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Sebastião Salgado: “Foi dito que eu fazia estética da

miséria. Ridículo! Fotografo meu mundo”


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Manuel Morales, Gorka Lejarcegi June 24, 2019

Com sua fotografia documental, de um preto e branco puríssimo, Sebastião Salgado


fotografa há mais de quatro décadas os maiores horrores cometidos pela espécie humana e
as grandes belezas naturais do planeta. Após sair do Brasil fugindo da ditadura em 1969,
ficou uma década fora e, por culpa da fotografia, deixou de lado um promissor trabalho
como economista. Ainda que tenha começado “tarde”, como reconhece, hoje tem todos os
prêmios e reconhecimentos possíveis da arte da imagem. Nascido em 1944 em Aimorés,
Minas Gerais, aos 75 anos, que nem de longe aparenta, esteve em mais de 130 países e
está na reta final de outro de seus hercúleos projetos, sobre tribos da Amazônia. Salgado
fala com paixão e convicção, suas ideias fluem em um espanhol com o característico suave
sotaque brasileiro. Do jovem comunista de cabelos compridos e barba frondosa resta uma
cabeça raspada e sobrancelhas espessas, brancas, que de vez em quando alisa como se
procurasse nelas o fio de seus argumentos.

Como está seu trabalho sobre a Amazônia? Estou envolvido nele há vários anos e ainda
restam três histórias por fazer. Serão no total 30 reportagens sobre 13 tribos, com muita
fotografia aérea, porque assim é possível dar uma ideia da grande extensão da floresta e
dos rios. O maior volume de água no Amazonas vem pelas evaporações, autênticas
correntes aéreas de umidade que garantem a chuva em grande parte do planeta ao
deslocarem-se como nuvens. Acho que nessa série as fotografias do sistema montanhoso
do Amazonas irão surpreender. Você tem a impressão de que está nos Alpes, são colossais.
A última reportagem será sobre animais.

Como são essas tribos com as quais conviveu? Há de tudo. Os korubos, no vale do
Javari, foram contatados pelo homem branco em 2015, mas outras o foram no século XIX.
Há uma tribo que é herdeira da cultura inca, chegaram ao Brasil deslocados pelos
espanhóis. Têm uma agricultura sofisticada, criadouros de peixes e tartarugas...

Mas o que te surpreendeu dos que vivem na floresta? O que mais me impressiona é que
não há surpresa, já não há muito a descobrir. Eu pensava que demoraria meses a me
adaptar a eles e foram horas. Porque somos nós mesmos. Só há uma pequena diferença
física, os pés. Veja seus pés, Manuel! São uma deformação, estão doentes porque estão
sempre em um sapato que os deforma. Os pés dessas comunidades, entretanto, são
triangulares, a parte de trás é fina e a da frente é larga; utilizam os dedos para se equilibrar,
subir nas árvores, e saltar de uma para outra.

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Em 1982 você recebeu o Prêmio W. Eugene Smith de Fotografia Humanitária. Desde
então foi nomeado cavaleiro da Legião de Honra na França, ganhou um World Press
Photo em 1985, o Hasselblad em 1989; Na Espanha foi o primeiro fotógrafo a receber
o Príncipe de Astúrias das Artes. Agora ganhou em Madri um prêmio da Sociedade
Geográfica Espanhola “pela qualidade e espírito de seu trabalho de viagens”. Se é por
isso, mereço porque sou, provavelmente, uma das pessoas do planeta que mais
caminharam [risos]. Quando estava no avião e via pela janela as montanhas, os rios... o
planeta é maravilhoso. Sempre pensei que, por meu tipo de fotografia, sou como aqueles
homens que na Idade Média, movidos pela curiosidade, iam de cidade em cidade para
conhecer as coisas e transmiti-las. A vida dos fotógrafos é assim: ir, descobrir, conhecer e
transmitir. A fotografia que faço é o espelho da sociedade. É uma função que não existia há
100 anos e que não acho que irá existir daqui a 20...

Por quê? Hoje, com um celular são feitas imagens de uma qualidade incrível, mesmo que
isso não seja fotografia. É uma linguagem de comunicação, mas a fotografia é algo que
você toca, guarda. As demandas, entretanto, estão mudando.

As imagens de um celular têm uma qualidade incrível, mas não são fotografia.
Fotografia é algo que você toca, que guarda”

Só se interessou pela fotografia em 1973, quando tinha quase 30 anos. Em quem se


fixou um autodidata como você? Eu adorava a pintura, fotografava obras em preto e
branco de Rembrandt. Comecei a ver que podia criar essas mesmas luzes e profundidades.
O fotógrafo deve transmitir o que seu olho vê no momento de disparar, é preciso romper os
limites da câmera. E ver o que os outros fazem não significa nada, cada um tem suas luzes
interiores. A fotografia é feita com o passado de cada um, com sua ideologia. Eu trabalhei
na Magnum com grandes fotógrafos, mas as afinidades eram mais pessoas do que
técnicas.

Sua trajetória se caracterizou por projetos que foram maratonas (Trabalhadores,


Êxodos, Gênesis). Por que sempre essa longa duração? No caso de Êxodos, eu sou um
imigrante, vivo em um país estrangeiro [França] e queria fazer um trabalho sobre as grandes
migrações porque também era minha história. Vivi sete anos na estrada procurando essas
pessoas e passei vários meses em nove grandes cidades nas quais os imigrantes
chegavam. Em Trabalhadores, como fui economista, senti que a grande revolução industrial
chegava a seu fim pelos computadores. A mão já não iria ser tão importante na linha de
produção, de modo que também me identifiquei com eles.

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Sebastião Salgado. GORKA LEJARCEGI

Fotografou os desfavorecidos, sua fotografia foi descrita como humanitária e social.


Não quis retratar os desfavorecidos, eu nunca fui um militante, é somente minha forma de
vida e o que eu pensava. Houve quem disse [como Susan Sontag] que Salgado fazia
estética da miséria... Meu cu! Eu fotografo meu mundo, sou uma pessoa do Terceiro Mundo.
Conheço a África como a palma de minha mão porque há somente 150 milhões de anos a
África e a América eram o mesmo continente.

Também sempre teve claro que sua obra de peso seria em preto e branco? Claro, em
cores era para as encomendas... Olhe ali! [Salgado mostra um lado do vestíbulo do hotel em
que ocorre a entrevista, decorado com sofás violetas e vermelhos]. Lá, um retratado se
perderia entre essas cores. A fotografia colorida acentua as cores, e isso me distraía. Com o
preto, o branco e o cinza isso não ocorria. Sabe outra coisa que me desconcentrava?
Quando, na época em que se utilizava filme, tinha que parar, tirar o rolo e trocá-lo por outro.

Foi dito que eu fazia estética da miséria. Meu cu! Eu fotografo meu mundo, sou uma
pessoa do Terceiro Mundo”

E o que fazia? Cantava. Como conseguia trocar o filme de olhos fechados, cantava MPB e
assim não perdia a concentração.

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Em algumas de suas célebres fotografias, como a de um garimpeiro em Serra Pelada,
apoiado em uma estrutura de madeira, se vê referências da iconografia cristã. Isso lhe
serviu de inspiração? É possível, eu sou de Minas Gerais, o Estado mais barroco do
Brasil. Quando fotografo, sempre há um pequeno rastro de algo que me influenciou.
Certamente quando fiz essa foto eu via São Sebastião com as flechas, mas minhas
fotografias não são modernas e pós-modernas, são barrocas porque vêm desse mundo.

Você foi fotojornalista, mas após o genocídio de Ruanda, em 1994, perdeu por um
tempo a fé na fotografia e se refugiou na geografia de sua infância, na fazenda de seu
pai, seca e arrasada pela criação de gado. Foi aí que nasceu sua preocupação pela
natureza? Não, eu nasci e cresci na natureza. Meu pai tinha fazendas e eu passava o dia a
cavalo e caminhando. Aos domingos, eu e vários amigos acordávamos às quatro da
madrugada para caçar; voltávamos de tarde, exaustos, e íamos nadar. A parte principal de
meu trabalho foi a fotografia da natureza, não as pessoas...

Você sempre elogiou as organizações humanitárias com as quais trabalhou e se


mostrou crítico com os Governos. Mantém essa ideia? Não fui tão crítico. Fui de
esquerda, quando jovem acreditava que era preciso tomar o poder pela força..., mas
precisamos trabalhar juntos. É mentira isso de que uma foto pode mudar o mundo; o que
pode mudá-lo é o trabalho conjunto das ONGs, a imprensa, os Governos...

Falando de Governo, como vê o Brasil, com o ultradireitista Jair Bolsonaro na


presidência? É um personagem conflitivo e que gera desequilíbrios por propostas como a
destruição da floresta e das comunidades indígenas. São ideias de extrema direita, mas a
sociedade brasileira é capaz de oferecer-lhe resistência. Ele foi eleito democraticamente por
uma importante maioria, de modo que é preciso trabalhar para que essas pessoas não
apoiem novamente essas ideias retrógradas. O que aconteceu é ruim, mas ao mesmo
tempo é bom porque criou um sistema de militâncias, com pessoas que querem defender
seus direitos.

E o que o incomoda no restante da América Latina? Eu fico muito preocupado com o


que acontece atualmente na Venezuela, é um crime. Mas é preciso compreender a história
desse país. Eu trabalhei lá antes de Hugo Chávez e era um Estado dirigido por uma
burguesia que lhe roubou tudo. Chávez chegou ao poder com apoio popular, mas depois
cometeu erros brutais e abusou de seu poder. Com Maduro a economia foi destruída, e é
preciso mudar isso, mas não com uma intervenção militar estrangeira. Somos democracias
jovens e é preciso olhar a história da Europa para entender o que acontece na América
Latina.

Justamente, a carta do presidente do México pedindo ao rei Felipe VI que peça perdão
pela conquista causou um reboliço. A Espanha não deve se desculpar. Foi uma proposta
oportunista de um político, não de um povo. Mas não é um problema que isso seja discutido,
e os primeiros a o fazer, os mexicanos, que em 90% são indígenas. Você vai em uma festa

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da burguesia no México e todos os garçons são índios. A conquista foi uma aventura total,
30% dos espanhóis que foram não voltaram, morreram. Quando Cortés diz a Montezuma
que seus soldados estão doentes e que o único remédio é o ouro... é a história da
humanidade.

Em 2014, sua vida e obra inspirou o premiado documentário ‘O Sal da Terra’, dirigido
por seu filho Juliano e Wim Wenders. Como foi a experiência? Muito difícil, porque o
fotógrafo precisa se relacionar com o que fotografa e quando você se transforma em
intermediário é um produto de quem está filmando. Meu filho já havia me filmado... e eu
brigava com ele, mas era meu filho, era mais simples. Na filmagem com ele e Wim existiam
três câmeras, uma equipe de som..., um carnaval! Eu o fiz por Juliano.

Sebastião Salgado, retratado por sua esposa tirando uma fotografia de membros de uma tribo da
Indonésia. LÉLIA DELUIZ WANICK

Sua esposa, Lélia Wanick, planeja e produz seus livros. Como é sua relação
profissional em um casal que está casado há meio século? Não é complicado, amo
profundamente minha mulher, tem um gosto excepcional, uma capacidade de organização
que eu não tenho, se ocupa das exposições que temos por todo o planeta e adoro os livros
que ela produz para mim. E assim vamos, lutando... Comecei com ela há 55 anos. Desde o
começo me apoiou porque as coisas que eu procurava não estavam na porta de casa,
precisava ficar tempos fora e ela cuidou de nossos filhos [além de Juliano, têm outro,
Rodrigo, com síndrome de Down].

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Em uma entrevista em 2007 ao EL PAÍS, jornal em que publicou seus principais
trabalhos, disse que nunca utilizaria o digital, mas acabou por fazê-lo. A qualidade do
digital no começo não era tão grande e depois foi uma facilidade porque permitia usar uma
câmera leve, rápida. Além disso, a qualidade em filme caiu porque era muito caro... Em
minhas viagens, levava 600 rolos de filme, pesavam 35 quilos, brigava nos aeroportos...
Hoje, com uma caixa do tamanho de um celular levo esses 600 filmes.

As redes sociais lhe interessam? Há uma conta em seu nome no Instagram... Não é
minha! E no Facebook há outras duas que também não são..., são falsas. Uma vez briguei
por meses para que retirassem uma conta e apareceram cinco. Não me interessa, o que é
exposto ali é... como se você abaixasse as calças e mostrasse a bunda pela janela. Não é
da minha geração, não é o meu mundo.

Teve tempo para fazer um balanço? Acho que contribuí à consciência do cuidado do
planeta. Tive sucesso e cheguei com meu trabalho às pessoas graças a organizações como
a Unicef, Save the Children, Médicos Sem Fronteiras..., mas eu sozinho com minhas
imagens não teria feito nada, seria como o pó.

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