Você está na página 1de 2

FILOSOFIA – 10º Ano

Nem sempre Aaronson esteve morto.


Num certo período de tempo, Aaronson foi mesmo, sem exagero, um ser vivo.
Entre os vinte e sete e os trinta anos Aaronson circulava – como um insecto obcecado – em torno
de uma rotunda.
Todas as manhãs, um homem era visto, entre as sete e as sete e meia, a contornar a rotunda
principal da cidade, rotunda onde desembocava sessenta por cento do tráfego.
Às sete da manhã o fumo dos automóveis era menor que ao fim da tarde, porém, mesmo assim,
havia fumo, metal e ainda a velocidade de alguns automóveis. E ali, no meio, correndo risco de vida, um
homem dava centenas de voltas à rotunda. Aaronson.
Qualquer hábito, qualquer repetição de um acto por mais absurdo que seja, rapidamente é
absorvido: o excepcional transforma-se em poucas semanas; em certas circunstâncias bastam dias para
que o monstruoso e o informe se faça normalidade e hábito. No limite: facto a que não se dá atenção,
paisagem.
Entre as sete e as sete e meia, os automobilistas que por hábito passavam pela rotunda já sabiam
que, também por hábito, um homem, vestido a rigor com calções e camisola de atleta, circulava por ali.
Centenas e centenas de vezes em redor da mesma rotunda, como um carro que não soubesse o caminho,
que hesitasse entre seguir por uma direcção ou outra; que se deixasse estar por ali, à roda, não arriscando,
não tomando uma opção. Enquanto estiver na rotunda não estou perdido, pelo menos não volto atrás. E eis
um dos atractivos daquela circulação, circulação quase infinita não fora ela terminar com exactidão às
trezentas voltas: em redor de uma rotunda ninguém volta atrás, ninguém se engana, ninguém tem de
assumir o erro e fazer inversão de marcha. A vida, apesar de tudo, é fácil. Numa rotunda.
Ninguém gosta de ser humilhado e Aaronson (se fosse um automóvel) pelo menos não entrava na
estrada errada. Trezentas voltas para ganhar balanço e depois o regresso a casa. Não arrisques! – parecia
alguém dizer-lhe ao ouvido.
Falemos brevemente da rotunda: uma circunferência perfeita. Diâmetro: impossível saber ao certo,
mas era exacto – um número sem arredondamentos.
Aaronson entre os vinte e sete e os trinta anos, no período em que corria entre as sete e as sete e
meia da manhã à volta da rotunda principal da cidade, foi considerado apenas um louco previsível – o que é
ser metade de um louco pois a previsibilidade divide o perigo em dois.
Alguns dias depois de fazer trinta anos deixou, no entanto, de fazer a sua corrida na rotunda.
Deixaram de o ver. E deixaram de o ver porque Aaronson morreu. E a cidade envergonha-se tanto
de um corpo morto que, no máximo, numa hora, o corpo desaparece. Se alguém quiser ver o corpo morto
que se dirija pois ao sítio em causa, naquele período mínimo em que o morto está morto em plena cidade.
(Protegem-se mais os mortos que os vivos, mas a urbe tem as suas regras e os seus
funcionamentos. A sua higiene, dir-se-á, com razão.)
Aaronson morreu então da seguinte maneira: fizera trinta e um anos. Era um homem
aparentemente normal, tirando aquilo, aquela corrida – mas algo estava ainda para ele incompleto. Uma vez
o condutor de um carro, meses atrás, parara a máquina e perguntara: porque está a correr aqui? É
perigoso.
Aaronson agradecera a preocupação. Não terá respondido nada de concreto, um simples: porque
gosto, talvez. Terá encolhido os ombros e continuado a correr.
Mas naquele dia algo mudou. A decisão de Aaronson estava tomada.

Foi assim que ele morreu: às sete e meia da manhã avançou para a sua corrida habitual em volta
da rotunda, mas naquele dia, estranhamente, começou a correr no sentido oposto ao dos automóveis. (…)

IN: Gonçalo M. Tavares – MATTEO PERDEU O EMPREGO, “Aaronson e a primeira rotunda”

Página 1 de 2
Professora Cecília Reis Maia

Página 2 de 2

Você também pode gostar