincheira” para os que acreditam
é a necessidade de estabelecer contatos mais nesta abordagem como uma força de resistência
próximos e intercâmbios entre as regiões do es- e de cuidado.
tado, em busca de estrutura e sustentabilidade
econômica para a organização do coletivo e da lo-
gística para que as Rodas de Conversa RD Cadê Referências
Você? continuem sendo realizadas, bem como as
1. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de
atividades que se desdobram destas. Busca-se coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor
ampliar a participação de organizações de usu- de uso e a democracia em instituições: o método da ro-
ários de drogas e da rede de Saúde Mental em da. São Paulo: Hucitec; 2005.
geral junto ao FERD-RS, devido à compreensão
2. Passos EH, Souza TP. Redução de danos e saúde pú-
de que a Redução de Danos se faz na prática blica: construções alternativas à política global de “guer-
e com as pessoas afetadas pelas políticas pú- ra às drogas”. Psicol Soc. 2011; 23(1):154–62.
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380p.
Cannabis as Therapy
Renato FilevII
Resumo Abstract
Da Ásia a cânabis percorreu o mundo por oferecer a humanidade From Asia, cannabis has traveled the world for offering humani-
possibilidades de nutrição, proteção e tratamento. Considerada ty possibilities for nutrition, protection and treat-ment. As one of
um dos primeiros cultivares da revolução agrícola, a planta era the first cultivars of the agricultural revolution it was used to pro-
utilizada para produzir redes de pesca, vestimentos e substâncias duce fishing nets, clothing and substances that interact with our
organism producing various effects. Some of these are considered
que interagem com nosso organismo e produzem diversos efeitos.
therapeutic which may prove to be the last alternative for people
Alguns efeitos são considerados terapêuticos e podem se reve-
resistant to conventional treatments for a series of illnesses. Like
lar como a última alternativa para pessoas resistentes aos trata-
all phytotherapics, cannabis expresses a diversity of molecules.
mentos convencionais adotados para uma série de enfermidades.
Among these, cannabinoids are a large family exclusive to canna-
Como todo fitoterápico, a cânabis expressa uma diversidade de bis. These molecules are produced by the plant in different profiles
moléculas. Entre estas, os canabinoides são uma grande família according to the specie genetic variability. When ingested, these
exclusiva da cânabis. As moléculas são produzidas pela planta em compounds act in entourage and, depending on the profile, the
diferentes perfis de acordo com a variabilidade genética e epige- context of use and the individual who uses them, produce different
nética da espécie. Quando ingeridos, estes compostos atuam em effects that can be considered therapeutic, adverse, pleasurable
comitiva e dependendo deste perfil, do contexto de uso e do indiví- and others. Discussing the interaction of the plant with the human
duo que utiliza estão sujeitos a desencadear efeitos distintos, que organism in a society where this interaction is prohibited was the
podem ser considerados terapêuticos ou adversos. Discutir sobre exercise that led to the production of this article.
a interação da planta com o organismo humano numa sociedade
Keywords: Cannabis; Endocannabinoid system; Phytotherapy;
em que esta interação é proibida foi o exercício que levou à produ-
Regulation.
ção deste artigo.
Introdução - a planta
R
egistros arqueológicos sugerem a cânabis
como um dos primeiros cultivares da hu-
manidade. As propriedades terapêuticas
da cânabis são exploradas desde a Antiguida-
de. O primeiro relato de uso terapêutico foi de
um imperador chinês que viveu cerca de 5 mil
I
Este capítulo é dedicado em agradecimento à todos os importantes ensi- anos atrás. Ou seja, o emprego dos canabinoides
namentos proferidos pelo Professor Elisaldo Carlini, que agora estão eterni-
zados na história como terapia é milenar, anterior ao advento do
II
Renato Filev (renatofilev@gmail.com) é bacharel em ciências biológicas - pensamento científico ou da Medicina. O papiro
modalidade médica pela Universidade Federal de São Paulo e é doutor em
neurociências pela mesma instituição. Pesquisador colaborador do Centro de Ebers, reconhecido como primeiro texto com-
Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) e coordena-
dor científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD). pleto de tratamento em saúde, escrito cerca de
1500 anos anteriores à Era Cristã, menciona as baixas, com folhas mais largas, de odores mais
propriedades terapêuticas da cânabis1. Os assí- pungentes e que permitiriam aos seus usuários
rios, citas, árabes, fenícios, hebreus, hindus, chi- experiências de relaxamento profundo. A grande
neses, egípcios dentre outros povos ancestrais variabilidade no fenótipo da planta, ou seja, de
faziam algum tipo de uso da planta. Para parte suas características aparentes, como tamanho,
destas civilizações não havia distinção entre o formato das folhas e flores, aromas, coloração,
uso místico, ritualístico, religioso ou terapêutico. efeitos e etc, fizeram com que inúmeros nomes
As variedades de cânabis foram selecionadas (como skunk) fossem designados a genéticas es-
por intervenção humana à medida que expressa- tabilizadas oriundas de cruzamentos sucessivos
vam alguma característica de interesse, seja pe- que selecionam características específicas e per-
la produção das alongadas e resistentes fibras, petuam variedades. Atualmente, milhares destas
seja pela energia e nutrição provenientes do óleo variedades com diferentes perfis estão disponí-
de suas sementes e, também, pela resina de su- veis em diferentes bancos de sementes ao redor
as inflorescências, além de seus interesses tera- do mundo3.
pêuticos e ritualísticos. Outra linha de pensamento avalia, para
Acredita-se que a cânabis foi originada nas além da observação fenotípica, os genes e as
escarpas da Ásia Central às margens do mar moléculas presentes na planta. A variabilidade
Cáspio, região hoje pertencente ao Cazaquistão, genética entre as supostas espécies de cânabis
Turcomenistão e Irã. Essa planta pertence à fa- foi insuficiente para afirmar a existência dessa
mília Cannabaceae, juntamente com outros dois diferenciação. Ainda é possível que o cruzamento
gêneros vegetais, o lúpulo e o celtis. Existe uma entre as supostas espécies diferentes proporcio-
discussão abrangente a respeito da existência de ne descendentes férteis, o que diminui a força
uma única ou várias espécies do gênero Canna- desta hipótese. Como não existe consenso en-
bis, no entanto, até o presente momento, as evi- tre a existência de uma ou mais espécies, con-
dências são controversas e não apontam para vém utilizar o termo Cannabis spp., assim é pos-
uma definição. No século XVIII, Linnaeus classi- sível descrever todas as possíveis espécies do
ficou a Cannabis sativa, enquanto Lamarck clas- gênero Cannabis de maneira abrangente e sem
sificou a Cannabis indica. Supostamente existem comprometimento4.
ainda outras classificações para espécies do gê- Estas espécies ou variedades apresentam
nero, Janisch classificou a Cannabis ruderalis e diferenças importantes na expressão das molé-
Vavilov a Cannabis afghanica2. culas constituintes, o que resulta em plantas ca-
Aqueles que assumem a existência de di- pazes de ocasionar efeitos completamente dis-
ferentes espécies de cânabis discutem sobre a tintos. Até o momento, centenas de compostos
possível diferenciação entre as variedades de sa- foram identificadas na cânabis; dentre estes,
tiva e de indica. A primeira, apresentaria o perfil mais de uma centena de terpeno-fenóis de ca-
de uma plantas mais alongadas com folhas mais racterística lipídica e exclusivos desta planta, de-
afiladas e capacidade de proporcionar efeito eu- nominados canabinoides. Embora existam uma
forizante, deixando os usuários mais dispostos e diversidade de canabinoides, a grande maioria
eloquentes. Enquanto as variedades da segunda está expressa na planta numa ordem de gran-
espécie apresentariam um perfil de plantas mais deza menor que o ∆9-tetrahidrocanabinol (THC)
e o canabidiol (CBD), presentes em maiores variedades com teores de THC abaixo de 0,3%,
proporções. Além destas moléculas exclusivas, enquanto que maconha (marijuana) seriam as
a cânabis produz diferentes tipos de terpenos, variedades com teores maiores que 0,3%6. As
flavonoides, esteroides e outros compostos que variedades de cânhamo são destinadas à retira-
completam o arsenal molecular da planta, muitas da de sua fibra, semente e resina para produ-
destas com ação em nosso organismo. Grande ção com inúmeras finalidades industriais, inclu-
parte dos canabinoides e terpenos são produzi- sive com produção regulada em diversos países,
dos e armazenados em glândulas chamadas de como China e Estados Unidos. Já as variedades
tricomas, produzidas em maior quantidade pelas que expressam altos teores de THC vêm sendo
inflorescências da planta fêmea e das folhas su- aperfeiçoadas e estabilizadas ao longo dos anos
periores que as acom-panham. Os órgãos sexu- por aqueles que se interessam pelos efeitos eu-
ais femininos se desenvolvem na região apical forizantes, prazerosos e terapêuticos proporcio-
da planta e buscam o pólen oriundo de uma flor nados pelo consumo destas. Os cruzamentos en-
de cânabis macho para produzir seu fruto, que tre diferentes genéticas, com a finalidade de se-
no caso corresponde à própria semente. Os tri- lecionar características, sejam fibras mais alon-
comas, além de produzir e armazenar os cana- gadas, maior quantidade de sementes, ou uma
binoides e terpenos, participam do complexo de boa qualidade da resina com perfis específicos
proteção das inflorescências5. de canabinoides, foram feitos essencialmente
A fim de propor uma solução à questão da por ação humana, ao longo dos anos de cultivo e
classificação das variedades da cânabis, Ethan experimentação7.
Russo e sua equipe, além de outros pesquisa- Ao inalar os vapores de cânabis in natura,
dores4, sugerem uma maneira objetiva de clas- os indivíduos absorvem grande parte dos compo-
sificação, sem entrar na discussão entre Canna- nentes que se desprendem devido ao aquecimen-
bis sativa ou Cannabis indica, muito menos entre to. Uma característica comum aos fitocanabinoi-
as variedades vendidas com uma diversidade de des é que estes são produzidos na forma ácida.
nomes, como skunk. De maneira pragmática, o Os canabinoides ácidos apresentam efeitos signi-
agrupamento das diversas variedades da cânabis ficativos em nosso organismo e com potencial te-
foi proposto a partir dos seus componentes quí- rapêutico promissor8. No entanto, os efeitos dos
micos. O perfil de canabinoides expressos pode- canabinoides nas formas ácidas ou neutras são
riam distinguir as plantas a partir de suas caracte- diferentes. O aquecimento proporciona aos cana-
rísticas químicas, ou quimiovariantes, compondo binoides ácidos a perda de uma molécula de dió-
três grandes grupos: o primeiro com plantas que xido de carbono (CO2), que resulta na neutraliza-
expressam altos teores de THC e baixos de CBD; ção da molécula. Por exemplo, quando aquecido
o segundo com altos teores de CBD e baixos de ou exposto à luminosidade o canabinoide THCA
THC; e o terceiro com plantas híbridas e diferen- perde um CO2 e se transforma em THC; o mesmo
tes proporções de ambos os canabinoides. ocorre para o CBD e outros fitocanabinoides8.
Em outros momentos, o teor dos canabi- Para indivíduos que consomem extrato de
noides foi utilizado como parâmetro para clas- cânabis por ingestão oral e buscam obter os efei-
sificar as variedades da planta. O governo ame- tos dos canabinoides na sua forma neutra (CBD,
ricano, por exemplo, define cânhamo (hemp) as THC, etc) é preciso aquecer adequadamente as
plantas antes de produzir o extrato. Existem di- complexa e, por vezes, paradoxal. As moléculas
versos trabalhos9-10 que mostram curvas de des- cana-binoides são capazes de interagir com re-
carboxilação dos canabinoides por meio do aque- ceptores e enzimas de outros sistemas e vice e
cimento, ao longo do tempo. Tal informação é es- versa, o que reforça a complexidade, redundância
sencial para aqueles que desejam obter canabi- e promiscuidade deste sistema expandido e res-
noides para fins terapêuticos. Vale enfatizar que, ponsável por diversas funções vitais para o nos-
embora as formas ácidas apresentem efeitos em so organismo12.
nosso organismo (alguns deles considerados te- Os endocanabinoides mais estudados
rapêuticos), as formas neutras dos canabinoides são a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilgli-
são mais estudadas e apresentam evidências cerol (2AG). A AEA atua preferencialmente como
mais consistentes quanto a sua ação em nosso agonista parcial ou total do receptor CB1, enquan-
organismo11. to o 2AG é agonista dos CB1 e CB2. Os endoca-
nabinoides atuam também em outros receptores
Sistema endocanabinoide como o TRPV1, o PPARs e em alguns receptores
órfãos. Diferentes vias de síntese e degradação
Uma das questões que desperta amplo
são capazes de produzir e eliminar os endocana-
interesse é compreender como ocorre a intera-
binoides produzidos sob demanda e que atuam
ção dos fitocanabinoides com o nosso organis-
em regiões específicas, proporcionando efeitos
mo e como estes compostos atuam para exer-
capazes de afetar a atividade do organismo, co-
cer determinados efeitos terapêuticos, além dos
mo uma resposta imunológica, a neuroproteção,
eventos adversos. Para isso, é necessária a com-
o equilíbrio energético, a regulação de processos
preensão do sistema endocanabinoide. Os ca-
fundamentais, entre outras funções. De acordo
nabinoides expressos pela planta mimetizam a
com a região ou o tipo de célula nas quais os
ação de moléculas produzidas por nossas células
receptores estão expressos, efeitos distintos po-
denominadas “endocanabinoides”, responsáveis
dem ocorrer; o sistema endocanabinoide é, por
por diversas funções fisiológicas e metabólicas
exemplo, capaz de inibir a atividade de diversos
em nosso organismo. Estes compostos intera-
sistemas de neurotransmissão, como do gluta-
gem com receptores canabinoides (CB1 e CB2),
mato, da GABA, da serotonina, da dopamina, da
que estão dispostos por todo o nosso sistema
noradrenalina, da acetilcolina, entre outros, o que
nervoso central e periférico, mas também nos te-
configura-se em efeitos distintos a depender da
cidos cardiovascular, hepático, adiposo, muscu-
região que é estimulada13.
lar e imune, entre outros. Esses receptores são
transportadores de membrana que capturam os A dimensão da importância do sistema
endocanabinoides da fenda sináptica. Enzimas endocanabinoide é de tal monta que animais com
de síntese e degradação completam o sistema, sistema nervoso rudimentar, como as esponjas,
produzindo e depurando estes canabinoides12. já apresentam genes canabinoides. Sabe-se tam-
bém, por exemplo, que a inibição do receptor CB1
Uma versão expandida deste sistema nos
diminui a ingestão de alimentos pelas hidras, ou-
permite dimensionar a sua relevância. A intera-
tra espécie igualmente ancestral14. Em roedo-
ção dos endocanabinoides com outros siste-
res, os agonistas do sistema endocanabinoide
mas de neurotransmissão e mediadores lipídi-
desencadeiam uma tétrade clássica de efeitos
cos é capaz de realizar funções de comunicação
tabaco e medicamentos. Embora os ensaios clí- graves32. Os sintomas mais frequentes relatados
nicos que comprovam estas hipóteses serem por usuários para fins terapêuticos de produtos
escassos, estudos utilizando métodos menos ri- que tenham em sua composição baixos teores
gorosos descrevem diversos episódios em que a de THC são distúrbios de sono, gastrointestinais,
cânabis substituiu o padrão de consumo de ou- tontura, fadiga, interações medicamentosas, ris-
tras drogas e, inclusive, o padrão de consumo co hepático quando associados a determinados
de cânabis fumada foi reduzido com os produtos tratamentos, dentre outros eventos mais raros,
farmacêuticos contendo canabinoides32. como convulsões. Já os compostos com altos te-
Diversas enfermidades que afetam outros ores de THC podem apresentar outra gama de
órgãos e tecidos vêm sendo estudadas a fim de eventos adversos agudos, como boca seca, ta-
compreender como substâncias que interagem quicardia, olhos vermelhos, visão turva, altera-
com o sistema endocanabinoide se comportam, ções na percepção do espaço e do tempo, hipo-
na tentativa de reduzir sintomas, tratar e melho- tensão arterial, ataxias, alterações na memória
rar a qualidade de vida de pacientes32. Doenças operacional e na cognição, aumento do fluxo de
metabólicas, como diabetes e obesidade, além pensamento, paranoia e vômitos; podendo, em
das cardiovasculares e respiratórias, podem en- casos mais graves, deflagrar convulsões, surtos
contrar no sistema endocanabinoide uma pro- de ansiedade ou psicóticos. Ainda, uma parcela
messa terapêutica32. Uma esperança também de usuários é diagnosticada como dependente e
atrelada à ação dos canabinoides se dá por con- relata problemas em decorrência deste uso.
ta do seu efeito antitumoral. Diversos estudos Diversas outras revisões apontam para
experimentais em modelos celulares ou animais uma associação do consumo habitual com uma
observaram que essas substâncias são capazes variedade bastante grande de eventos adversos
de reduzir a irrigação, a migração e, ainda, indu- físicos, psíquicos e, ainda, com o risco de aci-
zir a morte celular programada das células tumo- dentes34-35. No entanto, não se sabe ao certo a
rais de determinados tipos de câncer, sobretu- relação de causa e efeito. Transtornos de humor,
do aqueles que acometem o sistema nervoso33. prejuízos na função cognitiva e síndrome amotiva-
Embora estudos clínicos ainda se façam neces- cional também são frequentemente associados
sários para avaliar se o observado nos estudos ao consumo de cânabis durante a adolescência.
experimentais se comprova em pacientes acome- Parece existir uma associação positiva entre uso
tidos pela enfermidade, de forma a garantir a se- da cânabis na adolescência e depressão e sui-
gurança e eficácia da terapêutica. cídio na vida adulta36. Estas evidências, embora
encontrem uma associação positiva entre uso e
desfecho psiquiátrico em longo prazo, não foram
Eventos adversos e redução dos riscos e danos
capazes de estabelecer o que veio primeiro, se o
relacionados
consumo ou o transtorno, se existem fatores co-
Embora o consumo seja praticado há mi-
muns compartilhados entre os depressivos e os
lênios, dúvidas sobre os eventos adversos do uso
usuários de cânabis, ou se, de fato, um quadro
dos canabinoides ainda são frequentes. Algumas
multifatorial como a depressão pode ser defla-
revisões apontam para eventos adversos leves
grado pelo consumo da planta durante a adoles-
ou moderados, com uma pequena parcela de in-
cência. A questão do consumo de cânabis e o
divíduos padecendo de eventos adversos mais
predisposição ou histórico familiar de transtornos apresentassem teores mais altos de THC a fim de
psicóticos fazem parte do grupo de risco, pois que garantissem um bom rendimento na colheita
consumir teores elevados de THC pode diminuir o com efeitos intensos e sabores marcantes. Com
limiar para um surto psicótico, o que para alguns o aumento da tecnologia empregada na produção
indivíduos com predisposição pode se tornar um da cânabis e de seus extratos surgiram produtos
agravo crônico e que, sem dúvida, compromete a com teores muito variados dos canabinoides, que
vida deste indivíduo de maneira significativa. proporcionam efeitos totalmente distintos. Atual-
Existe também um fenômeno neurológico mente, existem extratos destilados que podem
chamado tolerância. Alguns dos efeitos da câna- alcançar 90% de pureza de THC. O THC em altas
bis, tal como os de outras substâncias são tole- concentrações tem a probabilidade de desenca-
rados quando o consumo se repete com maior dear eventos adversos com maior frequência que
frequência. Efeitos tolerados podem ser restabe- as variedades com teores mais moderados des-
lecidos caso haja interrupção do consumo, outros te canabinoide. Inclusive, quando associado ao
são bastante difíceis de serem atingidos, mes- CBD, esses eventos adversos podem ser minimi-
mo com aumento da dose, quando os usuários já zados. Existem limites nos teores etílicos para o
apresentam um tempo de experimentação mais álcool regulado e é proibida a venda de bebidas
longo39. Todas as substâncias psicotrópicas são com teores acima do limite estabelecido. No ca-
capazes de promover fenômenos neurológicos de so da cânabis, esta deverá ser uma prática a ser
adaptação, como a tolerância, no entanto esta discutida num futuro processo regulatório.
adaptação não é capaz de explicar a busca por Variedades com altos teores de THC são
outras substâncias e experiências. capazes de deflagrar alterações psiquiátricas,
O interesse em experimentar as substâncias como aumento da paranoia, dos transtornos psi-
psicoativas das mais diversas está relacionada a cóticos e crises de ansiedade aguda com maior
fatores culturais e socioambientais que favore- facilidade, como foi exposto. Transtornos psicó-
cem o contato e o consumo de substâncias psico- ticos crônicos apresentam uma etiologia multi-
trópicas que agenciam efeitos e comportamentos fatorial da qual o THC pode ser um disparador
distintos daqueles proporcionados pela cânabis. e antecipar o aparecimento dos sintomas, visto
A minoria dos usuários dessas substâncias ini- que um dos principais fatores de risco associa-
ciou sua vida de experimentação com a maconha. dos ao aparecimento dos sintomas está o consu-
Parte considerável iniciou com o álcool e o taba- mo de substâncias psicotrópicas, dentre estas a
co, nem por isso essas são e nem devem ser con- cânabis40. Dado as suas características multifa-
sideradas portas de entrada para outras substân- toriais torna-se difícil prever quem poderá apre-
cias, como se atribui à maconha. O uso de qual- sentar um prejuízo crônico ao consumir essas
quer substância é um fenômeno biopsicossocial substâncias. Pessoas com histórico pessoal ou
que é fortalecido ou enfraquecido a partir múlti- familiar de transtornos psicóticos tem aumenta-
plos fatores que são permeados por situações de das as chances de desenvolver problemas dessa
risco e proteção, das vulnerabilidades e vínculos natureza.
que cada pessoa está inserida. Existem orientações e estratégias para
Durante os últimos anos, por intervenção se fazer um consumo mais seguro da cânabis e
humana, foram selecionadas as variedades que as políticas de Redução de Danos têm proposto
diversas orientações a serem passadas aos con- de tratamento atribuído aos eventos adversos de
sumidores nos territórios em que o uso adulto com outras classes de fármacos. Em geral, os
é permitido. Um artigo Canadense41 sugere 10 efeitos que causam mais desconforto são desen-
abordagens de redução dos riscos e danos as- cadeados pelo THC44.
sociados ao uso adulto da cânabis, dentre estas:
manter-se abstinentes, retardar o início do con-
Obtenção de canabinoides para fins terapêuticos
sumo, optar por baixos teores de THC, não usar
Muitas são as dúvidas de quem busca ini-
canabinoides sintéticos, evitar combustão, evitar
ciar um tratamento com canabinoides para diver-
inalação profunda e prender a fumaça, evitar o
sas condições de saúde. Inicialmente são pou-
uso diário, abster-se ao dirigir, evitar caso faça
cas as indicações terapêuticas com segurança
parte da população de maior risco e a combina-
e eficácia do tratamento comprovadas. Há uma
ção destes fatores.
carência de estudos clínicos designados para
Atualmente no Brasil e em boa parte do
analisar se os canabinoides são eficazes para
mundo, a política que regula a planta gera mais
determinadas enfermidades que, na prática clí-
malefícios à sociedade do que os efeitos dos ca-
nica, podem encontrar na cânabis seu lenitivo.
nabinoides no organismo. As implicações sociais
Muito disso se deve por conta do alto custo de
da política de proibição e guerra às drogas afe-
ensaios clínicos, que em geral são patrocinados
tam inclusive as pessoas que nunca consumiram
por empresas privadas. Não existe interesse das
nenhuma substância e preferencialmente jovens,
agências de fomento governamentais de estimu-
negros e que habitam territórios de vulnerabilida-
lar estudos desta natureza. Diversos relatos de
de social. Em geral, o Brasil regula mal suas subs-
pacientes ao redor do globo sugerem que a câ-
tâncias, a exceção do tabaco. O tabaco é capaz
nabis é capaz de aumentar o apetite, a qualidade
de causar mais dependência e eventos adversos
do sono, o humor, os efeitos subjetivos da dor,
que a maconha e obteve, sem a necessidade de
melhorando o bem estar e a percepção de quali-
proibição, uma menor adesão de consumo pela
dade de vida do indivíduo enfermo. Estes efeitos
população, verificando-se uma redução de mais
podem ser importantes no processo de reabilita-
de 50% dos consumidores nas duas últimas dé-
ção e, sem dúvida, devem ser melhor compreen-
cadas42. Estas políticas devem ser revistas não
didos para que o manejo terapêutico dos canabi-
apenas para regular as substâncias ilícitas, co-
noides seja maximizado e seus eventos adversos
mo a maconha e a cocaína, mas também para
diminuídos.
o álcool que, embora lícito, é regulamentado de
A manutenção das informações, cultivo e
maneira muito questionável por quem almeja um
cultura de uso da cânabis, mesmo que proibida
controle responsável e não proibitivo das subs-
por mais de 80 anos, foi mantida por muitas pes-
tâncias psicoativas43.
soas que se interessam pelos efeitos da planta.
Ainda a preocupação com os eventos ad-
Os movimentos contemporâneos pela regulação
versos são bastante relevantes no processo de
da cânabis no Brasil acompanharam a Abertura
escolha dos canabinoides como terapia. Parte
Democrática a partir dos anos 1980. No entan-
dos usuários terapêuticos abandonam o trata-
to, qualquer tipo de manifestação desta natureza
mento devido aos eventos adversos provoca-
era sujeita à repressão pelo aparato ostensivo
dos44. Este número se assemelha ao abandono
da Segurança Pública e os manifestantes eram
tratados como criminosos por supostamente existem quatro formas reguladas de acesso a
“praticar apologia ao uso de uma substância ile- produtos canabinoides destinados a prática te-
gal”. Em 2011, a Marcha da Maconha de São rapêutica: importação de suplementos alimenta-
Paulo sofreu um ataque da Polícia que causou res heterogêneos que no país adquirem status de
revolta e comoção de diversos setores da socie- medicamento; disponibilidade mediante a receita
dade, pressionando o Supremo Tribunal Federal controlada do nabiximols, medicamento fitoterá-
(STF) a julgar se atos pela legalização eram crimi- pico com indicação específica e comprovação de
nosos ou não. Por decisão unânime, as marchas segurança e eficácia; disponibilidade mediante a
puderam continuar a sair às ruas sem serem receita controlada do dronabinol, THC sintético
criminalizadas45. também com indicação específica e comprova-
Após um trabalho intenso de mobilização so- da eficácia; um produto a base de cânabis de-
cial, a criação de redes de apoio com os diversos nominado canabidiol também obtido mediante a
cultivadores e ativistas interessados em oferecer receita controlada mas sem indicação específica
parte de sua produção para que outras pessoas e comprovação de segurança e eficácia.
pudessem ter acesso aos benefícios terapêuti- Os suplementos alimentares são importa-
cos dos canabinoides, fez com que, em 2014, dos com status de medicamentos, no entanto,
diversos grupos se mobilizassem e se unissem à apresentam grande variabilidade na qualidade.
causa da regulação. Foram formalizadas associa- Por exemplo, produtos de uma mesma marca e,
ções de pacientes e organizações da sociedades ainda, aqueles que em lotes distintos, podem
civil preocupadas com o acesso aos derivados da apresentar divergências quanto ao teor de cana-
cânabis para fins terapêuticos e hoje, se existe o binoides no produto e o que vem informado no
mínimo de possibilidade de acesso e informação rótulo. O custo da importação também é geral-
sobre estas propriedades, devemos sobretudo a mente elevado e há demora na obtenção da au-
esses ativistas e cultivadores que mantiveram torização e no processo de importação, fatores
a “brasa acesa” nos tempos mais obscuros da que dificultam a obtenção por esta via.
história da planta. É imperativo àqueles que ne- Nas prateleiras das farmácias, é possível
cessitam e se beneficiam dos componentes da encontrar um medicamento fitoterápico indica-
cânabis compreenderem a importância da demo- do para espasmos que acometem portadores de
cratização do acesso e do amplo conhecimento esclerose múltiplaIII Trata-se de um produto com
sobre as propriedades dos canabinoides. segurança e eficácia comprovadas, no entanto é
Existem diversas formas de se obter cana- caro e com uma apresentação farmacêutica que
binoides para alguma necessidade de saúde. O limita sua possibilidade de uso para outras indi-
panorama atual de acesso a canabinoides para cações. Outro medicamento disponível, mas que
prática terapêutica é diverso e pode ser caro, não é fitoterápico e sim uma cópia idêntica à mo-
burocrático e arriscado. A história recente da re- lécula natural do THC o dronabinol é indicado pa-
gulação brasileira segue uma trajetória de erros ra redução de náusea e vômitos em decorrência
e acertos proporcionados pelas instâncias regu- de tratamentos quimioterápicos para o tratamen-
latórias. Enquanto esta regulação resguarda ju- to de câncer.
dicialmente, o Ministério da Saúde se mantém Por fim, a última e mais recente via de
longe da realidade da população. Atualmente,
III
Nabiximols, da Beaufour Ipsen Farmacêutica Ltda.
acesso aos canabinoides foi proposta pela Agên- concentração de 200 mg/ml e que custa ao con-
cia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em sumidor mais de dois salários mínimos.
2019, quando, a partir de duas consultas pú- Extratos artesanais ofertados por associa-
blicas, foram colhidas opiniões de especialistas ções dão suporte a pessoas que necessitam de
e da sociedade civil. Foi publicada a resolução tratamentos com os canabinoides mas apresen-
que criou uma nova modalidade de produtos fito- tam dificuldades econômicas ou burocráticas
terápicos: os produtos a base de cânabis46. An- para obtenção das formulações oferecidas pe-
teriormente, existiam apenas duas modalidades lo poder público. Estes produtos vêm buscando
para o registro dos produtos farmacêuticos de aperfeiçoamento dos processos de produção pa-
origem vegetal: os medicamentos fitoterápicos, ra evitar a variabilidade destes produtos. Esta for-
que exigiam segurança e eficácia comprovadas ma, além de se apresentar como economicamen-
por estudos clínicos de fase II e III comparados à te viável para uma parcela da população maior
placebo e aprovados com uma indicação clínica que as demais vias de aquisição, ela permite o
específica, como é o caso do nabiximols; e a noti- acesso a extratos que contém uma diversidade
ficação dos produtos fitoterápicos como tradicio- de canabinoides e outras moléculas. Esta comiti-
nais que, por isso, dispensavam a necessidade va de moléculas presentes nos extratos apresen-
de comprovação de segurança e eficácia, exigin- tam efeitos diferentes das moléculas isoladas e
do apenas uma comprovação de qualidade - mo- sintética oferecidas pelo governo. Os extratos de
dalidade que incluem os compostos de conheci- diferentes variedades de cânabis apresentam di-
mento notório de uso por populações tradicionais ferentes perfis de canabinoides e outras molécu-
brasileiras, ou pertencentes à farmacopolas in- las que podem atuar em conjunto, de maneira si-
ternacionais reconhecidas pela Agência. nérgica, por vezes competitiva e, de acordo com
A partir da regulação de 2019, fez-se assim o caráter personalizado do sistema endocanabi-
a inclusão de uma modalidade exclusiva para os noide de cada indivíduo o consumo destes extra-
produtos à base de cânabis, permitindo que em- tos podem apresentar efeitos distintos, mais ou
presas nacionais e internacionais possam pleite- menos efetivos, mais ou menos intensos de acor-
ar a notificação de os produtos, assim como ocor- do com o perfil de canabinoides contidos nestes.
re para os produtos tradicionais, sem exigência Através da continuidade do trabalho atre-
estudos de segurança e eficácia. Estas empre- lado à orientação de diversos profissionais, as
sas estão permitidas a importar princípios ativos, associações vêm se adequando às boas práti-
insumos para a elaboração de medicamentos e cas de produção para garantir a qualidade e a
medicamentos prontos para serem comercia- segurança ao tratamento oferecido. A criação de
lizados em território nacional. No entanto, para federações das associações de pacientes e fami-
que o paciente acesse o medicamento a ANVISA liares que buscam na cânabis algum tratamento
exige que o médico faça a prescrição com recei- poderia orientar a padronização das práticas e
tuário médico especial, controlado para medica- fortalecer politicamente estas entidades.
mentos que apresentam potencial dano à sau-
Outras dúvidas são relativas à obtenção
de. Até o primeiro semestre de 2020, um único
e à duvida sobre a qualidade destes produtos.
produto foi regulamentado por esta agência: um
Assim, é possível no Brasil se obter tratamento
frasco com 30ml de canabidiol4 destilado numa
com derivados da cânabis, a partir da prescrição
2016; a Alemanha, Grécia, Peru, México e Argen- demonstram o interesse de dar suporte à quem
tina, em 2017; a Jamaica, Dinamarca, Noruega busca essa prática terapêutica. É imprescindível
e Nova Zelândia, em 2018; finalmente Portugal, que uma regulação para esta finalidade, preocu-
em 201953. pada no acesso sobretudo da camada da popula-
Cada estado, nação ou união de nações ção com menor poder econômico, permita viabili-
apresenta formas diferentes de regular a produ- zar a produção dos cultivares de cânabis dentro
ção, distribuição e consumo destes compostos, e do Sistema Único de Saúde, sobretudo inseridos
os teores dos canabinoides, sobretudo, visando no Programa Farmácias Vivas, existentes em su-
à restrição a teores elevados de THC. As diferen- as mais de uma centena de municípios por todo
tes propostas devem ser apresentadas e discuti- o país com especial destaque para as regiões
das por todos os setores da sociedade para que Norte e Nordeste59. O Programa Farmácias Vivas
possamos compreender qual a melhor forma de é um programa que desenvolve cultivo e proces-
se regular e normalizar o acesso e dar atender a samento de dezenas de espécies vegetais de uso
demanda pela prática terapêutica com a cânabis tradicional, oferece uma manufatura farmacêuti-
e seus compostos. ca e destina uma série de fitoterápicos para di-
versas condições de saúde que é acessado atra-
No Brasil, em 2015, a ANVISA aprovou a im-
vés do Sistema Único de Saúde, uma pequena
portação para fins terapêuticos de suplementos
parcela dos municípios desenvolveram o progra-
alimentares que continham CBD; em 2016, após
ma que poderia se expandir a partir da demanda
decisão judicial, a agência se viu obrigada a regu-
pelos componentes da cânabis.
lar a importação de produtos com THC. Em 2018,
o primeiro “medicamento fitoterápico” com THC É necessário também regular as associa-
e CBD foi registrado. Em 2019, regulou a venda ções, federações, cooperativas e sociedades de
em farmácias e, em 2020, “o primeiro produto a pacientes para que estas possam produzir as va-
base de cânabis” produzido no país com insumo riedades de cânabis que sejam mais efetivas pa-
importado foi notificado para ser vendido nesses ra determinadas indicações terapêuticas e com
estabelecimentos54-58. A grande questão segue menores eventos adversos. Certamente todas
sendo os custos exorbitantes, por isso o gover- essas medidas, orientadas e aprimoradas em
no deveria incentivar e desenvolver programas de suas boas práticas, minimizariam o impacto eco-
pesquisa e inovação que facilitassem a aproxi- nômico atrelado ao tratamento de doenças que
mação das associações de usuários com as uni- necessitam desta terapêutica. As redes de pro-
versidades, a fim de ampliar o conhecimento so- teção e informação sobre a regulação do cultivo
bre a qualidade, segurança e a eficácia destes nacional da cânabis para fins terapêuticos devem
compostos e garantir boas práticas, pesquisa, ser ampliadas, contempladas e incluídas nesta
redução de custos e produção de conhecimento discussão para que haja melhor compreensão da
acerca das propriedades terapêuticas das câna- de-manda e das necessidades reais de consumo
bis oferecidas pelas associações. dessas substâncias por pessoas que já fazem o
uso, trazendo a luz informações sobre o por quê
Existem formas mais democráticas, econô-
o fazem, o que e como consomem, a forma de
micas e autônomas de se obter compostos a ba-
se de cânabis para fins terapêuticos. Estas ini- obtenção e o que pode ser melhorado.
ciativas devem ser fortalecidas, pois já existem e
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Resumo Abstract
Este artigo faz um relato dos perfis de serviços disponíveis nos mu- This article reports on the profiles of services available in the muni-
nicípios do estado de São Paulo para a atenção em saúde relativas cipalities of the state of São Paulo for health care related to alcohol
and drug issues for adolescents and young people, in addition to
às questões de álcool e drogas para adolescentes e jovens, além da
the proposal of the Line of Care for the Health of Adolescents and
proposta da Linha de Cuidado para a Saúde de Adolescentes e Jo-
Youth for the SUS in the State of São Paulo, developed in 2018,
vens para o SUS no Estado de São Paulo, elaborada em 2018, que which guides how these services should address and act with this
orienta como esses serviços devem abordar e atuar com este tema. theme.
I
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é cientista social, mestre
em Antropologia Social e Doutora em Saúde Pública pela Universidade de
São Paulo, Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de Introdução
N
Estado da Saúde de São Paulo, membro do Grupo Técnico de Saúde do
Adolescente da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES/SP) e inte-
grante da equipe do Projeto Linha de Cuidade para a Saúde na Adolescência o Brasil, o uso de álcool e outras drogas
e Juventude para o Sistema Único e Saúde no Estado de São Paulo (LCA&J).
vem fazendo parte das práticas de adoles-
II
Sandra Mara Garcia (sandragarciasp@gmail.com) é é antropóloga pela Uni-
versidade de Brasília (UNB), licenciada em Ciências Sociais pela Pontifícia centes e jovens. O III Levantamento Nacio-
Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMP), Mestre em Gênero e Estu-
dos de Desenvolvimento pela Univesity of Sussex, na Inglaterra, Doutora em nal de Álcool e Drogas, produzido pela Fundação
Demografia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Pesquisa-
dora do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (CEBRAP) e integrante Oswaldo Cruz em 20171, apontou que o consumo
da equipe do Projeto LCA&J.
III
Wilson Souza (wwpsouza@bol.com.br) é médico pela Pontifícia Universida-
de Católica de São Paulo PUC-SP (Campus Sorocaba, Pediatra pela Socie- Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP)
dade Brasileira de Pediatria, Sanitarista pela Faculdade de Saúde Pública da Doutora em Psicologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São
Universidade de São Paulo (FSP/USP), Administrador Hospitalar pela Funda- Paulo (FM/USP) e membro da equipe de elaboração e implementação do
ção Getúlio Vargas, membro da Área Técnica de Saúde do Adolescente da Projeto LCA&J.
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e integrante da equipe do de VI
Mariana Arantes Nasser (mariana.nasser@fm.usp.br) é médica pela Fa-
elaboração e implementação do Projeto LCA&J.
culdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/
IV
Jan Billand (jsj.billand@gmail.com) é psicólogo e Doutor em Psicologia So- UNESP), Especializada em Medicina Preventiva e Social pelo Hospital das Clí-
cial pela Université Paris 13, Pós-Doutor vinculado ao Instituto de Psicologia nicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP),
da Universidade de São Paulo (IP-USP) e membro da equipe de elaboração e Doutorado em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universi-
implementação do Projeto LCA&J. dade de São Paulo (FM/USP), atua como médica sanitarista do Centro de
Saúde Escola Professor Samuel Barnsley Pessoa da FMUSP (CSE/FM/USP),
V
Maria Altenfelder Santos (marialtenfelder@gmail.com) é psicóloga pela Professora da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São
Pontiícia Univesidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Psicologia Paulo (EPM/UUNIFESP) e Coordenadora do Projeto LCA&J.
de bebidas alcóolicas entre adolescentes de 12 da Saúde de São Paulo, existem cerca de 4.848
e 17 anos, nos 12 meses anteriores ao estudo, unidades básicas de saúde (UBSs), 10% dessas,
alcançava 22,2% e, entre 18 e 24 anos, 53,2%; localizadas na capital5. Para situações que envol-
já o consumo de drogas ilícitas na vida, foi de vam Saúde Mental e álcool e drogas, a rede de
4,0% e 14,3%, dentre os estudantes que reporta- atenção psicossocial, integrada por UBSs, con-
ram o uso dessas substâncias. ta ainda com 267 Centros de Atenção Psicosso-
Isso corrobora a tendência de uso dessas cial (CAPS), existentes em 124 municípios (63 na
substâncias já apontada no V Levantamento Na- capital)6, sendo 39 CAPS-infantojuvenil (CAPS-ij)
cional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas localizados em 21 municípios (15 localizados na
entre Estudantes do Ensino Fundamental e Mé- capital e apenas 6 em outras cidades) e 68 CAPS
dio da Rede Pública de Ensino em 27 capitais álcool e drogas (CAPS-ad), especificamente dire-
brasileiras2, realizado em 2003, pela Unversida- cionados para lidar com o uso/abuso de álcool
de Federal de São Paulo, que apontou a média e drogas espalhados por 45 municípios (20 des-
etária para o primeiro uso de álcool como 12,5 ses serviços localizados na capital e apenas 25
anos de idade, de tabaco, como 12,8; de 13,9 em outras cidades) - salientando-se que, embora
anos para uso de maconha e 14,4 anos, para a esses CAPS-ad estejam previstos, pelo Ministé-
cocaína. rio da Saúde, para o atendimento a todas as fai-
xas etárias, em vários serviços só são atendidos
No estado de São Paulo, onde a popu-
maiores de 18 anos7, o que se mostra uma in-
lação estimada de adolescentes entre 15 e 18
congruência já que estudos nacionais apontam
anos, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
que apenas 1,8% dos atendimentos do CAPS-inf
tatística (IBGE), representa 7,2% da total3, ou se-
se dão devido ao uso de substâncias psicoati-
ja, 3.303.908 pessoas. Nesta faixa etária, o le-
vas, não contemplando a realidade deste uso8. A
vantanto de 2004, indica que aproximadamente
abordagem a esta situação também poderia se
9,7% dos estudantes do Ensino Médio faziam uso
dar pela maior integração com a Atenção Básica
frequente de álcool e drogas2.
e ações de matriciamento9.
Dados do Ministério da Saúde4 registram
Esse volume de CAPS ainda se mostra in-
que, no estado de São paulo, em 2019, houve
suficiente, uma vez que a previsão é que haja 1
67 internações de adolescentes entre 15 e 19
CAPS para cada 15.000 habitantes, 1 CAPS-ad
anos devido a transtornos associados ao uso de
para atender adultos ou crianças que utilizem ál-
álcool (42 masculinas e 25 femininas) em hospi-
cool e/ou drogas em regiões ou municípios com
tais ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e
mais de 70.000 habitantes e 1 CAPS-ij para aten-
1.102 internações devido ao consumo de outras
der crianças e adolescentes “que fazem uso de
drogas psicoativas (811 masculinas e 291 femi-
crack, álcool e outras drogas” em regiões ou
ninas), totalizando 1.169 internações por abuso
municípios acima de 150.000 habitantes9. Ade-
dessas substâncias.
mais, a Política Nacional de Saúde Mental apon-
Para esta população, além do alcance das
ta para a necessidade da existência de 1 CAPS-
redes da área de Educação e de Assistência So-
-ad III com leitos, em regiões ou municípios com
cial, a área de saúde pública oferta uma diversi-
população acima de 200.000 habitantes9. Des-
dade de serviços espalhados em seus 645 mu-
sa forma, pode-se atender adultos ou crianças
nicípios. Segundo dados da Secretaria de Estado
incluiu a realização de um levantamento com ser- também atendem por encaminhamento e outros
viços de saúde existentes em todas as regiões 171 (18%) recebem usuários exclusivamente por
do estado de São Paulo e em todos os níveis de encaminhamento, inclusive o da rede intersetorial.
atuação, sobre suas práticas e perfis de atuação Além desse critério, 835 (87,9%) também
em relação à saúde de adolescentes e jovens, atentam para a faixa etária como critério, em
feito por meio de um questionário eletrônico pa- 721 (75,9%) das vezes utilizando o Estatuto da
ra preenchimento on line pelos serviços, visando Criança e do Adolescente (ECA) como documento
que a construção da linha respondesse às suas de referência para definir este público (que defi-
necessidades e servisse de referência para suas ne adolescentes como aqueles dos 12 aos 17
atuações no estado de São Paulo. anos)17; outros 176 (18,5%) utilizam também o
Estatuto da Juventude (EJ) (que define jovens co-
Resultados mo aquelas pessoas entre os 15 e os 29 anos de
idade)18 e 374 (39,4%) se pautam pelo documen-
De 950 serviços de saúde pertencentes
to da Organização Mundial de Saúde (OMS) (que
a 61 municípios paulistas que responderam ao
define pré-adolescentes entre os 10 e 14 anos,
questionário de preparação da Linha de Cuidado
adolescentes entre os 15 e 19 anos e juventude
para a Saúde na Adolescência e Juventude para
de 20 a 29 anos)19. Mostrando maior influência
o Sistema Único de Saúde no Estado de São Pau-
desta última referência, a adolescência é apon-
lo (LCA&J), 717 são unidades básicas de saúde
tada por cerca de 1/3 desses serviços (33,7%)
(539 delas com agentes comunitários de saúde
como iniciada antes dos 10 anos de idade, o que
e/ou Estratégia de Saúde da Família (ESF); 22
resulta na inclusão do público infantil.
são serviços de atenção especializada ao ado-
lescente (incluindo Casas do Adolescente), 102 O atendimento a este público é ofertado por
são Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), 48 772 (81,3%) serviços, durante todo o horário de
serviços de DST/aids (Serviço de Assistência Es- funcionamento e 5 dias da semana; 21 (2,2%)
pecializada em HIV/Aids (SAEs) e Centro de Tes- também fazem atividades/atendimentos no perí-
tagem e Aconselhamento (CTAs)), 7 serviços de odo noturno e 41 (4,3%) aos finais de semana.
atenção à saúde da mulher, 9 são serviços hospi- Apenas 174 (18,3%) dos serviços restringem ho-
talares especializados em adolescência e 40 são rários para a marcação de atendimento a ado-
de outros tipos. lescentes, geralmente os agendamentos podem
ser feitos em todos os horários, e 773 (81,4%)
Quanto à localização, estão predominante-
afirmam fazer “encaixe” de atendimento de ado-
mente na área urbana e central dos municípios,
lescentes não agendados em todos os períodos
sendo que apenas 29 (4,1%) das UBSs e 1 CAPS
e dias de funcionamento do serviço.
(1,0%) se encontram em áreas rurais (Tabela 2).
A maioria dos serviços (946) declarou ter
Desses serviços, 580 (61,0%) apontaram
atuação junto aos adolescentes; embora 5 (0,6%)
questões ligadas ao uso de álcool e droga entre
UBSs declararam não ter atividades com adoles-
os principais motivos de procura de seuserviços
centes, por isso não foram considerados para a
por adolescentes e jovens33 (ver Tabela 1).
análise que também visa o atendimento deste
A grande maioria desses serviços (82,0%)
público (Tabela 3).
utiliza critérios de local de residência para ca-
Além dos 20 (87,0%) serviços especializados
dastrar seus usuários, mas 95 (10,0%) desses
n %
Tipo de Seviço
Unidade de Atenção Básica 721 75,9
Serviço de atenção especializada a adolescentes 22 2,3
Serviço hospitalar 9 0,9
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) 102 10,7
Serviços de DST/Aids 48 5,1
Serviço de Saúde da Mulher 7 0,7
Outro 40 4,2
não resp 1 0,1
Total 950 100,0
Esfera
Municipal 921 96,9
Estadual 11 1,2
Federal 9 0,9
Total 941 99,1
não resp 9 0,9
Total 950 100,0
Tipo de Administração
Direta da Saúde (esfera nacional, estad. ou munic.) 676 71,2
Direta de outros Órgãos (não ligados à saúde) 6 0,6
Indireta (Autarquias, Fundação Pública, Empresa Pública, Organiza- 44 4,6
ção Social Pública, Economia Mista)
Empresa ou Fundação Privada 5 0,5
Organização Social de Saúde – OSs 199 20,9
Outros 13 1,4
Sub-total 943 99,3
não respondeu 7 0,7
Total 950 100,0
Realiza Ensino e Pesquisa?
Sim, é (ou integra) uma Unidade Universitária 29 3,1
Sim, é (ou integra) uma Unidade Escola Superior Isolada 7 0,7
Sim, é (ou integra) uma Unidade Auxiliar de Ensino 90 9,5
Sim, é (ou integra) um Hospital de Ensino 9 0,9
Não, é Unidade sem Atividade de Ensino 463 48,7
Não se aplica 343 36,1
não respondeu 9 0,9
Total 950 100,0
Tabela 2 – Tipo, âmbito e gestão dos serviços que atuam com adolescentes
UBS Serv. Adolesc Serv Hosp. CAPS Serv. DST Serv. Atend. outros serv. total
Mulh
n % n % n % n % n % n % n % n %
Tipo
|165
Drogas & 30 Anos de Redução de Danos
18,2
53,8
44,3
25,3
31,3
17,8
17,0
5,5
%
mentos nos quais circulam.
total
296
509
168
239
161
419
172
52
n
22,5
35,0
20,0
10,0
27,5
5,0
0,0
7,5
outros serv.
11
14
2
3
4
8
9
n
14,3
14,3
57,0
Serv. Atend.
0
0
0
0
0
hebiatras, enquanto o mais comum para este
Mulh
0
0
0
0
0
1
4
n
27,1
8,3
4,2
8,3
6,3
0
Serv. DST
2
0
7
3
4
n
55,9
52,9
51,0
49
52
27
57
57
22,2
22,2
11,1
11,1
0,0
Serv Hosp.
43,5
43,5
34,8
65,2
30,4
30,4
39,1
21,7
%
7
5
8
9
n
22,8
12,4
29,5
14,8
41,9
300
106
163
211
422
131
grupo adolesc.
terap. Grupal
ativ. pais
Tipo
n % % proporcional
Tipo
que não proporcionam a atenção a adolescentes proporção de serviços que declararam não aten-
por demanda espontânea desses (Tabela 6). Es- der adolescentes, em contradição com a sua afir-
ta mesma situação também pode ser verificada mativa anterior de que atenderiam este público
no caso de outras categorias profissionais e ativi- (947 de 950 serviços confirmaram esta atuação)
dades ofertadas pelos serviços de saúde. e também em contradição com suas atribuições
Além de atendimento a adolescentes em oficiais: UBS, CAPS e SAEs e CTAs não devem
restringir seu atendimento por faixa etária, mes-
geral, 135 serviços (14,2%) realizam trabalhos
mo que em seus territórios existam outros servi-
especificamente dirigidos a adolescentes e jo-
ços que sejam referência em atendimento espe-
vens em situação de vulnerabilidade social; 179
cilizado para o público adolescente.
(18,8%) têm trabalhos específicos para usuários
de comunidades terapêuticas ou outras insititui-
ções de Saúde Mental; e 327 (34,4%) para ado- Linha de Cuidado para a Saúde na Adolescência
e Juventude para o Sistema Único de Saúde no
lescentes em situação de violência doméstica e
Estado de São Paulo (LCA&J)
167 (17,6%) com adolescentes em outras situa-
O projeto Linha de Cuidado para a Saú-
ções de violência.
de na Adolescência e Juventude para o Sistema
Considerando a rede de saúde identificada Único de Saúde no Estado de São Paulo (LCA&J)
por esses serviços como existentes em seus terri- produziu, além do levantamento de dados, outras
tórios, foram mencionados 103 (10,8%) CAPS-ad formas de produção e análise de dados para a
infanto-juvenil no bairro do próprio serviço, 429 construção da linha de cuidado, como a realiza-
(45,2%) no próprio município e 234 (24,6%) na ção de grupos focais com profissionais de saúde,
regional de saúde. Desses serviços, 325 (34,2%) gerentes de serviços de saúde, gestores do setor
fazem encaminhamentos para esses CAPS-ad e saúde, profissionais intersetoriais, adolescentes
CAPS-ij e 387 (40,7%) declararam encaminhar pa- e jovens; grupos de experts sobre adolescência e
sobre planejamento; experiências piloto em três
ra algum serviço de atenção psicossocial no pró-
regiões de saúde (Itapetininga, Litoral Norte e
prio município.
Mananciais).
Apenas 212 (22,3%) dos serviços afirma-
A análise de todos os dados levou à formu-
ram contar com uma Casa do Adolescente de re-
lação de recomendações, que foram trabalhadas
ferência, 225 (23,7%) um Centro de Convivência em seminários de pesquisa e em reuniões rela-
e Cultura, 564 (59,4%) com Centros Esportivos cionadas à gestão em saúde da Atenção Básica,
Públicos, 421 (44,3%) com outros centros cultu- como o grupo técnico bipartite, além da comis-
rais e esportivos. são científica do Programa Estadual de Saúde do
Dentre os serviços pesquisados que afir- Adolescente, seminários do Programa Estadual
maram não atender adolescentes, 404 (43,5%) de DST/Aids, encontros do PPSUS, etc.
encaminham este público para outros serviços e Como resultado final, formulou-se o docu-
528 (55,6%) para o atendimento em outros muni- mento final da Linha de Cuidado para a Saúde na
cípios, presentes em suas respectivas regionais Adolescência e Juventude para o Sistema Único
de saúde em metade deles. Preocupante é a de Saúde no Estado de São Paulo (LCA&J), que
jovens, com “enfoque na atenção a pessoas com Saúde Mental, redução de estigmas, e preven-
transtornos mentais graves e persistentes in- ção do uso de álcool e drogas e atividades volta-
cluindo aquelas que fazem uso de crack, álcool e das à inclusão e à reabilitação de adolescentes
outras drogas” (p.51). e jovens.
Adolescentes e jovens devem ser compre- No que tange ao acesso de adolescente e
endidos como indivíduos que podem estar em si- jovens, é importante que os CAPS16:
tuação de vulnerabilidade devido a questões só- “...sejam “porta aberta”, de modo que
cioculturais próprias da fase em que vivem. Por poderão ser procurados diretamente por
isso, a Rede de Atenção Psicossocial Local deve adolescentes e jovens, ou também enca-
gerenciar projetos terapêuticos, em conjunto com minhados por outros serviços. (...) Nos
aos serviços de Atenção Primária, realizando pla- casos em que adolescentes ou jovens
nejamento de ações de prevenção e atenção em procuram o CAPS, mas a consideração é
Saúde Mental para este público. de que o atendimento em CAPS não é ne-
A promoção de saúde do CAPS deve ser cessário, garantir o acesso à LCA&J por
orientada “com ênfase na identidade, no perten- meio de referência rotineira à UBS (infor-
cimento, na cidadania, nos direitos humanos e mando qual é a UBS de referência da pes-
nos projetos de vida e saúde mental”, inclusive soa, seu endereço e modo de funciona-
relativas ao uso de álcool e drogas, dando assis- mento)” (p.51).
tência a seus agravos em Saúde Mental16 (p.51). Para este cuidado, é necessário articular re-
Essa assitência deve se pautar em promover: ferências locais ou regionais e atuar em parce-
• acolhimento humanizado por toda a equipe; ria com outros serviços, incluindo UBSs, Centros
• diálogo com o usuário do serviço; de Testagem e Aconselhamento (CTA) e Serviços
• promoção de autonomia de adolescentes e de Assistência Especializada em HIV/Aids (SAEs),
jovens; Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SA-
• vinculação dos adolescentes com um profis- MU) 192, Unidade de Pronto Atendimento (UPA).
sional de referência Em caso de necessidade de afastamento
• atendimento individual, psicoterapêutico e social16:
medicamentoso (se necessário); “Solicitar, quando adequado, aten-
• promoção de cidadania e orientação de direi- ção residencial de caráter transitório, em
tos, incluindo suporte social; Unidade de Acolhimento (UA) infantojuvenil
• além de busca ativa e suporte às famílias. (12-18 anos) ou adulto (para maiores de
Para organização dos serviços e atendimen- 18 anos) para usuários de álcool, crack e
tos sugere-se o planejamento das ações e dis- outras drogas e em situação de vulnera-
cussão de casos pelas equipes em reuniões téc- bilidade, com necessidade de acompanha-
nicas, a articulação com outros equipamentos e mento terapêutico protetivo. Articular-se
serviços do território (escolas e centros culturais, com serviços hospitalares para casos de
etc), relacionados ao tema da adolescência e da abstinências e intoxicações severas (even-
juventude, à luta antimanicomial; a realização tuais internações devem ser de curta du-
conjunta de atividades voltadas a promoção da ração até a estabilidade clínica e sempre
no âmbito do PTS). No momento da alta,
julgarem que estes(as) estão em situação Assim, o uso de álcool e drogas deve ser
de risco ou não têm capacidade plena de visto pelos profissionais da área da Saúde, como
discernir ou se cuidar, devem conversar uma questão complexa, correlacionada a outros
com eles(as) sobre essa percepção para fatores de vulnerablidade em saúde22, porém re-
compreender melhor a situação. Ainda jun- levante para a atuação do SUS. Deve ser objeto
to com os(as) adolescentes, devem definir de atuação de caráter técnico e assistencial, den-
o melhor modo de proceder, o que pode- tro de uma perspectiva de promoção de direito,
rá envolver a quebra do sigilo – isto é, o em lugar da abordagem por meio de julgamentos
compartilhamento, com algum adulto res- morais.
ponsável, de informações sobre a consul- Este cuidado tem implicações que vão além
ta. Essa quebra deve obrigatoriamente ser da estrita atuação em saúde e necessitam de
consentida pelo(a) adolescente...”16 (p.63). uma organização intersetorial, mas, de forma ne-
Enfim, é importante realizar avaliações das nhuma exime a responsabilidade dos serviços de
condições de saúde nos territórios, buscando saúde de ouvir, acolher e atender os adolescen-
identificar adolescentes e jovens que não aces- tes e jovens quanto ao tema. Muito pelo contrário
sam os serviços e compreender as possíveis si- torna essa tarefa essencial para o bom atendi-
tuações de vulnerabilidade envolvidas nessa falta mento deste público e a promoção de sua saúde,
de acesso que podem incluir aspectos famiiares, bem-estar e cidadania.
condições sociais, relações de gênero, questões
escolares e o uso de álcool e outras drogas, sere
Referências
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www.researchgate.net/publication/339385911_III_Levan-
Adolescentes e jovens são sujeitos de di-
tamento_Nacional_sobre_o_uso_de_drogas_pela_popula-
reitos. O fato de serem mais novos não altera
cao_brasileira
este princípio; ao contrário, apenas pode contri-
buir com a maior vulnerabilidade para situaçõe de 2. Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (CEBRID).
risco à saúde ou agravos durante seu desenvolvi- V Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psi-
mento e maior inserção social. cotrópiceas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Mé-
dio da Rede Pública de Ensino em 17 Capitais Brasileiras.
Como o uso de bebidas alcóolicas faz
São Paulo: CEBRID/UNIFESP; 2005.
parte da cultura nacional e o uso de drogas ilí-
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Marcelo SodelliI
Resumo Abstract
A relação entre a área de Educação e o uso de drogas é fortemen- The relationship between the area of Education and the use of
te atravessada pelos pressupostos proibicionistas. A consequên- drugs is strongly crossed by the prohibitionist assumptions. The
cia disso é que os projetos preventivos desenvolvidos no âmbito consequence of this is that the preventive projects developed in
educacional balizados por esta postura de “guerra às drogas” fra- the educational field marked by this “war on drugs” posture fail,
cassam, pois não conseguem alcançar o seu principal objetivo: as they fail to achieve their main objective: to prevent drug use
impedir o consumo de drogas (abstinência total). Além de inefica- (total abstinence). In addition to being ineffective, these preven-
zes, esses projetos preventivos contribuem negativamente para tive projects contribute negatively to increasing the stigma and
aumentar o estigma e o preconceito ao usuário de drogas, disse- prejudice of drug users, disseminating misinformation about the
minado informações equivocadas sobre esse complexo fenômeno. phenomenon of drug use. This article aims to develop a study of
the approximation of the notion of vulnerability and the Harm Re-
Assim, o presente artigo tem como objetivo desenvolver um estudo
duction approach as new foundations for the area of Education,
de aproximação da noção de vulnerabilidade e da abordagem de
reaffirming the importance of the definitive break with the prohibi-
Redução de Danos como novos fundamentos para a área de Edu-
tionist assumptions.
cação, reafirmando a importância do rompimento definitivo com os
pressupostos proibicionistas.
Keywords: Education, Prevention, Harm reduction, Vulnerability.
Introdução
E
mbora a perspectiva da Redução de Da- dos projetos de prevenção ainda são fortemente
nos seja mundialmente reconhecida como influenciados pela Postura Proibicionista, aquela
uma importante estratégia para lidar com balizada em máximas como estas: “diga não às
os possíveis problemas decorrentes do uso de drogas” e “guerra às drogas”. Um exemplo dis-
risco e dependência de drogas, na área da Edu- so é o Programa Educacional de Resistência às
cação e, especificamente, na área da prevenção Drogas (PROERD), desenvolvido pela Polícia Mili-
primária, esta abordagem ainda não conseguiu tar desde 1992, presente em todos os estados
brasileiros1.
se desenvolver. Considerando o cenário nacional,
podemos observar que são poucos os projetos Entretanto, existem vários estudos que
preventivos que se balizam na perspectiva de apontam para a ineficácia dos trabalhos pre-
ventivos pautados pelo Proibicionismo1. Essas
Redução de Danos. Pelo contrário, grande parte
críticas abarcam tanto o plano teórico quanto
I
Marcelo Sodelli (msodelli@pucsp.br) é psicólogo, Mestre e Doutor em Psico-
o desdobramento prático na área de Educação.
logia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
-SP), professor-pesquisador do curso de Psicologia desta mesma instituição.
Forçoso é admitir que a base teórica da postura
proibicionista careça de uma fundamentação como algo danoso ou benéfico, mas procura-se
mais consiste. Sinteticamente, as principais críti- compreendê-las sempre na relação com o ser
cas são: as diretrizes proibicionistas ferem prin- humano;
cípios básicos de respeito à liberdade; assume • as ações são desenvolvidas com base no co-
um caráter moral e preconceituoso em relação nhecimento científico;
aos usuários de drogas; preconiza como única • o trabalho é realizado sistematicamente com
alternativa a abstinência total de drogas1. Como duração de médio ou longo prazo;
postura educativa utiliza-se do método do ame- • objetiva promover no público alvo o fortaleci-
drontamento, ou seja, parte-se da hipótese de mento da autonomia e a preconização dos direi-
que, ao instaurar o sentimento de medo nos alu- tos humanos.
nos em relação ao uso de drogas, esses ficariam Fortalecendo teoricamente a prática de Re-
mais propensos a se prevenir. No campo do tra- dução de Danos, temos a noção de vulnerabilida-
balho prático, a postura proibicionista não con- de. Esse constructo teórico vem contribuindo pa-
segue alcançar seu principal objetivo: promover ra deixar mais claro o quanto o fenômeno do uso
e manter a abstinência completa de seu público de drogas se dá de forma complexa, revelando a
alvo. importância de olharmos para três eixos nortea-
Ainda mais importante do que entender o dores: o ser humano, as drogas e o mundo.
fracasso da Postura Proibicionista, é ter a clareza Partindo deste contexto, o presente ar-
de que essa postura de guerra às drogas causa tigo tem como objetivo desenvolver um estudo
mais danos para as pessoas, do que o próprio de aproximação da noção de vulnerabilidade e
consumo de drogas; as estatísticas mostram da abordagem de Redução de Danos como no-
nitidamente que morrem mais pessoas por con- vos fundamentos para a área de Educação, rea-
sequência da repressão ao comércio (tráfico) de firmando a importância do rompimento definitivo
drogas do que efetivamente dos possíveis proble- com os pressupostos proibicionistas.
mas de saúde gerados pelo uso nocivo das subs-
tâncias psicoativas1. Na verdade, temos que ter
a lucidez de que de fato não existe “guerra às Noção de vulnerabilidade
drogas”, mas sim, guerra às pessoas e, principal- O termo vulnerabilidade é originário da área
mente, guerra às populações mais vulneráveis, da advocacia internacional dos Direitos Univer-
seja pela via do encarceramento massivo, seja sais do Homem e significa: grupos ou indivíduos
pela produção de óbitos (política de genocídio de fragilizados, jurídica ou politicamente, na promo-
jovens pobres)1. ção ou garantia de seus direitos de cidadania2.
Nesta esteira, se contrapondo à Postura Foram definidos três planos interdependentes de
Proibicionista, a abordagem de Redução de Da- determinação da vulnerabilidade3:
nos vem sendo utilizada como uma importante al- • componente individual: diz respeito ao
ternativa para nortear as ações preventivas. Em- grau e à qualidade da informação de que os indi-
bora não exista um único modo de desenvolver víduos dispõem sobre o problema; à capacidade
projetos preventivos a partir desta abordagem, é de elaborar essas informações e incorporá-las
possível identificar quatro diretrizes gerais1: aos seus repertórios cotidianos de preocupações;
• as drogas não são apontadas a priori e, finalmente, ao interesse e às possibilidades
confere, ao Modelo de Redução de Danos, argu- dialogar com outros interesses, sem ser o de
mentos éticos e possibilidades de legitimação controle, o sentido da prática preventiva se modi-
para a efetiva implementação. Por isso, a apro- fica, assim como o seu modo de dialogar7. Portan-
ximação do Modelo de Redução de Danos e da to, não é o técnico (professor, psicólogo, médico,
noção de vulnerabilidade se dá, antes de tudo, etc.) que determinará como o sujeito-alvo (aluno,
no plano da ética, da cidadania e dos direitos professor) deverá se prevenir, mas é o próprio su-
humanos. jeito, após intensa reflexão, que se colocará em
A compreensão de que ninguém é vulnerá- questão, buscando formas e apoio para reduzir
vel, mas está (no momento) vulnerável, resultan- suas vulnerabilidades. É nesse sentido, que en-
te da dinâmica relação entre os componentes tendemos o entrelace da prevenção ao uso de
individuais, sociais e programáticos, provoca no- risco e à dependência de drogas com a noção de
vas reflexões sobre a prevenção ao uso nocivo de vulnerabilidade e, mais especificamente no âmbi-
drogas, particularmente, em relação a projetos to escolar, na possibilidade da construção perma-
desenvolvidos no âmbito escolar. Se nós enten- nente de uma rede cuidadora entre o professor e
dermos que a vulnerabilidade não é algo estático o aluno. Isto nos parece fundamental: prevenção
e pontual, mas dinâmico e contínuo, projetos pre- na escola é trabalhar no sentido de construir uma
ventivos pontuais, meramente informativos, terão rede cuidadora permanente entre professor e o
resultados limitados. aluno.
Os principais objetivos da prática preventiva Nesta direção, a aproximação da noção de
não deveriam ser apenas os de alertar as pesso- vulnerabilidade com a problemática do uso de
as sobre algum problema específico, “mas tam- drogas inaugura outra possibilidade de compre-
bém para que, além disso, respondam de forma a ensão do trabalho preventivo: em vez da preven-
superar os obstáculos materiais, culturais e polí- ção ao uso de risco e dependência de drogas, po-
ticos que os mantêm vulneráveis mesmo quando demos propor agora uma nova expressão: ações
avisados individualmente”4. redutoras de vulnerabilidades ao uso de risco e
dependência de drogas8.
Torna-se evidente, então, que os projetos
preventivos ao uso de risco e dependência de A expressão “ações redutoras de vulnera-
drogas e que levam em conta a noção de vulnera- bilidades ao uso de risco e dependência de dro-
bilidade deveriam, preferivelmente, ser iniciados gas” privilegia o campo do fazer e não somente o
já na Educação Infantil ou, pelo menos, no Ensino do falar. Este é um aspecto fundamental na área
Fundamental I, para que percorresse toda a vida da Educação Preventiva, pois denota claramen-
estudantil até chegar ao Ensino Médio. te que trabalhos expositivos, teóricos e pontuais,
embora sejam relevantes, não são suficientes pa-
Quando nos apoiamos na noção da vulnera-
ra atender à complexidade da relação do ser hu-
bilidade para desenvolver intervenções preventi-
mano com as drogas.
vas, estamos, na verdade, procurando ampliar os
horizontes normativos que orientam esta ação, Por último, esta expressão sinaliza que o
quer dizer, estamos buscando a subsunção do trabalho preventivo deveria ter como objetivo re-
ideal de controle de uma doença (ou comporta- duzir vulnerabilidades ao uso de drogas e não
mento) para dialogar com interesses de nature- a pretensão de acabar com o uso destas subs-
za estética, emocional, moral, entre outros. Ao tâncias. Como já discutimos, entendemos que
reduzir vulnerabilidades está no horizonte do pos- meio de uma narrativa utilizada largamente no
sível, enquanto que acabar com as drogas está âmbito escolar, resumida no conceito “não pode
no horizonte do impossível. Este aspecto ganha porque não pode”, uma das principais dificulda-
um significado fundamental, quando discutimos des seria não saber qual pressuposto colocar no
quais são os elementos que facilitam ou dificul- lugar desta mera proibição. Possivelmente, mui-
tam a apropriação do professor para a tarefa pre- tos argumentariam que, se não trabalharmos os
ventiva. Ou seja, qual objetivo preventivo está conceitos de proibição e abstinência, na preven-
mais próximo do sentido de educar, a prevenção ção primária, com aqueles que ainda não experi-
proibicionista ou a noção de vulnerabilidade? mentaram alguma droga, o consumo de drogas
iria aumentar consideravelmente na adolescên-
cia, correndo-se o risco de perder o pouco contro-
Redução de Danos e Educação
le sobre os jovens que ainda se tem.
Sabe-se que a prevenção pode ser dividida
A idéia de relacionar a Redução de Danos,
em três modos de intervenção1:
como prevenção primária, é para reafirmar a po-
• a prevenção primária, que refere-se ao
trabalho feito com pessoas (alunos) que ainda sição de que o objetivo da prevenção não deve-
não experimentaram ou que estão na idade em ria ser o de acabar com o uso de drogas9. Logo,
que possivelmente pode-se iniciar o uso de uma trabalhos preventivos que preconizam somente a
droga lícita ou ilícita; proibição do tipo “não pode porque não pode”,
• a prevenção secundária, que tem como vêm se mostrando ineficazes no lidar com a pro-
objetivo atingir as pessoas que já experimenta- blemática do uso de drogas. Por isso, a prevenção
ram ou que fazem um uso ocasional de drogas, deveria, fundamentalmente, assumir a tarefa de
com o intuito de evitar que este padrão de uso se
intervir na redução dos níveis de vulnerabilidade
torne problemático ou abusivo (uso habitual);
ao uso nocivo dessas substâncias psicoativas.
• a prevenção terciária, que corresponde ao
trabalho com usuários que já apresentam proble- Pouco adianta trabalhar, na prevenção pri-
mas (uso problemático, uso habitual), interven- mária, orientados pelo objetivo de que o indiví-
ção preventiva que é feita para que eles não che- duo nunca utilize drogas, já que sabemos, por
guem à dependência. meio dos dados epidemiológicos, que a maioria
Ao descrever esses três modos de preven- das pessoas experimentará, durante a vida, al-
ção, poderíamos nos perguntar se seria possível gum tipo de droga, seja ela lícita ou ilícita. Nes-
um trabalho de Redução de Danos na prevenção te sentido, trabalhar a prevenção às drogas na
primária? Se a prevenção primária é destinada perspectiva da abordagem de Redução de Danos
às pessoas que ainda não tiveram nenhuma ex- na prevenção primária é compreender que o me-
periência com o uso de drogas, questionamos se lhor caminho para lidar com o fenômeno do uso
faria sentido propor um trabalho de Redução de de drogas não é o de decidir e definir pelos ou-
Danos. Se a resposta for positiva, como seria um tros quais os comportamentos mais adequados
trabalho de Redução de Danos na escola, consi- e corretos, mas sim construir, junto com o outro,
derando um projeto preventivo desenvolvido na as possibilidades de escolhas mais autênticas e
Educação Infantil ou no Ensino Fundamental I? mais livres, diminuindo vulnerabilidades.
Considerando que o conceito proibicionista Porém, antes de se pensar em trabalhar na
está arraigado em nossa cultura educativa por prevenção ao uso nocivo de drogas na escola,
teríamos que aprender a lidar com as represen- estas representações sobre as drogas acabam
tações que as pessoas têm em relação ao te- reafirmando, no professor, a posição de que a
ma “drogas”. Salientamos que a representação educação preventiva não faz parte de sua função
da maioria das pessoas leigas sobre a questão educativa e que, tanto o modelo da “Guerra con-
das drogas está relacionada a aspectos negati- tra as Drogas” como o da “Prevenção que Con-
vos, principalmente, aos sentimentos de medo e vive com a Diferença”, ao que tudo indica, não
impotência10. vêm oferecendo para o educador um horizonte no
Do mesmo modo, estudos apontam que os qual ele possa encontrar subsídios para superar
sentimentos de medo e impotência também es- essas dificuldades11.
tão presentes na representação dos professores Ao considerarmos a trama de sentido que
sobre o tema drogas11. Nessas pesquisas, é pos- orienta a compreensão do professor, na sua vi-
sível perceber o quanto o modelo preventivo de da profissional, podemos observar que, um dos
“Guerra às Drogas” faz parte da vida do educa- elementos fundamentais é o conceito de absti-
dor, dificultando uma compreensão mais integra- nência. Assim, como vínhamos discutindo, se qui-
da da tarefa preventiva ao uso nocivo de drogas sermos desenvolver um novo modelo preventivo
e a própria função de ser educador. A Placco e ao uso nocivo de drogas, é imprescindível revelar
colegas11 explicam que o sentimento de medo do ao professor outras possibilidades preventivas
professor está relacionado à possível violência além da proibição e da abstinência. É neste pon-
que poderia vir a sofrer por parte das pessoas to, que entra, com sua abordagem diferenciada,
contrárias ao trabalho de prevenção, como os tra- o modelo de Redução de Danos. Entretanto, su-
ficantes e os alunos/usuários de drogas, aponta- gerimos também que apenas a desconstrução do
dos pelos próprios professores como impedimen- conceito de abstinência não é suficiente para que
to deste trabalho. o professor se aproprie da tarefa preventiva. Sus-
Esses autores também afirmam que o senti- tentamos que é essencial propiciar, na formação
mento de impotência se origina da compreensão inicial do professor, a aproximação deste modelo
do professor sobre a sua falta de competência preventivo (Redução de Danos) com uma propos-
técnica e de autoridade para lidar com a ques- ta político-pedagógica afinada com este modo
tão. Esta falta de competência técnica está rela- singular de compreender o homem e o mundo.
cionada com a percepção de que, por mais que Reconhecemos na pedagogia dialógica e liberta-
trabalhe na prevenção, objetivando a abstinência dora de Paulo Freire esta possibilidade8.
(como postulam os dois modelos preventivos ci- Ao relacionar o Modelo de Redução de Da-
tados), o uso de drogas continua a crescer na nos à proposta pedagógica dialógica e libertadora
escola em que leciona, acarretando–lhe, assim, de Paulo Freire, estamos oferecendo ao professor
o entendimento de sucessivas derrotas, ou seja, muito mais que um modelo preventivo: estamos
de que ele não é capaz de lidar com esta pro- oferecendo um modelo de educação preventiva.
blemática. O outro aspecto relacionado ao sen- Em outras palavras, que homem desejamos for-
timento de impotência se refere à competência mar e que sociedade pretendemos construir.
de autoridade, que, por sua vez, se divide em du-
as noções: falta de autoridade médica e falta de Considerações finais
autoridade jurídica. Assim, podemos resumir que Identificamos, na noção de vulnerabilidade,
oriunda da área de direitos humanos, um terreno os professores, como para os maiores prejudica-
fértil para firmarmos um novo objetivo preventivo: dos: os alunos.
reduzir vulnerabilidades ao uso nocivo de drogas. A insistência em preconizar o modelo proi-
Estabelecemos, assim, um contraponto à abor- bicionista e da pedagogia do controle, poderá
dagem proibicionista, ou seja, em vez de traba- custar a todos nós a perpetuação da inexistência
lhar a abstinência e a repressão, o sentido da de um autêntico trabalho de prevenção ao uso
prevenção deveria ser o de promover ações re- nocivo de drogas no âmbito escolar. Ou seja, o
dutoras de vulnerabilidades ao uso de risco e de esquecimento de um dos sentidos mais próprios
dependência às drogas. da educação: reduzir vulnerabilidades...
É nesse sentido que entendemos o entrela-
Referências
çamento da prevenção às drogas com a noção de
1. Sodelli M. Aproximando sentidos: formação de professores,
vulnerabilidade e, mais especificamente, no âmbi- educação, drogas e ações redutoras de vulnerabilidade. [Te-
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o aluno. Desse modo, a noção de vulnerabilidade lo: Perspectiva; 1994.
é compreendida como um elemento fundamental 3. Mann J., Tarantola DJM, Netter TW. (Orgs). A aids no mundo.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, ABIA, IMS-UERJ; 1993.
para o trabalho de prevenção.
4. Ayres JRCM., França Júnior I, Calazans GJ. Aids, vulnerabili-
Em suma, este artigo procura demonstrar dade e prevenção. II Seminário Saúde Reprodutiva em Tempos
de Aids. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, ABIA; 1997. p.20-37.
a importância da superação do modelo proibicio-
5. Bucher R. Drogas e sexualidade nos tempos da aids. Brasí-
nista, propondo em seu lugar uma compreensão lia: UnB; 1996.
mais realista da relação do homem com as dro- 6. Macrae E. A excessiva simplificação da questão das drogas
gas, inaugurando outro paradigma para a tarefa nas abordagens legislativas. In: Ribeiro MM, Seibel SD. (Or-
gs.). Drogas: hegemonia do cinismo. São Paulo: Ed. Memorial;
preventiva: a redução dos níveis de vulnerabili- 1997. p.327-334.
dade ao uso de risco e dependência as drogas, 7. Ayres JRCM, França Júnior I.; Calazans G J.; Saletti Filho
HCS. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de aids. In: Bar-
trabalho inspirado na proposta de Redução de
bosa RM, Parker RG. Sexualidade pelo avesso; direitos, iden-
Danos. tidade e poder. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, São Paulo: Editora
34; 1999.p.49-72.
Neste sentido, torna-se fundamental pensar
8. Sodelli M. Uso de drogas e prevenção: da desconstrução da
a formação de professores a partir de um conti- postura proibicionista às ações redutoras de vulnerabilidade.
nuum. A singularidade da profissão de ser profes- São Paulo: Via Verita; 2016.
9. Sodelli M, Cavallari C. A Redução de Danos enquanto estra-
sor exige uma formação que deveria ser sempre
tégia para a prevenção ao uso de drogas na escola. In: Seibel
cuidada, seja por um processo de uma efetiva S. Dependência em drogas. São Paulo: Atheneu; 2006.
supervisão escolar, seja pelo processo da forma- 10. Escohotado A. História general de las drogas. 3ª ed. Ma-
drid: Alianza; 2000.
ção continuada.
11. Placco VMNS, Lima FFT, Sodelli M, Morgado TR P. Repre-
À luz de toda a discussão realizada neste sentações sociais de professores do Ensino Fundamental so-
bre drogas: primeiras impressões de uma análise. VI Encontro
estudo, consideramos que a formação do profes-
de Pesquisa em Educação - região sudeste, 2004. Rio de Ja-
sor para o desenvolvimento de ações redutoras neiro; 2004.
de vulnerabilidades ao uso nocivo de drogas na
escola deve ser compreendida na sua complexi-
dade, pois a simplificação deste fenômeno vem
trazendo conseqüências desastrosas, tanto para
Education for the Moderation : Harm Reduction in education approach for children about chemicals
and drugs
Resumo Abstract
O artigo relata o desenvolvimento de materiais educativos visan- The article reports the development of educational materials ai-
do o estímulo ao desenvolvimento de noções de autocuidado em med at encouraging the development of notions of self-care in heal-
saúde e de moderação de consumos e usos de diversas subs- th and moderation of consumption and use of various substances,
tâncias, favorecendo uma abordagem de autorresponsabilidade, favoring an approach of self-responsibility, from the perspective
a partir da persepctiva de Redução de Danos e não amedrontado- of Harm Reduction and neither frightening, for health education of
ra, para a educação em saúde de crianças. São apresentados os children and adolescents. Handouts for Elementary School I are
cadernos de exercícios para Ensino Fundamental I, que, através presented, which, through exercises and stimulating research and
de exercícios e estímulo a pesquisa e análise, abordam o contato analysis, address contact with personal hygiene and household
com produtos químicos de higiene pessoal e limpeza doméstica, cleaning chemicals, attention to food consumption and moderation
a atenção no consumo alimentar e a moderação do consumo de of harmful food consumption, contact and use of medications and
alimentos prejudiciais, o contato e uso de medicamentos e os pe- the dangers of self-medication and ingestion of them without moni-
rigos de automedicação e ingestão dos mesmo sem acompanha- toring of health professionals, the importance of self-care and the
mento de profissionais de saúde, a importância do autocuidado e frequency of health services, as preventive health, and the social
da frequência à serviços de saúde, enquanto saúde preventiva, e consumption and consequences of alcohol and cigarettes, as dru-
o consumo social e prejuízos do ácool e do cigarro, enquanto dro- gs that require attention and moderation of use.
gas legalizadas que necessitam de atenção e moderação de uso.
Keywords: Children and adolescents; Health education; Food; Me-
Palavras-chave: Crianças e Adolescentes; Educação em saúde; Ali- dications and drugs; Harm reduction.
mentação; Medicações e drogas; Redução de danos.
Introdução
O
século XX marcou a construção de uma
sociedade de caráter individualista e he-
I
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é socióloga, Mestre em
Antropologia e Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo e donista, onde, segundo Morin1, aprende-
pesquisadora científica e coordenadora de projetos do Instituto de Saúde da
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e autora de diversos materiais mos a buscar a autossatisfação dos desejos pes-
educativos em Educação em Saúde.
soais rumo a um suposto bem-estar. Essa obje-
Maria Luísa Eluf (luisa@semina.com.br) é graduada em Ciências Políticas e
II
Sociais e Doutorado em Psicologia Social na Fundação Escola de Sociologia tivação da vida, como aponta Bourdieu2 não se
e Política de São Paulo (FESPSP) e é Diretora da Semina Educativa, onde
desenvolve materiais educativos em saúde e cidadania. constitui com “liberdade”, mas configura-se como
uma perspectiva constituída em direção a deter- consumo dessas substâncias; assim, crianças e
minados quereres socialmente estabelecidos e adolescentes necessitam orientações educacio-
almejados, ou seja, não somos plenamente li- nais quanto ao consumo e as drogas, de forma a
vres, optamos dentro de um “leque” de opções construir um arcabouço base para suas percep-
que nos é ofertado e valorizado em determinado ções e decisões individuais futuras.
grupo a qual pertencemos.
Essa característica de satisfação individu- Bases Educacionais para a Abordagem de Drogas
al, com a criação e disseminação da cultura de na Escola
massa, foi, como aponta Toscani3, extremamente
A ideia de moderação tem como base a
aproveitada pela publicidade, de forma a não só,
máxima de Paracelso “a diferença entre o remé-
inicialmente, promover a venda de produtos para
dio e o veneno é a dose”, ou seja, a ideia de que
atender essas satisfações e desejos, mas tam-
o problema do consumo abusivo ou malefício das
bém, numa segunda dinâmica, criá-los, incenti-
drogas não está na substância em si, no pharma-
vando associações conscientes ou inconscientes
con, mas na dosagem5; ou seja, como se dará
de ideias, valores para criar quereres e o desejo
a frequência, a quantidade, a forma, contextuali-
de adquirir tal e tal produto.
zando como ocorre o seu uso. Sem dúvida, essa
Vários autores têm aprofundado a percep- abordagem remete a intervenção educacional de
ção dessa nova estrutura social, baseando-se promoção à Redução de Danos, enquanto estra-
em Bauman4, como uma sociedade “líquida”, que tégia que inclui um conjunto de práticas e políti-
produz relações “líquidas”, onde as estruturas cas coletivas ou individuais, visando diminuir os
sociais e, inclusive individuais tradicionais, se fle- problemas ligados ao uso de drogas psicoativas
xibilizam rumo a uma pós-modernidade de carac- legais ou ilegais6.
terística fugaz, superficial e descartável. Assim,
É importante não confundir a ideia de mo-
bases sociais de família, relacionamentos afeti-
deração com a de temperança defendida por mo-
vos e sociais, o modo e o ritmo de vida, perderam
vimentos cristãos da sociedade civil americana
seu contorno, sendo passíveis de ser constituí-
do início do século, pautada nas quatro virtudes,
dos de qualquer maneira, a partir de uma noção
caracterizada pelo domínio de si e pela modera-
temporária, que, por vezes, tira do indivíduo as
ção dos desejos e que era contra o consumo de
bases de sua própria vida em sociedade.
bebidas álcoolicas, procurando aboli-las, o que
A partir dessa sugestão hedonista que as originou a “Lei Seca” nos Estados Unidos, que
drogas legais ou ilegais se inserem na vida das vigorou durante os anos 1920 a 19337. Esses
maiorias dos discursos sociais de classe mé- movimentos, ao contrário do sentido próprio da
dia, alegando o direito ao consumo, ao prazer palavra temperança, procuravam abolir os usos
e a uma experimentação “voluntária”, que, por e a substância psicotrópica em si, ideia que sa-
vezes, não condiz com escolhas reais, visto que bemos atualmente ser totalmente impossível,
tanto a propaganda, quanto a presença e as ca- devido a diversidade de drogas existentes, das
racterísticas do consumo dessas substãncias na diferentes culturas, dos diferentes usos, além do
sociedade estão constituídas. Entender este as- insucesso da estratégia americana de Guerra às
pecto é fundamental nos discursos educacionais Drogas promovida desde a década de 1980 em
que preparam/prepararão os indivíduos para o todo o mundo8.
A introdução dessa ideia na área de Educa- abordagem de drogas nos currículos de Ciências
ção, articula os chamados temas contemporâne- da Natureza do Ensino Fundamental II e do Ensi-
os e de promoção da cidadania na base curricu- no Médio, aponta para a educação sobre os pe-
lar, principalmente os com ênfase na promoção rigos sobre as drogas permitidas por lei, o fumo
da saúde. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases e o álcool, além da forma como agem as drogas
da Educação (LDB) de 19969, a temática das dro- psicoativas no corpo humano14, inclusive as ile-
gas, assim como a da violência e sexualidade, gais, o que inclui:
deveriam compor os antes denominados Temas “Reconhecer que estímulos externos,
Transversais10 da área de saúde no Ensino Funda- como abuso de drogas, automedicação e
mental, de abodagem transdiciplinar, com o obje- uso inadequado de hormônios, entre ou-
tivo de promover a prevenção de riscos e do uso tros, afetam o delicado equilíbrio entre o
indevido de drogas. Em 2017, essa lei foi altera- estado de saúde e o estado de doença”
da e retirada à explicitação do conteúdo sobre (p.64).
drogas , orientando genericamente e sem nenhu-
ma especificação a abordagem de “Conteúdos
A proposta de uma Educação para a moderação
relativos aos direitos humanos e à prevenção de
frente às drogas
todas as formas de violência contra a criança e o
adolescente”11. Aqui defende-se a costrução de uma pro-
posta de promoção de educação em moderação
Já a Base Nacional Comum Curricular de En-
e redução de danos com relação às drogas psi-
sino Médio, alterada em 2018, suprimiu a abor-
cotrópicas para crianças que seja significativa,
dagem das drogas12, apesar dessas bases se
ou seja, que respeite seu universo e fase de de-
colocarem como responsáveis por estimular os
senvolvimento e, obviamente que não recorra a
alunos a
estratégias de educação que incutam o medo15
“... a construção de projetos de vida envol-
e a repressão e inibam a estratégias que estimu-
ve reflexões/definições não só em termos
lem reflexão, tal como os discursos de “guerra
de vida afetiva, família, estudo e trabalho,
às drogas” utilizados para convencer e sem base
mas também de saúde, bem-estar, relação
científica, como os adotados pelo PROERD – Pro-
com o meio ambiente, espaços e tempos
grama Educacional de Resistência às Drogas e à
para lazer, práticas das culturas corporais,
Violência16.
práticas culturais, experiências estéticas,
Obviamente, com crianças pequenas, na fai-
participação social, atuação em âmbito lo-
xa de 5 a uns 9 anos, a abordagem direta sobre
cal e global etc.” (p.480).
as drogas ilegais não faz sentido, porque inclui
Nesse sentido, podería-se perfeitamente
uma temática que não necessariamente faz par-
incluir o tema das drogas, não só por estar re-
te de seu universo real, com exceção de crianças
lacionado à saúde e bem-estar, na relação com
inseridas em contexto de comunidades onde o
o meio e atualmente presentes em qualquer es-
tráfico de drogas é realizado por parentes ou co-
paço de lazer, o que estava explicitado na versão
nhecidos17. De qualquer jeito, deve-se considerar
anterior de 2017, como “prevenção ao uso e abu-
que a criança muito pequena não atenta para as-
so de drogas”13.
pectos proibitivos que sejam realizados com na-
No estado de São Paulo, a orientação para turalidade por adultos que lhe rodeiam, visto que
se encontra numa fase que é heterônoma, ou se- de 2020, o que motivou que essa agência emitis-
ja, se comporta e constrói compreensão pelo co- se uma nota técnica sobre o assunto22.
mando de mais velhos18. Dados de uso de medicamentos e aciden-
Por isso, outras formas abordagens podem tes com medicamentos em casa. Estudo reali-
contribuir para a construção de estratégias de zado em 2016 aponta que a prevalência de au-
Redução de Danos no consumo de drogas, que tomedicação no Brasil girava em torno de 16%,
se pautem na vivência de seu cotidiano que é, sendo maior principalmente feminina, principal-
fundamentalmente, familiar e escolar. Nesse sen- mente de analgésicos e relaxantes musculares,
tido outras experiências, como o contato com ou- sem necessidade de prescrição23. Esse hábito
tras substâncias e drogas se fazem presente, co- de consumo de medicação impacta significati-
mo os produtos químicos, os próprios alimentos vamente nos filhos dessas mulheres, já que es-
e as drogas legalizadas (álcool e cigarro). tudos realizados em 2013 mostraram que cerca
Já no final da infância e início da adoles- de 11% das pré-adolescentes e adolescentes os
cência, abordar drogas diretamente se faz fun- utilizavam regularmente24. Nesse sentido, inicia-
damental, visto que a caracteíristica dessa faixa tivas escolares de orientação sobre esses são
etária inclui a socialização e a tendência a alme- fundamentais, como sugerem algumas propostas
jar “comportamentos adultos”, de forma que ado- para a abordagem pela disciplina de Química25.
lescentes se sintam “promovidos” e distanciados Também a Organização Mundial de Saúde (OMS)
do rótulo de crianças e testem comportamentos tem dado destaque aos perigos do consumo de
socialmente existentes na sociedade adulta. medicamentos, salientando a automedicação co-
mo desnecessária em 50% dos casos, além do
Isso é importante e significativo do ponto
contato facilitado nos lares a esses produtos por
de vista da saúde, já que dados mostram que o
parte das crianças e adolescentes, publicando
contato (e até ingestão) de substâncias químicas
em 2017 um alerta mundial sobre o tema26.
domésticas, principalmente produtos de limpeza,
provoca recorrentes e significativamente proble- Estudos têm apontado o crescimento da
mas de saúde envolvendo crianças, da mesma obesidade no mundo e no Brasil; entre as crian-
forma que se observam dados de consumo de ças os fatores relacionados ao sobrepeso são, a
alimentos, como o açúcar19-20 - como comprovado menor escolaridade materna, a falta da percep-
potencial de droga psicotrópica, é extensamente ção materna sobre o problema do sobrepeso, má
consumido entre as famílias brasileiras, bem co- alimentação e sedentarismo da criança27. O alto
mo o uso de abusivo de medicamentos entre as consumo de açúcar, assim como os alimentos re-
famílias em comportamentos de automedicação, finados são apontados como os fatores alimenta-
além do próprio consumo de drogas legais, princi- res determinantes desde a infância, provocando
palmente bebidas alcóolicas. sobrepeso em cerca de 3,7% dos adolescentes
brasileiros28.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitá-
ria, vem recorrentemente apontando os perigos Dados de consumo familiar de álcool e ci-
que os produtos químicos de uso doméstico re- garro também afetam comportamentos de consu-
presentam nas famílias21, isso inclui obviamente mo infantil e adolescente29-30. Esses hábitos rea-
os acidentes e intoxicações infantis, que chega- firmam o consumo corriqueiro de álcool e tabaco
ram a 1.540 registros apenas de janeiro a abril observado entre este público, crescendo entre as
meninas24. Por fim, sabemos que o consumo de Resultados – a criação de um material educativo
drogas ilegais é feito por 3,2% dos brasileiros, que estimula comportamentos de moderação e
conforme pesquisa nacional realizada pela Fun- consciência de uso de substâncias e drogas
dação Oswaldo Cruz30. A adaptação do caderno de exercício “Te-
Todas essas questões que de forma ou ou- mas Transversais – Vida Nova” da Semina Edu-
tra rondam os temas de saúde, mostram-se co- cativa31, de 2001, para o Ensino Fundamental I,
mo fundamentais para a necessidade de se abor- buscando incluir, a partir de 2003, orientações
dar com as próprias crianças as necessidades de de pesquisa, prevenção e discussão para esti-
autocuidado e a valorização de comportamentos mular a construção da noção de moderação nas
preventivos, incluindo o destaque para as unida- crianças quanto às substâncias e drogas legais
des básicas de saúde tão presentes no cotidiano presentes em seu cotidiano, além do desenvolvi-
da maioria das crianças brasileiras, que as uti- mento de noções de autocuidado e prevenção em
lizam para vacinação, atenção ao próprio cuida- saúde, facilitando atitudes de redução de danos.
do e, também, de seus familiares, sobretudo as
mulheres. - Caderno do 1º ano do Ensino Fundamental
Desta forma, para as crianças, foi desen- I – Higiene e Limpeza:
volvida, em 2013, a proposta de adaptação do Para o novo caderno
caderno de exercício “Temas Transversais – Vi- “Vida Nova 1: saúde e cida-
da Nova”, desenvolvido pela Semina Educativa31, dania para o 1º Ano”32 foram
dividindo-o nos 5 anos escolares que compõem incluídos o tema higiene,
o Ensino Fundamental I, em que a idade média procurando atingir a refle-
das crianças vai de 5 a 10 anos, buscando in- xão sobre o uso cuidadoso
cluir orientações de pesquisa, prevenção e dis- e ponderado dos produtos
cussão para estimular a construção da noção de de limpeza; conforme as in-
moderação de consumo entre as crianças quan- tencionalidades explicitadas
to às substâncias químicas que as rodeiam e as na “Base Nacional Comum Curricular”33, que es-
drogas legais, facilitando atitudes de redução de timula a autonomia nas “práticas de cuidados
danos. Nesse sentido priorizou-se, a partir da pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se)...”
vivência observada das respectivas idades: pro- (p.39).
dutos de higiene íntima pessoal e da casa; pro-
Assim, esse caderno que aborda a higiene,
dutos alimentares, dando destaque ao consumo
tem como características, ser um material que
de açúcares; o contato das crianças com medi-
estimula a pesquisa sobre a higiene e limpe-
camentos de uso rotineiro das famílias brasilei-
za, iniciando por um questionamento do que as
ras; a abordagem do cuidado preventivo da saúde
crianças utilizam para a higiene pessoal. Nesse
e autocuidado, através de orientações sobre os
sentido, o intuito é que as crianças verifiquem os
serviços de saúde presentes nos diversos bairros
produtos de limpeza que têm contato no cotidia-
residenciais como unidades básicas de saúde; e,
no: sabone, shampoo, pasta de dente, alguns ci-
finalmente a abordagem do consumo de álcool e
tam fio dental, cotonete, escova de unha, etc.
cigarros observados socialmente e que se consti-
A partir dessa constatação comparada
tuem como drogas legais.
pelo educador, coletivamente, é sugerida uma
gar a discussão das drogas propriamente ditas. 8. Lemgruber J, Boiteux L. O fracasso da guerra às drogas.
In: Lima RS, Ratton JL, Azevedo RG. (orgs.). Crime, polícia e
Ao mesmo tempo que é possível desenvol-
justiça no Brasil. São Paulo: Contexto; 2014. pp. 357-362.
ver uma abordagem que respeite as percepções
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das diferentes fases e idades das crianças e que, Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília; 20 dez
por isso, tenha significado para as suas percep- 1996. (on line). [acesso em 24 abr 2020]. Disponível em:
ções e experiências, favorecendo exercícios apli- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.
cados em sua realidade; abandona-se os terrí- 10. Brasil. Ministério da Educação. Objetivos e conteúdos
veis discursos pseudopedagógicos que utilizam de saúde para terceiro e quarto ciclos objetivos. In Parâ-
do amedrontamento para expor as crianças a te- metros Curriculares Tradicionais. Brasília: MEC/SEF; 1998.
(on line). [Acesso em 24 abr 2020]. Disponível em: http://
mas que nem sempre lhes são significativos.
portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/saude.pdf. Acesso em
Com relação às drogas, o cotidiano é cheio 14 abr 2020. Pp.269-283.
delas; e enfatiza-se que na infância, para a maio- 11. LDB Lei de diretrizes e bases da educação nacional.
ria das crianças, o primeiro contato será com es- Edição atualizada até março de 2017. Brasília: Senado Fe-
sas substâncias do cotidiano e também com as deral; 2017. (on line). [acesso em 24 abr 2020]. Disponível
drogas legais. Por isso a ênfase em todas essas em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
são fundamentais para proporcionar atitudes pru- id/529732/lei_de_diretrizes_e_bases_1ed.pdf
dentes e preventivas e de autorregulação pesso- 12. Brasil. Ministério da Educação. A base nacional comum
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Trafficking information: the “Baladaboa” case and the processes of criminalizing Harm Reduction
Resumo Abstract
O presente artigo busca analisar caso concreto envolvendo estra- This article seeks to analyze a specific case involving a harm
tégia de redução de danos em pesquisa científica que redundou reduction strategy in scientific research that resulted in a police
na instauração de inquérito policial para apurar instigação ao uso investigation about instigation of drug use and apology for crime,
de drogas e apologia ao crime, a partir da perspectiva crítica em from a critical perspective in relation to the war on drugs and
relação à guerra às drogas e ao proibicionismo, cujo pilar central, o
prohibition, whose central pillar, absenteeism, non-use of drugs,
absenteísmo, o não uso de drogas, é desafiado pela amplitude do
is challenged by the breadth of the concept of harm reduction,
conceito de redução de danos, que abrange formas de incremento
which encompasses ways of increasing the quality of life of
na qualidade de vida de usuários de drogas que não querem ou não
conseguem deixar de usá-las. Transformar informação sobre drogas drug users who do not want or cannot stop using them. Turning
em ilícito representa uma afronta à liberdade de expressão e cien- information about drugs into illicit represents an affront to freedom
tífica, mas o direito penal das drogas e sua aplicação prática são of expression and science, but the criminal law of drugs and their
exemplos do uso distorcido e simbólico da lei penal para perseguir practical application are examples of the distorted and symbolic
objetivos alheios aos previstos em lei. use of criminal law to pursue goals outside the scope of the law.
Palavras-chave: Drogas; Redução de danos; Guerra às drogas; Proi- Keywords: Drugs; Harm reduction; War on drugs; Prohibitionism.
bicionismo.
Introdução
N
a década de 1990, na cidade de Santos, iniciativa indícios da prática do crime de estímulo
estado de São Paulo, um inovador progra- ao uso de drogas. Com a palavra Fábio Mesquita1:
ma de troca de seringas foi implementado
“A Redução de Danos como conceito
pela Área de Saúde do Governo Municipal, como
propriamente dito, começou a ser discuti-
forma de enfrentar a disseminação do vírus HIV
da no Brasil em 1989 quando na liderança
entre usuários de drogas injetáveis. O Ministé-
da Secretaria Municipal de Saúde de San-
rio Público determinou a instauração de inquéri-
tos o brilhante sanitarista Dr. David Capis-
to policial sob a alegação de que haveria nessa
trano da Costa Filho anunciou publicamen-
I
Cristiano Avila Maronna (cmaronna@msm.adv.br) é Graduado em Direito, te um projeto de distribuição de seringas
Mestre e Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e
Secretário Executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD). (que tive a honra de elaborar e coordenar
tomará a outra metade’ – sic), seria fechar Tentar buscar mensagens subliminares
os olhos ao óbvio (no caso, o consumo de para justificar a instauração de inquérito poli-
droga, mesmo que fracionado) e desprezar cial não se afigura razoável. As informações vei-
o bom sendo – rectius bom senso” (negrito culadas através dos flyers são bastante diretas
do autor). e claras, baseadas em informações científicas
A oração “tome metade da dose planeja- e no bom senso. Não há nas mensagens qual-
da de ecstasy, aguarde os efeitos e então decida quer incitação ao uso de drogas, nem mesmo
se tomará a outra metade”, seguida da expres- subliminarmente.
são latina sic, abreviatura de sic et simpliciter, é Nesse sentido, sugerir a quem usou ecs-
usada, como se sabe, para evidenciar que o uso tasy e se sente mal que procure auxílio médico
incorreto ou incomum de pontuação, ortografia
e conte que substância utilizou, não representa
ou forma de escrita presente em uma citação,
qualquer incentivo ao uso. O correto sentido con-
provém do autor original da mesma.
tido nessa orientação, ao se afirmar que “você
Ocorre, porém, que não há nos flyers a
não pode ser criminalizado por utilizar drogas ile-
frase posta entre aspas pela autoridade policial
gais”9, é o de que o uso pretérito de substância
(“tome metade da dose planejada de ecstasy,
ilegal não pode ser objeto de incriminação.
aguarde os efeitos e então decida se tomará a
outra metade”), mas sim a frase “uma forma de Dentro do contexto do trabalho desenvol-
diminuir os riscos do consumo de ecstasy é tomar vido, a frase “portar drogas é crime, relatar seu
metade da dose planejada aguardar os efeitos consumo não é”, inscrita em um dos flyers9, com-
(pode demorar até 1h) e então decidir se tomará plementa a informação acima referida. Trata-se
a outra metade”9. A diferença faz toda a diferen- de medida que estimula o usuário a buscar ajuda
ça: o flyer não emprega o modo verbal imperativo, ao invés de sofrer sozinho e eventualmente ser
mas tão somente explicita o óbvio, sem estimular vítima de dano irreparável – como a morte, por
ou encorajar o uso de drogas ilegais: consumir exemplo – por não ter procurado socorro a tempo.
metade da dose planejada e posteriormente de-
Afinal, a lei penal não pune o uso de dro-
cidir se tomará a outra metade diminui os riscos
gas, mas tão somente as condutas de adquirir,
decorrentes do consumo de ecstasy.
guardar, ter em depósito, transportar ou trazer
Igualmente, não há nos flyers “orienta-
consigo, a teor do que dispõe o artigo 28 da Lei
ção de jovens em como utilizar o entorpecente
nº 11.343 de 200611.
ecstasy”, nem tampouco ensinamento acerca da
“forma ‘correta’ de se consumir droga tão vio- Sob a égide da lei anterior (Lei nº 6.368
lenta como o ecstasy”, menos ainda sugestões de 197612), o cenário era exatamente o mesmo,
de “cautelas para comprá-la de um traficante de vale dizer, o uso de drogas não era considerado
confiança”10. Tudo isso só existe na mente de uma conduta típica. Confira-se:
quem ignora o texto dos flyers e se permite lu- “Não pune a lei, in casu, o uso de
cubrar a partir de suposições sem qualquer su-
substância entorpecente, mas o trazê-lo
porte fático e ainda valendo-se do preconceito e
consigo para tal fim” (Apelação Criminal
do fanatismo ideológico próprio da fracassada e
13.909/94 do Tribunal de Justiça do Dis-
maniqueísta war on drugsII.
trito Federal, relatado por Pingret de Car-
valho, em 1994, p.13.427)13 (negrito do
II
Em tradução: guerra às drogas. autor).
Da mesma forma, o uso pretérito (era e ain- há três votos favoráveis à declaração de incons-
da) é conduta atípica: titucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343 de
“A lei não pune o agente por haver 2006III.
feito uso de entorpecente, mas sim pela Ora, por mais contorcionismo intelectual
posse do mesmo, exigindo sua apreensão” que se tente fazer, é evidente a intenção de infor-
(Ação Cautelar 200.837-3, do Tribunal de mar com vistas a reduzir danos. O estímulo que
Justiça de São Paulo, relatado por Gomes se busca é no sentido de orientar quem se sente
de Amorim)14-15. mal em razão do consumo de ecstasy a procurar
“Não se pune, por não se enqua- ajuda sem receio de sofrer qualquer retaliação.
drar no tipo legal, o indivíduo sob os efeitos Não se pretende incentivar o uso de dro-
de tóxicos, mesmo quando pelos resíduos gas, mas sim salvar vidas!
se possa afiançar a utilização pretérita. Nem mesmo em relação “à primeira expe-
(...) Mas o sistema de combate aos riência” com ecstasy é possível vislumbrar incen-
tóxicos teve perspectivação muito espe- tivo ao consumo na frase9:
cífica quanto aos utentes; não se dirigiu “Uma forma de diminuir os riscos do con-
preferentemente a eles; mas, apenando sumo do ecstasy é tomar metade da dose plane-
o porte e a guarda, teve em mente, como jada, aguardar os efeitos (pode demorar até 1h) e
idéia principal, a disseminação, direta ou então decidir se tomará a outra metade”.
indiretamente. Não o uso, especialmente;
Não se quer atestar que os riscos do ecs-
principalmente quando já exaurido” (Ape-
tasy são minimizados se for consumida apenas
lação Criminal 53.006-3 do Tribunal de
metade da dose planejada, mas sim que os ris-
São Paulo, relatado por Ary Belfort)16-17
cos são reduzidos, o que é óbvio ululante!
(negrito do autor).
Informar a respeito dos efeitos das dro-
Ainda que assim não fosse, há respeitá-
gas não se confunde com incitar a prática de cri-
veis vozes que defendem a idéia de que a nova
me, nem com a instigação ou induzimento ao uso
lei de drogas, ao deixar de sancionar com pena
de drogas ilegais. Não há na ordem jurídica vigen-
privativa de liberdade o porte de drogas para con-
te o crime de “traficar” informação!
sumo pessoal, deixou de considerar criminosa tal
Observe-se que não há qualquer restrição
conduta.
ou exigência prévia relacionada à realização de
Luiz Flávio Gomes sustenta que a “Lei
pesquisa científica. A Constituição da República21
11.343 de 2006 (artigo 28) aboliu o caráter ‘cri-
é expressa ao garantir a liberdade de pesquisa
minoso’ da posse de drogas para consumo pes-
científica, assegurando que “é livre a expressão
soal. Esse fato deixou de ser legalmente conside-
da atividade intelectual (...) e científica (...), inde-
rado ‘crime’”18.
pendentemente de censura ou licença” (art. 5º,
Tramita no Supremo Tribunal Federal inciso IX).
(STF), desde 2011, o Recurso Extraordinário
A distribuição de flyers com informações
635.65919, no qual se discute a legitimidade da
sobre Redução de Danos decorrentes do uso de
intervenção penal em relação a posse de peque-
na quantidade de drogas para uso pessoal. O III
Sobre o tema, ver “Apontamentos a respeito do debate sobre a descrimina-
julgamento está suspenso desde 2015, mas já lização da posse de drogas para uso pessoal no Brasil”20.
Ao fim e ao cabo, ontem como hoje, a Re- 7. Capriglione L. Cientistas tentam manter estudo sobre
ecstasy. Folha de S. Paulo; 2 jul 2007. (on line). [acesso
dução de Danos transita em um território nebulo-
em: 16 dez 2020]. Disponível em: https://forum.hardmob.
so, na fronteira entre o legal e o ilegal e não raro
com.br/threads/307645-Cientistas-tentam-manter-estudo-
termina no banco dos réus, graças ao abuso de -sobre-ecstasy
poder que caracteriza a aplicação prática do direi- 8. FAPESP. Implantacao e avaliacao de programa de re-
to penal das drogas no Brasil. ducao de danos para o uso de ecstasy na cidade de sao
Sendo a proibição das drogas pela via pe- paulo. Bv-CDI FAPESP. (on line). [acesso em: 16 dez 2020].
nal uma espécie de ortopedia moral, um empre- Disponível em: https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/22076/im-
plantacao-e-avaliacao-de-programa-de-reducao-de-danos-
endimento que visa educar moralmente pessoas
-para-o-uso-de-ecstasy-na-cidade-de-sao-paulo/
adultas, não surpreende que, nesse contexto au-
9. Harnik S. Flyer polêmico ensina estudantes como redu-
toritário, a redução de danos seja perseguida e
zir efeito do ecstasy. G1, 16 jun 2007. (on line). [acesso
indevidamente identificada com práticas ilícitas. em: 16 dez 2020]. Disponível em: http://g1.globo.com/No-
ticias/Vestibular/0,,MUL53019-5604,00-FLYER+POLEMIC
O+ENSINA+ESTUDANTES+COMO+REDUZIR+EFEITO+DO+E portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProces-
CSTASY.html so.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&c
10. Inquérito Policial nº 10/08, 1ª Delegacia - Núcleo de lasseProcesso=RE&numeroTema=506
Apoio e Proteção à Escola do DENARC.
20. Maronna CA. Apontamentos a respeito do debate sobre
11. Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.343. Institui
a descriminalização da posse de drogas para uso pessoal
o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SIS-
no Brasi. In. Figueiredo R, Feffermann M, Adorno R. Dro-
NAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido,
gas & sociedade contemporânea: perspectivas para além
atenção e reinserção social de usuários e dependentes de
drogas; estabelece normas para repressão à produção não do proibicionismo. São Paulo: Instituto de Saúde; 2017, pp.
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são ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entor- 22. São Paulo. (estado). Justiça. Habeas Corpus nº
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Informações básicas e instruções aos autores disponibilizado o endereço eletrônico para contato (e-mail).
Título: deve ser escrito em Times New Roman, corpo 12, Avaliação: os trabalhos são avaliados pelos editores cientí-
em negrito e caixa Ab, ou seja, com letras maiúsculas e ficos, por editores convidados e pareceristas ad hoc, a cada
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