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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Sumário

Editorial ................................................................................................................................ 03

Homenagem a Elisaldo Carlini................................................................................................. 05

Instituições participantes desta luta....................................................................................... 06

Redução de Danos
Fabio Mesquita....................................................................................................................... 10

Ativismo de Redução de Danos em Políticas Internacionais


Vera Da Ros............................................................................................................................ 18

Conceito de Redução de Danos em Políticas Públicas Relacionadas a Drogas


Maurides de Melo Ribeiro, Antonio Carlos Bellini Júnior.............................................................. 32

A Utopia da Percepção: cultura e danos como o projeto de redução no mundo contemporâneo


Rubens de Camargo Ferreira Adorno......................................................................................... 40

Trajetórias e Movimentos do Coletivo Intercambiantes Brasil no Campo da Saúde Mental, Álcool e


outras Drogas
Antonio Nery Filho, Eroy Aparecida da Silva, Patrícia Maia von Flach............................................ 50

Redução de Danos no PROAD: trinta anos de experiência institucional


Maria Alice Pollo-Araujo, Dartiu Xavier da Silveira....................................................................... 67

Psicanálise e Redução de Danos: autonomia e mútua potencialização


Celi Cavallari, Diva Reale......................................................................................................... 73

Centro de Convivência “É de Lei” e a Redução de Danos: 22 anos do “baque ao crack”


Andrea Domanico, Cristina Maria Brites, Maria Angélica de Castro Comis ................................... 82

As Três Ondas da Redução de Danos no Brasil


Dênis Petuco.......................................................................................................................... 94

Redução de Danos e o Trabalho de Campo - o encontro necessário


Domiciano Siqueira, Álvaro Mendes........................................................................................ 104

Aproximações entre a Terapia Comunitária Integrativa com a Redução de Danos


Eroy Aparecida da Silva, Regina Tuon...................................................................................... 110

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

As Diferenças entre Queixa e demanda no Trabalho de Redução de Danos: possibilidades para uma
escuta clínica em espaços heterogêneos
Rodrigo Alencar..................................................................................................................... 124

Rodas de Redução de Danos “RD: Cadê você?”


Luciane Raupp, Marta Conte.................................................................................................. 131

Cânabis como Terapia


Renato Filev.......................................................................................................................... 142

Possibilidades na Atenção em Álcool e Drogas: levantamento e proposta da Linha de Cuidado para


Regina Figueiredo, Sandra Mara Garcia, Wilson Souza, Jan Billand, Maria Altenfelder Santos,
Mariana Arantes Nasser ....................................................................................................... 159

Redução de Danos e Educação


Marcelo Sodelli..................................................................................................................... 175

Educação para a Moderação: Redução de Danos na abordagem educacional de crianças sobre


produtos químicos e drogas
Regina Figueiredo, Maria Luísa Eluf........................................................................................ 182

Traficando informação: o caso “Baladaboa” e os processos de criminalização da Redução de


Danos
Cristiano Avila Maronna......................................................................................................... 192

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Editorial

N
este momento inacreditável pelo qual bem como para o combate ao preconceito e
passa a Saúde em nosso país, frente ao aos discursos sem fundamentação científica.
desmonte das conquistas sociais e da Como estratégia de políticas públicas,
a Redução de Danos promoveu alternativas à
promoção de um Estado de Bem-Estar Social
“guerra contra as drogas”, diante da ineficácia,
advindas da Constituição Federal de 1988 e da
inviabilidade prática e de suas consequências
criação do Sistema Único de Saúde (SUS), não nefastas e segregativas sobre a população de
poderíamos deixar de comemorar os 30 anos usuários de álcool e drogas. Como estratégia
da Redução de Danos no Brasil. internacional, abriu caminhos para a crítica aos
antigos pactos e para a proposição de novas
A Redução de Danos como estratégia possibilidades para intervir tanto na Saúde, co-
de abordagem sobre a prevenção e o uso de mo nas legislações sobre essas substâncias,
drogas provocou uma “revolução” na compre- revendo regulamentações tanto sobre o uso,
ensão, na interlocução e no tratamento de usu- como, em alguns casos, sobre a própria ven-
ários de substâncias psicoativas, ao trazer não da ou classificação de drogas consideradas
apenas um olhar científico para a questão, mas ilegais.
também singular, humanista e de consideração
com os Direitos Humanos dessas pessoas. Por isso o Instituto de Saúde, juntamen-
te com a Rede Brasileira de Redução de Danos
Como estratégia de Saúde, trouxe a e Direitos Humanos (REDUC) prepararam esta
compreensão de que o usuário é uma pessoa publicação, procurando dar a visibilidade a uma
que tem direitos, que precisa ser respeitada, parte da história da Redução de Danos, ao re-
ouvida e que pode receber tratamento indepen- latar como se deu a sua adoção e utilização in-
dentemente da forma que faz ou não uso de ternacional e no Brasil, as conquistas fruto da
álcool e outras drogas, pois a relação com as luta de muitos profissionais e organizações que
substâncias psicoativas requer elaboração do a propuseram e defenderam, além de trazer
vínculo estabelecido entre a pessoa, a subs- exemplos sobre as experiências de implemen-
tância e a cultura onde o uso ocorre. Como es- tação nas áreas de Direito, Saúde, Educação
tratégia de educação, trouxe a reflexão à ideia e na abordagem social sobre o uso de drogas
irreal de abstinência de drogas, considerando lícitas e ilícitas. Desse modo, faz-se porta voz
não só o uso de drogas legais e ilegais, mas das várias personalidades que assinam os ar-
também de drogas “invisíveis” que fazem par- tigos, traz modelos implementados internacio-
te do cotidiano da sociedade ocidental, como o nal, nacional e localmente, relata a luta pela
consumo de açúcar e de café, entre outras. Co- implementação e pela manutenção da Redução
mo estratégia discursiva, abriu o caminho para de Danos no Brasil, demonstra sua eficácia, im-
a revisão de valores culturais, éticos e morais, portância e alcance na promoção da saúde e

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cidadania do usuário e da sociedade. usuários de drogas no município de São Paulo.

Fabio Mesquita, como precursor da ini- Na sequência, Dênis Petuco configura


ciativa brasileira, relata a sua experiência com as três ondas da Redução de Danos no Brasil;
a Redução de Danos, como gestor e profissio- Eroy Aparecida da Silva e Regina Tuon trazem
nal de saúde, desde a experiência da cidade aproximações entre a Terapia Comunitária Inte-
de Santos; Vera Da Ros faz referência nacio- grativa e a Redução de Danos; Rodrigo Alencar
nal e internacional dessa política; Maurides de a Redução de Danos para a escuta clínica; Lu-
Melo Ribeiro e Antonio Carlos Bellini Júnior fa- ciane Raupp e Marta Conte relatam a experiên-
zem uma análise dos impactos das legislações cia das Rodas de Conversa “RD cadê você?”,
proibicionistas e da guerra às drogas; Rubens implementadas em Porto Alegre; Renato Filev
Adorno destaca a participação da cultura e da apresenta o uso da cânabis como alternativa
Redução de Danos como projeto para o mundo terapêutica para vários males; Marina Nasser,
contemporâneo; Antonio Nery Filho, Eroy Apare- Sandra Mara Garcia, Wilson Souza e Regina
cida da Silva e Patrícia Maia von Flach abordam Figueiredo expõem os resultados do levanta-
os percursos do Coletivo Intercambiantes Bra- mento sobre serviços de saúde que atuam com
sil no campo da Saúde Mental, de álcool e ou- drogas no estado de São Paulo, realizado para
tras drogas, encontro de profissionais, que des- a construção da Linha de Cuidado da Saúde
de o início, construíram a Redução de Danos. Integral dos Adolescentes e Jovens para o SUS
do Estado de São Paulo, indicando as orienta-
Um pouco da história da Redução de ções da linha construida junto à Secretaria de
Danos em São Paulo, inicia-se com a experiên- Estado da Saúde de São Paulo relativas ao te-
cia do PROAD, relatada por Maria Alice Pollo- ma álcool e drogas; Marcelo Sodelli discute a
-Araujo e Dartiu Xavier da Silveira; Celi Cavallari implementação do modelo de Redução de Da-
e Diva Reale apresentam um encontro potente nos na área de Educação; e Regina Figueiredo
entre Psicanálise e Redução de Danos desde e Luísa Eluf propõem a estratégia de educa-
os anos 1990. Nesse texto, também é feita a ção para a moderação, enquanto Redução de
referência à APTA- Associação de Prevenção e Danos para a abordagem de drogas, incluindo
Tratamento da Aids, que foi a primeira organi- substâncias químicas, alimentos e drogas le-
zação da sociedade civil a aceitar realizar um gais com crianças e pré-adolescente na cons-
projeto de Redução de Danos com usuários de trução de um material educativo para o Ensino
drogas injetáveis na cidade de São Paulo e que Fundamental.
incluiu Redução de Danos na maior parte de
Assim, de uma forma abrangente e com
seus projetos: “Caminhoneiros”, “Barong, “Rua
a colaboração desses vários especialistas, tra-
Paim” (com profissionais do sexo), “Educação
zemos ao público a base para toda essa refle-
Preventiva”, incluindo cursos de formação e a
xão, a proposta de resistência contra iniciati-
criação do EDUCAIDS - Encontro Nacional de
vas que tentem retroceder as nossas conquis-
Educadores para a Prevenção de DST/Aids e
tas na área e o convite de comemorar conosco
Drogas, que marcou história com várias edi-
os 30 anos da Redução de Danos no Brasil!
ções; Andrea Donanico, Cristina Maria Brites
e Maria Angélica Comis relatam a implementa-
ção e as experiências do Centro de Convivên- Celi Cavallari
cia É de Lei”, primeiro Centro de Convivência
Regina Fiigueiredo
para usuários de drogas do Brasil a atuar com

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Homenagem a Elisaldo Carlini


Tribute to Elisaldo Carlini

C
om toda honra, homenageamos o grande O professor Carlini sempre foi vanguar-
mestre Prof. Dr Elisaldo Carlini, um dos da: foi fundador da Associação Multidisciplinar
precussores da abordagem científica da de Estudos sobre Drogas (ABRAMD), publicou
Redução de Danos em pesquisas, discussões boletins sobre atualizações na área para difun-
acadêmicas e políticas de drogas e de saúde. dir o conhecimento para além da universidade,
realizou vários seminários sobre cannabis me-
Carlini, com sua atuação como profes-
dicinal e lutou por anos para a retirada da Can-
sor emérito da Escola Paulista de Medicina da
nabis da Lista IV de drogas pesadas, da Organi-
Universidade Federal de São Paulo (EPM/UNI-
zação das Nações Unidas (ONU).
FESP), fundou o Centro Brasileiro de Informa-
ções sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), for- Muitas de suas lutas foram bem sucedi-
mou diversos alunos com a especialidade de das, conseguiu que a Agência Nacional de Vigi-
estudo e tratamento dessas substâncias, tanto lância Sanitária (ANVISA) e os conselhos profis-
quanto ao uso de álcool e outras drogas pela sionais ouvissem as mães que precisavam de
população brasileira, quanto na abordagem dos cannabis para tratar convulsões persistentes
usos abusivos. de seus filhos e presenciou a vitória da lega-
lização terapêutica desta. Porém, quando em
Além de ser o pioneiro no estudo da câ-
12 de dezembro de 2020, a ONU aprovou a re-
nabis e outros psicotrópicos no Brasil e profes-
tirada da cannabis da Lista IV, Carlini já havia
sor por mais de 70 anos, também foi o precur-
nos deixado, em setembro de 2020. Contudo, a
sor em Psicofarmacologia do uso terapêutico
luta continua, assim como seu legado por uma
da maconha, auxiliando no tratamento de milha-
política de drogas multidisciplinar, mais inclusi-
res de pessoas em todo o mundo. Combaten-
va, antimanicomial e antiproibicionista.
do o preconceito e introduzindo várias formas
de estudos das drogas, foi um grande defensor Gratidão por tudo, professor!
da Redução de Danos no país e internacional-
Instituto de Saúde (IS/SES-SP)
mente, sendo membro do Expert Advisory Pa-
nel on Drug Dependence and Alcohol Problems Rede Brasileira de Redução de Danos (REDUC)
da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do
Conselho Econômico Social das Nações Unidas
(ECOSOC/ONU).

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Instituições participantes desta luta


Institutions participating in this struggle

- Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC)


Fundada em 1998, é uma rede de pessoas e organizações que visa discutir,
planejar, elaborar, articular e apoiar ações científicas e sociais, assim como
fortalecer as políticas públicas que favoreçam assuntos relacionados à Re-
dução de Danos.
https://idpc.net/pt/profile/reduc

- Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA)


Fundada em 1997, é uma associação que busca destacar a importância
de redutoras e redutores de danos, defendendo a melhoria de suas condi-
ções de vida e trabalho, e contribuindo para sua organização e capacitação
técnica.
http://abordabrasil.blogspot.com/

- Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas


(ABRAMD)
Fundada em 2005, é uma associação nacional multidisciplinar de estudos
na área de drogas, promovendo um fórum coletivo e científico de debates e
reflexão sobre drogas.
https://www.abramd.org/

- Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas


da Universidade Federal de São Paulo (CEBRID/UNIFESP)
Fundado como centro universitário em 1978, atualmente funciona como uma
entidade sem fins lucrativos ligada à universidade que organiza pesquisas e
reuniões científicas sobre drogas, reúne uma bibliografia científica e publica
livros e levantamentos sobre o consumo dessas substâncias em diversas
populações, como estudantes, meninos de rua, etc.
https://www.cebrid.com.br/

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- Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes


da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo
(PROAD/EPM/UNIFESP)
Fundado em 1987, é um serviço universitário destinado
a dependentes de substâncias ilícitas e lícitas e de dependências não
químicas, como compulsão por jogos, sexo, compras, internet e esportes,
que atua não apenas com o objetivo de eliminação dos sintomas,
mas se preocupa com a totalidade e a singularidade desses indivíduos.
http://www.proad.unifesp.br/apresenta.htm

- Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD)


Fundada em 2015, é uma rede nacional que busca debater
e promover políticas de drogas fundamentadas na garantia
dos Direitos Humanos e em evidências científicas, na Redução dos Danos
produzidos pelo uso problemático de drogas e pela violência associada à
ilegalidade de sua circulação, bem como na promoção da educação e da
Saúde Pública.
https://pbpd.org.br/

- Centro de Convivência “É de Lei”


Fundada em 1998 a partir de ações de Redução de Danos nas
ruas do município de São Paulo, é uma organização que atua na promo-
ção da redução de riscos e danos sociais e à saúde, associados ao uso
de drogas, ampliando a possibilidade de escolha das pessoas e descons-
truindo preconceitos, incentivando uma cultura garantidora de direitos e
diferenças e disseminando referências e práticas de cuidados e estraté-
gias a partir da atuação junto às pessoas que usam drogas, às que tra-
balham na rede intersetorial, à academia e à gestão pública, visando inci-
dência política que transforme a lógica da guerra às pessoas.
https://edelei.org/

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- Barato no Divã
É um grupo de especialistas que desde 2010 oferece formações
para profissionais de saúde em Clínica Psiquiátrica e Psicanalítica volta-
das para pessoas com problemas associados ao uso de álcool e outras-
drogas, visando motivar práticas que promovam os Direitos Humanos, a
autonomia dos pacientes tratados e que estimulem seus potenciais e que
considerem o contexto micro e macrossocial na construção do projeto te-
rapêutico. Inclui conhecimentos socioeducativos, de educação inclusiva,
justiça restaurativa, práticas grupais e associativas de caráter afirmativo,
grupos de autoajuda, movimentos sociais de defesa dos direitos dos usu-
ários de drogas e de Redução de Danos e questionamento sobre os mo-
delos legislativos que discriminam e punem os usuários.
https://www.obaratonodiva.com.br/

- Coletivo Intercambiantes Brasil


É coletivo que articula sujeitos com a determinação de fomentar e
defender políticas, intervenções e cuidados, no campo de álcool e outras
drogas, apoiados nos princípios gerais da Ética, da Bioética e dos Direitos
Humanos, orientando ações nas diretrizes da Reforma Psiquiátrica e Lu-
ta Antimanicomial; da Redução de Danos, do antiproibicionismo e fim da
“guerra às drogas”; da defesa da diversidade da vida e modos de existir;
e da defesa dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)
e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
https://www.facebook.com/intercambiantes/

- Coletivo Intercambiantes São Paulo


É o núcleo do Coletivo Intercambiantes que se articula
na região do estado de São Paulo, atuando no campo de questões asso-
ciadas ao álcool e outras drogas, apoiados nos princípios gerais da Ética,
da Bioética e dos Direitos Humanos, orientando suas ações nas diretrizes
da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial; da Redução de Danos,
do antiproibicionismo e fim da “guerra às drogas”;
https://www.facebook.com/Intercambiantessp/

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- Laboratório de Estudos de Política e Criminologia (PolCrim)


do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP)
Fundado em 2018, é um laboratório de estudos que tem
por objetivo ser um espaço de produção de conhecimento na interface
entre a Ciência Política, a Sociologia do Direito e as Ciências, buscando
estimular debates e o desenvolvimento de projetos de pesquisa sobre
políticas criminais, processos de criminalização, criminologias, sociologia
da justiça criminal, sociologia da punição, acesso a direitos e à justiça,
administração de conflitos e reformas judiciais.
https://polcrim.wordpress.com/

- Núcleo de Psicologia e Vulnerabilidade do Departamento


de Métodos e Técnicas do Curso de Psicologia da Pontifícia
Univesidade Católica de São Paulo
É um núcleo universitário que focaliza as questões relativas à de-
pendência de substâncias psicoativas no cenário atual, em que as drogas
lícitas e ilícitas ocupam espaço nas ações de saúde pública e na comuni-
dade em geral, bastante veiculadas pela mídia, atingindo esferas governa-
mentais e não governamentais e a sociedade civil. Os programas preten-
dem refletir sobre o cenário contemporâneo, os problemas atuais
relativos às dependências no geral e a situação de uso abusivo de
drogas.
https://www.pucsp.br/graduacao/psicologia

- Laboratório de Análise Espacial de Dados Epidemiológicos


da Universidade Estadual de Campinas (epiGeo/UNICAMP)
É uma estrutura universitária que, desde 2004, congrega alunos
de graduação, pós-graduação, pós-doutorado, docentes e pesquisadores
no ensino, aplicação e estudo de métodos de análise espacial de dados
em epidemiologia, por meio da oferta de cursos de geoprocessamento e
análise de dados espaciais, bem como pelo desenvolvimento de projetos
de pesquisa onde a espacialização do risco é a questão principal da in-
vestigação. Desde 2015, coleta e analisa dados sobre violência e morte
na cidade de Campinas.
https://brasilcampinas.com.br/tag/
laboratorio-de-analise-espacial-de-dados-epidemiologicos-da-unicamp

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Redução de Danos

Harm Reduction

Fábio MesquitaI

Resumo Abstract

A política de guerra contra as drogas tem se mostrado completa- The war on drugs has been shown to be completely unable to contain
mente incapaz de conter o consumo e as consequências sociais e the consumption and the social and health consequences of the
de saúde do consumo de drogas. Dentre as opções que vem toman- use of drugs. Among the options that has taken shape and gaining
do corpo e ganhando cada vez mais espaço, está a Política Pública more and more space, is the Public Health driven Harm Reduction.
de Redução de Danos. Este artigo mostra a história de sucesso des- This paper shows the success story of the Harm Reduction Policy
ta política de Redução de Danos no Brasil e no mundo, não apenas in Brazil and in the world, not only from the perspective of the
sob a perspectiva do controle do HIV/aids, mas também como uma HIV/AIDS control, but mainly as a humanitarian and tolerant public
política pública humanitária e tolerante, que aceita a diversidade da policy that accepts the diversity of the humanity.
humanidade.
Keywords: Harm Reduction in the world; War on drugs; Health; Law
Palavras-chave: Redução de danos no mundo; Guerra às drogas; enforcement.
Saúde; Aplicação da lei.

Introdução

N
o dia 26 de novembro de 2019, a Câmara No mesmo ano de 1989, Telma de Souza
Municipal de Santos, por iniciativa da en- estava em seu primeiro ano de mandato como
tão Vereadora Telma de Souza, conduziu prefeita do “Governo Democrático e Popular”II da
uma sessão de celebração dos 30 anos de Redu- Cidade de Santos e tinha um sanitarista bastante
ção de Danos no Brasil. A celebração rememora- conhecido na história da construção do Sistema
va o lançamento público da proposta de troca de Único de Saúde (SUS) no Brasil, o médico David
seringas para pessoas que injetavam drogas na Capistrano da Costa Filho, como Secretário Muni-
cidade, feito durante o I Seminário Santista sobre cipal de Saúde; e como coordenador do Programa
Aids, em dezembro de 1989 . 1
Municipal da Luta Contra a Aids desta cidade, o
autor deste artigo.
I
Fábio Mesquita (mesquitaberkeley@hotmail.com) é médico pela Universida-
de Estadual de Londrina (UEL), Doutor em Saúde Publica pela Faculdade de Naquele ano, Santos foi um dos mu-
Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), Membro do Corpo
Técnico da Organização Mundial de Saúde (OMS) em Myanmar, como Líder nicípios pioneiros no Brasil em estabelecer
do Time de HIV e Hepatites Virais e é Membro Honorário Permanente e Fun-
dados International Harm Reduction Association (em português, Associação
Internacional de Redução de Danos). II
Representado pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

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programas municipais de aids e se destacou por • a pior das consequências, foi a postergação
medidas ousadas que incluíam: a distribuição de da implementação da estratégia na Cidade de
preservativos em toda a rede municipal do SUS, Santos por alguns anos – posteriormente imple-
em ser a primeira cidade a adquirir, com recursos mentada pela organização não governamental
próprios, medicamentos antirretrovirais e, tam- (ONG) Instituto de Estudos e Pesquisas em Aids
bém, a primeira cidade a propor uma estratégia de Santos (IEPAS);
de Redução de Danos para conter o avanço da • como consequência positiva, o episódio “abriu
epidemia de HIV entre usuários de cocaína injetá- a porta” para um amplo debate nacional sobre do
vel, que eram, à ocasião, associados a 50% dos tema, que gerou, dentre outras consequências, a
casos de aids da cidade2. discussão e aprovação da Lei no 9.758, do então
Fomos na época, duramente atacados pe- deputado estadual por São Paulo, Paulo Teixeira
lo Ministério Público de São Paulo, que utilizou (do Partido dos Trabalhadores), e a sua promulga-
a Lei no 6.388 de 1976 (vigente à época) para ção, pelo então governador Mario Covas (do Par-
julgar a iniciativa, pressupondo que, ao distribuir- tido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no
mos seringas para conter a epidemia de aids, es- dia da abertura da Conferência Internacional de
taríamos auxiliando e incentivando as pessoas a Redução de Danos em São PauloV,4.
utilizar drogas ilegais (o texto da Lei dizia: “induz, • também facilitou para que a Bahia, gover-
instiga ou auxilia alguém a usar entorpecentes”) nada, então, por Antônio Carlos Magalhães, em
e, portanto, nos enquadrou no crime de tráfico de 1994, sob o comando do médico e grande ativis-
drogas, com possíveis penas de 3 a 15 anos de ta de Redução de Danos, Tarcísio Andrade, imple-
prisão3. mentasse de fato o primeiro programa de troca
Nossa defesa, foi feita formal e volunta- de seringas no Brasil no Centro de Estudos e
riamente por um advogado criminal especializado Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Fe-
no temaIII e contou com outros apoios importan- deral da Bahia (CETAD/UFBA)5. Embora não for-
tes no Parlamento, na mídia e também no Conse- malmente legal, o Programa foi tolerado e seguiu
lho Regional de Medicina de São Paulo (CRM-SP). com extremo sucesso.
O CRM-SP, por exemplo, entendeu que, • mas, certamente, a mais importante de to-
em nosso juramento de médicosÎV, confirmava o das as consequências, foi que a iniciativa abriu
dever de fazermos tudo o que a evidência cientí- o debate sobre as estratégias de como melhor
fica demonstrasse importante para prevenir epi- lidar com o problema da dependência de drogas
demias e disseminações de doenças, e isto niti- de outra forma que não fosse a repressão e/ou
damente incluía distribuir seringas para pessoas a abstinência, como únicas opções6. Reduzir os
que injetavam drogas para evitar o seu compar- danos era uma proposta mais objetiva e prag-
tilhamento, causa da transmissão do HIV e de mática, visto que considerando ser o comércio
várias outras doenças transmitidas pelo sangue. ilícito de drogas o terceiro maior produtor de ri-
Este episódio, teve uma série de conse- quezas no planeta, não havia como se iludir de
quências, algumas negativas e outras positivas: que ele acabaria com políticas públicas toscas e
Alberto Toron, ex-presidente do então Conselho Estadual de Entorpecentes
III

do Estado de São Paulo.


IV
No caso, meu juramento e do David Capistrano. V
Única da história,realizada no Brasil, e que tive a honra de presidir,

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fracassadas, como a “guerra contra as drogas”. Redução de Danos no Brasil


A política proibicionista começou no início Depois do “pontapé inicial” do lançamen-
século passado e foi ganhando grande dimen- to da Redução de Danos no campo de controle
são com o passar dos anos. Mas, sem dúvida, do HIV e hepatite C como política pública da Ci-
o marco histórico mais importante foi quando os dade de Santos, em 1989, e do sucesso das es-
Estados Unidos da América (até hoje o maior con- tratégias adotadas pelo CETAD/UFBA e da lei do
sumidor de drogas ilícitas do mundo) decretou a Deputado Paulo Teixeira, aprovada em São Paulo,
“guerra contra as drogas”, no governo do então em 1997, o Governo do Brasil desenhou, através
Presidente Richard Nixon, em 19717. do Programa Nacional de Aids, um primeiro finan-
Associada a ela, estratégias fracassadas ciamento nacional para ampliar as estratégias
de limpeza e troca de seringas, outreach work, e
foram sendo implementadas, como a “Diga Não
promoção de Redução de Danos para controlar o
às Drogas”. Avaliadas por diversos estudos cien-
crescimento do HIV entre pessoas que usavam
tíficos8-10 a estratégia de repressão e de proibi-
drogas injetáveis.
ção se mostrou bastante improducente e incapaz
de impactar o uso recreativo de drogas, o uso Na época, como consultor do Ministério
indevido e as consequências socioeconômicas e da Saúde, fui encarregado de escrever o capítu-
para a saúde do uso, tais como: marginalização, lo do projeto do Banco Mundial dedicado à Re-
exclusão social, preconceito, overdoses, depen- dução de Danos, e estabelecemos uma parce-
dência, HIV, hepatite C, dentre outras. ria com United Nations Office on Drugs and Cri-
me (UNODC), que, pela primeira vez globalmente,
As políticas públicas sobre drogas, des-
mergulhou e apoiou um projeto desta natureza.
de o decreto da “guerra contra as drogas”, estão
Até então, esta Organização da ONU era tida co-
sendo conduzidas com estratégias ineficientes,
mo uma importante aliada da estratégia de “guer-
com omissão do Estado, ou, ainda, sob controle
ra contra as drogas, apesar de hoje ser uma das
do crime organizado.
agências mais ativas globalmente na promoção
Muitos países no mundo, observando e de Redução de Danos. Este financiamento foi fei-
analisando estas consequências ao uso de dro- to para um amplo projeto de controle da epide-
gas e principalmente as consequências das equi- mia de HIV/aids, financiado por um empréstimo
vocadas políticas públicas sobre drogas, resol- do Banco Mundial11.
veram adotar estratégias alternativas, sendo a O Ministro da Saúde, na época, Adib Jate-
mais amplamente aceita a estratégia de Redução ne, e a Coordenadora do Programa Nacional de
de Danos. Aids, a biomédica Lair Guerra de Macedo Rodri-
gues, foram duas pessoas-chave na conquista
Este artigo descreve um pouco da minha
dos recursos e na aprovação de medidas extre-
observação de como se desenvolveu a política de
mamente arrojadas para a implementação de to-
Redução de Danos no Brasil e no mundoVI.
do o projeto. Hoje, olhando para a história de su-
cesso da resposta brasileira na luta contra a epi-
demia de HIV, verifica-se que este foi um momen-
VI
As opiniões expressadas neste texto são parte da experiência do autor
to histórico-chave que desenhou a base do con-
como profissional de saúde e não representam as opiniões da OMS. trole da epidemia, com um ótimo custo-benefício

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do uso dos recursos do empréstimo do Banco coordenou a sua criação.


Mundial. Essa implementação sucedeu a regula-
No campo específico de Redução de Da- mentação dos CAPS em nível nacional, em 1992,
nos, a partir daí, vários projetos, no país, come- pela gestão do Presidente Itamar Franco; após
çaram a ser implementados e a distribuição de isso, as gestões de Fernando Henrique Cardoso
seringas passou a ser um procedimento padrão e de Luís Inácio Lula da Silva fizeram uma tremen-
na prevenção do HIV, mais tarde incorporado da expansão de sua rede em todo Brasil. Muitos
também na prevenção de hepatite C. dos CAPSad se engajaram na lógica de Redução
Duas entidades muito importantes surgi- de Danos, por oferecem tratamento nesses cen-
ram desta estratégia e foram fundamentais para tros sem a opressão aos pacientes outrora obri-
manter o tema na pauta: a Associação Brasilei- gados à abstinência, possibilitando a oferta de
ra de Redução de Danos (ABORDA), fundada em alternativas muito mais interessantes, como os
1997, e a Rede Brasileira de Redução de Danos consultórios de rua. Posteriormente as Redes de
(REDUC), fundada em 1998. Atenção Psicossocial (RAPS) foram implantadas
No meio acadêmico o tema também pro- e ajudaram a expandir e organizar melhor Saúde
grediu com o apoio de centros de excelência em Mental no Brasil. Porém, desde o final do Gover-
políticas públicas sobre drogas, como o já men- no da Presidenta Dilma Russef, quando foi nome-
cionado CETAD/UFBA, o Centro Brasileiro de In- ado o coordenador de Saúde Mental Valencius
formações Sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) Wurch Duarte Filho, a área vem sendo atacada
e o Programa de Orientacão e Atendimento a De- por setores que se opõem aos princípios da Re-
pendentes (PROAD), da Universidade Federal de forma Psiquiátrica e dos Direitos Humanos em
São Paulo (UNIFESP), em São Paulo, além da Uni- Saúde, incluindo aí a Associação Brasileira de
versidade Federal de Pernambuco (UFPE), dentre Psiquiatria (ABP), com sua atual diretoria conser-
outros, jogaram um grande papel no suporte ao vadora, e também pelas Comunidades Terapêuti-
desenvolvimento da estratégia no país. cas de origem religiosa, principalmente as cristãs
A Redução de Danos demorou um pouco fundamentalistas13.
para ir se firmando como uma alternativa de polí- Várias outras ações isoladas poderiam
tica pública no Brasil para além do campo do HIV ser apresentadas como exemplos positivos de
e das doenças de transmissão sanguínea, mas Redução de Danos que ocorreram no Brasil, para
neste campo avançou bastante, com dimensão além do controle da epidemia de aids. O proje-
nacional e de grande impacto no tratamento de to Baladaboa, por exemplo, se mostrou um bom
dependência de drogas baseado em evidências modelo de como reduzir os danos à saúde das
científicas. Com base nisso, houve a criação e drogas utilizadas em baladas eletrônicas, parti-
incrível expansão dos Centros de Apoio Psicosso- cularmente o ecstasy ou outras metanfetaminas.
cial de Álcool e outras Drogas (CAPSad)12. Esta iniciativa foi lançada em São Paulo no ano
Os CAPS haviam sido inaugurados na ges- de 2004VII, baseada na experiência de sucesso
tão municipal de Santos, quando Telma de Sou- obtida na Holanda e, na Cidade de São Paulo, o
za era Prefeita e David Capistrano o Secretário projeto contou com o financiamento da Fundação
Municipal de Saúde. O médico Roberto Tikano-
Pela estudante Stella Pereira de Almeida, da pós-graduação do Instituto de
VII

ri, como Coordenador de Saúde Mental à época, Psicologia da Universidade de São Paulo.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais,


(FAPESP). Como um projeto bastante pragmáti- entre 2013 e 2016.
co14, capaz de salvar vidas, era feita a orientação O Projeto “De Braços Abertos”15 tomou di-
às pessoas que usavam drogas nas baladas ele- mensão internacional pelo seu modo de lidar com
trônicas, incentivando-as a tomar grande quanti- o problema do uso de drogas e devido ao seu
dade de água a fim de prevenir a overdose que, grande sucesso. Seu foco principal eram os usu-
embora quase ninguém saiba, acontece sempre ários de crack, a maioria deles frequentadores
associada à desidratação. da chamada “Crackolândia”, localizada no cen-
Na sequência, o deputado do Estado de tro da cidade de São Paulo. O projeto tinha um
São Paulo Simão Pedro e a vereadora da Cidade componente de saúde bastante importante, mas
de São Paulo, Soninha Francine, transformaram também previa garantia de moradia (em hotéis
em leiVIII a obrigatoriedade de colocação de be- do centro da Cidade de São Paulo) e emprego
bedouros com água em todas as casas noturnas aos usuários frequentadores do projeto, tendo,
da cidade, para que as pessoas que usem dro- portanto, uma abrangência psicossocial muito re-
gas possam ter acesso à água gratuitamente. Na levante e que mudou a forma de pensar sobre
época em que as leis foram aprovadas e imple- como os danos deveriam ser de fato, reduzidos.
mentadas, um copo de água mineral nas casas
Na época a Secretaria Nacional de Polí-
noturnas custava o mesmo que uma garrafa de
ticas de Drogas (SENAD), propôs uma extensão
cerveja, o que levava as pessoas a beberem cer-
deste projeto para vários municípios brasileiros,
veja ao invés de água, o que aumentava a desi-
o que se concretizou parcialmente e lamenta-
dratação, já que cerveja é um produto diurético, o
velmente se encerrou com o fim do Governo de
que consequentemente potencializava o risco de
Dilma Roussef, depois do impeachment de seu
overdose.
mandato16.
Projetos como os da ONG É de Lei, de São
Depois do Governo Temer e, mais recen-
Paulo, foram também muito importantes e bas-
tante efetivos. A ONG distribuía com sucesso ca- temente no Governo atualIX, a prática da Redução
chimbos para usuários de crack a fim de evitar a de Danos vem sendo atacada e chegou a ser ex-
contaminação pela hepatite C e outras doenças, cluída como parte da Política Pública de Drogas
além de prevenir queimaduras graves nos lábios. do país, pelo então Ministro da Cidadania Osmar
Terra17. No entanto, esse boicote subestimou o
Mais tarde, algumas prefeituras progres-
alcance da expansão de Redução de Danos em
sistas retomaram as lideranças do Poder Muni-
diversos rincões do Brasil em todos estes anos,
cipal na solução dos problemas relacionados
desde 1989, tornando tal decisão inútil do ponto
ao uso indevido de drogas. Tivemos excelentes
de vista concreto.
exemplos em São Bernardo do Campo, Recife e
São Paulo. Mas, vou me ater no Projeto da Pre-
feitura de São Paulo, o Projeto “De Braços Aber- Redução de Danos pelo Mundo
tos” que acompanhei mais de perto enquanto A Redução de Danos, no mundo, teve sua
estive no Ministério da Saúde como Diretor do história e perspectiva bem mais ampla do que o
controle do HIV, embora tenha também contribuí-
VIII
Lei nº 12.637, de 06/07/2007 e Lei nº 14.724, de 15/05/2008, res-
pectivamente. do muito para isto.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Em 1996, eu já fazia parte de um grupo pares que injetavam drogas, e de prevenção de


de ativistas internacionais reconhecidos em nível overdoses entre outras medidas-chaves. Mais
mundial, que tomou a dianteira desse trabalho amplamente a Redução de Danos foi desenvol-
em escala mundial. Juntos, fundamos a Interna- vendo outras dimensões, como as salas de uso
tional Harm Reduction Association (IHRA), em por- seguro de drogas (em países como Canadá, Aus-
tuguês Associação Internacional de Redução de trália, Suíça e outros); o plantio nacional de maco-
Danos, que até hoje cumpre um dos papéis mais nha por alguns países (como Canadá e Uruguai);
relevantes em ajudar a implantar, implementar a autorização para a produção caseira de maco-
e promover as ações de Redução de Danos no nha por outros (como Espanha e Holanda); os co-
mundoX,18. ffee-shops holandeses; a política para “drogas da
Essa Organização foi formalmente lança- noite” – quase sempre LSD ou metanfetaminas
da em 1996 durante a 7a Conferência Interna- – do governo holandês, que oferece carona para
cional de Redução de Danos, realizada em Ho- casa numa van pública, de forma a garantir o
bart, na Tasmânia, Austrália. Seu maior objetivo “usou, não dirija” de maneira concreta; os drop-
era o de formar uma rede global de ativistas que, -inn centers; e as clínicas de terapia de substitui-
em diversas partes do mundo, defendessem es- ção que existem em vários países do mundo.
tratégias de Redução de Danos e participassem Para detalhar como funcionam algumas
de decisões governamentais (ou de pessoas da destas alternativas, falarei mais sobre elas. As
Sociedade Civil Organizada, incluindo ONGs) de salas de uso seguro são um ótimo exemplo; ne-
como implementá-las. Esta troca de experiências las o Estado compra e distribui a droga da qual
entre pares foi fundamental para o desenvolvi- a pessoa é dependente e o consumo é feito em
mento da Política Global de Redução de Danos, um lugar seguro e com todo o aparato de saú-
desde então. de à disposição do usuário; ao mesmo tempo, a
Nesta época, já tínhamos experiências qualidade da droga é controlada, evitando graves
bem sucedidas em distribuir seringas para redu- intoxicações por drogas “batizadas”, e conta-se
zir a infecção de doenças das pessoas pelo com- ainda com todo o aparato necessário para conter
partilhamento de seringas usadas coletivamente. overdose e prevenir a transmissão de doenças
Essa iniciativa teve início na Holanda, em 1982, por via sanguínea; a pessoa não se submete a
para controlar a disseminação de hepatites vi- traficantes, não tem de enfrentar a polícia, a cor-
rais entre pessoas que usavam drogas injetáveis rupção, o crime organizado e todas as outras ma-
(geralmente heroína) e depois se tornaram uma zelas do uso ilegal e sua dependência é adminis-
estratégia global, que futuramente seria adotada tratada pelo setor Saúde. Essas salas funcionam
pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como de maneira extraordinária com o uso de heroína
a forma mais efetiva de se controlar a dissemina- e poderiam certamente ser implementadas para
ção de HIV e Hepatites Virais entre pessoas que drogas como a cocaína em todas as suas formas
injetam drogas19. de administração.
Ainda neste campo, surgiram propostas Outra alternativa mencionada e muito
importantes de outreach work, de suporte entre usada pelo mundo todo, são os drop in centers
(podendo ser traduzido como “locais de acolhi-
X
Sou muito grato pelo privilégio de estar no grupo de fundadores e ser o
primeiro vice-presidente dessa valiosa entidade. mento”). Neles, os usuários podem passar o dia

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

e lá tomar banho, comer, assistir televisão, ler, Poderíamos citar inúmeras alternativas
passar o tempo com jogos de tabuleiro e acessar protetoras, mais racionais e mais eficientes que
a Internet. É um local acolhedor, que funciona das se desenvolveram pelo mundo adentro para re-
sete horas da manhã às dez da noite, com por- solver essa questão, situaçõeos em que o Es-
tas sempre abertas à população atendida. Aonde tado, e não o crime organizado e/ou a religião,
estes locais de acolhimento funcionam, a polícia cuidam das pessoas que usam drogas.
não chega perto, a fim de não inibir a procura Sem dúvida, uma das políticas públicas
pelos usuários. São como espaços de proteção mais bem sucedidas e que passou por inúmeras
para as pessoas que usam drogas e tornam-se avaliações externas é a de Portugal21. Com uma
portos-seguros para aqueles que foram social- legislação pragmática e eficiente, em 2001 Portu-
mente excluídos, seja das escolas, das famílias, gal foi o primeiro país no mundo a descriminalizar
dos empregos ou de outras formas de convivên- a posse e o consumo de todas as substâncias e
cia social. É um local em que podem passar o dia a tratar a dependência de drogas como um pro-
e recuperar uma importante parte da dignidade blema de saúde e não como um crime. O porte
perdida. de drogas em uma quantia que seja razoável para
A metadona, um medicamento sintético consumo próprio– quantia claramente estabele-
foi inicialmente desenvolvida como analgésico a cida na legislação – é considerado apenas como
base de ópio, durante a II Guerra Mundial na Ale- uma infração administrativa e punido desta for-
manha nazista e registrada neste país, como um ma. A pessoa sofre uma advertência, uma multa
medicamento sintético, em 1941. Utilizada como ou é obrigada a comparecer a uma comissão lo-
medicamento de substituição da heroína, teve clí- cal composta por médico, advogado ou assisten-
nicas de terapia utilizando esta técnica criadas te social e assim receber orientação sobre trata-
em meados do século XX e, com a evolução tec- mento, Redução de Danos e serviços de apoio
nologica, passou a ser produzida pela indústria disponíveis para o dependente.
farmacêutica20. Há, ainda, serviços que tratam
os pacientes também com buprenorfina ou até Consideração final
com a própria heroína, este último procedimento
Enfim, não é preciso reinventar a roda
é menos comum. As clínicas de metadona aten-
para se ter políticas públicas sobre drogas mais
dem milhares de pacientes e têm 70% de suces-
próximas da necessidade do cidadão. Uma adap-
so no tratamento de dependência de heroína,
tação em algumas das políticas públicas de Re-
uma taxa de sucesso que não foi possível atingir
dução de Danos que estão tendo resultados posi-
em nenhum outro tratamento de dependência de
tivos em todo o mundo, já seria um grande passo
drogas lícitas ou ilícitas (incluindoo álcool e o ta-
a frente, no caso do Brasil.
baco). Comum na América do Norte, na Europa
e na região onde eu atualmente atuo, a Ásia, o
tratamento de dependência de heroína utilizando Referências
metadona tem um tremendo sucesso em lugares
1. Carvalho HB, Mesquita F, Massad E, Bueno RC, Lo-
como Hong Kong (onde foram estabelecidos os pes GT, Ruiz MA, Burattini MN. HIV and Infections of Si-
primeiros serviços na região), Vietnam, China, In- milar Transmission Patterns in a Drug Injectors Community
donésia, Malasia e aqui em Myanmar. of Santos, Brazil. Journ. Acquir. Imm. Defic.Syndr. Human

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

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nível em: https://site.cfp.org.br/manifestantes-da-luta-anti-
manicomial-ocupam-ministerio-de-saude

vol.21, n.2, dez 2020 |17


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Ativismo de Redução de Danos em Políticas


Internacionais
Harm Reduction Activism in International Policies

Vera da RosI

Resumo Abstract

Advocacy e ativismo não são palavras intercambiáveis, mas no Advocacy and activism are not interchangeable words but in Brazil
Brasil estão sendo usadas como sinônimos. Com foco na Redução they are being used as synonymous. Focusing on Harm Reduction
de Danos, a fim de mostrar sua trajetória no Brasil e no mundo, o in order to show its trajectory in Brazil and in the world, based on
artigo abrange a história, o conceito e as políticas públicas sobre the history, concept and public policy on drugs. Talking about Harm
drogas. Falar sobre Redução de Danos refere-se a um Brasil que Reduction referring to a country, Brazil that more than thirty years
há mais de trinta anos aprendeu com a epidemia de aids traba- ago learned from the AIDS epidemic to work with the diverse, build
lhar com o diverso, construir parcerias e, assim, criar um tripé: so- partnerships and thus create a tripod: civil society, government
ciedade civil, governo e instituições internacionais. Evidenciam-se and international institutions. UN contributions and obstacles besi-
também contribuições e obstáculos impostos pela ONU, além dos des the civil society efforts to teach what is to take care of the edu-
esforços da sociedade civil para ensinar o que é cuidar e oferecer cation in drugs. The UN Conventions on drugs and other possibili-
educação em drogas. As convenções da ONU sobre drogas e ou-
ties of understand their undercover meanings. Highlight the role of
tras possibilidades de entender seus significados encobertos. O
civil society through an example how to be an international activist.
papel da sociedade civil é destacado através de um exemplo de
como ser um ativista internacional. Keywords: Activism; Harm reduction; UN.

Palavras-chave: Ativismo; Reduçao de danos, ONU.

Introdução - o ativismo

D
efinir ativismo em Redução de Danos é construir parcerias e, assim, criar um tripé: socie-
mostrar que intrinsecamente caminharam dade civil, governo e instituições internacionais.
juntos e sua trajetória no Brasil e no mun- Mas não foi nada fácil a introdução da Redução
do foi desenhada por várias mãos como é possí- de Danos na cultura brasileira que já havia intro-
vel entender ao se apropriarem das informações jetado o conceito de proibicionismo com todos
dos textos de outros autores que precedem este, os seus matizes ideológicos, tendências políticas
e rejeição de cunho pseudo-religioso. Um traba-
tais como: o histórico e o conceito de Redução de
lho de base para promover mudanças se fez ne-
Danos e políticas públicas sobre drogas.
cessário. O modelo brasileiro de ativismo replica,
Falar de Redução de Danos remete a um portanto, alguns movimentos internacionais. A
Brasil que há mais de trinta anos aprendeu com história e exemplo das sufragistas pelo mundo,
a epidemia de aids a trabalhar com o diverso, das organizações afroamericanas, da luta pelos
direitos humanos em países pós-guerras, da co-
I
Vera Da Ros (veradaros@gmail.com) é psicóloga e mestre em Linguística munidade LGBT incentivaram o ativismo brasilei-
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidente da
Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC). ro em Redução de Danos.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Por algum tempo usamos a palavra ingle- • eficácia se tem uma abordagem não contradi-
sa advocacy1 como sinônimo intercambiável en- tória ou mais suave.
tre os termos que definiam ações de mudança. Ativismo caracteriza-se por:
Atualmente, não temos usado o termo em inglês,
• política ou ação de usar campanhas vigorosas
mas é necessário que saibamos que os seus sig-
para promover mudanças políticas ou sociais;
nificados são diversos. Em princípio, o ativista
• às vezes, usar táticas como desobediência
“fala” em nome da causa, tem voz. Quando se
civil e ação direta não violenta como estratégias
faz advocacy, principalmente se escuta. Mas, tan-
deliberadas;
to o advocacy, quanto o ativismo são ferramentas
usadas para criar mudanças sociais e políticas. • tender a ser reativo a um problema;

Advocacy é frequentemente visto como • falta de comunicação direta e relacionamento


“um ato de representar publicamente um indiví- com os principais tomadores de decisão e por-
duo, organização ou idéia” e uma palavra usada tanto, depender fortemente da mídia;
como um termo genérico para muitas ferramen- • ter objetivo de conscientizar o público sobre o
tas de intervenção. Pode incluir lobby ativo, in- problema para exercer pressão política.
cluindo métodos como: redação de cartas, reu- No Brasil, não há tão clara dicotomia en-
nião de políticos, administração de fóruns públi- tre essas duas ferramentas e tem se observado
cos, perguntas no parlamento, participação em que o termo advocacy, por cair em desuso, teve
vários processos consultivos. seu significado anexado ao termo ativismo. Tanto
O ativismo é descrito como uma ação di- o jovem que defende causas e sai em passeatas
reta para alcançar uma meta política ou social. quanto a cantora famosa que representa uma
O termo implica uma ação ou intervenção direta, causa são chamados de ativistas.
como um protesto a favor da mudança. Alguns A sociedade civil e os governos locais,
estudiosos sugerem que o ativismo pode ser vis- nos anos 1990, percebem a importância da des-
to como parte do processo de advocacy ou das centralização das ações em prevenção ao HIV/
ações, como organizar um protesto deliberado e aids para contemplar a diversidade de um país
direto para aumentar a conscientização e tentar como o Brasil. Mas também, valorizam as trocas
influenciar o processo político. Advocacy é fre- de saber com outros países.
quentemente visto como um trabalho “dentro do A sociedade civil já organizada em alguns
sistema”, enquanto o ativismo é visto como “fora temas e lutas formaliza o surgimento da Organi-
do sistema”, para gerar mudanças. zação da Sociedade Civil (OSC) ou Organização
Advocacy baseia-se em2: Não Governamental (ONG), que é um grupo de
• argumentar em favor de uma causa, idéia cidadãos voluntários, sem fins lucrativos, organi-
ou política - diretamente com os tomadores de zado em nível local, nacional ou internacional3.
decisão; Orientadas para tarefas e dirigidas por pessoas
• ter três componentes principais: relaciona- com interesse comum, as organizações da so-
mentos, política sólida e respeito; ciedade civil desempenham uma variedade de
serviços e funções humanitárias, trazem preocu-
• influência preventiva, podendo ser próativa
pações dos cidadãos aos governos, monitoram
ou reativa;
políticas e incentivam a participação política no

vol.21, n.2, dez 2020 |19


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

nível da comunidade. entusiasta da estratégia e além de usar explici-


As organizações da sociedade civil têm, tamente em seus discursos oficiais o termo Re-
como suas principais ferramentas de interven- dução de Danos, publicava documentos oficiais
ção na busca de atingir suas metas, os já cita- sobre, ou incluindo o tema, o que facilitava extre-
dos advocacy e ativismo. O controle social e a mamente o ativismo ainda recente nessa área5.
participação estão intimamente relacionadas: Embora o United Nations Office on Drugs
por meio da participação na gestão pública, and Crime (UNODC) - Escritório das Nações Uni-
os cidadãos podem intervir na tomada da de- das para Drogas e Crime -, já desse apoio às ati-
cisão administrativa, orientando para que esta vidades de Redução de Danos no Brasil4 e em
adote medidas que realmente atendam ao inte- outros países, não criou, nos anos 1990, uma
resse público e, ao mesmo tempo, tem poder parceria e apoio internacional. Na verdade, em
de exercer controle sobre a ação do Estado, reuniões internacionais, o UNODC seguia o proto-
exigindo que o gestor público preste contas de colo da ONU de omitir ou usar sinônimos para as
sua atuação, o que é um direito assegurado pe- intervenções de Redução de Danos. Mesmo não
la Constituição Federal, permitindo, assim, que sendo a posição da área técnica do UNODC, que
os cidadãos não só participem da formulação conhecia e valorizava as intervenções que ado-
das políticas públicas, mas também, fiscalizem tavam este modelo, como esta autora pôde tes-
de forma permanente a aplicação dos recursos temunhar enquanto prestadora de serviço nesta
públicos. agência, no final dos anos 1990, durante as ofi-
cinas realizadas com sua equipe, tanto no Brasil,
como em Viena.
(Des)encontros com os organismos
internacionais O engessamento dos organismos das Na-
ções Unidas (ONU) pelos protocolos internacio-
Para contornar as dificuldades da estra-
nais, que posteriormente discutiremos, e que são
tégia de influenciar para modificar políticas pú-
assinados e implementados pelos países mem-
blicas, surgiram muitas parcerias da sociedade
bros não permitia que a Redução de Danos se
civil com a academia e o governo, em vários
fortalecesse. As ONGs e ativistas brasileiros, que
níveis. As instituições que normalmente vêm in-
nos anos 1990 e na primeira década de 2000
cluindo em sua parceria a sociedade civil são
tinham suporte do Ministério da Saúde, através
os organismos internacionais. Mas, trabalhar
do Programa Nacional de Aids, haviam construído
com agencias internacionais nem sempre é
uma rede de programas Redução de Danos (PR-
possível e com certeza não é nada fácil. A ten-
Ds), com um grande número de pessoas especia-
dência das agências ainda é de um trabalho
lizadas neste modelo, os redutores de danos. Ha-
centralizado e vertical. Em nosso país, dentro
via, então, a necessidade de partilhar essas boas
da temática de Redução de Danos e das po-
práticas e de trocar saberes com ONGs e outros
líticas sobre drogas, para contrapor essa bar-
programas do mundo. Estávamos prontos para is-
reira, tivemos o Joint United Nations Program
so. O marco inicial de trabalho internacional foi a
on HIV/AIDS (UNAIDS - Programa Conjunto das
Nações Unidas sobre HIV/AIDS -, que trabalhou
a Redução de Danos junto à sociedade civil4. II
O coordenador geral do UNAIDS entre 1995 e 2008 foi Peter Piot, seus
discursos e documentos estão disponíveis on line, como o “AIDS epidemic
O coordenador do UNAIDSII na época era um update – december 2001”5.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Conferencia Internacional de Redução de Danos encarceramento das pessoas que usam, pro-
realizada em 1998, em São Paulo6. duzem ou fornecem drogas. Sabe-se que essas
Outro caminho que já percorríamos nacio- tentativas foram malsucedidas: apesar de todo
nalmente era o de influenciar as políticas públi- o investimento político e financeiro em políti-
cas para a inclusão de leis específicas locais e cas repressivas adotadas nos últimos 50 anos,
nacionais de Redução de Danos. Tínhamos vivi- as substâncias controladas internacionalmente
do, no início das ações de Redução de Danos, estão mais disponíveis e mais amplamente uti-
as consequências de não termos leis apoiando lizadas do que nunca. Segundo o “Drug Police
tais intervenções. Este histórico, no Brasil, evi- Guide”8:
dencia essa lacuna ao relatar prisões de agentes “…teoricamente, reduções na escala
redutores de danos realizando seu trabalho: tais dos mercados de drogas poderiam levar
ações punitivas baseavam-se na lei que crimina- a redução de danos, mas na prática o
lizava aqueles que incentivassem ou facilitassem contrário geralmente ocorreu. Por exem-
o uso de substancias proibidas pela lei e pelas plo, operações contra uma rede de ne-
convenções internacionais que serão detalhadas gociação podem aumentar a violência
em tópico próximo. com gangues concorrentes em luta e
A falta de leis que nos amparassem e uma ação contra uma substância espe-
as convenções extremamente restritas da ONU cífica pode levar as pessoas a mudarem
eram dois lados de uma moeda: para que fun- para substâncias que podem ser mais
cionassem as mudanças nas leis nacionais terí- prejudiciais” (p.8).
amos de influenciar as regras internacionais que A Redução de Danos, inicialmente, era
atingiam o Brasil e a todos os países. As confe- uma intervenção para minimizar os riscos de
rências e organizações internacionais, grupos da crescimento da epidemia da aids. Mas ques-
sociedade civil regionais e ativistas de Redução tões amplas de saúde, para além da infecção
de Danos se uniram em torno da necessidade de pelo HIV e também questões de direitos huma-
influenciar os nossos países e, assim, provocar nos, como o direito à saúde, à moradia, à edu-
algum eco na própria ONU e em outros financia- cação e ao trabalho tornaram-se um bloco con-
dores, como o Fundo Global, o Banco Mundial e sistente, o que amplificou e deu maior corpo
outras ONGs e fundações internacionais7. ao conceito de reduzir danos8. Tal conjunto de
preceitos tinha em seu arcabouço a diversida-
Metas desfocadas de de experiências e conhecimentos que une
países e pessoas, funcionando como um desa-
Os governos, até então, concentravam
fio que aproxima a todos, uma vez que desvela
grande parte de seus esforços na redução da
as dificuldades e soluções a dilemas que unem
escalada dos mercados de drogas acreditando
e separam a humanidade.
que isso eventualmente reduziria os danos rela-
cionados a essas substâncias. A linguagem em O único objetivo que se apresentava an-
que foram elaboradas as convenções da ONU so- terior à proposta de Redução de Danos era o
bre drogas insinua que somente alcançaremos de uma sociedade livre de drogas, mas perce-
os objetivos sociais e de saúde, através da in- beu-se que isso:
terrupção do fornecimento ilícito de drogas e do “..não é uma política sustentável e levou

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

a orientação incorreta da atenção e dos fazer um ativismo mais consistente, foram forma-
recursos para programas ineficazes, en- das ONGs e redes no Brasil. A Associação Bra-
quanto os serviços sociais e de saúde sileira de Redução de Danos (ABORDA), a Rede
com programas que comprovadamente Brasileira de Redução de Danos e Direitos Huma-
reduzem danos relacionados a drogas nos (REDUC) e a Rede Latino Americana de Re-
estão famintos de recursos e apoio po- dução de Danos (RELARD) foram criadas no final
lítico”8 (p.8). dos anos 19909, sendo as duas primeiras ativas
até hoje. O ativismo em rede se iniciava no Brasil
e na América Latina, envolvendo especialistas de
Parcerias e metas
vários campos e fortalecendo temas caros à nos-
Outra busca, que foi (e ainda é) desgas-
sa realidade.
tante para o ativismo em Redução de Danos,
Um dos primeiros temas que divergíamos
é a de projetos, trabalhos e financiamentos.
das propostas internacionais e que, até hoje, re-
Como a história da Redução de Danos no Bra-
tomamos e esclarecemos a necessidade de in-
sil aponta, no inicio de sua implementação em
tervenções de Redução de Danos para usuários
programas e políticas públicas havia o financia-
de drogas estimulantes, com o uso também não
mento federal para a realização de suas ativi-
injetado, ao contrário de todas as intervenções,
dades. Uma segunda fase, de descentraliza-
que primariamente são desenvolvidas para dro-
ção, ocorreu e as verbas tornaram-se controla-
gas injetáveis, problema este que aflige principal-
das em nível estadual, o que mudou totalmente
mente o hemisfério norte.
o panorama das ações, que passaram a de-
pender das autoridades locais para a manuten- Em 2010, a revista Lancet10 publica os 12
ção do trabalho proposto7. Pouco a pouco, tais mitos que estudiosos e público em geral tinham
verbas se diluíram em outras ações e poucos sobre uso de drogas e à medida que11:
estados e municípios seguiram implementando “…o debate internacional avança em rela-
atividades. De duas centenas ou mais de pro- ção à temática do HIV entre pessoas que
jetos, hoje, talvez tenhamos duas dezenas ou usam drogas, fortemente vinculada à via
menos. injetável de transmissão do vírus, outros
A ampliação das parcerias com institui- elementos vão surgindo, relacionados a
ções internacionais permitiu que alguns traba- questões estruturais de contextos de gran-
lhos importantes de Redução de Danos aconte- de vulnerabilidade social nos quais vivem
cessem. A ida a conferencias e visitas de cam- estas pessoas e que precisam ser consi-
po em outras realidades, que muitos redutores derados em relação à exposição ao vírus
de danos e especialistas em políticas de dro- e fortemente ligadas ao estigma e ao pre-
gas puderam realizar, acrescentaram experien- conceito como barreiras de acesso aos
cia às brasileiras e permitiram que levássemos serviços” (p.20).
nossas vivências, no mais amplo sentido, a ou- O ativismo principalmente da America La-
tros colegas do mundo. tina e muitas vezes encabeçado pelo Brasil, trou-
Dentro dessa perspectiva de unir nacio- xe para as mesas de discussão e, principalmente
nalmente os envolvidos para poder melhor atin- para pesquisadores, o desafio de ampliar ainda
gir as políticas públicas, trocar experiências e mais o conceito e mostrar a efetividade dessas

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

intervenções para abarcar outros usos de drogas. envolvidas nos projetos, como os profissionais da
O enfoque ganhou força quando se perce- área de saúde e social puderam ter contato com
beu que o principal problema nem sempre era o as realizações de Redução de Danos fora do pa-
uso de drogas, mas sim os ligados ao contexto ís, principalmente ativistas e redutores de danos,
socioeconômico desses usuários, quase sempre que nos anos 1990 eram, muitas vezes eles
marginalizados e com uma vasta gama de limita- mesmos, os próprios usuários dos projetos com
ções sociais e de saúde. A Redução de Danos, capacidade de liderança13. Em 1990, foi realiza-
assim, passa a incorporar além de facilidades de da em Liverpool a primeira conferência da Harm
higiene e repouso, o tema da moradia como prin- Reduction International (HRI); depois, anualmen-
cipal fator de proteção de redução dos riscos a te, essas conferências aconteceram em diversos
que esses usuários estão expostos. países14, como a já citada conferência realizada
no Brasil, em 1998. Em 1996, foi lançada a In-
Um excelente documento da Mainline12,
ternational Harm Reduction Association (IHRA), de
sobre uso de drogas estimulantes, alerta que:
forma a criar, internacionalmente, uma rede de
“… o uso problemático de estimulantes é,
comunicação e conhecimento na área.
em muitos casos, um problema social que
Resumindo, no Brasil democratizado dos
necessita de soluções estruturais. Isso re-
anos 1990 e estimulado pelos exemplos de ati-
quer centralização do foco não na substân-
vismo internacional, criaram-se as redes citadas.
cia per se. Pois, aquelas intervenções que
Os organismos multilaterais unem-se em uma re-
não se concentram na substância, como o
de de informações. O Programa de Aids do Minis-
alojamento e centro de convivência , por
tério da Saúde em parceria com o United Nations
exemplo, são capazes de diminuir o uso de
Drug Control Programme (UNDCP), hoje UNODC,
estimulantes e promovem consumo mais
lançou um projeto incluindo a Redução de Danos
controlado. Além do tratamento do abuso
para prevenção de HIV entre usuários de drogas
de drogas e serviços de redução de danos,
injetáveis15.
as pessoas precisam de programas que
promovam segurança, acolhida e estabili- Tal conjunto de trocas e conhecimentos
dade” (p.126). fez com que o Brasil se tornasse modelo e pas-
sasse a difundir formas de trabalhar, como o ou-
treach, ou seja, a estratégia de ir ao encontro
Internacionalização ou (des)nacionalização
dos usuários em seus locais de uso, como busca
Como já comentado, conferências interna- ativa. Essa estratégia foi, durante muito tempo,
cionais sempre permitiram trocas de saberes e uma vitrine da Redução de Danos no Brasil, pois
foram a primeira vertente de ativismo internacio- abordava toda a nossa diversidade de cenários
nal. Principalmente, porque o Programa de Aids de usos de drogas e territórios14 desde as pala-
do Brasil tinha seu financiamento internacional fitas, na Bahia, aos canos de esgoto, em Porto
intermediado pelo UNODC, naquela ocasião coor- Alegre. Visitantes de diversos países vieram co-
denado, no país, por uma pessoa que incentivou nhecer nosso programa e admiravam-se com a
ações e intervenções de Redução de Danos den- grandiosidade do número de seringas recolhidas
tro de nosso territórioIII.
Tanto os especialistas das universidades III
O Representante Regional do UNODC na época era o sr. Giovanni Quaglia,
italiano que trabalhou para a ONU de 1974 a 2009.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

e a variada gama de intervenções de saúde e ser possuidor de cultura e isso o distingue dos
sociais. outros animais - comunicação oral, fabricação de
As intervenções in loco e abrangentes lo- instrumentos, modificação da natureza para ade-
go trouxeram à tona uma verdade escondida: a quar as suas necessidades e transmissão dos
discriminação racial, social, de gênero, LGBT e conhecimentos. A vida social é uma troca cons-
muitas outras. O que fazia lembrar as primeiras tante, um contínuo dar e receber. Didaticamente,
leis antiópio da década de 1870 adotadas nos podemos decompor a cultura em dois segmentos
Estados Unidos, dirigidas a imigrantes chineses. básicos: os elementos ambientais e objetivos da
Também nos Estados Unidos, as primeiras leis cultura e os elementos psicológicos ou subjeti-
anticocaína, do início dos anos 1900, foram diri- vos. Quando pensamos nos elementos objetivos
gidas a homens negros do sul do país, da mesma da cultura, podemos pensar em arquitetura, arte
forma que, as primeiras leis anti-maconha das e normas da comunidade para comportamentos
décadas de 1910 e 1920, no centro-oeste e no adequados e aceitos. Já os elementos subjetivos
sudoeste, foram direcionadas a migrantes mexi- dizem respeito a crenças, expectativas, valores e
canos e mexicanos-americanos16. normas familiares. Tais elementos, subjetivos e
objetivos formam um conjunto integrado que pos-
Hoje, as comunidades latinas e especial-
sibilita a solução de problemas por caminhos cul-
mente as negras ainda estão sujeitas a práticas
turalmente aceitos e prescritos. E, qualquer pro-
desproporcionais de aplicação de sentenças judi-
posta de trabalho no campo das drogas, precisa-
ciais nos casos de autuação por drogas. O Brasil
va e precisa conhecer e respeitar tais caminhos.
teve uma historia semelhante, ao discriminar mi-
norias, e o uso de drogas aqui também funcionou
como metonímia para diferenças que não eram Nada sem mim
aceitas pelas classes sociais mais poderosas. Na comunidade na qual estamos inseri-
Tal constatação mostrou aos grupos que dos, há jogos de influência que frequentemente
seriamente faziam trabalho focado nas políticas percebemos, mas que, às vezes, nem em nossa
de drogas, que fazer ativismo em Redução de Da- cultura percebemos claramente as forças que es-
nos era muito mais do que imaginavam: atingia tão em ação quando surge uma tensão, uma difi-
a seara dos direitos humanos14. A discriminação culdade. Como exemplo, primeiro pensemos em
“olha” o pobre com desprezo e, se esse pobre for como as regras (elementos subjetivos) de uma
usuário de drogas, não têm direitos, pois é desu- família tradicional afetam a pessoa; segundo, co-
manizado. O branco usuário de drogas precisa de mo atua o machismo; terceiro, como é encarado
tratamento, o negro usuário de drogas é visto co- o uso de álcool de um adolescente. Assim, te-
mo alguém que merece cadeia. O heterossexual mos um quadro de uma comunidade em que a
usuário de drogas é moderno, o LGBT usuário de correlação entre essas variáveis torna os jovens
drogas é depravado. mais suscetíveis e vulneráveis ao uso de álcool e
Por isso, projetos ou propostas precisa- outras drogas. A Redução de Danos, justamente,
vam ser adequadas a cada comunidade a que se leva em consideração esse conjunto de fatores
propunham, focando o conjunto de práticas, com- para pensar suas estratégias e ao mesmo tempo
portamentos, ações e instituições pelas quais as inclui todos os elementos da cultura e seus pro-
pessoas se interrelacionam. O homem é o único tagonistas. Temos aí a realização da forma mais

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

exitosa de intervenção: “o que é para mim, me de aprendizado internacional de ativistas com o


inclui”, em consonância com o pedido das comu- Housing First, tornou-se um programa exitoso e
nidades: “nada que é para mim, sem minha pre- um saber especializado que incentivou a criação
sença”; pedido este que, quando negado, pode de novos programas no Brasil e no mundo. In-
se constituir no criador de preconceito causado felizmente, este programa não se tornou politi-
pelo desconhecimento e pela estigmatização da ca pública do novo governo e foi paulatinamente
população7. desmontado a partir de 201617.
Para pessoas que usam drogas ou estão Um programa que vise atender às ne-
se recuperando de uso problemático de drogas, cessidades de mulheres usuárias de drogas, se
o estigma pode ser uma barreira para uma ampla for desenhado e proposto por mulheres, poderá
gama de oportunidades e direitos. Pessoas que ter margem maior de acerto. Mas é importante
são estigmatizadas por seu envolvimento com entender que, se desde a confecção do projeto
drogas sofrem rejeição social, rotulagem, estere- até a sua realização for integrado por usuárias
ótipos e discriminação, mesmo na ausência de de drogas, haverá maior garantia de sucesso. O
quaisquer consequências associadas ao uso de movimento feminista internacional fortaleceu as
drogas. Esta rejeição manifesta-se de várias ma- ações no mundo e mostrou às ativistas brasi-
neiras, incluindo a negação de emprego ou mora- leiras que as lutas são variadas e que precisa-
dia. Os encarcerados por crimes relacionados a mos ocupar todos os espaços, principalmente os
drogas muitas vezes são vistos como seres sem espaços políticos, para que todas as mulheres
direitos. As pessoas com problemas de uso inde- sejam contempladas, fazendo com que se tor-
vido de drogas são, da mesma forma, menos pro- ne uma ação de Redução de Danos muito mais
pensas a receber ajuda do que as pessoas com abrangente. Aponta que, ao protegermos mulhe-
uma doença mental ou deficiência física7. res, com certeza, reduziremos riscos e danos que
A participação dos usuários na proposta nossas crianças correm.
de projetos, programas e políticas de drogas e As vulnerabilidades são assim minimiza-
de cidadania desvela os jogos de influência que das e um ambiente mais protegido e estável pode
os estudiosos, técnicos ou políticos muitas vezes ser construído. No campo da drogas, um grande
nem percebem. Ao mesmo tempo, protegem es- risco que também precisa ser minimizado e que
sa população das tensões que a falta de percep- o ativismo global tem trazido à tona é o aprisiona-
ção ou de conhecimento das idiossincrasias do mento de mulheres por pequeno tráfico de sub-
grupo poderia acarretar. sistência e as consequências adversas que esse
Conhecer as culturas de uso de drogas e aprisionamento provoca ao deixar crianças sem
as necessidades das pessoas que a usam foi um cuidados ou em situação de atenção precária.
aprendizado que o ativismo internacional trouxe
para o trabalho em Redução de Danos no Brasil
e também a diversidade geográfica e o arcabou-
Saúde Mental
ço de saberes variados contribuíram para a troca
Uma modalidade de ativismo internacio-
de experiências. Nos últimos anos, o atualmente
nal em Saúde Mental, que influenciou e trouxe ex-
extinto projeto “De Braços Abertos” da Prefeitura
celentes resultados ao sistema brasileiro, foi a lu-
do Município de São Paulo e desenhado a partir
ta antimanicomial. O sistema asilar para doentes

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

psiquiátricos inclui e interna também os usuários ONU e sua rede


de drogas como forma de tratamento. A luta anti- As regras internacionais de controle de
manicomial é, portanto, uma medida de Redução drogas são atualmente coordenadas pelas Na-
de Danos ao impedir a internação compulsória de ções Unidas e Estados membros da ONU. Mas,
usuários de drogas. Esta propiciou também que o para que se entenda melhor como se construiu
cuidado e atenção em saúde passasse a ser de tal estrutura de normas, precisamos conhecer
base comunitária, e em rede, envolvendo atores os alicerces que a sustentam. Os Estados Uni-
e instituições especificamente criadas como os dos propuseram, no início do século XX, que se
Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e Dro- criasse um quadro jurídico internacional para
gas (CAPS-ad)9. reger as substâncias psicoativas o qual passou
O CAPS é um serviço de saúde aberto e por várias etapas desde então. A primeira con-
comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS) do venção proposta foi a Convenção Internacional
Brasil, local de referência e tratamento para pes- do Ópio de Haia, em 1912, após a reunião ini-
soas que sofrem com transtornos mentais, psi- cial, realizada em fevereiro de 1909, em meio
coses, neuroses graves e persistentes e demais à crescente preocupação com o uso de ópio na
quadros que justifiquem sua permanência num China16.
dispositivo de atenção diária, personalizado e Nessa ocasião, doze países se reuni-
promotor da vida. As estratégias de Redução de ram em Xangai e criaram a Comissão Interna-
Danos no Brasil e as políticas públicas de drogas cional do Ópio para discutir as possibilidades
promovem interfaces com as práticas de Saúde de impor controles internacionais sobre o co-
Mental dos CAPS-ad. mércio de ópio. Os delegados desta conferên-
A psiquiatria brasileira e a ligação com as cia resolveram (embora sem se comprometer)
tecnologias políticas que se desenvolveram na pôr fim à prática de fumar ópio, restringir seu
modernidade permitiram a Reforma Sanitária e uso a fins médicos e controlar seus subprodu-
os movimentos de Saúde Mental, entre os quais tos. Este e outros tratados posteriores nego-
se inserem a Reforma Psiquiátrica11. Esse con- ciados pela Liga das Nações (antecessora das
junto ampliou os espaços de participação e criou Nações Unidas, que funcionou de 1919-1946)
políticas públicas, culminando com as lutas so- eram de natureza mais normativa do que proi-
ciais que constituíram o Sistema Único de Saúde bitiva e seu objetivo era coibir os excessos de
(SUS) e os novos dispositivos de Saúde Mental. um sistema não regulamentado de livre comér-
A “Política do Ministério da Saúde de cio. Isso significava que impunham restrições
Atenção Integral para Usuários de Álcool e Ou- às exportações, mas não obrigavam declarar
tras Drogas”13, de 2003, e as determinações da ilegal o uso ou cultivo de drogas e muito menos
Política Nacional de Saúde Mental15, implemen- criminalizar essas atividades. Portanto, até es-
tadas no início do século XXI no Brasil, abrem se momento, as drogas psicotrópicas que tive-
espaço e mostram a tensão entre as práticas de ram seu uso e cultivo normatizados pelo países
saúde articuladas com as ações de Redução de dessa coligação, como os opiáceos, a cocaína
Danos e a política dominante de guerra às drogas e a cannabis, não envolveram a criminalização
e abstinência. das substâncias ou de seus usuários ou produ-
tores de suas matérias-primas16.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Não criminalizar desagradou os dois pa- universal e unificado de controle de drogas. Sua
íses que queriam rigor e punições a quem não diretriz é claramente intolerante e proibicionista
seguisse as normas. Assim, Estados Unidos e em relação à produção e fornecimento de estupe-
China, se retiraram das negociações que levaram facientes, exceto pela produção e fornecimento
à Convenção Internacional do Ópio de 1925, pois para fins médicos e científicos.
consideravam suas medidas insuficientemente Mas, a expansão das medidas de controle
restritivas. Além das drogas citadas, os Estados impactou diretamente os produtores tradicionais
Unidos pretendiam garantir a proibição da produ- da Asia, América Latina e África, onde o cultivo
ção e uso não médico de álcool, tentando repro- e o uso tradicional generalizado de papoula, fo-
duzir em escala internacional seu regime de proi- lha de coca e maconha estavam concentrados
bição de álcool, conhecido como Lei Seca, que na época.
permaneceu em vigor entre 1920 e 193316.
A Convenção Única estabeleceu a meta de
Os países proibicionistas sofreram reve- abolir os usos tradicionais de ópio em 15 anos e
ses por não conseguirem o apoio das potências os usos tradicionais de coca e cannabis em 25
europeias França, Grã-Bretanha, Portugal e Ho- anos. Ou seja, de 1964 quando começa a vigorar
landa, pois estas através de suas colônias, man- cria-se a expectativa de que, em 1979, o ópio
tinham o monopólio lucrativo de drogas (ópio, estaria eliminado do mundo e, até 1989, tam-
morfina, heroína e cocaína) destinadas ao mer- bém a cocaína e a maconha. Ao mesmo tempo
cado farmacêutico na Europa e nos Estados foram propostas tabelas de outras substâncias
Unidos16. que também deveriam ser classificadas e subme-
Com o sucesso e conquista de poder polí- tidas a controle em graus diferentes12.
tico, militar e econômico pós segunda guerra, os Nesse encontro, percebeu-se a necessi-
Estados Unidos impuseram um novo regime de dade de um novo tratado para fazer a distinção
controle de drogas e puderam aplicar a pressão (cientificamente questionável) entre os “narcóti-
necessária para impor a outros países o cenário cos” controlados pela Convenção de 1961 e as
das Nações Unidas. O clima político permitiu a chamadas “substâncias psicotrópicas”, concei-
globalização dos ideais proibicionistas antidrogas tos recém criados sem uma definição clara. Com-
para realizar seu intento de impor uma linha dura parado aos rígidos controles que as normas da
às drogas no resto do mundo12. Convenção Única impuseram aos medicamentos
derivados de plantas, o tratado de 1971 estabe-
A idéia de ter uma convenção única so-
leceu uma estrutura de controle menos rígida,
bre drogas foi mais uma vez uma iniciativa dos exceto o grupo 1, que inclui substâncias que re-
Estados Unidos, país determinado a impor um re- presentam um sério risco à saúde pública e que
gime restritivo a outras nações. Essa proposta não seriam reconhecidas pela Comissão de Es-
fez surgir a Convenção Única das Nações Unidas tupefacientes (CND) como tendo qualquer valor
sobre Estupefacientes, de 196116, visando subs- terapêutico. Isso inclui psicodélicos sintéticos
tituir os acordos internacionais anteriores que como o LSD e MDMA, comumente conhecido co-
haviam sido implementados desde a Convenção mo ecstasy; substâncias derivadas da cannabis
Internacional do Ópio. Esse novo tratado sistema- foram inicialmente colocadas no grupo 1IV, o mais
tiza e inclui novas disposições que não aparece- IV
Em 2020, seguindo uma recomendação da Organização Mundial de Saúde
ram nos tratados anteriores e cria um sistema (OMS), a Comissão de Estupefacientes (CND) reclassificou as substâncias
derivadas da cannabis para o grupo 2, menos restritivo17.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

restritivo. Ao se discutir o novo tratado, a Con- fornecimento de todos os medicamentos con-


venção de 1971 sobre Substâncias Psicotrópi- trolados para fins médicos e científicos, bem
cas18, tornou-se evidente que a grande indústria como a introdução de sanções destinadas a
farmacêutica da Europa e dos Estados Unidos combater a produção e distribuição ilícitas des-
exercia pressão sobre as decisões dessa clas- sas mesmas substâncias para outros fins.
sificação, pois temia que seus produtos fossem A sociedade civil organizada sempre
submetidos aos mesmos controles rigorosos que atua de forma contundente quando os gover-
os estabelecidos pela Convenção. nos e mesmo os organismos internacionais
Em pouco tempo, determinou-se que se- aproveitam as lacunas das convenções e trata-
ria necessário um novo tratado. Surge, então, a dos da ONU para se apoiar em posturas prote-
Convenção de 198819, refletindo o contexto polí- cionistas avalizadas pela guerra às drogas dos
tico, histórico e sociológico das décadas de 1970 Estados Unidos, a maior potência mundial. A
e 1980, levando à adoção de medidas mais re- criminalização do usuário, aprisionamento em
pressivas . O aumento da demanda por cannabis, massa por posse, mesmo de pequenas por-
cocaína e heroína para fins não médicos, princi- ções de drogas, a falta de investimento em cui-
palmente no mundo desenvolvido, deu origem a dados de saúde e em ajuda social, trouxeram
uma produção ilícita em larga escala nos países problemas graves que a Redução de Danos po-
onde essas plantas eram tradicionalmente culti- deria ter evitado. Mas os proibicionistas não
vadas, a fim de abastecer o mercado. O tráfico aceitavam essa proposta e nenhum documento
internacional de drogas rapidamente se tornou podia ter esses princípios em seu corpo.
um negócio de bilhões de dólares controlado por Por isso, a linguagem dos documentos da
grupos criminosos. Essa rápida expansão do co- ONU produzidos nos últimos 30 anos ou não ti-
mércio de drogas ilícitas tornou-se a justificativa nha nada referente a ações de Redução de Da-
para intensificar uma batalha que logo se tornou nos, ou, como já foi descrito, usa subterfúgios
uma guerra total contra as drogas. Nos Estados para incluir essas intervenções. Inicialmente,
Unidos, que é o mercado de substâncias contro- utilizavam frases explicativas como “prevenção
ladas que mais cresce, a resposta política foi de- abrangente” ou “leque de intervenções’. Pos-
clarar guerra à oferta do exterior, em vez de ana- teriormente, foi cunhada a frase padrão “mi-
lisar e abordar as causas da crescente demanda nimizar as consequências adversas sociais e
doméstica. na saúde das pessoas que usam drogas”, ain-
Não há obrigação específica nas conven- da hoje usada em documentos que abarcam
ções de tornar o uso de drogas per se um crime. intervenções de Redução de Danos. O ativis-
Assim, o uso de drogas não é mencionado entre mo destes últimos 30 anos aponta que o uso
as disposições penais da Convenção Única, nem desses eufemismos não traz resultados positi-
na Convenção de 1971, nem na Convenção de vos para a Redução de Danos e sim “consequ-
1988. Isso está relacionado, em primeiro lugar, ências adversas”, parafraseando a linguagem
ao fato de que os tratados não exigem que os da ONU11. Ao evitar nomear apropriadamente
países proíbam nenhuma das substâncias clas- uma intervenção cria-se a possibilidade de que
sificadas. Os tratados estabelecem apenas um o arcabouço teórico e baseado em verdades
sistema de rigoroso controle legal da produção e científicas seja alterado conforme a ideologia

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

proibicionista ou a política local. Isto se viu nu- de candidatura, que envolveu desde tradução pa-
merosas vezes em documentos que passam pelo ra o inglês de todos os seus documentos e até
crivo de governos proibicionistas, que entendem relatórios detalhados.
“consequências adversas” a pessoa não ir para a Este trabalho compensa porque a REDUC,
prisão ou ter internação forçada quando usa dro- além de enviar representantes para reuniões co-
gas do grupo ilegal. Nesse raciocínio, será que mo as assembleias gerais da ONU, conhecidas
a indústria do álcool considera o uso de bebida como Special Session of the General Assembly
por jovens como minimização de riscos desses UNGASS (UNGASS), pode também transitar pelas
jovens usarem drogas ilegais? reuniões anuais da Comission on Narcotic Drugs
(CND)22, pode participar e também convidar estu-
Considerações finais - possíveis caminhos do diosos, acadêmicos, membros de ONGs do Brasil
ativismo internacional em Redução de Danos e do mundo para assistir reuniões que tenham
como foco a Redução de Danos, a política de dro-
O trabalho em rede tem se mostrado um
gas, os direitos humanos, o meio ambiente, as
forte aliado do ativismo; desde a criação das re-
políticas e discussões sobre mulheres ou qual-
des já citadas (REDUC, ABORDA e RELARD), per-
quer outro tema de interesse. Obter passes para
cebemos a sua força. Mais recentemente, criou-
entrar em reuniões da ONU, seja em Viena, Nova
-se a Plataforma Brasileira de Política de Drogas
Iorque ou Genebra, abrem portas, possibilitando
(PBPD)20 que não é específica em Redução de
o aumento do networking, atualização e apropria-
Danos, como as outras três, mas que possui em
ção de temas que ampliam a ação da REDUC e
seu bojo várias ONGs de Redução de Danos ou
das ONGs parceiras.
que encampam tais ações em sua prática.
Os cem anos de proibicionismo represen-
Um exemplo de ativismo em rede é o da
taram um tempo perdido em educação sobre dro-
REDUC, que além de ser parceira da ABORDA em
gas, que precisa ser recuperado. A Redução de
algumas intervenções, integra a PBPD. A REDUC
Danos poderá ser a forma de possibilitar o pre-
é também membro da ONG internacional Interna-
enchimento da lacuna secular que fez com que
tional Drug Policy Consortium (IDPC), que amplia o
a maioria das pessoas ficasse sem saber usar
ativismo e reforça ações conjuntas, principalmen-
drogas de forma segura, mesmo com uso cada
te na América Latina.
vez maior de drogas e cada vez mais potentes.
Outro forma de ativismo internacional pos-
Em termos de educação sobre drogas, um novo
sível para ONGs é ter status consultivo no United
ativismo acontece através da difusão das mídias
Nations Economic and Social Coucil (ECOSOC)21,
sociais e se espera poder recuperar parcialmente
ou seja ter acesso à ONU como observador e com
este hiato. A Internet, com sua linguagem obje-
voz em certas reuniões. O status consultivo for-
tiva e de agrado dos mais jovens tem se torna-
nece às ONGs acesso não apenas ao ECOSOC,
do uma grande difusora de educação em drogas
mas também a seus muitos órgãos subsidiários,
através de aplicativos, vídeos e debates.
aos vários mecanismos de direitos humanos das
Nações Unidas, bem como a eventos especiais Pela falta da cultura de uso de drogas se-
organizados pelo presidente. Para isso, a REDUC guro, nem mesmo o álcool que é uma droga legal
como qualquer outra organização da sociedade e não restrita pelos tratados da ONU, não vem
civil, seguiu um detalhado e trabalhoso processo recebendo, na maioria dos países, um cuidado

vol.21, n.2, dez 2020 |29


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

para que seus usuários saibam das consequên- Referências


cias adversas e de como preveni-las e reduzir da- 1. What’s the difference between an advocate and an ac-
nos. Nem mesmo o uso de drogas psicotrópicas tivist? have you been mislabeling?. Theblog.adobe.com/
para tratamentos em Saúde Mental e, também, whats-difference-advocate-activist-mislabeling. (on line).
como auxiliares no cuidado com dependentes de [acesso 30 mar 2020]. Disponível em: https://theblog.ado-

outras drogas23, pode ser desenvolvido com es- be.com/whats-difference-advocate-activist-mislabeling/.

tudos e pesquisas. O ativismo de acadêmicos da 2. Hall S. Advocacy versus activism: what is the differen-
área da neurociência, em parceria com a socie- ce? Ruminating.org; 2018. (on line). [acesso em: 30 mar
2020]. Disponível em: https://ruminating.org/news/
dade civil engajada, tem trazido esses temas à
advocacy-versus-activism-what-is-the-difference/.
tona, mas ainda estamos longe do desenvolvi-
mento científico e aplicação terapêutica que po- 3. Representação como processo: a relação Estado/socie-
dade na teoria política contemporânea. Rev. Sociol. Polit.
deríamos ter alcançado.
2014. 22(50):175-199. (on line). [acesso em: 30 mar 2020].
A cannabis medicinal é a substância ile- Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
gal, segundo critérios dos tratados da ONU, mais arttext&pid=S0104-44782014000200011&lng=en&nrm=
discutida, tanto pelo ativismo nacional quanto pe- iso>.

lo internacional, essa aliança tem tornado o tema 4. Surjus LTLS, Silva PC. (Orgs.). Redução de danos: am-
mais aceito pelos políticos e, principalmente, pe- pliação da vida e materialização de direitos. São Paulo: Di-
versa, UNIFESP, UNIVESP; 2019. (on line). [acesso em: 21
la sociedade em geral. O uso comprovado para
abr 2020]. Disponível em: https://www.unifesp.br/campus/
as epilepsias graves de crianças e doenças dos san7/images/E-book-Reducao-Danos-versao-final.pdf
idosos ganhou a simpatia e o respeito da popu-
5. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS).
lação em geral, o que vem pressionando a mu- Wolrd Health Organization (WHO). AIDS epidemic upda-
dança de legislações e aceitação. É um primeiro te – december 2001. Genebra, 2001. (on line). [acesso
passo, mas ainda lento, pois com medidas mais em: 21 abr 2020]. Disponível em: http://data.unaids.org/

resolutivas poderíamos incluir outras substan- publications/irc-pub06/epiupdate01_en.pdf.

cias no tratamento do sofrimento psíquico, como 6. Gomes T.B, Dalla Vecchia M. Estratégias de redução de
danos no uso prejudicial de álcool e outras drogas: revi-
é o caso dos chamados psicodélicos, do daime
são de literatura. Ciênc. saúde coletiva. 2018; 23(7):2327-
(ayuasca), ou da ibogaína.
2338. (on line). [acesso em: 30 mar 2020]. Disponível em
Portanto, muitos caminhos do ativismo : https://doi.org/10.1590/1413-81232018237.21152016
foram abertos. Alguns ainda são pequenas tri- 7. Fonseca EM, Ribeir JM, Bertoni N, Bastos FI. Syringe ex-
lhas pouco estruturadas e sem pavimentação. change programs in Brazil: preliminary assessment of 45
Mas a Redução de Danos já tem uma história programs. Cad. Saúde Pública. 2006; 22(4):761-770. (on li-
ne). [acesso em: 30 mar 2020]. Disponível em: http://www.
longa24 e pode permitir que o futuro das políticas
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2
de drogas seja mais humano e menos repressi- 006000400015&lng=en&nrm=iso.
vo, pois, segundo Denis Petuco25, a Redução de
8. International Drug Policy Consortium (IDPC). Drug Policy
Danos “não apenas se favorece da democracia, Guide. (on line). [acesso em: 30 mar 2020]. Disponível em:
mas participa ativamente de sua construção e http://fileserver.idpc.net/library/IDPC-drug-policy-guide_3-
aperfeiçoamento” (p.273). -edition_FINAL.pdf.

9. Niel M, Silveira DX. Drogas e Redução de Danos: uma


cartilha para profissionais de saúde. São Paulo: Programa

|30 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

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vol.21, n.2, dez 2020 |31


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Conceito de Redução de Danos em Políticas Públicas


Relacionadas a Drogas
Concept of Harm Reduction in Public Policies Related to Drugs

Maurides de Melo RibeiroI, Antonio Carlos Bellini JúniorII

Resumo Abstract

O consumo de substâncias psicoativas é hábito milenar, mas des- The consumption of psychoactive substances is an ancient habit,
de o século XIX, se observa um movimento proibicionista, que but since the 19th century, there has been a prohibitionist move-
tem papel hegemônico na questão das drogas e dita um controle ment, which has a hegemonic role in the issue of drugs and dicta-
social usando ferramental penal. A questão das drogas, sob um tes social control using criminal tools. The issue of drugs, under a
viés bélico e criminalizante, não traz efeito positivo esperado: a warlike and criminalizing bias, does not have the expected positive
erradicação ou diminuição do uso de drogas; e, ao contrário, traz effect: the eradication or reduction of drug use; and, on the contra-
malefícios como a marginalização do usuário, o cerceamento do ry, it brings harm such as the marginalization of the user, the res-
seu direito à saúde e de poder escolher pela aquisição de drogas triction of their right to health and of being able to choose by pur-
de melhor qualidade. A marginalização impacta, ainda, em seleti- chasing better quality drugs. Marginalization also has an impact on
vidade penal, onde, na sua maioria, homens, jovens e negros, são criminal selectivity, where, mostly, men, young people and blacks
parte de altos índices de encarceramento em razão de crimes re- people are part of high incarceration rates due to crimes related to
lacionados a delitos de drogas. Ainda se verificam relações entre drug crimes. There are still relationships between the phenomenon
o fenômeno da violência e sua articulação com as drogas. Como of violence and its articulation with drugs. As an alternative policy
política alternativa ao probicionismo, a Redução de Danos leva em to probationism, Harm Reduction takes into account the complexi-
consideração a complexidade do fenômeno e a multiplicidade de ty of the phenomenon and the multiplicity of variables, the indivi-
variáveis, a individualização do risco na cena do uso de drogas. Tal dualization of risk in the scene of drug use. Such a policy has hu-
política tem o direito humanitário como princípio basilar e consi- manitarian law as a basic principle and considers vulnerability as
dera a vulnerabilidade como critério de eleição para a adoção de the criterion of choice for the adoption of Harm Eeduction actions.
ações de Redução de Danos.
Keywords: Harm reduction; Prohibitionism; Drugs.
Palavras-chave:Redução de danos; Proibicionismo; Drogas.

Introdução

O
consumo de drogas e o conhecimento de
seus efeitos decorrem de hábitos milena-
I
Maurides de Melo Ribeiro (mauridesribeiro@uol.com.br) é advogado. Mes- res, sendo que “o limite do consumo, do
tre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (FD-USP) e Pesquisador do Laboratório de Estu- hábito, do apego, da paixão e do vício é sempre
dos de Política e Criminologia (PolCrim) do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP). determinado pelo contexto particular de cada
II
Antonio Carlos Bellini Júnior (bellini@bellinijunior.com.br) é advogado. época e sociedade” (p.52)1.
Doutorando em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas da Uni-
versidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP) e Pesquisador do Labora- Durante o período das grandes navega-
tório de Análise Espacial de Dados Epidemiológicos (epiGeo) do DSC/FCM/
UNICAMP. ções, o que se inicia no século XVI, um grande

|32 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

número de ervas transformaram-se em mercado- como um todo.


rias, algumas inclusive com características psi- De um lado, essa política não vem mos-
coativas. Tais produtos foram introduzidos na so- trando respostas positivas no sentido de erradi-
ciedade europeia2 e, já no curso do século XIX, a car ou diminuir o uso de drogas:
Europa e os Estados Unidos conviviam com mui-
“A política criminal de combate às drogas
tas drogas, das quais pouco conheciam e com as
não tem influído de forma importante na
quais não possuíam identidade cultural3. O marco
redução de sua circulação e consumo, ao
do comércio de larga escala, bem como a consoli-
contrário, o que se vê é o incremento da
dação do monopólio inglês desse mercado foram
oferta e da demanda. Nesse cenário, tem
as chamadas “Guerras do Ópio”4.
aumentado o número de falas públicas
Nas colônias das Américas, o uso de ma- alinhadas com a percepção do fracasso
conha pelos escravos, em cultos religiosos, tinha desse tipo de intervenção e já não soam
forte associação com a lascívia e o descontrole convincentes as manifestações oficiais em
(p.2)5, o que, somado aos iderários cristãos de defesa do controle penal das drogas, ´pe-
que o consumo de certos psicoativos estavam re- la´ e ´para´ a sociedade” (p.4) 8.
lacionados a rituais diabólicos (p.245)2, levaram
E, por outro lado, ainda falando sobre os
partes da sociedade norte-americana a um mo-
impactos dessa mesma política proibicionista,
vimento proibicionista, que culminou, em 1920,
essa traz malefícios que, em muito, afetam a dig-
com a edição da 18ª Emenda à Constituição dos
nidade da pessoa que faz a escolha de utilizar
Estados Unidos ou Volstead Act3.
drogas, bem como impactam negativamente em
Ainda no âmbito das “questões das dro- diferentes atividades e serviços públicos.
gas”, em que pesem as amplas críticas feitas ao
No que tange à dignidade da pessoa,
modelo proibicionista-punitivo, tal modelo tem ti-
há um verdadeiro processo de marginalização
do “papel hegemônico na formulação de políticas
do usuário de drogas ilícitas, o qual é obrigado
públicas nessa matéria” (p.17)6, tendo, em 1971,
a sorrateiramente plantar ou adquirir o psicoa-
o presidente norte-americano Richard Nixon che-
tivo e, posteriormente, novamente às sombras,
gado a declarar “guerra às drogas”, sendo este
utilizá-lo.
termo disseminado globalmente. Tal expressão
Esse processo ainda implicando em difi-
bélica dá, ao tema proibicionista das drogas, “a
culdade, por parte do usuário de drogas que fica
tônica do controle social exercitado através do sis-
a parte dos cuidados da saúde a que teria direi-
tema penal nas sociedades contemporâneas”7.
to. Ainda, no que tange à saúde do usuário, mas
pensado sob a ótica do psicoativo do qual fará
Dos impactos do proibicionismo e da “guerra uso, em drogas de má qualidade, com diversas
às drogas” impurezas e sem a certeza de qual o produto que
A “questão das drogas”, quando analisa- efetivamente está se comprando, chega-se, inclu-
da sob esse viés bélico e de criminalização, não sive, ao absurdo de uma narrativa, como obser-
tem se mostrado em nada eficiente; ao contrário, vado em um caso concreto, onde se constatou a
desnuda-se como uma condução política que traz venda de fermento em pó no lugar de cocaína9.
mais efeitos nocivos que benéficos, seja à pes- A marginalidade daqueles que se vêm as
soa que é usuária de drogas, seja à sociedade voltas do comércio ilegal de drogas também pode

vol.21, n.2, dez 2020 |33


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

ser observada com o claro processo de seletivi- “a maior parcela da vitimização por intervenções
dade penal10. policiais, com 33,6% das vítimas neste extrato
O Levantamento Nacional de Informações etário” (p.61)11.
de Penitenciárias, no período de julho a dezembro Sobre essa relação da juventude e jovens pobres:
de 201910, informa – referente aos presos daque- ”As favelas e periferias urbanas pas-
le sistema - a quantidade de incidências por tipo sam a ocupar um lugar estratégico para
penal; no total foram 989.263 incidências, sen- o forte mercado de drogas, recrutando jo-
do que desta totalidade, 200.853 incidências es- vens pobres para o tráfico. As disputas por
tão relacionadas a delitos de drogas (20,28%). E, pontos de venda de drogas entre facções
destas incidências em tipos penais de drogas, os inimigas e o enfrentamento direto com a
homens representavam 183.077 casos e as mu- polícia agregaram ao mercado de drogas o
lheres os outros 17.506 casos. As informações mercado de armas, dando início a uma ver-
gerais acerca de toda a população prisional, por dadeira guerra civil que se encontra inseri-
faixa etária, mostra que jovens de 18 a 24 anos da num “ciclo global de guerras” (p.155)12.
são 23,29% de toda esta população e, de 25 a
Ainda decorrente dessa guerra às drogas,
29 anos, mais 21,5%; a somatória dessas duas
observa-se o fenômeno da violência e sua arti-
faixas de idade atingem 44,44% de toda popula-
culação com as drogas. Esse fenômeno é muito
ção carcerária no período averiguado. Quanto à
complexo13 e a “demonização do tráfico de dro-
composição dessa população prisional por raça-
gas fortaleceu os sistemas de controle social,
-cor, pardos compõe 328.108 presos, ou seja,
aprofundando seu caráter genocida” (p.135)14. E,
49,88% da população, e pretos são 110.611 pre-
essa violência, em suas diferentes vertentes, im-
sos (16,81%), compondo ambos a população ne-
pacta substancialmente no sistema de saúde:
gra, segundo a classificação adotada pelo IBGE
“Por ser um fenômeno sócio-histó-
que soma pretos e pardos, ainda que o levanta-
rico, a violência não é, em si, uma ques-
mento não se utilize desta terminologia, totalizam
tão de saúde pública e nem um problema
66,69% do total de pessoas encarceradas.
médico típico. Mas ela afeta fortemente a
Chama a atenção que, entre 2017 e 2018,
saúde: 1) provoca morte, lesões e traumas
no Brasil, foram analisadas 7.952 mortes por
físicos e um sem-número de agravos men-
intervenção policial. Ao se analisar o perfil das
tais, emocionais e espirituais; 2) diminui a
vítimas nesses casos, verifica-se que a sobrer-
qualidade de vida das pessoas e das co-
representação de determinados grupos sociais
letividades; 3) exige uma readequação da
é a mesma que aquela observada no aprisiona-
organização tradicional dos serviços de
mento: 99,26% das vítimas de letalidade policial
saúde; 4) coloca novos problemas para o
são do sexo masculino (mas só cerca de 48% da
atendimento médico preventivo ou curativo
população é deste sexo); o percentual de negros
e 5) evidencia a necessidade de uma atua-
mortos pela polícia é de 75,4% (mas só aproxima-
ção muito mais específica, interdisciplinar,
damente 55% da população brasileira é negra);
multiprofissional, intersetorial e engajada
e, por fim, jovens de até 29 anos representam
do setor, visando às necessidades dos ci-
78,5% das vítimas letais das intervenções poli-
dadãos” (p.45)15.
ciais, sendo que jovens entre 20 e 24 anos são

|34 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Redução de Danos: uma política pública danos a usuários” (p.116)16. Em Portugal, o Plano
alternativa - definição, principiologia e critério Nacional Estratégico 2005-2012 se assenta em
de adoção seis grandes eixos; o eixo que trata que cuida
da redução da demanda dá ênfase a cinco sub-
Como verificado, os impactos da política
-áreas, uma delas, a redução de riscos e danos
proibicionista são extensos e complexos, e, jus-
(p.128)16.
tamente por isso exigem uma discussão que não
pode, nem deve ser simplista ou rasa. O estudo aponta:

Um estudo, de 200916, mostra diferentes “Terapias substitutivas e trocas de


tendências políticas e legislativas em países eu- seringa – sendo que estas são realizadas
ropeus com relação às drogas. Em todos os paí- não apenas em estabelecimentos oficiais,
ses analisados, salvo a Itália, dentre outros focos mas em farmácias privadas de todo o pa-
políticos, a Redução de Danos se fez presente. ís-, também são consideravelmente aplica-
Na Alemanha, o “Plano de Ação sobre Drogas e das em Portugal” (p.132)16.
Adição”, “alude à drogadição sob uma manifesta
perspectiva política de saúde pública” (p.106)16, Mostra também, que no Reino Unido, por
tendo como principais focos a prevenção do uso; sua vez,
aconselhamento; tratamento e reabilitação; auxí- “...é comumente lembrado por haver sido
lio à sobrevivência e Redução de Danos; e repres- ´pioneiro em políticas bem sucedidas de
são e redução da oferta. Na Espanha, Redução de Danos, que ali se intensifica-
“a realização de políticas de redução de ram desde a década de 1980 e vem sendo
danos merecem especial atenção das au- aplicadas sem interrupções” (p.134)16.
toridades e sociedade espanhola, havendo
ali bem sucedidos programas de trocas de
A necessidade de se pensar em uma po-
seringa – inclusive no interior de estabe-
lítica de Redução de Danos decorre do fato que
lecimentos penitenciários -, testes de qua-
nem sempre é possível que as políticas públicas
lidade de comprimidos em festas raves,
se pautem na abstinência, seja porque não é
terapias de substituição e disponibiliza-
possível, seja porque não é desejada. Daí que:
ção de narco-salas para consumo seguro”
“Na ótica da Saúde Pública, pode-
(p.111)16.
-se conceituar a política de redução de da-

nos como um conjunto de estratégias que
Na Holanda, os princípios básicos da po-
visam minimizar os danos causados pelo
lítica de droga são “a distinção entre drogas le-
uso de diferentes drogas, sem necessaria-
ves e drogas pesadas e a abordagem integrada e
mente exigir a abstinência do seu uso.
equilibrada do tema”, estabelecidos em um docu-
mento denominado “Política de Drogas: Continui- (...)
dade e Mudança”, de 1995, o qual, dentre seus A nova abordagem leva em consi-
“objetivos nucleares”, estabelece a “redução de deração múltiplos aspectos, tais como: a

vol.21, n.2, dez 2020 |35


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

complexidade do fenômeno, a diversidade A Redução de Danos


das substâncias e seus usos e as particu- “...contrapõe-se, desse modo, ao modelo
laridades sociais, culturais e psicológicas tradicional, de cunho meramente proibicio-
dos usuários, possibilitando, do cotejo de nista-punitivo, que desconsidera a comple-
toda essa gama de variáveis, uma melhor xidade do fenômeno, buscando uma meta
única: a erradicação da produção e con-
ponderação e individualização dos riscos
sumo das drogas etiquetadas de ilícitas”
e das vulnerabilidades na cena de uso de
(p.46)6.
drogas” (p.45)6.


Ela exige a elaboração de novas estraté-
A Redução de Danos, enquanto política gias e ampliando seu campo de atuação. Tal polí-
que prestigia e considera aspectos diversos, po- tica visa, ainda:
de-se mostrar um eficaz instrumento para ame- “...além do estabelecimento de vínculos
nizar o impacto da violência, um dos principais com os serviços de atenção, o cidadão usu-
fenômenos do proibicionismo. Essa articulação ário de psicotrópicos passa a se reconhe-
entre violência e drogas, como já exposto, é um cer não mais pela rotulagem sócio-cultural
fenômeno complexo que exige ser “tratado com que assumiu como estigma, maconheiro,
instrumentos, conhecimentos e ações que ultra- louco, delinquente, bandido, pária, margi-
passem a mera representação ou o moralismo nal, para assumir-se como um cidadão su-
simplista” (p.40)13. jeito de direitos, protagonista das reivindi-
cações de seu contexto social e responsá-

vel pela implementação das modificações
E essa visão simplista, com um obtuso necessárias para a melhoria de sua vida
olhar limitador, coloca a Redução de Danos em um pessoal e relacional” (p.47)6.
panôrama limitado de discussão e compreensão:

“A RD [redução de danos], mesmo O modelo de Redução de Danos, do pon-
após mais de 30 anos de discussão, ainda to de vista principiológico, pauta-se no respeito
é entendida como uma forma de apologia à dignidade da pessoa humana, respeitando-se
ao uso de substâncias psicoativas. No en- sua individualidade e sua autonomia e tem por
tanto, a RD [redução de danos] não exclui meta a moderação do uso dessas substâncias. A
a abstinência, não é reducionista colocan- pessoa do usuário como
do apenas a droga em primeiro lugar, não “um interlocutor qualificado, um sujeito de
negligencia o contexto psíquico e sociocul- direitos que deve, como tal, participar as-
tural, mas se apresenta como uma alter- sumindo um papel de protagonista das rei-
nativa de apoio à saúde na ótica da ação vindicações de seu contexto social e cor-
biopsicossocial”17 responsável pela implementação das mo-
dificações necessárias” (p.58)6.

A diferença entre o modelo proibicionista
e de Redução de Danos pode ser mais facilmente

|36 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Quadro 1 - Características de Modelos de Abordagem de Drogas


MODELOS PROIBICIONISTA REDUÇÃO DE DANOS

Problema enfocado danos e usos de drogas danos/ usos de drogas

Política de drogas: ”guerra às drogas” Tolerante/pragmática

Prioridade: Repressão ao uso de drogas ilícitas e Redução de danos à saúde individual


tráfico e coletiva
Postura em relação droga: Moralismo; estigmatização UD Realística/ pragmática
Papel/ posição do Estado Controle abusivo do cidadão Provê serviços para UDs,
Apoia organizações UDs,
Prega direitos dos UDs
Prevenção de drogas: “sociedade livre das drogas” Dano/risco assoc. abuso

Sistema de atenção à saúde/ Atendimento médico individual Vários tipos de serviços,


Serviços “alta exigência”*: abstinência “baixa exigência”**: busca ativa***
Prevenção a aids: dificultada por restrições legais articulada como prioridade
Abordagem de UDs/UDIs dificultada por restrições legais de Saúde Pública
*,** “Alta ou Baixa exigência”: refere-se a critérios mais ou menos restritos de inclusão de pacientes UDs no tratamento da dependência ou
de outros cuidados de saúde. ***“Busca ativa” de usuários de drogas em seu meio [agentes saúde, “redutores de danos”.

visualizado no Quadro 118. (condicionada socialmente) e consiste no


grau de risco ou perigo que a pessoa corre
Há ainda que se considerar a vulnerabili-
só por pertencer a uma classe, grupo, es-
dade como critério de eleição a ser adotado nas
ações de Redução de Danos. trato social, minoria, etc., sempre mais ou
menos amplo, como também por se encai-
“O conceito atual de vulnerabilidade xar em um estereótipo, devido às caracte-
também foi construído a partir do direi- rísticas que a pessoa recebeu.
to humanitário significando, inicialmente,
O esforço pessoal para a vulnera-
uma característica de pessoas ou comuni-
bilidade é predominantemente individual,
dades fragilizadas, do ponto de vista jurídi-
co ou político, na efetivação ou garantia de consistindo no grau de perigo ou risco em
seus direitos fundamentais” (p.801)19. que a pessoa se coloca em razão de um
comportamento particular. A realização do

‘injusto’ é parte do esforço para a vulnera-
Sendo que tal vulnerabilidade pode ser
bilidade, na medida em que o tenha decidi-
classificada partindo da idéia de seletividade
do com autonomia” (p.270)20.
penal:
E essa “vulnerabilidade foi novamente
“Esta situação de vulnerabilidade
deslocada do restrito âmbito penal e reformulada
é produzida pelos fatores de vulnerabilida-
em três dimensões, a saber, uma vulnerabilidade
de, que podem ser classificados em dois
frente ao sistema penal, uma vulnerabilidade da
grandes grupos: posição ou estado de vul-
comunidade e uma vulnerabilidade psicossocial”
nerabilidade e o esforço pessoal para a
(p.63)6, sendo esses planos interdependentes.
vulnerabilidade.
Essa tridimensionalidade da vulnerabi-
A posição ou estado de vulne-
lidade pode ser adotada como critério formal e
rabilidade é predominantemente social

vol.21, n.2, dez 2020 |37


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

objetivo na “a ponderação e determinação das Referências


ações redutoras de riscos e danos consideran- 1. Carneiro H. Drogas: a história do proibicionismo. São
do as especificidades individuais e coletivas das Paulo: Editora Autônoma Literária; 2019.
pessoas, segmento ou comunidades, além do ti- 2. Escohotado A. O livro das drogas: usos e abusos, pre-
po de droga, sua apresentação e forma de admi- conceitos e desafios. São Paulo: Dynamis Editorial; 1997.
nistração” (p.65)6. 3. Musto D. The american disease: origins of narcotic con-
trol. New York: Oxford University Press; 1987.

Considerações finais 4. Passetti E. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo:


EDUC; 1991.
Na “questão das drogas”, o modelo de
proibicionismo e sua política de “guerra às dro- 5. Dória R. Os fumadores de maconha: efeitos e males do
vício. In Brasil. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Ma-
gas” não vêm mostrando resultados eficientes
conha: coletânea de trabalhos brasileiros. Rio de Janeiro:
para seu almejado fim, ou seja, uma “sociedade Ministério da Saúde; 1958.
livre das drogas”. Ao contrário, esse modelo mos-
6. Ribeiro MM. Drogas e redução de danos: os direitos das
tra-se pernicioso. O usuário de drogas, que não pessoas que usam drogas. São Paulo: Editora Saraiva;
abraça a abstinência, vê sua dignidade humana 2013.
atacada nos mais distintos cenários: é estigmati- 7. Karam ML. Proibição às drogas e violação a direitos fun-
zado, criminalizado, muitas vezes tem cerceado o damentais. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais.
2013; 7(25). (on line). [acesso em: 27 ago 2013]. Disponí-
acesso aos serviços de saúde e, na maioria das
vel em: http://dspace/xmlui/bitstream/item/6937/PDIexi-
vezes, se vê utilizando drogas de péssima quali- bepdf.pdf?sequence=1
dade. No cenário coletivo, a sociedade também
8. Rezende BVRG. A ilusão do proibicionismo: estudo sobre a
perde. A criminalização e a condução bélica da criminalização secundária do tráfico de drogas no Distrito Fe-
questão levam a números alarmantes de mortos, deral. 2011. (Tese). Universidade de Brasília. Brasília; 2011.
bem como se mostra responsável por parte do (on line). [acesso em 25 set 2020]. Disponível em: https://
repositorio.unb.br/handle/10482/9856?locale=pt_BR
problema do encarceramento em massa. É preci-
so uma alternativa a esse modelo, que se mostra 9. Costa PA; Veríssimo MA. “Aqui, até o pó é fake”! - apon-
esgotado. tamentos sobre Lei de Drogas e ações policiais no Brasil
a partir de um caso particular. Rev. Direito Mov.; 2020.
É preciso que a política “de drogas” tenha 18(1):28-50. (on line). [acesso em 25 set 2020]. Disponível
olhos para dignidade da pessoa humana, reco- em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistadireitoemovimen-
to_online/edicoes/volume18_numero1/volume18_nume-
nhecendo o usuário de drogas como um sujeito ro1.pdf#page=30
de direitos, tais como a individualidade e a auto-
10. Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Levanta-
nomia. A vulnerabilidade pode ser um instrumen-
mento Nacional de Informações de Penitenciárias: período
to para definição de ações que identifiquem “ca- de julho a dezembro de 2019. (on line). [acesso em: 25
rências e necessidades da pessoa ou grupo so- set 2020]. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/
cial, dando maior objetividade e incrementando sisdepen

o pragmatismo das intervenções” (p.129)6. Essa 11. Bueno S, Forum Brasileiro de Segurança Pública. Aná-
é a política de Redução de Danos, que se mos- lise da letalidade policial no Brasil. Anuário brasileiro de
Segurança Pública 2019. São Paulo: Fórum Brasileiro de
tra como alternativa viável na “questão das dro-
Segurança Pública; 2019. 13:61-63. (on line). [acesso em:
gas”, já tendo sido adotada em diversos países, 25 set 2020]. Disponível em: https://www.forumseguran-
e que pode ser abordada com maior amplitude no ca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FI-
NAL_21.10.19.pdf
Brasil.

|38 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

12. Passos EH, Souza TP. Redução de danos e saúde públi-


ca: construções alternativas à política global de “guerra às
drogas”. Psicol. Soc. 2011; 23(1):154-162.

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42. (on line). [acesso em: 25 set 2020]. Disponível em: ht-
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1991.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

A Utopia da Percepção: cultura e danos como o projeto


de redução no mundo contemporâneo
Utopia as Perception: the reduction of culture in the contemporary world

Rubens de Camargo Ferreira AdornoI

Resumo Abstract

Tomando como ponto de partida a etimologia do termo cultura Taking as a starting point the etymology of the term culture, and a
realiza-se uma rápida exposição da noção de cultura na antropo- quick exposure of the notion of culture in anthropology, from ethno-
logia, do etnocentrismo a diversidade, da cultura como signo hu- centrism to diversity, culture as a human sign, subjectivities and
mano, subjetividades e os usos de drogas como cultura constran- the use of drugs as culture constrained by the intensity of market
gidos pela intensidade dos processos de mercado e pela ideologia processes and neoliberal ideology.
neoliberal.

Keywords: Cultura; Use of drugs; Subjetivities.


Palavras-chave: Cultura; Uso de drogas; Subjetividades.

Introdução

A
escrita deste texto trouxe uma série de di- dentro de um mundo que alarga e escancara ca-
lemas por envolver uma relação tão ampla da vez mais as diferenças: a alta concentração de
entre o termo “Redução de Danos” e todo renda, com consequente aumento da pobreza, e a
o campo de significado que pode ser abrangido defesa cínica e aberta de tudo aquilo que se julga-
pela noção de “cultura”. O grande desafio que se va indefensável.
colocava ao lado e ao largo é também uma certa Tempo de declínio das reflexões e da “cul-
insatisfação contemporânea em relação ao trata- tura”, do predomínio das, assim chamadas redes
mento que vem sendo dado ao campo de reflexão “sociais” e que, ao se apropriarem do termo “so-
da ciência, das instituições, da vida social e das cial” se propiciam, por um lado de uma rápida e
palavras. Para além de uma generalidade e de um intensa conectividade positiva, inclusive para o de-
aviltamento da reflexão em torno de textos e pala- bate, e por outro, reduzem o sentido da palavra
vras ditas, continuamos a acreditar que as pala- “social” da reflexão sobre os modos de vida, os
marcadores de diferença e o estado das pessoas
vras devem fazer sentido e que se tornam também
em sociedade. Essa denominação redes sociais
um terreno de navegação difícil, pois estão cada
passou a designar o circuito das relações pesso-
vez mais atravessadas por um campo político,
ais, supondo uma homogeneidade entre todos os
seres, até que se tornem por algum motivo uma
I
Rubens Adorno (rubens.adorno@gmail.com) é antropólogo com Especia-
lização, Mestrado e Doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São “celebridade”. Tempo de refletir até que ponto
Paulo, Professor Aposentado da Universidade de São Paulo, atualmente par-
ticipa dos Programas de Pós Gradução em Sustentabilidade e Saúde Global a cada vez maior aceleração desse mundo e da
e Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da mesma universidade.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

disputa nessas “redes” não traz um desbalanço Pois, apenas para iniciar, provoco que uma
para a própria rotação e devir do mundo. das possibilidades de incorporar o termo das cul-
Além dessas questões, me pus a pensar turas talvez seja uma forma de encontrar linhas de
quem seria de fato o leitor /interlocutor de uma fuga para manter a diversidade do mundo e, nesse
publicação sobre a Redução de Danos. Os pró- sentido, aumentar as chances de voz e os espa-
prios praticantes da redução, movimentos sociais, ços para as infinitas opressões presentes hoje, no
profissionais assalariados do setor Saúde? Isso mundo.
fez com que fizesse e refizesse os temas e o en- O termo “cultura”, talvez em um sentido di-
cadeamento do texto. Também tomei a decisão de ferente do que apontamos para o termo “social”,
não me estender demais nas trilhas, indagações vem há longo tempo também sofrendo um intenso
e possíveis desdobramentos do assunto, buscan- desgaste em seu significado, não só pela exten-
do uma abordagem se não genérica, pelo menos são e generalidade de seu uso, mas pelo esvazia-
mais geral sobre esses temas amplos. Nesse sen- mento do debate em torno dos seus significados
tido, também me justifico desde já pela ausência
que ficam reduzidos, a mais das vezes, a ícones
de muitas citações que poderiam ser referidas em
preconizados, pré-definidos e pré-estabelecidos.
um trabalho mais extenso e exaustivo.
Ícones que, por trazer já sua definição, correm o
Por fim, fiquei a pensar no sentido da Re-
risco de estimular verdades essencialistas e cren-
dução de Danos; trata-se de algo que vem sem
ças fundamentalistas como sinônimos de “cultu-
dúvida com a intenção e o gesto de aproximar pes-
ra”. Esse desgaste promovido pela promoção de
soas, possibilitar espaços de liberdade e autono-
um novo conservadorismo aliado ao mercado e a
mia para grupos colocados na invisibilidade, dis-
“saúde” do capital financeiro, também opera em
criminados e, certamente, no patamar do que o
filósofo Agamben retoma como o “homo sacer”1,II: relação às chamadas “Ciências Humanas” ou hu-
a vida nua, aqueles que podem deixar de viver. manidades. Entretanto, em determinados circuitos
Quem sabe nós todos, numa altura desse mundo, acadêmicos e em algumas áreas e movimentos
se não for detida toda essa onda que alia pen- sociais, assistimos a um intenso debate que sus-
samentos de extrema direita e liberalização dos tenta a reserva crítica necessária à sobrevivência
mercados e fluxos intensos de capitais, não nos de ideais de autonomia e reflexão.
tornaremos todos “homo sacer”. Mas, voltando ao Discorrer um pouco mais sobre uma narra-
fio do assunto, a Redução de Danos trata-se de tiva a respeito das culturas(s) e da compreensão
uma “rede” que envolve militâncias, saberes, cul-
do conceito de “homem”, como diversidade, torna-
turas, ações e luta por espaços das políticas am-
-se nesse tempo uma Redução de Danos à falta
plas abrangidas pelo amplo campo contemporâ-
completa da percepção. Seja pela generalidade e
neo, que envolve a Saúde e que aqui estou alargo
apropriação desses termos (cultura e sociedade)
seu significando como a defesa do direito das pes-
considerados não técnicos e, por isso, passíveis
soas a decidir e ter apoios, quando necessários,
sobre a gestão de seus corpos e de suas vidas. de serem interpretados sem restrições ao fazerem
Um campo que envolve subjetividades e, portanto, parte daquilo que todos sabem e todos podem
culturas. opinar.
II
Homo sacer era uma expressão jurídica usada na antiguidade clássica para
se referir àqueles que poderiam morrer.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Cultura, do que queremos falar? Culturais”, que se desenvolveram a partir da re-


Para começar a falar de cultura, talvez um flexão sobre as artes, a literatura e a cultura de
bom argumento seja seguir a origem etimológica massas do século XX.
do termo. Nesse sentido, Terry Eagleton2 inicia sua Destacaria também Terry Eagleton2 que,
narrativa sobre a “ideia de cultura”, a partir da eti- uma das transformações sofridas no uso do ter-
mologia da própria palavra que é em si reveladora mo, aproximou o sentido de “cultivar” com o de
e própria a iniciar uma reflexão. Cita ele ser a pa- “colonizar”, estabelecendo assim também um
lavra “cultura” um dos termos mais complexos da campo de assimetrias e diferenças, o que impli-
língua, termo que estaria ligado em sua origem ao ca em pensar o desdobramento desse termo no
cultivo e ao que se depreende um par de oposi- campo das Ciências Humanas e Sociais, em que o
ção: cultura se opõe a “natureza” e tem como sen- lugar privilegiado e praticamente central a respeito
tido original a palavra “lavoura” ou “cultivo agríco- da dimensão e significado da cultura esteve ligado
la”. O autor na citação do rodapé, então especifica à História e ao domínio da Antropologia enquanto
a palavra latina “culter” que designaria a relha do disciplinas. Ao situar-se como uma disciplina dis-
arado2 (p.9), significado que a partida propicia em posta a refletir e compreender o limite e extensão
uma chave de interpretações bastante interessan- da noção de homem ou de humanidade, se enre-
tes e, portanto, tão vincada à própria ideia de uma dou nessa oposição/síntese/complementaridade
história da espécie humana. da noção de natureza/cultura. Nesse lugar, o sig-
A seguir, o próprio autor completa: nificado do termo “cultura”, se confundiu com o
próprio campo de estudo do homem e sua posição
“Se cultura originalmente significa la-
na vida da terra.
voura, cultivo agrícola, ela sugere tanto re-
gulação como crescimento espontâneo. O
cultural é o que podemos mudar, mas o ma- Homem e cultura como diversidade
terial a ser alterado tem sua própria existên- Se a Antropologia, como disciplina, foi se
cia autônoma.... Regras, como culturas, não constituindo como um projeto de conhecimento do
são nem puramente aleatórias nem rigida- “outro”, dos povos então não europeus, questão
mente determinadas – o que quer dizer que que nasceu dentro do colonialismo, que posiciona-
ambas envolvem a ideia de liberdade .... A va no centro da ordem das coisas o homem “bran-
ideia de cultura, então, significa uma dupla co e ocidental”, tendo como referência o homem
recusa: do determinismo orgânico, por um burguês do continente europeu, e partiu de uma
lado e da autonomia do espirito, por outro ideia de hierarquizar os outros, homens não bran-
...”2 (p.13-14). cos e não europeus que habitavam as regiões do
Esse bom começo da definição de cultura mundo “conquistadas”; esses eram sempre clas-
evoca a sua ligação de origem com um sentido sificados como desprovidos de humanidade/cultu-
de autonomia, mudança e liberdade; além disso ra, ou providos de uma cultura mais rudimentar do
também situa um movimento de síntese e não de que a do conquistador, dando base a uma mentali-
oposição entre cultura e natureza, como muitas dade histórica que vai apoiar o que chamamos de
vezes foi entendido e interpretado. “etnocentrismo”. Essa noção se viu enredada em
A abordagem de Terry Eagleton2 se re- suas próprias tramas, quando na Geografia e His-
laciona com o campo dos chamados “Estudos tória e fundamentalmente com a experiência dos

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

trabalhos etnográficos que foram problematizando essa ação pós-colonial se intensifica, no sentido
o próprio conceito etnocêntrico de cultura. Desde de deslegitimar as diferenças e a diversidade so-
então, um grande desafio da Antropologia tem si- bre os outros que vivem nas fronteiras nacionais
do o de identificar e estender os limites do huma- ou não das sociedades.
no, encontrando sua síntese em diferentes modos Tornou-se então imperativo para o deba-
de vida e de cultura como parte de um mesmo te e o conhecimento produzido no campo da An-
mundo/natureza, construindo a evidência da ideia tropologia a crescente percepção da diversidade
de homem, como uma espécie a ser caracteriza- dos homens e de suas especificidades culturais
da por sua diversidade, e a percepção que a his- que incorporam seus modos de vida, bem como
tória das sociedades e suas mudanças possibili- o desafio de compreender e reconstruir os crité-
tam ampliar o campo das diversidades entre os rios internos que cada cultura utiliza para a sua
homens. autorreflexão4.
Necessário frisar que esse processo, que A percepção da existência de uma diversi-
não foi um processo pacífico; se o confronto ori- dade cultural trouxe duas implicações de caráter,
ginou um entendimento da diversidade como ine- digamos, teórico-político; a primeira, de instaurar
rente a cultura, o projeto expansionista europeu a reflexão relativista ou a noção de relativismo cul-
foi, talvez, um dos processos mais violentos da tural, que por si só incorria e incorre em levar a um
história. Michel Taussig3 descreve e interpreta co- profundo círculo vicioso de algo como “cada um
mo a dramaticidade do confronto foi também pro- cada um”; e daí a segunda implicação, que era e
dutora da violência e do extermínio, reproduzindo, que tem sido a de confrontar as diferenças com
a partir de narrativas e relatos de colonizadores e a hegemonia da cultura dita ocidental; ou seja, a
viajantes, a inscrição da dominação e da morte do compreensão de que existem diversos e muitos
“outro”, como parte desse empreendimento. modos de vida e que posicionam os homens na
Por outro lado, será a partir das culturas vida contradiz construções fundamentadas em or-
“nativas” que a modernidade pode, no plano cultu- dens originárias da força e do poder e, também,
ral, possibilitar a partir das “culturas” do “outro”, confronta a ideia de que isso ou aquilo seria algo
das sensações, cheiros, aromas, paladares, plan- natural ou próprio do homem; quer isso dizer: a
tas exóticas, desde a comida, aos cheiros, ritmos que homem está-se “naturalmente” referindo?
e sons e o alargamento dos dispositivos senso- Conforme então citam Gilberto Velho e Vi-
riais e estéticos; um processo de reencantamento veiros de Castro4:
do mundo e certamente do campo da cultura.
“A Antropologia completou a “devora-
Se essa trama se desenvolveu a partir de ção” ocidental das diferenças, ao se propor
um originário projeto colonial de expansão das eco- como “tradutora” para o discurso científico
nomias de mercado desde o século XV, podemos da multiplicidade vivida de esquemas cogni-
arriscar dizer que as fronteiras desse projeto/ação tivos e emocionais que os homens usaram
colonial, tomado como um projeto etnocêntrico e para se pôr no mundo. Mas esse canibalis-
evolucionista, se mantém através de uma razão mo evita um outro pior — a destruição ce-
de força e de impositividade de forma latente e ga, em nome dos benefícios da civilização
manifesta na contemporaneidade. Para além das ocidental, de tudo aquilo que é diferente.
fronteiras geográficas, continentais e territoriais, Assim, com a decadência do evolucionismo

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

ingênuo que a marcou em sua infância, a pode pensar nos homens na vida, a partir de
Antropologia inscreve-se definitivamente no múltiplas naturezas ou condições.
movimento geral de autoquestionamento A diferença cultural tornou-se, portanto,
da civilização ocidental. O espelho do Outro um dado irredutível. Entretanto, notamos que,
assola a consciência do século XX. Os movi- por inércia ou por repetição, o uso da expressão
mentos culturais fundamentais que iniciam “natureza humana” ou a referência abstrata “os
esta época — o surrealismo, a lingüística, a homens sempre foram assim ou assado”, para
psicanálise e o socialismo — estão marca- além do denominado senso comum, segue a
dos pela negação dos “centrismos” narcísi- aparecer inclusive como um jargão repetitivo em
cos que dominaram o Ocidente. E tais movi- alguns produtos acadêmicos, notadamente os
mentos muito devem à Antropologia, como da área da “Saúde Pública/Coletiva” latu sensu.
se pode observar” (p.6).
E, como veremos na chamada área das
Apesar de todo esse movimento que ao drogas ditas ilegais, essa noção genérica e abs-
olhar para a multiplicidade de modos de vida dos trata de homem ou natureza humana é que tem
humanos e, inclusive, para o desvelamento de ló- fundamentado as bases dos pregões proibicio-
gicas que passaram também a deconstruir noções nistas e repressivos.
de moralidade e da alma, como citam ao final os
Por fim, há que se destacar, no desen-
autores em relação ao Surrealismo, a Psicanálise
rolar da discussão de cultura no campo da An-
e ao Socialismo, persiste como a visão restrita,
tropologia e perante uma visão mais recente da
fundamentalista e simplista uma noção de huma-
interpretação das relações dos diferentes “ho-
no pretensamente calcada na unidade biológica,
mens” com os seus mundos/cultura, de que
que inclusive parte de uma noção descontextuali-
essa se apresenta como uma linguagem, um
zada e individualizada da vida. Dizemos isso por-
conjunto de significados incorporado aos mo-
que, partindo dos pressupostos das diversidades
vimentos, às agências e as sensibilidades dos
e dos distintos modos de estar no mundo, o con-
corpos. Uma linguagem serve para interligação e
ceito de “vida” também se requalifica como algo
comunicação; linguagens são compostas de sig-
que só pode existir a partir de conjuntos diversos
nos e significados; assim também, os códigos,
e complexos que relacionam homens aos lugares
símbolos, significados compõem linguagens pró-
e ao mundo.
prias da cultura que passam a ser incorporadas
O reconhecimento da diversidade cultu- a determinados contextos. De acordo com Cli-
ral implica, inclusive, na desmontagem do Mode- fford Geertz5, que por sua vez se baseia em uma
lo Evolucionista de homem e de cultura, quando frase clássica de Max Weber, o homem é um
mostra que há diferentes formas, modos, manei- animal que vive em uma teia de significados que
ras de se fazerem os homens. ele mesmo construiu. Este entendimento leva a
Importante, considero, sublinhar que a evi- uma ruptura não apenas interpretativa, mas fun-
dência da diversidade cultural de onde se depre- dante da própria espécie: dá conta de que, pa-
ende que a ideia de “homem”, enquanto espécie, ra sobreviver, os homens, além de se alimenta-
só pode ser tomada e reconhecida a partir da di- rem para restituir digamos as energias, necessi-
ferença; ou seja, falar de natureza humana pode tam de estar imersos em universos simbólicos,
ser tomado como um mito, pois na verdade só se sejam eles apoiados em crenças, tradições,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

representações, relações de proximidade e paren- contribuir inclusive para ajudar a demonstrar teo-
tesco que tenham significados, etc. Entender a cul- ricamente novas maneiras de olhar para drogas,
tura como linguagem que perpassa e dá vitalidade usuários e cuidados.
e sentido aos corpos humanos significa compreen- Cita MacRae6:
der que, nos mais variados grupos, contextos da
“Howard Becker, um dos pioneiros
sociedade e em grupos e sociedades específicas,
do estudo das dimensões sociológicas da
essas linguagens significam um compartilhamento
questão das drogas, chama atenção para
e, ao mesmo tempo, operam como um sistema de
a importância de um saber sobre as subs-
interpretação do mundo e dos outros externos a
tâncias que se difunde entre seus usuários.
esses grupos/contextos.
Constatando que as idéias do usuário sobre
Compreender a cultura como uma lingua- a droga influenciam como ele as usa, inter-
gem, que interliga e faz parte da vida e sentido preta e responde a seus efeitos, Becker ar-
ao movimento dos corpos humanos, também pro- gumenta que a natureza da experiência de-
blematiza uma noção prevalente na Biomedicina pende do grau de conhecimento que lhe é
contemporânea: a de que a vida está limitada ao disponível. Já que a divulgação desse saber
funcionamento, movimento e “instintos” do corpo é função da organização social dos grupos
como um organismo físico, inerte e isolado, a um onde as drogas são usadas, os efeitos do
sistema de órgãos que demandam e que reagem uso irão, portanto, se relacionar a mudan-
a estímulos exteriores e obstruções e ao funciona- ças na organização social e cultural” (p.2).
mento interno desse sistema. Os corpos, seus de-
sejos, movimentos, sensações, afetividades têm
Uma referência clássica de Howard Becker
seus sentidos na vida perpassados pela cultura,
é o seu didático e famoso artigo sobre o uso da
esse complexo e diverso e, no caso da contem-
cannabis e os músicos de jazz7. Um dos pontos
poraneidade, cada vez mais incessante e inten-
altos desse trabalho é demonstrar que o uso de
sa produção de conjunto de símbolos, imagens,
uma substância envolve um processo complexo
crenças, gostos, paladares, consumos etc.. que
de educação estética e sensorial e o de como um
passam e interligam os corpos humanos, dando
uso de substância potencializa o domínio de apri-
sentido a vida cotidiana e aos diferentes modos
moramento de estética e da sensibilidade no cam-
de vida.
po da música, em particular da carreira do jazz que
ele etnografa.
Da cultura como campo de significados e o olhar
Ainda, é MacRae que registra os trabalhos
sócio-cultural no campo das drogas
pioneiros que no Brasil iniciaram uma abordagem
Coube, no Brasil, a Edward MacRae6 ini- das Ciências Sociais, contribuindo para deslocar a
ciar as narrativas sobre um olhar cultural sobre as reflexão sobre o campo de consumos de drogas/
drogas e seus modos de uso. Essa percepção é psicoativos ao domínio das subjetividades produ-
contemporânea às primeiras ações de Redução zidas no contexto ainda do período da Ditadura
de Danos, que surgem no contexto da epidemia Militar brasileira: cita que foi Gilberto Velho que
do HIV/aids. Este autor, que descreve como deter- introduziu os trabalhos de Howard Becker no Brasil
minados textos das Ciências Sociais tornaram-se e que também apresentou talvez a primeira tese
importantes para iniciar esse debate e puderam em que etnografa o uso de drogas consideradas

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

ilegais entre as classes médias no Rio de Janeiro8. surgimento de várias etnografias no Brasil e em
Refere ainda MacRae, a pesquisa da antropóloga outros contextos, surge a partir da visibilidade que
Janirza Cavalcante da Rocha Lima que, inspirada o tema das drogas vai readquirir a partir da década
pela tese e pela metodologia de Gilberto Velho, de 90 do século XX, em vários países
realizou possivelmente a primeira etnografia bra-
sileira sobre usuários de drogas injetáveis, ao tra-
Neoliberalismo, subjetividades e as cenas
tar do uso de AlgafanIV,9. Também o autor registra,
de uso público: cultura, mercado e territórios
como primeiros estudos nesse campo no Brasil,
psicotrópicos
a pesquisa etnográfica de Fernandez, iniciada em
A “questão das drogas” ganha intensa visi-
1988 e terminada em 1993, que constatou vários
bilidade a partir de contextos urbanos do final do
casos de uso de drogas injetáveis, a estigmatiza-
século XX. Trata-se de uma questão complexa, que
ção que os cercava e a consequente dificuldade
envolve processos de intensificação da sociedade
de acessá-los por parte dos serviços de saúde10.
capitalista de mercado, a intensificação das mo-
Em relação à ação de Redução de Danos,
bilidades, transações comerciais e financeiras e
no âmbito do uso de drogas injetáveis, podemos
o desenvolvimento de mercados paralelos/ilegais
citar o trabalho de Cristiano Gregis, em Porto Ale-
que acentuam os processos de concentração de
gre11. O autor também vai registrar como o traba-
renda e o empobrecimento de grandes parcelas
lho de Redução de Danos pode se constituir numa
de populações, processos políticos e suas conse-
“competência cultural”, na formação de Enferma-
quências internacionais, nacionais e locais. Esses
gem. Citando seu trabalho de campo desenvolvi-
processos aumentam grandemente as pressões
do no âmbito do Programa de Redução de Danos
sobre grande parte da população que, além de
de Porto Alegre, entre 1998 e 2000, o autor afir-
sua sobrevivência, afetam a possibilidade de sua
ma que, para além da troca de seringas, pode-se
autonomia. Esses processos de aprofundamento
apreender maiores complexidades ante a questão
das diferenças contrastam com a intensificação
das drogas12.
da oferta de consumo. O consumo e a oferta, am-
As referências que citamos, reiteramos, pliação e velocidade dos consumos, que represen-
dão conta, no caso do Brasil, do início da reflexão tam também a intensidade, livre fluxo e liberdade
sobre o uso das chamadas drogas ilícitas a par- de circulação e acumulação do dinheiro nas mãos
tir de uma abordagem sócio-cultural. A partir de dos cada vez mais ricos, talvez se torne a expres-
então, desenvolve-se praticamente um campo de são mais visível dessa intensificação da economia
estudos e debates sobre o fenômeno das drogas, capitalista; processo que vem sendo conhecido
sociedade e cultura que não pretendemos aqui como o de uma investida “neoliberal” ou da he-
esgotar, mas que pode ser exemplificado, no Bra- gemonia de uma teoria “neoliberal sobre a vida e
sil, pelos diversos temas e níveis de abordagem a sociedade” e que terá consequências bastan-
presentes na coletânea: “Drogas e Cultura: Novas te devastadoras na destituição de modos de vida,
Perspectivas”13. sobrevivência das populações mais empobrecidas
Um campo mais complexo, que envol- e limitadas ao acesso à vida e ao consumo.
ve o tema dos usos e da Redução de Danos e o Como cita David Harvey14, a respeito dos
pressupostos da teoria neoliberal:
IV
Algafan é o nome comercial do medicamento analgésico do grupo de
narcóticos. “ O neoliberalismo é , antes de tudo,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

uma teoria sobre práticas politico econô- países, mas também as respostas constrangi-
micas que afirma que a melhor maneira das que os sujeitos procuram criar ante a essas
de promover o bem-estar do ser humano situações. Através das subjetividades, se realiza
consiste em não restringir o livre desenvol- o efeito das estruturas econômicossociais sobre
vimento de suas capacidades e liberdades as pessoas e também a expressão que elas pos-
empresariais do indivíduo dentro de um sam ter como resistências e linhas de fuga às
marco institucional caracterizado pela de- situações a que lhes são colocadas. Nesse senti-
fesa forte dos direitos da propriedade priva- do, as subjetividades devem ser entendidas mui-
da, mercados livres e liberdade de comércio to mais como um conceito cultural/social do que
“ e continuando : “o processo de neolibera- como forma de expressão da vivência subjetiva
lização trouxe um processo de “destruição como tradicionalmente conceituado15. A expres-
criativa” (sic) não só nos marcos dos pode- são de processos de constituição que envolvem
res institucionais existentes ( desafiando in- a construção das subjetividades contemporâne-
clusive as formas tradicionais de soberania as tem sido referidos também pelo conceito de
estatal) nas relações sociais, nas áreas de “sofrimento social”.
proteção social, nas combinações tecnológi- Os chamados “territórios psicotrópicos”
cas, nas formas de vida e pensamento, nas e a construção do uso de drogas como um “pâni-
atividades de reprodução, nos vínculos com co moral” são epifenômenos desses processos
a terra e nos hábitos do coração...” (p. 6-7)V. de mudanças na economia capitalista e de seu
Ou seja, a adoção e prática de uma dou- projeto contemporâneo fortemente embasado e
trina/ideologia neoliberal veio significar uma no- justificado pela ideologia neo-liberalVI.
va investida colonial sobre a vida das pessoas e Os usos públicos/visíveis de drogas con-
da sociedade e um efeito opressor e avassalador sideradas ilegais em espaços urbanos contem-
sobre a cultura como expressão da vida humana. porâneos são fenômenos complexos que envol-
Trata-se pois da imposição da ideia de instalação vem, além da produção dessas “subjetividades”,
de um único modo de vida, que une a a ação em- a existência e expansão de mercados considera-
presarial de realizar negócios, acumular dinheiro e dos ilegais, mas que se constituem como empre-
ter como garantia um Estado que deixa de prover endimentos paralelos perfeitamente conectados
proteção social e se torna um defensor forte das com a expansão sem fronteiras dos livres merca-
atividades privadas e, consequentemente, da re- dos capitalistas fortemente protegidos pela pro-
pressão de outros modos de vida. priedade privada e pelo Estado.
As consequências das transformações No Brasil, o aparecimento do que foi pro-
causadas pela intensificação do capitalismo con- duzido midiaticamente e registrado de múltiplas
temporâneo, estimulado, justificado e orientado formas, inclusive no terreno acadêmico, como
pela doutrina neoliberal vem sendo descrita, in- “cracolândias”, representa um tipo de expres-
terpretada e denunciada através do que vem sen- são que designou os “territórios psicotrópicos”,
do chamado de “subjetividades”, que significa parte referida da produção de estudos de etno-
não apenas a interpretação da opressão desse grafias urbanas sobre drogas. Podemos citar as
movimento global sobre os sujeitos, localidades,
VI
Usamos aqui propositalmente o termo ideologia, pois se trata delibera-
damente de um pressuposto doutrinário imposto através de uma razão de
V
tradução e grifos nossos. mercado e de poder.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

pesquisas mais conhecidas de Bourguois16, nos Braços Abertos28. Além disso, a Redução de Da-
Estados Unidos; Fernandes17 e Vasconcelos18, em nos passou a ser adotada em muitos municípios
Portugal e no Brasil, entre muitas publicações19-27. na atenção básica em saúde29.
Os “territórios psicotrópicos” são, portan- Importante salientar que as questões con-
to, efeitos e construções inseridas no panorama temporâneas nesse campo, que envolvem a pre-
das investidas de mercado e produção das subjeti- sença de atores sociais em espaços quando não
vidades; neles, registram-se ações de assistência apenas discriminados, alvo de verdadeiras estra-
e de defesa de direitos, realizadas por movimen- tégias de guerra, demonstram cenas e embates
tos e atores sociais, e a atividade de repressão,
que se inscrevem nas construções de subjetivi-
extremamente intensa e constante no caso dos
dades contemporâneas. Através de conflitos, re-
territórios brasileiros. São nesses territórios que
sistências, linhas de fuga às mais variadas opres-
atualmente podemos registrar conexões entre
sões que os sujeitos sofrem a partir de estruturas
ações de Redução de Danos e a construção de no-
locais, nacionais e globais, resultado das forças
vas formas de subjetividades entre intervenções,
direitos e usos. de mercado e da disseminação e aplicação de
princípios de uma ideologia neoliberal e de sua
Algumas etnografias apresentam a própria
postura de medo e insegurança consignada em
presença das ações de Redução de Danos, como
também os registros de ações de Redução de Da- estratégias como a propagação de “pânico moral”
nos presentes no cotidiano do uso das drogas e consignados em políticas de governo e de Esta-
que são desenvolvidas pelos próprios usuários. do, empreende-se a cínica política de repressão e
A tese de Taniele Rui21 tem grande parte de sua defesa de extermínio de determinados sujeitos da
entrada em campo e registro a partir do acompa- sociedade, estimulando por outro lado os empre-
nhamento de uma equipe de redutores na cidade endimentos de livre ação de mercados, inclusive
de Campinas, estado de São Paulo; Selma Lima os ilegais, chamados também de “paralelos” e que
da Silva19, ao centrar sua etnografia nas mulhe- acabam por impor formas e produtos de consumo
res que usavam crack e participavam do mercado de psicoativos e incluir, no regime de mercado, as
sexual da região do bairro da Luz, em São Paulo, populações mais destituídas e marginalizadas. A
mostra como o controle do uso do crack era fei- presença de mercado também se coloca em re-
to através de um regime de super alimentação –
lação ao considerado regime de tratamento dos
comer muito reduzia a intensidade do uso e era
diagnosticados como “dependentes químicos”,
assimilado como um cuidado com o corpo; assim
que por razões de mercado, também serão sujei-
também como o distanciar-se dos territórios psi-
tos tratados pelas drogas medicamente prescritas
cotrópicos. Essas ações de estratégia de redução
e também ligadas ao mercado. E, novamente, a
de uso desenvolvidas pelos sujeitos também se
constituíam em buscar momentos de afastamento história se desdobra na resistência e nas ações
dos locais de uso ou de perceber equipamentos de poder em determinado momento reduzir/resis-
dispostos no território da cidade que evocavam a tir/exterminar esse maior dano; por aqui, essas li-
vontade de usar mais as drogas18. Nesse sentido, mitadas armas da utopia da cultura da reflexão.
também as políticas públicas, como as desenvolvi-
das na cidade de São Paulo, como o Programa de

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Trajetórias e Movimentos do Coletivo Intercambiantes


Brasil no Campo da Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas
Trajectories and Movements of the Coletivo Intercambiantes Brasil in the Field of Mental Health,
Alcohol and Other Drugs

Antonio Nery FilhoI, Eroy Aparecida da SilvaII, Patrícia Maia von FlachIII

Resumo Abstract

Este artigo tem como objetivo apresentar a história, trajetórias e This article aims to present the history, trajectories and move-
movimentos do Coletivo Intercambiantes Brasil nos campos da ments of Coletivo Intercambiantes Brazil in the fields of Mental
Saúde Mental, álcool e outras drogas, sob a perspectiva contra Health, alcohol and other drugs, from the perspective of hegemony
hegemônica e emancipatória com as pessoas que habitam as and emancipation with the people who inhabit the streets, valuing
ruas, valorizando as possibilidades dos encontros potentes e the possibilities of powerful and transforming encounters.
transformadores.
Keywords: Intercambiantes Brasil; Psychoactive substances; Stre-
Palavras-chave: Intercambiantes Brasil; Substâncias psicoativas; et people; Harm reduction.
Gente de rua; Redução de danos.

“Eu considero que [como] o exemplo de João


Pequeno, e outros [...], a nossa missão, a minha mis-
são não está terminada. Eu tenho que continuar a
dar meus esforços para a coletividade. E nesse sen-
tido, eu quero chamar então a atenção com uma fra-
se popular também. Foi de uma senhora, analfabeta
até 50-60 anos, prostituta no Nordeste [...] e [que]
escreve uma poesia chamada ‘Eu Sou’. Começa
com esta frase: ‘Sou um pra trás que não tem pra
I
Antonio Nery Filho (antonioneryfilho@gmail.com) é médico psiquiatra, Doutor frente. E sou o veloz da carreira que não houve [...]
em Sociologia e Ciências Sociais pela Université Lumière Lyon 2 (França). mas eu sou a força maior do pensamento’ [...]’. E eu
Professor Aposentado da Faculdade de Medicina da Bahia da Universida- queria dizer então o seguinte: eu me considero um
de Federal da Bahia (FAMEB/UFBA), Fundador e Coordenador do Centro de pra trás, com 86 anos, mas que ainda quero ter um
Estudos e Terapia do Abuso de Drogas desta universidade (CETAD/UFBA),
pra frente e o terei [...]. É o que todos nós somos, a
Professor-Convidado da Escola Superior da Defensoria Pública da Bahia (ES-
DEP), criador do Consultório de Rua e idealizador do Coletivo Intercambiantes força maior do pensamento que evidentemente ha-
Brasil. verá de continuar, por quanto tempo eu não sei,
mas que haverá de ser o bastante para mim”IV .
II
Eroy Aparecida da Silva (eroyntc@gmail.com) é psicóloga pela UniPaulis-
tana; psicoterapeutra familiar e comunitária pela Pontificia Universidade
(Elisaldo Carlini; 2015)
Católica-PUC-SP; Especialista em Psicologia Social e do Trabalho, Instituto
Sedes Sapientae, Doutora em Ciência pelo Departamento de Psicobiologia
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Psicóloga da Associação Fun-
do de Pesquisa (AFIP) e Ativista Social na área de direitos humanos, colabo-
IV
Fragmento do discurso pronunciado na cerimônia de entrega do título de
rando com vários coletivos que trabalham com pessoas em situação de rua Professor Emérito da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em abril
na cidade de São Paulo. de 2015. Luiz Elisaldo Carlini nasceu em Pirajá, em 09 de junho de 1930 e
faleceu em 16 de setembro de 2020, em São Paulo. Pioneiro no estudo da
Patricia Maia von Flach (patriciavonflach@gmail.com) é psicóloga pela Fa-
III Cânabis sativa no campo medicinal (maconha medicinal), formou gerações
culdades Integradas Ruy Barbosa (FIRB) e assistente social pela Universida- de pesquisadores, fundou o Centro Brasileiro de Estudos Sobre Drogas (CE-
de Católica do Salvador (UCSAL), Especialista em Saúde Mental pela UFBA, BRID) da Escola Paulista de Medicina da Unviersidade de São Paulo (EPM/
Mestre e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva desta UNIFESP). Representou o Brasil em Organizações Internacionais e foi home-
universidade (ISC/UFBA), implementadora e ex-coordenadora de CAPS ad em nageado com diversos títulos honoríficos. Intransigente na defesa dos mais
Salvador, do Ponto de Encontro e do Ponto de Cidadania e atua na Equipe de vulnerados, não recuou diante das adversidades. Seus ensinamentos farão
Saúde Mental e Direitos Humanos da Defensoria Pública da Bahia (DPE-BA). parte da história da Medicina e da Farmacologia brasileiras.

|50 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Introdução indígenas, afrodescendentes, mulheres, LGB-

A
orientação central deste trabalho consis- TQI+, dentre outros – tornando-se, após a Decla-
te no relato histórico e crítico do Coletivo ração Universal dos Direitos Humanos de 10 de
Intercambiantes Brasil, através de seus dezembro de 1948 (que não é em verdade univer-
movimentos de resistência, das conquistas e sal, mas eurocêntrica) – a referência na luta pelo
desafios travados em diferentes tempos e espa- direito à vida digna para todos os humanos1.
ços sócio-político-institucionais, considerando a Apesar das vitórias e conquistas, no cam-
atual conjuntura política do Brasil, e instigados po social, as derrotas também são grandes e ge-
pelas vozes da rua, dos hospícios, das prisões, radoras de um contexto de medo do presente e
dos guetos, das periferias, das fronteiras, cujos da desesperança em relação ao futuro, principal-
históricos muros coloniais de dominação – reais mente com o fortalecimento incontestável do ne-
e simbólicos – apenas serão derrubados na arti- oliberalismo, que ataca os direitos econômicos e
culação ética e bioética entre todas as gentes e sociais, bem como da emergência da extrema-di-
todos os saberes, assim emancipatórios e gera- reita em todo o mundo, pondo em risco os direi-
dores de justiça e liberdade. tos civis e políticos. Imersos numa crise econômi-
Para tanto, nos apoiaremos, inicialmente, ca sem fim e em meio a uma pandemia causada
nos trabalhos contra-hegemônicos de diversos por um vírus desconhecido – o novo coronavírus
autores do campo das Ciências Sociais e Políti- e sua consequente doença, a COVID 19 – os tra-
cas, a exemplo de Boaventura de Sousa Santos, balhadores são cada vez mais destituídos de di-
sociólogo ativista dos Direitos Humanos na luta reitos, os povos de diversas culturas são alvo
contra a globalização neo-liberal e seus efeitos de mais preconceitos e violências; as mulheres
perversos. e as pessoas LGBTQI+ são vítimas constantes
de agressões simbólicas e reais; os fundamenta-
A história dos Direitos Humanos deve ser
lismos religiosos nunca foram tão escancarados,
refletida e tornada experiência compreendida,
a natureza tão ameaçada pela perturbação/des-
através dos seus momentos luminosos e, tam-
truição de ecossistemas, aquecendo o planeta e
bém, obscuros, marcados pela contradição de
sufocando a vida e a democracia tão fortemente
ser, por um lado, a linguagem e a referência de
ameaçada por governos voltados à garantia do
luta para todos os excluídos de oportunidades
benefício de poucos, em detrimento da maioria,
sociais na defesa de uma sociedade mais justa
sob o olhar cúmplice da Justiça.
e mais pacífica; e, por outro, pelo instrumento de
opressão capitalista e colonialista na manuten- As questões a serem levantadas e refle-
ção de uma sociedade cada vez mais desigual. tidas pelas pessoas e coletivos em luta por uma
Ao longo da história das lutas humanas no campo sociedade para todos podem ser: são os Direitos
dos direitos, desde o século XVI - que certamente Humanos, ainda, um instrumento capaz de trans-
refletem o jogo de correlação de forças pelo po- formar o medo e o desespero em esperança?V A
der no mundo -, tratados e convenções interna-
cionais foram sendo construídos, entre avanços V
Santos1 considera, a partir do filósofo do sec. XVII, Baruch Espinoza, que
medo sem esperança leva à desistência e esperança sem medo pode levar a
e recuos no campo de alcance dos direitos civis, uma autoconfiança destrutiva, referindo-se ao medo cada vez mais desespe-
rançado, parte da vida cotidiana dos oprimidos, e a autoconfiança destrutiva
políticos, sociais, econômicos e culturais para dos opressores que transformando as fundações dos direitos humanos em
ruínas mortas, caem no esquecimento; mas, se transformadas em ruínas
as minorias mais invisibilizadas – como os povos vivas, podem alimentar um aprendizado para a ação/construção de direitos
humanos contra-hegemônicos.

vol.21, n.2, dez 2020 |51


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

opressão e a violência em liberdade e solidarie- de humanidade e dignidade. O mesmo de-


dade? A diferença e o preconceito em igualdade ve acontecer com todos os que lutam para
respeitosa? A desqualificação de outros saberes que tal não aconteça”2 (p.125).
e culturas em reconhecimento e compartilha- Cabe aqui, ainda, acompanhar Boaventu-
mento intercultural? Os invisíveis desumaniza- ra Santos, em suas reflexões sobre a importância
dos em cidadãos de direitos? É possível prote- do conhecimento, a partir das vivências e expe-
ger a vida em todas as suas formas, espécies e riências com diversos povos e grupos oprimidos,
singularidades? para a construção de caminhos emancipatórios,
Boaventura Santos2 aponta três caracte- dialogantes, políticos e contra-hegemônicos, ten-
rísticas/caminhos na luta pelos Direitos Huma- do em vista que é, a partir e no campo dos co-
nos contra-hegemônicos para o século XXI: nhecimentos, que se trava uma das mais impor-
tantes batalhas do século XXI, não cabendo, por
• a necessária luta pelos direitos funda-
isso, a omissão da ciência na defesa da justiça
mentais para uma vida digna – como o direito à
social.
terra, à natureza, à água, ao ar, ao alimento, à
cultura em toda sua diversidade, à saúde coleti- Em seus escritos no fim dos anos 1990,
va, dentre outros. O grande desafio que se impõe Santos propõe uma “Epistemologia do Sul”, no
3

é que, apesar destas serem lutas de longa dura- sentido de um paradigma capaz de apreender a
ção, pois que civilizatórias, não temos todo esse experiência social no mundo, entendendo ”Sul”,
tempo frente à destruição ocasionada pela vora- como uma metáfora do sofrimento social huma-
cidade do fascismo social e desenvolvimentista, no, produzido pelo capitalismo, pelo colonialismo
entrelaçando tempo presente e futuro e exigindo e pelo patriarcado e considerando que a ”Rein-
insurgentes reinvenções; venção da Emancipação” é uma necessidade his-
tórica e sua potencialidade está nos aprendiza-
• a uma necessária luta pela justiça históri-
dos advindos do/com o Sul. Configura-se, assim,
ca, frente à violência de outros tempos, que con-
outra racionalidade nos caminhos emancipató-
voca diferentes conceitos de representatividade
rios através de uma “Sociologia das Ausências”VI,
politica, considerando que a representatividade
que transforma invisibilidades em presenças, e
quantitativa ou por maioria não contempla a defe-
de uma “Sociologia das Emergências”, que subs-
sa de povos que são minorias por terem sido dizi-
titui o vazio do futuro por possibilidades diversas.
mados (e continuam sendo) pelos colonizadores,
Por outro lado, a identificação e revelação dessas
e que lutam por um futuro que não é só deles,
experiências potentes exige um trabalho de “tra-
mas de todos, como por exemplo, a defesa por
dução”, processo fundamental para a construção
um planeta “vivo”;
de alianças e articulações entre movimentos e
• a necessária luta por uma globalização
vivências emancipatórias, revelando sentidos e
contra-hegemônica – e seu embate com a globali-
direções de transformação social e exigindo para
zação neoliberal – com a articulação de todas as
tanto uma “Ecologia dos Saberes”, que faz entre-
gentes e povos na/para a construção de outros
laçar vivências e conhecimentos distintos incor-
caminhos emancipatórios:
porados nas diversas realidades sociais. Na luta
“...a desumanidade e a indignidade do hu-
mano não perdem tempo a escolher entre VI
“Sociologia das Ausências”, investigação que visa demonstrar que o que
não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é,
as lutas para destruir a aspiração humana como uma alternativa não credível ao que existe.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

pelo futuro, Santos3 propõe uma democracia radi- Foi este, exatamente, o trabalho crítico
cal de todos os espaços-tempos, transformando desenvolvido pelo professor-pesquisador baiano
relações de poder desigual em relações de res- Gey EspinheiraVIII. Ele defendia que as Ciências
peito reciproco e solidário, com a construção de Sociais precisavam estar a serviço das transfor-
novas formas de sociabilidade amparadas por no- mações sociais e utilizava a “Sociologia de Inter-
vos valores, novas concepções de mundo, nova venção”, de Rémi Hess, como prática nos traba-
ética, reinventando(nos) na emancipação, numa lhos desenvolvidos em comunidades periféricas
utopia crítica possível e necessária para constru- de Salvador8 (p.16). Considerava esta sociologia
ção de outros mundos4-5. uma metodologia emancipatória, cujo campo de
No Brasil, os sociólogos/militantes do atuação é a vida social em determinado espaço
“Sul”, a exemplo de Jessé Souza, consideram social, com as pessoas reais, em relação, na ar-
que o conhecimento é uma estratégia politica te das convivências, cabendo ao sociólogo “...re-
utilizada por diferentes grupos de interesse. Nu- alizar o desencobrimento, o de revelar o oculto,
ma perspectiva emancipatória, faz-se necessário o de esclarecer o enigma da vida social. Reler,
o desencobrimento dos “discursos de verdade” também, o que já conhecido poderia aparecer de
que sustentam os grupos dominantes no poder outro modo aos nossos olhos” (p.26).
pelo monopólio das ideias, utilizadas como práti- Para além da aparência há sempre outros
cas nas lutas pela apropriação dos capitais eco- sentidos, ou existências possíveis a serem reve-
nômicos e políticos. Nesta perspectiva, Souza6 ladas e, nesse processo, nos afetamos e gera-
argumenta que “...a “crítica das ideias dominan- mos uma ação transformadora que constrói ou-
tes” é a primeira trincheira de luta contra os ‘in- tras existências, numa interação implicada entre
teresses dominantes’ que se perpetuam por se pensamento, emoção e ação. “...ação de saber e
travestirem de supostos interesses de todos” de fazer, portanto de conhecer, de desencobrir”8
(p.13) e afirma que o seu esforço tem sido o de (p.79).
utilizar o conhecimento como “arma de comba- Gey Espinheira destacava a convivência
te”, possibilitando ao cidadão brasileiro destituí- como essencial nesse processo de construção
do das disposições para compreender a “ordem do conhecimento-transformação, argumentando
das coisas”7,VII, tornar-se sujeito de seu destino. que “...o impacto da sociologia de intervenção
À Ciência Social crítica cabe, segundo Souza6: está no fato de que o conhecimento produzido é
“...dar voz ao sofrimento, à humilhação e transmitido aos atores envolvidos para o conheci-
à dor silenciados pelas interpretações do- mento de si mesmos e do mundo em que estão,
minantes daqueles a quem faltam armas a partir da experiência vivida, da intervenção”9
para expressar e fazer valer sua indigna- (p.71).
ção e revolta justa [...] Seu dever é, em
resumo, parafraseando Pierre Bourdieu, A “ordem das coisas” se refere ao que faz acontecer o discurso dominante,
VII

neoliberal, contribuindo para a realização dos futuros esperados.


restituir, àqueles que foram transformados
VIII
Carlos Geraldo d’Andrea Espinheira, também conhecido como Gey Espi-
em marionetes de um drama que não com- nheira, foi Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas -FFCH/
Centro de Recursos Humanos-CRH, da Universidade Federal da Bahia. Du-
preendem e do qual não são os autores, o rante muitos anos, foi também Pesquisador Associado do Centro de Estudos
e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD/UFBA), onde desenvolveu inúmeras
sentido e o comando de sua própria vida” pesquisas, inaugurando novas perspectivas no campo da sociologia, rela-
cionadas com o consumo de substâncias psicoativas. Faleceu pouco antes
(p.251-252). de completar 63 anos, em março de 2009. Seu nome foi atribuido a um dos
CAPS-ad de Salvador.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Com estes autores, sociólogos militan- história individual e coletiva, presente e futura,
tes, aprendemos que toda resistênciaIX se revela de toda gente. ”Contar” é colocar-se como sujeito
no cotidiano, na relação, incontida, incontrolável, na história, é marcar posição política no espaço
pulsante. Essa potência da vida e luta política, social e nas lutas por existências com dignidade.
que só pode ser construída a partir de/no encon-
tro e convivência entre os humanos, nas práticas
- ... e como tudo começou?XII
cotidianasX, nos espaços possíveis – quer seja
Recorro, para iniciar este relato, à fórmula
a rua, a casa, as instituições, as Universidades
empregada por Roberto Calasso em seu livro “As
- tornados lugares praticados12 erigidos entre as
Núpcias de Cadmo e Harmonia”14. Tudo tem mais
vicissitudes e as potências, entre/nos corpos
de um começo, porque acode a várias memórias
que dos sofrimentos sociais fazem resistências
e circunstâncias. No caso do Coletivo Intercam-
e transformações13. O Coletivo Intercambiantes
biantes, não é possível atribuir seu início a uma
Brasil insere-se nesta dimensão, como veremos
decisão antecipadamente refletida, mas a várias
a seguir.
histórias que confluem no tempo e que podem, a
posteriori, ser compreendidas e resignificadas à
O Coletivo Intercambiantes: ativistas dos Direitos luz de doutrinas do campo da Sociologia, como
Humanos contra-hegemônicos, nos campos da acima apresentadas.
Saúde Mental, álcool e outras drogas - trajetórias
Uma das histórias diz respeito ao traba-
e movimentos
lho construído pelo Centro de Estudos e Terapia
O Coletivo Intercambiantes nasceu e se do Abuso de Drogas (CETAD), ao longo de mui-
configura enquanto movimento social que articu- tos anos, sob a égide da Faculdade de Medicina
la sujeitos em luta por justiça social. Trataremos, da BahiaXIII, voltado para o cuidado aos usuários/
aqui, de suas trajetórias e movimentos enquanto usuárias de produtos psicoativos e seus familia-
possibilidade de reflexão, trabalho e luta anti-he- res. As diversas ações e invenções de seus téc-
gemônica, revelados através da história e voz dos nicos ultrapassaram as fronteiras da cidade de
“oprimidos”XI, fundamental para a produção de Salvador e da Bahia, possibilitando que eu fosse
outra “visão de mundo”, já que “o incons33cien- convocado pelo Secretário Nacional de Políticas
te é a história – a história coletiva que produziu Sobre Drogas Leon Garcia, em nome de sua equi-
nossas categorias de pensamento, e a história in- pe, em 2015, para participar na condição de Con-
dividual por meio da qual elas nos foram inculca- sultor do Projeto RedesXIV, ocupando o mesmo
das”13 (p.19). Quem conta e como conta a história
faz e fará toda a diferença para a construção da XI
Colocamo-nos aqui como parte dos cidadãos do mundo oprimidos pelo
capitalismo feroz e suas formas de dominação antidemocráticas, coloniais
e patriarcais.
IX
Peter Pál Pelbart considera que existe uma potência da vida que ele chama XII
Toda essa história é aqui apresentada a partir do relato do autor, Antonio
de biopotência que compreende “as modalidades de resistência vital” que Nery Filho, idealizador do Coletivo Intercambiantes.
se concretizam na vida se fazendo, “...a vida em estado de variação. Esses
modos menores de viver que nos habitam e que nos rodeiam e com os quais O CETAD foi inaugurado em 25 de julho de 1985, no Centro Social Urbano
XIII

nós, na maioria, aqui, trabalhamos”10 (p.19). ruínas mortas, caem no esque- da Caixa d’Agua, equipamento da antiga Secretaria do Trabalho e Bem Estar
cimento; mas, se transformadas em ruínas vivas, podem alimentar um apren- Social. Inicialmente, Atividade de Extensão do Departamento de Anatomia
dizado para a ação/construção de direitos humanos contra-hegemônicos. Patológica e Medicina Legal, Universidade Federal da Bahia, foi transferido
para o bairro do Canela em 1993. Seu fundador, Prof. Antonio Nery Filho,
X
Para Michel de Certeau11, “...o cotidiano se inventa com mil maneiras de dirigiu este Centro até abril de 1994, quando se aposentou.
caça não autorizada” (p.38), com suas múltiplas táticas de resistência, silen-
ciosas ou não, inventivas sempre, pelas quais as pessoas se reapropriam do XIV
Projeto REDES, desenvolvido pela Secretaria Nacional de Política Sobre
espaço (praticado) compondo uma rede de “antidisciplina” não reconhecida Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça entre 2014 e 2017, tinha por obje-
formalmente, mas legítima enquanto forma de enfrentamento a ordem das tivo, fortalecer a intersetorialidade nas cinco Regiões do Brasil, envolvendo
coisas. 54 municípios.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

título do saudoso Antonio LancettiXV. Deste mo- presente Ruth Dreifuss, ex-presidente da Suíça,
do, pude trabalhar com 28 localidades, reunindo discordei da expressão ”sala de uso seguro”, im-
gestores, técnicos dos serviços de Saúde Mental plantadas com sucesso naquele país, propon-
e, em particular, aqueles voltados para o cuidado do denominá-las ”sala de uso protegido”, posto
de pessoas usuárias de álcool e outras drogas. que não há uso seguro e sempre pode acontecer
Também participei de encontros com pessoas da um acidente. Uso protegido, significava, protegi-
comunidade em ”sessões abertas ao público”XVI. do das diversas violências, passível de cuidados
Minha trajetória no campo do cuidado de médicos e psicológicos quando problemas sur-
pessoas usuárias e com problemas de álcool, gissem. Nisto, fui apoiado por Antonio Lancetti.
medicamentos e outras drogas foi marcada pe- Em outra reunião, com Leon Garcia e Melissa
la inabalável convicção da importância das his- Azevêdo – responsável/protetora por toda minha
tórias e vicissitudes humanas, longe da impor- aventura no RedesXIX –, me foi solicitado ”ani-
tância que se atribuía - e se atribui, ainda – aos mar as pessoas e os grupos”. Entendi isto como
produtos psicoativos, convicção nascida da mi- ”acender a chama do cuidado e da alegria junto
nha convivência com os ‘loucos perigosos’, que aos trabalhadores”. E, assim, pude reencontrar
haviam cometido delitos graves, em geral homi- velhos amigos e fazer novos.
cídios, quando trabalhei no Manicômio Judiciário Em alguns lugares, encontrei equipes
da Bahia, por dois períodos distintosXVII. Depois, cansadas, desanimadas pelas imensas dificulda-
com o Claude OlievensteinXVIII, fortaleci este en- des oriundas de administrações que pouco en-
tendimento e tive seu apoio incondicional para tendiam das necessidades próprias do trabalho
enfrentar as oposições e dificuldades nos traba- no campo da Saúde Mental e, em particular, do
lhos desenvolvidos, alguns inspirados em seu cuidado aos usuários de produtos psicoativos
texto mais conhecido, ”Os Drogados Não São Fe- ilícitos. Em outro lugares, encontrei equipes re-
lizes”15. Impossível deixar de reconhecer algumas sistentes, inventivas, incansáveis, verdadeiras
semelhanças entre nossas iniciativas, guardadas equipes “irredutíveis”. Com pesar, constatei a au-
as devidas proporções e importâncias. Se em Pa- sência, em quase todas as localidades, de ati-
ris, Olievenstein apontou que todo o trabalho foi vidades voltadas para a formação e supervisão
difícil, aqui, abaixo do Equador, às dificuldades permanentes, indispensáveis para o trabalho, e
beiravam, às vezes, o impossível. para a proteção da saúde física e mental dos(as)
Sob efeito de minhas histórias, levei para trabalhadores(as).
o trabalho no Redes a experiência acumulada ao Enquanto transitava pelo Brasil, convo-
longo de mais de trinta anos. Em uma das primei- cado pelas equipes que se ”candidatavam” para
ras reuniões em torno do Projeto, na qual estava me receber, percebia as ”nuvens de tempestade”

XV
Antonio Lancetti nasceu na Argentina e foi exilado político no Brasil desde mento), num primeiro período entre fevereiro de 1971 e agosto de 1973,
1979. Psicanalista e militante da luta antimanicomial, liderou a intervenção depois, entre fevereiro de 1978 e março de 1979.
que fez de Santos a primeira cidade brasileira sem manicômios. Foi consultor
do Ministério da Saúde e idealizador do Programa De Braços Abertos. Dirigiu
XVIII
Claude Olievenstein, abriu as portas do Centre Médical Marmottan, em
a valiosa coleção SaúdeLoucura, publicada pela editora Hucitec. É autor de Paris, no dia 21 de julho de 1971, orientado por princípios éticos, distancian-
“Clínica Peripatética” e “Contrafissura e plasticidade psíquica”. Faleceu 14 do-se das práticas médicas autoritárias e segregadoras. Para ele, a Liberda-
de dezembro de 2016, aos 67 anos. de era fundamental e as pessoas, mais importantes do que os produtos. Ver
seu livro: “Os drogados não são felizes”15. Do original francês: Il n’y a pas de
XVI
Embora não caiba neste texto descrever toda esta extraordinária e enrique- drogués heureux. Conheci Marmottan em 1983, iniciando frutosa colabora-
cedora experiência, produtora de conhecimentos, efeitos e afetos. ção, sustentada durante os dez anos seguintes.
XVII
Trabalhei no antigo Manicômio Judiciário (hoje Casa de Custódia e Trata- XIX
Como Nara Vieira, entre outros.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

que se formavam sobre a Secretaria Nacional de suas possibilidades e conveniências circunstan-


Políticas sobre Drogas (SENAD); aliás, que se for- ciais; (3) as/os participantes não representavam
mavam pelo país e que culminariam com o afas- instituições de qualquer natureza; (4) para admi-
tamento da presidente eleita Dilma Rousseff e o nistrar a entrada de novos “intercambiantes” fo-
posterior início de um período político desastroso. ram escolhidos três dentre os/as participantes
Não posso dizer que fui movido, conscien- do ”encontro inaugural”, sendo um realizado na
temente, por doutrinas ou movimentos políticos Bahia, outro em São João Del Rey e outro em
quando decidi registrar telefones, ao longo das RecifeXXI, sem qualquer outra prerrogativa de con-
viagens. Entretanto, posso assegurar que o meu dução do Coletivo.
fazer sempre foi político, entendendo-se aqui o
”cuidado com o outro para cuidar de mim”, certa- - e como continuou...
mente numa construção levinas/lacaniana: nos
Pouco a pouco, foram sendo convidadas
reconhecemos na face do ”outro” e, portanto, ne-
e acolhidas pessoas de diversas regiões do Bra-
la reconhecemos nossa condição humana, nossa
sil. O Coletivo Intercambiantes abria progressi-
autonomia, nossa finitude, naqueles que podem
vamente espaço para o diálogo entre experiên-
nos ferir.
cias diversas do campo acadêmico, da labuta
Tinha como instrumento palpável as duas cotidiana, dos impasses, dos sofrimentos indivi-
declarações universais: a de Direitos Humanos16 duais e coletivos, do inconformismo com o des-
e a de Bioética e Direitos Humanos17. Neste sen- caso de políticos e governantes, mantendo viva
tido, em julho de 2016, durante visita a São João uma “consciência resistente”, sobretudo depois
Del Rey et ses environs, apresentei, a um grupo do Golpe Parlamentar que destituiu a presidente
de colegas, a proposta de criação de um Coletivo eleita em 2016.
que denominei “Intercambiantes Brasil”XX. Este
Foram associados ao Intercambiantes
coletivo deveria sustentar-se essencialmente na
Brasil (Intercambiantes BR), a título de “membros
virtualidade, utilizando-se da moderna rede so-
estrangeiros”, conhecidos trabalhadores da Ar-
cial WhatsApp, sendo voltado para a comunica-
gentina e do UruguaiXXI. Ao longo do tempo, alguns
ção técnica entre profissionais interessados no
“intercambiantes” se mostraram mais ativos e
cuidado de pessoas vulneráveis, usuárias ou não
presentes em suas manifestações, enquanto
de psicoativos; em particular, aquelas em situa-
outros mais silenciosos e não menos atuantes,
ção de rua sendo orientado por princípios éticos,
todos trabalhando pelos mesmos interesses: de-
Bioéticos e de Direitos Humanos. Além disso, te-
fender e promover direitos, cuidar do sofrimento
ria como normas: (1) a entrada de qualquer novo
físico, psíquico e social dos(as) vulnerados(as),
ou nova ”intercambiante” deveria ser feita atra-
defender as reformas Sanitária e Psiquiátrica e a
vés de convite, sem julgamento(s) de qualquer
Luta Anti-Manicomial.
natureza, constituindo-se numa rede em que pre-
Durante o ano de 2017, foram se consti-
valecessem a ética e o afeto; (2) cada um/uma
tuindo Núcleos Intercambiantes em todas as cin-
dos/das profissionais seria inteiramente livre pa-
co Regiões do Brasil, possibilitando uma grande
ra afastar-se do grupo e retornar, de acordo com
XXI
Naíde Teodósio Valois (PE), Marcelo Dalla Vecchia (MG) e Antonio Nery
Filho (BA).
XX
Esta nomeação me foi inspirada durante a cooperação que desenvolvi com
o importante e conhecido coletivo Argentino – Intercambiós ARG, fundado em Graciela Touzé, Jorgelina Di Iorio, Paula Goltzman e Maria Pía Pawlowicz, da
XXII

1975, e Presidido pela Dra. Graciela Touzé. Argentina; Julio Calzada e Esperanza Hernandez, do Uruguai.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

circulação de informações, evidenciando, mais Para tanto, orientaremos nossas


uma vez, a enorme diversidade social e de saúde ações de acordo com as seguintes diretri-
da população brasileira. Neste mesmo ano, por zes: a) Redução de Danos; b) Antiproibicio-
iniciativa da Bahia e Pernambuco, foram desen- nismo e fim da Guerra às Drogas; c) Refor-
volvidas gestões junto à organização internacio- ma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial; d)
nal Open Society, tendo em vista obter o apoio Defesa da diversidade da vida e dos mo-
financeiro para a realização de um encontro entre dos de existir; e) Defesa dos princípios do
os “amigos virtuais”. Sistema Único de Saúde (SUS) e do Siste-
O Encontro Intercambiantes Brasil, efeti- ma Único de Assistência Social (SUAS)”.
vamente, ocorreu nos dias 24 e 25 de novembro de
2017, com a presença de 102 participantesXXIII. - ...e nos tempos que correm...
Durante estes dias foi cumprida a programação
A mais significativa e constante atividade
orientada pelas perguntas: quem somos?, o que
dos Intercambiantes consistiu, ao longo do tem-
faremos? e como faremos?XXIV. Ao final do encon-
po, nas diárias comunicações virtuais, como ha-
tro, foi produzido, coletivamente, um documento
via sido previsto. Teses, dissertações, referências
sob forma de relatório, incluindo pequeno e sig-
bibliográficas, indicações de serviços, sugestões
nificativo texto denominado “Declaração de Sal-
para leitura e comentários abrangendo diversos
vador”18, que direta e indiretamente, orientou as
campos culturais, poesia e, evidentemente, refle-
atividades intercambiantes dos tempos que se
xões e críticas no campo político.
seguiram:
Localmente, os denominados Núcleos Re-
“O Coletivo Intercambiantes BR, na
gionais, individual e coletivamente, promoveram
ocasião de seu primeiro Encontro Nacional
e/ou participaram de atividades diversas. Contu-
(realizado nos dias 24 e 25 de novembro
do, não passou despercebido para muitos e mui-
de 2017 na cidade do Salvador/BA), decla-
tas, a necessidade de se ultrapassar os efeitos
ra sua determinação em fomentar e defen-
que a comunicação produzia internamente à re-
der políticas, intervenções e cuidados, no
de, e de avançar no sentido de tornar mais visí-
campo de álcool e outras drogas, apoiados
vel, para os outros níveis/grupos da sociedade
nos princípios gerais da Ética, da Bioética
brasileira, as ações desenvolvidas no campo da
e dos Direitos Humanos.
Saúde Mental, junto aos “vulnerados de toda or-
dem” e, em particular, a ”gente de rua”, usuária
ou não de psicoativos. Lamentavelmente, muitas
XXIII
Estiveram representados Núcleos Intercambiantes dos estados de Per-
nambuco, São Paulo, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Pará, Goiás, Tocan- atividades desenvolvidas pelos(as) intercambian-
tins, Santa Catarina, Alagoas, Rio de Janeiro, Sergipe, Paraiba, Piauí, Bahia e
Distrito Federal, além da participação de convidados/visitantes da Argentina, tes não foram, por diversas razões, associadas
Uruguai e Canadá.
ao Coletivo. Muitos foram os seminários, con-
XXIV
Durante a organização das atividades e divulgação do programa, sentimos
necessidade de ‘uma marca’ que representasse nossos propósitos. Sugeri a gressos, aulas, supervisões, atividades de rua,
utilização das figuras de Dom Quixote (...que me foi oferecido em momento
precioso...), considerando o idealismo do Cavaleiro da Triste Figura - confun- desenvolvidas e noticiadas diariamente através
dido com loucura - sonhador, capaz de enxergar as verdades para além das
aparências, sua intransigente defesa dos mais fracos, seu amor incondicio-
da mídia eletrônica, impossíveis de serem deta-
nal por Dulcinea d’el Toboso; seu orgulho por sua montaria, Rocinante; o fiel
cuidado de Sancho com seu ‘desvairado Senhor’, as aventuras e desventu-
lhadas neste trabalho. Entretanto, citarei, aqui,
ras que experimentaram. Renata Pimentel, encontrou uma frase atribuída a
Dom Quixote, que serviu para nos lembrar o indispensável, como escreveu
algumas iniciativas, em razão de sua repercussão
Cervantes, em Dom Quixote de La Mancha, em 1605: “Mudar o mundo meu local, regional e/ou nacional: a primeira, iniciada
amigo Sancho não é loucura, não é utopia, é justiça”19.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

em 2015, o programa radiofônico “Drogas, Fique um blog, através do qual têm sido divulgados tex-
por Dentro”XXV, atividade semanal que possibilita- tos produzidos por diversos(as) intercambiantes,
va a discussão de questões quase nunca abor- além de inúmeras e importantes lives. Em maio
dadas pela grande mídia, longe do sensaciona- de 2019, além dessas atividades, foi realizado
lismo redutor e causa de desinformação. Neste o “Encontro Regional Nordeste”, envolvendo os
programa, profissionais de diversas regiões do núcleos da Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Nor-
país apresentaram, ao longo dos últimos seis te e Pernambuco. Neste importante evento foram
anos, seus trabalhos e refletiram sobre questões discutidas questões relacionadas às particulari-
de sociedade, sempre que possível, esclarecen- dades nordestinas e locais, resultando em pla-
do a importância e o lugar das substâncias psi- nejamentos e encaminhamentos voltados para
coativas e seus consumos; a segunda atividade, o fortalecimento dos Núcleos Intercambiantes,
denominada ”Diálogos Intercambiantes’, apoiada para o desenvolvimento de atividades orientadas
pela Defensoria Pública da Bahia, especializada pela Redução de Danos, para a melhor ocupação
em Direitos Humanos, consistiu-se em entrevis- dos espaços existentes, dentro e fora da acade-
tas transmitidas ao vivo. Esta atividade, mensal, mia, além da ampliação das atividades culturais
foi interrompida após sua terceira edição, tendo e alianças com outras instâncias organizadas da
repercutido largamente, e, por isso, merece ser, sociedade. Cabe, também, destacar as precio-
oportunamente, retomada; a terceira atividade sas referências bibliográficas sugeridas semanal-
consistiu na ocupação de um haut lieu de Salva- mente, aos domingos, pelo intercambiante Wag-
dor, a pequena Igreja do Largo de Santana ergui- ner Caldeira Filho, do Pará.
da no século XIX e situada no bairro do Rio Ver-
melho, local de renomadas atividades culturais e - ...e para onde caminhamos?...
religiosas, a exemplo da festa de Iemanjá, reali- Seguiremos no reconhecimento das po-
zada no dia 2 de fevereiro. Nesses locais, foram tências do Coletivo Intecambiantes que se faz e
iniciadas, em 2019, diversas atividades deno- refaz nos encontros respeitosos entre “todos” e
minadas ”Conversando na Praça, escutando na com cada um, on line ou presencialmente, como
for possível. Para além das experiências e efeitos
Rua”, envolvendo saraus músico-literários, rodas
já mencionados ao longo do texto, em um pro-
de conversa em particular sobre o consumo de
cesso políticossocial contraditório marcado por
psicoativos e as infecções sexualmente transmis-
avanços e recuos, afirmamos que há uma poli-
síveis (IST), ”troca-troca” de livros, exposições,
tização em prática – especialmente nesses tem-
dentre outras intervenções sociais. Estas ativida- pos de pandemia – em torno da dor tornada luta
des continuam sob o modo virtual em razão da – palavra que não é utilizada ao acaso. A atuação
pandemia de coronavírus. Destacam-se, ainda, cotidiana do Coletivo Intercambiantes, implicado
as atividades desenvolvidas pelo Núcleo Inter- eticamente, é luta, é impulso de libertação, é mo-
cambiantes de São Paulo, capital, através de su- vimento de resistência intenso e insistente, que
as inúmeras atividade de rua e do fortalecimento exige tempo, que envolve riscos e uma ética das
de parcerias. Mais recentemente, inauguraram situaçõesXXVI (e não das verdades e realidades
XXV
Este programa, inicialmente patrocinado pela Secretaria Municipal de Saú-
de de Salvador, foi mantido por decisão da Direção da Rádio Metrópole (FM XXVI
Diz Badiou20, em relação à Ética: “...vamos referi-la a situações. Em
101.3 mHz), sob minha condução e contando com a participação permanen- lugar de fazer dela uma dimensão de piedade pelas vítimas, torná-la-emos a
te das psicólogas Patrícia Flach e Renata Pimentel e, mais recentemente, máxima duradoura de processos singulares. Em lugar de pôr em jogo apenas
com a bioeticista e professora da Faculdade de Medicina da UFBA, a advoga- a boa consciência conservadora, traremos à tona o destino das verdades
da Camila Vasconcelos. (p.17)”.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

sempre temporárias e diversas)20; também envol- Caminhando sob a proteção ética, para
ve investimento entre humanos para que mudan- construções emancipatórias: encontros nas ruas
ças cognitivas, perceptivas e corporais sejam ha- - a vida pulsaXXVIII
bilitadas nos/pelos sujeitos em interação, nesse Como intercambiante e ativista dos di-
campo que é sempre um campo político, pois, reitos humanos trabalhando e transitando pelas
como afirmava Rosemeire Silva (in memoria): “Já ruas da cidade de São Paulo, escutando e aco-
não nos contentamos em assistir passivamente lhendo pessoas excluídas usuárias de substân-
aos efeitos da fome e da miséria, da violência cias psicoativas e lutando por anos em defesa de
e da morte como destino único para brasileiros políticas antiproibicionistas e antirracistas, cons-
desprivilegiados. Estamos em luta”21 (p.132). truídas nas potências dos encontros entre pesso-
Assinalemos, para não concluir, a impor- as, no meio de lixos, escombros, “arvores habi-
tância e contribuição da Bioética – entendida em tacionais”, matagais, barracas, malocas e/ou em
sua proposição inicial como ”uma ética de pro- buracos escuros secretos, meus olhos já assisti-
teção da vida” – para nossos movimentos inter- ram muitas tragédias e meus ouvidos escutaram
cambiantes, como foi afirmado na “Declaração narrativas inacreditáveis. Estes locais são “abri-
de Salvador”18, nas situações compartilhadas e gos criativamente” arquitetados como alternativa
refletidas, nas estratégias de resistência plane- de moradias nos bairros longínquos e periféricos
jadas e implementadas de várias formas e em nas grandes cidades. Imprescindíveis à escuta e
vários espaços – inclusive aqui –, pois que são ao acolhimento, com uma postura (bio)ética para
as denúncias bioéticas que suscitam discussões iniciarmos o trabalho de cuidado orientado pelas
e a busca de soluções em uma perspectiva da práticas protetivas emancipatórias; ou seja, uma
ética aplicada às situações da vida cotidiana. As aposta e crença na potência dos humanos mes-
atuações do Coletivo Intercambiantes apoiam- mo frente às atrocidades físicas, econômicas e
-se, em sua essência, na Bioética, na medida em sociais. Vários sentimentos paradoxais tomam
que trata do sofrimento social, existencialmente conta de mim, porque os cenários são vivos, ver-
humano, na/para proteção dos oprimidos e na dadeiros e representativos do mais completo es-
construção conjunta de saídas coletivas, com tado de desamparo e abandono. Mas, ao mesmo
respeito à autonomia, às singularidades contex- tempo, muita vida resistente, trabalho, luta diária
tuais e às liberdades individuais, num movimento contra a investida policial que retira seus poucos
de luta e resistência política, considerando que pertences, encontros solidários entre eles mes-
não existe neutralidade – mas sim radicalidade mos e, também, aonde as substâncias psicoa-
– como evidenciam duas das Escolas Bioéticas tivas estão presentes, talvez como um apelo ou
Brasileiras: de Intervenção e de ProteçãoXXVII. caminho para o sonho e a vida! Em meio aos es-
combros, a vida pulsa! E insiste em continuar...
Muitas histórias de pessoas que encontrei viven-
XXVII
A Bioética de Intervenção foi proposta em 2002, pelos Professores Vol- do nas ruas da cidade poderiam ser narradas
ney Garrafa e Dora Porto22, e se caracteriza pela inclusão neste campo, das
situações persistentes e situações emergentes, próprias aos países do aqui, são muitas... tragédias, vidas matadas,
Hemisfério Sul, enquanto que a Bioética da Proteção, proposta por Firmim
Schramm e Miguel Kottow23, sustenta ser responsabilidade do Estado, prote- des(amores), nascimento de filhos na rua; “noita-
ger os vulnerados/vulneradas (feridos/as).
das noiadas”, desaparecimentos de pessoas, do-
Narrativas descritas pela autora Eroy Aparecida da Silva, a partir de seus
XXVIII

registros no diário de campo por suas itinerâncias intercambiantes em vá- cumentos e identidades perdidas, comemorações
rios bairros periféricos da cidade de São Paulo.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de encontro com os irmãos de rua, violência re- dia seguinte, rasgava os papéis porque achava
lacionais/familiares e de Estado, fugas, prisões, que aquilo era algo sem importância nenhuma,
solturas, encontro de familiares desaparecidos bobagens de sua cabeça. Ao perceber que gosta-
por muito tempo, internações, perda de memória va de tudo isso, eu o convidei a não rasgar mais
e identidade, doenças, mortes... as histórias que escrevia. Sua história rendeu
Selecionei apenas algumas delas para mais de duzentas e cinquenta páginas!
ilustrar as minhas itinerâncias nas ruas, acom- Aos poucos, ele foi escrevendo sobre sua
panhando e intervisonando equipes de profissio- própria vida e como chegou a São Paulo. Lem-
nais ou coletivos que militam em defesa da vida. brou da primeira namorada, ainda em Ilhéus, na
A rua é um espaço de encontros humanos! São Bahia, com quem começou a fumar maconha aos
eles que importam, me transformam e, também, 16 anos e a beber socialmente. Seus pais bebiam
vezes sim e outras não, fazem da rua, casa, não muito e batiam nos filhos com a intenção de edu-
porque “optaram” por isso, mas por condições cá-los, ambos faleceram em Ilhéus, quase que si-
adversas de um contexto social em que a vida multaneamente, quando ele tinha uns 18 anos; o
humana se coisifica. pai morreu primeiro, de tanto beber cachaça, e a
mãe, nove meses depois, também de beber. Ele
- a casa entre árvores: tinha muita raiva de apanhar, às vezes até sem
Meu encontro com Letrado, 38 anos, ne- saber por quê, pois quando os pais “pegavam pa-
gro, baiano, separado, sem filhos, morando na ra bater” em um, todos apanhavam. Caçula de
rua desde os 23 anos de idade, se deu em 2019, quatro filhos, todos homens, assim que os pais
através de uma equipe de redutores de danos faleceram, os três irmãos mais velhos partiram
que atuava com ele. Fui incluída no seu grupo para o garimpo, nunca mais os encontrou e não
sem enfrentar nenhuma resistência. Ele mora em sabe onde estão. Ele ficou morando na casa de
uma mata na região sul da cidade de São Pau- uma vizinha em Ilhéus, cujos dois filhos estuda-
lo, com seu cachorro Piloto, junto com mais dois ram com ele e lá tomou gosto pela leitura. Mas,
amigos e uma amiga. Eles se conheceram na rua, sentia que precisava ir embora; queria mesmo
em 2018, e cansados de dormir em viadutos aon- era viver na cidade grande, sonhava muito com
de comumente viviam e tinham seus pertences prédios altos, ter liberdade, não morar na casa
roubados ou retirados por policiais, perceberam dos outros. Trabalhou como pedreiro em Ilhéus,
existir em plena cidade uma mata. Então, porque ganhou um pouco de dinheiro para poder sair dali.
não conhecê-la e construir seus barracos? Letra- Muitas lembranças tristes e de maus tratos. Um
do é o apelido que o grupo lhe deu porque, além belo dia, colocou “as trouxas” nas costas e de
de gostar bastante de funk, lê também notícias carona seguiu para São Paulo. Demorou mais de
de jornais e revistas que acha nas ruas, mesmo vinte dias viajando. Quando chegou ao Mercado
que sejam antigas. Municipal, aonde o caminhão da carona o deixou,
Letrado foi me contando sobre sua vi- ficou espantado com os prédios que via: eram
da. Tinha um caderno, em que escrevia algumas semelhantes aos dos seus sonhos. Demorou-se
idéias que lhe vinham à cabeça, principalmente sentado ali, se perguntando para onde iria. Tinha
quando estava “meio alto” de pinga barata Coro- um pouco de dinheiro, mas não muito. Resolveu
te, ou chapado de maconha. Após “a brisa”, no ficar por ali mesmo. Lembra, com emoção, que

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

ficava encantado vendo a Catedral da Sé. Passou ela. Escrever me fez lembrar dela, Bandi-
a trabalhar descarregando caminhões no Merca- da como eu a chamava. Nosso amor era
do Municipal e a dormir na rua para economizar. bandido, mas eu gostava. A vida nas ruas
À noite, tudo tem movimento no centro de São tem muitas coisas ruins, mas também vá-
Paulo; e foi logo se juntando aos outros compa- rias outras boas, porque nelas não existem
nheiros, também carregadores, que foram lhe barreiras, proibições como nos abrigos por
apresentando a cidade, principalmente a região exemplo. Nestes anos todos aprendi muito
da Luz. Ali, passava a noite bebendo e com as com os irmãos da rua. Estes três escudei-
“mulheres da vida” que foram suas grandes ami- ros, que estão comigo, eu conheci na rua,
gas. Se divertia muito, até antes de se apaixonar morando junto nos viadutos, nos juntamos
por uma delas, com quem passou a morar em um e viemos para cá, porque aqui dentro da
“mocózinho” no Centro e a continuar o trabalho mata, tamo sossegados, eu tenho também
de descarregar caminhões. Com esta mulher, se- meu cachorro, o Piloto. Aqui sinto que é
gundo seu relato, começou sua “perdição”. Tinha minha casa, não tenho a preocupação de
muito ciúmes dela com outros homens, passou a dormir deitado em cima da mochila para
bater nela, fumar pedra com ela; depois, com ou- não ser roubado, como as vezes é a rua.
tras, aumentou a bebida. Quando ela estava se Eu fiz minha casa suspensa entre estas
arrumando para ir trabalhar, começava a loucura duas árvores, as únicas pessoas que nos
dele: a seguia e, por diversas vezes, pensou em visitam são vocês, é muito bom quando es-
matá-la. Um belo dia, chegou ao “mocó” cansado tão aqui escutando a gente, se interessam
e não havia ninguém. Ela tinha ido embora, desa- por nós, é um interesse verdadeiro mes-
pareceu. Ele diz que ainda a procura em muitos mo. Não vem com os “conselhos de alma-
lugares, mas, nunca mais a encontrou. Precisava naques”. É encontro do coração como eu
sair dali do Centro, porque não aguentava a dor escrevi aqui. Chegam aqui se preocupam
de procurar e não encontrá-la mais. Por suges- com nossa vida e saúde, até mais do que
tão de alguns amigos de rua, foi para a periferia a gente mesmo.
da Zona Sul da cidade. A princípio, morava em Aqui é ruim apenas quando chove,
um pequeno quarto e fazia bicos de pedreiro; de- eu que moro entre as arvores preciso jo-
pois, trabalhou na construção civil e aos finais gar uma lona, e também não posso des-
de semana encontrava com todas “as mulheres cer para trabalhar porque fica tudo “lame-
da vida”, com as quais bebia e fumava pedras de ado”, conhecemos toda a mata, ela não é
crack. O centro da cidade tem mais trabalho, mas grande. Eu não preciso de muito para viver,
tudo é mais caro. Por uns quatro anos foi assim, gasto pouco. Ganho para comprar a minha
até perder o trabalho e ir morar na rua definitiva- cachaça, mas já diminui muito de beber,
mente. Bebia e fumava crack, mas trabalhava e por minha conta mesmo, e as pedras tam-
tinha seu próprio dinheiro, teve outras mulheres, bém posso dizer que comparado ao que já
várias, mas, nunca mais sentiu amor como com fumei, hoje fumo muito menos. Não adian-
a primeira: ta a pessoa querer convencer a outra de
“...me enlouqueceu aquela mulher, até parar de beber, fumar cigarro ou fumar pe-
hoje sonho com ela, acho que ainda amo dra. A pessoa tem que sentir lá de dentro

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

dela o que é bom pra ela mesma. To per- uma equipe de profissionais especializados em
cebendo que o meu caderno está ficando intervenções comunitárias desenvolvemos um
cheio das minhas histórias ou será que trabalho de escuta e acolhimento, com quem ali
são as memórias? Eu acho que pode ser está vivendo. É difícil? Sim, mas também é um
as duas coisas, antes eu achava que as compromisso clínico-politico de encontrar tempo
pessoas que viviam nas ruas não tinham para escutar as histórias das pessoas que estão
histórias, nem memórias quando parei de habitando as ruas, sempre buscando conhecer o
rasgar as folhas do meu caderno, eu fui que elas próprias querem.
juntando as partes da minha vida inteira. Em meados de dezembro de 2019, as
Eu comecei agora a fazer alguns desenhos seis horas da manhã, rumo para uma pequena
junto com as histórias, eu estou tomando favela de um bairro muito periférico da cidade de
gosto pelo desenho, eu levava muito jeito São Paulo, para estar lá oito e meia, no nosso
para desenhar quando era jovem, mas a si- “ponto de encontro”. Na mochila, carrego sempre
tuação não favoreceu que eu levasse este preservativos, cachimbos novos, protetores la-
gosto adiante. Fico aqui esperando quan- biais e água; são os insumos mais requisitados,
do vocês chegam para eu conversar, es- tanto nas ruas como nas comunidades, principal-
sa conversa tem mudado minha vida. Mui- mente no calor.
tas vezes chega o dia de conversarmos eu
É um lugar definitivamente esquecido, no
estou trabalhando seja no farol vendendo
extremo sul da cidade. Muito lixo e escombros.
água, ou catando papelão lembro: vou vol-
Um território marcadamente dominado por dispu-
tar para minha casa na arvore e esperar
tas de toda natureza. Eu e alguns companheiros
a escutadora. Sim, você é minha escuta-
de trabalho chegamos devagarinho, por intermé-
dora, nem eu mesmo havia me escutado
dio de duas colegas que lá estavam e que foram
antes. Imagine eu escrevia minhas histó-
aceitas. Trabalho cuidadoso; “é muito perigoso
rias amassava e jogava fora. Eu estava me
este lugar”, ouvíamos constantemente dos cole-
jogando fora. Agora não me jogo mais fora.
gas. Demoramos aproximadamente um mês pa-
Essa semana depois que conversamos eu
ra fazer nossas vinculações; estávamos lá todas
fiquei pensando de talvez daqui um tempo
as semanas. Nos apresentaram o “Chefe do Pe-
voltar para a construção civil, arrumar um
daço”. Nos recebeu, conversamos sobre nossos
lugarzinho para eu, Piloto e os escudeiros
objetivos e ele deu permissão para que permane-
irmos morar, todos trabalhando pode ser
cêssemos lá; ele ficaria conosco. Ali estava o iní-
mais fácil. Voltei a sonhar e desta vez não
cio de uma grande parceria, nesta comunidade.
foi mais com a Bandida, mas comigo” (Le-
O Chefe, um homem negro, quarenta e
trado, 2018).
três anos, morando na comunidade aproxima-
damente há doze anos, inteligente, amante de
- o “Chefe do Pedaço”: música principalmente o soul, gosta de cinema,
Duas a três vezes por semana, antes da separado, pai de um filho, olhar de lince, presta
pandemia do Coronavírus, ocorriam as conversas atenção em tudo. Trabalha como ”faz tudo”, tem
de rua e, mensalmente, um encontro nas praças, as mãos calejadas pelo trabalho. Ele nasceu em
comunidades, ou matas aonde comumente eu e São Paulo, tem mais sete irmãos, três homens

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

e quatro mulheres; ele é o quinto filho, mas tam- sempre de roupas pretas; austero, acompanhava
bém poderia ser, como disse, o “esquinto dos as nossas atividades que, a princípio, se resu-
infernos”. miam a ouvir as histórias das pessoas. Muitos
A princípio carrancudo e sério, com o de- ali com tuberculose e/ou com outros problemas
correr do tempo se revelou dançarino, engenho- pulmonares, feridas no corpo ou no coração. Nas
so, poeta e cantor. Começou a me contar sua rodas de escuta e conversa, eram levantadas
história depois de mais de dois meses de meu todas as histórias; obviamente aquelas que qui-
trabalho na comunidade. Foi o primeiro a chegar sessem contar. Com o tempo, fomos ampliando
nesta comunidade, quando tudo ainda era ma- o trabalho e a pedido deles passamos a levar
to, há mais de 12 anos, e montar seu barraco. violão e a cantar. Passamos a fazer também os
Passou a morar lá, após sua mulher ter abando- nossos cafés e almoços coletivos.
nado a casa e levado o filho junto; até hoje não Álcool barato é a substância mais consu-
tem a menor idéia por onde eles andam. Depois, mida, mas, como o próprio chefe diz:
outras pessoas foram chegando; e hoje ninguém “...a cachaça e a pedra são as nossas di-
sabe ao certo quantas pessoas vivem ali; é flu- versões, mas aqui também temos nossas
tuante, tem muita gente que entra e sai. Seus regras, trabalhamos; nossas carroças po-
pais morreram e ele teve várias “tretas” com os dem ficar perto de nós assim como os
irmãos por causa de herança, mas com a saída bichos; já perceberam como aqui tem bi-
da mulher de casa, achou que a rua era o seu chos? Os “noiados” adoram os bichos, ca-
lugar; porque nas ruas “as tretas são resolvidas chorros e gatos principalmente” (Chefe,
na hora e depois fica tudo bem”. Me contou que 2019).
as pessoas na rua são mais livres, mais despren-
Entramos aos poucos na comunidade e
didas porque estão todos na mesma situação,
lá estamos, com nosso trabalho de escuta, mú-
formando uma irmandade. Também me disse que
sicas, danças, arte-cultura, bazares, almoços ao
para “aguentar” a vida da rua não é fácil: “tem a
ar livre e os cafés. Outras equipes se juntaram
irmandade mas também tem muitas maldades,
a nós e o Chefe, conforme ele mesmo diz, “nos
muitas traições e caguetagens”. Ele passou a be-
adotou: “deixei de usar roupas pretas, eram mui-
ber muito depois da separação, “travou geral”;
to pesadas; talvez como estava a minha vida”.
bebia até cair nas ruas sem direção e várias ve-
Seu barraco foi totalmente transformado e têm,
zes acordou na cadeia. Fumou maconha, tomou
agora, dois cômodos. Atualmente, ele é um redu-
rebites, bebia à noite e trabalhava ”rebitado”.
tor de danos na sua comunidade. Nós acolhemos
O barraco do Chefe é minúsculo, apenas sua chefia e ele nos acolheu. O trabalho desen-
os plásticos o mantém, capengamente, em pé; e volvido lá somente é possível, porque ele e a sua
ninguém pode entrar. Também, a princípio, foram história permitiram; e se misturaram a outras his-
combinadas as regras para a nossa permanência tórias que, como a dele, podem se transformar.
lá. Sempre cumprimos à risca, “palavra é pala-
vra”. Atualmente, podemos caminhar por lá sem - a grávida imaginária:
qualquer senha; mas, no princípio, tudo foi muito Transitando em uma cena de uso na Re-
acertado. gião Oeste da cidade, encontrei Luiza e começa-
O Chefe começou a estar conosco, mos a conversar. Tem 32 anos, com aparência de

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

bem mais velha. Um olhar profundo estampado, namorar e ela engravidou no segundo mês mo-
de sofrimento e desamparo. É mineira de Belo rando com ele. Entretanto, perdeu o bebê. E “até
Horizonte. Vem de uma família pobre; o pai, ela não gostava muito dele”, mas, ter engravidado
não conheceu, e a mãe a deixou juntamente com lhe trouxe alegria. Com a interrupção da gravidez
o irmão dois anos mais velho, com os avós mater- achava que precisava ir para outro lugar; foi fican-
nos, quando eles eram ainda crianças; sumiu no do insuportável continuar com o caminhoneiro;
mundo com um grupo de ciganos e nunca mais ele viajava e ela ficava muito sozinha, morando
voltou. Começou a trabalhar em casa de família, em um quarto pequeno, mofado e sombrio. Co-
cedo, para ajudar os avós. Quando tinha 17 anos meçou a fazer pequenos programas com alguns
engravidou de um homem casado e 20 anos homens que encontrava alí por perto de sua ca-
mais velho do que ela; um vizinho dos avós. Ele sa, até ir trabalhar à noite em algumas ruas da
não quis ter a criança e providenciaram, através cidade, como profissional do sexo, porque ganha-
de uma conhecida dele, parteira, o abortamento. va mais. Trabalhava dia e noite e, por uns quatro
Ela passou muito mal e quase morreu de tristeza anos, ganhou algum dinheiro, passando a ter um
porque queria ter o filho, mas foi ameaçada - até quarto melhor aonde atendia seus clientes. Bebia
de morte - pelo amante, que a abandonou em constantemente porque nas atividades com ho-
seguida. Uns quatro meses depois, perdeu o avô; mens na noite é necessário beber, não tem jeito
seu irmão casou e mudou para Corumbá; a avó e às vezes cheirava cocaína.
foi morar com um tio materno, numa casa aonde Até que conheceu um cliente traficante e
não tinha lugar para ela. se apaixonou perdidamente por ele. Por uns seis
Ficou nas ruas do centro de Belo Horizon- meses, foi muito bom, ele a levava para jantar
te por alguns dias e conheceu uma amiga que tra- em lugares bonitos que ela jamais pensou em ir.
balhava em uma boate; ela lhe fez o convite para Mas, começou a lhe fazer ‘propostas estranhas’-
trabalhar lá, porque era possível morar no local que passasse a transar com mais homens jun-
e fazerem programas noturnos com os clientes; tos. Nesses programas, começou a fumar crack
ganhariam mais dinheiro. Como achava que tinha e engravidou novamente. Seu namorado trafican-
um corpo bonito e, para não ficar na rua, acei- te estava ficando cada vez mais desinteressante
tou o convite. Conseguiu ficar lá um ano, depois e violento e, quando ela engravidou, ”encanou”
não aguentou mais; passou a beber bastante e a que o filho não era dele e passou a agredi-la. Em
cheirar cocaína para aguentar o trabalho, apren- uma das brigas, quando ela já estava entre três
deu a dançar e a cantar, mas ganhava pouco para e quatro meses de gravidez, foi espancada pelo
o tanto de homens que atendia. Tinha que deixar companheiro e perdeu o bebê. Depois que per-
quase tudo no trabalho. Um pouco antes de sair deu este filho saiu do hospital e foi morar na rua:
de lá conheceu um caminhoneiro paulistano, que embaixo dos viadutos seria melhor do que voltar
lhe ofereceu carona para vir para São Paulo, por- para casa; já estava bastante comprometida com
que aqui teria chance de ganhar mais dinheiro. o uso do crack.
Não teve dúvida, veio, com a cara e a co- Passou a fazer programas para comprar o
ragem. Há 12 anos está vivendo em São Paulo. crack, era uma estratégia de vida. Conta que era
O caminheiro lhe ofereceu sua casa para morar, sempre aconselhada e cuidada pelas equipes de
enquanto ela arrumava trabalho. Começaram a rua (de acolhimento), para maneirar o uso, mas

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

não conseguia; ela se apaixonou pelo crack: O trabalho deve ser guiado pelas deman-
“Não era o crack, era eu mesma que que- das dos que vivem nas ruas, pelo que querem.
ria ele. Gostava e até esperava as pesso- A construção de mini-equipes de trabalho é im-
as, para conversar, porque “falar é muito portante para a aproximação e o acolhimento,
bom, quando as pessoas escutam a gente. incluindo, aqui, redutores e redutoras de danos;
Podia falar a verdade, sem mentir” (Luzia). equipes de referência, através de uma contextu-
alização ampliada da pessoa. Articulações com

as redes de Justiça (acesso à Justiça), Saúde,
Dizia que o crack a ajudava a ter esperan-
Educação e Assistência Social são fundamentais
ças. Passou a ter sonhos quase diários com os
no fortalecimento da autonomia das pessoas que
bebês que havia perdido e então se via grávida.
nunca tiveram ou não têm mais documentos e
Olhava no espelho e via a barriga de grávida e
referências e para aquelas que são encarceradas
achou que estava enlouquecendo; quando fica-
injustamente ou estão em situação de custódia,
va menstruada se decepcionava, mas continua-
e que, por isso, perderam seus direitos básicos
va acreditando que estava grávida. Continuou na
de existir. Acompanhá-los presencialmente faz
rua, reencontrou seu parceiro traficante, ainda
parte desta construção de luta pela garantia de
tentaram ficar juntos, mas “já tinha passado a
direitos e de preservação da existência. Isto não
hora”; ele tentou tirá-la da rua, mas ela não acre-
é possível sem afeto, disponibilidade, confiança
ditava mais nele. Fiquei sem encontrar Luiza por
e laços construídos nos ”bons encontros” entre
várias semanas, apesar de procura-lá. Soube,
humanos, restauradores e transformadores.
através de sua amiga, que ela foi “desapareci-
As “coisas sem importância” para o Es-
da” pelo ex-companheiro. O silêncio impera, Luiza
tado atual “desprotetor”, são, para nós do Cole-
morreu sem ter o filho ora desejado ora negado.
tivo Intercambiantes Brasil, uma fonte produto-
Descanse Luiza, em paz. A eternidade irá prote-
ra de resistência. Estamos em luta, contínua e
gê-la, para sempre.
permanente.

Considerações finais
Referências
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nas ruas é fundamental para o desenvolvimento tos humanos I. Jornal de Letras. 2020; 28. (on line). [aces-

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Danos, aqui, está implicada também nos paradig-
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15. Olievenstein C. Os drogados não são felizes. Trad.

|66 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Redução de Danos no PROADI: trinta anos de


experiência institucional
Harm Reduction at PROADI: thirty years of institutional experience

Maria Alice Pollo-AraujoII, Dartiu Xavier da SilveiraIII

Resumo Abstract

Este artigo tem por objetivo fazer uma retrospectiva histórica do Pro- This article aims to make a historical retrospective of the Programa
grama de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD) no que de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD) regarding the
se refere à adoção de modelos de Redução de Danos no cuidado adoption of Harm Reduction strategies in the care of drug addicts.
a dependentes químicos. Desde sua criação o Programa desenvol- Since its creation, the Program has developed assistance, teaching
ve atividades de assistência, ensino e prevenção sob a ótica da Re- and prevention activities from the perspective of Harm Reduction mo-
dução de Danos. No rol dessas atividades estão os grupos de aco- dels. These activities include host groups, specific Harm Reduction
lhimento, programas específicos de Redução de Danos (como, por programs (such as for injecting drug users), publications in the health
exemplo, intervenções junto a usuários de drogas injetáveis), publica- field and scientific research that address a wide range of topics, from
ções para a àrea da saúde e pesquisas científicas que abordam uma the spontaneous substitution of crack by cannabis among depen-
ampla gama de temas, desde a substituição espontânea do crack dents, up to Harm Reduction in the context of prevention in schools.
pela cannabis entre dependentes, até a Redução de Danos no âmbito
Keywords: Harm reduction; Drugs; Risks.
da prevenção em escolas.

Palavras-chave: Redução de danos; Drogas; Riscos.

Introdução

O
Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD), do De-
I

partamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade


Programa de Orientação e Atendimento a
Federal de São Paulo (EPM/UNIFESP).
Dependentes (PROAD), serviço do Depar-
II
Maria Alice Pollo-Araujo (maliceparaujo@gmail.com) é psicologa pela Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com especialização em tamento de Psiquiatria da Escola Paulista
Neuropsicologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São
Paulo (FCMSCSP), atua como psicóloga efetiva do Instituto de Medicina So-
de Medicina da Universidade Federal de São Paulo
cial e de Criminologia de São Paulo (IMESC) da Secretaria da Justiça e Cida-
dania do Governo do Estado de São Paulo e é membro do Núcleo de Álcool,
(EPM/UNIFESP), foi fundado em 1987.
outras Drogas e Saúde Mental da Comissão de Direitos Humanos da Seção
de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP). Foi colaboradora Desde a sua criação, realiza atividades de
do PROAD/UNIFESP, associada da Associação Brasileira Multidisciplinar de
Estudos sobre Drogas (ABRAMD) e membro da Rede Brasileira de Redução assistência, ensino, pesquisa e prevenção na área
de Danos e Direitos Humanos (REDUC).
das dependências de substâncias psicoativas lí-
III
Dartiu Xavier da Silveira (dartiu@terra.com.br) é médico pela Escola Pau-
lista de Medicina (EPM), mestre e doutor em Psiquiatria pela Universidade citas e ilícitas e de algumas dependências não-
Federal de São Paulo (UNIFESP), Coordenador do Programa de Orientação e
Atendimento a Dependentes (PROAD). Foi consultor do Ministério da Saú- -químicas (como jogo patológico e sexo compulsi-
de e da Secretaria Nacional de Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça,
membro da American Psychiatry Association, da International Association
vo), tendo sido a primeira instituição ligada a uma
for Analytical Psychology, pesquisador-colaborador da University of California
(UCLA), presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e
universidade a instituir um programa de Redução
da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Álcool e Drogas de Danos no Brasil1 e o primeiro serviço de trata-
(ABRAMD). Atualmente é Professor Livre-Docente da Universidade Federal de
São Paulo, atua em consultório particular e como Professor Associado do mento para dependentes a contar, em sua equipe
Departamento de Psiquiatria da UNIFESP.

vol.21, n.2, dez 2020 |67


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de profissionais, com um antropólogoIV. atitudes de coordenadores pedagógicos de esco-


Na área de assistência, o modelo terapêu- las públicas de ensino fundamental da cidade de
tico do PROAD sempre teve como característica São Paulo), comparando-se modelos de prevenção
principal o enfoque multidisciplinar e a política de baseados em “redução de danos” ou “guerra às
Redução de Danos2. Em um tratamento da de- drogas”; situações relacionadas ao uso indevido
pendência química pautado nos princípios deste de drogas em escolas públicas do Município, entre
enfoque, os usuários são acolhidos dentro de su- outros1.
as demandas e possibilidades. Isto pode incluir Na área de ensino, todas as atividades do
a modificação do padrão de uso e a substituição PROAD (cursos de especialização, extensão, atu-
da droga de abuso por outra com a qual o usuário alização, entre outras) contêm, em seu conteúdo
consiga estabelecer um padrão de uso menos da- programático, a Redução de Danos como tema es-
noso, sem excluir a possibilidade da abstinência3. pecífico a ser apresentado, trabalhado e discutido
Em se tratando de linhas de pesquisa, o com o intuito de ser compreendida em sua essên-
programa desenvolve projetos na área de Redução cia, além de perpassar a sua relação com outros
de Danos e dependências químicas, tais como: assuntos. A posição do PROAD é, pois, a de con-
uso “terapêutico” de cannabis na dependência do siderar a Redução de Danos como um paradigma
crack; investigação do risco de contaminação pe- que permeia todo o seu trabalho e não um modelo
lo vírus da imunodeficiência humana (HIV, em in- que se opõe às estratégias que visam a abstinên-
glês) entre usuários de crack; manejo de overdose cia de drogas3.
de cocaína sob a perspectiva do usuário; fatores Contrapondo-se à política de proibição de
preditivos de suicídio entre dependentes de álco- álcool e outras drogas introduzida, sobretudo pe-
ol e drogas; transtorno de atenção em usuários los Estados Unidos, desde o início do século XX,
de drogas; comportamento sexual de risco para a Redução de Danos remonta ao ano de 1926,
aids entre usuários de cocaína e crack; fatores de quando um comitê de médicos, presidido pelo in-
risco para a infecção pelo HIV e outras infecções glês Humphry Rolleston (1862-1944):
sexualmente transmissíveis (IST) entre dependen- ... concluiu que a heroína e/ou a morfina
tes; comportamentos autodestrutivos em usuários deveriam ser validadas como forma de tra-
de álcool e drogas; violência familiar associada ao tamento e disponibilizadas a quem desejas-
abuso de álcool e drogas; fatores de risco para se e – uma decisão que se traduziu numa
abuso de drogas em crianças em situação de rua; abordagem mais pragmática e humana
alterações psiquiátricas e neuropsicológicas em dos problemas associados ao uso de dro-
adolescentes usuários de ayahuasca em contex- gas e se tornou um marco na história da
to ritual religioso; alterações eletrocardiográficas redução de riscos.4 (parágr. 1)
em pacientes usuários de cocaína (monitorização
eletrocardiográfica ambulatorial – holter); preven-
O PROAD e a Redução de Danos
ção do uso indevido de drogas (conhecimentos e
No Brasil, a Redução de Danos comple-
IV
Edward MacRae, formado em Psicologia Social e mestre em Sociologia
tou 30 anos em 2019. De acordo com Logan5, o
Latino Americana, ambos pela University of Essex, doutor em Antropologia marco foi em 29 de novembro de 1989, data de
Social pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Associado do De-
partamento de Antropologia e Etnologia e pesquisador associado ao Centro início de um programa governamental do municí-
de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD), ambos da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). pio de Santos, Estado de São Paulo, para evitar

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

a transmissão da aids entre usuários de drogas Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas (CO-
injetáveis (UDIs). NED-SP), o PROAD apresentou um estudo pioneiro
Ainda que a Constituição6 de 1988, em no Brasil, referente ao fenômeno observado entre
seu artigo 196, já descrevesse a saúde como um usuários de crack que procuraram tratamento e
direito de todos que deve ser garantido pelo Es- referiram, nas primeiras consultas, a utilização de
tado “mediante políticas sociais e econômicas maconha como uma forma de atenuar os sinto-
que visem a redução do risco de doença e de ou- mas de abstinência do crack9. Ao longo de um pe-
tros agravos e ao acesso universal e igualitário às ríodo de nove meses, os pesquisadores acompa-
ações e serviços para sua promoção, proteção e nharam um grupo-piloto de 25 pacientes do sexo
recuperação”, a iniciativa da Secretaria Municipal masculino, com idades entre 16 e 28 anos, grave-
de Santos, de fornecer seringas e agulhas des- mente dependentes de crack, diagnosticados pe-
cartáveis para a prevenção do HIV entre UDIs, foi la Entrevista Diagnóstica Internacional Composta
interpretada como crime de incentivo ao uso de (CIDI), de acordo com os critérios de diagnóstico
drogas e, por isso, foi interrompida pelo Ministério CID-10 e DSM-IV. A maioria dos indivíduos (68%)
Público7. deixou de usar crack e relatou que o uso de canna-
bis reduziu seus sintomas de “fissura” e produziu
Nesta mesma linha, como alternativa à
mudanças subjetivas e concretas em seu compor-
distribuição de seringas entre usuários, o PROAD
tamento, ajudando-os a superar a dependência
iniciou um trabalho pioneiro na cidade de São Pau-
de crack. Aspectos psicológicos, farmacológicos e
lo, com outreach worker, em que os usuários de
culturais desses achados também passaram a ser
drogas deste Programa passaram a ir a campo
amplamente discutidos10.
implantar estratégias de prevenção e Redução de
Danos junto a usuários de drogas que não procu- Ainda em 1998, ano marcado por um gran-
ravam serviços de assistência. Desta forma, em de desenvolvimento das estratégias de Redução
1991, os pacientes atendidos pelo serviço foram de Danos no Brasil, o PROAD participou ativamen-
treinados para distribuir hipoclorito de sódio e teV da organização da IX Conferência Internacional
orientar os UDIs a desinfetarem suas seringas e de Redução de Danos, realizada na cidade de São
a não compartilharem seus equipamentos de inje- Paulo. O evento enfocou experiências desenvol-
ção com outros usuários8. vidas no âmbito da Redução de Danos, em dife-
rentes contextos socioculturais, contando com a
Em 1994, com o estabelecimento de um
presença de mais de 50 países e mais de 1.000
convênio com o Ministério da Saúde (via Coorde-
pessoas. Na abertura do evento, no Palácio dos
nação Nacional de DST e AIDS), o PROAD passou
Bandeirantes, foi anunciada a regulamentação da
a coordenar ações preventivas relacionadas ao
Lei nº 9.758, de 17 de setembro de 199711, em vi-
abuso de drogas e à infecção pelo HIV em âmbi-
gor até hoje, que autorizou a Secretaria da Saúde
to nacional, com subsídios da United Nations Drug
do Governo do Estado de São Paulo a distribuir se-
Control Programme (UNDCP) (hoje United Nations
ringas descartáveis aos usuários de drogas injetá-
Office on Drugs and Crime – UNODC) e do Banco
veis. Em outubro, a mesma psicóloga da equipe do
Mundial.
PROAD participou da criação da Rede Brasileira de
No Encontro denominado “SOS Crack”,
Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC).
organizado em 1998 pelo então Conselho Esta-
dual de Entorpecentes (CONEN-SP), atualmente V
Representado por Mônica Gorgulho, psicóloga de sua equipe.

vol.21, n.2, dez 2020 |69


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

No 1º Fórum Nacional Antidrogas, em no- Em 2003, o PROAD reestruturou seu Pro-


vembro de 1998, realizado em Brasília pela Secre- grama de Redução de Danos de disponibilização
taria Nacional Antidrogas (SENAD) - atual Secreta- de seringas aos usuários de drogas injetáveis. Fo-
ria Nacional de Políticas sobre Drogas -, as “Estra- ram identificados, na rede de pacientes atendidos
tégias de Redução de Danos” constaram no rela- pelo serviço, aqueles com potencial para atuarem
tório do evento, pela primeira vez no Brasil como como voluntários. Esses pacientes podiam ser
uma das políticas públicas para o enfrentamento UDIs, ex-UDIs ou, ainda, usuários de drogas que
da questão das drogas12. No ano seguinte, a SE- tinham inserção na rede social da população-alvo;
NAD, por meio de sua Subsecretaria de Prevenção a partir dessa identificação, esses redutores de
e TratamentoVI, lançou a publicação “Um Guia para danos (agentes de saúde) foram capacitados pe-
a Família”13 redigida pelo coordenador do PROAD e la equipe do PROAD e por profissionais colabora-
colegasVII, com orientações e informações centra- dores para abordar usuários de drogas injetáveis,
das na Redução de Danos. distribuir seringas e agulhas estéreis descartáveis,
Em 1998, o PROAD já contava com um gru- promovendo práticas de uso seguro de drogas e
po de acolhimento de Redução de Danos dentro aconselhamento para a prática de sexo de baixo
de sua sede. Esse grupo era voltado para usuários risco1.
de drogas ilícitas, entre 18 e 25 anos, que não A iniciativa da UNIFESP, de sediar, dentro
desejavam, em princípio, interromper o uso de dro- do PROAD, um programa de distribuição de serin-
gas, mas discutir formas de uso controlado com o gas, foi uma ação pioneira inovadora entre as uni-
objetivo de realizá-lo com o menor risco possível. versidades do Estado de São Paulo8.
Observava-se que vários dos frequentadores do A Redução de Danos pode ser considera-
grupo acabavam posteriormente por se engajar no da uma abordagem de extrema utilidade não ape-
tratamento visando abandonar o uso de drogas1. nas para dependentes, mas em diversas outras
O Grupo de Redução de Danos do PROAD áreas da saúde. Neste sentido, o PROAD instituiu-
nasceu dos grupos de acolhimento a dependen- VIII
, na Escola Paulista de Medicina, em 2004, a Li-
tes implantados em 1994, cujas estratégias foram ga Acadêmica de Farmacodependência, destinada
aos poucos sendo ampliadas com base na Redu- à formação de estudantes universitários de diver-
ção de Danos e nos dados colhidos a partir da sas áreas, com ênfase em Redução de Danos e
interação entre pacientes e terapeutas. A partir da multidisciplinariedade.
prática foi observado que pacientes com quadro
Em setembro de 2005, sob a presidência
graves de dependência de drogas, que já haviam
se submetido aos mais diversos tipos e modalida- do coordenador do PROADIX, foi fundada a Asso-
des de tratamento, aderiram com maior facilidade ciação Brasileira Multidisciplinar de Estudos so-
a uma proposta ambulatorial com enfoque em Re- bre Drogas (ABRAMD), em apoio às políticas de
dução de Danos por se sentirem mais aceitos por Redução de Danos, promovendo, desde então,
suas escolhas, uma vez que o uso de drogas não eventos com debates científicos abrangentes de
era a principal característica a defini-los14. cunho multidisciplinar, inclusivos e colaborativos
com a comunidade. A fundação da ABRAMD foi
VI
Então coordenada por Telva Barros. uma iniciativa de diversas instituições brasilei-
VII
Dartiu Xavier da Silveira, junto a Evelyn Doering da Silveira.
ras, em resposta à hegemonia, então vigente, de
VII
Por iniciativa de Thiago Fidalgo, médico membro da equipe.
uma abordagem predominantemente repressiva e
X
Dartiu Xavier da Silveira.

|70 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

punitiva, cientificamente questionável, da farma- atendimento de pessoas transgêneras, transexu-


codependência. A fundação da ABRAMD somente ais e travestis com problemas relacionados ao uso
foi possível graças ao empenho e dedicação de de álcool e/ou outras drogas. Oferecer esse servi-
renomados profissionaisX do Centro Brasileiro de ço significa que essa parcela da população, usu-
Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) almente discriminada e marginalizada, passa a ter
e da Unidade de Dependência de Drogas (UDED), um espaço garantido para ser atendida com res-
ambos da UNIFESP, e do Programa da Mulher De- peito e dignidade, sem se preocupar se irá sofrer
pendente Química da Universidade de São Paulo algum tipo de preconceito. Ademais, se configura
(PROMUD/USP). em um espaço no qual os problemas com álcool e
Com financiamento do Ministério da Saú- drogas são o foco principal, mas que os profissio-
de, o PROAD: nais também levam em consideração as especifi-
cidades dos transgêneros no âmbito da atenção à
• realizou, em 2007, Curso de Especializa-
saúde17.
ção em Dependências, com enfoque na Redução
de Danos, para 50 profissionais de nível superior Em maio de 2020, foi publicado artigo18
de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Cen- sobre administração de metilenodioximetanfeta-
tros de Atenção Psicossocial de Álcool e outras mina (MDMA), como adjuvante no tratamento de
Drogas (CAPS-ad) e outros centros de atendimen- pacientes que haviam sofrido abuso sexual, estu-
to do Sistema Único de Saúde (SUS) da Região do que contou com a participação de membros do
Metropolitana e Grande São Paulo. PROADXII.
• publicou, em 2008, o material intitulado
“Drogas e Redução de Danos: uma cartilha para Considerações finais
profissionais de saúde”15 com tiragem de 17 mil Como é possível notar, a atuação do PRO-
exemplares a serem distribuídos aos Centros de AD é conduzida levando-se em conta os princípios
Atenção Psicossocial (CAPS-ad, CAPS I, CAPS II, da Redução de Danos. Além disso, considera que
CAPS III, CAPSi) do Brasil. Nesta cartilha são fei- a descriminalização das drogas (despenalizar -
tas reflexões sobre a prevenção ao uso indevido não mais tornar alvo de sanção penal - o indivíduo
de drogas, apresentados os aspectos históricos que usa ou porta a droga para uso próprio, inde-
da Redução de Danos, especificados os tipos de pendente do tipo de relação com a substância),
estratégias para drogas ingeridas (incluindo o álco- seria uma importante medida de Redução de Da-
ol), drogas inaladas/aspiradas e drogas fumadas, nos, pois, por um lado, poderia ser fator de inte-
bem como explicitadas as relações entre a Redu- gração do usuário de drogas ilegais na sociedade
ção de Danos e a legislação penal16. e, por outro, acabaria com o estigma marginalizan-
Em junho de 2016, foi criado, dentro do te da droga que os cerca1.
PROAD, o TransSetorXI, composto por uma equi- A procura de estados alterados de cons-
pe multiprofissional voltada exclusivamente para ciência, através do uso de drogas, permeia toda
a história da humanidade. Se alguns indivíduos
X
Elisaldo Carlini, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotró-
picas da Universidade Federal de São Paulo (CEBRID/UNIFESP); Maria Lucia usam estas substâncias para ampliarem sua visão
Formigoni, da Unidade de Dependência de Drogas da Universidade Federal
de São Paulo (UDED/UNIFESP); e Silvia Brasiliano, do Programa de Atenção à
de mundo, outros o fazem para lidar com o mal-es-
Mulher Dependente Química da Universidade de São Paulo (PROMUD/USP).
tar da atual civilização. Para alguns, as drogas são
XI
Por iniciativa dos médicos da equipe André Felipe Ferreira Martins e Juliana
Alves. XII
Dartiu Xavier da Silveira.

vol.21, n.2, dez 2020 |71


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

um remédio, para outros, um veneno. O significa- – prevenção e tratamento. São Paulo: Conselho Estadual de
Entorpecentes de São Paulo; 1998.
do desta experiência pode se revestir de aspectos
10. Labigaline E, Ribeiro L, Silveira DX. Therapeutic use
criativos, transformadores para a personalidade
of cannabis by crack addicts in Brazil. Journ. Psych. Drugs.
do usuário, ou de aspectos regressivos, levando 1999; 31(4), 451-455.
o usuário à estagnação e tornando-o doente. O 11. Pollo-Araujo MA, Moreira FG. Aspectos históricos da
entendimento das sutilezas das diferenças destes redução de danos. In Niel M, Silveira DX. (Orgs.). Drogas e
processos não pode prescindir do olhar da Redu- redução de danos: uma cartilha para profissionais de saú-
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|72 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Psicanálise e Redução de Danos: autonomia e mútua


potencialização
Psychoanalysis and Harm Reduction: autonomy and mutual potentialization

Celi CavallariI, Diva RealeII

Resumo Abstract

Em São Paulo, os projetos baseados nos princípios de Redução de In São Paulo, projects based on the principles of Harm Reduction,
Danos tiveram início na capital, em 1988, com a pesquisa e inter- started in the capital in 1988 with the research and intervention of
venção do Projeto Bleach do Centro de Referência e Tratamento de the Bleach Project by STD/AIDS Reference and Treatment Cente and
DST/Aids e, com o Projeto de distribuição de seringas e agulhas em with the project of distribution of syringes and needles in Santos in
Santos, em 1989. A presença de duas psicanalistas neste projeto 1989. The presence of two psychoanalysts in this pioneering São Pau-
paulistano pioneiro e, posteriormente, entre 1991 e 1994 no Proje- lo project, and later, between 1991 and 1994 at Drug Abuse and AIDS
to Prevenção ao Uso Indevido de Drogas e Aids constitui uma rara Prevention Project constitutes a rare approximation in Public Health of
aproximação, na Saúde Pública, de campos teórico e práticos de theoretical and practical fields of independent paths: Psychoanalysis
caminhos independentes: a Psicanálise e a Redução de Danos. In- and Harm Reduction. Investigating how this approach can amplify the
vestigar como esta aproximação pode amplificar as potências des- strengths of these practices was one of the main objectives of this
tas práticas é um dos principais objetivos deste artigo. Os projetos article. The projects highlighted in this text bring an ethical commit-
destacados trazem o compromisso ético com o incremento da au- ment to increase the autonomy of people who have suffered losses
tonomia de pessoas que sofreram prejuízos decorrentes de suas due to their complex conditions of vulnerability, amplified by the abu-
complexas condições de vulnerabilidade, amplificadas pelo abuso se or dependence on alcohol and other drugs; and justify the search
ou dependência de álcool e outras drogas e justificam a busca de op- for options beyond the clinic, which can gain potency in singular and
ções, para além da clínica, que possam ganhar potência no cuidado collective care.
singular e coletivo.
Keywords:  Harm reduction; Psychoanalysis; Extended clinic.
Palavras-chave: Redução de danos; Psicanálise; Clínica ampliada.

Introdução

A
Redução de Danos fez 30 anos no
I
Celi Cavallari (celicavallari@outlook.com) é psicóloga pelo Instituto Unifica- Brasil; foi motivada pela pandemia de
do Paulista (IUP); psicanalista pelo curso de especialização em psicanálise
coordenado pelo Prof. Dr. Fábio Landa e Mestre em Psicologia Clínica pela aids e a urgência em prevenir a infec-
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atua na Clínica, é
conselheira da Rede Brasileira de Redução de Danos e DH (REDUC) e consul- ção pelo HIV em usuários de drogas injetáveis
tora da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil –
Seção São Paulo (OAB-SP), membro da Associação Brasileira Multidisciplinar (UDIs)1. A legislação de drogas da época restrin-
de Estudos sobre Drogas (ABRAMD), da Rede Proteção contra o Genocídio
Jovem, do Coletivo Intercambiantes Br e da Rede Nacional Feminista e Anti- gia severamente qualquer ação preventiva de
proibicionista (RENFA).
maior eficácia envolvendo os usuários de dro-
II
Diva Reale (divareale@gmail.com) é psiquiatra pela Universidade de São
Paulo (USP), com formação independente em Psicanálise, Mestre em Medi- gas ilícitas; foi necessário adaptar os projetos
cina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(FM/USP) e Estagiária do Hospital Marmmotan, em Paris, Coordenou o Pro- às restrições típicas de uma política proibicio-
jeto Prevenção ao Uso Indevido de Drogas e Aids (PPUID-Aids/ERSA-2) da
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e concebeu e Coordena o Curso
nista2. A emergência da Redução de Danos im-
Independente ”O Barato no Divã” no Instituto Sedes Sapientiae e Membro da
Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD).
posta pela Aids, mesmo em países que tinham

vol.21, n.2, dez 2020 |73


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

tratamentos diferenciados para toxicômanos, iniciativa, nas poucas experiências conhecidas,


também gerou polêmica, como no caso do hos- quando foi possível mutuamente mesclar es-
pital Marmottan, em ParisIII,3. tratégias advindas de ambas9. Andrade, é um
O primeiro caso de HIV associado ao uso exemplo desta associação, por meio de uma
injetável de drogas, no Brasil, ocorreu em 1985, pesquisa feita num centro de saúde localizado
no Estado de São Paulo. Em 1988, formou-se no Pelourinho, em Salvador – Bahia, que aten-
uma comissão multidisciplinar no Centro de Re- dia usuários de drogas (UDs). Uma escuta psi-
ferência e Tratamento da Aids (CRT-Aids), que canalítica realizada na sala de espera permitiu
se desdobrou no “Projeto Bleach – Educadores trazer à luz aspectos singulares e sensíveis da
de Rua na Prevenção ao HIV/Aids entre UDIs e população de UDs, experiência também estuda-
Homossexuais”IV, no qual agentes de saúde da epidemiologicamente; um dos grandes méri-
orientavam UDIs a evitar o compartilhamento de tos desta pesquisa foi justamente o seu caráter
agulhas e seringas, além de disponibilizar hipo- quali-quantitativo10.
clorito de sódio e outros insumos para a limpe- Este e outros projetos pioneiros de Redu-
za desses objetos4-5. Em 1989, o governo mu- ção de Danos se efetivaram por meio da apro-
nicipal de Santos foi impedido pelo Ministério ximação e interpenetração de modelos. No ca-
Público de fazer a troca de seringas entre es- so baiano, uma “mixagem” entre programas de
ses usuários, mesmo constatando-se que, em Atenção Básica e o atendimento aos UDs, algo
1990, 18,2% dos casos de Aids desse municí- incomum e geralmente circunscrito a alguns dos
pio fossem atribuídos ao compartilhamento de poucos serviços especializados no tratamento
insumos entre UDIs6. de toxicomanias e adicções. A construção deste
Em 1991, foi instituído o Programa Perma- novo campo – formado pelo conjunto de ações,
nente de Prevenção ao Uso Indevido de Drogas intervenções, atitudes, políticas e legislações
pelo governo do Estado de São Paulo7, que in- embasadas em princípios, visando a maior in-
tegrou várias secretarias estaduais com ações clusão social de UDs, que se denominou como
preventivas. No Centro de Estudos e Terapia do Redução de Danos – buscou, em outros saberes
Abuso de Drogas da Universidade Federal da e práticas de cuidado, as formas de se viabilizar
Bahia (CETAD/UFBA)8, nasceu o primeiro progra- ações visando a redução das infecções de HIV
ma de troca de seringas entre usuários de dro- entre este público (Quadro 1).
gas injetáveis, em 1995. A aproximação da Psicanálise aos pro-
Acreditamos que a relação entre a Redu- jetos de Redução de Danos se constituiu nas
ção de Danos e Psicanálise teve o efeito de relações de confiança, como as supervisões
potencializar os resultados e a eficácia desta clínico-institucionais, ou quando psicanalistas
fizeram formação de redutores de danos e de
III
Conforme abordado no livro de Reale e Cruz “Toxicomania e Adições: a
clínica viva de Olievensteim”, de 20193. profissionais da rede públicaV. Na forma livre
IV
Ambas as autoras desse capítulo fizeram parte do Projeto “Bleach – Edu-
cadores de Rua na Prevenção ao HIV/Aids entre UDIs e Homossexuais”, da relação entre supervisor e equipes, a Psica-
realizado pelo Centro de Referência de Aids do Estado de São Paulo, em
fases distintas do mesmo. nálise pode ser transmitida no exame de situa-
V
Celi Cavallari ministrou formação em Redução de Danos para os profissio-
nais de serviços municipais de saúde na área de aids da cidade de São Pau- ções concretas trazidas pelos profissionais de
lo e realizou supervisão psicanalítica de todas as equipes desses serviços
durante o ano de implantação de Redução de Danos com os usuários entre saúde e protagonistas de relações formadas em
2002 e 2003.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Quadro 1 - Modelos de Ação Frente ao Uso de Drogas11


MODELOS PROIBICIONISTA REDUÇÃO DE DANOS
- Problema enfocado: o uso de drogas em si danos/ usos de drogas
- Política de drogas: ”guerra às drogas” Tolerante/pragmática
- Prioridade: Repressão ao uso de drogas ilíci- Redução de danos à saúde
tas e tráfico individual e coletiva
- Postura em relação à droga: Moralismo; estigmatização UD Realística/ pragmática
- Papel/ posição do Estado Controle abusivo do cidadão Provê serviços p/ UDs, Apoia organizações
de UDs, prega direitos dos UDs
- Prevenção de drogas: “sociedade livre das drogas” Dano/risco associado ao abuso
- Sistema de atenção à saúde/ Atendimento médico individual Vários tipos de serviços,
Serviços “alta exigência”*: abstinência “baixa exigência”**: com busca ativa***
- Objetivos: Abstinência Reduzir danos e riscos
- Prevenção de aids entre UDs/UDIs dificultada por restrições legais articulada como prioridade de saúde pública
* e ** “Alta ou Baixa exigência”: refere-se a critérios mais ou menos restritos de inclusão de pacientes UDs no tratamento da dependência
ou de outros cuidados de saúde. ***“Busca ativa” de usuários de drogas em seu meio [agentes saúde, “redutores de danos”].

rede – preventivas, terapêuticas e redutoras de pois é uma elaboração por escrito da leitura psi-
danos – no dia a dia dos trabalhadores destes canalítica feita das dinâmicas relacionais entre
serviços. duplas e grupos, estabelecidos de modo mais
estável ou pontualmente, durante o trabalho de
campo das educadoras de rua junto a uma rede
Jogos de identificação: a escuta e olhar psicana-
de usuários de drogas em seu meio. A supervi-
lítico de uma prática de Redução de Danos
são dessas dinâmicas tinha o intuito de garantir
A experiência compartilhada no Projeto de
a singularidade na escuta e na interpretação so-
Prevenção ao Uso Indevido de Drogas (PPUID),
bre cada pessoa contatada e também de esta-
desenvolvido na Secretaria de Estado da Saúde
belecer dispositivos preventivos mais sensivel-
de São Paulo, pelas autoras deste textoVI, per-
mente capazes de serem transmitidos e disse-
mitiu que recuperássemos o encontro da Psica-
minados entre os UDs e também multiplicados
nálise com os princípios da Redução de Danos,
por eles.
presentes nesse projeto.
A elaboração desse texto visava à época
Um dos produtos deste projeto foi o texto
compartilhar a experiência desse trabalho origi-
“Jogos de Identificação e seu Papel na Prevenção
nal de campo e explorar as potencialidades des-
Especializada”VII,12, no qual foi usado um recor-
se aprendizado para outras áreas de atuação
te psicanalítico para investigar qualitativamen-
com usuários de drogas, como o do tratamen-
te trocas afetivas ocorridas nas relações entre
to das toxicomanias e adições. Sua reprodução
as educadoras de rua e os usuários de drogas
parcial hoje visa demonstrar o potencial amplifi-
participantes do projeto PPUID13. Nele podemos
cado dessa mestiçagem, interdisciplinar que a
encontrar um caráter misto ou interdisciplinar14,
psicanálise aporta a outras práticas e campos15
VI
Diva Reale, é autora e coordenadora do Projeto de Prevenção ao Uso Inde-
e cuja presença ainda hoje permanece pontual e
vido de Drogas (PPUID) e Celi Cavallari trabalhou como assistente de coorde-
nação deste, na condição de psicanalista supervisora, entre 1991 e 1993.
pouco reconhecida.
Trabalho de autoria de Diva Reale apresentado no Simpósio: “Aids e Uso
VII Objetivava-se com o estudo elucidar a
de Drogas Injetáveis”, organizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em agosto, 1992; utilizamos a versão da autora, não publicada 12. compreensão de possíveis mecanismos de

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

transformação que poderiam estar subjacentes como alguém cruel com ele, que o deu, que o
às intervenções preventivas e postas em ação, abandonou, que o maltratou; falava com ódio e
nas relações entre educador de rua e usuário e mágoa, afirmando, inclusive, que tivera até o de-
drogas. Um último esclarecimento sobre a es- sejo de matá-la. Mas, ao tentar explicar o por-
colha do nome: “jogos de identificação” foi usa- quê de não a ter matado, não encontrou pala-
do para designar o produto da análise das in- vras. Noutro momento, revelou: “os assaltos eu
terações que foram relatadas nas supervisões, não fazia por dinheiro, não precisava disso, tinha
bem como das interações que ocorreram entre quanta droga quisesse... fazia por prazer”. Suas
membros da coordenação e os usuários atendi- ações antissociais foram descritas como atos
dos pelo projeto. Buscávamos respostas às se- de prazer, reiterando o caráter desafiador. Talvez
guintes questões: quais as representações sub- esse traço pudesse estar relacionado com uma
jacentes à conversa? - que funções afetivas tais certa “tendência antissocial”16. Queixou-se, nos
representações desempenhavam em seu uso de encontros seguintes com as educadoras, de su-
drogas e na sua relação com os diferentes “ou- as dificuldades com mulheres: “Sempre sou eu
tros” (amigos, chefes, médicos, pai, mãe, par- quem me apaixono; elas nunca querem; transo
ceiro (a), etc.)? uma vez e já estou caído. Começo a cobrar, exi-
gir ... e elas caem fora”.
Aos poucos, foi possível reconhecer que
suas principais preocupações não eram nem o
Primeiro contato: e se vocês forem “ratos”?
uso de drogas, nem as atividades ilícitas, nem
R., 21 anos, era um jovem usuário de álco-
a falta de trabalho, mas as afetivas. Um tempo
ol, maconha e cocaína. No primeiro contato com
depois, contou: “estou estudando para prestar
as educadoras estava ameaçado/ameaçador:
um concurso público”; “estou muito sem dinhei-
“Vocês vieram num carro azul e o estacionaram
ro (pois deixara as atividades de tráfico e dos
a três quadras daqui”. Com esta frase de abertu-
assaltos), tentando dar um tempo com as dro-
ra ele estabeleceu o clima e o problema daquele
gas”. Neste período, procurou as educadoras al-
encontro. R. já sabia “coisas” sobre elas, pré-
gumas vezes à tarde, fora do bar, para conversar
vias ao contato; ele observara seus passos sem
“dar um tempo para a cabeça”; afinal “a pressão
que elas percebessem; posteriormente, ele re-
era grande, para ficar em casa estudando dire-
velaria ter ficado muito “ligado” naquele primei-
to”. Ele sumiu por um período e as educadoras
ro encontro, pois L. (educadora) chamou-o pelo
receberam a notícia de que, além de manter os
nome antes que ele tivesse sido apresentado a
estudos, começara a namorar, que tinha dado
ela; e complementaria que já tivera problemas
um tempo das drogas; por isso, dava um tempo
no passado com “mulheres bonitas, comíveis”,
da turma de usuários acompanhados pela equi-
que eram, na verdade, informantes da Polícia
pe – enquanto aguardava ser chamado no con-
(“ratos”).
curso que havia passado, como escriturário do
Sua atitude, no grupo, era de deboche, setor administrativo da Secretaria da Saúde do
aquele que “zoa”, que é mais ousado, mais re- Estado de São Paulo, justamente onde a equipe
belde, com falas escancaradas sobre o uso e o do projeto era lotada.
tráfico, paradoxalmente se expondo. Um certo
dia, ele se “abriu”: descreveu a mãe na infância

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

O que poderia ter acontecido? permitindo que arrumasse uma tão desejada
A discussão feita à época propunha re- namorada.
lacionar a boa evolução da trajetória de R. ao A figura arcaica e terrivelmente ameaça-
efeito “terapêutico” – efeito benéfico não bus- dora – aquela representação da “mãe-que me-
cado intencionalmente – favorecido pelo vínculo receria-ser-morta” – pôde ser, em algum grau,
formado com as educadoras. Tal efeito pode ser relativizada pela experiência positiva, numa rela-
entendido como resultado de algo similar ao que ção de confiança atualizada com as educadoras.
se conhece como transferência17, em Psicaná- Desta atualização sem repetição, soluções no-
lise. A capacidade das educadoras de susten- vas puderam ser arriscadas. Esta hipótese pa-
tar a relação sem retaliar as forças disruptivas rece ter sido corroborada, visto que este rumo
que puderam ser expressas discursivamente, tomado por R. permaneceu estável pelos 3 anos
sem a necessidade de atuá-las em ações igual- seguintes em que o projeto foi mantido.
mente disruptivas, pode ser relacionada a este
impacto positivo na guinada que R. deu a sua
Uma última representação merece destaque:
vida naquele período. É possível conceber que
“uso responsável”
a principal “desintoxicação” que aconteceu com
Esta representação do uso do “uso respon-
R. foi menos relacionada à interrupção do uso
sável” oferece um valor heurístico, pois alinha-
de drogas em si e mais à redução das toxicida-
-se a um aspecto seminal da Redução de Danos
des internas, relacionadas por ele à sua histó-
e que se propõe a ampliar as soluções existen-
ria de abandono. O ódio e mágoas profundos,
ciais positivas que as pessoas usuárias de dro-
relacionados a este fato narrado, podem estar
gas buscam para si, indo além do binômio abs-
na origem de sua vulnerabilidade que se reve-
tinência é igual a saúde versus uso de drogas é
lava na relação turbulenta e fracassada com as
igual a doença. Logo nas primeiras semanas do
mulheres, além da adoção de um estilo de vida
trabalho de campo, C. apresenta às educado-
transgressor.
ras a um jovem D., 28 anos, que se destaca do
É provável, seguindo em nossa explica-
grupo. D. tem uma escolaridade maior do que a
ção hipotética, que R. tenha encontrado na figu-
maioria do grupo (possui Ensino Médio comple-
ra das educadoras a chance de poder ser bom
to) e a profissão de vendedor. É um dos únicos
frente a figuras femininas que o aceitaram e
que já foi casado oficialmente e agora está se-
permaneceram se relacionando com ele; talvez,
parado e tem dois filhos para os quais paga uma
elas tenham inaugurado ou resgatado para R.
pensão combinada.
a possibilidade de arriscar-se a sair do campo
Numa tardezinha, estavam reunidos
defensivo a que estava acostumado – ou apri-
mais ou menos sete desses jovens, num bar,
sionado – e construir uma imagem positiva de
com as educadoras e animadamente conversa-
si próprio.
vam. D. e C. estavam presentes e brindavam à
Talvez, passasse a existir a possibilida-
formação do “nosso grupo”. A umas tantas, “ro-
de de gratificação (prazer) numa relação positi-
lou” uma conversa sobre drogas – D. faz ques-
va. Diminuídas as suas ansiedades persecutó-
tão de se distinguir dos demais quanto ao uso
rias diante da “figura feminina-cruel”, seu con-
de drogas. Justifica esta distinção, usando a ex-
tato tornou-se menos tempestivo e impulsivo,
pressão “uso responsável”. Explica: alguém que

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

usa drogas e trabalha, cumpre com suas obriga- alcançado evidencia que não apenas os usuá-
ções; é diferente de quem usa drogas e não tem rios de drogas injetáveis podem ser alcançados,
obrigação nenhuma. “Ser responsável implica mas também as pessoas usuárias de drogas,
em trabalhar”, esclarece D., e ele trabalha. em geral.
Esta ideia de “uso responsável” parece Reale18 aponta que, embora fosse indis-
ter calado fundo nos presentes. Ninguém argu- cutível a necessidade de prevenção da Aids en-
mentou ou refutou. Instaurou-se um dito cujos tre UDIs, a Redução de Danos associada aos
efeitos seriam revelados a posteriori. usos de drogas é muito mais abrangente; por
D. havia oferecido ao grupo uma identi- isso, devido ao Ministério da Saúde ter repro-
dade restauradora: o trabalho passou a ser um duzido acordos internacionais proibicionistas,
elemento purificador dos aspectos negativos as- terminou por postergar as ações que reduziriam
sociados ao uso de drogas. Uma solução van- prejuízos associados ao uso de drogas e que po-
tajosa, se comparada à abstinência total das deriam ter eficácia na diminuição de problemas
drogas, correntemente conhecida como o único relacionados ao uso.
caminho de construção de papéis sociais posi- Já no início da década de 1990, em tra-
tivos e almejáveis –. “ascetismo” este que não balhos nacionais e internacionais19-20 demons-
oferecia uma compensação vislumbrável pelo tramos a necessidade da ampliação de ações
grupo. preventivas para usuários de drogas não injetá-
Assim, “ecos” ocorreram, mostrando que veis, foco principal no Brasil até mesmo para
alguns iniciaram movimentos na direção de mo- prevenção à infecção pelo HIV; e, somente nos
dificar seu consumo de drogas recente. Mas, is- últimos anos a Organização das Nações Unidas
to é uma história para outro momento. (ONU)21 tem tomado iniciativas nessa direção.
No ano de 1995, uma assistente so-
cial , que fora uma das educadoras do PPUID,
VIII
Lições aprendidas: encontro com a psicanálise e
potencialização transformativa da Redução elaborou e coordenou o Projeto Aids e o Uso
de Danos de Droga Injetável (Projeto UDI), na Associação
para Prevenção e Tratamento da Aids (APTA)22,
A escuta atenta às narrativas das falas
uma organização não governamental, localizada
dos usuários, feita pelas educadoras e desen-
na cidade de São Paulo. A APTA, coordenada por
volvida no acompanhamento sistemático dos
Teresinha Reis Pinto, foi a primeira Organização
relatos dos trabalhos de campo, por meio das
Não Governamental (ONG), no município de São
supervisões realizadas por psicanalistas, possi-
Paulo, a incluir Redução de Danos para UDIs e
bilitaram resultados psicossociais significativos
para todos os projetos preventivos desta ONG:
e mudanças na vida, para algumas pessoas e
“Aptateen” (sobre protagonismo de adolescen-
grupos abordados.
tes), “Barong”, “Caminhoneiros”, “Rua Paim” (di-
Este método de abordagem de Redução de
rigido a profissionais do sexo), de Educação Pre-
Danos com compreensão psicanalítica comple-
ventiva em DST/aids, de formação continuada e
mentar, sem exigência de abstinência a priori,
o projeto do “Encontro Nacional de Educadores
demonstrou a viabilidade de ações preventivas,
de mudança de atitudes e, em alguns casos, VIII
Cristina Maria Brites.

também a elaboração de sintomas. O benefício IX


Celi Cavallari.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

para a Prevenção de DST/Aids e Drogas (EDUCAI- esses usuários e os serviços de saúde. Essa
DS), que teve 14 edições. extensão dos serviços de saúde, que passaram
Para supervisionar a equipe a coordenado- a se esmerar para acessar os usuários em seu
ra do projeto UDI convidou a psicóloga e psicana- meio, inaugurou no âmbito coletivo o mesmo sig-
listaIX que havia sido supervisora no PPUID. No nificado de amparo e aproximação que o gesto
projeto UDI, agentes de campo, que contataram de estender a mão carrega no plano individual.
redes de usuários de drogas, passaram a fazer No intuito de implantar esta nova perspectiva
ações de Redução de Danos, tanto com trocas junto aos profissionais de tratamento, foi neces-
de seringas com usuários de drogas injetáveis, sário ampliar o entendimento e possibilitar que
como com orientações preventivas para todos aceitassem a profunda transformação dos pres-
os usuários e parceiros sexuais acessados. supostos que orientaram por várias décadas a
lógica do tratamento da dependência. Para is-
Em 1998, a equipe do Projeto UDI retirou-
so se efetivar, foi necessário muitas vezes não
-se da APTA. Posteriormente, Cristina Brites e
apenas treinamentos e formação convencional
Andrea Domanico inauguraram o É de Lei23, con-
siderado o primeiro Centro de Convivência para – transmissão de informações científicas produ-
pessoas usuárias de drogas do Brasil. Desde o zidas –, mas outras possibilidades transforma-
início, este Centro tem feito importantes e di- doras de compreensão, como a promovida pe-
versificados trabalhos na área de Redução de la supervisão clínico institucional psicanalítica.
Danos e Direitos Humanos, além de contribuir Elaborar os efeitos de décadas de mentalidade
com a formação e a ampliação do conceito de proibicionista não se faz por apreensão exclusi-
Redução de Danos no Brasil. vamente racional, é necessário elaborar os afe-
tos e emoções que foram moldados pelo medo
Apenas em 2003, a Redução de Danos foi
e pelos tabus associados aos usuários de dro-
incluída na área de Saúde Mental, como lógica
gas e rever papel de controle delegado aos pro-
ampliada e compatível com os princípios da Re-
fissionais. Incluir a tolerância, a confiança e a
forma Psiquiátrica. Refletindo a predominância
esperança de obter alguma transformação signi-
de uma mentalidade proibicionista dentro da
ficativa é resultado de uma conjunção incomum
Saúde Mental, a atenção ao usuário de drogas
e inovadora de estratégias e posturas diante da
tinha, até então, ficado restrita, na medida em
desmedida vulnerabilidade, às vezes extrema,
que o único tratamento oferecido permanecia
que os usuários excluídos de múltiplos direitos
pautado predominantemente na abstinência. A
sofrem. Os profissionais precisaram receber for-
partir da epidemia de Aids, como afirmamos, e
mação e supervisão para trabalhar com Redu-
com a estratégia de Redução de Danos, o uso
ção de Danos, acolhimento e cuidado, mesmo
de drogas retornou às práticas de cuidado em
que o usuário não quisesse ou não conseguisse
saúde em outra perspectiva: mesmo que as
ficar abstinente.
pessoas continuassem a usar drogas, poderiam
se prevenir da transmissão de doenças. Esta perspectiva foi assimilada no momen-
to da estruturação nacional da Rede de Aten-
Os redutores de danos acessavam os usu-
ção Psicossocial (RAPS). Houve a implantação
ários que não chegavam aos equipamentos de
dos Centros de Atenção Psicossocial de Álcool
saúde e estabeleciam vínculos de confiança que
e outras Drogas (CAPS-ad), com a proposta de
serviam para constituir uma nova ligação entre

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

oferecer um projeto terapêutico singular de cui- Seibel, S. Dependência de drogas. 2a ed. São Paulo: Athe-
dado para cada usuário; também foram implan- neu; 2010. pp.795-809.

tados os consultórios na rua e as residências 3. Reale D, Cruz MS. Toxicomania e adições: a clínica viva
de Olievensteim. São Paulo: Benjamin Editorial; 2019.
terapêuticas. Estes serviços de portas abertas,
adotam a recepção do usuário com um olhar in- 4. MacRae E, Reale D, Fernandez O. Intervenções e pes-
quisas pioneiras em redução de danos. In: Medeiros R,
dividualizado; prática que tornou ainda mais evi-
MacRae E, Adorno R. (Orgs.). Livro do VI Congresso Inter-
dente a necessidade de se aprofundar um tra-
nacional da ABRAMD de 2017. Belo Horizonte: ABRAMD;
balho que reconheça a complexidade de cada (no prelo).
pessoa. 5. Cavallari CD, Pollo-Araujo MA. A Redução de Danos no
Novamente o repertório da Psicanálise vol- contexto proibicionista do Brasil. In: Andrade ALM, Michelli
ta à cena, pois esta é concebida para assegu- DD, Silva EA, Reichert RA, Pinheiro BO, Lopes FM. (orgs.)
rar o tratamento pela palavra e pela presença Drogas e comportamento humano: aspectos biopsicosso-
ciais do uso de substâncias psicotrópicas. (no prelo).
sensível, numa relação terapêutica sustentada,
6. É de Lei. Do baque ao crack: 30 anos de Redução de
viabilizando uma clínica do inconsciente capaz
Danos no Brasil, São Paulo; 2019. (on line). [acesso em 20
de possibilitar uma escuta individualizada e a
out 2020]. Disponível em: https://edelei.org/wp-content/
elaboração de processos complexos que respei- uploads/2019/07/linha-do-tempo-menor2.pd
tem as escolhas por outras maneiras de viver.
7. São Paulo (estado). Decreto n. 34.074 institui o Pro-
Há altas compatibilidades entre a Redução grama Permanente de Prevenção ao Uso Indevido de Dro-
de Danos e a Psicanálise, pois ambas buscam a gas e dá providências correlatas. São Paulo; 29 out 1991.
interlocução e o profundo respeito às particulari- [acesso em 20 out 2020]. (on line). Disponível em: https://
www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1991/
dades do outro e à autonomia que possibilitam
decreto-34074 29.10.1991.html
o processo de reconhecimento e consideração
8. Bastos FI, Mesquita F. Estratégias de Redução de Da-
pelas demandas pessoais, por vezes, terapêu-
nos. In: Seibel SD, Toscano Junior A. Dependência de dro-
tico; com acolhimento, escuta aberta e disponi-
gas. São Paulo: Editora Atheneu; 2001. pp.181-190.
bilidade ao novo. A meta, em ambos os casos,
9. Cavallari CD. A clínica das toxicomanias. In: Fernandez
busca contribuir para o aumento da capacidade OFRL, Andrade MM, Nery Filho A. (eds.) Drogas e políticas
de autorregulação e de autoconhecimento. públicas: educação, saúde coletiva e direitos humanos.
Ao longo desses trinta e dois anos, pude- Salvador: EDUFBA; 2015. pp.203-210.

mos testemunhar um percurso no qual o encon- 10. Andrade TM. Condições psicossociais e exposição ao
tro entre a Redução de Danos e a Psicanálise risco de infecção pelo HIV entre usuários de drogas inje-
táveis, em uma comunidade marginalizada de Salvador-
tem sido gerador de uma maior potência trans-
-Bahia. (Tese). Universidade Federal da Bahia. Salvador;
formadora quando praticadas em conjunto. Par-
1996. 161p.
tilhar esta experiência motivou a escrita deste
11. Reale D. O caminho da redução de danos associados
artigo.
ao uso de drogas: do estigma à solidariedade. (Disserta-
ção). Universidade de São Paulo. São Paulo; 1997. 216p.
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1. Mesquita FC, Bastos FI. Drogas e AIDS: estratégias de venção especializada. Simpósio: “Aids e Uso de Drogas
redução de danos. São Paulo: HUCITEC; 1994. Injetáveis” Rio de Janeiro: UFRJ; agosto, 1992.

2. Cavallari CD, Sodelli M. Redução de danos e vulnera- 13. Kirsch H, Reale D, Osterling J. Hard-to-eeach or out-of-
bilidades enquanto estratégia preventiva nas escolas. In -reach? São Paulo outreach workers and inner-city addicts.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

n: Kirsch H. (ed.). Drug lessons & education programs in


developing countries. New Brunswick: Transaction Publi-
shers; 1995. cap.16. p.219-232.
14. MacRae E, Reale D, Fernandez O. Intervenções e pes-
quisas pioneiras em redução de danos. In: Medeiros R,
MacRae E, Adorno R. (orgs.). Livro do VI Congresso Inter-
nacional da ABRAMD de 2017. Belo Horizonte: ABRAMD;
(no prelo).
15. Roudinesco E. Dicionário amoroso da psicanálise. Rio
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173p.
23. É de Lei. Do baque ao crack – 30 anos de Redução
de Danos no Brasil. (on line). [acesso em: 20 out 2020].
Disponível em: https://edelei.org/do-baque-ao-crack-30-
-anos-da-reducao-de-danos-no-brasil/

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Centro de Convivência “É de Lei”I e a Redução de


Danos: 22 anos do “baque ao crack”
The Centro de Convivência “É de Lei”I and Harm Reduction: 22 years of “from syringes to pipes”

Andrea DomanicoII, Cristina Maria BritesIII, Maria Angélica de Castro ComisIV

Resumo Abstract

O Centro de Convivência “É de Lei” é o primeiro espaço de convi- The Centro de Convivência “É de Lei” is the first social space for
vência para pessoas que usam drogas no Brasil, esse artigo tem people who use drugs in Brazil, this chapter aims to tell the story
como objetivo contar a história dessa organização da sociedade ci- of this civil society organization from its founding in the 90s until
vil desde sua fundação nos anos 90 até os dias de hoje. Apresen- today. The projects developed over the course of twenty-two years
ta-se os diversos projetos desenvolvidos ao longo de vinte e dois are presented, in addition to discussing the institutional changes
anos, além de discutir sobre as mudanças institucionais vivencia- experienced over the years. “É de Lei” has been dedicated to de-
das no decorrer dos anos. O “É de Lei” têm se dedicado a defe- fending the rights of drug users, creating technologies related to
sa dos direitos das/os usuárias/os de drogas, criado tecnologias inputs for STI/HIV prevention, health promotion and contributing
relacionadas aos insumos para prevenção das IST/HIV, promoção for the dissemination of Harm Reduction on different fronts: fiel-
dwork, teaching, research, advocacy and communication.
em saúde e contribuído para a disseminação da Redução de Da-
nos em diferentes frentes: trabalho de campo, ensino, pesquisa,
Keywords: Harm reduction; Drug abuse; HIV/AIDS; STI.
advocacy e comunicação.

Palavras-chave: Redução de danos; Uso de drogas; HIV/aids; IST.

Introdução - Como tudo começou?


O projeto UDI

N
a década de 1990, com a crescente epi-
I
In english: “It’s of Law”, it means something that always happens, it is an
demia do HIV/aids, o Ministério da Saúde
expression that drug users like to use to refer to the moment of use (“É da Lei” criou uma área dentro da Vigilância em
significa algo que sempre acontece, é uma expressão que o usuário de droga
gosta de usar para se referir ao ponto de uso). Saúde para agregar as ações políticas de preven-
Andrea Domanico (andreadomanico@gmail.com) é, psicóloga clínica, Mes-
ção e tratamento do HIV, a Coordenação Nacional
II

tre em Psicologia Social pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo


(PUC-SP), Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia de Aids. O Sistema Único de Saúde (SUS), a partir
(UFBA), redutora de danos e Professora Universitária da Pós Graduação da
Universidade Anhembi-Morumbi e fundadora do Centro de Convivência “É de das garantias constitucionais de 1998, ainda es-
Lei”, em São Paulo, local em que é Supervisora do Projeto de Redução de
Danos e Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa do Centro de Convivência tava sendo regulamentado, portanto, os recursos
“É de Lei”.
para Saúde e a forma como seriam empregados
III
Cristina Maria Brites (britescbbrites@gmail.com) é assistente social, Mes-
tre e Doutora em Serviço Social pela PUC-SP, Professora Associada da Uni- estavam sendo discutidos e desenhados. A epi-
versidade Federal Fluminense (UFF) e Fundadora do Centro de Convivência
“É de Lei”. demia de aids exigia respostas rápidas e eficien-
IV
Maria Angélica de Castro Comis (mcomis@gmail.com) é psicóloga clínica tes, sendo que em 1993 o Brasil fez um acordo
e Mestre em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP),
Docente, Supervisora Clínica, redutora de danos, Coordenadora Geral, de com o Banco Mundial para receber recursos em
advocacy e Comunicação do Centro de Convivência “É de Lei”.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

forma de empréstimos internacionaisV para fo- assegurava a ajuda de custo para a equipe, e o
mentar as ações de prevenção e tratamento do fornecimento dos preservativos (disponibilizados
HIV/aids1. pelo Ministério da Saúde) e dos kits para a inje-
A partir de 1994, o Ministério de Saúde ção segura (dispensados pelo Programa Estadu-
passa a financiar diversas organizações para de- al). O kit era composto por um estojo de óculos,
senvolver ações de prevenção e tratamento do contendo frascos vazios para a diluição da droga,
HIV/aids junto às diferentes populações que es- frascos de água destilada, sachês de álcool, se-
tavam se infectando em maior número, naquele ringas e folhetos informativos sobre o HIV/aids.
contexto: os homossexuais masculinos, as pro-
fissionais do sexo e os/as usuários/as de drogas A “caça” aos Injetáveis
injetáveis1-3.
De início, já no primeiro campo, no bairro
Naquele mesmo ano, um grupo de profissionais do Brás, no município de São Paulo, estabeleceu-
que atuavam com educação de rua na cidade de -se uma conversa com um UDI que, de imediato,
São Paulo se vincularam a uma organização não solicitou um kit, o “Kit Baque” (expressão para
governamental (ONG) que trabalhava com preven- uso de droga injetável), conforme apelido dado
ção e tratamento do HIV/aids para desenvolver pelas/os UDIs. Conhecido pelo apelido de Perna,
um projeto de prevenção do HIV entre usuários/ foi o primeiro usuário do projeto, que, em 25 de
as de drogas injetáveis (UDI) que preconizava a janeiro de 1995, fez com a equipe sua primeira
troca de seringas usadas por novas. troca de seringas usadas por novas, devolvendo
Como parte de um trabalho de campo de 7 seringas. Ele foi uma referência importante, já
busca ativa, a equipe começou a mapear os luga- que nos remetia a uma realidade da época, o fan-
res de uso de drogas injetáveis no Centro da cida- tasma do HIV que estava percorrendo as cenas
de de São Paulo para iniciar suas ações e, neste de uso. Perna relatou que muitas pessoas que
processo, identificou a necessidade de alguém usam drogas já estavam infectadas e que havia
que introduzisse a equipe nas cenas grupais de uma tendência de uso domiciliar para os que ti-
uso de drogas injetáveis, momento no qual foi nham domicílio, obviamente. Ou seja, as reuniões
convidada uma psicólogaVI para integrar a equipe para o uso de drogas em grupo, as “festinhas”,
com esta finalidade. tinham diminuído substancialmente por conta do
Assim, no início de sua implantação, o medo do HIV e pelo fato de que alguns usuários
“Projeto UDI” contava com uma coordenação já estavam infectados3.
compartilhada entre uma assistente socialVII Naquele contexto, o grande desafio do
e uma psicóloga e duas supervisoras, uma de projeto era o de encontrar estes UDIs nos seus
campo e outra institucional. O projeto foi parcial- locais de uso e, mais uma vez, o percurso nos foi
mente financiado pelo Ministério da Saúde e re- dado por outro usuário, que nos remeteu a dois
cebia apoio institucional e material do Programa lugares, os arredores de uma quadra de escola
Estadual de DST/Aids de São Paulo. Com isso, se de samba e os arredores de uma casa de rock.
O projeto UDI contratou mais alguns mem-
V
A partir de então, começou a se discutir e escolher as formas de financia-
mento tanto para Serviços Públicos de Saúde como para Organizações Não bros da ONG que tinham afinidade com usuários
Governamentais.
VI
A psicóloga Andrea Domanico, que ainda integra a equipe.
de drogas e a equipe começou a frequentar os
VII
Cristina Maria Brites. ensaios de uma escola de samba, a Colorados

vol.21, n.2, dez 2020 |83


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

do Brás, localizada no bairro do Brás. Investiu-se da lei de drogas da época (Lei no 6.368/19764),
nesta estratégia por aproximadamente seis me- todos os redutores de danos portavam, duran-
ses, sem que se identificasse algum contato ou te o trabalho de campo, uma carta do Conselho
referência ao uso de drogas injetáveis na região. Regional de Enfermagem de São Paulo (COREN-
A partir daí, houve uma reorganização das -SP), uma da Coordenação de Nacional e outra
atividades, a equipe foi reduzida às integrantes da Coordenação Estadual de Aids de São Paulo,
da coordenação e investiu-se no trabalho de cam- afirmando o reconhecimento da troca de seringas
po nos bares da região próxima à casa de rock. como estratégia de prevenção ao HIV/aids, além
Foi lá, numa noite de intervenção de campo, que de dispor de contato direto, via pager, com as
um UDI se aproximou e nos disse, quero este kit, duas coordenadoras, uma do projeto e outra do
porque “eu tomo baque”; e disse mais: “quero campo.
um trampo desse”. Assim, marcamos com ele Mas, nem tudo foram flores para o desen-
uma reunião na ONG no dia seguinte e efetuamos volvimento do projeto. Além da perseguição por
sua contratação: com nosso primeiro redutor de uma parte da sociedade que considerava a estra-
danos UDI. Havíamos entrado em mais uma rede tégia de Redução de Danos como um incentivo
de UDIs. Após seis meses de campo, acabou a ao uso de drogas, algumas dificuldades começa-
“caça”, era a hora de implementar as ações2-3. ram a ficar muito evidentes.
A primeira dificuldade foi institucional,
Troca de seringas usadas por novas com a direção da ONG, já que o projeto estava ga-
nhando visibilidade midiática (no canal MTV, em
O projeto tinha como objetivo central
programa regionais de televisão e reportagens e
“conter a disseminação do HIV/aids e outras do-
artigos para jornais). Nestas reportagens, era a
enças sexualmente transmissíveis (DST) (hoje in-
equipe do projeto que aparecia, sempre referen-
fecções sexualmente transmissíveis (IST)), entre
ciando a ONG em questão, mas sem dar detalhes
usuários de drogas injetáveis”. Fazia-se ações de
dos locais de trabalho; por conta disso, as entre-
campo oferecendo a troca de seringas para as/
vistas ou eram com as coordenadoras do projeto
os usuárias/as de drogas injetáveis e sua de re-
ou com as/os usuárias/os.
de de interação social, além da oferta de preser-
vativos e o acompanhamento para testagem de A segunda dificuldade deveu-se a uma re-
HIV. Fazíamos reuniões semanais para discussão comendação para a equipe do projeto quanto à
das ações e supervisões, sendo uma mensal ins- restrição da presença das/os UDIs na sede da
titucional, com a coordenação do grupo, e uma ONG, transferidos para os horários em que não
quinzenal, com a equipe de rua. A supervisão ins- houvesse mais ninguém, além da própria equipe
titucional se manteve até meados de 1998, a da do projeto; ou seja, as reuniões deveriam ocorrer
equipe durou até 1997. em momentos em que a ONG não deveria estar
ocupada por outros grupos, pois a presença das/
Podemos considerar que 1995 foi o ano
os UDIs poderia servir de mau exemplo para os/
da “caça” e os anos de 1996 e 1997 foram os de
as jovens que frequentavam as outras atividades
implementação das ações. A equipe do projeto
da instituição. Além disso, houve outras ques-
aumentou, contratando vários UDIs como redu-
tões com relação à representatividade e adminis-
tores para atuar em diversas frentes e horários.
tração financeira do projeto, situação que criou
Por conta das restrições e do caráter autoritário

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

um clima muito ruim entre a equipe do projeto e A articulação com o NEPAIDS e a fundação do
a própria ONG. “É de Lei”
Diante de tais recomendações, a equipe Uma das coordenadoras do projeto UDIIX,
do projeto se reuniu e decidiu que faria uma con- estava fazendo o curso “Metodologia de Pesqui-
sulta ao agente financiador sobre poder mudar o sa em Aids”, oferecido e financiado pelo Núcleo
local de execução do projeto, levando o financia- de Estudos para Prevenção da Aids (NEPAIDS),
mento que tinha recém-recebido no ano de 1998. ligado ao Instituto de Psicologia da Universidade
A Coordenação Nacional de DST e Aids informou de São Paulo (IP/USP). Assim, diante dos entra-
que o projeto deveria ser realizado até o fim na ves institucionais, solicitou-se uma reunião com a
própria instituição que havia recebido o financia- coordenação deste Núcleo, para a apresentação
mento; ou seja, se saíssemos para outra insti- da proposta de abertura de um Centro de Convi-
tuição ficaríamos sem recursos para as nossas vência para usuárias/os de drogas, de forma a
ações com UDIs. Conversando com a equipe do ser avaliada a possibilidade de articulação des-
projeto decidimos que terminaríamos aquele fi- ta proposta com o NEPAIDS, que, de imediato,
nanciamento e que iríamos “pensar” em outro lo- se dispôs a abrigar o projeto. Construímos uma
cal onde poderíamos alocar o projeto, sem tantas proposta para criação do Centro de Convivência,
intervenções e questionamentos em relação ao cuja sede seria instalada no centro de São Paulo.
perfil da equipe. Começou então uma articulação com as
Assim, formada somente por usuárias/os coordenações nacional e estadual de aids para
de drogas, a equipe do projeto UDI começou a a efetivação de um Programa de Redução de Da-
fazer reuniões nos locais de campo, discutindo nos e no dia 5 de dezembro de 1998, o Centro de
com as/os UDIs sobre como deveria ser uma no- Convivência “É de Lei” foi fundado, na Rua 24 de
va sede do projeto, quais atividades deveriam ser maio, no centro da cidade de São Paulo.
oferecidas, quem poderia participar, etc. Mas já Em 2000, a vinculação com o NEPAIDS foi
tínhamos o novo nome para esse local, seria “É interrompida de modo consensual entre as equi-
de Lei”. Este nome surgiu por sugestão da assis- pes, em decorrência de uma série de denúncias
tente social da equipeVIII em uma das reuniões, públicas sobre as Fundações de Direito Privado
por conta da expressão “É de Lei” ser muito usa- criadas sob a gestão do então Presidente Fernan-
da pelas pessoas usuárias de drogas da época; do Henrique Cardoso e que estavam fazendo ar-
“É de Lei tomar cerveja na sexta”, “É de Lei ouvir recadação financeira no âmbito das instituições
um rock”. Desta forma, após longas e cansati- públicas. O NEPAIDS era um grupo de pesquisa
vas reuniões decidiu-se pela criação do Centro de ligado a uma univesidade pública estadual, por
Convivência “É de Lei”, com o objetivo de garantir isso, a coordenação deste núcleo ficou temerosa
os direitos humanos e à saúde aos/às usuários/ que o financiamento dos projetos desenvolvidos
as de drogas. pelo É de Lei fosse confundido com as práticas
duvidosas de arrecadação financeira das Funda-
ções denunciadas. Neste sentido, após algumas
reuniões, a equipe do É de Lei desencadeou um
processo de discussão e criação de uma Organi-
VIII
Cristina Maria Brites.
zação Social de Interesse Público (OS), em 2001.
IX
Andrea Domanico.

vol.21, n.2, dez 2020 |85


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

A participação direta e frequente de usu- pegar o kit e participar de diversas atividades,


árias/os de drogas na ativa era uma das condi- grupos de discussão, oficinas de confecção de
ções de funcionamento do É de Lei, por meio de artesanatos, oficinas de confecção de currículo
assembleias sistemáticas. Desta maneira, de iní- para a busca de emprego e discussões sobre me-
cio, aprovou-se um regimento interno que, entre dicações para o tratamento do HIV e das hepati-
outras normas de funcionamento e convivência, tes virais. Por estar situado no centro de São Pau-
não permitia o uso de nenhuma droga na própria lo, próximo a uma estação de metrô e funcionar
sede da organização, com exceção do café e os diariamente das 14:00 às 20:00 horas, tornou-se
medicamentos de prescrição médica, para não um local de encontro para as/os UDIs.
terem que ser usados fora da sede. Não era per- Além do trabalho de campo e das ativida-
mitido, nas palavras das/os próprias/os frequen- des desenvolvidas na sede, a equipe do Progra-
tadoras/es, “trazer e/ou fornecer nenhum tipo de ma de Redução de Danos do É de Lei investia de
drogas dentro da sede”. modo sistemático em sua formação acadêmica e
A partir do protagonismo das/os frequen- de pesquisa científica1-3.
tadoras/es tínhamos o desafio de ampliar o aces- Após o ano 2000, com a ampliação do
2
so a novas redes de usuárias/os e estimular a acesso ao preservativo feminino, as mulheres
sua participação nas atividades realizadas no frequentadoras do É de Lei decidiram organizar
Centro de Convivência “É de Lei”, pois pretendia- um grupo específico para discutir o uso desses
-se que este espaço fosse apropriado pelas/os insumos e outras demandas de gênero; para is-
usuárias/os como local alternativo de interação so criou-se então um espaço exclusivo para as
social e na perspectiva da Redução de Danos2. mulheres.
Além da ação clássica de troca de seringa na se-
Com a crescente entrada de crack no
de, neste momento já amparada por uma lei es-
comércio ilícito de drogas, o É de Lei tornou-se
tadual5, o É de Lei começou a oferecer uma série
protagonista, com outros quatro projetos, no de-
de atividades, algumas constantes da programa-
senvolvimento de “projetos-piloto para usuários
ção até hoje, como o encontro “Chá de Lírio” e
de crack” no Brasil, eram então 5 projetos-piloto:
outras retomadas recentemente, como o grupo
São Paulo, Salvador - Bahia, Florianópolis – Santa
de mulheres.
Catarina, Ponta Grossa - Paraná e Juiz de Fora -
O “Chá de Lírio – Venham Provar Nossas Rio de Janeiro. Estes visavam implementar ações
Ervas” foi uma proposta chamariz. A ideia era di- de Redução de Danos com busca de tecnologias
vulgar o Centro de Convivência “É de Lei” nos lo- de prevenção às DST/HIV/hepatites virais, além
cais nos quais realizávamos o trabalho de campo, da tuberculose, entre usuárias/os de crack, in-
propondo uma atividade estruturada semanal e vestindo no debate e na criação de insumos para
com horário fixo. Todas as segundas-feiras impre- o uso seguro desta droga.
terivelmente às 17 horas ocorria o Chá de Lírio,
Com os financiamentos governamentais
basicamente uma roda de conversa durante a
da área da Saúde, de início e, posteriormente de
qual eram servidos os chás mais diversos exis-
outros setores como a Cultura, o É de Lei passou
tentes no comércio legal.
a ser uma referência nacional para o debate, a
O É de Lei passou a ser uma referência implantação e a pesquisa de tecnologias de Re-
importante para as pessoas UDIs que iam à sede dução de Danos na perspectiva dos direitos dos

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

usuários e no âmbito das políticas setoriais de desigualdade social são fatores que dificultam o
Saúde, Assistência Social e Cultura. desenvolvimento de planos de vida8.

Depois do “bug” do milênio Convivência produz autocuidado


Com o passar dos anos, o É de Lei per- A exigência vivenciada no Centro de Con-
maneceu com o objetivo de prevenir as infecções vivência “É de Lei” é basicamente relacionada ao
sexualmente transmissíveis (IST), além de mobi- conviver, isto é, o espaço de convívio como uma
lizar redes de cuidado e defender os direitos das ferramenta de aproximação e criação de víncu-
pessoas que usam drogas. No entanto, o perfil los, com o objetivo de pensar coletivamente e
das/os usuárias/os e das drogas usadas mudou contribuir para a autonomia das pessoas. Tudo
e este centro precisou se reformular diante das acontece a partir da convivência, desde os confli-
novas demandas e dos novos desafios. tos até o processo do autocuidado; esse contato
Verifica-se que a perspectiva de “guerra entre a pluralidade de trajetórias de vida é muito
às drogas”, promovida mundialmente pelos Es- rico e propicia o desenvolvimento de olhares di-
tados Unidos desde os anos 1990, não atingiu versos sobre as coisas as quais as pessoas se
nenhum de seus objetivos: o consumo de drogas identificam.
aumentou em boa parte do planeta; a maconha, a A relação ética estabelecida a partir da
cocaína e a heroína se tornaram mais baratas do espontaneidade nos contatos, nas conversas e
que há 40 anos atrás, as adulterações das dro- nos acompanhamentos aos serviços públicos de
gas permanece e novas substâncias psicoativas saúde e outros, promove uma vinculação basea-
foram sintetizadas para driblar o proibicionismo e da na confiança. Mesmo com toda essa informa-
a defesa do combate às drogas por meio de puni- lidade, o espaço possui normas de convivência
ções seletivas, da repressão, da sanção e da cri- construídas coletivamente e que muitas vezes se
minalização de pessoas que as utilizam. Dentre tornam contornos para garantir a continuidade
as/os usuárias/os de drogas, as pessoas negras, dos encontros que ocorrem sem deixar de serem
pobres e migrantes são as mais estigmatizadas acolhedores e organizadores de relações e do
e o Brasil ocupa o terceiro lugar mundial em rela- tempo9.
ção à população encarcerada, com 755.274 mil
pessoas presas, sendo 26,5% dessas por crimes
A cultura como estratégia de Redução de Danos
relacionados ao tráfico de drogas6-7.
A convivência é uma estratégia tão poten-
Em nosso país, o encarceramento de pes-
te, que dela surgiu o “Ponto de Cultura” do É de
soas em situação de rua é crescente, ser preso
Lei, oficinas que utilizam diferentes tipos de mí-
não é uma exceção e a grande maioria das pes-
dia, como fotografia, audiovisual e o desenho em
soas usuárias de drogas e em situação de rua já
quadrinhos, com o objetivo de formar produtores
passou pelo sistema carcerário, o que contribui
culturais capazes de desenhar projetos e execu-
ainda mais para a exclusão, a estigmatização e
tá-los, aprendendo a manusear as ferramentas
a impossibilidade de construção de um projeto
necessárias. Uma experiência interessante que
de vida. As rupturas de laços familiares, a des-
o Ponto de Cultura realizou e teve diversos des-
vantagem de acesso às políticas públicas e a
dobramentos foi o documentário “É de Dentro e

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de Fora”10, fruto de uma parceria com o fotógrafo O campo e os insumos


francês Jean René (JR), autor do projeto interna- Dentre as diversas atividades do É de Lei,
cional de fotografia Inside Out, de 2012. Em uma a abertura de novos campos de atuação em “ce-
intervenção urbana, redutores de danos e convi- nas” de uso aberto de drogas é mais uma das
ventes do É de Lei foram às ruas de São Paulo e ações que necessita ser bastante cuidadosa. Pa-
pregaram suas fotos, impressas em preto e bran- ra concretizar a abertura do campo é necessário
co em papéis de grande formato, pelos muros e conquistar a confiança das pessoas que usam
paredes, inclusive na Câmara Municipal de São drogas e da comunidade na qual elas estão inse-
Paulo. A experiência gerou debates e exposições, ridas, conhecer códigos culturais e a linguagem
além de reflexões positivas entre os próprios con- utilizada pelas/os UDs, estabelecer objetivos e
viventes e inspirou novas colaborações com ou- limites explícitos do trabalho.
tros artistas.
A relação com o outro é constituinte do
Aos poucos, surgiram projetos culturais trabalho do redutor de danos; por isso, faz-se
dos próprios conviventes, que passaram a ser necessário nos colocarmos como um estrangei-
desenvolvidos por todo o grupo, fruto direto do ro que se insere em uma cultura que tem dife-
investimento na autonomia das/os usuárias/os11. rentes costumes, valores, regras, linguagem e
Em 2013, concebeu-se a “Cinecarroça”, perspectivas11.
uma ocupação de ruas da região central da cida- O trabalho de campo e a convivência são
de com sessões audiovisuais, propiciando a inte- as principais atividades desenvolvidas pelo É
gração daqueles que nelas vivem e/ou circulam. de Lei, atuação essa que permite conhecer os
Na prática, é um carrinho com equipamentos pa- modos de uso, as formas de administração das
ra a projeção de filmes que funciona de forma drogas e, consequentemente, pensar em tecnolo-
móvel e itinerante fazendo circular as produções gias sociais e na criação de insumos de Redução
realizadas pelo Ponto de Cultura “É de Lei”. de Danos.
A partir dessas diferentes ações experi- Os insumos são os materiais pensados
mentou-se vivências culturais e artísticas interli- e desenvolvidos para a prevenção e têm por ob-
gadas às estratégias de Redução de Danos. Com- jetivo a promoção de saúde. O uso de insumos
por a equipe de realização de um curta-metra- oferece ganhos frente aos riscos epidemiológicos
gem, escrever e declamar poesias, publicar seus associados às práticas sexuais e ao uso de dro-
trabalhos em um livro, criar um blog, acessar as gas. Ou seja, tais materiais previnem a transmis-
redes sociais, conhecer outras realidades a partir são de doenças, principalmente IST, incluindo o
das conversas e passeios, fotografar e ser foto- HIV/aids, hepatites virais e a tuberculose, e esti-
grafado, entre outras, são ações que criam pos- mula o autocuidado, reduzindo riscos e, portanto,
sibilidades de convívio e de criação. Assim, novos seus danos12.
lugares sociais podem ser habitados e esses su-
Tendo em vista a necessidade constante
jeitos podem ser reconhecidos de outras manei-
de criação de materiais informativos e insumos, o
ras: como artistas, criadores, realizadores, entre
É de Lei desenvolve múltiplas ações, cujo objetivo
outros.
é tornar esses materiais acessíveis à população
com a qual trabalhamos e que sejam efetivos,
no sentido de multiplicar informação e produzir

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

reflexão sobre o uso de drogas e o autocuidado. e a possibilidade de diálogo entre a/o profissio-
Neste sentido, reunimos informações de nossos nal e a pessoa em situação de vulnerabilidade
arquivos, de conteúdos científicos sobre cada social.
droga, informações discutidas com as/os UDs,
além de atualizar a equipe sobre as drogas.
Formação, pesquisa e eventos
Os protetores labiais diminuem as fissu-
O É de Lei sempre teve a educação popu-
ras causadas pelo uso das drogas fumadas, em
lar e a educação entre pares como premissa bá-
especial o crack no cachimbo, pela desidratação
sica para provocar transformações na realidade
e frio; além de possuírem fator de proteção solar;
das pessoas que vivem em contextos de vulne-
para isso foram pensados e produzidos em tama-
rabilidade, pois o reconhecimento, a valorização
nho pequeno, pois sendo menores, cada pessoa
de experiências e de saberes de todos garante a
recebe alguns, o que propicia que o material não
diversidade nos espaços de fala e a participação
seja compartilhado12.
ativa das pessoas que frequentam o Centro de
As piteiras de silicone incentivam o uso Convivência. Com essas premissas, contribui-se
individual de crack, diminuindo as chances de in- com o desenvolvimento da autonomia e do prota-
fecção pela tuberculose e outras doenças. Ade- gonismo, além da multiplicação dos saberes.
mais, como a maioria dos cachimbos utilizados é
No ano de 2002, o É de Lei realizou, em
de metal, a piteira também auxilia na prevenção
parceria com a Associação Pró-Saúde Mental
de queimaduras e feridas nos lábios. Essa é uma
(PROSAM), um seminário nacional que contou
tecnologia barata e pode ser distribuída em pe-
com a participação de 200 redutoras e reduto-
quenas quantidades.
res de danos do Brasil. O “Seminário Nacional de
Outro insumo que elaboramos, em 2005, Redução de Danos: outras estratégias são pos-
é o “Kit Sniff”, composto por uma carteira de uso síveis”, foi estruturado com conferências, mesas
pessoal, onde são guardados os demais itens: redondas e grupos de discussão a partir das for-
preservativos internos e externos e gel lubrifican- mas de uso das diferentes drogas (injetadas, as-
te para práticas sexuais; folders informativos so- piradas e inaladas, ingeridas e fumadas) e popu-
bre drogas e serviços de saúde, incluindo folhe- lações vulneráveis. Após os debates travados em
tos sobre cocaína e crack, além de um cartão in- torno dos temas apresentados nas conferências
formativo rígido, que serve como superfície para e mesas redondas, os grupos tinham a tarefa de
estender a substância a ser aspirada; além de indicar as estratégias de Redução de Danos para
canudos/piteiras e bloco de cartões menores e cada forma de uso de drogas e pontos prioritá-
maleáveis que, ao serem enrolados, se transfor- rios para a construção de uma agenda nacional
mam em mais canudos descartáveis12. de lutas em defesa da Redução de Danos como
Os insumos são fundamentais no traba- política pública. O relatório final do Seminário foi
lho das/os redutora/es de danos, pois favorecem publicado e disponibilizado para uma parcela sig-
a busca ativa nos territórios como um instrumen- nificativa dos projetos de Redução de Danos exis-
to facilitador de abordagens e propiciam o vínculo tentes em todo o país13.
entre a pessoa que faz uso de drogas e quem os Afora a realização de eventos, forma-
oferta (o agente de Redução de Danos). A partir ções e pesquisa contribuímos com o proces-
da distribuição destes materiais se dá o encontro so da produção de saúde de diferentes grupos

vol.21, n.2, dez 2020 |89


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

populacionais, valorizamos as evidências de que articulação nacional denominado “Do Baque ao


o desenvolvimento de ações de educação per- Crack: 30 anos de Redução de Danos no Brasil”.
manente são necessárias para a transformação O produto deste projeto foi a realização de um
dos modelos de cuidado, em especial o desafio evento em São Paulo, em abril de 2019, que con-
da construção de equidade, favorecendo proces- tou com a presença de redutores e redutoras de
sos formativos participativos e colaborativos, danos que começaram o trabalho no Brasil, além
pautados pela garantia e promoção dos direitos dos atuais mais jovens e que deram continuidade
humanos14. ao trabalho iniciado. Esse evento abriu o ano de
Em 2012, o Núcleo de Ensino, Pesquisa comemorações dos 30 anos da Redução de Da-
e Articulação Política do É de Lei realizou uma nos no país. Depois dele, inúmeros eventos acon-
formação em direitos humanos e políticas sobre teceram em todas as regiões. O projeto propiciou
drogas voltado para trabalhadores da Rede de que a equipe do É de Lei conhecesse diversas
Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de experiências brasileiras incríveis, desde o hotel
Saúde (SUS) de São Paulo e pessoas atendidas social “Palmas Que Te Acolhe”, em Palmas - To-
nesses serviços. Essa formação favoreceu o pro- cantins, até a Escola Municipal de Porto Alegre,
tagonismo das pessoas que usam drogas e for- que atua com a população em situação de rua,
taleceu as/os trabalhadoras/es mais comprome- na capital gaúcha.
tidas/os com a pauta de direitos humanos, esse
tipo de processo agrega aos serviços um maior Contexto de festas
entendimento em relação a necessidade de dar
Historicamente, o É de Lei atuava com
voz às/aos usuárias/os dos equipamentos públi-
pessoas em contextos de diversão, mas, no ano
cos, principalmente os de saúde, na sua condi-
de 2010, ousou ao escrever um projeto para o
ção de sujeito de direitos. Além disso, o atual Nú-
Departamento de Hepatites do Ministério da Saú-
cleo de Ensino e Pesquisa tem mantido um curso
de. O projeto tinha como objetivo estimular a dis-
de Introdução a Redução de Danos, que ocorre
cussão e a reflexão sobre o uso de drogas e o
anualmente. O principal objetivo desse curso é
autocuidado entre pessoas que frequentam con-
disseminar as estratégias de Reducação de Da-
textos de festa de música eletrônica.
nos, formar profissionais e nossos conviventes
Esse projeto foi fruto da constatação de
para que possam multiplicar seus conhecimen-
que faltava às/aos frequentadoras/es destes
tos em diferentes lugares.
eventos informações sobre o que estavam con-
O Fórum Estadual de Redução de Danos
sumindo e sobre o efeito das misturas que fa-
(FERD) teve seu início no estado de São Paulo
ziam, além de propor um espaço de descanso e
como um projeto do É de Lei que buscava realizar
cuidado para pessoas que enfrentam experiên-
a articulação de diversos serviços para discutir
cias difíceis relacionadas à ingestão de drogas.
o tema e criar uma rede sobre a temática. Em
Entre 2011 e 2012, o projeto “Saúde em Festa”
2014, foi lançada uma publicação que conta co-
se tornou o “Projeto ResPire” e realizou inúme-
mo foi o processo de realização do FERD e seus
ras ações de Redução de Danos em contextos de
desdobramentos15.
festas e festivais de música eletrônica no estado
Em 2018, com recursos do Ministério de São Paulo e em diversos estados do Brasil. O
da Saúde, o É de Lei desenvolveu um projeto de ResPire foi idealizado após a equipe do É de Lei

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

ter conhecido o Coletivo Balance, de Salvador - líderes emergentes nesta estratégia e aliadas/os
Bahia, que construía o cuidado das pessoas que e representa a Redução de Danos em diferentes
frequentavam o festival de música eletrônica Uni- espaços de participação, inclusive perante as au-
verso Paralello. toridades eleitas.
O ResPire teve diversos desdobramentos É fundamental que o advocacy esteja di-
que vão, desde a participação em eventos cientí- retamente associado à comunicação, principal-
ficos internacionais, diferentes contextos de fes- mente porque é necessário articular e construir
ta, até que nos anos de 2018 e 2019 passou coligações, construir liderança entre as pessoas
a realizar formações para produtoras/es de fes- que usam drogas e outras populações diretamen-
tas eletrônicas, atuar em festas de rua e tam- te afetadas e um compromisso com a justiça ra-
bém diretamente com a população de lésbicas, cial, com a pauta feminista e com a mudança na
gays, bi e transexuais, queers, intersexos e ou- política de drogas16.
tros (LGBTQI+). Além disso, o advocacy também busca fa-
Trabalhar com a Redução de Danos pro- vorecer a conscientização pública e política sobre
picia um rico encontro entre as pessoas, a criati- os direitos e as necessidades sociais das pes-
vidade e as necessidades imediatas que geram soas que usam drogas por meio de pesquisas,
vínculos importantes e marcam pessoalmente, relatórios, engajamento estratégico de mídia e
tanto as/os redutoras/es de danos, quanto as campanhas, treinamento em monitoramento de
pessoas que em algum momento necessitaram violações de direitos humanos, mapeamento de
de acompanhamento. Experiências como as do grupos de usuários de drogas, fornecimento de
Coletivo Balance, o Balanceará e o ResPire con- apoio técnico a redes de usuárias/os de drogas,
tribuíram para a criação de diversos coletivos de monitoramento de reformas de política de drogas
Redução de Danos que atuam em contextos de visando assegurar um ambiente político mais fa-
festas no Brasil, que atualmente se constituem vorável e a proteção dos direitos humanos das
em aproximadamente 40 coletivos. pessoas que usam drogas, além de incidir na for-
mulação de políticas públicas.
Comunicação e Advocacy em Redução de Danos Os principais objetivos do advocacy é con-
tribuir para que as esferas de poder compreen-
O advocacy em Redução de Danos busca
dam que possuem responsabilidades como a
eliminar o abismo existente entre os serviços de
de: (1) garantir o acesso ao tratamento assistido
saúde e as demais políticas sociais públicas e os
por medicação, cuidados médicos e serviços de
usuárias/os de drogas e suas comunidades. De-
Redução de Danos; (2) minimizar os danos e as
fende a aceitação e a expansão das abordagens
violações de direitos humanos por parte da segu-
de Redução de Danos para práticas saudáveis
rança pública contra os UDs; e (3) assegurar que
de Saúde Pública, buscando a inclusão de UDs
os serviços de saúde e sociais tenham atuação
em discussões sobre as políticas, visando criar
para que os direitos fundamentais deste público
mudanças nas esferas local, estadual, nacional
sejam transversais.
e internacional.
O advocacy em Redução de Danos tem
O advocacy monitora tendências de polí-
sido muito importante para que as pessoas
ticas de Redução de Danos locais e estaduais
em mais alta vulnerabilidade tenham sua voz
relevantes, busca construir relacionamentos com

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

escutada, seus direitos defendidos e o seu pro- garante saneamento básico e habitação para to-
tagonismo incentivado e fortalecido, pois essas da a população.
pessoas devem ter sua cidadania reconhecida e Os núcleos do É de Lei possuem atribui-
respeitada. É fundamental disseminar informa- ções e autonomias diferentes. No entanto, sem-
ções baseadas na realidade para que possamos pre alinhados com o antiproibicionismo, o antirra-
contribuir para uma sociedade que entenda o que cismo, o feminismo e o antipunitivismo, porque
são os direitos humanos, que lute pela dignidade entende-se que esses problemas estruturais so-
das pessoas que fazem uso de drogas e compre- mente produzem desigualdade no acesso às po-
enda o que são as estratégias de Redução de líticas públicas e afasta as pessoas do cuidado
Riscos e Danos. pautado na garantia de direitos.
O investimento na autonomia como meta
Considerações finais - a luta continua... e como parte da estratégia do trabalho, no qual
Atualmente, o É de Lei se destaca como as pessoas atendidas exercitam a liberdade de
uma das principais referências nacionais de Re- escolha dentro das atividades propostas, é um
dução de Danos no Brasil e mantém seu compro- dos pontos altos da nossa organização. Para tan-
misso de contribuir para uma mudança da cultura to, também é necessário estarmos conectados
no campo das drogas, visando a diminuição do com as violações que ocorrem com as mulheres
estigma e do preconceito em relação às pessoas e com a população trans. Por isso, sempre bus-
que usam essas substâncias e, com isso, pro- camos retomar as atividades específicas para
movendo a diminuição dos agravos à sua saúde, mulheres, inclusive com a contratação de uma
sua marginalização, da violência e das violações maioria de mulheres para a equipe; além de con-
de direitos humanos que lhes acometem. tarmos com pessoas trans e conviventes no nos-
so quadro de colaboradoras/es.
No atual contexto de crise estrutural bra-
sileira, de avanço de práticas fundamentalistas A alta rotatividade de pessoas envolvidas
e conservadoras e, especialmente, de regressão neste esforço – tanto os conviventes, pela vul-
no campo democrático e dos direitos, vê-se como nerabilidade social, quanto os/as redutoras/es
os programas, as políticas e tantas iniciativas po- e coordenadoras/es, devido aos salários baixos
dem ser sucateadas e desmanteladas. Portanto, e à instabilidade do trabalho, constitui um desa-
o papel dos segmentos e movimentos sociais de- fio para o planejamento e o desenvolvimento das
mocráticos são cada vez mais essenciais na de- atividades. Nesse sentido, a luta pelo reconheci-
fesa dos direitos fundamentais, do financiamento mento da Redução de Danos no âmbito da inter-
público da seguridade social e de programas e setorialidade como princípio das políticas sociais
projetos estratégicos e da participação popular públicas é fundamental para garantir a continui-
na formulação de políticas públicas. dade de serviços que atuam nessa perspectiva.
Entende-se que a política de drogas é
transversal e intersetorial, portanto, deve ser
Referências
reconhecida na sua potencialidade de integra-
1. Domanico A. “Craqueiros e cracados: bem-vindo ao mun-
ção às políticas de promoção e acesso aos di-
do dos noias!” – estudo sobre a implementação de estra-
reitos, especialmente em um país que possui tégias de redução de danos para usuários de crack nos
uma dívida histórica com a cidadania e sequer

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

cinco projetos-piloto do Brasil. (Tese). Universidade Federal protagonismo, educação entre pares e Redução de Danos.
da Bahia. Salvador; 2006. São Paulo: Centro de Convivência É de Lei; 2018. pp.32-40.

2. Brites CM. Uso de drogas injetável e redes de interação 12. Surjus LTLS, Pupo JL. Planejando e realizando um cur-
social - prazer e cuidados com a saúde, é possível?. (Disser- so sobre drogas e direitos humanos. In: Surjus LTLS, Pupo
tação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São JL,Guerrero AVP, Scafuto JCB. (orgs.). Drogas e direitos hu-
Paulo. São Paulo; 1999. manos: protagonismo, educação entre pares e Redução de
3. Domanico A. Controlando a maluques: a redução de da- Danos. São Paulo: Centro de Convivência É de Lei; 2018.
nos no contexto de uso de cocaína injetável. (Dissertação
13. Brites CM, Domanico A, Stempliuk VA, Silva NA, San-
de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
tos S, Martinez MNB. Seminário Nacional de Redução de
lo. São Paulo; 2001.
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4. Brasil. Presidência da República. Lei n. 6.368. Brasília; São Paulo, 2003.
21 out 1976. (on line). [acesso em: 21 set 2020]. Dispo-
14. Valent IU. Do que fazemos na convivência... In: Cultura,
nível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6368.
juventudes e redução de danos/ Centro de Convivência É
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de Lei.São Paulo: Córrego; 2015.
5. São Paulo. Lei Estadual nº 9.758. São Paulo; 17 set
1997. 15. Godoy A, Gomes BR, Sant´Anna M, Costa RM (Orgs). I
Fórum Estadual de Redução de Danos do Estado de São
6. Comis MA, Silva ACP. Dependência de drogas e HIV: re-
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Lei; 2015.

8. Azevedo BL, Gomes CSM, Marin J, Ryngelblum M, Costa


TGC, Araújo WS, & cols. A prática em redução de danos no
espaço de convivência. In: Cultura, juventudes e redução
de danos. São Paulo: Córrego, Centro de Convivência É de
Lei; 2015.

9. Costa TGC, Castro G. Insumos e outros territórios: relato


de uma abertura de campo no centro de São Paulo. In: Pupo
JL, Maciel MT, Costa TGC. Cuidado na rua: ações de redu-
ção de danos em contexto do uso de drogas no centro da
cidade de São Paulo. São Paulo: É de Lei; 2018.

10. Rico B; Umbuzeiro I. É de dentro e de Fora. São Paulo:


É de Lei; Inside Outr; 2012. (vídeo documentário). (on line).
[acesso em: 23 dez 2020]. Disponível em: https://www.you-
tube.com/watch?v=lqL8O01MqUA

11. Maciel MT, Moreira KDM. Desenvolvimento de insumos


para o trabalho de campo. In: Surjus LTLS, Pupo JL, Gurer-
rero AVP, Scafuto JCB. (orgs). Drogas e Direitos Humanos:

vol.21, n.2, dez 2020 |93


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

As Três Ondas da Redução de Danos no Brasil


The Three Waves of Harm Reduction in Brazil

Dênis PetucoI

Resumo Abstract

A Redução de Danos, conceito polissêmico que abarca um conjunto Harm Reduction, a polysemic concept that encompasses a set of
de práticas e concepções relacionadas ao cuidado de pessoas que practices and concepts related to the care of people who use drugs,
usam drogas, tornou-se conhecida no Brasil a partir de sua incorpora- has become known in Brazil since its incorporation as part of the
ção como parte da resposta nacional à epidemia de HIV/Aids. Com o national response to the HIV/AIDS epidemic. Over time, the concept
passar do tempo, o conceito foi sendo apropriado por outros campos has been appropriated by other fields of reflection and intervention,
de reflexão e intervenção, como saúde mental e desenvolvimento so- such as mental health and social development. This article proposes
cial. O presente artigo propõe uma narrativa da experiência brasileira a narrative of the Brazilian experience with Harm Reduction that takes
com Redução de Danos que toma as ondas do mar como metáfora the waves of the sea as a metaphor to contemplate an accumulation
para contemplar um processo de acúmulo, contra uma concepção process, against a stageist conception based on historical ruptures.
etapista baseada em rupturas históricas. Conclui-se com uma breve It concludes with a brief reading of the current moment and the chal-
leitura do momento atual e dos desafios a serem enfrentados. lenges to be faced.

Palavras-chave: Redução de danos; História; Brasil. Keywords: Harm reduction; History; Brazil.

Introdução - ou “dos nascimentos às ondas”

E
xistem muitas formas de se contar uma his- A história das teorias, técnicas e políticas
tória. Pode-se optar entre pequenos resu- públicas de cuidado dirigidas a pessoas que
mos ou narrativas grandiloquentes, entre o usam álcool e outras drogas tem sido uma pai-
resgate dos processos estruturais ou das histo- xão para mim, mesmo antes de virar projeto de
rietas cotidianas, entre o texto seco e os parágra- doutorado e livro1. Desde que comecei a traba-
fos que se estendem por páginas e mais páginas lhar na área, eu me interessei por narrativas, cau-
(evoé Saramago!). E não se trata só de estilo; afi- sos, textos antigos e diários de campo em perdi-
nal, a própria historiografia reúne pesquisadores das pastas de computador. Daí vieram artigos e
em acirrados debates com respeito às fontes, ao convites para seminários, nos quais fui dividindo
modo de lidar com os documentos, o lugar dos acúmulos e ensaiando formas. Muitas vezes fui
grandes personagens e dos emudecidos cida- procurado por colegas que generosamente corri-
dãos comuns. giam, não apenas detalhes e incorreções, como
I
Dênis Petuco (denis.petuco@fiocruz.br) é sociólogo pela universidade Fe- as próprias estratégias narrativas.
deral do Rio Grande do Sul (UFRS), Mestre em Educação pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) e Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Nas próximas páginas, gostaria de corrigir
Federal de Juiz de Fora (UFJF), e Professor e Pesquisador do Laboratório de
Educação Profissional em Atenção à Saúde da Escola Politécnica de Saúde algumas coisas que afirmei nos últimos anos, em
Joaquim Venâncio na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fun-
dação Oswaldo Cruz (EPSJV/FIOCRZ). eventos e artigos2-3. Um dos principais aspectos

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

diz respeito à divisão da história da Redução de “O SUS era uma proposta que garan-
Danos (RD) em “nascimentos”, que teriam ocor- tia acesso universal, mas que não consi-
rido em diferentes campos de saberes, demar- derava prostitutas, travestis, e principal-
cados por técnicas de cuidado diferenciadas e mente as pessoas que usam drogas. Os
sem comunicação. Foi Márcia Colombo, amiga e gays também, em certa medida. Dentro
técnica do Departamento de Condições Crônicas da exclusão, da pobreza, da miséria, tinha
e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Mi- uma extra exclusão de alguns segmen-
nistério da Saúde, quem chamou minha atenção tos. E parecia-me um absurdo que aque-
para a possibilidade de substituir a ideia estáti- les segmentos da população fossem extra
ca dos nascimentos, pela sobreposição sinérgica marginalizados”III.
das ondas que se seguem umas às outras e se A tarefa de gerir a saúde em Santos ficaria a
reúnem na praia. Valeu Márcia! cargo de David Capistrano Júnior, importante mili-
tante do Movimento de Reforma Sanitária. Capis-
Primeira onda: prevenção ao HIV/aids e às hepa- trano cercou-se de uma equipe técnica tão quali-
tites virais ficada quanto ousada. A política para o HIV/aids
seria conduzida por Fábio Mesquita, que já tivera
Poderiam haver tempo e lugar mais apropria-
contato com o tema por conta de sua atuação co-
dos para o início da experiência brasileira com
mo médico da rede municipal santista. À época,
Redução de Danos do que a cidade de Santos,
a cidade era conhecida como “Capital da Aids”,
em 1989? Mal terminara a ditadura civil-militar e
com uma incidência de 217 casos para cada 100
a “pátria vermelha”4 ou “moscouzinha brasileira”5
mil habitantes entre 1980 e 19928, sendo que
já colocava a esquerda na gestão municipal, ele-
mais de 50% destes casos estavam diretamen-
gendo a petista Telma de Souza como prefeita.
te relacionados ao compartilhamento de seringas
À beira do mar e “contra a maré”II,6, os santistas
entre pessoas que faziam uso de drogas por via
deram início à uma série de experiências inovado-
injetável9.
ras em áreas como educação, urbanismo, meio
ambiente e participação. A literatura internacional já descrevia inicia-
tivas bem sucedidas para a prevenção do HIV/
Mas seriam as realizações na área da saú-
aids e outras doenças de transmissão parente-
de que tornariam Santos uma referência. No
ral: a disponibilização de seringas e outros ape-
contexto de criação do Sistema Único de Saúde
trechos necessários ao uso de drogas por via
(SUS)7 os santistas não apenas materializaram
injetável. Cientes de que a estratégia era ade-
consignas da Reforma Sanitária brasileira (o que
quada ao contexto santista, os gestores anuncia-
já seria extremamente avançando), como imple-
ram que a troca de seringas passaria a compor
mentaram políticas que seriam vanguarda den-
a resposta ao HIV/aids no município. O Ministério
tro da vanguarda, especialmente nos campos da
Público, entretanto, entenderia a proposta como
Saúde Mental e do enfrentamento ao HIV/aids,
um incentivo ao uso de drogas, impedindo a sua
como dito por uma das pessoas envolvidas na
implementação.
gestão santista à época:
As barreiras de ordem legal fariam com que
Referência ao livro “Contra a maré à beira mar: a experiência do SUS em
II

Santos”6. as primeiras ações de prevenção ao HIV/aids en-


III
Entrevista concedida no contexto da pesquisa para doutorado. tre pessoas que faziam uso de drogas por via

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

injetável ocorressem na clandestinidade. Esta si- Assim como diversas outras populações ini-
tuação de impedimento legal só seria superada cialmente estigmatizadas como “grupos de ris-
a partir de 1995, em Salvador. No ano seguinte, co”, os usuários de drogas também foram incen-
outras cidades também conseguiram dar início tivados a se organizarem em associações para
aos seus programas, e antes do final do milênio, facilitar sua participação na construção da res-
já existiam dezenas de iniciativas espalhadas por posta brasileira à epidemia de HIV/aids. Mesmo
todo o país. em programas governamentais, a presença de
O desenvolvimento da experiência brasileira pessoas com experiência pessoal no uso de dro-
com Redução de Danos no contexto do HIV/aids gas era considerada fundamental para garantir
teve implicações, não apenas no que tange ao capilaridade das ações preventivas junto a pes-
impacto nos indicadores epidemiológicos, como soas que, por conta da criminalização, esforça-
também para a definição de elementos éticos, vam-se para manterem-se invisíveis aos agentes
estéticos e políticos. Afinal, o campo social cons- do Estado.
tituído em torno da construção de respostas à Nos primeiros anos do século XXI, uma
epidemia foi (e ainda é) extremamente receptivo transformação interpelaria os grupos envolvidos
à participação de grupos considerados marginais com Redução de Danos. Já conhecido em São
em outras esferas da vida pública. Neste sentido, Paulo desde a década de 1990, o crack come-
é importante conceber a aids não apenas como çaria a se espalhar por todo o país, fazendo com
uma doença relacionada a um vírus, mas como que o uso de drogas por via injetável diminuísse
um fenômeno social: ao ponto de ser considerado epidemiologicamen-
“À aids, acontecimento biológico, so- te irrelevante. O repasse de recursos do Depar-
mava-se a aids como acontecimento políti- tamento de IST, HIV/Aids e Hepatites Virais do
co e cultural, interpelando comportamen- Ministério da Saúde diminuiu drasticamente e a
tos e obrigando o debate de temas-tabu, responsabilidade quanto ao uso de álcool e ou-
como sexualidade e uso de drogas. Na tras drogas passou para a Coordenação Nacio-
saúde pública, a Aids interrogava moralis- nal de Saúde Mental, Álcool e Outras DrogasIV.
mos arraigados nas práticas mais cotidia-
Nesta esteira, diversas organizações de Redução
nas de cuidado, naturalizados pela quase
de Danos fechariam suas portas e muitos Pro-
total ausência de questionamento e refle-
gramas de Redução de Danos (PRD) vinculados a
xão. Grupos minoritários, como gays, tra-
políticas municipais de HIV/aids passaram a ser
vestis, prostitutas e usuários de drogas,
chamados ao debate sobre a construção subordinados à Saúde Mental.
de estratégias de enfrentamento à epide- Mas o desaparecimento das relações entre
mia, deram visibilidade a questões situa- doenças infectocontagiosas e uso de drogas não
das para muito além da própria aids, como passava de mera suspeita. Em 2014, a publica-
políticas de ação afirmativa, denúncias de ção de uma pesquisa mostraria que a prevalên-
violação de direitos humanos, luta por re- cia do HIV/aids entre brasileiras e brasileiros que
conhecimento (inclusive profissional, como faziam uso de crack era oito vezes maior que na
no caso das prostitutas), e o enfrentamen- população geral10 (e duas vezes maior também
to de vulnerabilidades, estigmas e precon-
ceitos”1 (p.154). IV
Este ponto será aprofundado quando falarmos da segunda onda da Redu-
ção de Danos..

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

para a hepatite tipo C (p.77-78): não só. Especificamente sobre o HIV/aids, Parker
“Os resultados apresentados e Camargo18 partiram do conceito de “sinergia
apontam claramente para a necessida- coletiva de pragas”19 para descrever uma “siner-
de de ações preventivas e de controle gia de vulnerabilidades” no âmbito individual. Es-
de doenças específicas para a popula- ta concepção, fundamental para a superação da
ção usuária de drogas, alertando para noção de “grupo de risco”, anunciava o próximo
as formas de transmissão característi- paradigma na organização da resposta global à
cas desta população, com o propósito epidemia de HIV/aids: a “Prevenção Combinada”,
de minimizar os problemas de saúde adotado no final da década de 2010:
decorrentes de sua inserção em con- “A Prevenção Combinada oferece as
textos adversos”10 (p.81). melhores perspectivas para abordar os
A relação com o compartilhamento de pontos fracos documentados nos progra-
cachimbos parecia óbvia, mas as pesquisas mas de prevenção e para gerar reduções
não conseguiram refutar ou comprovar esta significativas e sustentadas na incidência
hipótese11-14. Se não fosse esta, qual seria do HIV em diversos contextos. As evidên-
então a conexão entre o uso não injetável cias sustentam a maior efetividade de es-
de drogas e a maior exposição ao HIV/aids tratégias complementares de prevenção
e hepatites? Uma resposta já estaria presen- comportamental, biomédica e estrutural.
te nas conclusões da pesquisa de Bertoni e Esta concepção permite operar em dife-
Bastos10: rentes níveis (indivíduos, relacionamentos,
comunidades, sociedades) para atender às
“Os achados do presente estudo
necessidades específicas, mas diversas,
evidenciam a vulnerabilidade da popu-
das populações em risco de infecção pelo
lação de usuários de crack e/ou simi-
HIV” (p.5)20.
lares frente ao risco de contrair doen-
ças infecciosas. Isso se deve ao fato de O Departamento de IST, HIV/Aids e Hepa-
que grande parte da população apre- tites Virais do Ministério da Saúde incorporou a
senta diversos comportamentos de ris- perspectiva da Prevenção Combinada como dire-
co e estão inseridos em contextos pau- triz central para a coordenação da resposta brasi-
perizados, violentos e frequentemente leira à epidemia de HIV/Aids, incluindo a Redução
carentes de qualquer infraestrutura, de Danos, como um componente estratégico, a
mínima que seja (como uma fonte de partir da compreensão de que “...diversos agra-
água corrente) [...]. Essas ações não vos à saúde (incluindo a própria Aids) decorrem
devem ficar restritas à esfera da saú- não apenas do uso de drogas, mas das políticas
de, uma vez que estas situações de de drogas”21 (p.36).
risco [...] possuem profundas raízes so- As experiências com Redução de Danos
ciais” (p.81). desencadeadas pela resposta ao HIV/aids es-
tão longe de se esgotar, não apenas por conta
da alta prevalência de infecções entre pessoas
As conclusões de Bertoni e Bastos10
que usam álcool e outras drogas ou por novas
corroboram a tradição de estudos das deter-
modalidades de uso e vulnerabilidade, como o
minações sociais de saúde e doença15-17, mas

vol.21, n.2, dez 2020 |97


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

“chemsex”V,22, mas pela capacidade inventiva en- onda do HIV/aids e das hepatites virais, por al-
sejada pelo território reflexivo organizado em tor- guns anos. Ainda que redutoras e redutores de
no da epidemia. Não obstante, deixaremos por danos nunca tenham se limitado à prevenção dos
ora esta onda. agravos infectocontagiosos, afirmando em ato
uma profunda ampliação do cuidado de pessoas
Segunda onda: Saúde Mental que usam álcool e outras drogas, cabe salientar
que a reflexão acerca destas práticas se mante-
As técnicas e políticas de saúde dirigidas
ve, por algum tempo, circunscrita ao contexto do
a pessoas que usam álcool e outras drogas no
HIV/aids.
Brasil foram, por muito tempo, exclusividade da
Psiquiatria. A eugeniaVI ditaria as regras durante Em meados da década de 2000, entretanto,
a primeira metade do século XX; na ditadura civil- a dispersão do uso de crack por todo o territó-
-militar, seria a vez do tecnicismo reacionárioVII. rio nacional passaria a ser utilizada para atacar
Não obstante, os “anos de chumbo” acolheriam a Política Nacional de Saúde Mental27 e a Refor-
a primeira edição nacional de um livro de Claude ma Psiquiátrica como um todo. Entidades como a
Olievenstein, “Os Drogados Não São Felizes”23, Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), e sin-
referência para toda uma geração de brasileiras dicatos médicos de alguns estados passaram a
e brasileiros descontentes com tratamento dado ganhar espaço midiático para divulgar relatórios
aos usuários de drogas, em nosso paísVIII. que responsabilizavam o fechamento de hospi-
tais psiquiátricos por uma pretensa desassistên-
A Reforma Psiquiátrica brasileira, entretan-
cia às pessoas que faziam uso de crack.
to, custaria a encarar a questão do cuidado diri-
gido a pessoas que usam álcool e outras drogas, Este ataque organizado encontraria respos-
ainda que importantes narrativas da violência ma- ta a partir de uma articulação que já vinha sendo
nicomial, muito inspiradoras para o movimento, construída desde o final da década de 1990, no
tenham sido produzidas justamente por pessoas encontro entre as políticas e movimentos de Saú-
internadas por conta do uso de substâncias24-26. de Mental e de HIV/aids. O lançamento da Políti-
As razões para este vazio reflexivo são controver- ca de Atenção Integral para Pessoas que usam
sas, mas o reconhecimento da demora no acolhi- Álcool e Outras Drogas28, fruto do esforço de téc-
mento do tema é, até onde sei, um consensoIX. nicos de diversas áreas do Ministério da Saúde,
foi um marco deste momento. O documento tra-
A experiência brasileira com Redução de
duzia oficialmente, pela primeira vez, uma pers-
Danos, por seu turno, também demorou para
pectiva que transformava a Redução de Danos
encontrar a Saúde Mental, “surfando” apenas a
em diretriz do cuidado no Sistema Único de Saú-
Termo que se origina da expressão chemical sex (sexo químico, em inglês) e
de (SUS), como um todo:
V

se refere a prática sexual feita sob influência de drogas psicoativas.


VI
A eugenia foi uma teoria importante na passagem entre os séculos XIX e “Vemos aqui que a redução de da-
XX. Os eugenistas defendiam a purificação e aperfeiçoamento da raça hu-
mana, por meio de políticas que impedissem a procriação entre indivíduos nos oferece-se como um método e, portan-
portadores de “fatores de degenerescência”, como alcoolismo e dependên-
cia de drogas.
to, não excludente de outros. Mas, vemos
Na passagem entre as décadas de 1960 e 1970, as teses sobre eugenia
VII também, que o método está vinculado à di-
foram finalmente silenciadas no Brasil. Em seu lugar, ganharam força as reção do tratamento e, aqui, tratar significa
teorias vinculadas à uma psiquiatria tecnicista que articulava a defesa do
dispositivo manicomial, o uso de medicamentos e eletroconvulsoterapia, e
uma verdadeira fobia aos valores expressos pela contracultura. IX
Não disponho de fontes ou referências para esta afirmação; apenas os re-
latos de um grande número de militantes históricos da Reforma Psiquiátrica
História é descrita em pormenores por Petuco , no livro “O pomo da Dis-
VIII 1
a quem interroguei sobre o assunto, inúmeras vezes
córdia: drogas, saúde, poder”.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

aumentar o grau de liberdade, de co-res- que isto não significa a ausência de conflitos e
ponsabilidade daquele que está se tratan- tensões. Um bom encontro caracteriza-se, não
do. Implica, por outro lado, no estabeleci- pela paz, mas pelo aumento da “potência de agir
mento de vínculo com os profissionais, que no mundo”29 (p.66). No caso em questão, a Redu-
também passam a ser co-responsáveis ção de Danos oferecia à Saúde Mental, não res-
pelos caminhos a serem construídos pela postas prontas, mas reflexões éticas que exigiam
vida daquele usuário, pelas muitas vidas
movimento e invenção. Do mesmo modo, a Saú-
que a ele se ligam e pelas que nele se ex-
de Mental permitia à Redução de Danos a supe-
pressam” (p. 10)28.
ração definitiva de qualquer resquício de redução
A política do Ministério da Saúde se tor- da questão do uso de drogas à uma dimensão
nou a principal referência do SUS no que tange meramente instrumental de caráter preventivista.
à atenção integral a pessoas que usam álcool
Mas que não reste dúvidas: isto não signi-
e outras drogas. Não obstante, a Redução de
fica que trabalhadores, militantes e pesquisado-
Danos expressa no documento não possuía a
res comprometidos com a Saúde Mental tenham
mesma objetividade daquela que orientava o en-
sempre encontrado respostas satisfatórias pa-
frentamento do HIV/aids, o que dificultava a sua
ra traduzir o conceito de Redução de Danos no
materialização no cotidiano dos serviços: o que
cotidiano dos serviços de Saúde Mental. Rose
seria, concretamente, uma prática de Redução
Meyer, coordenadora do Centro de Referência em
de Danos em um Centro de Atenção Psicossocial
Redução de Danos da Escola de Saúde Pública
especializado em álcool e drogas (CAPS-ad)?
do Rio Grande do Sul, sempre lembrava que a
A política não oferecia respostas concretas Redução de Danos nunca fez mais do que lem-
para este tipo de questionamento, mas induzia brar que os princípios do SUS também valiam pa-
elaborações inovadoras a partir de imperativos ra as pessoas que usam drogas. Ao lembrar o
éticos. Ao afirmar que as pessoas sob efeito de compromisso com a equidade, a universalidade
drogas têm o direito de ser atendidas, impunha e a integralidade, a Redução de Danos estimulou
a reflexão sobre como fazer isto; ao dizer que os a Saúde Mental a buscar respostas construídas
serviços devem acolher àqueles que não querem através da experimentação e do movimento de
ou não conseguem abandonar o uso, interrogava tentativa e erro.
as ofertas a estes sujeitos; ao recomendar a in-
O “Projeto Caminhos do Cuidado”30 foi mais
tegralidade no cuidado, questionava a medicali-
um momento desta onda. A ampliação das ofer-
zação e a psicologização.
tas de cuidado para pessoas em sofrimento psi-
Em outro artigo2, já me vali de Spinoza29 pa- cossocial e com problemas relacionados ao uso
ra afirmar que a aproximação entre Saúde Mental de álcool e outras drogas exigia a mobilização
e Redução de Danos poderia ser caracterizada dos serviços de Atenção Primária à Saúde, ense-
como um “bom encontro”, produtor de “paixões jando um processo formativo para trabalhadores
alegres”X. Mas creio que seja o caso de explicar de nível médio da Estratégia de Saúde da Família
(ESF), em todo o Brasil. Dadas as dimensões do
X
Para Spinoza, os encontros fazem circular afetos que tocam as partes que
se encontram, aumentando ou diminuindo sua potência de agir no mundo. SUS e a imensa capilaridade da ESF por todo ter-
Os bons encontros resultam em alegria, considerada a mais nobre das pai-
xões, porque resulta em ampliação da potência de agir. Os maus encontros, ritório nacional, não seria exagero suspeitar que
por outro lado, produzem tristeza, que diminui a potência. Pela chave de
Spinoza pode-se observar encontros entre pessoas, grupos, ideias, coisas,
ou mesmo entre entes de natureza distinta, como pessoas e coisas, ideias
este talvez tenha sido um dos maiores projetos
e grupos, etc.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de formação em Redução de Danos já vistos no nos CAPS-ad, por exemplo, muitas vezes apon-
mundo. taram na direção de uma articulação complexa e
Outro resultado desta busca de tradução é radicalmente intersetorial. Em ato, as experimen-
o “Consultório de Rua”. Inicialmente vinculado à tações iam pouco a pouco alimentando uma nova
política de Saúde Mental, este projeto acabaria onda.
se transformando em “Consultório na Rua”, su- Caberia também valorizar o impacto de
bordinado à política nacional de Atenção Básica. contribuições trazidas por novos atores. O con-
Não obstante, sua inspiração seguiu sendo tribu- vite feito pela Coordenação Nacional de Saúde
tária da experiência brasileira com Redução de Mental para que o sociólogo Jessé Souza ousas-
Danos, sobretudo no que diz respeito ao trabalho se pensar a questão do uso de crack a partir de
de campo desenvolvido por redutoras e redutores suas elaborações sobre a “ralé brasileira”32, por
de danos, especialmente no contexto da primeira exemplo, permitiu importantes ampliações desta
ondaXI,31. temática. Em paralelo, toda uma nova geração de
Seria possível falar de outros esforços, co- militantes cobrava o reconhecimento de intersec-
mo a inclusão de redutoras e redutores de danos ções da mesma com questões de raça, gênero e
em equipes de CAPSad, experiência desenvolvi- orientação sexual. A Redução de Danos brasilei-
da em algumas cidades brasileiras; ou ainda, das ra, tensionada, esgarçada, dobrada e reconfigura-
transformações de algumas organizações não go- da, aproximava-se de uma nova síntese.
vernamentais (ONGs) de Redução de Danos, em Uma primeira sistematização mais robus-
direção ao campo da Saúde Mental. Não obstan- ta desta nova onda seria desenvolvida em Per-
te, o mais importante seria reforçar que os ques- nambuco, durante a gestão de Eduardo Campos,
tionamentos lançados pela Redução de Danos do Partido Socialista Brasileiro (PSB). À época,
seguiram movendo experimentações e reflexões alguns técnicos envolvidos com a gestão de polí-
no âmbito da Saúde Mental. E não seria exage- ticas de proteção a crianças e adolescentes ame-
ro afirmar que esta busca por respostas termina- açados de morte perceberam que grande parte
ria por conduzir-nos ao que chamo de “terceira da demanda vinha de pessoas que faziam uso de
onda”. drogas. Em paralelo, percebia-se que esta mes-
ma população era também a mais vitimada por
crimes de morte.
Terceira onda: direitos humanos e desenvolvimen-
to social A história da Redução de Danos, em Per-
nambuco renderia um capítulo à parte. O Institu-
Seguindo o esforço de revisão a que me
to Papai, por exemplo, foi uma ONG pioneira na
proponho neste artigo, quero iniciar esta parte
reflexão sobre o uso de drogas e masculinidades.
dizendo que a passagem para uma terceira onda
Recife, por seu turno, foi a primeira capital a rea-
não implica em ruptura com as ondas anteriores,
lizar concurso público para contratar redutoras e
mas em um acúmulo crítico. Um olhar retrospec-
redutores de danos, além de implementar a “Ca-
tivo não teria problemas para encontrar indícios
sa do Meio do Caminho”, inspiração para as Uni-
desta nova etapa nas ondas anteriores. Os Pro-
dades de Acolhimento (UA) propostas pela Políti-
jetos Terapêuticos Singulares (PTS) construídos
ca Nacional de Saúde Mental27. Sem falar na ges-
XI
Uma ótima referência desta experiência é o documentário “Redutores de tão estadual, que já havia inovado com a criação
Preconceitos”, de 200331.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de serviços de assistência social especializados “O Corra pro Abraço atua também na redu-
no atendimento de pessoas que faziam uso de ção de danos sociais relacionados ao consumo
drogas. de drogas, como a estigmatização dos usuários,
Todo este acúmulo seria condensado no a violência e o racismo institucional. A partir des-
“Programa Atitude”, criado em 2011. Lotado na sa estratégia, o programa oferece, por exemplo,
Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social orientação sobre como se portar diante de uma
e Direitos Humanos de Pernambuco, o programa abordagem policial”34 (p.3)
constituiu-se em uma ampla articulação interse- Em 2014, seria a vez da cidade de São Pau-
torial que permitia concretizar o cuidado integral: lo implementar aquela que se tornaria a proposta
proteção à vida, abrigamento, testagem para o de maior visibilidade nacional no que diz respeito
HIV, encaminhamento para CAPS-ad, geração de à terceira onda. O programa “De Braços Abertos”
trabalho e renda, acesso à educação e cultura, oferecia trabalho, renda e moradia, em articula-
compunham um leque de ofertas que ampliava ção com um amplo cardápio de ofertas de saúde,
conscientemente os sentidos da Redução de educação, cultura, direitos humanos e assistên-
Danos: cia social, dentre outras políticas públicas35. O
“A redução de danos, no contexto la- foco eram as pessoas que faziam uso de crack
tino-americano, deve ir além da definição no Bairro da Luz, região que ficou conhecida co-
convencional que tem nos contextos norte- mo “Cracolândia”.
-americanos ou europeus. Nessa região, o Provavelmente inspirada por estas experiên-
conceito deve incorporar a proteção contra cias, a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Dro-
a violência e o desencarceramento como gas (SENAD) lançaria, também em 2014, o “Pro-
um elemento intrínseco e definidor de tal jeto Redes”, com o objetivo de financiar e apoiar
ideia. O principal dano que se quer reduzir iniciativas municipais semelhantes às descritas
é a violência e o encarceramento que es- acima. Este projeto marcou um momento ímpar
tão ligados, principalmente, às dinâmicas na história da SENAD, que seguia uma mesma
dos mercados de drogas”33 (p. 3) linha política desde os tempos de Fernando Hen-
Em 2013, seria a vez dos baianos desen- rique Cardoso até quase o final dos governos pe-
volverem uma iniciativa semelhante. O “Corra Pro tistas. Nos dois anos que precederam o impeach-
Abraço”, lotado na Secretaria de Justiça, Direitos ment da presidenta Dilma Rousseff, entretanto, a
Humanos e Desenvolvimento Social do Estado SENAD foi ocupada por um conjunto de pessoas
da Bahia, também se caracterizou pela amplia- comprometidas com a construção de novas polí-
ção do conceito de Redução de Danos para além ticas. Neste curto período, o “Projeto Redes” via-
da saúde, pelo menos no sentido estrito do ter- bilizou o repasse de recursos para que mais de
moXII . Esta perspectiva pode ser encontrada nos trinta cidades desenvolvessem ações interseto-
documentos oficiais do programa, que criticam riais para garantia de trabalho, renda e moradia a
dimensões estruturais e práticas cotidianas de pessoas que faziam uso de drogas em situações
opressão e violência institucional: de vulnerabilidade social, conferindo mais consis-
tência à “terceira onda da experiência brasileira
com Redução de Danos”.
XII
É importante salientar que para as vertentes críticas (caso da Reforma
Sanitária brasileira), a saúde não depende apenas das técnicas e políticas
de cuidado, mas de uma miríade de determinações sociais.

vol.21, n.2, dez 2020 |101


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Considerações finais - É violento o mar que Referências


tudo arrasta? 1. Petuco DRS. O pomo da discórdia? drogas, saúde, po-
der. Curitiba: Ed. CRV; 2019.
Meu objetivo com este artigo foi oferecer
2. Petuco DRS. Redução de Danos: das técnicas à ética
uma outra possibilidade de narrar a história da do cuidado. In: Ramminger T, Silva M. (orgs.). Mais subs-
experiência brasileira com Redução de Danos. tâncias para o trabalho em saúde com usuários de dro-
Uma narrativa que critica minhas próprias ela- gas. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. p.133-148.
borações anteriores, ao valorizar o acúmulo em 3. Petuco DRS. Era uma vez: uma pequena história do
detrimento das rupturas. Além disso, procurei cuidado e das políticas públicas dirigidas a pessoas que
usam álcool e outras drogas. In: Teixeita M, Fonseca Z.
valorizar a reflexão e elaboração coletivas que
(orgs.). Saberes e práticas na Atenção Primária à saúde:
buscaram respostas para os desafios coloca-
cuidado à população em situação de rua e usuários de
dos pela realidade sem abrir mão dos compro- álcool, crack e outras drogas. São Paulo: Hucitec; 2015.
missos éticos impostos pela Redução de Da- p.179-200.
nos, elevando as práticas e políticas de cuida- 4. Fonseca C. Pátria vermelha: comunismo em Santos
do de pessoas que usam álcool e outras dro- (1930-1964). Rio de Janeiro: Fundação Dinarco Reis;
gas a um patamar que, talvez pela primeira vez 2002.
5. Tavares RR. A “Moscouzinha” Brasileira: cenários e
em nossa história, fez jus à complexidade das
personagens do cotidiano operário de Santos (1930-
demandas elaboradas pelos sujeitos aos quais
1954). São Paulo: Humanitas/FAPESP; 2007.
se destinam este cuidado e estas políticas. 6. Campos FC, Henriques CM. Contra a maré à beira-
A história das “três ondas” da Redução -mar: a experiência do SUS em Santos. São Paulo: Scrit-
de Danos, como contada aqui, é a história da ta; 1996.
construção de respostas com base em compro- 7. Brasil. Presidência da República. Lei no 8.080 - dispõe
sobre as condições para a promoção, proteção e recu-
missos éticos, em contextos raramente acolhe-
peração da saúde, a organização e o funcionamento dos
dores. Neste caminho, as dificuldades nunca
serviços correspondentes e dá outras providências. Bra-
foram apenas técnicas: disponibilizar seringas sília; 29 set 1990. (on line). [acesso em: 04 mai 2020].
é necessário, mas a legislação proíbe; cuidar Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
em liberdade é imperativo, mas sociedade e leis/l8080.htm
autoridades exigem segregação; é preciso des- 8. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de
construir processos de estigmatização, mas a DST e Aids. Boletim epidemiológico aids, jan. 1993. Bra-
sília: Ministério da Saúde; 1993.
lei criminaliza.
9. Mesquita F. Dar oportunidade de vida aos usuários
Não estranha, portanto, que a terceira on- de drogas injetáveis – polêmica nacional. In. Bastos FI,
da nos coloque diante de um desafio que pa- Mesquita F, Marques LF. Troca de seringas: drogas e Aids
rece intransponível: como materializar um cui- – ciência, debate e saúde pública. Brasília: Coordenação
dado comprometido com a garantia de direitos Nacional de DST e Aids; 1998. p.101-114.

num contexto de avanço do ideário neoliberal, 10. Bertoni N, Bastos FI. Pesquisa nacional sobre uso
de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares
caracterizado pelo enfraquecimento das políti-
do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de
cas de assistência e desenvolvimento social?
Janeiro: ICICT/Fiocruz; 2014.
Que estratégias de resistência estamos cons- 11. Porter J, Bonilla L, Drucker E. Methods of smoking
truindo? Que articulações? Que alianças? crack as a potential risk factor for HIV infection: ‘crack
A narrativa chega ao seu final, mas não a smokers’ perceptions and behavior. Contemp. Drug Pro-
bl. 1997; 25(2):319-347.
história que se busca narrar.

|102 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

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vol.21, n.2, dez 2020 |103


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Redução de Danos e o Trabalho de Campo: o encontro


necessário

Harm Reduction and Fieldwork: the necessary encounter

Domiciano SiqueiraI, Álvaro MendesII

Resumo Abstract

O artigo discute a estratégia de Redução de Danos e sua relação The article discusses the Harm Reduction strategy and its rela-
com o campo de trabalho do redutor. Seguindo uma linha histórica tionship to the worker’s field of work. Following a historical line, the
se analisa as diversas faces deste encontro, desde a formação do different aspects of this meeting are analyzed, from the formation
redutor até o envolvimento emocional com os usuários. Tratando of the reducer to the emotional involvement with users. Treating
a questão de direitos como prioritário para a aproximação e em- the issue of rights as a priority for approaching and empowering
poderamento dos atingidos pelas ações de Redução de Danos. those affected by Arm Reduction actions. It also raises fundamen-
Levanta ainda questões de fundo das exigências dos usuários nos tal questions about the demands of users in public health facili-
equipamentos públicos de saúde, chegando a ponto de se colocar ties, going to the point of placing total abstinence as a fundamen-
a abstinência total como questão fundamental para a frequência tal issue for the frequency in those spaces. Finally, to conclude
naqueles espaços. Por fim concluir que, após um período de en- that, after a period of enthusiasm and support, these actions are
tusiasmo e apoio, atualmente tais ações estão fragilizadas e inti- currently weakened and intimidated, almost without government
support, and that they only exist thanks to civil society actions,
midadas, quase sem apoio governamental e que somente existem
with fine tuning with users and their social environments.
graças a ações da sociedade civil, com fina sintonia junto a usuá-
rios e seus entornos sociais.
Keywords: Drugs; Harm reduction; Work field; Human rights

Palavras-chave: Drogas; Redução de danos; Campo de trabalho;


Direitos humanos.

Introdução

S
empre se soube que o uso de drogas vem
acompanhando o desenvolvimento de civi-
lizações, embora tenhamos consciência
que esse uso de forma epidêmica é uma carac-
terística dos tempos atuais. Mesmo consideran-
do que o desejo de “transcender” é inerente ao
I
Domiciano Siqueira (domicianos.siqueira@gmail.com) é autodidata, Consul-
tor de Direitos Humanos e Drogas, Fundador e atual Conselheiro da Associa- ser humano, verificamos que esse desejo tornou-
ção Brasileira de Redução de Danos (ABORDA).
se um risco e um grande perigo, agravado pe-
Alvaro Mendes (alvaroacre@uol.com.br) é administrador de empresas e eco-
II

nomista pela Faculdade de Ciências Politicas e Economicas do Rio de Janeiro las doenças que se desenvolveram junto a esse
com Especialização em Politicas Sociais e ex-presidente e atual Conselheiro
da ABORDA. avanço.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

O desenvolvimento de doenças como Rio Grande do Sul, uma iniciativa se destacou e


a aids e as hepatites, no mundo, se agravaram por colocar em seu quadro de trabalhadores os
devido ao compartilhamento de seringas no uso usuários de drogas injetáveis3. Esses foram al-
de drogas e, para problematizar ainda mais esse guns dos programas de intervenção que tiveram
quadro, à ilegalidade de algumas substâncias como metodologia principal o trabalho de campo,
(maconha, cocaínas, heroína e seus derivados). a rua, a participação de usuários de drogas na
Isso fez com que a Saúde Pública, a Justiça e as sua constituição.
religiões, historicamente as instituições encarre- De uma maneira mais humanizada,
gadas de “enfrentar o problema”, se afastassem podemos afirmar que o sucesso desse trabalho
dele, uma vez que colocaram como pressuposto se deu ao se descobrir que o ”campo” não era
ao atendimento dessas pessoas usuárias a “ne- a rua em si, mas o “outro” que se encontrava
cessidade do desejo de parar de usar drogas” em em desamparo das políticas sociais. Essa
detrimento, muitas vezes, da realidade mais co- descoberta redesenhou as formas de atenção e
mum que sempre foi a manutenção do uso des- cuidado, fazendo do usuário de drogas não mais
sas substâncias. São pessoas que não querem, delinquente, um doente ou pecador, mas, acima
não conseguem ou não podem parar de usá-las. de tudo, um “parceiro” na luta contra a estigmati-
Foi assim que problemas comuns en- zação e o preconceito.
tre usuários de drogas injetáveis, como abces- A política pública de saúde no Brasil, de
sos (pequenos ferimentos), dessem lugar a forma geral, vem se modificando a partir de ex-
problemas muito mais graves, como a aids, as tensas discussões e pesquisas, aprimorando
hepatites, etc., e se tornassem parte integrante suas estratégias na busca de uma atenção hu-
desse universo, transformando-os naquilo que manizada, respeitando os direitos humanos e
hoje temos; ou seja, pessoas comprometidas os princípios que norteiam o Sistema Único de
com a autodestruição ou com o crime, afastadas Saúde (SUS). Isso ocorre apesar do desmonte
de nós e alijadas das políticas de saúde e de ci- em alguns status e a fragilidade da diminuição de
dadania. recursos que está havendo atualmente em pro-
gramas essenciais ao pleno desenvolvimento de
um acolhimento humano, como a diminuição de
repasse de recursos para a área de saúde men-
A proposta de Redução de Danos
tal, a retirada da menção a políticas de Redução
No Brasil, em 1989, na cidade de Santos,
de Danos, consequentemente destaca políticas
estado de São Paulo – que detinha altos índices
que pregam abstinência junto à nova Política Na-
de transmissão do HIV pelo uso compartilhado
cional sobre Drogas (PNAD), entre outros pontos.
de seringas utilizadas com drogas, iniciou-se um
Em relação ao consumo e abuso de ál-
trabalho de contato direto com usuários dessas
cool e outras drogas, a partir da implantação
substâncias, em seus pontos de encontro e con-
de uma política nacional dentro dos princípios
vivência. Foi o início do “trabalho de campo”1
da Redução de Danos, de 20024, foi imposto
Em 1994, em Salvador, Bahia, surgiu um
o desafio de formação de uma rede interinstitu-
Programa de Redução de Danos que se tornou
cional – envolvendo a Atenção Básica de Saúde,
uma escola para todos os outros programas
principalmente o Programa de Agentes Comuni-
que o sucederam2; em 1996, em Porto Alegre,

vol.21, n.2, dez 2020 |105


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

tários de Saúde (PACS) e a Estratégia de Saúde das e valores, a partir de um pensamento críti-
da Família (ESF), os Centros de Testagem e Acon- co, a compreenderem o seu comportamento e o
selhamento (CTA) e os Servições de Assistência do “outro”, a tomarem decisões responsáveis,
Especializada em Doenças Sexualmente Trans- desenvolvendo conhecimentos e atitudes em
missíveis ea aids (SAEs), os Centros de Atenção questões relacionadas ao próprio uso de drogas,
Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-ad), além de à sexualidade, à violência, aos preconceitos e aos
outros serviços e dispositivos sócioassistenciais Direitos Humanos; ou seja, que lhes propiciem
(instâncias envolvendo secretarias de Bem-Estar a escolha de um modo de vida saudável. Ferra-
Social, Direitos Humanos e Cidadania, Educação, mentas estas, portanto, que constituem-se como
Justiça e Segurança Pública, etc. – locais onde importantes para aqueles que acreditam na soli-
os programas de Redução de Danos, estariam dariedade humana, principalmente, entre os que
articulados ou não à Atenção Básica, que figura vivem em situação de rua.
enquanto uma das portas de entrada, devido ao
contato precoce do usuário de drogas com os
Redução de Danos, Direitos Humanos, ética
serviços de saúde.
e cidadania
A abordagem do usuário de álcool e
Os Direitos Humanos, expressos na
outras drogas sempre se constituiu como um
Declaração Universal dos Direitos Humanos,
desafio, requerendo um amplo conhecimento
constituem uma base universal de princípios e
sobre o assunto, um domínio de métodos de
valores que dizem respeito às garantias mínimas
abordagem e atuação e informações e técnicas
de uma vida digna à qual todo ser humano tem
adequadas, uma vez que a questão do uso des-
direito. Essa Declaração é reconhecida por quase
sas substâncias traz à tona questões relativas
todas as nações signatárias da Organização das
ao preconceito, mitificações, desinformação e
Nações Unidas (ONU), que constituem a maioria
manejos baseados no senso comum e não na
dos países atuais, sendo incorporada, inclusive,
relação de acolhimento humanizado, que respei-
pela maioria, em suas constituições nacionais.
te individualidade e desejos5-6.
A realidade Brasileira tem demonstrado
Nestes tempos atuais, o grupo que atua
insistentemente que, apesar do caráter univer-
na Redução de Danos está passando por um
sal dos direitos afirmados nesta Declaração, sua
desafio, em um esforço no sentido de uma as-
efetivação não depende exclusivamente de seu
sistência mais igualitária - promovendo o debate
reconhecimento. Ao contrário, depende de uma
e incentivando a discussão entre as instâncias
luta cotidiana cuja responsabilidade é de todos
públicas e a sociedade civil na implantação de
e de cada um de nós e de quem acredita na
políticas sintonizadas com a realidade e os direi-
Redução de Danos como uma ferramenta impor-
tos dos usuários de drogas.
tante de inclusão do afeto.
Isso implica, principalmente, em desen-
A violação dos Direitos Humanos e da ci-
volver e manter ferramentas importantes para
dadania tem sido uma prática constante em nos-
entender e desenvolver o trabalho preventivo,
sa realidade e os fatores que contribuem para
com foco no cuidado aos usuários de drogas com
essa situação são muitos e de várias ordens. Ela
relação a outros agravos correlatos. Ao mesmo
expressa, em grande medida, o grau de violência
tempo, favorecendo que elaborem suas deman-
de nossas relações sociais e o nível de intolerân-

|106 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

cia da sociedade em conviver democraticamente os – mesmo quando dependentes – de álcool e


com as diferenças. Essas características de nos- de tabaco, no entanto, não têm a sua cidadania
sa sociabilidade – violência e intolerância –, em negada na mesma intensidade que os usuários
parte herdadas de nossa colonização, têm sido de drogas ilícitas; simplesmente por que fazem
reforçadas pelo individualismo, pelo consumismo uso de drogas socialmente aceitas – ainda que a
e pela falta de consciência ecológica que vem dependência seja uma condição de saúde, sem
moldando o significado da vida em sociedade nas nenhuma relação com a legalidade ou a ilegali-
últimas décadas. dade da droga. Nessa direção, uma consciência
Uma das possibilidades de superação ética permite-nos exatamente inverter essa or-
desses limites, visando a convivência democráti- dem perversa.
ca entre os diferentes, pautada nos Direitos Uni- A pessoa que faz uso de drogas – líci-
versais – Humanos e de cidadania –, passa pela tas ou ilícitas – é, antes e primeiramente, um
criação consciência ética entre redutores. A con- ser humano e cidadão e, dessa forma, portador
sciência ética nada mais é do que a capacidade dos mesmos direitos dos outros cidadãos que
de reconhecer-se no outro – ainda que seja difer- não usam drogas. Ao reconhecer a condição de
ente – a nossa própria humanidade. Ou seja, a luta cidadão e os direitos dos usuários de drogas
cotidiana pela efetivação dos direitos humanos e ilícitas, estamos, na verdade, afirmando a nossa
de cidadania, à qual nos referimos anteriormente, existência ética. Ou seja, ao reconhecer os direi-
nada mais é do que a luta pela efetivação dos tos do outro – que é diferente – estou, do ponto
nossos próprios direitos enquanto membros da de vista ético, dizendo para o conjunto das pes-
comunidade humana. Quando aceitamos que os soas que fazem parte dessa sociedade como eu
direitos de uma pessoa sejam violados, na ver- gostaria de ser tratado, caso estivesse naquela
dade, do ponto de vista ético, estamos aceitando situação.
uma situação que ameaça o direito de todos.
A solidariedade, o não preconceito e a
No caso específico da Redução de Danos, não discriminação são os marcos norteadores
a falta de uma consciência ética coloca-se no de toda e qualquer intervenção que pretenda se
seguinte horizonte: quando uma sociedade não ocupar tanto da prevenção quanto da assistên-
reconhece os direitos de uma pessoa que faz cia às pessoas com IST/HIV/aids, tuberculose e
uso de uma droga ilícita, significa que essa socie- hepatites virais. Sabemos que a construção da
dade, do ponto de vista ético, está afirmando que cidadania do usuário de drogas frente à ilegali-
umas pessoas são mais cidadãs do que outras. dade de suas práticas é o maior impasse para
Portanto, a condição de cidadania, nesse caso, o planejamento de programas de prevenção que
passa a ser secundária em relação à de usuário valorizem os direitos humanos e respeitem a au-
de droga; ou seja, primeiro a pessoa é julgada por tonomia dos sujeitos. É através do direito básico
fazer uso de droga e, em decorrência disso, perde à informação e de uma legislação apropriada que
o reconhecimento de sua condição de cidadão. o cidadão poderá se lançar na busca por outros
Essa é uma característica marcante de nossa so- direitos fundamentais, como o acesso a serviços
ciedade, atingindo os usuários de drogas ilícitas de saúde, a tratamentos adequados e a melhoria
e que, por isso, sofrem discriminação. Os usuári- da sua qualidade de vida.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Barreiras nas Ação com Usuários de Drogas Ministério da Saúde como a lógica a ser utilizada
Ilícitas nos serviços de atenção diária que integram a
Nos desafios cotidianos das intervenções rede de cuidados em Saúde Mental, no atual
na rua são encontradas várias barreiras, que vão, governo federalIII, deixando a população de rua
desde a incompreensão da sociedade, até a ati- mais expostas aos determinantes sociais.
tude de muitos governantes que apelam para a A invisibilidade que cerca a questão das
higienização e limpeza social como forma de res- drogas e seus usuários é um fato notório e tem
olutividade para acabar com a mazela de quem, reflexos no relacionamento entre profissionais de
na verdade, está em vulnerabilidade social devido saúde e seus pacientes. Muito raramente, esse
à falta de políticas públicas mais humanizadas de tema é incluído nas anamneses, entrevistas e
inclusão social e seus desafios, tanto no campo consultas de avaliação clínicas. Em muitas situ-
da prevenção, como da assistência a esta popu- ações, o profissional de saúde tem fortes indícios
lação específica que são os usuários de drogas. de que o paciente seja um usuário de drogas,
Além da alta vulnerabilidade individual e mas prefere “não tocar no assunto” ou tratar o
das estimativas epidemiológicas que acometem sujeito de um modo parcial e sem se ocupar em
essas pessoas, contundentes no mundo contem- incluir esse dado nas suas avaliações de risco
porâneo7, algumas avaliações clínicas também à saúde, nas suas hipóteses diagnósticas, nos
indicam que os consumidores de drogas, quando seus aconselhamentos ou nos projetos terapêuti-
infectados pelo vírus da tuberculose e HIV e/ou cos9. Na maior parte das vezes, quando esse as-
doentes de aids, costumam ter um dos piores sunto é clinicamente abordado, ainda prevalecem
prognósticos relativos à manutenção da saúde, às exigências para uma abstinência total, moral-
além de ter a morbidade e a letalidade aumenta- mente apresentada aos pacientes como uma
das, se comparadas às de outros grupos popula- pré-condição para que algum tratamento seja em-
cionais8. preendido.
Apesar disso, não é difícil observar É consensual, o reconhecimento de que
o quanto, em muitos municípios brasileiros, a epidemia da aids provocou, na sociedade bra-
as ações de prevenção e assistência voltadas sileira, uma visibilidade um pouco maior para
para essa população específica ainda são insu- os comportamentos relacionados com o uso de
ficientes, irregulares ou, na sua grande maioria, drogas, os padrões de consumo envolvidos, os
inexistentes. O Ministério da Saúde, ao apresen- tipos de usuários e os possíveis danos à saúde
tar suas diretrizes nacionais para uma Política de resultantes do abuso de substâncias psicoativas.
Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Vale ressaltar, no entanto, que essa visibilidade
Drogas4, em 2004, reafirmou ser esse tema “um permanece circunstancial e descontínua, sendo
grave problema de Saúde Pública”, reconhecendo frequentemente embaçada por estigmas, pre-
a necessidade de superar o atraso histórico de conceitos e discriminações que, invariavelmente,
assunção desta responsabilidade pelo SUS e, são os principais responsáveis por manter na ex-
propôs o enfrentamento da questão através do clusão social essa população específica.
subsídio de uma construção coletiva9 (p.5). O que se vê mais frequentemente, por
A aplicação desse tipo de estratégia pas-
sou a não ser mais reconhecida pelo próprio III
Gestão de Jair Bolsonaro, iniciada em 2019.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

parte de muitos profissionais de saúde, no trato do Sul, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(2):382-392.
(on line). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-
com esse tipo de usuário, é a adoção de estraté- 311X2009000200017
gias repressivas, com intervenções marcadas por
4. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Coorde-
noções de culpa de certo e errado, tentando pro- nação Nacional de DST/Aids. A Política do Ministério da
mover um ideal de “pureza humana” e de saúde Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras
drogas. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.
a serem alcançados unicamente pela abstinência
às drogas. Não raro, “essas intervenções costu- 5. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde enten-
dido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos
mam ser associadas a uma pedagogia do terror RA (orgs.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes
enfatizando o medo como uma forma de afastar e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ; Abrasco;
2003.
o sujeito das drogas, livrando-o de um suposto
caminho que o levaria, inevitavelmente, ao crime, 6. Teixeira RR, Ferigato S, Lopes DM, Matielo DC, Sanden-
berg ML, Silva P & cols. Apoio em rede: a Rede Humani-
à doença e à morte”9 (p.10). zaSUS conectando possibilidades no ciberespaço. In: In-
terface. Comunicação, Saúd Educ. 2016; 20(57):337-348.
(on line). [acesso em: 27 out 2020]. Disponível em: http://
Considerações finais dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.1217

Ainda são muito tímidas as ações con- 7. Santos NTV. Vulnerabilidade e prevalência de HIV e sífilis
tínuas de prevenção centradas em estratégias de em usuários de drogas no Recife: resultados de um estudo
respondent-driven sampling. 2013. (Tese). Centro de Pesqui-
Redução de Danos na rua e que tenham como sas Aggeu Magalhães, Recife; 2013. 151 f.
meta a promoção e o desenvolvimento de uma
8. Giacomozzi AI, Itokazu, Luzardo AR, Figueiredo CDS, Vieira
consciência crítica desses sujeitos, avaliando, M. Levantamento sobre uso de álcool e outras drogas e vul-
junto com eles, seus riscos e os fatores viáveis nerabilidades relacionadas de estudantes de escolas públi-
cas participantes do programa saúde do escolar/saúde e
de proteção que cada um efetivamente dispõe. prevenção nas escolas no município de Florianópolis. Saude
As estratégias preventivas de Redução Soc. 2012, 21(3):612-622. (on line). [acesso em: 27 out
2020]. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/
de Danos agem, assim, respeitando e tratando o v21n3/08.pdf
usuário de drogas como um cidadão portador de
9. Zucarro N. Drogas e aids da invisibilidade á integralidade:
direitos e deveres. Difunde conteúdos atualiza- um caminho a percorrer. In: Rio de Janeiro. Secretaria de Es-
dos e sem preconceitos. Desenvolve a cidadania, tado da Saúde. Assessoria de DST/Aids e Hepatites Virais;
Defesa Civil. Texto 2 - prevenção drogas e aids. Rio de Ja-
a autonomia e os mecanismos de autorregulação neiro; 2007. (on line). [acesso em: 23 out 2020]. Disponível
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quivo.aspx?C=TaLKOhlYDVI%3D

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saúde pública. Brasília: Ministério da Saúde; 1998. p.101-
112.

2. Nery FSG. A rede de atenção psicossocial no centro


histórico do municipio de Salvador - BA: um olhar sobre a
política de atenção aos usuários de álcool e outras drogas.
103f. [Dissertação de Mestrado]. Universidade Católica do
Salvador. Salvador; 2015.

3. Nardi HC, Rigoni FQ. Mapeando programas de redução de


danos da Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande

vol.21, n.2, dez 2020 |109


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Aproximações entre a Terapia Comunitária Integrativa


com a Redução de Danos

Approaches between Integrative Community Therapy and Harm Reduction

Eroy Aparecida da SilvaI, Regina TuonII

Resumo Abstract

O objetivo deste artigo foi contextualizar a história do desenvolvi- The objetive of this article was to contextualize the history of the
mento da Redução de Danos no Brasil a partir dos contextos socio- development of Harm Reduction in Brazil form the socio-political
políticos garantidos na constituição de 1988, com a mudança dos contexts guaranteed in the 1988 constitution, with the change of
paradigmas de cuidados em relação ao cuidado de saúde mental/ paradigms of care in relation to mental health care/alcohol and
álcool e outras drogas, e as aproximações dos pressupostos da other drugs, and tthe approximations of the assumtions of Integra-
Terapia Comunitária Integrativa junto a essa população com a Re- tive Community Therapy with this population with Harm Reduction
dução de Danos como prática emancipatória. as an emancipatory practice.

Palavras-chave: Terapia comunitária; Álcool e outras drogas; Re-


Keywords: Community Therapy; Alcohol and other drugs; Harm
dução de danos.
reduction.

Introdução

D
e modo geral, Redução de Danos é uma não é único nem tampouco consensual, pois
filosofia e estratégia de cuidado com usu- advém de diferentes campos e práticas1. Espe-
ários de álcool e outras drogas que tem cialmente no Brasil, a evolução histórica des-
por objetivo acolher as pessoas em sofrimento te tema e suas práxis de cuidado em relação
garantindo a elas direitos, fortalecendo as es- aos usuários de substâncias psicoativas são
tratégias de proteção e a ampliação deste te- marcadamente múltiplas, com uma diversidade
ma no campo da Bioética. Porém, este conceito construtiva de práticas e estratégias1.
Passados 30 anos de história sobre a Re-
I
Eroy Aparecida da Silva (eroyntc@gmail.com) é psicóloga pela Faculdade
Paulistana Organização Paulista de Educação e Cultura (UNIPAULISTANA) dução de Danos no Brasil, atravessamos várias
Psicoterapeuta Familiar e Comunitária e Doutora em Ciências pela Univer-
sidade de São Paulo (UNIFESP), membro da Associação Fundo de Pesquisa ondas, que não podem estar desvinculadas do
Psicofarmacologia (AFIP), pesquisadora e ativista social e colaboradora de
vários coletivos que trabalham com pessoas em situação de rua na cidade contexto tanto sociopolítico e econômico que
de São Paulo.
repercutiram fortemente nas práticas, tanto
II
Regina Tuon (reginatuon@uol.com.br) é assistente social pelas Faculdades
Metropolitanas Unidas (FMU), Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Uni- de saúde mental, como nas políticas sobre ál-
versidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Especialista em Dependência de
Drogas pela UNIFESP de São Paulo e do Ministério da Saúde. cool e outras drogas. Alguns deles são: (1) os

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

avanços no campo da Saúde Mental na déca- Operação Interna e Centros de Operação e De-
da de 1980, com a constituição de 1988; (2) fesa Interna (DOI-CODI) do Exército Brasileiro,
o enfrentamento das políticas proibicionistas do assassinato do operário Manuel Fiel Filho e
de cuidado, de forma verticalizada, cuja única o espancamento do bispo Dom Adriano Hipóli-
possibilidade das propostas de tratamento era to, um grupo de sanitaristas na cidade de São
a abstinência; (3) a incorporação das diversas Paulo se juntam e formam o Centro Brasilei-
propostas de Redução de Danos nas políticas ro em Estudos em Saúde (CEBES) e fundam a
de cuidado em relação ao consumo de substan- “Revista Saúde em Debate”, cuja proposta foi
cias psicoativas; (4) o golpe político de 2016, debater e defender pública e criticamente as
que trouxe um retrocesso no avanço das estra- práticas no campo da Saúde Pública e Saúde
tégias de cuidado em Saúde Mental no geral Mental no Brasil. Paralelamente houve a cons-
e consequentemente nas garantia das estraté- trução do Movimento de Renovação Médica, a
gias de Redução de Danos, nas suas propostas partir do Rio de Janeiro, que levantava bandei-
originais de acolhimento, escuta valorização do ras importantes em relação ao movimento sin-
encontro singular e horizontalizado entre profis- dical “entreguista” implantado desde o Golpe-
sionais e usuários. Militar de 1964, quando houve fechamento das
O objetivo deste capitulo é discutir as os- instituições democráticas e a implantação do
cilações dessas diferentes fases, bem como regime ditatorial.
relacionar avanços de algumas intervenções Em 1978, no Rio de Janeiro, a partir de de-
psicossociais comunitárias que incluem as es- núncias significativas de médicos psiquiatras
tratégias de Redução de Danos no cuidado de sobre a desumanização em relação às pessoas
usuários de drogas vulnerabilizados; ou seja, em situação de sofrimento mental, foi funda-
aqueles que habitam as ruas e, de modo geral, do o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
não buscam os serviços formais diretamente. Mental (MTSM). Este se constituiu, em pouco
Será dada ênfase também as aproximações da tempo, em uma base importante para a reno-
Terapia Comunitária Integrativa (TCI) com as vação no campo da Saúde Mental brasileira,
estratégias de Redução de Danos, propositora constituindo assim o forte Movimento de Re-
de respeito, cuidado humanizado e potenciali- forma Psiquiátrica, cuja proposta foi a de com-
zados de encontros singulares entre as pesso- bater a institucionalização nas políticas públi-
as usuárias de substâncias psicoativas. cas de Saúde Mental; ou seja, a modificação e
O Movimento de Reforma Psiquiátrica transformação das internações em manicômios
no Brasil surge a partir de tentativa de reor- em abordagens psicossociais humanizadas. O
ganização social contra a Ditadura Militar, que Movimento de Reforma Psiquiátrica tomou for-
matou e torturou brasileiros que se opunham ça a partir das lutas dos movimentos médicos
ao governo na década de 1970. Em 1976, com e sociais e conseguiu ocupar o lugar de um pro-
a edição da Lei Falcão, bombas na Associa- cesso permanente de construção e transforma-
ção Brasileira da Imprensa (ABI), Ordem dos ções rápidas nos campos assistencial, cultural
Advogados do Brasil (OAB) e em várias outras e social, a partir da superação dos estereóti-
instituições, além da cassação de vários par- pos, estigmas, segregações relacionadas às
lamentares, de mortes no Departamento de pessoas em sofrimento mental e psíquico2.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

O Movimento de Reforma Psiquiátrica 1900 até 2000, concluindo que, no século XX,
precisou lidar com mais de duzentos anos de a discussão sobre o consumo de drogas psi-
práticas desumanizadas no tocante à Saúde coativas esteve demasiadamente atrelada às
Mental em nosso meio. As lutas efervescen- práticas psiquiátricas e ao estatuto da “doen-
tes, neste campo, lideradas por sanitaristas, ça mental”, seja como condicionante ou como
psiquiatras e trabalhadores foram capazes de resultante do uso de substâncias psicoativas4.
sustentar as mudanças substancias dos cui- Nota-se que as discussões no ambiente
dados hospitalocêntricos e manicomiais para científico atual se organizam frente a duas ló-
o início de modelos paradigmáticos de cuida- gicas: a da repressão e proibição, à contenda
do baseados nas denominadas abordagens da segurança pública, e o da Redução e Danos
psicossociais, fortalecidas a partir de 1988, e cuidado no território, a partir da Saúde Men-
com a implantação do Sistema Único de Saúde tal. Na prática, parece ainda não ter aconteci-
(SUS) que, no tocante a todas as suas dificul- do uma completa fusão entre os dois tipos de
dades de funcionamento, passou a garantir o políticas públicas nos termos da temática do
cuidado mínimo de saúde a todos os brasileiros uso de drogas, até o final dos anos 2000 4. Atu-
publicamente. almente, ainda é visível a influência da Psiquia-
Estudos, entretanto, apontam inúmeras tria na manutenção e sustentação das ideias
lacunas em relação ao campo de Saúde Mental repressivas da justiça e da patologização do
e as políticas sobre drogas, sendo estas últi- consumo dessas substâncias; apesar disso,
mas demarcadas por visões hegemônicas, mo- é evidente e inegável que a consolidação da
ralistas, antiproibicionistas e judicialistas, ain- Redução de Danos foi um grande avanço em
da na atualidade. No Brasil, sempre houve uma um movimento nacional, para a mudança de
tendência em considerar o uso de substâncias paradigma no cuidado, impulsionando novos
psicoativas como comportamentos delituosos, paradigmas na criação de uma política sobre
sujeitos a sanções criminais. Isso foi um dos fa- drogas democrática, participativa e inclusiva e
tores que produziu “uma importante lacuna na se opondo firmemente a toda e qualquer forma
política pública de saúde, deixando-se a ques- coerciva fruto das visões moralizantes presen-
tão das drogas para as instituições da justiça, tes nos pressupostos da “guerra às drogas”,
segurança pública, pedagogia, benemerência, que, por diferentes interesses, defende a abs-
associações religiosas” (p.40). O uso dessas tinência como única possibilidade de cuidado
substâncias perde sua complexidade quando em nome de suposto cuidado.
é avaliado como uma conduta desviante dos Entretanto, a onda dessa consolidação
padrões morais estabelecidos; frente a isso, a da Redução de Danos como movimento nacio-
única solução proposta para a regeneração da nal acompanhou toda uma conjuntura política
pessoa, além da pena, é a abstinência. de avanço no campo, tanto da Psiquiatria como
Isso é evidenciado, historicamente, e da Psicologia democráticas. As primeiras expe-
apontado em um importante estudo realizado riências com Redução de Danos tiveram início
por Varga e Campos 4. Neste, os autores fazem na Inglaterra, em 1926, onde um grupo de mé-
uma revisão sobre a trajetória das legislações dicos ingleses, preocupados com os riscos ad-
em Saúde Mental e álcool e outras drogas, de vindos do consumo de ópio e pelo sofrimento

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

e cuidado das pessoas, já naquela época, ela- No Brasil, em 1989, na cidade de Santos,
boram um documento que ficou mundialmente a epidemia da aids se disseminava entre usu-
conhecido como “Relatório de Rolleston”. Esse ários de drogas injetáveis, o que fez com que
documento continha um conjunto de recomen- médicosIII e demais equipes de saúde implan-
dações de uma comissão interministerial, cujo tassem a primeira atividade reconhecida como
ministro da saúde inglês era sir Humphrey Rol- atividade de Redução de Danos, com a distri-
leston. Ficou estabelecido, neste documento, o buição de seringas aos usuários de drogas,
direito dos profissionais (médicos ingleses) de com o objetivo de reduzir a contaminação do
prescreverem regularmente ópio e derivados a vírus HIV5 (p.25). Frente a essa iniciativa, o Mi-
pessoas dependentes dessas substâncias em nistério Público acusou as equipes de incentivo
ocasiões em que a pessoa estivesse sujeita a ao uso de drogas e as obrigaram a responder
riscos importantes. processos a despeito do resultado das ações
No tocante a todas as questões políticas de saúde ter demonstrado uma diminuição da
envolvidas, a preservação e o respeito à vida contaminação pelo HIV entre usuários, após a
dos dependentes ingleses no início do século distribuição das seringas.
XX, prevaleceu sobre as questões morais, se O movimento em defesa da Redução de
diferenciando prementemente da política de Danos foi tomando força, tanto entre os usu-
“guerra às drogas” dos Estados Unidos, a qual ários, como entre os profissionais/cuidadores.
o Brasil foi sempre signatário, modelo que tra- Em 1993, ocorreu na cidade de Florianópolis, o
ta a questão da dependência de drogas como I Seminário Nacional Sobre Aids entre os usuá-
algo a ser combatido com jurisprudência auto- rios de drogas injetáveis (UDIs). Neste evento,
ritária, julgadora, estigmatizadora e unicista, ficou evidenciado a necessidade do cuidado es-
que criminaliza e descontextualiza o consumo pecifico em relação aos UDIs. Posteriormente,
da sociedade. A droga, na política armamentis- em 1995, em Salvador, Bahia, através do Cen-
ta americana, é um inimigo que deve ser com- tro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas
batido, na defesa da construção irreal de um (CETAD) teve início pioneiramente, no Brasil, o
mundo sem drogas psicoativas. primeiro programa oficial de Redução de Da-
Entretanto, apenas no início dos anos de nos, que propôs a troca de seringas.
1980, as ações baseadas nos princípios de Em 1997, Assembleia Legislativa de São
Rolleston passaram a ser sistematizadas pro- Paulo aprovou a primeira lei que legalizou a tro-
gramaticamente na Holanda, por força e inicia- ca de seringas6, que serviu de impulso para
tiva de um movimento de usuários de drogas que outros Estados também pudessem promul-
psicoativas, que construíram uma associação, gar suas leis de forma semelhante; antes des-
pois estavam preocupados com a dissemina- sa, o profissional de saúde que fosse flagrado
ção e a contaminação das hepatites virais en- com seringas podia ser preso e criminalizado
tre os consumidores. Com o advento do vírus como traficante.
HIV, as propostas de Redução de Danos toma- É inegável o fato de que o advento da epi-
ram força entre os usuários de drogas injetá- demia da aids fortaleceu o movimento em de-
veis e passou a fazer parte de um novo paradig- fesa da filosofia e do proposito clinico-ético e
ma ético, clínico e político de cuidado.
I
Fabio Mesquita e Davi Capistrano.

vol.21, n.2, dez 2020 |113


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

político da Redução de Danos no mundo e no recursiva dos cuidados em relação à redução


Brasil. A necessidade premente de um acolhi- de danos no Brasil, que apontam momentos de
mento baseado no cuidado preventivo e huma- “mar muito tempestuoso” e outros momentos
nitário às pessoas vulnerabilizadas e usuárias de “um mar um pouco mais calmo”. No entanto,
de substâncias psicoativas demandava ações em todos esses houve a prática de uma mili-
práticas humanizadas e não apenas estratégias tância ativa para a consolidação de uma rede
ou declarações de adesão a propostas de alta de cuidado baseada na Redução de Danos, que
complexidade, como por exemplo, a exigência foi evoluindo e caminhando dos dispositivos de
de abstinência total nos tratamentos ou, ain- cuidado e distribuição de seringas para o cam-
da, elevados níveis de julgamentos e padrões po da prevenção, com objetivos mais amplos
de moralidade. As estratégias de Redução de no acolhimento das pessoas usuárias de subs-
Danos, assim, aos poucos foram se mostran- tâncias psicoativas.
do uma importante aliada ao enfrentamento da Muitos encontros e vínculos foram cons-
contaminação pelo vírus HIV, principalmente truídos nas relações que foram para muito
entre os usuários de drogas injetáveis7 . além das trocas de seringas, trocas de parcei-
A parte de todas as dificuldades e resis- ras, afetos, acolhimentos, foram se estabele-
tências encontradas, em muitos setores da so- cendo construindo horizontalidade entre os tra-
ciedade, inclusive por parte de pesquisadores balhadores, usuários, dispositivos-casa-rua. Is-
e profissionais, os programas de Redução de so ficou evidenciado nos resultados de estudos
Danos foram se fortalecendo fruto de uma lu- multicêntricos brasileiros que tiveram projeção
ta no campo ético-político e clinico dos pes- internacional, que apontaram uma diminuição
quisadores, usuários e das equipes de saúde do compartilhamento de seringas e da preva-
e assistência e justiça em todo o país. Estes lência de HIV, em contraste com o aumento do
programas de Redução de Danos e de troca de uso de preservativos por esses usuários 8-9.
seringas, paulatinamente, foram se estabele- Um fator importante de ser compreendi-
cendo como importantes estratégias e práticas do é que a sustentabilidade das redes e ações
protetivas de saúde8. de Redução de Danos possuíam bases fragi-
O período entre 1995 e 2003, foi impor- lizadas, pois a maioria estava vinculada a or-
tante para o campo de Redução de Danos, no ganizações não governamentais (ONGs), com
Brasil, quando foi possível a construção e a financiamentos de organismos internacionais,
abertura de mais de duzentos programas de dentre eles, o Banco Mundial. Com isso, mui-
Redução de Danos, que impulsionou que os tos dos projetos e propostas baseados na
trabalhadores desse campo de atividade se or- Redução de Danos sofreram interrupção ou
ganizassem em associações. Em 1997, foi for- descontinuidade.
mada a Associação Brasileira de Redução de A partir de 2003, várias das ações de Re-
Danos (ABORDA) e, no ano seguinte, a Rede dução de Danos foram transferidas e ficaram
Brasileira de Redução de Danos (REDUC). sob a responsabilidade do Governo Federal. Es-
Conforme proposto no início deste capítu- te, então passou a repassar verba para a execu-
lo, esperamos que o leitor possa ir mergulhan- ção das políticas de saúde aos estados e muni-
do nesta onda contextual e política da evolução cípios, o que provocou uma redução importante

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

dos programas de Redução de Danos no Brasil. Atenção Psicossocial (RAPS), esta passou a ser
Segundo Andrade8, em 2003, estes somavam centro de atenção às pessoas em sofrimento
279 e, em 2005, 136. mental, incluindo os usuários de substâncias.
Com o avanço das lutas, o cuidado aos Integrada ao SUS, esta rede é formada por
usuários de substâncias psicoativas passou a dispositivos diversos tais como: os CAPS e os
ter lugar e espaço ampliados nas políticas de CAPS-ad); os Centros de Convivência e Cultura
Saúde Mental, Em 2003, a o Ministério da Saú- (CCC), os Serviços Residenciais Terapêuticos
de apresentou a “Política de Atenção Usuários (SRT); as Unidades de Acolhimento (UAs) e os
de Álcool e Outras Drogas”9-10, incluindo como leitos de atenção integral em hospitais gerais e
práxis de cuidado as concepções das aborda- nos CAPS III). Além de ampliar os dispositivos
gens psicossociais defendidas pelo Sistema de cuidados em saúde mental “a articulação e
Único de Saúde (SUS) e da luta antimanicomial a integração dos pontos de atenção das redes
para os usuários de álcool e outras drogas. de saúde no território, qualificando o cuidado
Nesta ocasião o conceito de redução de danos por meio do acolhimento, do acompanhamento
vinha sendo “consolidado como um dos eixos contínuo e da atenção às urgências”11.
norteadores da política do Ministério da Saúde As políticas específicas sobre álcool e
para o álcool e outras drogas”10 (p.43). outras drogas caminharam sob três vertentes
Assim, muitas “ondas” e transformações principais que, com o decorrer dos anos, foram
ocorreram no campo das drogas quando o mo- amadurecendo e se fortalecendo sob princípios
vimento da Redução de Danos saiu da área da diferentes da política de “guerra às drogas”,
prevenção e controle das doenças sexualmente bem como do modelo clássico e hegemônico
transmissíveis (DST), incluindo a aids, e pas- de doença, substituindo-os pela Redução de
sou para área de Saúde Mental9. Embora vários Danos, sempre acompanhada pelas lutas dos
retrocessos tenham ocorrido nas propostas movimentos sociais e de Saúde Mental.
originais da Redução de Danos, quando estas Centros de Tratamentos para dependen-
passaram a fazer parte na Política de Atenção tes de álcool e outras drogas ligados a várias
Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, Universidades foram construídos na década de
do Ministério da Saúde, este tema passou a 1980, assim como associações de classe repre-
ser um ponto central na construção de um mé- sentativas deste campo, inicialmente a Asso-
todo clínico-político, juntando e atualizando di- ciação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras
ferentes dispositivos de cuidado em relação à Drogas (ABEAD), que defendia e ainda defende
Saúde Mental; colocando como ponto central a concepção de doença das dependências e,
a desconstrução dos modelos hospitalocentri- mais tarde, em 2005, outro grupo formado por
cos e a substituição desses pelas intervenções ex-membros da ABEAD e advindos também da
psicossociais como: centros de dispositivos de Reforma Psiquiátrica, Movimento Antimanico-
atenção e cuidado, como os Centros de Aten- mial e da Redução de Danos, fundando a As-
ção Psicossocial (CAPS) e Centros de Atenção sociação Brasileira Multidisciplinar de Estudos
Psicossocial para Usuários de Álcool e Outras sobre Álcool e Outras Drogas (ABRAMD), que
Drogas (CAPS e CAPS-ad). passou a atuar mais no fortalecimento das es-
Em 2011, com a implantação da Rede da tratégias de ações clinico-politica-bioética da

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Redução de Danos12. usuários a cuidarem de si mesmo.


Em 2004, no primeiro mandato do Presi- Este contexto foi agravado com a pande-
dente Luiz Inácio Lula da Silva, mais mudanças mia do Covid-19, que “escancarou” o estado
foram incluídas na área de atenção e cuidados calamitoso das políticas públicas de saúde,
aos usuários de drogas psicoativas, em espe- atingindo a população vulnerabilizada e pena-
cial, ao crack. Entre elas, houve uma mudança lizada, tanto pela desigualdade social quan-
significativa de visão, abandonando o “com- to pelas necropolíticas impostas pelo Estado.
bate às drogas”, fruto do proibicionismo, para Diante dessas fortes ameaças, tanto nas redes
a abordagem de enfrentamento através dos formais quanto informais de encontros entre as
dispositivos de cuidado. A Política Nacional pessoas usuárias de drogas, o fortalecimento
Antidrogas, assim, foi substituída pela Política das intervenções psicossociais são muito im-
Nacional sobre Drogas (PND)13, salientando a portantes, tanto no sentido de garantir o aces-
estratégia de Redução de Danos como política so da população vulnerável aos seus direitos
pública orientadora das propostas de cuidado. propostos pelo SUS, como para ampliação de
Em 2010, no segundo mandato de Lula, abordagens inovadoras criativas, inclusivas e
foi criado o “Plano Integrado de Enfrentamento de baixa exigência para toda essa comunida-
ao Crack e Outras Drogas”14, que se fortaleceu de, valorizando a apropriação de suas histórias
em 2011, no governo de Dilma Russef onde foi através do pertencimento, da escuta e do aco-
lançado o “Plano Integrado de Enfrentamento lhimento humanizados.
ao Crack”15. Estes planos foram bastante cri-
ticados por todos os defensores da política de Intervenções psicossociais e Redução de
Redução de Danos, pois tira do alvo a proble- Danos
mática das drogas lícitas como álcool, tabaco,
Apesar dos inúmeros reveses, desafios
medicações psicotrópicas, de incidência e pre-
e lutas coletivas ocorridas, ao que avançaram
valência muito maior que a cocaína e de seu
e retrocederam, em defesa de uma política plu-
derivado principal no Brasil, o crack.
ral, multiversa e humanitária de álcool e outras
Com o golpe ocorrido em 2016, que drogas, baseadas nas propostas de Redução
afastou a Presidenta Dilma Rousseff, houve de Danos, conforme contextualizado anterior-
uma clara violação do Estado Democrático de mente foi possível, ao longo dos anos, obser-
Direito no Brasil, e assume o governo o Vice- var um avanço do ponto de vista de politicas
-Presidente Michel Temer. A partir disso, a po- sobre drogas de uma vertente puramente proi-
lítica nacional sobre drogas começou a retro- bicionista para ampliação de cuidados basea-
ceder. Em 2019, com a vitória de Jair Messias dos em estratégias psicossocias com o adven-
Bolsonaro para a presidência do país, o retro- to dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
cesso dessas política foi evidente. Atualmente e de álcool e outras drogas (CAPS-ad), implan-
temos a política do SUS ameaçada, inclusive a tação dos consultórios de/na rua. Vale lembrar
da área de Saúde Mental e de álcool e outras que estes avanços passaram a ser duramente
drogas e, consequentemente, os cuidados rela- ameaçados no atual governo, que retrocedeu
cionados à Redução de Danos, principalmente nos avanços de cuidados aos usuários de subs-
as propostas emancipatórias que convidam os tâncias, com as propostas de internações em

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

comunidades terapêuticas como cuidado de em intervenções psicossociais denominada


atenção primária aos usuários. Terapia Comunitária Integrativa (TCI). Trata-se
Além disso, inúmeras outras propostas de de uma abordagem brasileira de cuidado que
cuidado formais ou informais foram girando em defende que as trocas de experiências huma-
torno dos trabalhos baseados na Redução de nas realizadas de maneira circular e horizontal
Danos. A maioria deles baseadas em aborda- contribuem para o enfrentamento das dificulda-
gens psicossociais, cuja finalidade é agregar e des a partir do saber coletivo da comunidade17.
trocar experiências baseadas em ações junto Nosso objetivo, conforme já mencionado ante-
às comunidades, no sentido de que elas pró- riormente, é fazer algumas aproximações da Te-
prias estejam implicadas e busquem seus ca- rapia Comunitária especificamente no cuidado
minhos para resolução dos seus dilemas. Além de drogas junto à Redução de Danos.
disso, o olhar psicossocial é uma “luneta”, que
ao invés de reduzir ou rotular, amplia e valori- Terapia Comunitária Integrativa e as
za a existência dessas pessoas, convidando-as aproximações com a Redução de Danos
para a apropriação de suas histórias, que, na
A Terapia Comunitária (TCI) é uma moda-
maioria das vezes, é invisibilizada por represen-
lidade brasileira de cuidado proposto pelo psi-
tações sociais moralistas, estigmatizadoras ou
quiatra e antropólogo cearense Adalberto Bar-
de viés judicializador16.
reto na década de 1980, do Departamento de
Além disso, as abordagens psicossociais Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina
partem dos pressupostos de que a construção da Universidade Federal do Ceará. Airton Barre-
da mente é social e de que a comunidade pos- to, irmão de Adalberto, advogado e militante na
sui seus próprios saberes. Essa visão, trans- área dos direitos humanos, trabalhava na Fave-
portada para área de álcool e outras drogas, la de Pirambu, uma das maiores da região de
pressupõe que este fenômeno não pode ser en- Fortaleza e encaminhava as pessoas em sofri-
carado de forma isolada, ou “per se”; ao contrá- mentos psíquicos para serem cuidadas na Uni-
rio, está diretamente relacionado às inúmeras versidade por Adalberto, que as avaliava e, se
condições suscetíveis nas quais as comunida- necessário as medicava . Entretanto, após al-
des estão inseridas e expostas. guns atendimentos este psiquiatra avaliou que,
A valorização ímpar da construção de vín- ao invés da comunidade ir até a Universidade,
culos também é um ingrediente significativo deveria- fazer o contrário: junto com alguns es-
para as abordagens psicocossociais, que cui- tudantes de Medicina, foi até a Favela de Pa-
da, ao invés de rotular com diagnósticos pré- rambu. Lá, observou, junto com sua equipe,
-estabelecidos ou julgamentos morais. Neste que os moradores do local necessitavam muito
sentido, com o desenvolvimento das práticas mais do que medicação: viviam inviabilizadas,
psicossociais em Saúde Mental envolvendo o desprezadas pelas políticas públicas e desa-
cuidado com as pessoas em sofrimento por creditadas de suas próprias forças18.
uso de substâncias psicoativas, várias inter- Assim, nasceu a Terapia Comunitária In-
venções com pessoas vulnerabilizadas foram tegrativa, que se desenvolveu e passou a
se desenvolvendo, trazendo importantes contri- ser uma proposta metodológica de ação que
buições. Aqui terá destaque a prática baseada permite construir redes sociais solidárias de

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

promoção da vida e mobilizar os recursos e individual e coletiva e responsável também


competências dos indivíduos e das famílias in- para construção de identidade; assim é um
seridas nas comunidades. Um dos objetivos da recurso que permite somar e multiplicar os
Terapia Comunitária é lidar com os sofrimentos potenciais de crescimento individuais para o
da vida cotidiana, reforçando as forças internas enfrentamento dos vários problemas sociais;
das pessoas no enfrentamento das situações • Pedagogia da ação-reflexão de Paulo
desafiadoras, sem se prender em diagnósticos Freire: a Terapia Comunitária Integrativa é
e patologias. O espaço de partilhas e trocas uma proposta de trocas de experiências
desta terapia, ativa forças individuais e coleti- aprendidas e advindas do pensamento de
vas que auxiliam a lidar com as ansiedades e Paulo Freire; isto é, as regras que a estruturam
os estresses paralisadores que trazem riscos asseguram a circularidade e a horizontalidade
tanto à saúde física, quanto à psíquica. O po- da comunicação, em que cada um possui o seu
tencial de encontro e trocas coletivas apontam saber, respeitando sempre a palavra do outro,
várias estratégias de superação dos sofrimen- deixando-se interpelar por uma nova leitura
tos e estimula a comunidade a buscar, no seu de uma mesma problemática. A fala do outro
próprio interior, “saídas conjuntas” para suas desperta em mim a minha história e possibilita
dificuldades, troca essa que é mediada por fa- que nos aproximemos uns dos outros. Também
cilitadores, que são as equipes de terapeutas de inspiração Paulo Freiriana, é a valorização
comunitários que, de maneira horizontalizada, dos recursos pessoais e das raízes culturais,
valorizam as histórias de vida das pessoas, re- considerando que o aprendizado libertador
forçando as competências locais e culturais, somente ocorre quando há respeito aos saberes
estimulando o abandono da vitimização e valo- socialmente construído pela experiência de
rizando o acolhimento, as troca e a escuta18. vida.
Resumidamente os eixos teóricos bási- As rodas de Terapia Comunitária Integra-
cos da Terapia Comunitária Integrativa estão tiva são mediadas horizontalmente pelas equi-
embasados nos seguintes marcos18: pes de terapeutas comunitários e podem ocor-
• paradigma sistêmico: relação de rer, tanto em espaços públicos quanto priva-
interdependência entre as várias partes e o dos, nas comunidades, nas ruas, praças, onde
todo; estão às pessoas dispostas a conversar em
• resiliência: o enfrentamento conjunto locais e horários combinados. Nos encontros,
das dificuldades produz um saber para superar nada é pré-determinado ou exigido além da
as adversidades familiares e contextuais; possibilidade de encontrar pessoas e com elas
trocar sentimentos. No entanto, essas rodas
• Teoria da Comunicação: todo o nosso
seguem algumas etapas que são previamente
ato tem valor de comunicação. Na Terapia
discutidas com todos os presentes, com dura-
Comunitária Integrativa, o interesse está mais
ção aproximada de duas horas:
no interrogativo do que no afirmativo e nas
relações de todos os atos comunicacionais - o acolhimento: é a ambientação favorá-
verbais ou não verbais; vel para que as pessoas possam chegar e se
sentir acolhidas; normalmente é formada uma
• Antropologia Cultural: a cultura é
grande roda para que os presentes possam
vista como uma verdadeira fonte de riqueza

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

olhar uns para os outros. No início, as equipes abandono, negligência, violência, tanto inter
dão as boas vindas, normalmente com uma como intra familiar e consumo problemático
música sugerida pela comunidade; e há a cele- de substâncias, mortes por overdose, envol-
bração de datas de aniversários e a discussão vimento no tráfico, prisões das pessoas com
de algumas regras, como a de silêncio, quan- droga são bastante frequentes nas rodas e,
do cada pessoa estiver falando, a de falar da quando estes surgem, as equipes precisam es-
própria experiência usando o verbo na primeira tar preparadas para organizar os diálogos sem
pessoa; não dar conselhos, nem julgar; e res- julgamentos.
peitar a história de cada um. A roda é um espa- Quando o tema do dia escolhido está
ço de escuta. especialmente relacionado ao sofrimento da
• a escolha: é a definição do tema a ser pessoa e ou familiares com consumo pro-
debatido no dia. Isso se dá no início, quando a blemático de substâncias psicoativas, todos
equipe de cuidadores pergunta quem gostaria os esforços das equipes estão no sentido de
de falar sobre o que está lhe afligindo, tirando trabalhar horizontalmente com a comunidade,
o sono e/ou incomodando. exercitando a escuta generosa, sem julgamen-
• a contextualização: é a fase em que são to, regra, aconselhamentos ou definições de
solicitadas mais informações sobre o assunto metas e nem focalizando a abstinência, por
para que o tema possa ser contextualizado. exemplo; condutas estas semelhantes às das
equipes que estão trabalhando com as estraté-
• a problematização: seguido à
gias de Redução de Danos.
contextualização, ocorre quando a pessoa,
em silêncio e apenas escutando a reflexão Nesse caso, a pessoa é convidada a falar
do grupo, sobre quem já passou por situação de si, sempre na primeira pessoa: “eu”. É con-
semelhante e o que fez para superar ou lidar vidada a falar livremente para o grupo sobre
com ela; como, por exemplo, as situações de: o que está incomodando em relação aos seus
perda, traição, vida na rua, relações familiares, vínculos consigo mesma, com os outros e tam-
prisão, brigas, facções, uso de substâncias bém com as substâncias que utiliza. A ênfase
psicoativas, abandono, etc. é dada a história de vida dela, com quem vive,
do que gosta, de qual é a sua rede social, se
Esta etapa final propicia que todas as pes-
está trabalhando e como está os sentimentos
soas possam fazer suas trocas de histórias e
dela naquele momento. Ao permitir a fala sobre
organizarem suas experiências através da apre-
si mesmas, muitas histórias surgem antes do
ciação e valorização e, em seguida, o grupo se
contato com as substâncias. Após o relato, a
prepara para o encerramento do encontro, uti-
equipe agradece a disponibilidade do narrador
lizando rituais de agregação, de conotação po-
de sua história e questiona o grupo sobre quem
sitiva e de valorização da força e coragem de
já passou por experiência semelhante a que ou-
cada um, como por exemplo, todo o grupo abra-
viu e o que fez para lidar com ela. Invariavel-
çar em pé as pessoas que trouxeram seus te-
mente, no grupo comunitário várias outras pes-
mas, acolhendo-as, etc. Os participantes falam
soas apontam que estão vivendo ou já viveram
do que estão levando de aprendizado coletivo
situações semelhantes e este sentimento de
dessa troca de experiências com a roda.
pertença faz com que a pessoa que relatou seu
Temas como tristeza, medo, solidão,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

próprio caso se sinta acolhida e não julgada. estou sendo julgada porque eu bebo de-
Este momento é bastante intenso, a comunida- mais, eu sou acolhida, as pessoas não
de troca entre si histórias que organizam suas olham para mim como se eu fosse um
experiências. As narrativas abaixo ilustram co- “pé de cana”, eu me sinto querida mes-
mo as pessoas são acolhidas em várias rodas mo, então este sentimento de ser escu-
de Terapia Comunitária Integrativa, em que o tada e valorizada na minha história, me
tema escolhido foi o sofrimento relacionado ao ajudaram muito a parar de beber como
uso de uso de substâncias. eu bebia. Era um buraco ou um vazio que
“Eu vim aqui nesta roda pra falar da batia dentro de mim, que a bebida ajuda-
droga e falei sobre a minha história on- va eu não sentir” (Depoente C);
de o uso está presente, mas eu não sou “Sabe de uma coisa, eu já fiquei in-
apenas isso”; “Eu vim porque me falaram ternada, já fui presa vendendo maconha
da roda, confesso que vim meio receoso e pedra e em todo lugar que passei tinha
porque já estive muitas vezes no NA, e gente falando o que era para eu não fa-
quando chegava lá eu ficava maluco de zer, ai eu ia e fazia o contrário. Aqui na
tanto ouvir falar de droga, cheguei a sair roda foi diferente, ninguém nunca disse
de lá e ir usar maconha, cocaína ou be- o que eu deveria ou não fazer, em rela-
ber várias vezes, mas quando cheguei cá ção ao uso dos troços, se interessaram
e falo sempre de mim, e falar na primeira em saber de mim, da minha pessoa, eu
pessoa me ajuda bastante: - primeiro eu também aprendi sobre o meu próprio
preciso me responsabilizar por tudo que eu, escutando os outros, hoje eu diminui
faço, sinto e falo; segundo não culpabili- muito o uso, por minha própria conta”
zar os outros quando faço uso de crack; (Depoente D);
terceiro não achar que é o crack que me “Eu trabalhei mais de cinco anos
domina, não, sou eu que vou atrás dele” na noite, como michê, para pagar minha
(Depoente A) faculdade e colocar comida em casa por-
“Eu passei a ver as coisas de ou- que minha mãe cuida de uma Irma mi-
tra forma aqui na roda, quando ouço os nha que é excepcional, somos nós três,
outros falando também dos seus proble- meu pai caiu no mundo”. A vida na noi-
mas eu percebo que não sou apenas eu te é bruta, a cocaína me deu força para
o perdido e abandonado. Antes eu me aguentar trabalhar, eu fui parando sozi-
xingava, me dava pontapés, mas sempre nho quando decidi deixar de trabalhar
depois que bebia a cachaça, de uns tem- na noite, não dava mais, essa roda me
pos para cá eu presto mais atenção em acolhe me escuta muito mais do que em
mim, no que é conversado aqui, não é a casa” (Depoente E);
tentação, sou eu mesmo que aprendi a “Eu quero hoje aqui pedir ajuda nes-
beber cedo demais com meu pai, inclu- ta roda, para um dor que estou sentin-
sive e isso virou um hábito, que eu fazia do que dói, dói e dói, perdi dois irmãos
mecânico” (Depoente B); já por envolvimento com o tráfico, um
“Aqui nas rodas eu sinto que não foi morto por causa de dívidas que foi

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

fazendo e o outro no mês passado foi na roda. Várias pessoas dizem que a roda é o
morto em uma briga na porta de um bar, único lugar onde ela podem tanto falar, como
onde ele segundo nos contaram vendia escutar.
cocaína e crack. Agora ficamos apenas Embora a Terapia Comunitária Integrativa
eu, minha irmã e meus pais, sem rumo, trabalhe com as pessoas em grupos, nas comu-
porque os rapazes um com 32 anos e nidades, acolhendo os temas diversos, espe-
o outro com 29 morreram em três anos cialmente ao tratar o uso de substancias psico-
perdemos eles dois. Estou muito deprimi- ativas se aproxima de estratégias de Redução
da” (Depoente F); de Danos, principalmente no que diz respeito
“Eu quero trazer aqui para vocês o à valorização da pessoa, ao não julgamento, à
que eu sinto por estar morando na rua: a escuta e ao acolhimento, à baixa exigência em
pessoa que vive na rua usa a droga para relação à frequência e metas de uso dessas
continuar viva, comigo foi assim, porque substâncias.
é muita situação triste que a gente vê en- Assim, a Terapia Comunitária Integrativa é
tão o uso é como se fosse uma diversão um espaço de fala, de acolhimento e escuta ge-
para aquelas desgraceiras todas” (Depo- nerosa e, desde 2004, através de uma parceria
ente G); realizada como Secretaria Nacional de Políticas
“Eu quero conversar com vocês so- sobre Drogas (SENAD), capacitou mais de 800
bre minha família, embora eu saiba que trabalhadores da área de álcool e outras dro-
todos em casa, preferissem que eu não gas e passou a fazer parte da Rede SUS e da
usasse drogas, eu uso assim mesmo, Estratégia de Saúde da Família. Várias equipes
não fui destruído por isso, trabalho, não que estão nos consultórios de rua são também
tiro nada de ninguém, compro o bagulho terapeutas comunitários.
com meu dinheiro e uso, ai eu adotei os A Terapia Comunitária Integrativa ganhou,
meus parceiros de rua como meus pa- finalmente, status de Política Pública do SUS,
rentes” (Depoente H); em 2017, com sua inclusão Política Nacional
“A pessoa que vive na rua de cara de Práticas Integrativas (PNPIC)19 e na Portaria
já é rotulada como usuária de drogas, va- GM nº 84920 do Ministério da Saúde. A Terapia
gabunda, desocupada, todos passam e Comunitária, juntamente com outras 19 práti-
não te vê você é como se fosse um lixo, cas “ampliam as abordagens de cuidado e as
essa sensação me maltrata, eu nem faço possibilidades terapêuticas para os usuários,
uso de nada, meus colegas usam, mas garantindo maiores integralidade e resolutivida-
eu não sonho em sair da rua com minha de da atenção à saúde” (p.08).
namorada” (Depoente I);
Os relatos que surgem nas rodas relacio- Considerações Finais
nadas ao consumo de substâncias são acolhi- Terapia Comunitária é uma estratégia de
dos, debatidos e a atenção voltada para a pes- atenção à saúde referência territorial, consi-
soa e não apenas para o uso de substâncias derando o território não apenas um ponto geo-
psicoativas possibilita que sua história possa gráfico, mas um local de pertencimento do in-
ser contada e valorizada, suportada e dividida divíduo, aonde estão seus familiares, amigos,

vol.21, n.2, dez 2020 |121


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

colegas e outros vínculos importantes para ele; =S1413-81232019000301041


enfim, todas as suas subjetividades. Isso já é 5 Mesquita C., Fábio “AIDS entre usuários de drogas in-
um ponto de partida para mudar a lógica do cui- jetáveis na última década do século XX, na Região Me-
dado, tradicionalmente centrado nos dispositi- tropolitana de Santos São Paulo Brasil. [Tese de Douto-
vos de isolamento e segregação social, como rado]. Faculdade de Saúde Pública da Universidade de
hospitais, clínicas confessionais ou prisão. São Paulo. São Paulo; 2001. (on line). [acesso em: 9 out
2020. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/
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disponiveis/6/6132/tde -31032020 -110246/publico/
rarquia de papéis e as pessoas são apenas DR_462_Mesquita_2001.pdf
pessoas desprovidas de rótulos. São rodas de
6. São Paulo. Lei nº 9.758. Autoriza a Secretaria da Saú-
conversa entre pessoas que compartilham su-
de a distribuir seringas descartáveis aos usuários de
as angústias e sofrimentos, mas também suas
drogas”. Diário Oficial do Estado de São Paulo. 1997;
potências, conquistas e resiliências. Tudo isso, 179(107):seç1. (on line). [acesso em: 9 out 2020] Dis-
dentro de um contexto em que se pactuam es- ponível em: http://dobuscadireta.imprensaoficial.com.br/
cuta generosa, não julgamento, respeito e a ati- default.aspx?DataPublicacao=19970918&Caderno=Exe
tude de colocar-se no lugar do outro. As princi- cutivo%20I&NumeroPagina=1
pais metas dessa abordagem são os desenvol- 7. Cruz M. Redução de Danos no cuidado do Usu-
vimento do autocuidado, da responsabilidade ários de Drogas. Revista Aberta SENAD. Brasília;
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culo XX. Ciênc. Saúd Colet. 2019; 24(3):1041-1050. Saúde (SUS). Brasília; 2011. (on line). [acesso em: 8 set
(on line). [acesso em 9 out 2020]. Disponível em: ht- 2020]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
tps://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html

|122 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

12. Silva FFL. Afirmar a clínica com pessoas que usam


drogas desde um lugar de resistência. In: Ramminger T,
Silva M. (orgs.). Mais substâncias para o trabalho em
saúde com usuários de drogas. Porto Alegre: Rede Uni-
da; 2014.

13. Brasil. Ministério da Justiça. Resolução no 03/GSI-


PR/CH/CONAD. Aprova a Política Nacional sobre drogas.
Brasilia; 27 out 2005. (on line). [acesso em 8 set 2020].
Disponível em: https://www.justica.gov.br/central-de-
-conteudo/politicas-sobre-drogas/cartilhas-politicas-so-
bre-drogas/2011legislacaopoliticaspublicas.pdf

14. Brasil. Casa Civil. Decreto nº 7.179. Institui o plano


integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas,
cria o seu comitê gestor” Brasilia; 20 mai 2010. (on line).
[acesso em: 8 set 2020]. Disponível em: https://legisla-
cao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=DEC&numero=7179&
ano=2010&ato=602ETRU5EMVpWT8d6

15. Brasil. Casa Civil. Plano integrado de enfrentamento


ao crack e outras drogas. Brasília; 7 dez 2011.

16. Silva EA, Ronzani TM. Prevenção como responsabi-


lidade coletiva: a importância de políticas públicas e a
redução de anos. In: Diehl A, Figlie NB. Prevenção ao uso
de álcool e drogas, o que cada um de nós pode e deve
fazer. Porto Alegre: Artmed; 2014.

17. Barreto AP. Terapia Comunitária passo a passo. For-


taleza: Gráfica LCR; 2005.

18. Barreto AP, Barreto MCR, Oliveira D, Barreto IC, Abda-


la MP. A inserção da Terapia Comunitária Integrativa (TCI)
na ESF/SUS. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza;
2011. 82p.

19. Brasil Ministério da Saúde Manual de Implantação de


Práticas Integrativas e Complementares no SUS. Brasí-
lia; 2018. p.8. (on line). [acesso em: 8 set 2020]. Disponí-
vel em: 89.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicaco-
es/manual_implantacao_servicos_pics.pdf

20. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 849, de 27


de março de 2017 “Inclui a Terapia Comunitária Integra-
tiva à Política Nacional de Práticas Integrativas e Com-
plementares. Brasília; 201. (on line). [acesso em: 8 set
2020]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/
saudelegis/gm/2017/prt0849_28_03_2017.html

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

As Diferenças entre Queixa e Demanda no Trabalho


de Redução de Danos: possibilidades para uma escuta
clínica em espaços heterogêneos

The Differences between Complaint and Demand on Harm Reduction’s Work: possibilities for a clinical
listening in heterogeneous spaces

Rodrigo AlencarI

Resumo Abstract

O presente artigo aborda os aspectos políticos da história da Re- This article approaches the political aspects Brazilian Harm Re-
dução de Danos no Brasil, bem como algumas especificidades de duction history, as well as some particularities of its practice, as
sua prática, a saber, a escuta em meio a troca de insumos e as es- the clinical listening among the distribution of preventive gears and
tratégias de vinculação e acolhimento no território. Destacamos o the strategies of bonding and caring on territory. The period which
período de maior reflorescimento da Redução de Danos no Brasil, starts at the year of 2010, when a bunch of health policies on seve-
a partir dos anos de 2010, quando uma série de políticas públicas ral areas started to respond the appeal for face the crack, consis-
em diversos âmbitos começam a articular respostas ao clamor ted in a time of expansion of psychonalitical theories among Harm
pelo combate ao crack, e às cenas de uso em diferentes capitais Reductors. It is on this context that we target to expose and refine
do Brasil. É nesse contexto que apontamos para a circulação de the theory which has been developed by means of the work among
teorias oriundas da psicanálise por meio dos Redutores de Danos the users on the streets. Finally, we highlight the meaning of clini-
e apoiadores, possibilitando a aplicação e atualização de referen- cal listening, building a difference between the complaint and the
ciais teóricos nos encontros que acontecem no território. Por fim, demand on the listening of the drug users, in a way to make possi-
apontamos a importância de se poder lançar mão de uma escuta ble a practice of caring with a subjacent refinement, as well as on
clínica, operando uma diferença entre queixa e demanda na escu- the process to the other services and treatments.
ta dos usuários atendidos, de modo a possibilitar uma prática de
cuidado com um refinamento subjacente, assim como formas de Keywords: Harm reduction; Drugs; Psychoanalysis.
encaminhamento mais precisas.

Palavras-chave: Redução de danos; Drogas; Psicanálise.

Introdução
sob ataque de agentes da segurança pública,

A
o longo dos últimos trinta anos no Bra- passou a gozar de certa notoriedade e reflores-
sil, tivemos a difusão e consolidação cimento no início da última década.
das práticas de Redução de Danos. O
É importante situarmos que a partir de
que antes ocorria por meio da sociedade civil
2010 a retórica anticrack tomou de assalto os
organizada, muitas vezes de modo marginal e
discursos eleitorais e os editoriais dos grandes
I
Rodrigo Alencar (r.alencar@gmail.com) é psicanalista e Doutor em Psicologia
Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP),
órgãos de imprensa; o combate ao crack pau-
Professor convidado na Pós-Graduação da Fundação Escola de Sociologia e tou debates dos candidatos à presidência e ao
Política de São Paulo (FESP), atua em consultório particular e é membro da
Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD). governo do Estado de São Paulo, funcionando

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

como uma espécie de para-raios ideológico assim, o trabalho dos redutores de danos se-
com respostas similares em todo o espectro gue com suas dificuldades específicas que de-
político1. pendem mais ou menos da oficialidade estatu-
Após a vitória de Dilma Rousseff para a tária. Dessas dificuldades, podemos destacar:
Presidência da República, que comportou um os desafios impostos pelo território, suas cor-
significativo corpo profissional alinhado aos relações de força, seus eventos intempestivos,
princípios da Reforma Psiquiátrica e da Redu- a violência que assola quem vive na rua e a
ção de Danos em sua gestão, pudemos reco- desarticulação dos diferentes setores de polí-
nhecer certa continuidade de avanços na ofi- ticas públicas, como o da saúde, assistência
cialidade das práticas de Redução de Danos, social e segurança pública.
diminuindo a sua carga de marginalidade e ga- Com um certo esforço diante do tumul-
nhando corpo em diversos serviços de Saúde tuado contexto de trabalho que nos encontra-
Mental por todo o território brasileiro. mos, gostaria de adentrar algumas especifici-
Apesar de todo o pânico moral e do dades da Redução de Danos e quais desafios
crescimento das comunidades terapêuticas, a essas especificidades suscitam. Para iniciar-
Redução de Danos aumentou sua presença na mos, é importante lembrar que a Redução de
assistência de caráter territorial dos usuários. Danos compõe uma perspectiva liberal, dado
Pudemos perceber o medo ser sucedido pela que o seu trabalho de assistência toca dire-
constatação da ignorância, visto que os méto- tamente no direito à liberdade de escolha, de
dos de tratamento tradicionais só faziam insis- modo muito estratégico, aspecto importante de
tir em seus fracassos — o que possibilitou que ser ressaltado, dado que a Redução de Danos
algumas experiências e projetos extremamente não confunde conduta antissocial com o uso de
ricos e inovadores pudessem surgir em meio uma substância ilícita.
ao turbulento cenário políticoII. É comum que uma postura conservado-
Com a implementação de redutores de ra, comum à de muitos usuários de substâncias
danos em serviços como os Centros de Aten- ilícitas, estranhe e rechace esse refinamento,
ção Psicossocial – álcool e drogas (CAPS-ad) dado que, desse ponto de vista, o uso de subs-
e as implantações dos Consultórios de Rua, tância ilícita seria merecedor de toda sorte de
as ações de caráter mais democrático ganha- abandono e/ou punição. Quando o usuário tem
ram certa oficialidade. Não nos livramos das esse posicionamento a respeito da substância,
contendas morais, mas testemunhamos uma isso diz muito mais a respeito de si, do que pro-
abertura e o reconhecimento de lacunas no sa- priamente da substância.
ber do poder instituído, incorporando práticas Essa questão entre Redução de Danos
inovadoras na formulação de novas políticas e política foi muito bem abordada por Denis
públicas. Petuco2, que identificou um histórico de pos-
Essa incorporação não está assegurada turas heterogêneas em relação às drogas até
e sabemos da onda obscurantista que se so- a metade do século passado no Brasil. O que
brepõe às instituições acadêmicas, serviços de é apontado por este autor, é que estratégias e
saúde e à sociedade brasileira em geral. Ainda visões próprias a Redução de Danos na histó-
II
Dentre os projetos, podemos citar o “De Braços Abertos”, realizado pela ria do Brasil, não detinham interpretações de
Prefeitura de São Paulo.

vol.21, n.2, dez 2020 |125


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

pertencimento a determinadas matizes no es- que cultivaram uma leitura autodidata de Freud,
pectro político. Isso ocorreu até o momento em além dos psicanalistas e pesquisadores.
que a questão das drogas é incorporada como Sobre a aproximação entre psicanálise
bandeira por grupos de esquerda que possuem e Redução de Danos, podemos citar passagens
uma postura progressista. elogiosas e outras nem tanto.
Já a relação entre psicanálise e Redu- As práticas e princípios de Redução de
ção de Danos, é marcada por uma coloração Danos constituem um pilar importante na forma
nacional, visto que, a Saúde Pública brasilei- como as drogas são inscritas simbolicamente
ra, possui a marca da atuação de profissionais em nossa sociedade. Sua contribuição consis-
que se posicionaram de maneira antagônica à te em trazer para um discurso mais amplo os
Ditadura Militar e que trabalharam na constru- meandros da cultura de uso de drogas das ruas
ção de duas grandes reformas que podemos e a desinstitucionalização da associação entre
considerar como peças-chave para a Redução drogas e marginalidade. Essa contribuição tam-
de Danos no Brasil. Nos referimos à Reforma bém opera de modo a desmistificar a droga en-
Sanitária, que culmina na criação do Sistema quanto instância não fálica na vida do sujeito.
Único de Saúde (SUS), e a Reforma Psiquiátri-
É importante frisar que, na história, as
ca, responsável pelo movimento de fechamen-
práticas e as pesquisas em torno da Redu-
to dos grandes manicômios e pela criação de
ção de Danos no Brasil contêm um potencial
uma rede de atenção psicossocial com caráter
de contribuição até mesmo pedagógico para
comunitário.
os psicanalistas que se dispõem a se debru-
A psicanálise, com seu forte acento ar- çar sobre o tema. Isso porque o trabalho de
gentinoIII, teve importante participação na cons- pesquisadores, aliados aos relatos de experi-
trução da Reforma Psiquiátrica brasileira, de ências de campo, possibilita a transmissão de
modo que, quando as drogas foram ganhando uma perspectiva das cenas de uso, seus rituais
espaço no debate público e sendo objeto de e seus meandros, ainda inéditos, porém fun-
foco de ações políticas, parte dos atores des- damentais para muitos psicanalistas que não
ta Reforma foi endossando gradualmente uma possuem tais experiências em sua trajetória.
postura progressista na questão das drogas. O teor desses trabalhos nos permite romper o
viés próprio de lugares de classe e raça, além
Encontros e desencontros de certa carga moral que inevitavelmente sur-
ge em um trabalho ou outro, dificultando uma
Não é absurdo afirmar que, em um con-
apreensão e a construção de uma prática que
texto internacional, a Psicanálise opera alheia
possa se firmar como inovadora diante dos pro-
à Redução de Danos e, por vezes, até mesmo
blemas decorrente do uso de substâncias.
a critica como algo pouco imbuído de valor clíni-
co2. A articulação entre psicanálise e Redução Como exemplo desse olhar enviesado,
de Danos tem traços de um produto nacional. podemos citar o posicionamento do psicanalis-
Opera e se constitui por meio dos redutores ta lacaniano irlandês Rick Loose 3, que afirma
que, ou passaram por cursos de psicologia ou “...você diria a um alcoolista crônico que
está estirado no chão, bêbado e fora de
Tendo dentre os seus maiores nomes, Antonio Lancetti, falecido no ano
III
si, para moderar a bebida, para refinar o
de 2016.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

seu paladar e beber apenas “apellation investimentos, pedidos de informações


controlée”IV? Isso é improvável! Ao invés e outros. Estas trocas permitem, mui-
disso nós apelaríamos para a interven- tas vezes, a entrada de um terceiro, que
ção do desejo do analista que é um de- rompe com uma relação dual, intensa,
sejo de obter absoluta diferença” (p. 11). exclusiva e mortífera com as drogas. Um
Sobre a posição de Loose3, podemos des- circuito libidinal/pulsional se estabelece
tacar algumas divergências importantes; a pri- e se atualiza, respaldado por uma remon-
meira delas consiste no estabelecimento de tagem fantasmática” (p. 29).
prioridades: alguém bêbado e estirado no chão
precisa de cuidados que estão aquém da rela-
Muitas vezes, é por meio desses obje-
ção analítica. Para isso, ao menos no contexto
tos — garrafas, cachimbos e seringas — que
brasileiro, não são raras as situações em que
se estabelece a transferência que torna o tra-
são os agentes comunitários de saúde e redu-
balho possível, além de desmistificar a subs-
tores de danos que estão dispostos a auxiliar
tância enquanto tabu. Seria um grande erro, no
alguém intoxicado e vulnerável na rua. Em se-
contexto do tratamento analítico, tratar um cha-
gundo lugar, se, para esse usuário, passar a
ruto como apenas um charuto, ou um cachimbo
beber com mais qualidade for mais importante
como só um cachimbo.
do que beber de modo a se expor a prejuízos
Se os objetos não detêm seu sentido
desnecessários além da bebida, isso seria de
em si, simplesmente por serem o que são. Por
grande ganho clínico — inclusive pelo viés psi-
que os apelos e queixas dos usuários, dete-
canalítico. Inaugurar-se-ia aí uma relação me-
riam? É nesse ponto que gostaríamos de inserir
nos onerosa com seus prazeres.
a importância da construção e interpretação de
Esse processo de trabalho nos parece
uma demanda no trabalho de Redução de Da-
mais interessante do que simplesmente dizer o
nos. Seria o que Jean Oury 5 chama de “subja-
que alguém deve ou não fazer, principalmente
cência”. Essa subjacência corresponde ao que
em um momento no qual essa pessoa tem pou-
opera numa relação sem que se passe pelo
cas condições de ouvir tais recomendações.
dito.
Já a psicanalista Marta Conte4 apresenta
As relações que são construídas, os tra-
uma perspectiva mais generosa a respeito des-
jetos percorridos, as histórias que são confia-
sa articulação, afirmando que tais estratégias
das e as perspectivas que se fecham ou se
servem como ofertas de transferência, visto
abrem dependem de uma certa sensibilidade à
que a distribuição de insumos não deixa de ser
uma subjacência. Assim que, se existem usuá-
uma via de acesso ao usuário por meio daquilo
rios que se sentem ofendidos por seu uso não
que mais lhe importa naquele momento: o uso
ser recriminado, isso corresponde apenas ao jo-
de drogas. Segundo a autora,
go relacional que faz por meio do uso. É comum
‘...o que iniciou pela troca de se- e importante, e por isso a psicanálise pode ser
ringas tomou significação de laço. (...) de tão grande auxílio, o modo como as drogas
os usuários, ao sentirem-se investidos, se aproximam de um código social da sexuali-
passaram a trocar olhares, cuidados, dade. De modo que, dependendo de contexto
IV
Termo usado para situar a safra da qual a bebida foi feita, bem como seu e classe social, suas práticas sejam mais ou
controle de qualidade.

vol.21, n.2, dez 2020 |127


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

menos expostas. Mais ou menos moralizadas. que com as suas estereotipias identitárias e
falsetes, pode resultar no entendimento de um
É parte do trabalho do redutor de danos
descaso, imperícia, ou até no não reconheci-
desfazer o mal-entendido de que a Redução de
mento do sofrimento como ele se apresenta.
Danos é um pacto pelo uso, ao contrário é sim
Isso pode afetar inclusive os psicanalistas. O
um pacto pelo cuidado. Para muitos usuários,
sentimento de pertença em relação ao seu sa-
esse pacto só existe por meio da promessa de
ber e suas insígnias de reconhecimento pode
abstinência e, nesse sentido, é que o pacto
resultar em resistência diante desses casos.
pelo cuidado se constrói por vias que podem
Como bem apontou Waks6, fazem do paciente
ocorrer paralelas ao uso. Diferentemente da si-
alguém psicanaliticamente inadequado.
tuação em que a promessa de abstinência se
torna uma grande armadilha, se aderida pelo É sabido que os psicanalistas buscam ou-
profissional, eliminando toda a possibilidade de vir além da queixa; mas isso nem sempre se
subjacência e fixando os significantes da rela- entrega fácil, o que torna necessário pagar com
ção na monotonia do “usei” e “não usei”. O a presença pelo próprio ofício, de modo a omitir
redutor de danos pode operar com a suspen- suas posições a respeito do sofrimento daque-
são dessa queixa sem enfrentá-la diretamente, le que se queixa e se conformar a esperar pelo
para que ela possa ecoar de outra na forma momento oportuno, ou seja, abrir caminho para
construção de uma demanda que envolva as- a construção de uma demanda. Os supostos
pectos particulares da relação entre o usuário grandes objetivos de uma análise, como a éti-
e o redutor. ca do desejo7, ou a singularidade do sujeito se
colocam aquém ou além da tarefa de receber
O pedido de parar de usar drogas costu-
alguém com problemas com drogas 8.
ma surgir com um endereçamento familiar; algo
que, estabelecida a transferência, terá de ser Já no contexto das ruas, a queixa que
atualizado para uma demanda que vá além da por vezes é inexistente e geralmente pode sur-
droga, como queixa. Porém, esse primeiro tra- gir como fome, uma ferida na perna, o acesso
jeto é um dos mais difíceis de ser percorrido, a algo que a rua não permite, ou mesmo na ne-
visto que a paixão e a fé na própria dor, alicer- cessidade de material para uso da própria dro-
çadas na rigidez identitária de usuário, tendem ga, só torna a demanda possível quando não
a pensar a droga como um problema e a sua estanca a relação por meio da necessidade. Ou
ausência como uma solução, dificultando que seja, aquele que oferece algo, põe em perspec-
se traga à baila fatores que possam ser impor- tiva um ponto de interesse mais além do obje-
tantes na dinâmica da adicção. to, que, se houver sorte, se deslocará ao longo
da relação.
Esse é um ponto em comum para os re-
dutores de danos e para os psicanalistas que Não se trata de pensar melhores meios
recebem usuários em seus consultórios. de salvar um usuário ou de garantir sua saí-
da da rua, mas de interditar a ilusão de que a
droga basta. Até mesmo a demanda de insu-
Redução de Danos e clínica psicanalítica em
mo pode ser objeto de manejo, dadas as con-
consultório privado
dições e os tensionamentos que uma relação
Não ter sua patologia reconhecida, ainda permite sustentar. Por mais que a distribuição

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de insumos faça parte dos programas de pre- ponto cego nas políticas de Redução de Danos
venção, é fundamental que esteja sempre à é o fato de que o dano não necessariamente
disposição dos profissionais para manejarem ocorre por mero descuido ou falta de informa-
segundo o critério que julguem relevante no tra- ção, mas pode ser buscado ativamente pelo
balho com os usuários. usuário, vivido e praticado como uma escolha.
Consentimos com a visão de Conte4, Esta foi a lição freudiana por meio do conceito
ainda que não necessariamente reconheçamos de pulsão de morte e dos impasses na noção
uma remontagem fantasmática, como exposto de princípio do prazer 9. O indivíduo não só bus-
no fim da citação que fizemos de seu trabalho, ca prazer e evita o desprazer: esses dois ele-
dado que a posição do sujeito em relação à fan- mentos podem se mesclar, de modo que não
tasia inconsciente seja um dos objetivos mais seja possível desassociar um de outro. No ca-
caros ao tratamento analítico. Deste modo, a so dos usuários, não é raro que o prazer da
própria Redução de Danos conserva um limi- droga esteja psiquicamente associado ao dano
te dentro de sua perspectiva política: a crítica que ela causa.
ao modelo institucional fechado se opera como Considerando a carga simbólica de algu-
um ideal de cura que alguns usuários tentem mas substâncias ilícitas, não é surpresa que
incorporar, da mesma forma que incorporam o um usuário busque o seu uso justamente por
ideal de abstinência. meio do seu potencial de dano. Sobre isso,
Nesse ideal, o direito de usar pode se para além da mescla pulsional, podemos reco-
confundir com a obrigatoriedade da evitação nhecer como suporte dessa pulsão, uma força
da abstinência, produzindo uma falsa dualida- superegoica que busque ativamente a punição;
de na qual o praticante de Redução de Danos esta recai sobre si e sobre o “outro” endereça-
seria mais bem resolvido em relação às dro- do pelo sujeito. Esse outro, ocupando o lugar
gas do que o abstinente. Portanto, ressaltamos de referência no campo social, tende a viver a
que não se trata de transmitir um modelo ideal autodestruição do usuário como um ataque a
de como um usuário deve lidar com as drogas, si — algo que podemos facilmente identificar
mas se servir dos fatos que vão se apresentan- em familiares de usuários, o que nos remete à
do como possíveis ao longo da trajetória. Te- importância da demanda de amor em jogo nes-
mos a crítica à colocação da abstinência como ses casos.
saída única e exclusiva para o uso crônico, mas
não negamos a importância de que o sujeito A Redução de Danos e suas potencialidades
possa realizar essa escolha. Nesse sentido, em um campo heterogêneo
entendemos que a Redução de Danos, ao ata-
Se as modalidades de internação, ou mes-
car um establishment moralista que priva os
mo dos hospitais-dia, propõem o tratamento e a
usuários de seus direitos, sempre detém a pos-
cura, as ações de Redução de Danos propõem
sibilidade de abarcar os usuários que podem
uma abordagem que vise ao cuidado; porém,
se beneficiar de suas técnicas, ainda que não
é importante que não se confunda uma estra-
pactuem necessariamente com o seu posicio-
tégia de abordagem com uma modalidade de
namento no campo social.
tratamento. Ao longo de nossa primeira pesqui-
O que também pode se caracterizar como sa sobre o tema10, também pudemos encontrar

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

serviços que inserem a estratégia de Redução tratamento. As possibilidades de tratamento


de Danos em sua política de tratamento; nes- que respeitem os direitos dos usuários são di-
se contexto, a estratégia auxiliava no período versas e as práticas Redução de Danos pos-
de inserção do usuário na instituição. O que suem condições de operar na grande maioria
presenciamos era extremamente raro naquele delas.
tempo, por ter ocorrido antes de uma certa re-
modelagem nas políticas públicas de atenção
Referências
às drogas — quando diversos serviços públi-
cos passaram a implementar a Redução de Da- 1. Alencar, R. Por que a guerra às drogas? Do crack na
nos como parte integrante de seu programa, política ao crack do sujeito. [Dissertação]. Pontifícia Uni-
vesidade Católica. São Paulo; 2012.
com redutores contratados e ações territoriais
periódicas. 2. Petuco, D. O pomo da discórdia? drogas, saúde e po-
der. Editora CRV; 2019.
Portanto, alguns serviços de Centro de
Atenção Psicossocial especializados em álcool 3. Loose, R. (n.d.) Toxicomania and psychoanalytic tre-
e drogas (CAPS-ad) vinham compondo uma das atment: double trouble. Korn. Cent. Freudian Anal. Res.
2016. (on line). [acesso em: 20 jan 2015. Disponível em:
propostas mais avançadas de tratamento aos
http://jcfar.org.uk/wp-content/uploads/2016/03/Toxi-
usuários; isto por mesclarem o tratamento da comania-and-Psychoanalytic-Treatment-Double-Trouble-
questão das drogas com as estratégias de Re- -Rik-Loose.pdf.
dução de Danos, além de não necessariamente
4. Conte, M. Psicanálise e Redução de Danos: articula-
alicerçarem todo o tratamento em uma propos- ções possíveis? Rev. da Associaç. Psic. de Porto Alegre.
ta disciplinar. Contudo, é importante ressaltar 2003; 24:41-60. (on line). [acesso em 26 abr 2020]. Dis-
que a precariedade e o baixo investimento nos ponível em: http://www.appoa.org.br/uploads/arquivos/
serviços públicos de saúde, no contexto bra- revistas/revista24-1.pdf .

sileiro, impedem essa modalidade de atenção 5. Oury, J. O coletivo. São Paulo: Ed. Hucitec; 2009.Alen-
de oferecer instalações e efetivo corpo profis- car, R. O atendimento aos usuários de drogas nos ser-
sional proporcional à demanda por tratamen- viços de CAPS-A.D. [Monografia]. Faculdades de Guaru-
lhos. Guarlhos; 2008.
to que se faz necessária, bem como enfrenta
dificuldade quanto à possibilidade de oferecer 6. Waks CEM. Toxicomania e psicanálise: a clínica psica-
nalítica da toxicomania. [Dissertação]. Pontifícia Univer-
resguardo aos pacientes que se encontram em
sidade Católica de São Paulo. São Paulo; 1998.
condições mais vulneráveis.
7. Lacan, J. O seminário: livro 7, a ética da psicanálise.
Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar; 2008.
Considerações finais
8. Antonietti, M. El tóxico em los márgenes del psicoaná-
Considerando o exposto, gostaria de fri- lisis. Buenos Aires: Ed. Lazos; 2008.
sar que, apesar dos atuais prejuízos e ameaças
9. Freud, S. Além do princípio do prazer. São Paulo: Com-
às políticas progressistas no Brasil atual, a Re-
panhia das Letras; 2010.
dução de Danos ainda pode operar com cada
vez mais refinamento de técnica em suas fren- 10. Alencar, R. Alencar, R. O atendimento aos usuários
de drogas nos serviços de CAPS-ad. [Monografia de con-
tes de atuação. Entretanto, não nos deixemos
clusão de curso]. Faculdades de Guarulhos (UNIESP).
enganar com uma falsa dicotomia entre Redu- Guarulhos; 2008.
ção de Danos “contra” outras modalidades de

|130 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Rodas de Redução de Danos “RD: Cadê Você”?

Circles of dialogue of Harm Reduction “RD: Where Are You?”

Luciane RauppI, Marta ConteII

Resumo Abstract

Este artigo apresenta a experiência das Rodas de Conversa “Redu- This article reports the experience of the circles of dialogue Harm
ção de Danos: Cadê Você?” que ocorrem desde dezembro de 2017 Reduction: “Where Are You?” that have been taking place since
na cidade de Porto Alegre. Por meio das rodas de conversa reuni- December 2017. Through the circles methodology, collectives ha-
ram-se indivíduos e coletivos visando rearticular o movimento de ve been held to reactiveated Harm Reduction until it became the
Redução de Danos, resultando na volta à ativa do Fórum Estadual State Forum for Harm Reduction in Rio Grande do Sul (FERD-RS
de Redução de Danos do Rio Grande do Sul (FERD-RS), movimen- acronym in portuguese), a social movement in which activists, pro-
to social no qual participam ativistas, profissionais, estudantes fessionals, students and those interested in Harm Reduction. A
e interessados no tema. Apresenta-se uma breve história desta brief history of this strategy in the state is presented and the dis-
estratégia no Rio Grande do Sul e o desmonte desta política. O ob- mantling of this policy that accompanied the setbacks in policies
jetivo das “Rodas” é reunir pessoas engajadas com a Redução de on drugs, mental health and social assistance. The objective of the
Danos como ética do cuidado, estratégia clínico-política e diretriz circles is to bring together people engaged with Harm Reduction
de trabalho, de forma a construir possibilidades de resistência e such as ethics of care, clinical-political strategy and work guide-
intervenção. Elegeu-se o método da Roda como ferramenta meto- line, in order to build possibilities of resistance and intervention;
dológica para facilitar o exercício da democracia e da cogestão, based on the method of the “Wheel”, the circles of dialogue enable
descritas e analisadas no texto a partir de intervenções realizadas the exercise of democracy and co-management, and in this text
no território. Discutem-se os problemas de sustentabilidade desse some interventions made are described and analyzed. The proble-
espaço e as estratégias de atuação política utilizadas, e ressalta- ms of sustainability and strategies of collective spaces of clinical-
-se a importância de o FERD-RS se manter como uma “trincheira” -political action are discussed and the importance of FERD-RS is
de resistência e espaço de inventividade para que a Redução de maintained as a “trench” of resistance and space of inventiveness
Danos siga forte e se adaptando às novas demandas e cenários so that the Harm Reduction remains strong and adapts to new
das políticas públicas sobre álcool e outras drogas. demands and public policy scenarios on alcohol and other drugs

Palavras-chave: Redução de danos; Método da roda; Movimento Keywords: Harm reduction; Wheel method; Social movement.
social.

Introdução

E
este artigo apresenta a experiência do Fó-
I
Luciane Raupp (lucianemraupp@gmail.com) é psicóloga (UFRGS), Mestre
em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), Doutora em Saúde Pública pela rum Estadual de Redução de Danos do Rio
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), pós-
-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Grande do Sul (FERD-RS) que reúne ativis-
Federal de Santa Catarina (UFSC), foi professora visitante do Department
of Sciences da Utrecht University (UU-Netherlands), é membro do Grupo de tas, profissionais, estudantes e interessados na
Pesquisa Clínica da Atenção Psicossocial e Uso de Álcool e outras Drogas da
UFSC e atual presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos discussão sobre políticas e ações de cuidado
sobre Drogas (ABRAMD).
tendo por base a Redução de Danos (RD), com-
II
Marta Conte (martacte@gmail.com) é psicóloga (UNISINOS), Mestre em Psi-
cologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul preendida de forma ampliada. Após uma breve
(UFRGS) e Doutora em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP) e atua como docente e orientadora convidada nos reflexão sobre a trajetória da Redução de Danos
cursos de Especialização e Residência Integrada da Escola de Saúde Pública
da Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul. neste estado, busca-se compreender o papel

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

ocupado por esse fórum e refletir sobre as Rodas Começa a ser articulada no Brasil, inicialmente,
de Conversa ”RD: Cadê Você?”, ação desenvolvi- como uma estratégia de prevenção para o com-
da desde 2017 como dispositivo de acolhimento bate à disseminação do vírus HIV entre usuários
de quem atua com esta abordagem, em um con- de drogas injetáveis (UDI), passando, posterior-
texto de desmonte das políticas públicas sobre mente, a ser considerada de forma mais ampla.
álcool e outras drogas. Atualmente, a Redução de Danos é com-
As rodas de conversa são desenvolvidas preendida e pode ser operada através de três
tendo por inspiração teórico-metodológica o Mé- dimensões: como ética do cuidado, estratégia
todo da Roda1, como forma de compreensão e clínico-política e diretriz de trabalho. A ética do
ferramenta de análise da experiência do coleti- cuidado aponta para o respeito às singularida-
vo, geridas a partir do exercício da democracia e des, às possibilidades e ao desejo de cada su-
da cogestão. Este trabalho toma como referência jeito ou coletivo. Como estratégia clínico-política,
teórica a articulação entre a Clínica Ampliada, a entende-se a política como uma atividade reflexi-
Psicanálise e a Redução de Danos no campo da va que orienta uma ação num coletivo, portanto,
Saúde Coletiva. que convive com a ética em defesa da vida, ética
da cidadania e dos direitos humanos e a ética do
Trajetórias da Redução de Danos no Rio Grande desejo. E, como diretriz de trabalho, a Redução
do Sul de Danos se oferece como um método, no senti-
do de methodos, caminho e, portanto, não exclu-
Novas formas de cuidado dirigido a pessoas
dente de outros4:
com problemas relacionados ao uso de drogas
que se diferenciassem do discurso médico-psi- “...pode estar no fazer de qualquer profis-
quiátrico de orientação eugênica, que toma por sional do campo das políticas públicas ao
base a norma da abstinência2, surgiram no Brasil transversalizar as ações do cuidado com
a partir do final da década de 1980, mais espe- pessoas que usam álcool e outras drogas,
cificamente a partir do que ficou conhecido como com intervenções que passem por propi-
“a experiência de Santos”. ciar o estabelecimento de novas formas de
relação com a drogas, fortalecendo o pro-
Conforme Petuco3, vozes dissonantes ao
tagonismo e promovendo a capacidade de
modelo hegemônico no campo das drogas exis-
transformação”5 (p. 153).
tiam desde a década de 1970, em muito, liga-
das aos ventos da contracultura e sob influência Durante a década de 1990 a Redução de
da Psicanálise. No entanto, uma transformação Danos se expandiu no Brasil e, em torno de 200
maior no campo das práticas surgiu de fato na Programas de Redução de Danos (PRDs) foram
esteira das transformações ocorridas durante o criados com o apoio do governo federal, via Minis-
processo de redemocratização do país, que de- tério da Saúde – Programa de DST/Aids, impulsio-
ram origem à Reforma Psiquiátrica, mas, sobre- nados pela organização dos redutores de danos
tudo, frente à necessidade de controlar a disse- e usuários de drogas em associações e coletivos
minação do vírus HIV entre usuários de drogas nacionais. O Rio Grande do Sul foi um dos esta-
injetáveis. Nesse processo, estava aberto o cam- dos pioneiros a implantar a Redução de Danos,
po para uma abordagem mais humanizada e não de forma mais estruturada, por meio da criação
estigmatizante, denominada Redução de Danos. do primeiro PRD da região, em 1995, mesmo ano

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

da implantação do primeiro implantado no Brasil estado foi o Centro de Referência para o Asses-
na cidade de Salvador, Bahia4. Antes deste mar- soramento e Educação em Redução de Danos da
co, alguns municípios do estado já vinham desen- Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul
volvendo suas primeiras experiências em práti- (CRRD-ESP/RS) que, desde 1999, ocupava um
cas e equipes de Redução de Danos, por meio papel importante como aglutinador de experiên-
de financiamentos vindos de editais do Progra- cias, ponto de encontro e estudo com a realiza-
ma Nacional de DST/Aids, o que possibilitou o ção de ações diversas, como o Grupo de Estudos
surgimento de experiências importantes, embora sobre Redução de Danos, ativo até hoje.
marcadas por descontinuidades devido à depen- Simoni e colegas6 atribuem às descontinui-
dência dos editais6. dades nos financiamentos o principal motivo para
A Redução de Danos no Rio Grande do Sul a desarticulação dos programas, fator também
foi criada e mantida tanto por iniciativas de or- apontado por Rigoni e Nardi8 ao referirem que,
ganizações não governamentais (ONGs), quanto durante os três anos de realização de seu estu-
governamentais, com variações quanto a quanti- do, várias ações de Redução de Danos surgiram,
dade de investimentos e tempo de manutenção enquanto outras acabaram. Os PRDs que conse-
das ações. A instabilidade que marcou o traba- guiam uma durabilidade maior sofriam com a pre-
lho das equipes deveu-se a fatores sobretudo carização do trabalho e com a constante incer-
de cunho político, mas também por questões teza de recursos para sua manutenção6. Em um
de ordem moral, ideológica, técnica ou religiosa. mapeamento da Rede de Atenção Psicossocial
Um fator que provocou uma influência acentua- (RAPS), realizado em 2011, foram identificados
da nesse cenário ocorreu com a descentralização apenas 11 PRDS, demonstrando uma redução
do financiamento federal para programas ligados expressiva do quadro de ações. De acordo com
à prevenção de HIV/aids. O estado, assim como esses autores, esse cenário seria explicado pe-
no resto do país, seguiu a esteira do movimento la mudança de rumos dos investimentos que, de
de municipalização das ações de saúde que, a 2007 a 2010, passaram a priorizar investimen-
partir de meados de 2000, passam a ser respon- tos em leitos hospitalares e vagas nas chamadas
sabilidade dos estados e municípios, deixando o “Comunidades Terapêuticas”.
investimento na área de drogas na dependência Passado esse período de retração, mudan-
das diferentes orientações de poder local. Con- ças vindas com a gestão que assume o estado a
forme levantamento realizado por Rigoni e Nardi7, partir de 2011 redesenharam as formas do cui-
no mês de maio de 2006, o Rio Grande do Sul dado em Saúde Mental por meio do fortalecimen-
contava com 26 programas/ações em Redução to da RAPS. Em 2014, foi aprovada a portaria
de Danos em funcionamento. Destes, 15 PRDs que estabeleceu a Redução de Danos como dire-
eram ligados a municípios e os demais estavam triz das políticas da Atenção Básica, DST/aids e
vinculados a ONGs. Na Região Metropolitana de Saúde Mental e instituiu recursos para a criação
Porto Alegre, havia 9 programas/ações financia- de “Composições de Redução de Danos”, criando
dos. Além desse quantitativo, os autores referem assim um meio para financiar equipes mínimas
a existência de vários encontros e fóruns que para trabalho em cenas de uso de drogas, vincu-
discutiam o tema. Nesse cenário, um ator funda- ladas à Atenção Básica9. Segundo dados divulga-
mental para a qualificação das experiências no dos informalmente pela Secretaria de Saúde do

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Estado, o Rio Grande do Sul contaria atualmen- ABRAMD-RS propiciou uma reaproximação entre
te com 33 equipes Composições de Redução de pessoas que trabalhavam na área de drogas e
Danos10. A criação dessa forma de financiamento que constatavam um vácuo nas discussões so-
da Redução de Danos foi importante para a con- bre Redução de Danos no estado e a necessida-
tinuidade de ações em cenas de uso – contexto de de fortalecer essas ações. O reaquecimento
de ação de outro equipamento importante na his- orquestrado por esse encontro deu origem à pri-
tória mais recente da Redução de Danos no es- meira Roda de Conversa “RD Cadê Você?”, re-
tado, as equipes de Consultório na e da Rua as alizada em dezembro de 2017 na Universidade
quais, embora não atuando de forma específica Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A denomi-
com a questão das drogas, têm a Redução de nação “RD Cadê Você?” foi proposta como pro-
Danos como uma de suas diretrizes de atuação. vocação, para chamar os atores da Redução de
A partir de 2006, com a criação do coletivo Danos no estado, que estavam desmobilizados
Balance de Redução de Danos e Riscos na ci- e com pouquíssimos espaços de atuação. Essa
dade de Salvador, a abrangência da Redução de primeira experiência gerou outros encontros que
Danos se ampliou, passando a promover ações ocorrem até hoje, bem como a rearticulação do
de conscientização, testagem e apoio a experiên- FERD-RS. Por sua vez, a reunião em forma de fó-
cias difíceis em contextos festivos, com o intuito rum abriu espaços para a ampliação das Rodas
de estimular à reflexão, ao autocuidado e conhe- para outros contextos e a ocupação de espaços
cimento sobre as substâncias comumente utili- de controle social e participação em editais.
zadas nesses contextos. Atualmente atuam dois
coletivos no Rio Grande do Sul - Coletivo Changa A escolha do método
e Coletivo Lótus -, além de iniciativas indepen-
A escolha de um método para as Rodas de
dentes realizadas por coletivos como o Movimen-
Conversa assumia o desafio de acolher pesso-
to Nacional da População de Rua (MNPR), que
as que vinham de diferentes contextos, necessi-
desenvolve ações de forma autônoma.
dades, experiências, trajetórias e inserções com
relação à Redução de Danos. E, também, visava
FERD-RS: o (re)nascimento de um coletivo compor na dimensão do coletivo o reconhecimen-
O Fórum Estadual de Redução de Danos do to das vivências subjetivas e o exercício da coges-
Rio Grande do Sul possui uma trajetória carac- tão. Considerou-se, como assinala Lebrun12, que,
terizada por diferentes momentos e alianças, as no contemporâneo, os efeitos do individualismo,
quais refletiram distintas conjunturas. Segundo próprio do capitalismo, permeiam as subjetivida-
dados informais11, surgiu em 2004 como Fórum des e podem dificultar a reunião das pessoas em
Metropolitano de Redução de Danos, atuando co- torno de algo comum que faça sentido para elas.
mo catalisador de ações e atores até 2006. De A concepção de Clínica Ampliada é uma fer-
2010 a 2012, os atores se rearticularam como ramenta conceitual para pensar a dimensão de
fórum, o FERD RS. Após uma pausa de dois anos, escuta e da ação próprias à Redução de Danos.
de 2014 a 2015, houve uma nova organização, Na Clínica Ampliada13 considera-se o saber po-
em torno da Frente Nacional Drogas e Direitos pular, a cultura, as crenças e as experiências de
Humanos, período após o qual ficou inativo. cada pessoa, grupo ou instituição, visando o pro-
Em 2017, a realização do 1° Seminário da tagonismo dos sujeitos, em uma narratividade

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

singular do trabalho, construída em referência a de poder. Campos1 buscava modos de análise e


um coletivo. A perspectiva da Redução de Danos gestão de equipes da saúde de forma autoges-
sintoniza com essa concepção na medida em tionária e democrática, nesse sentido propôs a
que se abre às: função Paidéia, que influenciou a formulação do
“...diversas práticas e saberes e assume o Plano Nacional de Humanização. Nessa visão, a
sentido do acolhimento, a afirmação dos democracia é um produto social que se constrói
direitos das pessoas que usam álcool e na prática e depende da correlação de forças vin-
outras drogas, com a possibilidade de (re) das entre movimentos sociais e poderes institu-
construção de suas vidas, com autonomia ídos. Para tanto, é fundamental construir espa-
e a capacidade de fazer escolhas adequa- ços de poder compartilhado, abrindo brechas e
das para si, abrindo possibilidades de esta- construindo meios para alterar os esquemas de
belecer laços com o mundo”14 (p. 12). dominação e produzir novos contratos, questões
centrais para reerguer a Redução de Danos no
estado do Rio Grande do Sul.
A aproximação da Psicanálise com a Redu-
A operacionalização das Rodas visava propi-
ção de Danos15 potencializa estes dois campos.
ciar discussões e decisões por meio de relações
A Psicanálise surge como uma das estratégias
horizontais, sem coordenação ou hierarquia de
possíveis para lidar com os efeitos resultantes
saberes. Os locais de realização eram rotativos,
das tensões presentes entre os sujeitos singu-
visando facilitar o acesso de diferentes coletivos.
lares e seu universo social16; e a Redução de
Os objetivos foram sendo construídos coletiva-
Danos busca mobilizar recursos subjetivos e so-
mente, tais como: mapear ações; ampliar con-
ciais: “formas de cuidado a partir de caminhos
ceito de redução de danos; estabelecer trocas
muito singulares. Um cuidado que ao cuidar de si
de práticas; fortalecer a rede; e construir estraté-
traz efeitos na relação com o outro”5, sendo es-
gias para ampliar interlocutores e, assim, o diálo-
sa, também, a base das práticas em Saúde Cole-
go com segmentos da sociedade que não conhe-
tiva que promovem redes “quentes”, convocando
ciam essa estratégia.
à responsabilidade e à legitimidade dos desejos
singulares no laço social. A primeira roda de conversa ocorreu no final
de 2017, no Instituto de Psicologia da UFRGS. Foi
A articulação destas referências conceituais
divulgada via redes sociais e contou com a pre-
colocou-nos em posição de dialogar com o Méto-
sença de interessados no tema e representantes
do da Roda, escolhido como guia para as Rodas
de instituições e coletivos, tais como: Movimento
de Conversa, como lugar de reflexão crítica, pro-
Nacional de População de Rua (MNPR); ABRAMD;
dução de subjetividade e constituição de sujei-
Rede Multicêntrica da UFRGS; do Conselho Re-
tos. Esse método possibilita ativar a ampliação
gional de Psicologia local (RP/RS); Escola Porto
de condições favoráveis à democratização dos
Alegre; trabalhadores de CAPS-AD e profissionais
laços e facilita a reinvenção das possibilidades
de outros municípios. A partir desse primeiro e
históricas de mudança1 em torno do tema da Re-
potente encontro, constatou-se a importância de
dução de Danos.
manutenção desse espaço e as Rodas seguiram
O Método da Roda foi criado a partir da crí-
ocorrendo, marcadas pela diversidade de públi-
tica às concepções dominantes, nas quais co-
cos, ao mesmo tempo em que foram constituindo
mando e controle caracterizam a concentração

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

um núcleo operacional que se responsabilizava que se repete e, portanto, coloca-se como base
pelo desenvolvimento das atividades. do trabalho em questão, como aos acontecimen-
De 2017 a 2019 as Rodas funcionaram tos que produziam diferenciações, delimitando as
com base na discussão de um tema principal que discussões empreendidas e os rumos tomados
emergia durante os momentos de apresentação pelo coletivo.
e análise de conjuntura; os momentos finais do Como o espaço das rodas buscava prio-
encontro eram reservados para acordos e enca- rizar os vínculos e a análise das conjunturas e
minhamentos. A partir de 2019, frente à diminui- contextos implicados nas práticas, muitas foram
ção da presença mensal de novos participantes as questões que surgiam durante os encontros.
e de pessoas do interior do estado (que não con- Algumas se repetiam tais como: O que somos?
tavam com auxílio financeiro para deslocamento), Quais concepções de Redução de Danos compar-
buscou-se novas estratégias para dar dinamici- tilhamos? Que práticas desenvolvemos? Quais
dade às Rodas e atrair um público que ainda não são nossas estratégias e compromissos? Nesse
conhecia a Redução de Danos. Passou-se então processo, cada participante teve espaço para ex-
a desenvolver Rodas temáticas bimensais, com por sua trajetória, apontando para algo comum:
a presença de convidados para expor temas re- a importância de apreender questões da macro
lacionados a políticas e práticas sobre drogas e e da micropolítica na análise das práticas e con-
seus desdobramentos. A 14ª Roda ocorreu na se- textos; necessidade de dar visibilidade à Redu-
de do MNPR, no formato de sarau, com o tema ção de Danos; o foco na pessoa e não na droga;
“Resistência”; a 15° Roda de Conversa RD Cadê o antiproibicionismo como princípio; o embasa-
Você? debateu sobre “Os Desafios da Redução mento das experiências na ciência, na vida práti-
de Danos no Brasil”; a 16ª Roda, o tema “Guerra ca e na política; a busca de inserção em espaços
às Drogas e o Genocídio da Juventude Negra” e de controle social, entre outras.
a 17ª o tema “30 Anos de Redução de Danos no Nas Rodas foram analisadas: as Leis de
Brasil”. drogas, a criminalização, o racismo e interseccio-
As Rodas Temáticas têm trazido novos sim- nalidades, as políticas higienistas de internação
patizantes, ampliando a discussão sobre as polí- compulsória, e a dificuldade de acesso à rede de
ticas de drogas e cuidados, bem como valorizan- saúde e de abrigagem. Constatou-se a dificulda-
do a produção de parceiros que têm se ocupado de de sustentar, nas equipes de saúde e inter-
do tema da Redução de Danos, em diferentes setoriais, a diretriz de trabalho da Redução de
perspectivas, e que muito tem colaborado com o Danos devido aos preconceitos das equipes.
avanço conceitual do tema e suas intervenções Conforme colocado anteriormente, a conti-
clínico-políticas. nuidade da realização das Rodas ensejou a re-
tomada do FERD-RS como uma iniciativa perma-
Relato da experiência das Rodas de Conversa nente. Assim, seguiu-se com reuniões internas
do núcleo organizador que planejou e desenvol-
Visando exemplificar a diversidade de te-
veu ações durante 2018 e 2019, bem como a
mas trabalhados durante as já 17 rodas realiza-
realização de quatro encontros regionais prepa-
das, a seguir serão apresentados acontecimen-
ratórios para a coorganização da segunda edi-
tos significativos, registrados nas atas resultan-
ção do Encontro Estadual “Outras Palavras sobre
tes dos encontros. Busca-se dar ênfase tanto ao

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Álcool e Outras Drogas”, financiados pelo Conse- Frente a esta demanda, o núcleo operativo
lho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul do FERD-RS se organizou para estar semanalmen-
(CRP/RS). Em paralelo ao desenvolvimento de no- te presente na ocupação. Lá, recebiam deman-
vas atividades, seguiu-se com a realização das das para ações de Redução de Danos, assumin-
Rodas em diferentes formatos e espaços. Essa do um papel educativo, característico da ação do
abertura aproximou a equipe de duas demandas redutor de danos, que envolve um engajamento
que geraram ações importantes. ativo na comunidade, buscando compreender a
A seguir são apresentadas as experiências realidade das pessoas que usam drogas, a exis-
de apoio e consultoria do FERD-RS ao MNPR, por tência de práticas de uso danosas e das doenças
meio de ações na Ocupação Zumbi dos Palmares infecciosas relacionadas, bem como mapear re-
e a assessoria à Escola Porto Alegre (EPA) de for- des sociais e dificuldades comunitárias, desem-
mação em Redução de Danos. penhando um papel de educador em saúde7. Al-
guns integrantes do núcleo operativo do FERD-RS
participavam também das assembleias de orga-
- ocupação liderada pela população de rua
nização do espaço e de planejamento da relação
“Aldeia Zumbi dos Palmares”
do coletivo com a cidade. Através da participação
Em março de 2018, integrantes do MNPR do MNPR nas Rodas, se conseguiu potencializar
foram expulsos pela Guarda Municipal de Porto a dinâmica que os próprios integrantes da ocu-
Alegre de uma praça pública e, como reação, ocu- pação organizaram para lidar com seus usos de
param um terreno baldio do poder público munici- substâncias, sem prejudicar o espaço de luta. A
pal em frente à praça da qual foram despejados. Redução de Danos serviu como ferramenta pa-
Essa breve ocupação, que teve duração de cin- ra reduzir danos e riscos relacionados, inclusive,
co meses, foi a primeira totalmente formada por à criminalização do movimento social e de seus
pessoas em situação de rua. Foi uma experiência integrantes.
potencializadora da autonomia dessas pessoas,
Segundo a fala de um dos integrantes da
caracterizada pelo viés comunitário e coletivo no
Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares, durante
trabalho para lidar com as dificuldades cotidia-
uma Roda:
nas de uma ocupação e da sobrevivência de seus
“A ocupação em si é redução de da-
integrantes, entre as quais se destacavam os
nos, porque a gente tem que se respon-
usos de drogas por parte de alguns ocupantes
sabilizar por várias frentes: o não uso de
e a necessidade de consensuar sobre estas prá-
drogas, a solicitação de doações, a limpe-
ticas no espaço da ocupação, constantemente
za do terreno e a nossa própria higiene,
ameaçada de dissolução. O uso de drogas dentro
o cuidado com as crianças, a preparação
da ocupação poderia atuar como um fator de de-
dos alimentos, cuidado com a segurança
sagregação e de visibilidade negativa, diminuindo
no portão, a organização de assembleias
as chances de seu sucesso. Frente a esse desa-
de atividades culturais e festivas e a con-
fio, integrantes do MNPR que participavam das
versa com parceiros e com a guarda mu-
Rodas de Conversa RD Cadê Você? pediram au-
nicipal” (Relato informal de residente da
xílio ao FERD-RS para o desenvolvimento de uma
ocupação).
intervenção da diretriz da Redução de Danos na
luta por moradia. Nesse processo de luta articulada,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

aconteceram diversas atividades de visibilidade de Porto Alegre, sendo a única entre as 99 es-
da ocupação, tais como: rodas de conversa de colas existentes a atender exclusivamente a po-
Redução de Danos; cinema ao ar livre; debates pulação em situação de rua. Tem um histórico
diversos; articulação com a UFRGS e serviços de lutas pela sua manutenção e uma direção e
públicos; ações de geração de renda, entre ou- corpo docente que se identificam com o acesso
tras. Observou-se que a diretriz da Redução de à educação como direito fundamental, embora há
Danos foi estratégica na Ocupação Aldeia Zumbi anos sofra ameaças de ser fechada pelas suces-
dos Palmares, e que se qualificou com a rede sivas gestões municipais.
de apoio, acesso à educação, saúde, cultura e O pedido de assessoria se originou de uma
ampliou as formas de “ler o mundo”, como falou demanda da diretora da EPA durante uma reunião
uma professora e apoiadora do MNPR. Pode-se do FERD-RS no início de 2019. Nesta, foi argu-
afirmar que todas as atividades organizadas na mentado que no projeto político pedagógico da
ocupação e realizadas com apoio da rede de par- EPA constava a Redução de Danos como diretriz,
ceiros contribuíram para fortalecer a identidade mas que os professores não entendiam no que
dos coletivos, que hoje seguem articulados. ela modificava a abordagem do tema com alunos,
Após cinco meses foi decretada a desocu- além de terem dificuldades em pensar a apren-
pação do terreno e a “Aldeia Zumbi dos Palma- dizagem para pessoas usuárias de substâncias
res” acabou. Hoje, a maioria de seus integrantes psicoativas. Segundo o relato, os professores
não está mais em situação de rua, o que sinaliza precisavam de apoio para apreender uma outra
que a luta pelos direitos sociais mobiliza recur- lógica sobre os usos de substâncias psicoativas,
sos e potencializa os envolvidos. A maioria dos do tratamento em liberdade e da construção de
ocupantes seguem articulados ao MNPR e a ini- estratégias para a redução do uso para além do
ciativas de geração de renda como o “Jornal Boca paradigma da abstinência, dado o público com
de Rua”, a iniciativa de produção e venda de pão o qual trabalhavam. Existiam também relatos de
artesanal “Amada Massa”, entre outras. O MNPR aumento das situações de violência envolvendo
se mantém vinculado ao FERD-RS e esta parti- alunos e professores, o que trazia dificuldades
cipação tem colaborado para abertura de novas adicionais ao grupo.
frentes para ações de Redução de Danos, vincu- Após uma série de reuniões de planejamen-
ladas ao exercício pleno da cidadania. Esta expe- to foram organizadas seis oficinas de Redução
riência resultante de toda a organização social de Danos voltadas a professores, residentes,
desenvolvida na ocupação está referendada por alunos e direção escolar; além de um Sarau de
outras pesquisas realizadas com população em integração. Durante as oficinas, surgiu uma de-
situação de rua17, que confirmam que a participa- manda para a produção de ‘verbetes’ pelo gru-
ção em movimentos sociais promove a inserção po, os quais serviriam como dispositivo para dar
na vida política e social de forma a dar visibilida- visibilidade e fazer circular entre professores e
de às reivindicações dessa população18. alunos suas impressões e pensamentos, forta-
lecendo o grupo e oferecendo um produto que
- assessoria à Escola Porto Alegre (EPA) refletisse a experiência da EPA à comunidade. A
A Escola Porto Alegre (EPA) está vinculada partir do surgimento dessa ideia, os encontros
à Secretaria Municipal de Educação do Município posteriores visaram à produção desses verbetes

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de forma coletiva, resultando em uma apresen- o testemunho, trata-se de construir uma respos-
tação do resultado final do trabalho no sarau de ta possível à crise da verdade que se instalou
final de ano realizado para encerrar o trabalho de nas sociedades modernas, uma saída da posição
assessoria do FERD-RS na EPA. Há a intenção de passiva na qual o sujeito é colocado, no encontro
encaminhar esse material para publicação. com uma realidade que ele não dispõe de discur-
Compreende-se que utilizar a Redução de so para decifrar.
Danos como diretriz nessa assessoria permitiu Nesta experiência o crescimento foi mútuo;
exercitá-la de uma forma ampliada, aproximando- pode-se considerar que a própria EPA e seus re-
-a de uma ética das relações, A partir desse exer- presentantes engajaram-se numa busca que visa
cício, os vínculos foram se dando de forma mais recuperar a experiência marginal no campo do en-
fluída por meio da livre expressão dos pontos de sino voltado a populações vulnerabilizadas. Além
vista e da escuta pautada na ética do cuidado19, disso, a busca pela edição dos verbetes mostra o
dado que seu emprego facilitou a relação entre compromisso com a difusão cultural da Redução
a assessoria e os participantes, pois na medida de Danos explicitando a função social e cidadã
em que os julgamentos morais eram suspensos, da educação.
todos os segmentos se sentiam acolhidos e res-
peitados e a palavra circulou livremente. Ocor-
Considerações finais
reu tanto a problematização do que era exposto,
Nesse artigo, procuramos apresentar a tra-
quanto o testemunho20, ambas as posições im-
jetória da Redução de Danos no Rio Grande do
plicadas com questões subjetivas, sociais e po-
Sul, através do relato de seus principais momen-
líticas presentes nas vivências compartilhadas.
tos históricos, constituídos por diferentes carac-
Com a problematização, buscou-se diferentes
terísticas epidemiológicas, sociais e políticas.
pontos de análise sobre fatos do cotidiano da vi-
Nessa relação, vale sublinhar, conforme aponta-
da escolar, pluralizando significados e amplian-
do por Nery e Flash22, que o paradigma proibicio-
do a capacidade de análise, a administração de
nista gera um campo plural constituído por inte-
sentimentos e a criação de novas intervenções,
resses econômicos e políticos e, nessa esteira,
inclusivas e resolutivas. Com os testemunhos,
faz com que cada sociedade enquadre de dife-
incrementou-se um modo de inclusão da expe-
rentes formas os usuários de drogas e proponha
riência singular, transformando-a em uma repre-
determinadas terapêuticas como dominantes.
sentação compartilhada.
A Redução de Danos surgiu como uma rup-
Na perspectiva social e clínica, conforme di-
tura com o paradigma da abstinência que, até
zem Costa e Kehl21, o testemunho tem uma di-
então, era uníssono no campo de opções tera-
mensão ética, na medida em que amplia o cam-
pêuticas e preventivas no RS. Dada a urgência
po da produção simbólica de uma determinada
de lidar com a disseminação do HIV e a pragma-
sociedade, a fim de incluir nela, continuamente,
ticidade das respostas orientadas por essa pers-
o emergente, aquilo que até então era tido co-
pectiva junto aos UDIs, ela cresce e se expande,
mo irrepresentável. As autoras ainda referem
embora marcada por rupturas e descontinuida-
que, quando fracassa a recuperação de uma ex-
des. Essas dificuldades, no entanto, não conse-
periência marginal, não é só o indivíduo que a
guiram minimizar as inovações, pautadas pelas
viveu que fracassa, é o próprio laço social. Com
inventividades que surgiam do encontro singular

vol.21, n.2, dez 2020 |139


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de redutores de danos com pessoas e as cenas produção de pesquisas e intervenções que não
de uso de substâncias psicoativas, testemunha- falem sobre as pessoas sem a sua participa-
das pelos movimentos sociais que sustentam a ção23. Neste sentido, as Rodas de Conversa “RD
Redução de Danos. Cadê Você?” têm atuado como um dispositivo po-
Com a mudança para o século XXI, vieram tente para o estabelecimento dessas pontes.
também câmbios nas práticas de uso e nas subs- A partir do Método da Roda e das interven-
tâncias utilizadas, o que convocou a Redução de ções relatadas, pôde-se evidenciar que a retoma-
Danos a se reinventar, dadas as mudanças de da do FERD-RS caracterizou-se pela formação de
contexto político e de alocação de recursos. Nes- uma força política que viabilizou o exercício da
se contexto, as frentes de luta se recompuseram, democracia, mesmo que reconhecendo seus limi-
e as disputas no campo sempre tenso das po- tes. A importância deste movimento social é a de
líticas sobre drogas se acirraram. Esse cenário ter se constituído como um lugar, sem endereço
reforçou a urgência da recomposição de espaços e sem CNPJ, que empoderou os sujeitos e consti-
de luta coletiva, como o FERD-RS, que ressurge tuiu coletivos que passaram a ter pautas de luta
em 2018 para reativar as redes de usuários, de em comum. Ancorado em parcerias e ativistas,
profissionais e ativistas de segmentos antimani- revigorou e abriu novos espaços à Redução de
comiais, antiproibicionistas e progressistas. Danos no estado do Rio Grande do Sul, funcio-
Nesse caminho, um desafio ainda presente nando como “trincheira” para os que acreditam
é a necessidade de estabelecer contatos mais nesta abordagem como uma força de resistência
próximos e intercâmbios entre as regiões do es- e de cuidado.
tado, em busca de estrutura e sustentabilidade
econômica para a organização do coletivo e da lo-
gística para que as Rodas de Conversa RD Cadê Referências
Você? continuem sendo realizadas, bem como as
1. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de
atividades que se desdobram destas. Busca-se coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor
ampliar a participação de organizações de usu- de uso e a democracia em instituições: o método da ro-
ários de drogas e da rede de Saúde Mental em da. São Paulo: Hucitec; 2005.
geral junto ao FERD-RS, devido à compreensão
2. Passos EH, Souza TP. Redução de danos e saúde pú-
de que a Redução de Danos se faz na prática blica: construções alternativas à política global de “guer-
e com as pessoas afetadas pelas políticas pú- ra às drogas”. Psicol Soc. 2011; 23(1):154–62.
blicas conservadoras e de guerra às drogas, tal
3. Petuco DRS. O pomo da discórdia? drogas, saúde, po-
como foi possível de realizar na “Ocupação Aldeia
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O envolvimento de pessoas que usam dro-
4. Brasil. Ministério da Saúde. A política do Ministério da
gas em processos de discussão, em programas Saúde para atenção integral a usuários de álcool e ou-
comunitários e em instâncias de controle social, tras drogas. Brasília; 2003.
pensando, criando e produzindo intervenções
5. Adamy PE, Silva RN. Redução de Danos e linha de
para suas questões, também precisa ser incre-
cfuidado: ferramentas possíveis para o cuidado em saú-
mentado e tem se mostrado fundamental para a
de mental, álcool e outras drogas. Adamy PE, Silva RN.

|140 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

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vol.21, n.2, dez 2020 |141


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Cânabis como TerapiaI

Cannabis as Therapy

Renato FilevII

Resumo Abstract

Da Ásia a cânabis percorreu o mundo por oferecer a humanidade From Asia, cannabis has traveled the world for offering humani-
possibilidades de nutrição, proteção e tratamento. Considerada ty possibilities for nutrition, protection and treat-ment. As one of
um dos primeiros cultivares da revolução agrícola, a planta era the first cultivars of the agricultural revolution it was used to pro-
utilizada para produzir redes de pesca, vestimentos e substâncias duce fishing nets, clothing and substances that interact with our
organism producing various effects. Some of these are considered
que interagem com nosso organismo e produzem diversos efeitos.
therapeutic which may prove to be the last alternative for people
Alguns efeitos são considerados terapêuticos e podem se reve-
resistant to conventional treatments for a series of illnesses. Like
lar como a última alternativa para pessoas resistentes aos trata-
all phytotherapics, cannabis expresses a diversity of molecules.
mentos convencionais adotados para uma série de enfermidades.
Among these, cannabinoids are a large family exclusive to canna-
Como todo fitoterápico, a cânabis expressa uma diversidade de bis. These molecules are produced by the plant in different profiles
moléculas. Entre estas, os canabinoides são uma grande família according to the specie genetic variability. When ingested, these
exclusiva da cânabis. As moléculas são produzidas pela planta em compounds act in entourage and, depending on the profile, the
diferentes perfis de acordo com a variabilidade genética e epige- context of use and the individual who uses them, produce different
nética da espécie. Quando ingeridos, estes compostos atuam em effects that can be considered therapeutic, adverse, pleasurable
comitiva e dependendo deste perfil, do contexto de uso e do indiví- and others. Discussing the interaction of the plant with the human
duo que utiliza estão sujeitos a desencadear efeitos distintos, que organism in a society where this interaction is prohibited was the
podem ser considerados terapêuticos ou adversos. Discutir sobre exercise that led to the production of this article.
a interação da planta com o organismo humano numa sociedade
Keywords: Cannabis; Endocannabinoid system; Phytotherapy;
em que esta interação é proibida foi o exercício que levou à produ-
Regulation.
ção deste artigo.

Palavras-chave: Cânabis; Sistema endocanabinoide; Fitoterapia;


Regulação.

Introdução - a planta

R
egistros arqueológicos sugerem a cânabis
como um dos primeiros cultivares da hu-
manidade. As propriedades terapêuticas
da cânabis são exploradas desde a Antiguida-
de. O primeiro relato de uso terapêutico foi de
um imperador chinês que viveu cerca de 5 mil
I
Este capítulo é dedicado em agradecimento à todos os importantes ensi- anos atrás. Ou seja, o emprego dos canabinoides
namentos proferidos pelo Professor Elisaldo Carlini, que agora estão eterni-
zados na história como terapia é milenar, anterior ao advento do
II
Renato Filev (renatofilev@gmail.com) é bacharel em ciências biológicas - pensamento científico ou da Medicina. O papiro
modalidade médica pela Universidade Federal de São Paulo e é doutor em
neurociências pela mesma instituição. Pesquisador colaborador do Centro de Ebers, reconhecido como primeiro texto com-
Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) e coordena-
dor científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD). pleto de tratamento em saúde, escrito cerca de

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

1500 anos anteriores à Era Cristã, menciona as baixas, com folhas mais largas, de odores mais
propriedades terapêuticas da cânabis1. Os assí- pungentes e que permitiriam aos seus usuários
rios, citas, árabes, fenícios, hebreus, hindus, chi- experiências de relaxamento profundo. A grande
neses, egípcios dentre outros povos ancestrais variabilidade no fenótipo da planta, ou seja, de
faziam algum tipo de uso da planta. Para parte suas características aparentes, como tamanho,
destas civilizações não havia distinção entre o formato das folhas e flores, aromas, coloração,
uso místico, ritualístico, religioso ou terapêutico. efeitos e etc, fizeram com que inúmeros nomes
As variedades de cânabis foram selecionadas (como skunk) fossem designados a genéticas es-
por intervenção humana à medida que expressa- tabilizadas oriundas de cruzamentos sucessivos
vam alguma característica de interesse, seja pe- que selecionam características específicas e per-
la produção das alongadas e resistentes fibras, petuam variedades. Atualmente, milhares destas
seja pela energia e nutrição provenientes do óleo variedades com diferentes perfis estão disponí-
de suas sementes e, também, pela resina de su- veis em diferentes bancos de sementes ao redor
as inflorescências, além de seus interesses tera- do mundo3.
pêuticos e ritualísticos. Outra linha de pensamento avalia, para
Acredita-se que a cânabis foi originada nas além da observação fenotípica, os genes e as
escarpas da Ásia Central às margens do mar moléculas presentes na planta. A variabilidade
Cáspio, região hoje pertencente ao Cazaquistão, genética entre as supostas espécies de cânabis
Turcomenistão e Irã. Essa planta pertence à fa- foi insuficiente para afirmar a existência dessa
mília Cannabaceae, juntamente com outros dois diferenciação. Ainda é possível que o cruzamento
gêneros vegetais, o lúpulo e o celtis. Existe uma entre as supostas espécies diferentes proporcio-
discussão abrangente a respeito da existência de ne descendentes férteis, o que diminui a força
uma única ou várias espécies do gênero Canna- desta hipótese. Como não existe consenso en-
bis, no entanto, até o presente momento, as evi- tre a existência de uma ou mais espécies, con-
dências são controversas e não apontam para vém utilizar o termo Cannabis spp., assim é pos-
uma definição. No século XVIII, Linnaeus classi- sível descrever todas as possíveis espécies do
ficou a Cannabis sativa, enquanto Lamarck clas- gênero Cannabis de maneira abrangente e sem
sificou a Cannabis indica. Supostamente existem comprometimento4.
ainda outras classificações para espécies do gê- Estas espécies ou variedades apresentam
nero, Janisch classificou a Cannabis ruderalis e diferenças importantes na expressão das molé-
Vavilov a Cannabis afghanica2. culas constituintes, o que resulta em plantas ca-
Aqueles que assumem a existência de di- pazes de ocasionar efeitos completamente dis-
ferentes espécies de cânabis discutem sobre a tintos. Até o momento, centenas de compostos
possível diferenciação entre as variedades de sa- foram identificadas na cânabis; dentre estes,
tiva e de indica. A primeira, apresentaria o perfil mais de uma centena de terpeno-fenóis de ca-
de uma plantas mais alongadas com folhas mais racterística lipídica e exclusivos desta planta, de-
afiladas e capacidade de proporcionar efeito eu- nominados canabinoides. Embora existam uma
forizante, deixando os usuários mais dispostos e diversidade de canabinoides, a grande maioria
eloquentes. Enquanto as variedades da segunda está expressa na planta numa ordem de gran-
espécie apresentariam um perfil de plantas mais deza menor que o ∆9-tetrahidrocanabinol (THC)

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

e o canabidiol (CBD), presentes em maiores variedades com teores de THC abaixo de 0,3%,
proporções. Além destas moléculas exclusivas, enquanto que maconha (marijuana) seriam as
a cânabis produz diferentes tipos de terpenos, variedades com teores maiores que 0,3%6. As
flavonoides, esteroides e outros compostos que variedades de cânhamo são destinadas à retira-
completam o arsenal molecular da planta, muitas da de sua fibra, semente e resina para produ-
destas com ação em nosso organismo. Grande ção com inúmeras finalidades industriais, inclu-
parte dos canabinoides e terpenos são produzi- sive com produção regulada em diversos países,
dos e armazenados em glândulas chamadas de como China e Estados Unidos. Já as variedades
tricomas, produzidas em maior quantidade pelas que expressam altos teores de THC vêm sendo
inflorescências da planta fêmea e das folhas su- aperfeiçoadas e estabilizadas ao longo dos anos
periores que as acom-panham. Os órgãos sexu- por aqueles que se interessam pelos efeitos eu-
ais femininos se desenvolvem na região apical forizantes, prazerosos e terapêuticos proporcio-
da planta e buscam o pólen oriundo de uma flor nados pelo consumo destas. Os cruzamentos en-
de cânabis macho para produzir seu fruto, que tre diferentes genéticas, com a finalidade de se-
no caso corresponde à própria semente. Os tri- lecionar características, sejam fibras mais alon-
comas, além de produzir e armazenar os cana- gadas, maior quantidade de sementes, ou uma
binoides e terpenos, participam do complexo de boa qualidade da resina com perfis específicos
proteção das inflorescências5. de canabinoides, foram feitos essencialmente
A fim de propor uma solução à questão da por ação humana, ao longo dos anos de cultivo e
classificação das variedades da cânabis, Ethan experimentação7.
Russo e sua equipe, além de outros pesquisa- Ao inalar os vapores de cânabis in natura,
dores4, sugerem uma maneira objetiva de clas- os indivíduos absorvem grande parte dos compo-
sificação, sem entrar na discussão entre Canna- nentes que se desprendem devido ao aquecimen-
bis sativa ou Cannabis indica, muito menos entre to. Uma característica comum aos fitocanabinoi-
as variedades vendidas com uma diversidade de des é que estes são produzidos na forma ácida.
nomes, como skunk. De maneira pragmática, o Os canabinoides ácidos apresentam efeitos signi-
agrupamento das diversas variedades da cânabis ficativos em nosso organismo e com potencial te-
foi proposto a partir dos seus componentes quí- rapêutico promissor8. No entanto, os efeitos dos
micos. O perfil de canabinoides expressos pode- canabinoides nas formas ácidas ou neutras são
riam distinguir as plantas a partir de suas caracte- diferentes. O aquecimento proporciona aos cana-
rísticas químicas, ou quimiovariantes, compondo binoides ácidos a perda de uma molécula de dió-
três grandes grupos: o primeiro com plantas que xido de carbono (CO2), que resulta na neutraliza-
expressam altos teores de THC e baixos de CBD; ção da molécula. Por exemplo, quando aquecido
o segundo com altos teores de CBD e baixos de ou exposto à luminosidade o canabinoide THCA
THC; e o terceiro com plantas híbridas e diferen- perde um CO2 e se transforma em THC; o mesmo
tes proporções de ambos os canabinoides. ocorre para o CBD e outros fitocanabinoides8.
Em outros momentos, o teor dos canabi- Para indivíduos que consomem extrato de
noides foi utilizado como parâmetro para clas- cânabis por ingestão oral e buscam obter os efei-
sificar as variedades da planta. O governo ame- tos dos canabinoides na sua forma neutra (CBD,
ricano, por exemplo, define cânhamo (hemp) as THC, etc) é preciso aquecer adequadamente as

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

plantas antes de produzir o extrato. Existem di- complexa e, por vezes, paradoxal. As moléculas
versos trabalhos9-10 que mostram curvas de des- cana-binoides são capazes de interagir com re-
carboxilação dos canabinoides por meio do aque- ceptores e enzimas de outros sistemas e vice e
cimento, ao longo do tempo. Tal informação é es- versa, o que reforça a complexidade, redundância
sencial para aqueles que desejam obter canabi- e promiscuidade deste sistema expandido e res-
noides para fins terapêuticos. Vale enfatizar que, ponsável por diversas funções vitais para o nos-
embora as formas ácidas apresentem efeitos em so organismo12.
nosso organismo (alguns deles considerados te- Os endocanabinoides mais estudados
rapêuticos), as formas neutras dos canabinoides são a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilgli-
são mais estudadas e apresentam evidências cerol (2AG). A AEA atua preferencialmente como
mais consistentes quanto a sua ação em nosso agonista parcial ou total do receptor CB1, enquan-
organismo11. to o 2AG é agonista dos CB1 e CB2. Os endoca-
nabinoides atuam também em outros receptores
Sistema endocanabinoide como o TRPV1, o PPARs e em alguns receptores
órfãos. Diferentes vias de síntese e degradação
Uma das questões que desperta amplo
são capazes de produzir e eliminar os endocana-
interesse é compreender como ocorre a intera-
binoides produzidos sob demanda e que atuam
ção dos fitocanabinoides com o nosso organis-
em regiões específicas, proporcionando efeitos
mo e como estes compostos atuam para exer-
capazes de afetar a atividade do organismo, co-
cer determinados efeitos terapêuticos, além dos
mo uma resposta imunológica, a neuroproteção,
eventos adversos. Para isso, é necessária a com-
o equilíbrio energético, a regulação de processos
preensão do sistema endocanabinoide. Os ca-
fundamentais, entre outras funções. De acordo
nabinoides expressos pela planta mimetizam a
com a região ou o tipo de célula nas quais os
ação de moléculas produzidas por nossas células
receptores estão expressos, efeitos distintos po-
denominadas “endocanabinoides”, responsáveis
dem ocorrer; o sistema endocanabinoide é, por
por diversas funções fisiológicas e metabólicas
exemplo, capaz de inibir a atividade de diversos
em nosso organismo. Estes compostos intera-
sistemas de neurotransmissão, como do gluta-
gem com receptores canabinoides (CB1 e CB2),
mato, da GABA, da serotonina, da dopamina, da
que estão dispostos por todo o nosso sistema
noradrenalina, da acetilcolina, entre outros, o que
nervoso central e periférico, mas também nos te-
configura-se em efeitos distintos a depender da
cidos cardiovascular, hepático, adiposo, muscu-
região que é estimulada13.
lar e imune, entre outros. Esses receptores são
transportadores de membrana que capturam os A dimensão da importância do sistema
endocanabinoides da fenda sináptica. Enzimas endocanabinoide é de tal monta que animais com
de síntese e degradação completam o sistema, sistema nervoso rudimentar, como as esponjas,
produzindo e depurando estes canabinoides12. já apresentam genes canabinoides. Sabe-se tam-
bém, por exemplo, que a inibição do receptor CB1
Uma versão expandida deste sistema nos
diminui a ingestão de alimentos pelas hidras, ou-
permite dimensionar a sua relevância. A intera-
tra espécie igualmente ancestral14. Em roedo-
ção dos endocanabinoides com outros siste-
res, os agonistas do sistema endocanabinoide
mas de neurotransmissão e mediadores lipídi-
desencadeiam uma tétrade clássica de efeitos
cos é capaz de realizar funções de comunicação

vol.21, n.2, dez 2020 |145


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

comportamentais, com manifestação da hipolo- Jerusalém12, ainda na década de 1960. Já as mo-


comoção, analgesia, catatonia e hipotermia15. Em léculas do sistema endocanabinoide produzidas
seres humanos, o sistema endocanabinoide em em nosso corpo foram descobertas na década
seu papel fisiológico é capaz de regular e inter- de 1990 e abriram novos caminhos para a com-
ferir em processos como o apetite, o sono, os preensão da importância e capacidade de inci-
sonhos, o equilíbrio, a criatividade, a motivação, dência neste sistema.
a imunomodulação, a neuroproteção, o estresse Moléculas sintéticas que atuam no sistema
oxidativo, a respiração celular, o metabolismo he- endocanabinoide foram desenvolvidas inicialmen-
pático, a reprodução, a atividade física, a dor, o te para estudar e compreender o funcionamento
humor, a ansiedade, emoções, memória, cogni- deste sistema, pois são capazes de estimular ou
ção, entre outros13. bloquear receptores, inibir os transportadores e
A ação deste sistema, portanto, desenca- as enzimas de síntese e a degradação dos en-
deia efeitos importantes para a regulação, res- docanabinoides. As moléculas sintéticas atuam
tauração do equilíbrio do organismo humano, re- de maneira mais específica e, por vezes, mais
torno ao estágio basal pós determinado estímulo. intensa que os canabinoides naturais. Atualmen-
Existem hipóteses que apontam que o desequilí- te, também o mercado ilícito produz canabinoides
brio hipo ou hiper funcional do sistema endoca- sintéticos para mimetizar os efeitos dos fitocana-
nabinoide e seus componentes está relacionado binoides, visando burlar a proibição dos deriva-
com o aparecimento das mais variadas enfermi- dos da planta. Diversas destas substâncias são
dades e sintomas que acometem os seres hu- muito mais potentes que os canabinoides natu-
manos. Por isso, incidir em possíveis alvos deste rais e por isso podem promover eventos adversos
sistema pode proporcionar efeitos terapêuticos, mais intensos e de maior gravidade à saúde17.
como a redução de sintomas e auxílio para a re- O CBD é um fitocanabinoide com vasta ca-
abilitação de diversas enfermidades. Esta hipóte- pacidade de interação, seja em receptores cana-
se ousada vem sendo confrontada pela ciência binoides, como em receptores de outros siste-
contemporânea e alguns achados interessantes mas de neurotransmissão e com interação enzi-
vêm sendo feitos. mática. O CBD atua nos receptores canabinoides
de maneira inversa ao THC e também tem uma
Ações terapêuticas dos canabinoides interação promíscua com diversos outros alvos
do sistema, o que resulta em um efeito final de
O sistema endocanabinoide, como foi di-
diminuição da atividade geral do sistema nervoso
to, sobretudo em sua versão expandida, é com-
central. O CBD apresenta ação anticonvulsivan-
plexo, promíscuo e redundante16. Diversas mo-
te, ansiolítica, antipsicótica, imunomodulatória,
léculas naturais, os fito e os endocanabinoides,
antioxidante, indutora de sono, analgésica e rela-
assim como as sintéticas, são capazes de inte-
xante, entre outras. Quando utilizado em associa-
ragir com alvos deste sistema, como receptores,
ção com o THC, é capaz de atenuar estes efeitos,
transportadores e enzimas, a fim de produzir res-
reduzindo os sintomas psicóticos, ansiosos e car-
postas fisiológicas, metabólicas e comportamen-
diovasculares. O THC, além destas funções, tem
tais. As principais moléculas naturais oriundas
um potente efeito euforizante e de modulação
da cânabis foram isoladas por Raphael Mechou-
do humor, prazer e motivação; por conta disso,
lam e seus colegas da Universidade Hebraica de

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

existe um risco associado à compulsividade as- Epilepsia21, apresentou um trabalho mostrando


sociada ao seu consumo. Alguns desses efeitos que indivíduos tratados com produtos purificados
do THC são tolerados, outros não; a hilaridade, que continham a proporção de 20:1 entre CBD e
por exemplo, é um dos efeitos proporcionados THC relataram tolerância em relação aos efeitos
que é tolerado com a repetição do consumo, já o anticonvulsivantes após alguns meses de trata-
relaxamento, dificilmente é tolerado. mento. É possível que uma proporção adequada
Uma questão importante sobre o efeito de THC:CBD e o efeito comitiva, ou seja, a ação
dos canabinoides é o seu efeito paradoxal. Na das inúmeras moléculas presentes no extrato
farmacologia, os canabinoides compartilham um agindo em seus múltiplos alvos farmacológicos,
padrão de curva dose-resposta. Esta curva de- protejam a tolerância provocada pelos produtos
monstra que a ação dos fármacos podem variar isolados.
de acordo com a dose e que, inclusive, podem No início dos anos 2000, diversas subs-
apresentar efeitos distintos. O THC, por exemplo, tâncias sintéticas foram desenvolvidas para atu-
em baixas doses é capaz de apresentar efeitos ar no sistema endocanabinoide. Duas delas se
de redução da ansiedade e do limiar convulsivo; tornaram medicamentos, inclusive acessíveis
enquanto que em altas doses é capaz de defla- aos brasileiros. Ambas atuam no receptor CB1,
grar quadros de ansiedade e convulsões. Este fe- uma inibindo e a outra estimulando este receptor.
nômeno reforça a necessidade de alerta ao se A primeira ficou conhecida como pílula anti-barri-
iniciar um tratamento com extratos enriquecidos ga e contava com uma grande expectativa médi-
com o THC. Um ajuste da dosagem e acompanha- ca e estética, pois era um medicamento indicado
mento são importantes para manejar os possí- para redução do diâmetro abdominal22-23. Entre-
veis eventos adversos que possam surgir de sua tanto, a substância ficou pouco tempo disponí-
administração18. vel para consumo e logo se percebeu que inibir
Estudos mostram que o CBD isolado o receptor CB1 poderia ser nocivo, pois a popu-
apresenta menor eficácia, quando comparado ao lação que consumiu o medicamento apresentou
extrato vegetal que contém também outras mo- aumento significativo de sintomas depressivos e
léculas. Em 2015, pesquisadores israelenses de ideação suicida. Estudos prévios24 realizados
observaram em modelos animais o efeito anal- em roedores mostraram que este mesmo bloque-
gésico mais amplo do extrato vegetal de uma va- ador diminuiu o interesse por comida palatável,
riedade de cânabis em comparação ao canabi- fato que reforça a ideia de um comportamento
diol isolado19. Em 2018, Fabrício Pamplona, um desmotivado proporcionado pela substância. O
dos grandes pesquisadores brasileiros sobre a outro produto sintético, desenvolvido para atuar
temática, e seus colaboradores realizaram um nos receptores canabinoides, era/é um compri-
estudo de meta-análise20 que buscou comparar mido com efeito oposto ao primeiro e capaz de
os tratamentos para epilepsia refratária com ex- ativar parcialmente o receptor CB1. Trata-se de
tratos que continham CBD versus o CBD isola- uma cópia sintética idêntica ao THC natural que
do. Esta análise mostrou que os extratos apre- vem sendo indicado para náusea e vômitos em
sentaram resposta terapêutica melhor do que o decorrência de quimioterapias para câncer, so-
produto isolado. Recentemente, Uliel-Sibony, em bretudo em pacientes que apresentam resistên-
um congresso anual da Sociedade Americana de cia aos antieméticos convencionais25.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

As enfermidades que acometem o siste- canabinoides, sobretudo para a redução da epi-


ma nervoso são aquelas que apresentam evidên- lepsia. Alguns estudos mostram ainda uma redu-
cias mais consistentes quanto à manipulação do ção da ansiedade e melhora dos problemas de
sistema endocanabinoide para tratar seus sinto- sono. Ainda existe cautela, no entanto, para o
mas. Pesquisadores do século XIX relataram os seu uso clínico, pois existem dúvidas quanto à
benefícios dos canabinoides, sobretudo para o segurança e aos eventos adversos que podem
tratamento de doenças neurológicas e psiquiátri- estar associados ao tratamento, sobretudo aque-
cas. O primeiro artigo publicado nos moldes da les contendo THC30.
ciência contemporânea que relatou o efeito tera- Uma enfermidade de grande prevalência e
pêutico da cânabis foi publicado pelo médico ir- que apresenta boa qualidade de evidências pa-
landês William Brooke O’Shaugnessy, em 1839, ra este uso é a dor crônica. Diversos, embora
em que descreve o caso de uma criança recém não todos, tipos de dor crônica são amenizadas
nascida que apresentava convulsões incessan- pela terapia com canabinoides, sobretudo as do-
tes e resistente às alternativas terapêuticas dis- res que têm sua origem no tecido nervoso, ou as
poníveis na época. As crises foram cessadas neuropatias. Questionários realizados em países
com o uso de poucas gotas de um extrato de câ- onde a cânabis é permitida para fins terapêuti-
nabis26. Posteriormente, nos anos 1980, Elisaldo cos, em que os pacientes foram perguntados por
Carlini e sua equipe publicaram o primeiro ensaio qual motivo utilizavam a cânabis, tiveram como
clínico demonstrando a eficácia dos canabinoi- resposta mais frequente a indicação de uso para
des no tratamento da epilepsia27, com um me- redução da dor. Muitos dos entrevistados relata-
dicamento canabinoide comercializado em mais ram também a redução significativa do consumo
de 20 países, inclusive no Brasil,desenvolvido a de outras substâncias analgésicas31. Pessoas
partir de extratos naturais com a mesma propor- com diversas doenças que acometem o sistema
ção de THC e CBD e indicado para o tratamento nervoso, como as neurodegenerativas Parkinson,
de espasmos decorrentes da esclerose múltipla. Alzheimer, Huntington, escleroses e outras doen-
Atualmente, existem medicamentos registrados, ças desmielinizantes, encontram na terapia com
estudos clínicos e inúmeros relatos de casos que canabinoides alívio dos sintomas e melhoras na
atestam a eficácia da terapia com extratos de câ- qualidade de vida32, embora careçam de ensaios
nabis enriquecidos com CBD, como adjuvante ao clínicos que atestem a sua eficácia. Para a in-
tratamento para a redução da frequência de cri- sônia, a terapia canabinoide apresenta evidência
ses convulsivas resistentes aos tratamentos con- moderada32. Existem ainda estudos promissores
vencionais, que se manifestam em decorrência em psiquiatria para a manipulação do sistema
de síndromes genéticas raras, como a Dravet, a endocanabinoide para o tratamento da ansieda-
Lennox-Gastaut, dentre outras.Estas pesquisas de, depressão, transtornos psicóticos e de uso
vêm corroborando com as evidências clínicas pre- problemático de substâncias psicotrópicas, em-
gressas, em especial aquelas que investigam as bora atualmente as evidências sejam insatisfa-
doenças neurológicas28-29. tórias para chancelar esta prática clínica18. Em
Recentemente, diversos relatos de casos especial, para este último, a cânabis tem se mos-
e estudos clínicos demonstraram efeitos pro- trado de grande potencial em auxiliar indivíduos
missores em indivíduos autistas tratados com que desejam mudar a sua relação com o álcool,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

tabaco e medicamentos. Embora os ensaios clí- graves32. Os sintomas mais frequentes relatados
nicos que comprovam estas hipóteses serem por usuários para fins terapêuticos de produtos
escassos, estudos utilizando métodos menos ri- que tenham em sua composição baixos teores
gorosos descrevem diversos episódios em que a de THC são distúrbios de sono, gastrointestinais,
cânabis substituiu o padrão de consumo de ou- tontura, fadiga, interações medicamentosas, ris-
tras drogas e, inclusive, o padrão de consumo co hepático quando associados a determinados
de cânabis fumada foi reduzido com os produtos tratamentos, dentre outros eventos mais raros,
farmacêuticos contendo canabinoides32. como convulsões. Já os compostos com altos te-
Diversas enfermidades que afetam outros ores de THC podem apresentar outra gama de
órgãos e tecidos vêm sendo estudadas a fim de eventos adversos agudos, como boca seca, ta-
compreender como substâncias que interagem quicardia, olhos vermelhos, visão turva, altera-
com o sistema endocanabinoide se comportam, ções na percepção do espaço e do tempo, hipo-
na tentativa de reduzir sintomas, tratar e melho- tensão arterial, ataxias, alterações na memória
rar a qualidade de vida de pacientes32. Doenças operacional e na cognição, aumento do fluxo de
metabólicas, como diabetes e obesidade, além pensamento, paranoia e vômitos; podendo, em
das cardiovasculares e respiratórias, podem en- casos mais graves, deflagrar convulsões, surtos
contrar no sistema endocanabinoide uma pro- de ansiedade ou psicóticos. Ainda, uma parcela
messa terapêutica32. Uma esperança também de usuários é diagnosticada como dependente e
atrelada à ação dos canabinoides se dá por con- relata problemas em decorrência deste uso.
ta do seu efeito antitumoral. Diversos estudos Diversas outras revisões apontam para
experimentais em modelos celulares ou animais uma associação do consumo habitual com uma
observaram que essas substâncias são capazes variedade bastante grande de eventos adversos
de reduzir a irrigação, a migração e, ainda, indu- físicos, psíquicos e, ainda, com o risco de aci-
zir a morte celular programada das células tumo- dentes34-35. No entanto, não se sabe ao certo a
rais de determinados tipos de câncer, sobretu- relação de causa e efeito. Transtornos de humor,
do aqueles que acometem o sistema nervoso33. prejuízos na função cognitiva e síndrome amotiva-
Embora estudos clínicos ainda se façam neces- cional também são frequentemente associados
sários para avaliar se o observado nos estudos ao consumo de cânabis durante a adolescência.
experimentais se comprova em pacientes acome- Parece existir uma associação positiva entre uso
tidos pela enfermidade, de forma a garantir a se- da cânabis na adolescência e depressão e sui-
gurança e eficácia da terapêutica. cídio na vida adulta36. Estas evidências, embora
encontrem uma associação positiva entre uso e
desfecho psiquiátrico em longo prazo, não foram
Eventos adversos e redução dos riscos e danos
capazes de estabelecer o que veio primeiro, se o
relacionados
consumo ou o transtorno, se existem fatores co-
Embora o consumo seja praticado há mi-
muns compartilhados entre os depressivos e os
lênios, dúvidas sobre os eventos adversos do uso
usuários de cânabis, ou se, de fato, um quadro
dos canabinoides ainda são frequentes. Algumas
multifatorial como a depressão pode ser defla-
revisões apontam para eventos adversos leves
grado pelo consumo da planta durante a adoles-
ou moderados, com uma pequena parcela de in-
cência. A questão do consumo de cânabis e o
divíduos padecendo de eventos adversos mais

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

prejuízo no desenvolvimento da função cognitiva, esferas biopsicossociais da vida e pensar em es-


parece seguir a mesma dificuldade de encontrar tratégias que possam minimizar os riscos, os da-
a causalidade dos eventos. Os efeitos cognitivos nos e as consequências associadas não apenas
agudos proporcionados pela cânabis parecem in- ao consumo de substâncias psicotrópicas, mas
conclusivos quanto à permanência de algum pre- aos comportamentos de risco associados a ado-
juízo a longo prazo. Estudos mais rigorosos quan- lescência. Com as ferramentas metodológicas
to ao tempo de abstinência de 72 horas antes da atuais, portanto, somos incapazes de afirmar as
realização de testes, não encontraram diferenças consequências de fato que o uso de canabinoi-
na função cognitiva dos usuários em relação ao des neste período da vida podem desencadear.
grupo controle37. No entanto, estas associações Por conta disso, é necessário fornecer cuidado
existem e, portanto, o uso de cânabis durante a e informação para orientar a prática de consumo
adolescência deve ser evitado e, caso praticado, da cânabis. Em um cenário em que o acesso à
feito com orientação e acolhimento, a fim de mini- cânabis fosse regulado, mas que os determinan-
mizar os possíveis riscos e danos que porventura tes sociais e econômicos fossem menos desi-
ocorram, sejam agudos ou a longo prazo34. guais e os fatores de vínculo e proteção prevale-
Como ocorre com qualquer outro fármaco, o cesse sobre as vulnerabilidades, poderíamos es-
consumo da cânabis é passível de eventos adver- pecular se uma possível estratégia que minimiza-
sos. Existem determinados grupos de pessoas ria os riscos associados ao consumo da cânabis
em que os riscos parecem ser mais relevantes. nesta população seria a possibilidade de aces-
Crianças e adolescentes apresentam o sistema so a variedades com teores moderados de THC
nervoso em intenso amadurecimento, por conta e que o CBD estivesse presente para minimizar
disso parece ser prudente não interferir no neuro- os eventos adversos da experiência. No entanto,
desenvolvimento com substâncias que poderiam não existem evidências neste sentido e são raras
afetar este processo, inclusive aquelas que ati- as situações de igualdade social que permitiriam
vam o sistema endocanabinoide. Evidentemente este tipo de abordagem.
deve-se considerar que outros inúmeros fatores Embora haja poucas e inconclusivas evidên-
culturais e sociais pressionam indivíduos na fase cias, o uso da cânabis por mulheres grávidas é
da adolescência, podendo interferir no neurode- desestimulado, pelos mesmos motivos descritos
senvolvimento, assim como o uso de substân- para adolescentes. Os estudos apontam para
cias. Além disso, existem inúmeras evidências de um baixo peso ao nascimento de filhos de mães
que a adolescência é a fase de experimentação, consumidoras de cânabis, assim como ocorre em
pois é nesta fase que a maioria dos indivíduos nascidos de mães tabagistas. Eventos adversos
entra em contato com a maconha e outras subs- de maior gravidade não foram associados ao con-
tâncias como o álcool e o tabaco para se obser- sumo de cânabis, como ocorre com a síndrome
var a possível preservação da estrutura biológica fetal alcoólica, que pode acometer filhos de mães
seria ideal que o adolescente pudesse postergar alcoolistas32.
o consumo crônico de qualquer substância psico- Vale enfatizar que cerca de 9 em cada 100
trópica, inclusive de alimentos ricos em calorias, indivíduos que utilizam a cânabis são diagnosti-
açúcares e sódio. cados como dependentes38, uma condição que
Entretanto, temos que reconhecer as traz sofrimento à vida do indivíduo. Pessoas com

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

predisposição ou histórico familiar de transtornos apresentassem teores mais altos de THC a fim de
psicóticos fazem parte do grupo de risco, pois que garantissem um bom rendimento na colheita
consumir teores elevados de THC pode diminuir o com efeitos intensos e sabores marcantes. Com
limiar para um surto psicótico, o que para alguns o aumento da tecnologia empregada na produção
indivíduos com predisposição pode se tornar um da cânabis e de seus extratos surgiram produtos
agravo crônico e que, sem dúvida, compromete a com teores muito variados dos canabinoides, que
vida deste indivíduo de maneira significativa. proporcionam efeitos totalmente distintos. Atual-
Existe também um fenômeno neurológico mente, existem extratos destilados que podem
chamado tolerância. Alguns dos efeitos da câna- alcançar 90% de pureza de THC. O THC em altas
bis, tal como os de outras substâncias são tole- concentrações tem a probabilidade de desenca-
rados quando o consumo se repete com maior dear eventos adversos com maior frequência que
frequência. Efeitos tolerados podem ser restabe- as variedades com teores mais moderados des-
lecidos caso haja interrupção do consumo, outros te canabinoide. Inclusive, quando associado ao
são bastante difíceis de serem atingidos, mes- CBD, esses eventos adversos podem ser minimi-
mo com aumento da dose, quando os usuários já zados. Existem limites nos teores etílicos para o
apresentam um tempo de experimentação mais álcool regulado e é proibida a venda de bebidas
longo39. Todas as substâncias psicotrópicas são com teores acima do limite estabelecido. No ca-
capazes de promover fenômenos neurológicos de so da cânabis, esta deverá ser uma prática a ser
adaptação, como a tolerância, no entanto esta discutida num futuro processo regulatório.
adaptação não é capaz de explicar a busca por Variedades com altos teores de THC são
outras substâncias e experiências. capazes de deflagrar alterações psiquiátricas,
O interesse em experimentar as substâncias como aumento da paranoia, dos transtornos psi-
psicoativas das mais diversas está relacionada a cóticos e crises de ansiedade aguda com maior
fatores culturais e socioambientais que favore- facilidade, como foi exposto. Transtornos psicó-
cem o contato e o consumo de substâncias psico- ticos crônicos apresentam uma etiologia multi-
trópicas que agenciam efeitos e comportamentos fatorial da qual o THC pode ser um disparador
distintos daqueles proporcionados pela cânabis. e antecipar o aparecimento dos sintomas, visto
A minoria dos usuários dessas substâncias ini- que um dos principais fatores de risco associa-
ciou sua vida de experimentação com a maconha. dos ao aparecimento dos sintomas está o consu-
Parte considerável iniciou com o álcool e o taba- mo de substâncias psicotrópicas, dentre estas a
co, nem por isso essas são e nem devem ser con- cânabis40. Dado as suas características multifa-
sideradas portas de entrada para outras substân- toriais torna-se difícil prever quem poderá apre-
cias, como se atribui à maconha. O uso de qual- sentar um prejuízo crônico ao consumir essas
quer substância é um fenômeno biopsicossocial substâncias. Pessoas com histórico pessoal ou
que é fortalecido ou enfraquecido a partir múlti- familiar de transtornos psicóticos tem aumenta-
plos fatores que são permeados por situações de das as chances de desenvolver problemas dessa
risco e proteção, das vulnerabilidades e vínculos natureza.
que cada pessoa está inserida. Existem orientações e estratégias para
Durante os últimos anos, por intervenção se fazer um consumo mais seguro da cânabis e
humana, foram selecionadas as variedades que as políticas de Redução de Danos têm proposto

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

diversas orientações a serem passadas aos con- de tratamento atribuído aos eventos adversos de
sumidores nos territórios em que o uso adulto com outras classes de fármacos. Em geral, os
é permitido. Um artigo Canadense41 sugere 10 efeitos que causam mais desconforto são desen-
abordagens de redução dos riscos e danos as- cadeados pelo THC44.
sociados ao uso adulto da cânabis, dentre estas:
manter-se abstinentes, retardar o início do con-
Obtenção de canabinoides para fins terapêuticos
sumo, optar por baixos teores de THC, não usar
Muitas são as dúvidas de quem busca ini-
canabinoides sintéticos, evitar combustão, evitar
ciar um tratamento com canabinoides para diver-
inalação profunda e prender a fumaça, evitar o
sas condições de saúde. Inicialmente são pou-
uso diário, abster-se ao dirigir, evitar caso faça
cas as indicações terapêuticas com segurança
parte da população de maior risco e a combina-
e eficácia do tratamento comprovadas. Há uma
ção destes fatores.
carência de estudos clínicos designados para
Atualmente no Brasil e em boa parte do
analisar se os canabinoides são eficazes para
mundo, a política que regula a planta gera mais
determinadas enfermidades que, na prática clí-
malefícios à sociedade do que os efeitos dos ca-
nica, podem encontrar na cânabis seu lenitivo.
nabinoides no organismo. As implicações sociais
Muito disso se deve por conta do alto custo de
da política de proibição e guerra às drogas afe-
ensaios clínicos, que em geral são patrocinados
tam inclusive as pessoas que nunca consumiram
por empresas privadas. Não existe interesse das
nenhuma substância e preferencialmente jovens,
agências de fomento governamentais de estimu-
negros e que habitam territórios de vulnerabilida-
lar estudos desta natureza. Diversos relatos de
de social. Em geral, o Brasil regula mal suas subs-
pacientes ao redor do globo sugerem que a câ-
tâncias, a exceção do tabaco. O tabaco é capaz
nabis é capaz de aumentar o apetite, a qualidade
de causar mais dependência e eventos adversos
do sono, o humor, os efeitos subjetivos da dor,
que a maconha e obteve, sem a necessidade de
melhorando o bem estar e a percepção de quali-
proibição, uma menor adesão de consumo pela
dade de vida do indivíduo enfermo. Estes efeitos
população, verificando-se uma redução de mais
podem ser importantes no processo de reabilita-
de 50% dos consumidores nas duas últimas dé-
ção e, sem dúvida, devem ser melhor compreen-
cadas42. Estas políticas devem ser revistas não
didos para que o manejo terapêutico dos canabi-
apenas para regular as substâncias ilícitas, co-
noides seja maximizado e seus eventos adversos
mo a maconha e a cocaína, mas também para
diminuídos.
o álcool que, embora lícito, é regulamentado de
A manutenção das informações, cultivo e
maneira muito questionável por quem almeja um
cultura de uso da cânabis, mesmo que proibida
controle responsável e não proibitivo das subs-
por mais de 80 anos, foi mantida por muitas pes-
tâncias psicoativas43.
soas que se interessam pelos efeitos da planta.
Ainda a preocupação com os eventos ad-
Os movimentos contemporâneos pela regulação
versos são bastante relevantes no processo de
da cânabis no Brasil acompanharam a Abertura
escolha dos canabinoides como terapia. Parte
Democrática a partir dos anos 1980. No entan-
dos usuários terapêuticos abandonam o trata-
to, qualquer tipo de manifestação desta natureza
mento devido aos eventos adversos provoca-
era sujeita à repressão pelo aparato ostensivo
dos44. Este número se assemelha ao abandono
da Segurança Pública e os manifestantes eram

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

tratados como criminosos por supostamente existem quatro formas reguladas de acesso a
“praticar apologia ao uso de uma substância ile- produtos canabinoides destinados a prática te-
gal”. Em 2011, a Marcha da Maconha de São rapêutica: importação de suplementos alimenta-
Paulo sofreu um ataque da Polícia que causou res heterogêneos que no país adquirem status de
revolta e comoção de diversos setores da socie- medicamento; disponibilidade mediante a receita
dade, pressionando o Supremo Tribunal Federal controlada do nabiximols, medicamento fitoterá-
(STF) a julgar se atos pela legalização eram crimi- pico com indicação específica e comprovação de
nosos ou não. Por decisão unânime, as marchas segurança e eficácia; disponibilidade mediante a
puderam continuar a sair às ruas sem serem receita controlada do dronabinol, THC sintético
criminalizadas45. também com indicação específica e comprova-
Após um trabalho intenso de mobilização so- da eficácia; um produto a base de cânabis de-
cial, a criação de redes de apoio com os diversos nominado canabidiol também obtido mediante a
cultivadores e ativistas interessados em oferecer receita controlada mas sem indicação específica
parte de sua produção para que outras pessoas e comprovação de segurança e eficácia.
pudessem ter acesso aos benefícios terapêuti- Os suplementos alimentares são importa-
cos dos canabinoides, fez com que, em 2014, dos com status de medicamentos, no entanto,
diversos grupos se mobilizassem e se unissem à apresentam grande variabilidade na qualidade.
causa da regulação. Foram formalizadas associa- Por exemplo, produtos de uma mesma marca e,
ções de pacientes e organizações da sociedades ainda, aqueles que em lotes distintos, podem
civil preocupadas com o acesso aos derivados da apresentar divergências quanto ao teor de cana-
cânabis para fins terapêuticos e hoje, se existe o binoides no produto e o que vem informado no
mínimo de possibilidade de acesso e informação rótulo. O custo da importação também é geral-
sobre estas propriedades, devemos sobretudo a mente elevado e há demora na obtenção da au-
esses ativistas e cultivadores que mantiveram torização e no processo de importação, fatores
a “brasa acesa” nos tempos mais obscuros da que dificultam a obtenção por esta via.
história da planta. É imperativo àqueles que ne- Nas prateleiras das farmácias, é possível
cessitam e se beneficiam dos componentes da encontrar um medicamento fitoterápico indica-
cânabis compreenderem a importância da demo- do para espasmos que acometem portadores de
cratização do acesso e do amplo conhecimento esclerose múltiplaIII Trata-se de um produto com
sobre as propriedades dos canabinoides. segurança e eficácia comprovadas, no entanto é
Existem diversas formas de se obter cana- caro e com uma apresentação farmacêutica que
binoides para alguma necessidade de saúde. O limita sua possibilidade de uso para outras indi-
panorama atual de acesso a canabinoides para cações. Outro medicamento disponível, mas que
prática terapêutica é diverso e pode ser caro, não é fitoterápico e sim uma cópia idêntica à mo-
burocrático e arriscado. A história recente da re- lécula natural do THC o dronabinol é indicado pa-
gulação brasileira segue uma trajetória de erros ra redução de náusea e vômitos em decorrência
e acertos proporcionados pelas instâncias regu- de tratamentos quimioterápicos para o tratamen-
latórias. Enquanto esta regulação resguarda ju- to de câncer.
dicialmente, o Ministério da Saúde se mantém Por fim, a última e mais recente via de
longe da realidade da população. Atualmente,
III
Nabiximols, da Beaufour Ipsen Farmacêutica Ltda.

vol.21, n.2, dez 2020 |153


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

acesso aos canabinoides foi proposta pela Agên- concentração de 200 mg/ml e que custa ao con-
cia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em sumidor mais de dois salários mínimos.
2019, quando, a partir de duas consultas pú- Extratos artesanais ofertados por associa-
blicas, foram colhidas opiniões de especialistas ções dão suporte a pessoas que necessitam de
e da sociedade civil. Foi publicada a resolução tratamentos com os canabinoides mas apresen-
que criou uma nova modalidade de produtos fito- tam dificuldades econômicas ou burocráticas
terápicos: os produtos a base de cânabis46. An- para obtenção das formulações oferecidas pe-
teriormente, existiam apenas duas modalidades lo poder público. Estes produtos vêm buscando
para o registro dos produtos farmacêuticos de aperfeiçoamento dos processos de produção pa-
origem vegetal: os medicamentos fitoterápicos, ra evitar a variabilidade destes produtos. Esta for-
que exigiam segurança e eficácia comprovadas ma, além de se apresentar como economicamen-
por estudos clínicos de fase II e III comparados à te viável para uma parcela da população maior
placebo e aprovados com uma indicação clínica que as demais vias de aquisição, ela permite o
específica, como é o caso do nabiximols; e a noti- acesso a extratos que contém uma diversidade
ficação dos produtos fitoterápicos como tradicio- de canabinoides e outras moléculas. Esta comiti-
nais que, por isso, dispensavam a necessidade va de moléculas presentes nos extratos apresen-
de comprovação de segurança e eficácia, exigin- tam efeitos diferentes das moléculas isoladas e
do apenas uma comprovação de qualidade - mo- sintética oferecidas pelo governo. Os extratos de
dalidade que incluem os compostos de conheci- diferentes variedades de cânabis apresentam di-
mento notório de uso por populações tradicionais ferentes perfis de canabinoides e outras molécu-
brasileiras, ou pertencentes à farmacopolas in- las que podem atuar em conjunto, de maneira si-
ternacionais reconhecidas pela Agência. nérgica, por vezes competitiva e, de acordo com
A partir da regulação de 2019, fez-se assim o caráter personalizado do sistema endocanabi-
a inclusão de uma modalidade exclusiva para os noide de cada indivíduo o consumo destes extra-
produtos à base de cânabis, permitindo que em- tos podem apresentar efeitos distintos, mais ou
presas nacionais e internacionais possam pleite- menos efetivos, mais ou menos intensos de acor-
ar a notificação de os produtos, assim como ocor- do com o perfil de canabinoides contidos nestes.
re para os produtos tradicionais, sem exigência Através da continuidade do trabalho atre-
estudos de segurança e eficácia. Estas empre- lado à orientação de diversos profissionais, as
sas estão permitidas a importar princípios ativos, associações vêm se adequando às boas práti-
insumos para a elaboração de medicamentos e cas de produção para garantir a qualidade e a
medicamentos prontos para serem comercia- segurança ao tratamento oferecido. A criação de
lizados em território nacional. No entanto, para federações das associações de pacientes e fami-
que o paciente acesse o medicamento a ANVISA liares que buscam na cânabis algum tratamento
exige que o médico faça a prescrição com recei- poderia orientar a padronização das práticas e
tuário médico especial, controlado para medica- fortalecer politicamente estas entidades.
mentos que apresentam potencial dano à sau-
Outras dúvidas são relativas à obtenção
de. Até o primeiro semestre de 2020, um único
e à duvida sobre a qualidade destes produtos.
produto foi regulamentado por esta agência: um
Assim, é possível no Brasil se obter tratamento
frasco com 30ml de canabidiol4 destilado numa
com derivados da cânabis, a partir da prescrição

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

médica e da compra do medicamento nas farmá- Orientações para autonomia


cias. No entanto, pouquíssimos são os médicos Estudos como Indian Hemp Comission Re-
que prescrevem este tratamento. É possível que port de 189447, La Guardia Comission de 194448
exista uma carência na formação dos profissio- e Shafer Comission de 197449 não comprovaram
nais de saúde quanto ao conhecimento sobre as que a cânabis era uma substância potencialmen-
propriedades dos canabinoides e sobre a funcio- te mais danosa que o álcool, tabaco ou certas
nalidade do sistema endocanabinoide. classes de medicamentos prescritos. Nenhum
Os medicamentos regulados disponíveis no destes relatórios aponta a necessidade de um
mercado brasileiro são caros com formulações controle maior ou proibição da planta. As evidên-
cias científicas que apontam para os riscos em
limitadas. Devido à complexidade e individuali-
se consumir a cânabis não são capazes de chan-
dade do sistema endocanabinoide, o tratamento
celar a sua proibição. A decisão de proibição da
personalizado demanda, por vezes, preparações
cânabis tem sua origem em interesses racistas
contendo diferentes teores de canabinoides ain- de contenção e eliminação dos hábitos tradicio-
da não ofertados para a população nas farmá- nais dos povos negros e indígenas nas Américas,
cias, apenas por associações. além dos interesses econômicos que conflitavam
As associações de pacientes tornam-se, com as propriedades oferecidas pela planta50. A
prática de consumir a cânabis por minorias étni-
portanto, uma importante via de acesso a câna-
cas atrelada ao interesse econômico de indús-
bis terapêutica. Ao longo dos últimos anos, elas
trias concorrentes fez com que governantes no
vêm judicializando sua prática e buscando aten- início do século XX proibissem o cultivo e consu-
der a uma demanda que é incompatível com a re- mo da planta, interesses dessa natureza pare-
gulação proposta pelo Estado brasileiro. Acabam, cem ainda hoje reverberar através dos discursos
por compaixão, focando esforços para orientar, conservadores que garantem a cânabis continue
facilitar e ofertar os derivados da cânabis com proibida.
diferentes proporções de canabinoides à famílias Nos Estados Unidos, a regulação do acesso
que demandam, pois obtém seu produto a par- à planta e seus componentes para fins terapêu-
ticos foi retomada pela Califórnia em 199651. De
tir do cultivo e preparo artesanal de extratos de
lá pra cá, 39 estados permitem acesso aos ca-
diferentes variedades da cânabis, mais baratos
nabinoides para fins terapêuticos e, deste grupo,
e mais variados que os medicamentos de formu-
cerca de 1/3 não exigem prescrição médica, en-
lação única, tornando o tratamento mais viável e quanto 2/3 condicionam sua aquisição à receita.
adequado à realidade. No entanto, estas associa- Em 1999, o Canadá iniciou um programa
ções ainda buscam aperfeiçoamento das práti- de uso de cânabis para fins terapêuticos que se
cas de cultivo, extração, produção, padronização, expandiu, após sucessivas decisões judiciais52.
logística etc e demandam a atenção de toda a Israel regulou o acesso terapêutico à cânabis em
sociedade sobre a importância e valorização do 2001, a Holanda, em 2003; a região da Catalu-
trabalho que realizam. nha, na Espanha, em 2005; a Suíça em 2011;
a República Checa, em 2013; a Colômbia, em
2015; a Itália, Austrália, Croácia e Chile, em

vol.21, n.2, dez 2020 |155


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

2016; a Alemanha, Grécia, Peru, México e Argen- demonstram o interesse de dar suporte à quem
tina, em 2017; a Jamaica, Dinamarca, Noruega busca essa prática terapêutica. É imprescindível
e Nova Zelândia, em 2018; finalmente Portugal, que uma regulação para esta finalidade, preocu-
em 201953. pada no acesso sobretudo da camada da popula-
Cada estado, nação ou união de nações ção com menor poder econômico, permita viabili-
apresenta formas diferentes de regular a produ- zar a produção dos cultivares de cânabis dentro
ção, distribuição e consumo destes compostos, e do Sistema Único de Saúde, sobretudo inseridos
os teores dos canabinoides, sobretudo, visando no Programa Farmácias Vivas, existentes em su-
à restrição a teores elevados de THC. As diferen- as mais de uma centena de municípios por todo
tes propostas devem ser apresentadas e discuti- o país com especial destaque para as regiões
das por todos os setores da sociedade para que Norte e Nordeste59. O Programa Farmácias Vivas
possamos compreender qual a melhor forma de é um programa que desenvolve cultivo e proces-
se regular e normalizar o acesso e dar atender a samento de dezenas de espécies vegetais de uso
demanda pela prática terapêutica com a cânabis tradicional, oferece uma manufatura farmacêuti-
e seus compostos. ca e destina uma série de fitoterápicos para di-
versas condições de saúde que é acessado atra-
No Brasil, em 2015, a ANVISA aprovou a im-
vés do Sistema Único de Saúde, uma pequena
portação para fins terapêuticos de suplementos
parcela dos municípios desenvolveram o progra-
alimentares que continham CBD; em 2016, após
ma que poderia se expandir a partir da demanda
decisão judicial, a agência se viu obrigada a regu-
pelos componentes da cânabis.
lar a importação de produtos com THC. Em 2018,
o primeiro “medicamento fitoterápico” com THC É necessário também regular as associa-
e CBD foi registrado. Em 2019, regulou a venda ções, federações, cooperativas e sociedades de
em farmácias e, em 2020, “o primeiro produto a pacientes para que estas possam produzir as va-
base de cânabis” produzido no país com insumo riedades de cânabis que sejam mais efetivas pa-
importado foi notificado para ser vendido nesses ra determinadas indicações terapêuticas e com
estabelecimentos54-58. A grande questão segue menores eventos adversos. Certamente todas
sendo os custos exorbitantes, por isso o gover- essas medidas, orientadas e aprimoradas em
no deveria incentivar e desenvolver programas de suas boas práticas, minimizariam o impacto eco-
pesquisa e inovação que facilitassem a aproxi- nômico atrelado ao tratamento de doenças que
mação das associações de usuários com as uni- necessitam desta terapêutica. As redes de pro-
versidades, a fim de ampliar o conhecimento so- teção e informação sobre a regulação do cultivo
bre a qualidade, segurança e a eficácia destes nacional da cânabis para fins terapêuticos devem
compostos e garantir boas práticas, pesquisa, ser ampliadas, contempladas e incluídas nesta
redução de custos e produção de conhecimento discussão para que haja melhor compreensão da
acerca das propriedades terapêuticas das câna- de-manda e das necessidades reais de consumo
bis oferecidas pelas associações. dessas substâncias por pessoas que já fazem o
uso, trazendo a luz informações sobre o por quê
Existem formas mais democráticas, econô-
o fazem, o que e como consomem, a forma de
micas e autônomas de se obter compostos a ba-
se de cânabis para fins terapêuticos. Estas ini- obtenção e o que pode ser melhorado.
ciativas devem ser fortalecidas, pois já existem e

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|158 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Possibilidades na Atenção em Álcool e Drogas:


levantamento e proposta da Linha de Cuidado para a
Saúde na Adolescência e Juventude para o SUS-SP
Possibilities in Alcohol and Drug Care: survey and proposal of the Health Care Line in Adolescence
and Youth for SUS-SP

Regina FigueiredoI, Sandra Mara GarciaII, Wilson SouzaIII, Jan BillandIV,


Maria Altenfelder SantosV, Mariana Arantes NasserVI

Resumo Abstract

Este artigo faz um relato dos perfis de serviços disponíveis nos mu- This article reports on the profiles of services available in the muni-
nicípios do estado de São Paulo para a atenção em saúde relativas cipalities of the state of São Paulo for health care related to alcohol
and drug issues for adolescents and young people, in addition to
às questões de álcool e drogas para adolescentes e jovens, além da
the proposal of the Line of Care for the Health of Adolescents and
proposta da Linha de Cuidado para a Saúde de Adolescentes e Jo-
Youth for the SUS in the State of São Paulo, developed in 2018,
vens para o SUS no Estado de São Paulo, elaborada em 2018, que which guides how these services should address and act with this
orienta como esses serviços devem abordar e atuar com este tema. theme.

Keywords: Adolescents and youth; Public health; Health care; Alco-


Palavras-chave: Adolescentes e Jovens; Saúde pública; Atenção à
Saúde; Álcool e drogas. hol and drugs.

I
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é cientista social, mestre
em Antropologia Social e Doutora em Saúde Pública pela Universidade de
São Paulo, Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de Introdução

N
Estado da Saúde de São Paulo, membro do Grupo Técnico de Saúde do
Adolescente da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES/SP) e inte-
grante da equipe do Projeto Linha de Cuidade para a Saúde na Adolescência o Brasil, o uso de álcool e outras drogas
e Juventude para o Sistema Único e Saúde no Estado de São Paulo (LCA&J).
vem fazendo parte das práticas de adoles-
II
Sandra Mara Garcia (sandragarciasp@gmail.com) é é antropóloga pela Uni-
versidade de Brasília (UNB), licenciada em Ciências Sociais pela Pontifícia centes e jovens. O III Levantamento Nacio-
Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMP), Mestre em Gênero e Estu-
dos de Desenvolvimento pela Univesity of Sussex, na Inglaterra, Doutora em nal de Álcool e Drogas, produzido pela Fundação
Demografia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Pesquisa-
dora do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (CEBRAP) e integrante Oswaldo Cruz em 20171, apontou que o consumo
da equipe do Projeto LCA&J.
III
Wilson Souza (wwpsouza@bol.com.br) é médico pela Pontifícia Universida-
de Católica de São Paulo PUC-SP (Campus Sorocaba, Pediatra pela Socie- Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP)
dade Brasileira de Pediatria, Sanitarista pela Faculdade de Saúde Pública da Doutora em Psicologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São
Universidade de São Paulo (FSP/USP), Administrador Hospitalar pela Funda- Paulo (FM/USP) e membro da equipe de elaboração e implementação do
ção Getúlio Vargas, membro da Área Técnica de Saúde do Adolescente da Projeto LCA&J.
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e integrante da equipe do de VI
Mariana Arantes Nasser (mariana.nasser@fm.usp.br) é médica pela Fa-
elaboração e implementação do Projeto LCA&J.
culdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/
IV
Jan Billand (jsj.billand@gmail.com) é psicólogo e Doutor em Psicologia So- UNESP), Especializada em Medicina Preventiva e Social pelo Hospital das Clí-
cial pela Université Paris 13, Pós-Doutor vinculado ao Instituto de Psicologia nicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP),
da Universidade de São Paulo (IP-USP) e membro da equipe de elaboração e Doutorado em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universi-
implementação do Projeto LCA&J. dade de São Paulo (FM/USP), atua como médica sanitarista do Centro de
Saúde Escola Professor Samuel Barnsley Pessoa da FMUSP (CSE/FM/USP),
V
Maria Altenfelder Santos (marialtenfelder@gmail.com) é psicóloga pela Professora da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São
Pontiícia Univesidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Psicologia Paulo (EPM/UUNIFESP) e Coordenadora do Projeto LCA&J.

vol.21, n.2, dez 2020 |159


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

de bebidas alcóolicas entre adolescentes de 12 da Saúde de São Paulo, existem cerca de 4.848
e 17 anos, nos 12 meses anteriores ao estudo, unidades básicas de saúde (UBSs), 10% dessas,
alcançava 22,2% e, entre 18 e 24 anos, 53,2%; localizadas na capital5. Para situações que envol-
já o consumo de drogas ilícitas na vida, foi de vam Saúde Mental e álcool e drogas, a rede de
4,0% e 14,3%, dentre os estudantes que reporta- atenção psicossocial, integrada por UBSs, con-
ram o uso dessas substâncias. ta ainda com 267 Centros de Atenção Psicosso-
Isso corrobora a tendência de uso dessas cial (CAPS), existentes em 124 municípios (63 na
substâncias já apontada no V Levantamento Na- capital)6, sendo 39 CAPS-infantojuvenil (CAPS-ij)
cional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas localizados em 21 municípios (15 localizados na
entre Estudantes do Ensino Fundamental e Mé- capital e apenas 6 em outras cidades) e 68 CAPS
dio da Rede Pública de Ensino em 27 capitais álcool e drogas (CAPS-ad), especificamente dire-
brasileiras2, realizado em 2003, pela Unversida- cionados para lidar com o uso/abuso de álcool
de Federal de São Paulo, que apontou a média e drogas espalhados por 45 municípios (20 des-
etária para o primeiro uso de álcool como 12,5 ses serviços localizados na capital e apenas 25
anos de idade, de tabaco, como 12,8; de 13,9 em outras cidades) - salientando-se que, embora
anos para uso de maconha e 14,4 anos, para a esses CAPS-ad estejam previstos, pelo Ministé-
cocaína. rio da Saúde, para o atendimento a todas as fai-
xas etárias, em vários serviços só são atendidos
No estado de São Paulo, onde a popu-
maiores de 18 anos7, o que se mostra uma in-
lação estimada de adolescentes entre 15 e 18
congruência já que estudos nacionais apontam
anos, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
que apenas 1,8% dos atendimentos do CAPS-inf
tatística (IBGE), representa 7,2% da total3, ou se-
se dão devido ao uso de substâncias psicoati-
ja, 3.303.908 pessoas. Nesta faixa etária, o le-
vas, não contemplando a realidade deste uso8. A
vantanto de 2004, indica que aproximadamente
abordagem a esta situação também poderia se
9,7% dos estudantes do Ensino Médio faziam uso
dar pela maior integração com a Atenção Básica
frequente de álcool e drogas2.
e ações de matriciamento9.
Dados do Ministério da Saúde4 registram
Esse volume de CAPS ainda se mostra in-
que, no estado de São paulo, em 2019, houve
suficiente, uma vez que a previsão é que haja 1
67 internações de adolescentes entre 15 e 19
CAPS para cada 15.000 habitantes, 1 CAPS-ad
anos devido a transtornos associados ao uso de
para atender adultos ou crianças que utilizem ál-
álcool (42 masculinas e 25 femininas) em hospi-
cool e/ou drogas em regiões ou municípios com
tais ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e
mais de 70.000 habitantes e 1 CAPS-ij para aten-
1.102 internações devido ao consumo de outras
der crianças e adolescentes “que fazem uso de
drogas psicoativas (811 masculinas e 291 femi-
crack, álcool e outras drogas” em regiões ou
ninas), totalizando 1.169 internações por abuso
municípios acima de 150.000 habitantes9. Ade-
dessas substâncias.
mais, a Política Nacional de Saúde Mental apon-
Para esta população, além do alcance das
ta para a necessidade da existência de 1 CAPS-
redes da área de Educação e de Assistência So-
-ad III com leitos, em regiões ou municípios com
cial, a área de saúde pública oferta uma diversi-
população acima de 200.000 habitantes9. Des-
dade de serviços espalhados em seus 645 mu-
sa forma, pode-se atender adultos ou crianças
nicípios. Segundo dados da Secretaria de Estado

|160 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

e adolescentes que precisem de observação e construção de uma abordagem da saúde envol-


monitoramento. vendo álcool e outras drogas no âmbito de uma
Registra-se ainda que essa assistência já linha de cuidado à saúde integral do adolescente
enfrenta diversas dificuldades, visto que a ade- e do jovem no Estado de São Paulo, partindo de
são ao tratamento em CAPS-ad vem se reduzindo uma visão que siga os pressupostos da Política
justamente entre os que se encontram na faixa Nacional de Saúde Mental, que, segundo a pró-
etária entre os 11 e os 29 anos, dentre os quais, pria Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo,
alguns em situação de rua, o que dificulta o esta- “... busca consolidar um modelo de aten-
belecimento de vínculos10. ção à saúde mental aberto e de base co-
munitária. Isto é, mudança do modelo de
Cabe salientar que, além das ações espe-
tratamento: no lugar do isolamento, o con-
radas de assistência para os adolescentes e jo- vívio com a família e a comunidade”15.
vens já usuários de álcool e drogas, são neces-
sárias ações de prevenção a este uso, tanto na
área de saúde como de educação e assistência Objetivo e Métodos
social, áreas que também atuam com este públi- Este artigo tem como objetivo analisar os
co e que se correlacionam com as vulnerabilida- resultados do questionário da “Linha de Cuidado
des de saúde. para a Saúde de Adolescentes e Jovens (LCA&J)
Após o lançamento, em 2010, do Plano In- para o SUS no estado de São Paulo”, quanto à
tegrado de Enfrentamento ao Crack11 pelo Minis- atenção e promoção de saúde, nas questões re-
tério da Saúde, a Secretaria de Estado da Saúde lativas ao uso de álcool e drogas para adolescen-
de São Paulo estabeleceu, para além dos ser- tes e jovens.
viços de saúde citados, o Programa Recomeço. A LCA&J foi construída entre 2017 e 2018,
Esta iniciativa oferta a opção de internação para em um projeto apoiado pela Organização Pan-
tratamento de drogas em 66 clínicas terceiriza- -Americana de Saúde (OPAS) e o Programa Pes-
das, 56 delas atendendo o público masculino e quisa para o SUS: Gestão Compartilhada em
20 o feminino, espalhadas por 46 municípios e Saúde (Chamada PPSUS/FAPESP 2016). Sua re-
ofertadas pelo SUS e também por meio das Dire- alização contou com a parceria de coordenação
torias Regionais de Assistência e Desenvolvimen- compartilhada entre o Centro de Saúde Escola
to Social12. Esta iniciativa controversa, que se as- Professor Samuel Barnsley Pessoa, do Hospital
socia às chamadas “comunidades terapêuticas”, das Clínicas da Faculdade de Medicina da Uni-
em sua maioria, entidades religiosas e que se versidade de São Paulo (CSE/FM/USP), o Centro
utilizam de práticas confessionais13, vem sendo Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e
amplamente criticada por diversos autores e tam- a Área de Atenção Básica da Secretaria de Es-
bém pelos defensores das estratégias de Redu- tado da Saúde de São Paulo (SES-SP); além do
ção de Danos, que apontam a utilização de téc- estabelecimento de parcerias institucionais com
nicas não científicas, falta de recursos humanos o Conselho de Sercretários Municipais de Saúde
da área de saúde e até o uso de práticas desu- do Estado de São Paulo (COSEMS-SP), o Progra-
manas e iatrogênicas criticadas pelo Movimento ma Estadual de DST/Aids e Hepatites Virais, e a
da Reforma Psiquiátrica Brasileira14. Área de Saúde Mental da SES-SP. A confecção
Neste sentido, ainda se faz necessária a desta linha de cuidado, finalizada em 201816,

vol.21, n.2, dez 2020 |161


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

incluiu a realização de um levantamento com ser- também atendem por encaminhamento e outros
viços de saúde existentes em todas as regiões 171 (18%) recebem usuários exclusivamente por
do estado de São Paulo e em todos os níveis de encaminhamento, inclusive o da rede intersetorial.
atuação, sobre suas práticas e perfis de atuação Além desse critério, 835 (87,9%) também
em relação à saúde de adolescentes e jovens, atentam para a faixa etária como critério, em
feito por meio de um questionário eletrônico pa- 721 (75,9%) das vezes utilizando o Estatuto da
ra preenchimento on line pelos serviços, visando Criança e do Adolescente (ECA) como documento
que a construção da linha respondesse às suas de referência para definir este público (que defi-
necessidades e servisse de referência para suas ne adolescentes como aqueles dos 12 aos 17
atuações no estado de São Paulo. anos)17; outros 176 (18,5%) utilizam também o
Estatuto da Juventude (EJ) (que define jovens co-
Resultados mo aquelas pessoas entre os 15 e os 29 anos de
idade)18 e 374 (39,4%) se pautam pelo documen-
De 950 serviços de saúde pertencentes
to da Organização Mundial de Saúde (OMS) (que
a 61 municípios paulistas que responderam ao
define pré-adolescentes entre os 10 e 14 anos,
questionário de preparação da Linha de Cuidado
adolescentes entre os 15 e 19 anos e juventude
para a Saúde na Adolescência e Juventude para
de 20 a 29 anos)19. Mostrando maior influência
o Sistema Único de Saúde no Estado de São Pau-
desta última referência, a adolescência é apon-
lo (LCA&J), 717 são unidades básicas de saúde
tada por cerca de 1/3 desses serviços (33,7%)
(539 delas com agentes comunitários de saúde
como iniciada antes dos 10 anos de idade, o que
e/ou Estratégia de Saúde da Família (ESF); 22
resulta na inclusão do público infantil.
são serviços de atenção especializada ao ado-
lescente (incluindo Casas do Adolescente), 102 O atendimento a este público é ofertado por
são Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), 48 772 (81,3%) serviços, durante todo o horário de
serviços de DST/aids (Serviço de Assistência Es- funcionamento e 5 dias da semana; 21 (2,2%)
pecializada em HIV/Aids (SAEs) e Centro de Tes- também fazem atividades/atendimentos no perí-
tagem e Aconselhamento (CTAs)), 7 serviços de odo noturno e 41 (4,3%) aos finais de semana.
atenção à saúde da mulher, 9 são serviços hospi- Apenas 174 (18,3%) dos serviços restringem ho-
talares especializados em adolescência e 40 são rários para a marcação de atendimento a ado-
de outros tipos. lescentes, geralmente os agendamentos podem
ser feitos em todos os horários, e 773 (81,4%)
Quanto à localização, estão predominante-
afirmam fazer “encaixe” de atendimento de ado-
mente na área urbana e central dos municípios,
lescentes não agendados em todos os períodos
sendo que apenas 29 (4,1%) das UBSs e 1 CAPS
e dias de funcionamento do serviço.
(1,0%) se encontram em áreas rurais (Tabela 2).
A maioria dos serviços (946) declarou ter
Desses serviços, 580 (61,0%) apontaram
atuação junto aos adolescentes; embora 5 (0,6%)
questões ligadas ao uso de álcool e droga entre
UBSs declararam não ter atividades com adoles-
os principais motivos de procura de seuserviços
centes, por isso não foram considerados para a
por adolescentes e jovens33 (ver Tabela 1).
análise que também visa o atendimento deste
A grande maioria desses serviços (82,0%)
público (Tabela 3).
utiliza critérios de local de residência para ca-
Além dos 20 (87,0%) serviços especializados
dastrar seus usuários, mas 95 (10,0%) desses

|162 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Tabela 1 – Perfil dos serviços que responderam ao Levantamento LCA&J

n %
Tipo de Seviço
Unidade de Atenção Básica 721 75,9
Serviço de atenção especializada a adolescentes 22 2,3
Serviço hospitalar 9 0,9
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) 102 10,7
Serviços de DST/Aids 48 5,1
Serviço de Saúde da Mulher 7 0,7
Outro 40 4,2
não resp 1 0,1
Total 950 100,0
Esfera
Municipal 921 96,9
Estadual 11 1,2
Federal 9 0,9
Total 941 99,1
não resp 9 0,9
Total 950 100,0
Tipo de Administração
Direta da Saúde (esfera nacional, estad. ou munic.) 676 71,2
Direta de outros Órgãos (não ligados à saúde) 6 0,6
Indireta (Autarquias, Fundação Pública, Empresa Pública, Organiza- 44 4,6
ção Social Pública, Economia Mista)
Empresa ou Fundação Privada 5 0,5
Organização Social de Saúde – OSs 199 20,9
Outros 13 1,4
Sub-total 943 99,3
não respondeu 7 0,7
Total 950 100,0
Realiza Ensino e Pesquisa?
Sim, é (ou integra) uma Unidade Universitária 29 3,1
Sim, é (ou integra) uma Unidade Escola Superior Isolada 7 0,7
Sim, é (ou integra) uma Unidade Auxiliar de Ensino 90 9,5
Sim, é (ou integra) um Hospital de Ensino 9 0,9
Não, é Unidade sem Atividade de Ensino 463 48,7
Não se aplica 343 36,1
não respondeu 9 0,9
Total 950 100,0

no atendimento de adolescentes, cabe desta- encaminhamento e apenas 26 (25,5%), 2 (4,2%)


car que a maioria dos CAPS, dos ambulatórios e 1 (14,3%) são porta aberta para a atenção em
de DST e dos serviços de atenção à mulher que geral.
atuam com adolescentes, 52,0%, 62,5%, 85,7%, Os motivos de procura pelo público adoles-
respectivamente, acolhem usuários por meio de cente são, principalmente, para questões que

vol.21, n.2, dez 2020 |163


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Tabela 2 – Tipo, âmbito e gestão dos serviços que atuam com adolescentes

municipal estadual federal não resp. total


Tipo de Seviço n % n % n & n % n %
UBS 710 99,2 0 0,0 2 0,3 4 0,6 716 100,0
Serviço deAt- 19 82,6 3 13,0 0 0,0 1 4,3 23 100,0
endimento a
Adolescentes
Serviço Hospitalar 3 33,3 5 55,6 1 0 0,0 9 100,0
CAPS 96 94,1 2 2,0 4 3,9 0 0,0 102 100,0
Serviço DST/Aids 46 95,8 0 0,0 2 4,2 0 0,0 48 100,0
Serviço de Atenç. 7 100,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 7 100,0
à Mulher
outros 39 97,5 1 2,5 0 0,0 0 0,0 40 100,0
não respondeu 1 0,0 0 0,0 0 0,0 0 100,0 1 100,0
Total 921 97,4 11 1,2 9 1,0 5 0,5 946 100,0

envolvem sexualidade, reprodução (em espe- Isso salienta a importância da abordagem


cial as UBS), além de serviços odontológicos, sobre o uso de álcool e drogas e suas implicaçõe
encaminhamentos escolares e por mudanças e para a vulnerabilidade em saúde de adolescentes
crescimento corporal na adolescência. Entre as em todas as UBSs, junto com uma melhor capaci-
UBSs,366 (51,1%) indicaram, entre os motivos tação das equipes de Atenção Primária para aco-
de procura do serviço, questões ligadas ao uso lhimento, seguimento e encaminhamento dessas
de álcool, e 309 (43,2%) questões ligadas ao uso demandas, além de um trabalho preventivo mais
de drogas ilícitas, corroborando os estudos que consitente que envolva os adolescentes tanto fo-
apontam para a relevância de formas de apoio à ra quanto dentro dos serviços de saúde. Existe
grande utilização dessas substâncias no cotidia- ainda a necessidade de mais serviços de CAPS,
no dos adolescentes, inclusive para aqueles que incluindo CAPS-ad e CAPS-ij nos municípios, a de-
chegam nos serviços disponíveis em suas comu- pender de seu porte populacional, de modo a su-
nidades. Nos serviços de atenção especializada perar sua quantidade insuficente.
a adolescentes, o uso de álcool e os motivos li- Embora metodologias de trabalho em gru-
gados à sexualidade são os principais motivos pos com adolescentes sejam recomendadas,
de procura (apontados por 82,6%), seguidos pelo apenas 44,3% dos serviços realizam: 41,9% das
uso de drogas ilícitas e a busca de atenção odon- UBS que atuam com este público, 65,2% dos ser-
tológica, ambos com igual percentual de procura viços especializados em adolescentes, 33,3%
(73,9%). Nos CAPS, o uso abusivo de álcool por serviços hospitalares, 55,9% dos CAPS, 54,2%
adolescentes chega como o principal motivo de dos serviços de DST/HIV/aids e 57,0% dos servi-
procura (para 74,5%); nos serviços de atenção à ços de atenção à mulher (Tabela 4).
mulher, o uso de álcool entre este público repre- Cabe salientar a realização de grupos com
senta 28,6% e em serviços de atenção hospitalar, adolescentes realizados fora do serviços de saú-
é a segunda razão de procura (por 66,7%), além de, por 509 (53,8%) dos serviços, principalmente
de 44,4% de serviços que mencionaram busca UBS (58,9% delas fazem) e CAPS (51,0%), o que
motivada por uso de drogas ilegais (Tabela 3). denota estratégias das equipes para encontrar

|164 vol.21, n.2, dez 2020


Tabela 3 – Principais Motivos de Procura do Serviço por Adolescentes

UBS Serv. Adolesc Serv Hosp. CAPS Serv. DST Serv. Atend. outros serv. total
Mulh
n % n % n % n % n % n % n % n %

Tipo

vol.21, n.2, dez 2020


Corpo e 500 69,8 19 82,6 4 44,4 55 53,9 9 18,8 2 28,6 24 60,0 613 64,8
puberdade
Sexualidade 560 78,2 19 82,6 4 44,4 26 25,5 36 75,0 5 71,4 18 45,0 668 70,6
Reprodução 508 70,9 14 60,9 2 22,2 2 2,0 5 10,4 4 57,1 10 25,0 545 57,6
Doenças 207 28,9 8 34,8 8 88,9 10 9,8 16 33,3 1 14,3 12 30,0 262 27,7
crônicas
Doenças 338 47,2 8 34,8 5 55,6 8 7,8 0,0 1 14,3 12 30,0 372 39,3
respiratórias
Atendimento 580 81,0 17 73,9 2 22,2 2 2,0 12 25,0 7 100,0 12 30,0 632 66,8
odontológico
Gestação e 232 32,4 15 65,2 4 44,4 2 2,0 0,0 0,0 6 15,0 259 27,4
pré-natal
Nutrição ou 174 24,3 14 60,9 4 44,4 27 26,5 4 8,3 1 14,3 7 17,5 231 24,4
alimentação
Declaração para 144 20,1 8 34,8 2 22,2 63 61,8 9 18,8 2 28,6 12 30,0 240 25,4
práticas físicas
Família, amigos 197 27,5 11 47,8 3 33,3 73 71,6 10 20,8 2 28,6 16 40,0 312 33,0
etc.
Uso de álcool 366 51,1 19 82,6 6 66,7 76 74,5 1 2,1 2 28,6 23 57,5 493 52,1
Uso de drogas 309 43,2 17 73,9 4 44,4 47 46,1 1 2,1 1 14,3 20 50,0 399 42,2
ilícitas
Depressão, 349 48,7 12 52,2 2 22,2 2 2,0 0,0 1 14,3 7 17,5 373 39,4
ansiedade ou
sofrimento
emocional
Trabalho e renda 574 80,2 5 21,7 2 22,2 0,0 9 18,8 0,0 8 20,0 598 63,2
Queixa escolar 412 57,5 18 78,3 5 55,6 66 64,7 8 16,7 2 28,6 16 40,0 527 55,7
Vacinações 196 27,4 14 60,9 3 33,3 74 72,5 6 12,5 0,0 19 47,5 312 33,0
Solicitação da 439 61,3 9 39,1 1 11,1 0,0 2 4,2 1 14,3 12 30,0 464 49,0
família
Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

|165
Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

este público no território e/ou em outros equipa-

18,2

53,8
44,3
25,3
31,3

17,8
17,0

5,5
%
mentos nos quais circulam.
total

Dos serviços que atuam com adolescentes,

296

509
168

239
161

419
172

52
n

443 (46,8%) fazem abordagem de temas de Saú-


de Mental e 446 (47,1%) especificamente abor-

22,5

35,0
20,0

10,0

27,5
5,0

0,0
7,5
outros serv.

dam o uso de álcool e drogas (Tabela 5).


A atenção à saúde de adolescentes é rea-

11
14
2

3
4
8

9
n

lizada por equipes multidisciplinares, sendo que


apenas 32 desses serviços possuem médicos
Tabela 4 – Tipos de Grupos Realizados com Adolescentes por tipo de serviço

14,3

14,3
57,0
Serv. Atend.

0
0
0
0

0
hebiatras, enquanto o mais comum para este
Mulh

atendimento é a atuação de clínicos gerais (em


240 serviços; 25,3%) ou pediatras (191; 20,1%);
1

0
0
0
0

0
1
4
n

159 (16,7%) contam com psiquiatras para es-


54,2
14,6

27,1
8,3

4,2

8,3
6,3

ta abordagem (principalmente nos 102 CAPS) e


%

0
Serv. DST

525 (55,2%) com psicólogos (sendo 102 deles


de CAPS). Em 565 (59,5%) serviços há também
13
26
4

2
0
7
3

4
n

assistentes sociais, embora não tenha sido espe-


48,0
60,8
55,9
26,5

55,9
52,9
51,0

cificada a sua atuação com adolescentes.


4,9
%
CAPS

Os critérios mais mencionados para atua-


54
62

49

52
27

57

57

ção de um profissional com o tema álcool e dro-


5
n

gas com o público adolescente são o interesse


33,3
22,2

22,2
22,2
11,1
11,1
0,0
Serv Hosp.

pessoal, a disponibilidade e a capacitação para a


atuação com este tema.
0
2
0
2
2
1
1
3
n

Com relação à autonomia de adolescentes,


a idade estabelecida para consultas sem acom-
Serv. Adolesc

43,5
43,5

34,8

65,2
30,4

30,4

39,1
21,7
%

panhamento, com médicos, independente da pre-


sença ou autorização de familiares, não corres-
15
10
10
7

7
5
8
9
n

pondeu às diretrizes vigentes e mostrou variação,


58,9
18,3

22,8
12,4
29,5

14,8

41,9

de acordo com o tipo de serviço. Apenas 45,2%


4,6
%

dos serviços respeitam o direito ao sigilo para


UBS

300
106

163
211

422
131

adolescentes de 12 anos e 63,0% respeitam pa-


33
89
n

ra aos 15 anos; 31,3% afirmam que o acompa-


ativ man. artistic

ações por pares

nhamento de responsáveis é sempre obrigatório,


fora do serviço

grupo adolesc.
terap. Grupal

Total que faz


ativ. Socioc

o que implica que não há garantia do direito de


de acolhim

ativ. pais

autonomia a nenhum adolescente e mais 3,3%


condicionam a atenção ao adolescente desacom-
Tipo

panhado à apresentação de autorizações escri-


tas, perfazendo um total de 34,4% de serviços

|166 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Tabela 5 – Temas trabalhados com adolescentes e jovens por tipo de serviço

Abordagem com Abordagem com


adolescentes Jovens
até 17 anos de 18 a 30 anos
n % n %

Tipo

Corpo e puberdade 500 69,8 19 82,6


Sexualidade 560 78,2 19 82,6
Reprodução 508 70,9 14 60,9
Doenças crônicas 207 28,9 8 34,8
Doenças respiratórias 338 47,2 8 34,8
Atendimento odontológico 580 81,0 17 73,9
Gestação e pré-natal 232 32,4 15 65,2
Nutrição ou alimentação 174 24,3 14 60,9

Declaração para práticas físicas 144 20,1 8 34,8


Família, amigos etc. 197 27,5 11 47,8
Uso de álcool 366 51,1 19 82,6
Uso de drogas ilícitas 309 43,2 17 73,9
Depressão, ansiedade ou sofrimento 349 48,7 12 52,2
emocional
Trabalho e renda 574 80,2 5 21,7
Queixa escolar 412 57,5 18 78,3
Vacinações 196 27,4 14 60,9
Solicitação da família 439 61,3 9 39,1
Situações de violência 234 32,7 17 73,9
outros 88 12,3 7 30,4

Tabela 6 – Idade estabelecida para atendimento autônomo de adolescentes

n % % proporcional

Tipo

Corpo e puberdade 500 69,8 19


Sexualidade 560 78,2 19
Reprodução 508 70,9 14
Doenças crônicas 207 28,9 8
Doenças respiratórias 338 47,2 8
Atendimento odontológico 580 81,0 17
Gestação e pré-natal 232 32,4 15
Nutrição ou alimentação 174 24,3 14

vol.21, n.2, dez 2020 |167


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

que não proporcionam a atenção a adolescentes proporção de serviços que declararam não aten-
por demanda espontânea desses (Tabela 6). Es- der adolescentes, em contradição com a sua afir-
ta mesma situação também pode ser verificada mativa anterior de que atenderiam este público
no caso de outras categorias profissionais e ativi- (947 de 950 serviços confirmaram esta atuação)
dades ofertadas pelos serviços de saúde. e também em contradição com suas atribuições

Além de atendimento a adolescentes em oficiais: UBS, CAPS e SAEs e CTAs não devem
restringir seu atendimento por faixa etária, mes-
geral, 135 serviços (14,2%) realizam trabalhos
mo que em seus territórios existam outros servi-
especificamente dirigidos a adolescentes e jo-
ços que sejam referência em atendimento espe-
vens em situação de vulnerabilidade social; 179
cilizado para o público adolescente.
(18,8%) têm trabalhos específicos para usuários
de comunidades terapêuticas ou outras insititui-
ções de Saúde Mental; e 327 (34,4%) para ado- Linha de Cuidado para a Saúde na Adolescência
e Juventude para o Sistema Único de Saúde no
lescentes em situação de violência doméstica e
Estado de São Paulo (LCA&J)
167 (17,6%) com adolescentes em outras situa-
O projeto Linha de Cuidado para a Saú-
ções de violência.
de na Adolescência e Juventude para o Sistema
Considerando a rede de saúde identificada Único de Saúde no Estado de São Paulo (LCA&J)
por esses serviços como existentes em seus terri- produziu, além do levantamento de dados, outras
tórios, foram mencionados 103 (10,8%) CAPS-ad formas de produção e análise de dados para a
infanto-juvenil no bairro do próprio serviço, 429 construção da linha de cuidado, como a realiza-
(45,2%) no próprio município e 234 (24,6%) na ção de grupos focais com profissionais de saúde,
regional de saúde. Desses serviços, 325 (34,2%) gerentes de serviços de saúde, gestores do setor
fazem encaminhamentos para esses CAPS-ad e saúde, profissionais intersetoriais, adolescentes
CAPS-ij e 387 (40,7%) declararam encaminhar pa- e jovens; grupos de experts sobre adolescência e
sobre planejamento; experiências piloto em três
ra algum serviço de atenção psicossocial no pró-
regiões de saúde (Itapetininga, Litoral Norte e
prio município.
Mananciais).
Apenas 212 (22,3%) dos serviços afirma-
A análise de todos os dados levou à formu-
ram contar com uma Casa do Adolescente de re-
lação de recomendações, que foram trabalhadas
ferência, 225 (23,7%) um Centro de Convivência em seminários de pesquisa e em reuniões rela-
e Cultura, 564 (59,4%) com Centros Esportivos cionadas à gestão em saúde da Atenção Básica,
Públicos, 421 (44,3%) com outros centros cultu- como o grupo técnico bipartite, além da comis-
rais e esportivos. são científica do Programa Estadual de Saúde do
Dentre os serviços pesquisados que afir- Adolescente, seminários do Programa Estadual
maram não atender adolescentes, 404 (43,5%) de DST/Aids, encontros do PPSUS, etc.
encaminham este público para outros serviços e Como resultado final, formulou-se o docu-
528 (55,6%) para o atendimento em outros muni- mento final da Linha de Cuidado para a Saúde na
cípios, presentes em suas respectivas regionais Adolescência e Juventude para o Sistema Único
de saúde em metade deles. Preocupante é a de Saúde no Estado de São Paulo (LCA&J), que

|168 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

através de aprovação na Comissão Intergestores específica (residência, especialização, cur-


Bipartite em 18 de outubro de 2018, passou a sos de extensão ou profissionalização em
constituir-se como política pública de saúde para programas multiprofissionais e médicos
adolescentes e jovens no estado de São Paulo16. em adolescência) e à educação permanen-
Em complemento a esta tambem foi criado um te de profissionais em atuação no serviço,
sistema de indicadores para a avaliação da im- com ênfase para as temáticas frequentes
plementação desta linha de cuidado.
para o trabalho com esses grupos popu-
O documento estabelecido nessa política lacionais (crescimento, puberdade, saúde
pública é dirigido a gestores do setor saúde, co- sexual e reprodutiva, direitos humanos,
ordenadores de serviço e profissionais de saúde,
violência, álcool e outras drogas, traba-
dentre outros interessados, como profissionais
lho, educação e formação, etc.), bem co-
intersetoriais e, inclusive, adolescentes e jovens
mo para metodologias voltadas ao diálogo,
Tendo em conta as questões relativas ao uso de
(mediação de oficinas, grupos educativos,
álcool e drogas entre adolescentes e jovens e a
diálogo, etc.) e para a atuação interprofis-
necessidade de ampliação de ações de saúde
nesse sentido, a “Linha de Cuidado para a Saúde sional e intersetorial, entre outros” (p.42).
de Adolescentes e Jovens para o SUS no Estado A explicitação do tema do uso de ál-
de São Paulo” (LCA&J)16 tem como orientação: cool e outras drogas deve ser incluída nesta
“A utilização de instrumentos espe- abordagem16:
cíficos no acolhimento de adolescentes e “A equipe precisa ser preparada para
jovens e seus familiares, para favorecer o abordar e acolher adolescentes e jovens
diálogo com esses públicos, bem como a em função das atividades e temáticas que
identificação de motivos de procura pelo mais fazem com que estes(as) procurem
serviço, riscos e necessidades de saúde, os serviços de saúde – ou seja, por ordem
com destaque para os objetivos de: acom- decrescente: sexualidade; atendimento
panhar o crescimento e o desenvolvimen- odontológico; trabalho e renda; reprodu-
to; identificar questões de saúde mental; ção; queixa escolar; uso de álcool; solici-
investigar o risco de suicídio, o uso de ál- tação da família; corpo e puberdade; uso
cool e outras drogas e o envolvimento em de drogas ilícitas; depressão, ansiedade ou
situações de violência; abordar transtornos sofrimento emocional; situações de violên-
alimentares; entre outros” (p.42). cia...” (p.43)
Esse acolhimento e atenção podem ser A Linha de Cuidado para a Saúde na Ado-
realizados por profissionais de saúde de diferen- lescência e Juventude para o Sistema Único de
tes formações e categorias, salientando que o Saúde no Estado de São Paulo (LCA&J) formula
diálogo é essencial, além de serem incentivadas diretrizes que dizem respeito aos serviços da re-
estratégias de abordagem participativas16: de, tanto no plano da gestão como do trabalho
“A escolha de profissionais para tra- assistencial, e também inclui recomendações es-
balhar com adolescentes e jovens deve le- pecíficas para o trabalho nos cinco tipos de servi-
ços identificados como componentes da rede de
var em conta aspectos relativos à formação

vol.21, n.2, dez 2020 |169


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

atenção a adolescentes e jovens no Estado de reconhecimento de necessidades e orientações


São Paulo: UBS, CAPS, SAE/CTA,serviços espe- de estilo de vida e modos de enfrentamento de
cializados (casas do adolescente) e serviços hos- vulnerabilidades;
pitalares especializados. Apresentamos algumas • vacinações;
orientações relacionadas à atenção sobre o uso
• dispensação de preservativos femininos e
de álcool e outras drogas:
masculinos, por livre demanda e em local de fácil
acesso;
- para as UBS: • dispensação de métodos anticoncepcionais;
Nas UBS, que podem ser acessadas mais oferta e coleta de exames laboratoriais na UBS,
facilmente por este público, nas redondezas de incluindo sorologias e/ou teste rápido para IST/
suas residências e trajetos escolares, deve-se aids e hepatites virais;
ampliar o olhar, o acolhimento e a escuta a este • consulta de enfermagem e consulta médica,
público na Atenção Primária à saúde16: incluindo atenção à saúde sexual e reprodutiva e
“Recepção, acolhimento e atividades a doenças crônicas;
de educação em saúde em espaços de • avaliação e acompanhamento de situações
convivência do serviço ou específicos pa- de risco psicossocial e de transtornos de saúde
ra adolescentes e jovens; a recepção deve mental comuns ou decorrentes do uso de álcool
contar com acolhimento e escuta ampliada e drogas ;
para a identificação das necessidades. Uti-
• desenvolvimento de atividades de educação
lização de instrumentos e dispositivos para
em saúde de adolescentes, jovens, pais, familia-
o cuidado e particularmente para o acolhi-
res e responsáveis.
mento, como fichas para o levantamento
Para a atenção, podem ser pedidos exa-
de necessidades. Atendimento à demanda
mes, atenção medicamentosa, além da realiza-
espontânea, incluindo doenças agudas e
ção ações de planejamento e vigilância das prin-
situações de urgência e emergência em
cipais morbidades, com discussões de equipe e
APS” (p.47).
supervisão de casos. A atenção específica rela-
Esses serviços devem também focar ações
cionada ao uso de álcool e drogas pode contar
de preparação para a mudança de fase de vida,
ainda com outros profissionais disponíveis na re-
promovendo ações preventivas para a redução
de de atenção, a depender “do arranjo organiza-
de vulnerabilidades de adolescentes e jovens, ao
cional, da participação e composição do Núcleo
realizar16 (p.47):
de Apoio à Saúde da Família (NASF), entre outros
• visitas domiciliares, por ACS, outros mem- apoiadores, como psicólogos, educadores físicos
bros da equipe assistencial ou equipes de vigi- e assistentes sociais” (p.47) e da “dispensação
lância em saúde; de remédios de acordo com a Relação Municipal
• visitas ao território. Estabelecimento de par- de Medicamentos (REMUME), incluindo psicotró-
cerias para realização de atividades de educação picos, entre outros” (p. 47).
em saúde, no território ou em serviços de outros
setores e coletivos de adolescentes e jovens;
- para os CAPS:
• atendimento de enfermagem, com
Devem prover cuidado a adolescentes e

|170 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

jovens, com “enfoque na atenção a pessoas com Saúde Mental, redução de estigmas, e preven-
transtornos mentais graves e persistentes in- ção do uso de álcool e drogas e atividades volta-
cluindo aquelas que fazem uso de crack, álcool e das à inclusão e à reabilitação de adolescentes
outras drogas” (p.51). e jovens.
Adolescentes e jovens devem ser compre- No que tange ao acesso de adolescente e
endidos como indivíduos que podem estar em si- jovens, é importante que os CAPS16:
tuação de vulnerabilidade devido a questões só- “...sejam “porta aberta”, de modo que
cioculturais próprias da fase em que vivem. Por poderão ser procurados diretamente por
isso, a Rede de Atenção Psicossocial Local deve adolescentes e jovens, ou também enca-
gerenciar projetos terapêuticos, em conjunto com minhados por outros serviços. (...) Nos
aos serviços de Atenção Primária, realizando pla- casos em que adolescentes ou jovens
nejamento de ações de prevenção e atenção em procuram o CAPS, mas a consideração é
Saúde Mental para este público. de que o atendimento em CAPS não é ne-
A promoção de saúde do CAPS deve ser cessário, garantir o acesso à LCA&J por
orientada “com ênfase na identidade, no perten- meio de referência rotineira à UBS (infor-
cimento, na cidadania, nos direitos humanos e mando qual é a UBS de referência da pes-
nos projetos de vida e saúde mental”, inclusive soa, seu endereço e modo de funciona-
relativas ao uso de álcool e drogas, dando assis- mento)” (p.51).
tência a seus agravos em Saúde Mental16 (p.51). Para este cuidado, é necessário articular re-
Essa assitência deve se pautar em promover: ferências locais ou regionais e atuar em parce-
• acolhimento humanizado por toda a equipe; ria com outros serviços, incluindo UBSs, Centros
• diálogo com o usuário do serviço; de Testagem e Aconselhamento (CTA) e Serviços
• promoção de autonomia de adolescentes e de Assistência Especializada em HIV/Aids (SAEs),
jovens; Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SA-
• vinculação dos adolescentes com um profis- MU) 192, Unidade de Pronto Atendimento (UPA).
sional de referência Em caso de necessidade de afastamento
• atendimento individual, psicoterapêutico e social16:
medicamentoso (se necessário); “Solicitar, quando adequado, aten-
• promoção de cidadania e orientação de direi- ção residencial de caráter transitório, em
tos, incluindo suporte social; Unidade de Acolhimento (UA) infantojuvenil
• além de busca ativa e suporte às famílias. (12-18 anos) ou adulto (para maiores de
Para organização dos serviços e atendimen- 18 anos) para usuários de álcool, crack e
tos sugere-se o planejamento das ações e dis- outras drogas e em situação de vulnera-
cussão de casos pelas equipes em reuniões téc- bilidade, com necessidade de acompanha-
nicas, a articulação com outros equipamentos e mento terapêutico protetivo. Articular-se
serviços do território (escolas e centros culturais, com serviços hospitalares para casos de
etc), relacionados ao tema da adolescência e da abstinências e intoxicações severas (even-
juventude, à luta antimanicomial; a realização tuais internações devem ser de curta du-
conjunta de atividades voltadas a promoção da ração até a estabilidade clínica e sempre
no âmbito do PTS). No momento da alta,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

referir e vincular usuários ao CAPS que as- os CAPS infantojuvenil e CAPS-ad.


sumirá o caso. Adotar estratégias de de- De forma geral, os temas álcool e drogas
sinstitucionalização (Residências Terapêu- fazem parte do universo dos adolescentes20, por
ticas, moradias inseridas na comunidade) isso, recomenda-se que o tema seja abordado
e oferecer o auxílio financeiro de reabili- em grupos educativos, rodas de conversa; espa-
tação para progressiva inclusão social de ços de vivência e de atividades educativas, cul-
pessoas egressas de internação de longa turais (p.53);
permanência” (p.51).
Nos serviços de saúde em geral, pode-se
- sobre a importância do sigilo – para todos
atuar junto às escolas, inclusive em seus es-
os serviços:
paços, na prevenção e no encaminhamento de
A Linha de Cuidado para a Saúde na Ado-
casos relativos ao consumo de álcool e drogas,
lescência e Juventude para o Sistema Único de
utilizando-se para isso a orientação de Redução
Saúde no Estado de São Paulo (LCA&J)16 salien-
de Danos para a promoção de saúde16 (p.143),
ta a importância do sigilo de informações entre
orientados pelo/a (p.165):
profissionais de saúde e pacientes, inclusive
• diálogo com os adolescentes e jovens;
adolescentes:
• utilização de linguagem menos formal;
“Profissionais de saúde não devem
• atendimento a suas singularidades e comunicar informações, mesmo quando
contextos; solicitadas por familiares, responsáveis ou
• reconhecimento dos adolescentes como su- parceiros(as) íntimos(as), sem o consenti-
jeitos de direitos, conforme orienta o ECA17; mento dos(as) adolescentes e jovens (inclu-
• promoção da autonomia e participação social; sive divulgação de consumo experimental
de álcool e drogas ilícitas, atividade sexual,
• trabalho com as diretrizes de Redução de
estatuto sorológico, gravidez, etc.)” (p.63).
Danos;
Essa garantia de sigilo é fundamental no
• definição de procedimentos e atendimentos
atendimento a adolescentes e jovens, muito além
que tenham necessidade de agendamento em
dos temas considerados tabus, pois o medo de
outros serviços.
que informações sejam comunicadas aos pais e
responsáveis é um dos principais motivos pelos
- para serviços especializados: quais adolescentes e jovens evitam frequentar
A orientação geral é que sejam prestados serviços de saúde. A garantia do direito ao sigilo
cuidados baseados na integralidade, no atendi- e à confidencialidade é uma questão ética, co-
mento multiprofissional, inclusive em apoio à mo apontam Queiroz e colegas21, e visa garantir
Atenção Primária e aos CAPS 16 (p.53). a procura dos serviços pelos adolescentes, o es-
Com relação a questões relacionadas à tabelecimento de vínculos, garantir a privacidade,
Saúde Mental com uso de álcool e drogas, pode- a assistência de qualidade e o acompanhamento.
-se atuar com os próprios médicos, psicólogos e Assim, recomenda-se que:
assistentes sociais do serviço, conforme sua dis- “Nos casos em que os(as) profis-
ponibilidade e também encaminhar casos para sionais, dialogando com adolescentes,

|172 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

julgarem que estes(as) estão em situação Assim, o uso de álcool e drogas deve ser
de risco ou não têm capacidade plena de visto pelos profissionais da área da Saúde, como
discernir ou se cuidar, devem conversar uma questão complexa, correlacionada a outros
com eles(as) sobre essa percepção para fatores de vulnerablidade em saúde22, porém re-
compreender melhor a situação. Ainda jun- levante para a atuação do SUS. Deve ser objeto
to com os(as) adolescentes, devem definir de atuação de caráter técnico e assistencial, den-
o melhor modo de proceder, o que pode- tro de uma perspectiva de promoção de direito,
rá envolver a quebra do sigilo – isto é, o em lugar da abordagem por meio de julgamentos
compartilhamento, com algum adulto res- morais.
ponsável, de informações sobre a consul- Este cuidado tem implicações que vão além
ta. Essa quebra deve obrigatoriamente ser da estrita atuação em saúde e necessitam de
consentida pelo(a) adolescente...”16 (p.63). uma organização intersetorial, mas, de forma ne-
Enfim, é importante realizar avaliações das nhuma exime a responsabilidade dos serviços de
condições de saúde nos territórios, buscando saúde de ouvir, acolher e atender os adolescen-
identificar adolescentes e jovens que não aces- tes e jovens quanto ao tema. Muito pelo contrário
sam os serviços e compreender as possíveis si- torna essa tarefa essencial para o bom atendi-
tuações de vulnerabilidade envolvidas nessa falta mento deste público e a promoção de sua saúde,
de acesso que podem incluir aspectos famiiares, bem-estar e cidadania.
condições sociais, relações de gênero, questões
escolares e o uso de álcool e outras drogas, sere
Referências
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tamento_Nacional_sobre_o_uso_de_drogas_pela_popula-
reitos. O fato de serem mais novos não altera
cao_brasileira
este princípio; ao contrário, apenas pode contri-
buir com a maior vulnerabilidade para situaçõe de 2. Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (CEBRID).
risco à saúde ou agravos durante seu desenvolvi- V Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psi-

mento e maior inserção social. cotrópiceas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Mé-
dio da Rede Pública de Ensino em 17 Capitais Brasileiras.
Como o uso de bebidas alcóolicas faz
São Paulo: CEBRID/UNIFESP; 2005.
parte da cultura nacional e o uso de drogas ilí-
citas também é representado na maioria das 3. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pa-
comunidades, os adolescentes sempre estarão norama. Cidades (on line). [acesso em: 23 dez 2020]. Dispo-
em contato com esses comportamentos. Por is- nível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/panorama

so a abordagem do tema, promovendo atitudes 4. Ministério da Saúde. DATASUS. Morbidade hospita-


preventivas e Redução de Danos deve ser feita lar do SUS. (on line). [acesso em: 23 dez 2020]. Dispo-
sistematicamente, além de ser ofertado apoio e nível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.
atenção para aqueles que vierem a utilizá-las de php?area=0203&id=6926
forma prejudicial.

vol.21, n.2, dez 2020 |173


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

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|174 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Redução de Danos e Educação


Harm Reduction and Education

Marcelo SodelliI

Resumo Abstract

A relação entre a área de Educação e o uso de drogas é fortemen- The relationship between the area of Education and the use of
te atravessada pelos pressupostos proibicionistas. A consequên- drugs is strongly crossed by the prohibitionist assumptions. The
cia disso é que os projetos preventivos desenvolvidos no âmbito consequence of this is that the preventive projects developed in
educacional balizados por esta postura de “guerra às drogas” fra- the educational field marked by this “war on drugs” posture fail,
cassam, pois não conseguem alcançar o seu principal objetivo: as they fail to achieve their main objective: to prevent drug use
impedir o consumo de drogas (abstinência total). Além de inefica- (total abstinence). In addition to being ineffective, these preven-
zes, esses projetos preventivos contribuem negativamente para tive projects contribute negatively to increasing the stigma and
aumentar o estigma e o preconceito ao usuário de drogas, disse- prejudice of drug users, disseminating misinformation about the
minado informações equivocadas sobre esse complexo fenômeno. phenomenon of drug use. This article aims to develop a study of
the approximation of the notion of vulnerability and the Harm Re-
Assim, o presente artigo tem como objetivo desenvolver um estudo
duction approach as new foundations for the area of Education,
de aproximação da noção de vulnerabilidade e da abordagem de
reaffirming the importance of the definitive break with the prohibi-
Redução de Danos como novos fundamentos para a área de Edu-
tionist assumptions.
cação, reafirmando a importância do rompimento definitivo com os
pressupostos proibicionistas.
Keywords: Education, Prevention, Harm reduction, Vulnerability.

Palavras-chave: Educação; Prevenção, Redução de danos;


Vulnerabilidade

Introdução

E
mbora a perspectiva da Redução de Da- dos projetos de prevenção ainda são fortemente
nos seja mundialmente reconhecida como influenciados pela Postura Proibicionista, aquela
uma importante estratégia para lidar com balizada em máximas como estas: “diga não às
os possíveis problemas decorrentes do uso de drogas” e “guerra às drogas”. Um exemplo dis-
risco e dependência de drogas, na área da Edu- so é o Programa Educacional de Resistência às
cação e, especificamente, na área da prevenção Drogas (PROERD), desenvolvido pela Polícia Mili-
primária, esta abordagem ainda não conseguiu tar desde 1992, presente em todos os estados
brasileiros1.
se desenvolver. Considerando o cenário nacional,
podemos observar que são poucos os projetos Entretanto, existem vários estudos que
preventivos que se balizam na perspectiva de apontam para a ineficácia dos trabalhos pre-
ventivos pautados pelo Proibicionismo1. Essas
Redução de Danos. Pelo contrário, grande parte
críticas abarcam tanto o plano teórico quanto
I
Marcelo Sodelli (msodelli@pucsp.br) é psicólogo, Mestre e Doutor em Psico-
o desdobramento prático na área de Educação.
logia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
-SP), professor-pesquisador do curso de Psicologia desta mesma instituição.
Forçoso é admitir que a base teórica da postura

vol.21, n.2, dez 2020 |175


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

proibicionista careça de uma fundamentação como algo danoso ou benéfico, mas procura-se
mais consiste. Sinteticamente, as principais críti- compreendê-las sempre na relação com o ser
cas são: as diretrizes proibicionistas ferem prin- humano;
cípios básicos de respeito à liberdade; assume • as ações são desenvolvidas com base no co-
um caráter moral e preconceituoso em relação nhecimento científico;
aos usuários de drogas; preconiza como única • o trabalho é realizado sistematicamente com
alternativa a abstinência total de drogas1. Como duração de médio ou longo prazo;
postura educativa utiliza-se do método do ame- • objetiva promover no público alvo o fortaleci-
drontamento, ou seja, parte-se da hipótese de mento da autonomia e a preconização dos direi-
que, ao instaurar o sentimento de medo nos alu- tos humanos.
nos em relação ao uso de drogas, esses ficariam Fortalecendo teoricamente a prática de Re-
mais propensos a se prevenir. No campo do tra- dução de Danos, temos a noção de vulnerabilida-
balho prático, a postura proibicionista não con- de. Esse constructo teórico vem contribuindo pa-
segue alcançar seu principal objetivo: promover ra deixar mais claro o quanto o fenômeno do uso
e manter a abstinência completa de seu público de drogas se dá de forma complexa, revelando a
alvo. importância de olharmos para três eixos nortea-
Ainda mais importante do que entender o dores: o ser humano, as drogas e o mundo.
fracasso da Postura Proibicionista, é ter a clareza Partindo deste contexto, o presente ar-
de que essa postura de guerra às drogas causa tigo tem como objetivo desenvolver um estudo
mais danos para as pessoas, do que o próprio de aproximação da noção de vulnerabilidade e
consumo de drogas; as estatísticas mostram da abordagem de Redução de Danos como no-
nitidamente que morrem mais pessoas por con- vos fundamentos para a área de Educação, rea-
sequência da repressão ao comércio (tráfico) de firmando a importância do rompimento definitivo
drogas do que efetivamente dos possíveis proble- com os pressupostos proibicionistas.
mas de saúde gerados pelo uso nocivo das subs-
tâncias psicoativas1. Na verdade, temos que ter
a lucidez de que de fato não existe “guerra às Noção de vulnerabilidade
drogas”, mas sim, guerra às pessoas e, principal- O termo vulnerabilidade é originário da área
mente, guerra às populações mais vulneráveis, da advocacia internacional dos Direitos Univer-
seja pela via do encarceramento massivo, seja sais do Homem e significa: grupos ou indivíduos
pela produção de óbitos (política de genocídio de fragilizados, jurídica ou politicamente, na promo-
jovens pobres)1. ção ou garantia de seus direitos de cidadania2.
Nesta esteira, se contrapondo à Postura Foram definidos três planos interdependentes de
Proibicionista, a abordagem de Redução de Da- determinação da vulnerabilidade3:
nos vem sendo utilizada como uma importante al- • componente individual: diz respeito ao
ternativa para nortear as ações preventivas. Em- grau e à qualidade da informação de que os indi-
bora não exista um único modo de desenvolver víduos dispõem sobre o problema; à capacidade
projetos preventivos a partir desta abordagem, é de elaborar essas informações e incorporá-las
possível identificar quatro diretrizes gerais1: aos seus repertórios cotidianos de preocupações;
• as drogas não são apontadas a priori e, finalmente, ao interesse e às possibilidades

|176 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

efetivas de transformar essas preocupações em Vulnerabilidade e a prevenção ao uso de risco e


práticas protegidas e protetoras; dependência de drogas
• componente social: diz respeito à obten- O processo de disseminação da droga é de-
ção de informações, às possibilidades de meta- corrente do que se denomina “equação triangu-
bolizá-las e ao poder de incorporá-las a mudan- lar”, isto é, da combinação de três fatores: o pro-
ças práticas, o que não depende só dos indivídu- duto (droga), o pessoal; e o momento sociocultu-
os, mas de aspectos, como acessos a meios de ral. A demanda por drogas seria, para Ayres e co-
comunicação, escolarização, disponibilidade de
legas4, não apenas consequência de sua oferta
recursos materiais, poder de influenciar decisões
no mercado, mas de uma procura ativa e delibe-
políticas, possibilidade de enfrentar barreiras cul-
rada, nem sempre consciente de parcelas cres-
turais, estar livre de coerções violentas, ou poder
centes da população, cuja motivação principal se
defender-se delas;
encontra na fuga de cerceamentos múltiplos5.
• componente programático: para que os re-
cursos sociais de que os indivíduos necessitam Nesta direção, podemos dizer ainda que as
para não se expor ao vírus HIV e se proteger de experiências dos usuários de drogas não são em-
seus danos sejam disponibilizados de modo efe- preendidas de forma solitária ou voluntariamen-
tivo e democrático, é fundamental a existência de te. Eles as realizam no interior de uma história,
esforços programáticos voltados nessa direção. de um contexto socioeconômico, imersos em
Podemos resumir a noção de vulnerabilida- momentos socioculturais, vinculados a sistemas
de ao HIV/aids, definindo-a como: familiares e condicionados pela manipulação e
apelo da sociedade na qual vivem. A ingestão de
“...o “esforço de produção e difusão de
conhecimento, debate e ação sobre os di- drogas funde-se, portanto, com os dados dessa
ferentes graus e naturezas da suscetibili- história. O uso de drogas não deve ser entendido
dade de indivíduos e coletividades à infec- como decorrente apenas de mero ato volitivo do
ção, adoecimento ou morte pelo HIV/AIDS, indivíduo. Assim, mostra-se evidente a interrela-
segundo a particularidade de sua situação ção e a interdependência existentes entre o usu-
quanto ao conjunto integrado dos aspec- ário e o contexto que o circunda.
tos sociais (ou contextuais), pragmáticos
Pensar nesta teia de vulnerabilidades e nos
(ou institucionais) e individuais (ou compor-
determinantes socioculturais em relação ao uso
tamentais) que os põem em relação com
de drogas, em nossa sociedade, certamente am-
o problema e com os recursos para seu
plia e torna mais complexa a abordagem deste
enfrentamento” (p.121)4.
fenômeno. Devemos evitar, contudo, uma tônica
A noção de vulnerabilidade não deve ser
irracionalista e indevidamente simplificadora no
compreendida de maneira binária, unitária e está-
tratamento de tais questões6. Portanto, no que
vel. Isto quer dizer que, em uma mesma situação,
tange à prevenção ao uso de risco e dependência
estamos vulneráveis a alguns agravos e não a
de drogas, utilizar a noção de vulnerabilidade po-
outros; o que pode nos deixar vulneráveis sob um
deria se tornar uma ferramenta valiosa, amplian-
aspecto, pode nos proteger sob outro; estamos
do significativamente o modo de compreender e
sempre vulneráveis em diferentes graus e as di-
intervir nesta questão, além do que, ganhar mais
mensões e os graus de nossas vulnerabilidades
relevância quando resgatamos a sua origem, no
mudam, constantemente, ao longo do tempo.
campo dos direitos humanos, que, por sua vez,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

confere, ao Modelo de Redução de Danos, argu- dialogar com outros interesses, sem ser o de
mentos éticos e possibilidades de legitimação controle, o sentido da prática preventiva se modi-
para a efetiva implementação. Por isso, a apro- fica, assim como o seu modo de dialogar7. Portan-
ximação do Modelo de Redução de Danos e da to, não é o técnico (professor, psicólogo, médico,
noção de vulnerabilidade se dá, antes de tudo, etc.) que determinará como o sujeito-alvo (aluno,
no plano da ética, da cidadania e dos direitos professor) deverá se prevenir, mas é o próprio su-
humanos. jeito, após intensa reflexão, que se colocará em
A compreensão de que ninguém é vulnerá- questão, buscando formas e apoio para reduzir
vel, mas está (no momento) vulnerável, resultan- suas vulnerabilidades. É nesse sentido, que en-
te da dinâmica relação entre os componentes tendemos o entrelace da prevenção ao uso de
individuais, sociais e programáticos, provoca no- risco e à dependência de drogas com a noção de
vas reflexões sobre a prevenção ao uso nocivo de vulnerabilidade e, mais especificamente no âmbi-
drogas, particularmente, em relação a projetos to escolar, na possibilidade da construção perma-
desenvolvidos no âmbito escolar. Se nós enten- nente de uma rede cuidadora entre o professor e
dermos que a vulnerabilidade não é algo estático o aluno. Isto nos parece fundamental: prevenção
e pontual, mas dinâmico e contínuo, projetos pre- na escola é trabalhar no sentido de construir uma
ventivos pontuais, meramente informativos, terão rede cuidadora permanente entre professor e o
resultados limitados. aluno.
Os principais objetivos da prática preventiva Nesta direção, a aproximação da noção de
não deveriam ser apenas os de alertar as pesso- vulnerabilidade com a problemática do uso de
as sobre algum problema específico, “mas tam- drogas inaugura outra possibilidade de compre-
bém para que, além disso, respondam de forma a ensão do trabalho preventivo: em vez da preven-
superar os obstáculos materiais, culturais e polí- ção ao uso de risco e dependência de drogas, po-
ticos que os mantêm vulneráveis mesmo quando demos propor agora uma nova expressão: ações
avisados individualmente”4. redutoras de vulnerabilidades ao uso de risco e
dependência de drogas8.
Torna-se evidente, então, que os projetos
preventivos ao uso de risco e dependência de A expressão “ações redutoras de vulnera-
drogas e que levam em conta a noção de vulnera- bilidades ao uso de risco e dependência de dro-
bilidade deveriam, preferivelmente, ser iniciados gas” privilegia o campo do fazer e não somente o
já na Educação Infantil ou, pelo menos, no Ensino do falar. Este é um aspecto fundamental na área
Fundamental I, para que percorresse toda a vida da Educação Preventiva, pois denota claramen-
estudantil até chegar ao Ensino Médio. te que trabalhos expositivos, teóricos e pontuais,
embora sejam relevantes, não são suficientes pa-
Quando nos apoiamos na noção da vulnera-
ra atender à complexidade da relação do ser hu-
bilidade para desenvolver intervenções preventi-
mano com as drogas.
vas, estamos, na verdade, procurando ampliar os
horizontes normativos que orientam esta ação, Por último, esta expressão sinaliza que o
quer dizer, estamos buscando a subsunção do trabalho preventivo deveria ter como objetivo re-
ideal de controle de uma doença (ou comporta- duzir vulnerabilidades ao uso de drogas e não
mento) para dialogar com interesses de nature- a pretensão de acabar com o uso destas subs-
za estética, emocional, moral, entre outros. Ao tâncias. Como já discutimos, entendemos que

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

reduzir vulnerabilidades está no horizonte do pos- meio de uma narrativa utilizada largamente no
sível, enquanto que acabar com as drogas está âmbito escolar, resumida no conceito “não pode
no horizonte do impossível. Este aspecto ganha porque não pode”, uma das principais dificulda-
um significado fundamental, quando discutimos des seria não saber qual pressuposto colocar no
quais são os elementos que facilitam ou dificul- lugar desta mera proibição. Possivelmente, mui-
tam a apropriação do professor para a tarefa pre- tos argumentariam que, se não trabalharmos os
ventiva. Ou seja, qual objetivo preventivo está conceitos de proibição e abstinência, na preven-
mais próximo do sentido de educar, a prevenção ção primária, com aqueles que ainda não experi-
proibicionista ou a noção de vulnerabilidade? mentaram alguma droga, o consumo de drogas
iria aumentar consideravelmente na adolescên-
cia, correndo-se o risco de perder o pouco contro-
Redução de Danos e Educação
le sobre os jovens que ainda se tem.
Sabe-se que a prevenção pode ser dividida
A idéia de relacionar a Redução de Danos,
em três modos de intervenção1:
como prevenção primária, é para reafirmar a po-
• a prevenção primária, que refere-se ao
trabalho feito com pessoas (alunos) que ainda sição de que o objetivo da prevenção não deve-
não experimentaram ou que estão na idade em ria ser o de acabar com o uso de drogas9. Logo,
que possivelmente pode-se iniciar o uso de uma trabalhos preventivos que preconizam somente a
droga lícita ou ilícita; proibição do tipo “não pode porque não pode”,
• a prevenção secundária, que tem como vêm se mostrando ineficazes no lidar com a pro-
objetivo atingir as pessoas que já experimenta- blemática do uso de drogas. Por isso, a prevenção
ram ou que fazem um uso ocasional de drogas, deveria, fundamentalmente, assumir a tarefa de
com o intuito de evitar que este padrão de uso se
intervir na redução dos níveis de vulnerabilidade
torne problemático ou abusivo (uso habitual);
ao uso nocivo dessas substâncias psicoativas.
• a prevenção terciária, que corresponde ao
trabalho com usuários que já apresentam proble- Pouco adianta trabalhar, na prevenção pri-
mas (uso problemático, uso habitual), interven- mária, orientados pelo objetivo de que o indiví-
ção preventiva que é feita para que eles não che- duo nunca utilize drogas, já que sabemos, por
guem à dependência. meio dos dados epidemiológicos, que a maioria
Ao descrever esses três modos de preven- das pessoas experimentará, durante a vida, al-
ção, poderíamos nos perguntar se seria possível gum tipo de droga, seja ela lícita ou ilícita. Nes-
um trabalho de Redução de Danos na prevenção te sentido, trabalhar a prevenção às drogas na
primária? Se a prevenção primária é destinada perspectiva da abordagem de Redução de Danos
às pessoas que ainda não tiveram nenhuma ex- na prevenção primária é compreender que o me-
periência com o uso de drogas, questionamos se lhor caminho para lidar com o fenômeno do uso
faria sentido propor um trabalho de Redução de de drogas não é o de decidir e definir pelos ou-
Danos. Se a resposta for positiva, como seria um tros quais os comportamentos mais adequados
trabalho de Redução de Danos na escola, consi- e corretos, mas sim construir, junto com o outro,
derando um projeto preventivo desenvolvido na as possibilidades de escolhas mais autênticas e
Educação Infantil ou no Ensino Fundamental I? mais livres, diminuindo vulnerabilidades.
Considerando que o conceito proibicionista Porém, antes de se pensar em trabalhar na
está arraigado em nossa cultura educativa por prevenção ao uso nocivo de drogas na escola,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

teríamos que aprender a lidar com as represen- estas representações sobre as drogas acabam
tações que as pessoas têm em relação ao te- reafirmando, no professor, a posição de que a
ma “drogas”. Salientamos que a representação educação preventiva não faz parte de sua função
da maioria das pessoas leigas sobre a questão educativa e que, tanto o modelo da “Guerra con-
das drogas está relacionada a aspectos negati- tra as Drogas” como o da “Prevenção que Con-
vos, principalmente, aos sentimentos de medo e vive com a Diferença”, ao que tudo indica, não
impotência10. vêm oferecendo para o educador um horizonte no
Do mesmo modo, estudos apontam que os qual ele possa encontrar subsídios para superar
sentimentos de medo e impotência também es- essas dificuldades11.
tão presentes na representação dos professores Ao considerarmos a trama de sentido que
sobre o tema drogas11. Nessas pesquisas, é pos- orienta a compreensão do professor, na sua vi-
sível perceber o quanto o modelo preventivo de da profissional, podemos observar que, um dos
“Guerra às Drogas” faz parte da vida do educa- elementos fundamentais é o conceito de absti-
dor, dificultando uma compreensão mais integra- nência. Assim, como vínhamos discutindo, se qui-
da da tarefa preventiva ao uso nocivo de drogas sermos desenvolver um novo modelo preventivo
e a própria função de ser educador. A Placco e ao uso nocivo de drogas, é imprescindível revelar
colegas11 explicam que o sentimento de medo do ao professor outras possibilidades preventivas
professor está relacionado à possível violência além da proibição e da abstinência. É neste pon-
que poderia vir a sofrer por parte das pessoas to, que entra, com sua abordagem diferenciada,
contrárias ao trabalho de prevenção, como os tra- o modelo de Redução de Danos. Entretanto, su-
ficantes e os alunos/usuários de drogas, aponta- gerimos também que apenas a desconstrução do
dos pelos próprios professores como impedimen- conceito de abstinência não é suficiente para que
to deste trabalho. o professor se aproprie da tarefa preventiva. Sus-
Esses autores também afirmam que o senti- tentamos que é essencial propiciar, na formação
mento de impotência se origina da compreensão inicial do professor, a aproximação deste modelo
do professor sobre a sua falta de competência preventivo (Redução de Danos) com uma propos-
técnica e de autoridade para lidar com a ques- ta político-pedagógica afinada com este modo
tão. Esta falta de competência técnica está rela- singular de compreender o homem e o mundo.
cionada com a percepção de que, por mais que Reconhecemos na pedagogia dialógica e liberta-
trabalhe na prevenção, objetivando a abstinência dora de Paulo Freire esta possibilidade8.
(como postulam os dois modelos preventivos ci- Ao relacionar o Modelo de Redução de Da-
tados), o uso de drogas continua a crescer na nos à proposta pedagógica dialógica e libertadora
escola em que leciona, acarretando–lhe, assim, de Paulo Freire, estamos oferecendo ao professor
o entendimento de sucessivas derrotas, ou seja, muito mais que um modelo preventivo: estamos
de que ele não é capaz de lidar com esta pro- oferecendo um modelo de educação preventiva.
blemática. O outro aspecto relacionado ao sen- Em outras palavras, que homem desejamos for-
timento de impotência se refere à competência mar e que sociedade pretendemos construir.
de autoridade, que, por sua vez, se divide em du-
as noções: falta de autoridade médica e falta de Considerações finais
autoridade jurídica. Assim, podemos resumir que Identificamos, na noção de vulnerabilidade,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

oriunda da área de direitos humanos, um terreno os professores, como para os maiores prejudica-
fértil para firmarmos um novo objetivo preventivo: dos: os alunos.
reduzir vulnerabilidades ao uso nocivo de drogas. A insistência em preconizar o modelo proi-
Estabelecemos, assim, um contraponto à abor- bicionista e da pedagogia do controle, poderá
dagem proibicionista, ou seja, em vez de traba- custar a todos nós a perpetuação da inexistência
lhar a abstinência e a repressão, o sentido da de um autêntico trabalho de prevenção ao uso
prevenção deveria ser o de promover ações re- nocivo de drogas no âmbito escolar. Ou seja, o
dutoras de vulnerabilidades ao uso de risco e de esquecimento de um dos sentidos mais próprios
dependência às drogas. da educação: reduzir vulnerabilidades...
É nesse sentido que entendemos o entrela-
Referências
çamento da prevenção às drogas com a noção de
1. Sodelli M. Aproximando sentidos: formação de professores,
vulnerabilidade e, mais especificamente, no âmbi- educação, drogas e ações redutoras de vulnerabilidade. [Te-
to escolar, a possibilidade da construção perma- se].Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica.
São Paulo; 2006.
nente de uma rede cuidadora entre o professor e
2. Alves JAL. Os direitos humanos como tema global. São Pau-
o aluno. Desse modo, a noção de vulnerabilidade lo: Perspectiva; 1994.
é compreendida como um elemento fundamental 3. Mann J., Tarantola DJM, Netter TW. (Orgs). A aids no mundo.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, ABIA, IMS-UERJ; 1993.
para o trabalho de prevenção.
4. Ayres JRCM., França Júnior I, Calazans GJ. Aids, vulnerabili-
Em suma, este artigo procura demonstrar dade e prevenção. II Seminário Saúde Reprodutiva em Tempos
de Aids. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, ABIA; 1997. p.20-37.
a importância da superação do modelo proibicio-
5. Bucher R. Drogas e sexualidade nos tempos da aids. Brasí-
nista, propondo em seu lugar uma compreensão lia: UnB; 1996.
mais realista da relação do homem com as dro- 6. Macrae E. A excessiva simplificação da questão das drogas
gas, inaugurando outro paradigma para a tarefa nas abordagens legislativas. In: Ribeiro MM, Seibel SD. (Or-
gs.). Drogas: hegemonia do cinismo. São Paulo: Ed. Memorial;
preventiva: a redução dos níveis de vulnerabili- 1997. p.327-334.
dade ao uso de risco e dependência as drogas, 7. Ayres JRCM, França Júnior I.; Calazans G J.; Saletti Filho
HCS. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de aids. In: Bar-
trabalho inspirado na proposta de Redução de
bosa RM, Parker RG. Sexualidade pelo avesso; direitos, iden-
Danos. tidade e poder. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, São Paulo: Editora
34; 1999.p.49-72.
Neste sentido, torna-se fundamental pensar
8. Sodelli M. Uso de drogas e prevenção: da desconstrução da
a formação de professores a partir de um conti- postura proibicionista às ações redutoras de vulnerabilidade.
nuum. A singularidade da profissão de ser profes- São Paulo: Via Verita; 2016.
9. Sodelli M, Cavallari C. A Redução de Danos enquanto estra-
sor exige uma formação que deveria ser sempre
tégia para a prevenção ao uso de drogas na escola. In: Seibel
cuidada, seja por um processo de uma efetiva S. Dependência em drogas. São Paulo: Atheneu; 2006.
supervisão escolar, seja pelo processo da forma- 10. Escohotado A. História general de las drogas. 3ª ed. Ma-
drid: Alianza; 2000.
ção continuada.
11. Placco VMNS, Lima FFT, Sodelli M, Morgado TR P. Repre-
À luz de toda a discussão realizada neste sentações sociais de professores do Ensino Fundamental so-
bre drogas: primeiras impressões de uma análise. VI Encontro
estudo, consideramos que a formação do profes-
de Pesquisa em Educação - região sudeste, 2004. Rio de Ja-
sor para o desenvolvimento de ações redutoras neiro; 2004.
de vulnerabilidades ao uso nocivo de drogas na
escola deve ser compreendida na sua complexi-
dade, pois a simplificação deste fenômeno vem
trazendo conseqüências desastrosas, tanto para

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Educação para a Moderação: Redução de Danos na


abordagem educacional de crianças sobre produtos
químicos e drogas

Education for the Moderation : Harm Reduction in education approach for children about chemicals
and drugs

Regina FigueiredoI, Maria Luísa ElufII

Resumo Abstract

O artigo relata o desenvolvimento de materiais educativos visan- The article reports the development of educational materials ai-
do o estímulo ao desenvolvimento de noções de autocuidado em med at encouraging the development of notions of self-care in heal-
saúde e de moderação de consumos e usos de diversas subs- th and moderation of consumption and use of various substances,
tâncias, favorecendo uma abordagem de autorresponsabilidade, favoring an approach of self-responsibility, from the perspective
a partir da persepctiva de Redução de Danos e não amedrontado- of Harm Reduction and neither frightening, for health education of
ra, para a educação em saúde de crianças. São apresentados os children and adolescents. Handouts for Elementary School I are
cadernos de exercícios para Ensino Fundamental I, que, através presented, which, through exercises and stimulating research and
de exercícios e estímulo a pesquisa e análise, abordam o contato analysis, address contact with personal hygiene and household
com produtos químicos de higiene pessoal e limpeza doméstica, cleaning chemicals, attention to food consumption and moderation
a atenção no consumo alimentar e a moderação do consumo de of harmful food consumption, contact and use of medications and
alimentos prejudiciais, o contato e uso de medicamentos e os pe- the dangers of self-medication and ingestion of them without moni-
rigos de automedicação e ingestão dos mesmo sem acompanha- toring of health professionals, the importance of self-care and the
mento de profissionais de saúde, a importância do autocuidado e frequency of health services, as preventive health, and the social
da frequência à serviços de saúde, enquanto saúde preventiva, e consumption and consequences of alcohol and cigarettes, as dru-
o consumo social e prejuízos do ácool e do cigarro, enquanto dro- gs that require attention and moderation of use.
gas legalizadas que necessitam de atenção e moderação de uso.
Keywords: Children and adolescents; Health education; Food; Me-
Palavras-chave: Crianças e Adolescentes; Educação em saúde; Ali- dications and drugs; Harm reduction.
mentação; Medicações e drogas; Redução de danos.

Introdução

O
século XX marcou a construção de uma
sociedade de caráter individualista e he-
I
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é socióloga, Mestre em
Antropologia e Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo e donista, onde, segundo Morin1, aprende-
pesquisadora científica e coordenadora de projetos do Instituto de Saúde da
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e autora de diversos materiais mos a buscar a autossatisfação dos desejos pes-
educativos em Educação em Saúde.
soais rumo a um suposto bem-estar. Essa obje-
Maria Luísa Eluf (luisa@semina.com.br) é graduada em Ciências Políticas e
II

Sociais e Doutorado em Psicologia Social na Fundação Escola de Sociologia tivação da vida, como aponta Bourdieu2 não se
e Política de São Paulo (FESPSP) e é Diretora da Semina Educativa, onde
desenvolve materiais educativos em saúde e cidadania. constitui com “liberdade”, mas configura-se como

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

uma perspectiva constituída em direção a deter- consumo dessas substâncias; assim, crianças e
minados quereres socialmente estabelecidos e adolescentes necessitam orientações educacio-
almejados, ou seja, não somos plenamente li- nais quanto ao consumo e as drogas, de forma a
vres, optamos dentro de um “leque” de opções construir um arcabouço base para suas percep-
que nos é ofertado e valorizado em determinado ções e decisões individuais futuras.
grupo a qual pertencemos.
Essa característica de satisfação individu- Bases Educacionais para a Abordagem de Drogas
al, com a criação e disseminação da cultura de na Escola
massa, foi, como aponta Toscani3, extremamente
A ideia de moderação tem como base a
aproveitada pela publicidade, de forma a não só,
máxima de Paracelso “a diferença entre o remé-
inicialmente, promover a venda de produtos para
dio e o veneno é a dose”, ou seja, a ideia de que
atender essas satisfações e desejos, mas tam-
o problema do consumo abusivo ou malefício das
bém, numa segunda dinâmica, criá-los, incenti-
drogas não está na substância em si, no pharma-
vando associações conscientes ou inconscientes
con, mas na dosagem5; ou seja, como se dará
de ideias, valores para criar quereres e o desejo
a frequência, a quantidade, a forma, contextuali-
de adquirir tal e tal produto.
zando como ocorre o seu uso. Sem dúvida, essa
Vários autores têm aprofundado a percep- abordagem remete a intervenção educacional de
ção dessa nova estrutura social, baseando-se promoção à Redução de Danos, enquanto estra-
em Bauman4, como uma sociedade “líquida”, que tégia que inclui um conjunto de práticas e políti-
produz relações “líquidas”, onde as estruturas cas coletivas ou individuais, visando diminuir os
sociais e, inclusive individuais tradicionais, se fle- problemas ligados ao uso de drogas psicoativas
xibilizam rumo a uma pós-modernidade de carac- legais ou ilegais6.
terística fugaz, superficial e descartável. Assim,
É importante não confundir a ideia de mo-
bases sociais de família, relacionamentos afeti-
deração com a de temperança defendida por mo-
vos e sociais, o modo e o ritmo de vida, perderam
vimentos cristãos da sociedade civil americana
seu contorno, sendo passíveis de ser constituí-
do início do século, pautada nas quatro virtudes,
dos de qualquer maneira, a partir de uma noção
caracterizada pelo domínio de si e pela modera-
temporária, que, por vezes, tira do indivíduo as
ção dos desejos e que era contra o consumo de
bases de sua própria vida em sociedade.
bebidas álcoolicas, procurando aboli-las, o que
A partir dessa sugestão hedonista que as originou a “Lei Seca” nos Estados Unidos, que
drogas legais ou ilegais se inserem na vida das vigorou durante os anos 1920 a 19337. Esses
maiorias dos discursos sociais de classe mé- movimentos, ao contrário do sentido próprio da
dia, alegando o direito ao consumo, ao prazer palavra temperança, procuravam abolir os usos
e a uma experimentação “voluntária”, que, por e a substância psicotrópica em si, ideia que sa-
vezes, não condiz com escolhas reais, visto que bemos atualmente ser totalmente impossível,
tanto a propaganda, quanto a presença e as ca- devido a diversidade de drogas existentes, das
racterísticas do consumo dessas substãncias na diferentes culturas, dos diferentes usos, além do
sociedade estão constituídas. Entender este as- insucesso da estratégia americana de Guerra às
pecto é fundamental nos discursos educacionais Drogas promovida desde a década de 1980 em
que preparam/prepararão os indivíduos para o todo o mundo8.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

A introdução dessa ideia na área de Educa- abordagem de drogas nos currículos de Ciências
ção, articula os chamados temas contemporâne- da Natureza do Ensino Fundamental II e do Ensi-
os e de promoção da cidadania na base curricu- no Médio, aponta para a educação sobre os pe-
lar, principalmente os com ênfase na promoção rigos sobre as drogas permitidas por lei, o fumo
da saúde. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases e o álcool, além da forma como agem as drogas
da Educação (LDB) de 19969, a temática das dro- psicoativas no corpo humano14, inclusive as ile-
gas, assim como a da violência e sexualidade, gais, o que inclui:
deveriam compor os antes denominados Temas “Reconhecer que estímulos externos,
Transversais10 da área de saúde no Ensino Funda- como abuso de drogas, automedicação e
mental, de abodagem transdiciplinar, com o obje- uso inadequado de hormônios, entre ou-
tivo de promover a prevenção de riscos e do uso tros, afetam o delicado equilíbrio entre o
indevido de drogas. Em 2017, essa lei foi altera- estado de saúde e o estado de doença”
da e retirada à explicitação do conteúdo sobre (p.64).
drogas , orientando genericamente e sem nenhu-
ma especificação a abordagem de “Conteúdos
A proposta de uma Educação para a moderação
relativos aos direitos humanos e à prevenção de
frente às drogas
todas as formas de violência contra a criança e o
adolescente”11. Aqui defende-se a costrução de uma pro-
posta de promoção de educação em moderação
Já a Base Nacional Comum Curricular de En-
e redução de danos com relação às drogas psi-
sino Médio, alterada em 2018, suprimiu a abor-
cotrópicas para crianças que seja significativa,
dagem das drogas12, apesar dessas bases se
ou seja, que respeite seu universo e fase de de-
colocarem como responsáveis por estimular os
senvolvimento e, obviamente que não recorra a
alunos a
estratégias de educação que incutam o medo15
“... a construção de projetos de vida envol-
e a repressão e inibam a estratégias que estimu-
ve reflexões/definições não só em termos
lem reflexão, tal como os discursos de “guerra
de vida afetiva, família, estudo e trabalho,
às drogas” utilizados para convencer e sem base
mas também de saúde, bem-estar, relação
científica, como os adotados pelo PROERD – Pro-
com o meio ambiente, espaços e tempos
grama Educacional de Resistência às Drogas e à
para lazer, práticas das culturas corporais,
Violência16.
práticas culturais, experiências estéticas,
Obviamente, com crianças pequenas, na fai-
participação social, atuação em âmbito lo-
xa de 5 a uns 9 anos, a abordagem direta sobre
cal e global etc.” (p.480).
as drogas ilegais não faz sentido, porque inclui
Nesse sentido, podería-se perfeitamente
uma temática que não necessariamente faz par-
incluir o tema das drogas, não só por estar re-
te de seu universo real, com exceção de crianças
lacionado à saúde e bem-estar, na relação com
inseridas em contexto de comunidades onde o
o meio e atualmente presentes em qualquer es-
tráfico de drogas é realizado por parentes ou co-
paço de lazer, o que estava explicitado na versão
nhecidos17. De qualquer jeito, deve-se considerar
anterior de 2017, como “prevenção ao uso e abu-
que a criança muito pequena não atenta para as-
so de drogas”13.
pectos proibitivos que sejam realizados com na-
No estado de São Paulo, a orientação para turalidade por adultos que lhe rodeiam, visto que

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

se encontra numa fase que é heterônoma, ou se- de 2020, o que motivou que essa agência emitis-
ja, se comporta e constrói compreensão pelo co- se uma nota técnica sobre o assunto22.
mando de mais velhos18. Dados de uso de medicamentos e aciden-
Por isso, outras formas abordagens podem tes com medicamentos em casa. Estudo reali-
contribuir para a construção de estratégias de zado em 2016 aponta que a prevalência de au-
Redução de Danos no consumo de drogas, que tomedicação no Brasil girava em torno de 16%,
se pautem na vivência de seu cotidiano que é, sendo maior principalmente feminina, principal-
fundamentalmente, familiar e escolar. Nesse sen- mente de analgésicos e relaxantes musculares,
tido outras experiências, como o contato com ou- sem necessidade de prescrição23. Esse hábito
tras substâncias e drogas se fazem presente, co- de consumo de medicação impacta significati-
mo os produtos químicos, os próprios alimentos vamente nos filhos dessas mulheres, já que es-
e as drogas legalizadas (álcool e cigarro). tudos realizados em 2013 mostraram que cerca
Já no final da infância e início da adoles- de 11% das pré-adolescentes e adolescentes os
cência, abordar drogas diretamente se faz fun- utilizavam regularmente24. Nesse sentido, inicia-
damental, visto que a caracteíristica dessa faixa tivas escolares de orientação sobre esses são
etária inclui a socialização e a tendência a alme- fundamentais, como sugerem algumas propostas
jar “comportamentos adultos”, de forma que ado- para a abordagem pela disciplina de Química25.
lescentes se sintam “promovidos” e distanciados Também a Organização Mundial de Saúde (OMS)
do rótulo de crianças e testem comportamentos tem dado destaque aos perigos do consumo de
socialmente existentes na sociedade adulta. medicamentos, salientando a automedicação co-
mo desnecessária em 50% dos casos, além do
Isso é importante e significativo do ponto
contato facilitado nos lares a esses produtos por
de vista da saúde, já que dados mostram que o
parte das crianças e adolescentes, publicando
contato (e até ingestão) de substâncias químicas
em 2017 um alerta mundial sobre o tema26.
domésticas, principalmente produtos de limpeza,
provoca recorrentes e significativamente proble- Estudos têm apontado o crescimento da
mas de saúde envolvendo crianças, da mesma obesidade no mundo e no Brasil; entre as crian-
forma que se observam dados de consumo de ças os fatores relacionados ao sobrepeso são, a
alimentos, como o açúcar19-20 - como comprovado menor escolaridade materna, a falta da percep-
potencial de droga psicotrópica, é extensamente ção materna sobre o problema do sobrepeso, má
consumido entre as famílias brasileiras, bem co- alimentação e sedentarismo da criança27. O alto
mo o uso de abusivo de medicamentos entre as consumo de açúcar, assim como os alimentos re-
famílias em comportamentos de automedicação, finados são apontados como os fatores alimenta-
além do próprio consumo de drogas legais, princi- res determinantes desde a infância, provocando
palmente bebidas alcóolicas. sobrepeso em cerca de 3,7% dos adolescentes
brasileiros28.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitá-
ria, vem recorrentemente apontando os perigos Dados de consumo familiar de álcool e ci-
que os produtos químicos de uso doméstico re- garro também afetam comportamentos de consu-
presentam nas famílias21, isso inclui obviamente mo infantil e adolescente29-30. Esses hábitos rea-
os acidentes e intoxicações infantis, que chega- firmam o consumo corriqueiro de álcool e tabaco
ram a 1.540 registros apenas de janeiro a abril observado entre este público, crescendo entre as

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

meninas24. Por fim, sabemos que o consumo de Resultados – a criação de um material educativo
drogas ilegais é feito por 3,2% dos brasileiros, que estimula comportamentos de moderação e
conforme pesquisa nacional realizada pela Fun- consciência de uso de substâncias e drogas
dação Oswaldo Cruz30. A adaptação do caderno de exercício “Te-
Todas essas questões que de forma ou ou- mas Transversais – Vida Nova” da Semina Edu-
tra rondam os temas de saúde, mostram-se co- cativa31, de 2001, para o Ensino Fundamental I,
mo fundamentais para a necessidade de se abor- buscando incluir, a partir de 2003, orientações
dar com as próprias crianças as necessidades de de pesquisa, prevenção e discussão para esti-
autocuidado e a valorização de comportamentos mular a construção da noção de moderação nas
preventivos, incluindo o destaque para as unida- crianças quanto às substâncias e drogas legais
des básicas de saúde tão presentes no cotidiano presentes em seu cotidiano, além do desenvolvi-
da maioria das crianças brasileiras, que as uti- mento de noções de autocuidado e prevenção em
lizam para vacinação, atenção ao próprio cuida- saúde, facilitando atitudes de redução de danos.
do e, também, de seus familiares, sobretudo as
mulheres. - Caderno do 1º ano do Ensino Fundamental
Desta forma, para as crianças, foi desen- I – Higiene e Limpeza:
volvida, em 2013, a proposta de adaptação do Para o novo caderno
caderno de exercício “Temas Transversais – Vi- “Vida Nova 1: saúde e cida-
da Nova”, desenvolvido pela Semina Educativa31, dania para o 1º Ano”32 foram
dividindo-o nos 5 anos escolares que compõem incluídos o tema higiene,
o Ensino Fundamental I, em que a idade média procurando atingir a refle-
das crianças vai de 5 a 10 anos, buscando in- xão sobre o uso cuidadoso
cluir orientações de pesquisa, prevenção e dis- e ponderado dos produtos
cussão para estimular a construção da noção de de limpeza; conforme as in-
moderação de consumo entre as crianças quan- tencionalidades explicitadas
to às substâncias químicas que as rodeiam e as na “Base Nacional Comum Curricular”33, que es-
drogas legais, facilitando atitudes de redução de timula a autonomia nas “práticas de cuidados
danos. Nesse sentido priorizou-se, a partir da pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se)...”
vivência observada das respectivas idades: pro- (p.39).
dutos de higiene íntima pessoal e da casa; pro-
Assim, esse caderno que aborda a higiene,
dutos alimentares, dando destaque ao consumo
tem como características, ser um material que
de açúcares; o contato das crianças com medi-
estimula a pesquisa sobre a higiene e limpe-
camentos de uso rotineiro das famílias brasilei-
za, iniciando por um questionamento do que as
ras; a abordagem do cuidado preventivo da saúde
crianças utilizam para a higiene pessoal. Nesse
e autocuidado, através de orientações sobre os
sentido, o intuito é que as crianças verifiquem os
serviços de saúde presentes nos diversos bairros
produtos de limpeza que têm contato no cotidia-
residenciais como unidades básicas de saúde; e,
no: sabone, shampoo, pasta de dente, alguns ci-
finalmente a abordagem do consumo de álcool e
tam fio dental, cotonete, escova de unha, etc.
cigarros observados socialmente e que se consti-
A partir dessa constatação comparada
tuem como drogas legais.
pelo educador, coletivamente, é sugerida uma

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

pesquisa com a família de quais produtos de lim- o tema da alimentação, con-


peza são utilizados para limpar a casa, de forma forme as intencionalidades
a preencher um quadro que contém os itens: pa- explicitadas na “Base Nacio-
ra limpar a louça, para limpar o chão, para limpar nal Comum Curricular”33, fo-
o banheiro, etc. Nessa etapa as crianças trazem cando o grande consumo de
as informações de vários materiais (pano, vas- açúcar verificado no país.
soura, aspirador, rodo), mas principalmente de Assim, o material tem
produtos químicos (que descartamos as marcas como características, ser um
comerciais): detergente, desinfetante, água sani- material que estimula a pesquisa sobre a alimen-
tária, álcool etc. tação e nutrição, iniciando por um questionamen-
Para uma discussão de grupo é feita a com- to do que as crianças consomem no dia-a-dia em
paração de quanto os produtos de higiene pesso- sua alimentação, incluindo todas as refeições e
al e de limpeza são utilizados, comparando a fre- lanches, tanto na escola, quanto em suas casas.
quência diária versus limpeza da casa, discutido Nesse sentido, as crianças são abordadas com
com as crianças quem mexe com os produtos de um quadro, explicando a importância da alimen-
limpeza, o por quê de não serem adequados pa- tação para a vida e a saúde e classificando os ali-
ra serem mexidos pelas crianças, a diferença de mentos em naturais-saúdáveis, industrializados,
sua potência que é diferente dos produtos de hi- fast-foods e guloseimas.
giene pessoal que não fazem mal por isso podem A partir dessa constatação o educador, co-
ser manuseados por todos e usados diariamente. letivamente orienta que as crianças façam o le-
Uma concretização importante dessa diferença é vantamento de todos os alimentos presentes em
discutir e se possível mostrar o cheiro forte des- suas vidas, inclusive os que consomem aos finais
ses produtos de limpeza caseira, apontando que de semana e festas, por meio de uma pesquisa
contém muitos elementos químicos quando são em casa, de forma que preencham um Quadro de
feitos para tirar a sujeira “pesada”, por isso não Refeições.
devem ser manuseados por crianças e, até adul-
A tarefa é trazida para a escola e agrupa-
tos, o fazem esporadicamente e com cuidado.
da pelo professor num grande quadro que une o
Nesse sentido, o material traz as primeiras consumo dos alunos (não é necessário a inclu-
noções de moderação: há coisas que só são uti- são dos itens que se repetem), para formar uma
lizadas por adultos e coisas (produtos) fortes não discussão de grupo sobre a importância do equi-
são/devem ser utilizados com frequência e este líbrio alimentar, moderação de sal e açúcar e car-
uso requer cuidado. Esse trabalho pode ser com- bohidratos que podem trazer prejuízos a saúde.
plementado pela sugestão de uma visita (com a
A partir daí é proposta a construção de uma
família ou com a própria escola) a um supermer-
mini-horta, em potes de plástico e/ou garrafas
cado, de forma a verificar os itens do exercício.
pet cortadas, que deve ser feita pela classe e
cuidada; até que nasçam verduras e legumes (se
- Caderno do 2º ano do Ensino Fundamental possível), ou pelo menos temperos e chás que
II – Alimentação e Nutrição: possam ser colocados na refeição escolar quan-
Para o caderno de exercício “Vida Nova 2 - do brotarem. Também é sugerida a verificação
Saúde e Cidadania para o 2º Ano”34, é abordado de árvores frutíferas e classificação das árvores,

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

(caso haja), no pátio escolar, já que sabemos profissional ou não.


que muitas escolas possuem pés de fruta, como A partir dessa constatação comparada pelo
amoreiras, pitangueiras, goiabeiras, etc. educador, coletivamente, é feito um quadro das
A participação dos alunos na construção doenças mais comuns, incluindo informações
prática de pratos equilibrados de refeições e sobre a prevenção ou bom cuidado dos males
também da plantação e consumo de algo que fa- crônicos, e discutida a importância do uso orien-
çam e cuidem, contribui para a conscientização tado dos medicamentos, informando os males e
do cuidado alimentar, estimulando a moderação os perigos do uso não orientado e a importância
do consumo dos itens pouco nutritivos que ge- de orientação de profissionais de saúde no uso
ralmente são utilizados, como fast-foods, gulosei- dessas substâncias.
mas e massas e bolachas. Essa discussão traz elementos que comu-
Nesse sentido, o material acrescenta a no- mente são passados despercebidos nas rotinas
ção de moderação em mais uma esfera da vida: familiares para a discussão pedagógica, permitin-
há coisas que devem ser consumidas com mode- do a discussão da necessidade de certas subs-
ração, por isso, menos frequentemente e/ou ape- tâncias perigosas para casos específicos e que
nas em poucas doses. E os alimentos nutritivos precisam ser feitas por profissionais que estudam
e mais naturais devem compor a maior parte da para administrá-las (o uso moderado sob orienta-
alimentação, pois auxiliam na boa saúde. Esse ção), alertando os perigos do uso frequente não
trabalho pode ser complementado pela sugestão orientado, errôneo ou não acompanhado dos me-
de uma visita (com a família ou com a própria es- dicamentos e a atenção de que as crianças não
cola) a um supermercado, de forma a verificar os devem nunca fazer uso sozinha dos mesmos.
itens do exercício.
- Caderno 4º ano do Ensino Fundamental II –
- Caderno do 3º ano do Ensino Fundamental Saúde Pública
II – Doenças e Medicamentos Para o caderno “ Vida
Para o caderno de exer- Nova 4 - Saúde e Cidadania
cício “Vida Nova 3 - Saúde e para o 4º Ano”36, é abordado
Cidadania para o 3º Ano35, é o tema da prevenção de do-
abordado o tema das doenças enças e saúde pública, con-
da família, com foco no uso de forme orientações de auto-
medicamentos, dando desta- cuidado e conhecimento dos
que aos perigos de automedi- serviços públicos essenciais
cação e contato facilitado das de saúde orientados na “Ba-
crianças com esses produtos se Nacional Comum Curricular”33.
em seus lares, conforme aponta o alerta da Orga- Assim, esse caderno, que aborda a higiene,
nização Mundial de Saúde de 201726. tem como características, ser um material que
Assim, esse caderno estimula a pesquisa estimula a pesquisa sobre a presença dos equi-
sobre os males e doenças comuns da própria fa- pamentos e profissionais de saúde na vida das
mília dos estudantes e do acompanhamento em crianças e suas famílias, salientando o papel im-
saúde e se há uso de medicação orientada por portante destes na prevenção de doenças e no

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

cuidado do bem-estar de todos. serviço.


O material estimula a pesquisa em casa so- Nesse sentido, o material traz noções so-
bre o acesso aos serviços de saúde, principal- bre a importância da prevenção em saúde como
mente às unidades básicas de saúde pública, um elemento controlador e de moderação de do-
realizando um levantamento da frequência dos enças e futuros males.
famíliares a esses serviços e quais especialida-
des utilizam. Assim, o educador pode, coletiva-
- Caderno 5º ano do Ensino Fundamental II –
mente, construir um quadro de profissionais e es-
Drogas Legais
pecialidades, informando sobre o que atuam, por
Para o caderno de exer-
exemplo: médicos clínicos gerais, cuidam da saú-
cício “Vida Nova 5 - Saúde e
de total das pessoas; pediatras, são médicos de
Cidadania para o 5º Ano”38,
crianças; dentistas são médicos que cuidam dos
é abordado o tema das dro-
dentes; oculistas, dos olhos; ginecologistas, dos
gas legais utilizadas pelos
cuidados da mulher, como gravidez, parto, uso de
adultos, como as bebidas
contraceptivos, etc., estimulando a visualização
alcoólicas e o cigarro.
dos cuidados necessários à saúde e sua impor-
tância e função na vida social coletiva, podendo Assim, o caderno do
ser acrescentada a prática de visitas de agentes 5º ano do Ensino Funda-
de saúde, de fiscalização sanitária, como a que mental I, focando as drogas legais, estimula uma
ocorre frente às epidemias de dengue e zika, va- pesquisa sobre o consumo de álcool e cigarro en-
cinação, etc. tre as famílias, favorecendo para que o educador
tenha elementos para introduzir orientações do
Esse fechamento é importante porque vá-
material sobre as consequências do uso abusivo
rias alunos se lembrarão das vacinações que
do fumo e bebidas alcoólicas para a saúde.
são recomendadas e obrigatórias no Brasil, além
de se prepararem para as futuras que serão ad- Nesse sentido, o material traz as primeiras
ministradas a partir da pré-adolescencia, como noções de moderação nas escolhas, observan-
por exemplo a contra o papiloma vírus humano do que vários comportamentos sociais presentes
(HPV)37, bem como outras que venham a sur- no “mundo adulto” são prejudiciais e podem ge-
gir frente a doenças epidêmicas novas (como a rar consequências para a saúde de todos, seja
tão esperada vacina para o coronavírus, a den- através do impacto da saúde de quem os conso-
gue, entre outras) que constam ou que passem me, seja no impacto sobre a família ao favorecer
a constar no Calendário Nacional de Vacinação ocorrências secundárias, como comportamentos
orientado pelo Ministério da Saúde. agressivos, acidentes de trânsito, etc. Além de
orientar a visão do uso abusivo como uma doen-
A partir daí o material estimula a constru-
ça que precisa de tratamento de saúde via unida-
ção de um mapeamento do bairro, sugerindo a
des básicas de sáude e/ou Centros de Atenção
localização do serviço de saúde principal, para
Psicossocial (CAPS), desmistificando a aborda-
que todos tenham ciência e destacando sua im-
gem desses temas e naturalizando a importância
portância na comunidade. Também é sugerido,
da assistência à Saúde Mental entre os estudan-
se possível, um passeio pelo bairro, para que as
tes e sua coletividade.
crianças sigam os caminhos do “mapa” até este

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

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vol.21, n.2, dez 2020 |191


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Traficando informação: o caso “Baladaboa” e os


processos de criminalização da Redução de Danos

Trafficking information: the “Baladaboa” case and the processes of criminalizing Harm Reduction

Cristiano Avila Maronna

Resumo Abstract

O presente artigo busca analisar caso concreto envolvendo estra- This article seeks to analyze a specific case involving a harm
tégia de redução de danos em pesquisa científica que redundou reduction strategy in scientific research that resulted in a police
na instauração de inquérito policial para apurar instigação ao uso investigation about instigation of drug use and apology for crime,
de drogas e apologia ao crime, a partir da perspectiva crítica em from a critical perspective in relation to the war on drugs and
relação à guerra às drogas e ao proibicionismo, cujo pilar central, o
prohibition, whose central pillar, absenteeism, non-use of drugs,
absenteísmo, o não uso de drogas, é desafiado pela amplitude do
is challenged by the breadth of the concept of harm reduction,
conceito de redução de danos, que abrange formas de incremento
which encompasses ways of increasing the quality of life of
na qualidade de vida de usuários de drogas que não querem ou não
conseguem deixar de usá-las. Transformar informação sobre drogas drug users who do not want or cannot stop using them. Turning
em ilícito representa uma afronta à liberdade de expressão e cien- information about drugs into illicit represents an affront to freedom
tífica, mas o direito penal das drogas e sua aplicação prática são of expression and science, but the criminal law of drugs and their
exemplos do uso distorcido e simbólico da lei penal para perseguir practical application are examples of the distorted and symbolic
objetivos alheios aos previstos em lei. use of criminal law to pursue goals outside the scope of the law.

Palavras-chave: Drogas; Redução de danos; Guerra às drogas; Proi- Keywords: Drugs; Harm reduction; War on drugs; Prohibitionism.
bicionismo.

Introdução

N
a década de 1990, na cidade de Santos, iniciativa indícios da prática do crime de estímulo
estado de São Paulo, um inovador progra- ao uso de drogas. Com a palavra Fábio Mesquita1:
ma de troca de seringas foi implementado
“A Redução de Danos como conceito
pela Área de Saúde do Governo Municipal, como
propriamente dito, começou a ser discuti-
forma de enfrentar a disseminação do vírus HIV
da no Brasil em 1989 quando na liderança
entre usuários de drogas injetáveis. O Ministé-
da Secretaria Municipal de Saúde de San-
rio Público determinou a instauração de inquéri-
tos o brilhante sanitarista Dr. David Capis-
to policial sob a alegação de que haveria nessa
trano da Costa Filho anunciou publicamen-
I
Cristiano Avila Maronna (cmaronna@msm.adv.br) é Graduado em Direito, te um projeto de distribuição de seringas
Mestre e Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e
Secretário Executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD). (que tive a honra de elaborar e coordenar

|192 vol.21, n.2, dez 2020


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

na condição de Coordenador do Programa redução de danos implica reconhecer a possibi-


de Aids da Cidade de Santos) para contro- lidade de usar drogas ilegais com qualidade de
lar a epidemia de AIDS entre pessoas que vida, o que contraria o puritanismo proibicionista.
injetavam drogas. Essa era a maior causa “Dinheiro público, da Fapesp, é usado pa-
da epidemia na cidade naquela época. ra ensinar o “consumo responsável” de ecstasy”.
O Ministério Público Estadual nos Essa foi a forma pela qual o jornalista Reinal-
processou com base na Lei vigente de en- do Azevedo noticiou, em 18 de junho de 2007,
tão, a 6.368/1976, pelo crime de tráfico, a pesquisa científica realizada por Stella Pereira
previsto no art. 12 da mesma. de Almeida sob a orientação de Maria Teresa de
As autoridades de saúde que que- Araújo Silva, no Instituto de Psicologia da Univer-
riam evitar a disseminação de uma doença sidade de São Paulo, em seu blog, na época hos-
foram levianamente confundidas pelo Mi- pedado no sítio eletrônico da Revista Veja4.
nistério Público com pessoas que ajudam “Você, leitor, aí na faina diária, está
as outras a consumir drogas. sustentando, com o seu dinheiro, por meio
Vencemos com o arquivo do proces- da Faculdade de Psicologia da USP e da
so e isso abriu um debate nacional que foi FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa
paulatinamente influenciando as mudan- do Estado de São Paulo) uma “pesquisa”
ças subsequentes da Lei”. voltada para a chamada política de redu-
ção de danos no consumo de ecstasy. O
O posterior arquivamento do inquérito não
projeto tem até um site, chamado balada-
apagou as deletérias consequências sofridas por
boa. O que os caras fazem? Não acreditem
quem se viu injustamente investigado por apenas
em mim. Acreditem neles. Segue a síntese
tentar salvar vidas.
do projeto, que colei do site:
Décadas depois, a Redução de Danos con-
O projeto prevê a elaboração, impres-
tinua transitando no “fio da navalha”, justamen-
são e distribuição de material de Redução
te por desafiar a premissa mais fundamental do
de Danos para o uso de ecstasy em locais
proibicionismo, que é o absenteísmo, o não uso
onde usuários são encontrados com fre-
como único objetivo perseguido pela política de
quência. Essa intervenção será avaliada
drogas. Não por acaso, a autointitulada “Nova Po-
através de questionário on-line acessado
lítica de Drogas”2 atualmente defendida pelo Exe-
voluntariamente por participantes, do im-
cutivo Federal, tem foco exclusivo na abstinência
pacto nos meios de comunicação e de en-
e demoniza a Redução de Danos.
trevistas com informantes-chave. A partir
da avaliação realizada o projeto será siste-
Redução de Danos X Incentivo ao Uso
matizado e poderá ser replicado em con-
A Organização Mundial de Saúde (OMS) textos que justifiquem uma intervenção
reconhece a redução de danos como uma estra- preventiva para o uso de ecstasy.
tégia legítima3, enquanto o Escritório das Nações
Site e programa são uma glamouri-
Unidas para Drogas e Crime (UNODC) se recusa a
zação disfarçada, fingindo-se de linguagem
fazer o mesmo, por pressão dos Estados Unidos
científica, do consumo de ecstasy. Nada
e da Rússia. Afinal, reconhecer a legitimidade da
mais é do que uma variante da cultura da

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

droga, agora financiada com dinheiro pú- como probabilidades, possibilidades — no


blico. Na home, vem uma advertência pa- máximo, riscos. Jamais como uma certeza.
tética: “Um princípio básico do projeto Ba- O Baladaboa acha que ainda não há ciên-
ladaboa é a transmissão de informações cia disponível que confirme os prejuízos da
comprovadas baseadas na ciência e não droga.
em ideologias morais ou políticas.” Só es- Em um deles, a coisa chega a ser per-
se trecho deveria levar a Fapesp a suspen- versa. Está escrito lá: “Droga ‘leve’ ou ‘se-
der seu vergonhoso patrocínio. Quer dizer gura’ é um termo inadequado a qualquer
que “ideologias morais ou políticas” são droga. A interação droga-organismo é algo
sempre as dos outros? À parte o fato de particular. Uma droga pode trazer prejuízos
a expressão “ideologia moral” ser coisa de para uns, sendo inócua ou benéfica para
analfabeto ideológico e moral, é evidente ambos”. Eu nada entendo de química, mas
que também as pessoas que se dedicam a de linguagem eu entendo. E esse texto é
esse trabalho têm uma ideologia, têm uma delinqüente. Num país decente, seus res-
moral. A festa é comandada pela professo- ponsáveis seriam acionados judicialmente;
ra doutora Maria Teresa Araujo Silva. num país que se respeitasse, o Ministério
Público chamaria a FAPESP e a USP, que
Flyers financiam esse despropósito, às falas”.
Se você não sentiu náuseas até aqui,
ainda terá a oportunidade. O projeto dis- Chamada às falas, a Fundação de Amparo
tribui oito flyers em baladas com informa- à Pesquisa (FAPESP) decidiu suspender o finan-
ções sobre o consumo do ecstasy. Se você ciamento da pesquisa. A respeito da liberdade de
entrar no site dos valentes, terá acesso a investigação científica, em primoroso editorial in-
cada um deles. A estética já deixa evidente titulado “Danos à FAPESP”, o jornal Folha de S.
a galmourização do consumo. Opta-se por Paulo, edição de 03 de julho de 20075, analisan-
um visual um tanto, como direi?, lisérgico. do o caso ora debatido, assinalou com acerto o
É uma espécie de pedagogia de Paulo Frei- seguinte:
re voltada para analfabetos morais: já que “Não é assim que a ciência deve fun-
falam de droga, usam a linguagem de um cionar. Se dependesse do que pensavam
drogado — ao menos a visual. Na compo- seus pares Copérnico não teria postulado
sição, nas cores, nas imagens, tudo lem- o modelo heliocêntrico. Se dependesse da
bra uma festa pop. ‘vox populi’, dinheiro público dificilmente
Li cada um dos flyers. Acredite, leitor. seria destinado a áreas como a física de
Em nenhum deles, em nenhum momen- partículas, que demandam recursos vulto-
to, há ao menos a sugestão para que não sos e cuja ‘utilidade’ é difícil explicar até
se consuma ecstasy. Ao contrário: TUDO para iniciados. (...) O conceito de redução
É FEITO PARA QUE O LEITOR CONSUMA de danos é difícil de assimilar. Para alguns,
A DROGA SEM DESCONFORTO. Leia você sempre soará como chancela oficial às
mesmo, julgue você mesmo. Os males de- drogas. Do ponto de vista da saúde públi-
correntes do ecstasy são tratados sempre ca, no entanto, trata-se de reconhecer a

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

complexidade da dependência – e a relati- parquet, a pesquisa científica em nível de pós-


va intratabilidade em certas fases e tentar -doutorado8 no Instituto de Psicologia da Univer-
evitar os impactos mais deletérios. É uma sidade de São Paulo (IP/USP) formulada sob a óti-
estratégia que tem o aval da OMS, do Mi- ca do estudo a respeito da estratégia de Redução
nistério da Saúde, é utilizada em países de Danos a usuários de ecstasy, “teve o seu foco
como Holanda, Reino Unido e Canadá e principal na orientação de jovens em como utili-
já se provou útil, por aqui, para reduzir a zar o entorpecente ecstasy, substância entorpe-
incidência de infecções pelo vírus da aids” cente proibida no Brasil”, em função das frases
(negritos do autor). contidas em flyers9, quais sejam:
A Rede Brasileira de Redução de Danos e “Uma forma de diminuir os riscos
Direitos Humanos (REDUC) divulgou nota6 sobre o do consumo do ecstasy é tomar metade da
caso em tela, na qual aponta o paradoxo contido dose planejada, aguardar os efeitos (pode
na tentativa de incriminar a política de redução demorar até 1h) e então decidir se tomará
de danos: a outra metade.
“...ou fingimos que não há nenhum consu- (...) Tenha cuidado com ‘pastilhas’,
mo de drogas sintéticas ou outras drogas cápsulas e líquidos desconhecidos. Pro-
em danceterias e deixamos as pessoas cure informações com pessoas que já te-
se desidratarem, usarem de forma letal a nham usado o que você decidiu consumir.
droga, ou optamos pelo cumprimento de (...) Se você pretende consumir ecs-
nosso papel: favorecer o acesso às infor- tasy, evite fazê-lo sozinho, tome líquidos
mações que primam pela saúde, a fim de não-alcoólicos sem exagero, vista roupas
salvarmos vidas” (negrito do autor). leves e descanse a cada meia hora, quan-
do dança.
Além da FAPESP, as distorcidas acusa- (...) Existem vários mitos relativos ao
ções feitas pelo jornalista também seduziram o consumo de ecstasy. Caso você decida
então Promotor de Justiça do Grupo de Atuação usá-lo, procure fontes de informação confi-
Especial de Saúde Pública e da Saúde do Con- áveis, para assumir com responsabilidade
sumidor (GAESP) do Ministério Público de São as conseqüências dessa escolha..
Paulo, que requisitou a instauração de inquérito (...) Portar drogas é crime, relatar seu
policial: consumo não é”
“para apurar eventual responsabilidade cri- Na requisição de instauração do
minal de Stella Pereira de Almeida e Ma- inquérito10 transcreve-se e encampa-se
ria Teresa Araújo Silva, já que sua conduta manifestação do então Delegado de Po-
pode ter configurado, em tese, os crimes lícia Diretor do DENARC, na qual consta
previstos no art. 286 do Código Penal (in- que:
citação ao crime) e no art. 33, § 2º, da Lei
“Defender essa ‘metonímia química’,
nº 11.343 de 23 de agosto de 2006 (indu-
onde o todo é trocado pela parte (‘tome
ção, instigação ou auxílio ao uso indevido
metade da dose planejada de ecstasy,
de drogas)”7.
aguarde os efeitos e então decida se
Segundo o mencionado membro do

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

tomará a outra metade’ – sic), seria fechar Tentar buscar mensagens subliminares
os olhos ao óbvio (no caso, o consumo de para justificar a instauração de inquérito poli-
droga, mesmo que fracionado) e desprezar cial não se afigura razoável. As informações vei-
o bom sendo – rectius bom senso” (negrito culadas através dos flyers são bastante diretas
do autor). e claras, baseadas em informações científicas
A oração “tome metade da dose planeja- e no bom senso. Não há nas mensagens qual-
da de ecstasy, aguarde os efeitos e então decida quer incitação ao uso de drogas, nem mesmo
se tomará a outra metade”, seguida da expres- subliminarmente.
são latina sic, abreviatura de sic et simpliciter, é Nesse sentido, sugerir a quem usou ecs-
usada, como se sabe, para evidenciar que o uso tasy e se sente mal que procure auxílio médico
incorreto ou incomum de pontuação, ortografia
e conte que substância utilizou, não representa
ou forma de escrita presente em uma citação,
qualquer incentivo ao uso. O correto sentido con-
provém do autor original da mesma.
tido nessa orientação, ao se afirmar que “você
Ocorre, porém, que não há nos flyers a
não pode ser criminalizado por utilizar drogas ile-
frase posta entre aspas pela autoridade policial
gais”9, é o de que o uso pretérito de substância
(“tome metade da dose planejada de ecstasy,
ilegal não pode ser objeto de incriminação.
aguarde os efeitos e então decida se tomará a
outra metade”), mas sim a frase “uma forma de Dentro do contexto do trabalho desenvol-
diminuir os riscos do consumo de ecstasy é tomar vido, a frase “portar drogas é crime, relatar seu
metade da dose planejada aguardar os efeitos consumo não é”, inscrita em um dos flyers9, com-
(pode demorar até 1h) e então decidir se tomará plementa a informação acima referida. Trata-se
a outra metade”9. A diferença faz toda a diferen- de medida que estimula o usuário a buscar ajuda
ça: o flyer não emprega o modo verbal imperativo, ao invés de sofrer sozinho e eventualmente ser
mas tão somente explicita o óbvio, sem estimular vítima de dano irreparável – como a morte, por
ou encorajar o uso de drogas ilegais: consumir exemplo – por não ter procurado socorro a tempo.
metade da dose planejada e posteriormente de-
Afinal, a lei penal não pune o uso de dro-
cidir se tomará a outra metade diminui os riscos
gas, mas tão somente as condutas de adquirir,
decorrentes do consumo de ecstasy.
guardar, ter em depósito, transportar ou trazer
Igualmente, não há nos flyers “orienta-
consigo, a teor do que dispõe o artigo 28 da Lei
ção de jovens em como utilizar o entorpecente
nº 11.343 de 200611.
ecstasy”, nem tampouco ensinamento acerca da
“forma ‘correta’ de se consumir droga tão vio- Sob a égide da lei anterior (Lei nº 6.368
lenta como o ecstasy”, menos ainda sugestões de 197612), o cenário era exatamente o mesmo,
de “cautelas para comprá-la de um traficante de vale dizer, o uso de drogas não era considerado
confiança”10. Tudo isso só existe na mente de uma conduta típica. Confira-se:
quem ignora o texto dos flyers e se permite lu- “Não pune a lei, in casu, o uso de
cubrar a partir de suposições sem qualquer su-
substância entorpecente, mas o trazê-lo
porte fático e ainda valendo-se do preconceito e
consigo para tal fim” (Apelação Criminal
do fanatismo ideológico próprio da fracassada e
13.909/94 do Tribunal de Justiça do Dis-
maniqueísta war on drugsII.
trito Federal, relatado por Pingret de Car-
valho, em 1994, p.13.427)13 (negrito do
II
Em tradução: guerra às drogas. autor).

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Da mesma forma, o uso pretérito (era e ain- há três votos favoráveis à declaração de incons-
da) é conduta atípica: titucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343 de
“A lei não pune o agente por haver 2006III.
feito uso de entorpecente, mas sim pela Ora, por mais contorcionismo intelectual
posse do mesmo, exigindo sua apreensão” que se tente fazer, é evidente a intenção de infor-
(Ação Cautelar 200.837-3, do Tribunal de mar com vistas a reduzir danos. O estímulo que
Justiça de São Paulo, relatado por Gomes se busca é no sentido de orientar quem se sente
de Amorim)14-15. mal em razão do consumo de ecstasy a procurar
“Não se pune, por não se enqua- ajuda sem receio de sofrer qualquer retaliação.
drar no tipo legal, o indivíduo sob os efeitos Não se pretende incentivar o uso de dro-
de tóxicos, mesmo quando pelos resíduos gas, mas sim salvar vidas!
se possa afiançar a utilização pretérita. Nem mesmo em relação “à primeira expe-
(...) Mas o sistema de combate aos riência” com ecstasy é possível vislumbrar incen-
tóxicos teve perspectivação muito espe- tivo ao consumo na frase9:
cífica quanto aos utentes; não se dirigiu “Uma forma de diminuir os riscos do con-
preferentemente a eles; mas, apenando sumo do ecstasy é tomar metade da dose plane-
o porte e a guarda, teve em mente, como jada, aguardar os efeitos (pode demorar até 1h) e
idéia principal, a disseminação, direta ou então decidir se tomará a outra metade”.
indiretamente. Não o uso, especialmente;
Não se quer atestar que os riscos do ecs-
principalmente quando já exaurido” (Ape-
tasy são minimizados se for consumida apenas
lação Criminal 53.006-3 do Tribunal de
metade da dose planejada, mas sim que os ris-
São Paulo, relatado por Ary Belfort)16-17
cos são reduzidos, o que é óbvio ululante!
(negrito do autor).
Informar a respeito dos efeitos das dro-
Ainda que assim não fosse, há respeitá-
gas não se confunde com incitar a prática de cri-
veis vozes que defendem a idéia de que a nova
me, nem com a instigação ou induzimento ao uso
lei de drogas, ao deixar de sancionar com pena
de drogas ilegais. Não há na ordem jurídica vigen-
privativa de liberdade o porte de drogas para con-
te o crime de “traficar” informação!
sumo pessoal, deixou de considerar criminosa tal
Observe-se que não há qualquer restrição
conduta.
ou exigência prévia relacionada à realização de
Luiz Flávio Gomes sustenta que a “Lei
pesquisa científica. A Constituição da República21
11.343 de 2006 (artigo 28) aboliu o caráter ‘cri-
é expressa ao garantir a liberdade de pesquisa
minoso’ da posse de drogas para consumo pes-
científica, assegurando que “é livre a expressão
soal. Esse fato deixou de ser legalmente conside-
da atividade intelectual (...) e científica (...), inde-
rado ‘crime’”18.
pendentemente de censura ou licença” (art. 5º,
Tramita no Supremo Tribunal Federal inciso IX).
(STF), desde 2011, o Recurso Extraordinário
A distribuição de flyers com informações
635.65919, no qual se discute a legitimidade da
sobre Redução de Danos decorrentes do uso de
intervenção penal em relação a posse de peque-
na quantidade de drogas para uso pessoal. O III
Sobre o tema, ver “Apontamentos a respeito do debate sobre a descrimina-
julgamento está suspenso desde 2015, mas já lização da posse de drogas para uso pessoal no Brasil”20.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

ecstasy, expressamente prevista no projeto de incremento de intervenções preventivas.


pós-doutorado aprovado pela FAPESP, tinha o ob- Distribuição de flyers em casas noturnas
jetivo de estimular o público alvo a avaliar o proje- e festas com informações sobre redução
to respondendo o questionário existente no sítio de danos decorrentes do uso de ecstasy e
da Internet mencionado nos mencionados flyersIV. divulgação de sítio na internet para avalia-
O inquérito policial foi instaurado e trami- ção do projeto. Encorajamento do uso de
tou no Núcleo de Apoio e Proteção à Escola da drogas inexistente. Informar não é crime,
Divisão Estadual de Narcóticos (DENARC), órgão antes é direito. Ausência de obrigação de
da Polícia Civil paulista responsável pelo combate sugerir o não uso de drogas em se tratando
ao tráfico de drogas. de pesquisa científica. A estratégia de re-
dução de danos, política pública reconhe-
Por conta desse quadro, impetrou-se ha-
cida pela Organização Mundial da Saúde e
beas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo,
pelo ordenamento jurídico pátrio, tem por
objetivando o trancamento da inquisa por falta de
escopo reduzir riscos decorrentes do uso
justa causa. A ementa do pedido era a seguinte22:
de drogas, sem necessariamente exigir o
“Inquérito policial. Pesquisa científica. Di-
absenteísmo. Disponibilizar informação so-
vulgação de informação sobre drogas com
bre modos mais seguros de uso de drogas
vistas a obter dados sobre usuários de
não significa incitar a prática de crime nem
ecstasy e com isso permitir o incremento
incentivo ao uso de drogas. Atipicidade da
de estratégias de intervenção preventiva.
conduta caracterizada. Exercício regular
Exercício regular da livre atividade cientí-
da livre manifestação do pensamento e da
fica. Inexistência de incitação ao crime ou
livre expressão de atividade científica, in-
encorajamento ao uso de drogas. Atipici-
dependentemente de censura ou licença
dade verificável de pronto, sem maiores in-
(CF, art. 5º, incisos IV e IX). Ausência de
dagações. Habeas corpus para trancar o
justa causa”.
inquérito policial por falta de justa causa.
O ilustre Desembargador Di Rissio Bar-
Possibilidade.
bosa, relator sorteado, deferiu a liminar pleitea-
Requisição de instauração de IP fei-
da a fim de suspender o andamento do inquéri-
ta por Promotor de Justiça para apurar os
to até julgamento do mérito do writ em decisão
crimes previstos no art. 286 do Código Pe-
vazada nos seguintes termos (Habeas Corpus nº
nal (incitação ao crime) e no art. 33, § 2º
990.08.036670-0)22:
da Lei nº 11.343/06 (indução, instigação
“Vistos. Trata-se de habeas corpus com
ou auxílio ao uso indevido de drogas). Pes-
pedido de liminar impetrado pelos advo-
quisa científica de pós-doutorado no Insti-
gados Cristiano Avila Maronna e Carlos
tuto de Psicologia da USP. Projeto de ‘Im-
Alberto Pires Mendes em favor de Stella
plementação e Avaliação de Programa de
Pereira de Almeida e Maria Teresa Araújo
Redução de Danos para o Uso de Ecstasy
Silva, apontando como autoridade coato-
na Cidade de São Paulo’. Trabalho de cam-
ra o Dr. Promotor de Justiça do Grupo de
po objetivando coletar dados a respeito do
Atuação Especial de Saúde Pública e da
comportamento de usuários com vistas ao
Saúde do Consumidor, o qual requisitara
IV
Na época site www.baladaboa.org, atualmente desativado.

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

à autoridade policial abertura de inquérito 2008. Di Rissio Barbosa RELATOR”.


para apuração de eventual delito previsto Em 05 de janeiro de 2010, por conta de
na Lei nº 11.343/06 e/ou do art. 286 do sua aposentadoria, o eminente Desembargador
Código Penal, inexistente, sustentam, jus- Di Rissio Barbosa encaminhou os autos para re-
ta causa, tratando-se de pesquisa cientí- distribuição à sua substituta, a preclara Desem-
fica sobre uso e conseqüência do produ- bargadora Maria Tereza Amaral. Com a nova rela-
to conhecido como ecstasy, em ‘nível de tora, o habeas corpus foi julgado em 12 de maio
pós-doutorado no Instituto de Psicologia de 2010 e, por maioria de votos, a egrégia 11ª
da Universidade de São Paulo’. Resumi- Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São
damente, pretendem trancamento do in- Paulo denegou a ordem, cassando a liminar, ven-
digitado inquérito policial, enfatizando ne- cido o eminente Desembargador Aben-Athar, que
cessidade de liminar para sobrestamento a concedia nos termos do pedido formulado na
até decisão de mérito. Incidente delicado. impetração22.
De um lado, notícias sobre condutas preo-
Em 19 de outubro de 2010, o Ministério
cupantes, relativas ao uso de substância
Público em primeiro grau pediu o arquivamento
proscrita; de outro, pesquisa científica a
do inquérito policial, apontando ser22
cargo de reconhecidas autoridades, com
“...nítida a finalidade do estudo desenvol-
respeitáveis currículos. Conquanto indiscu-
vido pelas suspeitas: orientar os usuários
tível que inquérito policial é instaurado pa-
da substância entorpecente ecstasy a di-
ra, em primeiro lugar, saber-se da existên-
minuírem os riscos resultantes desse con-
cia de infração penal, e, em caso positivo,
sumo. Alertar sobre os efeitos nocivos do
indicar autoria, e bem por isso indesejável
consumo, ainda que implicitamente, e ofe-
sua obstrução, não menos verdade é que
recer orientação para reduzir os malefícios
em hipóteses especiais, previsível reper-
decorrentes da ingestão de substância en-
cussão negativa sem possibilidade de res-
torpecente são ações que não traduzem in-
gate, algumas providências podem ser pru-
tenção de incitar, auxiliar ou induzir alguém
dentemente adotadas, mui especialmente
a consumi-la. Para o efeito de tipificação
quando o periculum in mora é notável. Por
de ilícito penal não é cabível a discussão
tais motivos DEFIRO, em caráter excepcio-
acerca da pertinência e eficácia do estudo
nal, a liminar no sentido da imediata para-
em relação ao fim colimado, tampouco a
lisação do inquérito policial a que alude a
respeito de sua adequação como medida
impetração, determinando, ao mesmo tem-
de política de saúde pública do Estado. Atí-
po, o recomendável sigilo sobre o mesmo,
pica a conduta das suspeitas em relação
– óbvia exceção aos Ds. Advogados cons-
aos tipos penais em apuração, diante da
tituídos – requisitando-se, para tanto, as
falta de dolo”.
informações do artigo 662, do Código de
Processo Penal junto à D. Autoridade, ora O magistrado acolheu o pedido ministerial
apontada como coatora, no prazo de 48 e em 27 de outubro de 2010, o caso foi arquiva-
horas, acompanhadas das peças de inte- do (autos nº 050.08.0539811-5).
resse no julgamento, após à Procuradoria As plurissignificações dos artigos 287 do
Geral de Justiça. São Paulo, 15 de julho de Código Penal23 e artigo 33, parágrafo 2º da Lei de

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

Drogas11 exigem uma interpretação em harmonia Referências


com as liberdades fundamentais de reunião, de 1. Mesquita F. A perspectiva da redução de danos. IBC-
expressão e de petição. Em face do conteúdo po- CRIM. Boletim Ed. Especial Drogas. (on line). [acesso em: 16
lissêmico dos referidos dispositivos legais, moti- dez 2020]. Disponível em: https://arquivo.ibccrim.org.br/
boletim_artigo/4746-A-perspectiva-da-reducao-de-danos
vados por abordagens hermenêuticas diversas e
muitas vezes apartadas do texto constitucional, o 2. Brasil. Presidência da República. Decreto nº 9.761. Polí-
tica Nacional sobre Drogas (PNAD). Brasília; 11 abr. 2019.
STF deu, com efeito vinculante, interpretação con-
(on line). [acesso em: 16 dez 2020]. Disponível em: ht-
forme à Constituição ao artigo 287 do Código Pe-
tp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/
nal e ao artigo 33, parágrafo 2º, da Lei nº 11.343 decreto/D9761.htm#:~:text=O%20plantio%2C%20o%20
de 2006, “de forma a excluir qualquer exegese cultivo%2C%20a,de%20drogas%20l%C3%ADcitas%20
que possa ensejar a criminalização da defesa da ou%20il%C3%ADcitas.
legalização das drogas, ou de qualquer substân- 3. World Health Organization (WHO). Public health dimen-
cia entorpecente específica, inclusive através de sion of the world drug problem. Report by the Secretariat.
manifestações e eventos públicos”24. Na Ação Di- Genebra; 17 mar 2017. (on line). [acesso em: 16 dez 2020].
Disponível em: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/
reta de Inconstitucionalidade (ADI) 4274, relatada
WHA70/A70_29-en.pdf
por Ayres Britto25, o STF deu ao parágrafo 2º do
4. Azevedo R. Dinheiro público, da Fapesp, é usado para
artigo 33 da Lei nº 11.343 de 2006 interpretação
ensinar o “consumo responsável” de ecstasy. Sim, você leu
conforme à Constituição, para dele excluir qual- direito! Revista Veja. (on line). [acesso em: 16 dez 2020].
quer significado que enseje a proibição de mani- Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/di-
festações e debates públicos acerca da descrimi- nheiro-publico-da-fapesp-e-usado-para-ensinar-o-consumo-
nalização ou legalização do uso de drogas ou de -responsavel-de-ecstasy-sim-voce-leu-direito/
qualquer substância que leve o ser humano ao 5. Folha de S. Paulo. Danos à FAPESP. Folha de S. Paulo;
entorpecimento episódico, ou então viciado, das 3 jul 2017. (on line). [acesso em: 16 dez 2020]. https://
suas faculdades psico-físicas. www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0307200702.htm
6. Labate B. REDUC lança nota protestando contra medidas
da FAPESP. In News; 18 jun 2007. (on line). [acesso em: 16
dez 2020]. Disponível em: https://www.bialabate.net/news/
Considerações finais reduc-lanca-nota-protestando-contra-medidas-da-fapesp

Ao fim e ao cabo, ontem como hoje, a Re- 7. Capriglione L. Cientistas tentam manter estudo sobre
ecstasy. Folha de S. Paulo; 2 jul 2007. (on line). [acesso
dução de Danos transita em um território nebulo-
em: 16 dez 2020]. Disponível em: https://forum.hardmob.
so, na fronteira entre o legal e o ilegal e não raro
com.br/threads/307645-Cientistas-tentam-manter-estudo-
termina no banco dos réus, graças ao abuso de -sobre-ecstasy
poder que caracteriza a aplicação prática do direi- 8. FAPESP. Implantacao e avaliacao de programa de re-
to penal das drogas no Brasil. ducao de danos para o uso de ecstasy na cidade de sao
Sendo a proibição das drogas pela via pe- paulo. Bv-CDI FAPESP. (on line). [acesso em: 16 dez 2020].
nal uma espécie de ortopedia moral, um empre- Disponível em: https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/22076/im-
plantacao-e-avaliacao-de-programa-de-reducao-de-danos-
endimento que visa educar moralmente pessoas
-para-o-uso-de-ecstasy-na-cidade-de-sao-paulo/
adultas, não surpreende que, nesse contexto au-
9. Harnik S. Flyer polêmico ensina estudantes como redu-
toritário, a redução de danos seja perseguida e
zir efeito do ecstasy. G1, 16 jun 2007. (on line). [acesso
indevidamente identificada com práticas ilícitas. em: 16 dez 2020]. Disponível em: http://g1.globo.com/No-
ticias/Vestibular/0,,MUL53019-5604,00-FLYER+POLEMIC

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Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

O+ENSINA+ESTUDANTES+COMO+REDUZIR+EFEITO+DO+E portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProces-
CSTASY.html so.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&c
10. Inquérito Policial nº 10/08, 1ª Delegacia - Núcleo de lasseProcesso=RE&numeroTema=506
Apoio e Proteção à Escola do DENARC.
20. Maronna CA. Apontamentos a respeito do debate sobre
11. Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.343. Institui
a descriminalização da posse de drogas para uso pessoal
o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SIS-
no Brasi. In. Figueiredo R, Feffermann M, Adorno R. Dro-
NAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido,
gas & sociedade contemporânea: perspectivas para além
atenção e reinserção social de usuários e dependentes de
drogas; estabelece normas para repressão à produção não do proibicionismo. São Paulo: Instituto de Saúde; 2017, pp.
autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá 203/236.
outras providências. Brasília; 23 ago 2006. (on line). [aces- 21. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil
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17 dez 2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
12. Brasil. Presidência da República. Lei nº 6.368. Brasília;
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
21 out 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repres-
são ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entor- 22. São Paulo. (estado). Justiça. Habeas Corpus nº
pecentes ou que determinem dependência física ou psíqui- 990.08.036670-0. DJSP. 26 jul 2010:938. (on line). [aces-
ca, e dá outras providências. (on line). [acesso em: 16 dez so em: 17 dez 2020]. Disponível em: https://www.jusbrasil.
2020]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/ com.br/diarios/11055171/pg-938-judicial-2-instancia-dia-
fed/lei/1970-1979/lei-6368-21-outubro-1976-357249-pu-
rio-de-justica-do-estado-de-sao-paulo-djsp-de-26-07-2010
blicacaooriginal-1-pl.html
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14. Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP). Apelação 24. Supremo Tribunal Federal (STF). Arguição de Descum-
Criminal (AC) 200.837-3, relatado por Gomes de Amorim, primento de Preceito Fundamental (ADPF) 187, rel. Celso de
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200.837-3, relatado por Gomes de Amorim, JTJ-SP 181.
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15. Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP). Apelação Cri-
verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=182091
minal (AC) 200.837-3, relatado por Gomes de Amorim, JTJ-
-SP 286. 25. Supremo Tribunal Federal (STF). STF afasta criminaliza-
ção da “marcha da maconha” pela Lei de Tóxicos. Stj.jus.
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minal (AC) 53.006-3 do Tribunal de São Paulo, relator Ary br. 23 nov 2011. (on line). [acesso em: 17 dez 2020]. Dis-
Belfort. RT-SP. 1987; 76(624). ponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDe-
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minal (AC) 53.006-3 do Tribunal de São Paulo, relator Ary
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19. Supremo Tribunal Federal (STS). Recurso Extraordinário
(RE) 635659, realtado por Gilmar Mendes. (on line). [aces-
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vol.21, n.2, dez 2020 |201


Drogas & 30 Anos de Redução de Danos

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