Você está na página 1de 33

Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Programa de Pós-graduação em Antropologia

Dissertação de Mestrado

Título provisório: Entre animais, pastos e bota-foras - os carroceiros do


São Geraldo e seus percursos urbanos

Nian Pissolati
Esboço do Capítulo 1

1.1 - O som e o cheiro: uma introdução

Não há como escrever, nem fotografar. Os dois primeiros sinais dos


carroceiros na cidade são intraduzíveis, seja por palavra, seja por imagem.

O som da engrenagem em movimento - não é maquínico, nem eletrônico.


Não é estridente, tampouco ensurdecedor. É cadenciado, sobressaltado na
sutileza em meio ao caos sonoro da rua. Metálico, cinza, de correntes e
parafusos em movimento, o som funciona para mim como um alarme. Alarme
não é uma descrição precisa, uma vez que o ruído não tem nada a ver com
alarde. O som é lento, é um fio que puxa uma roda, que dura. Seu volume é
restrito e insignificante. Estando na rua, hoje em dia, basta um pequeno
tilintar de engrenagens para eu saber que há uma carroça por perto.

Este é o primeiro indício, o rastro da carroça em movimento, do homem e seu


animal que se deslocam em uma rua. Não é trote, nem marcha, é apenas
engrenagem. Não é necessário contato visual, o som é a primeira presença.

Na Andradas, avenida que margeia o Rio Arrudas, desde o cruzamento com


a Avenida do Contorno, na altura dos bairros Santa Efigênia e Santa Tereza,
até os arredores do fim da cidade, em direção leste, existe uma marginal.
Atrás dela, seguindo os mesmos contornos, está construída a linha férrea,
que se na cidade geralmente é esquecida, nessa região é extremamente
presente e significativa. Neste trecho da avenida as obras de ocultação do rio
ainda não chegaram. Isso quer dizer que entre a avenida e a marginal, ainda
é possível vê-lo, junto de sua encosta, formada de árvores e mato, em cima
de um alto muro de arrimo. Claro, o rio corre dentro de uma caixa de cimento,
estamos numa metrópole. No trecho entre a Avenida do Contorno até a
Silviano Brandão, avenida que divide os bairros Santa Tereza, Sagrada
Família e Horto, a marginal é usada como área de lazer e práticas de
esporte. Há um presídio feminino, devidamente esquecido por aqueles que
freqüentam o espaço. Brinca-se, toma-se água de coco e pratica-se
exercícios como musculação, bicicleta e caminhada.
Seguindo a marginal, no encontro com a Avenida Silviano Brandão, o trânsito
é intenso. A entrada e saída de carros é constante. Mas passado o
cruzamento a paisagem aos poucos vai mudando. Há o campo do Social
Olímpico Ferroviário, time formado em 1928 pelos funcionários da rede
ferroviária, que formaram os bairros da região, como Horto e Pompéia. Logo
em seguida um muro extenso, alaranjado, de aproximadamente 1 quilômetro,
ressalta que estamos nas imediações do terreno da Ferrovia Centro-Atlântica
(FCA), companhia privada que tem a concessão federal para utilização,
exploração e manutenção deste trecho da linha férrea1.

Nesta parte da marginal, ao invés de corredores e esportistas, começamos a


cruzar com carroceiros. Um deles carrega o que parece ser a poda de uma
mangueira. Os galhos e folhas, somados a altura da carroça estão a mais de
dois metros do chão, e ele com uma ripa de madeira, acomoda-se em cima.
Alguns minutos depois, passam duas carroças vazias em direção contrária,
certamente em busca de serviço. Cinco metros à frente, passa um carroceiro
sentado num criado mudo, que pára logo adiante, para que seu parceiro
retire um galho de uma das árvores da encosta.

No fim do percurso, quase chegando no próximo cruzamento da Avenida


Andradas, dessa vez com a Avenida Itaituba, que dá acesso ao São Geraldo
e todos os outros bairros que estão atrás, como Nova Vista, Boa Vista e Ana
Lúcia, o asfalto novo começa a se alaranjar. Uma forte poeira encobre o
caminho. De repente, o muro também alaranjado termina, e se faz sentir um
cheiro forte. Uma mistura de suor de animais e homens, poeira, terra e lixo.
Dia ou noite, chuva ou seca, o cheiro domina o lugar e gruda nas roupas, nos
sapatos das gentes. É indescritível, longe de ser insuportável, é um cheiro
pesado, uma presença que se faz notar, mesmo àqueles que não desviam o
olhar reto e resignado do andar objetivo.
1
A malha operada pela Ferrovia Centro Atlântica (FCA) é originária da Rede Ferroviária Federal S/A
(RFFSA). Incluída no Programa Nacional de Desestatização (PND), por meio do Decreto n° 473/92, a
RFFSA transferiu suas malhas para a iniciativa privada por um período de 30 anos, prorrogáveis por
mais 30. A FCA obteve a concessão da Malha Centro-Leste da RFFSA em leilão realizado em junho de
1996. Em agosto do mesmo ano, a outorga da concessão foi efetivada por Decreto Presidencial e, em
1° de setembro iniciou-se a operação dos serviços públicos de transporte ferroviário de cargas. (Fonte:
http://www.fcasa.com.br/sobre-a-fca/historia/)
Dois portões de grade, semi-abertos, dão entrada a um terreno que abriga
três caçambas. Uma delas está cheia de entulhos de construção, tijolos,
pedras, reboco, cal. A outra contém um grande volume de folhas secas,
galhos e troncos. A terceira parece estar vazia. A cerca que passa ao lado
dessa área corre para o fundo, acompanhando um pequeno beco, que
parece dar acesso a algum espaço que está num nível topográfico mais
elevado.

São 8h da manhã e o trânsito de carroças é grande. Na primeira caçamba há


um grupo de três crianças, com não mais de 14 anos, revirando os entulhos,
abrindo sacos, como que procurando por algum tesouro. De vez em quando
suas mãos mergulhadas voltam à tona, brancas de cal, com um punhado de
fios. Quando não é isso, são pedaços de metais, motores de
eletrodomésticos e alumínio. Tudo é separado num canto.

Uma nova carroça chega, carregada de entulho e quando começa a subir o


beco, um homem com uniforme laranja surge, vindo do fundo do terreno e
indica que o material deve ser jogado na terceira caçamba. O carroceiro
então pula para o chão, num movimento desenvolto e com alguns gritos de
incentivo uni-se à égua. Os dois juntos sobem o pequeno morro num passo
acelerado, sua voz puxa a égua que puxa a carroça. Entra na área das
caçambas pela lateral, de onde você observa a cena. Numa manobra ágil
conduz o animal de ré e posiciona a carroça diante da boca da caçamba, que
está num nível mais baixo do terreno. Faz isso de forma simples, com um
comando usado por todos: “Afasta, égua, afasta!”. Nesse momento, outro
homem de uniforme laranja surge, carregando uma pá, e com uma zombaria
cumprimenta o carroceiro. Ele devolve o cumprimento e a zombaria enquanto
retira a parte traseira da carroceria e então desprende momentaneamente o
animal da carroça e a inclina para baixo. Pelo lado esquerdo o homem
uniformizado começa a puxar os entulhos pra baixo, enquanto a conversa
prossegue no mesmo tom. Enquanto isso, outro carroceiro chega, também
com carregamento, e enquanto espera, entra na conversa debochada. As
falas são altas, entrecortadas por risos. O descarregamento dura menos de
cinco minutos.
A narração ou o registro visual desta cena, por mais minuciosa que possa
ser, nunca será capaz de chegar ao som das carroças que vão e vem ao
longo do percurso, nem tampouco ao cheiro que em lufadas de ar vem
chegando à medida que se aproxima o terreno. O som é frio e aconchegante;
o cheiro é quente e de difícil assimilação. É impossível conhecer um
carroceiro e um bota-fora se você nunca ouviu esse som ou sentiu esse
cheiro2.

Apresentação

Durante algumas visitas esporádicas em 2010, um mês em 2011 e


aproximadamente 6 meses em 2012, tenho convivido com um grupo de
carroceiros que trabalham e residem na regional leste de Belo Horizonte3. Em
geral, os grupos de carroceiros são formados devido ao convívio diário que
se dá na região onde atuam. O que determina essa região de atuação é a
sua proximidade em relação ao lugar onde os animais são guardados (o que
não necessariamente irá coincidir com o local de residência dos carroceiros).
O que chamo de região de atuação do carroceiro é caracterizado por dois
2
Em A alma encantadora das ruas, João do Rio, cronista do Rio de Janeiro do início do século XX,
relata uma conversa valiosa:

- Sabe você dizer quem é e onde está o Bamba?

O mulato riu.

- É este patrão...

O gorduchão abriu a boca, onde faltavam os dentes.

- Já não trabalho de noite: tenho setenta anos. Não vejo. Desde 1864 que estou no serviço. Outro dia
quase morro; caí da boléia. Tenho as pernas duras...

- Bamba, meu velho...

- Sou o primeiro cocheiro, o mais velho, não há nenhum mais velho...

Eu voltei-me para o mulato, interroguei-o quase em segredo:

- Mas que diabo vem ele fazer aqui, assim?

O mulato sorriu com tristeza.

- Sei lá!... É o cheiro, vossa senhoria, é o cheiro! Quando a gente começa nessa vida, não pode viver
sem ela... É o cheiro...
3
Até agora conheci apenas um caso de carroceiro que por alguns anos se mudou da regional, mas que
continuou guardando o seus animais em um terreno do bairro São Geraldo. Assim, sua região de
atuação nunca foi alterada. Hoje em dia ele voltou a morar no bairro São Geraldo.
elementos: os bairros e localidades onde ele geralmente pega seus serviços;
os locais de despejo do carregamento. pegar

Os bairros e localidades onde os carroceiros frequentemente fazem seus


carregamentos é limitado principalmente pela equação entre distância
percorrida, características topográficas do terreno e esforço físico do animal.
Esta área de atuação geralmente chega a um raio máximo de 3 km.

Já os locais de despejo podem ser divididos em legais e ilegais. Em 1997 a


prefeitura de Belo Horizonte (por meio da Superintendência de Limpeza
Urbana4), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais criou o
projeto Correção Ambiental e Reciclagem com Carroceiros de Belo
Horizonte, ou simplesmente, Programa Carroceiros. Em linhas gerais o
objetivo principal era mudar a forma de atuação destes profissionais,
transformando-os em agentes de limpeza urbana, que além de recolher os
pequenos volumes e resíduos da cidade, dariam um destino correto ao
material recolhido, possibilitando inclusive seu reaproveitamento. Até então,
os carregamentos eram depositados de forma clandestina em locais
considerados impróprios como lotes vagos, encostas de rios e áreas
públicas5.

A primeira ação efetiva do programa foi a criação das áreas legais de despejo
dos carregamentos, que são as Unidades de Recebimento de Pequeno
Volume (URPV), chamadas mais comumente de bota-fora. O processo de
criação dessas áreas na cidade foi gradativo, e atualmente Belo Horizonte
conta com 34 unidades em funcionamento.

Assim, uma das primeiras mudanças que o programa promoveu foi relativa a
própria postura pública de discriminação e coerção até então adotada,
transformando o lugar do carroceiro de antigo “inimigo da limpeza urbana”

4
A Superintendência de Limpeza Urbana é uma autarquia municipal criada pela Lei 2.220 de 27 de
agosto de 1973. A Lei nº 9.011, de 1º de janeiro de 2005, vincula a SLU à Secretaria Municipal de
Políticas Urbanas (Smurbe). (fonte: http://portalpbh.pbh.gov.br)
5
Segundo REZENDE (2004), a retirada de entulho em locais clandestinos gera à administração
municipal um gasto de cerca de 15 dólares a tonelada, enquanto que o material retirado das Unidades
de Recebimento de Pequenos Volumes, fica em torno de 4 dólares a tonelada.
para “parceiro da administração pública”6. Junto a essa mudança, a parceria
com a UFMG propôs duas frentes de atuações, uma via Escola de
Veterinária, que promoveu um suporte e assistência à saúde do animal,
assim como um acompanhamento e desenvolvimento de programas
regulares de educação gratuitos para os carroceiros7; e outra pela atuação de
algumas professoras8 da Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas, que
visando a reinserção social do carroceiro, desenvolveu um estudo do perfil
sócio-econômico do grupo, buscou promover a conscientização do carroceiro
enquanto agente ambiental, e ofereceu auxílio técnico para a formação das
associações de classe9.

Desde então a maneirax de atuação dos carroceiros vem gradualmente


mudando e a quantidade de despejos em áreas legais começou a
acontecer10. Contudo, o despejo em áreas ilegais continua. Geralmente elas
são utilizadas para agilizar o descarregamento, de modo que o carroceiro não
tenha que ir até o bota-fora. De qualquer forma, estes terrenos utilizados não

6
Na Internet, a página de apresentação do programa no site da prefeitura, deixa bem claro esse
contraste. Já na primeira frase de apresentação do projeto o passado dos carroceiros é apresentado
assim: “Até alguns anos atrás, era comum flagrar carroceiros despejando lixo e entulho em áreas
públicas, prejudicando o meio ambiente e a população”. Em contrapartida, as últimas frases do texto, já
apresentam o novo carroceiro: “Criado em 1997, o projeto considera o carroceiro como parceiro da
administração pública por atuar como agente de limpeza urbana ao coletar e destinar corretamente os
pequenos volumes recolhidos pela cidade”. (http://portalpbh.pbh.gov.br)
7
O departamento de Clínica e Cirurgia é o responsável pela coordenação do Projeto Carroceiros no que
tange as responsabilidades da Escola de Veterinária da UFMG. Desde 1997, uma série de dados vem
sendo levantados a partir de questionários e pesquisas realizadas com os carroceiros cadastrados no
programa. Atualmente o número de carroceiros cadastrados gira em torno de 2.500.
8
A idéia do Programa veio de Maria Stella Neves Pereira, geógrafa, professora aposentada da
Faculdade de Educação da UFMG, com anos de experiência na área de mobilização social. Depois de
aposentada, Stella vinculou-se à SLU, de onde coordena o projeto desde sua implantação.

O núcleo do grupo de trabalho foi formado com mais algumas professoras: Sônia Maria Dias, então
analista de Mobilização Social da SLU; a agora aposentada professora do Departamento de
Comunicação Social da UFMG, Beatriz Bretas; a professora dos Programas de Pós-Graduação dos
Departamentos de História e Comunicação Social da UFMG, Regina Helena Silva; e a professora do
Departamento de Clínica e Cirurgia Veterinárias da Escola de Veterinária da UFMG, Maristela Silveira
Palhares, que desde então, coordena o projeto de extensão na Universidade associado ao Programa, que
já dura 14 anos.
9
REZENDE, 2004
10
Segundo dados apresentados por REZENDE, entre os anos de 1998 e 2003 a deposição clandestina
do material coletado pelos carroceiros diminuiu gradualmente. Em 2003, os locais mais utilizados para
despejo já eram as URPVs (53,9%).
estão muito afastados da URPV, e estão espalhados na área em que os
carroceiros pegam seu serviço.

Na regional leste existem, atualmente, dois bota-foras. Um localizado na


Avenida Mem de Sá, no Bairro Santa Efigênia (mais próximo da regional
centro-sul da cidade) e outro na Avenida Andradas, na altura dos bairros
Esplanada e São Geraldo (localizado a poucos minutos do limite da cidade
com Sabará).

A profissão de carroceiro é um tanto solitária, podendo no máximo, ser


exercida por duas pessoas por veículo. Soma-se a isso o fato de que
geralmente os carroceiros são donos de seu próprio animal e carroça. Dessa
forma, o bota-fora transforma-se no principal local de sociabilidade do grupo.
Entre um carreto e outro, os carroceiros ali se encontram e descansam seus
animais. É comum também, muitos permanecerem por horas no local, à
espera de serviços. O grupo com quem convivo está vinculado a parte mais
marginal da regional leste11, e despeja seus carregamentos, em sua maioria,
no bota-fora da Avenida Andradas ou em terrenos próximos.

Pesquisa

Assim, meu objetivo principal é aproximar-me dessas pessoas e tentar


entender o que significa e no que implica ocupar este status ambíguo – de
profissionais clandestinos/agentes parceiros da prefeitura e responsáveis
pela limpeza urbana; vivendo um universo localizado na fronteira entre o rural
e o urbano - numa metrópole com as proporções de Belo Horizonte. Para
isso concentrei-me em conhecer e participar da dinâmica do ofício e do dia-a-
dia dessas pessoas e reconhecer quais são suas redes de relacionamento
dentro e fora do grupo e como elas se estabelecem.

11
De acordo com dados da Prefeitura de Belo Horizonte (2007) a regional leste é formada oficialmente
por 51 bairros, mas que popularmente são reduzidos a 24. O que chamo de área marginal da regional é
aquela constituída pelos bairros mais afastados do centro da cidade. Ainda que este grupo de
carroceiros atue bastante em áreas mais próximas do centro - Santa Tereza, Floresta, e Sagrada Família
- sua residência é nos bairros mais afastados. Assim, a principal área de atuação destes carroceiros é:
Paraíso, Baleia, Pompéia, Esplanada, Vera Cruz, Granja de Freitas, Casa Branca, São Geraldo, Instituto
Agronômico, Boa Vista, Nova Vista, Alto Vera Cruz e Horto.
Contudo, não demorou muito para perceber que existem três relações
básicas que moldam o universo do carroceiro e que necessariamente
deveriam ser estudadas. Relações pragmático-simbólicas que fundamentam
não só o auto-reconhecimento desses carroceiros enquanto grupo, como
também irão caracterizar o lugar singular que ocupam no contexto urbano.
São elas:

- Relação carroceiros e animais: muito mais que funcional e utilitária, a


relação homem-animal se dá como uma espécie de parceria muito afinada e
profunda, tomando proporções muito significativas na vida dessas pessoas.

- Relação carroceiros e cidade: a experiência de cidade vivida por este grupo


é muito diversa daquela estereotipada do cidadão que tem uma relação
maquínica com a cidade e definem uma postura e relação funcional muito
particular. Alguns elementos a considerar, por exemplo, são: o tempo de
deslocamento; os trajetos e estratégias de locomoção utilizados, uma vez
que estas pessoas transitam numa cidade pensada e estruturada para o
tráfego automotivo, o que impõe uma série de obstáculos; além de uma
vivência prática com a cidade muito ligada ao ciclo-natural-biológico
característico do campo.

- relação carroceiros e outros grupos sociais: símbolos e linguagens


compartilhadas que fazem com que o grupo se reconheça como tal e
produzam a alteridade; assim como estigmas históricos que carregam e
moldam sua relação com outros grupos sociais e outras vozes urbanas.

Nos últimos anos, o governo municipal de Belo Horizonte vem realizando


uma série de medidas e políticas públicas de cunho higienista e eticamente
questionáveis, travestidas pelo discurso desenvolvimentista do progresso12
(muitas vezes com apoio de algumas parcelas da sociedade). Paralelamente,
uma série de grupos e movimentos sociais, mais ou menos organizados,
combatem essa prática e reivindicam dentre tantos itens básicos, o direito a
alteridade. Ainda que o Projeto Carroceiros tenha proposto uma mudança

12
Característica historicamente presente desde a concepção do projeto de construção da capital
mineira, inaugurada em 1897.
fundamental sobre a situação do carroceiro na sociedade, o que se vê na
prática é uma série de questões que mostram o contrário. A meu ver, nesse
contexto de cidade, os carroceiros exercem enquanto grupo uma verdadeira
cultura de resistência, ainda que não estejam organizados politicamente e
funcionalmente (o que cria impasses significativos, como discutirei na
dissertação).

Muito mais do que um ofício, ser carroceiro é uma forma de vida na cidade.
Assim, a resistência é diária, simples e quase-calada – ela vem pelo som,
pelo cheiro, pelo animal no trânsito ou por um chapéu, que acima dos carros,
aponta um outro ritmo na cidade. Enfim, a resistência é simbólica – nos
valores e linguagem compartilhados - e pragmática, e se dá na simples
existência dessas pessoas na rotina de Belo Horizonte.

Meu processo de interação com este grupo se dá a partir do convívio diário,


de entrevistas e da presença constante da câmera fotográfica. Ao total
produzi cerca de 2.000 fotografias que cobrem desde a rotina de trabalho a
momentos de intimidade e festas. À medida que as produzo, faço uma
seleção para impressão e as levo para o grupo, com quem discuto a
relevância e a representatividade das imagens. Outra prática constante é dar
algumas dessas fotografias para essas pessoas. Como tentarei deixar mais
claro ao longo da dissertação, a presença quase diária da câmera e a
interação a partir das fotografias13 criou relações e discussões reveladoras
sobre o universo carroceiro e sua dinâmica interacional relativas ao próprio
grupo e a outros atores presentes no bota-fora, território de interação efetiva
das pessoas que lidam com os pequenos volumes de resíduos urbanos.

Assim, minha reflexão sobre o convívio com esse grupo de carroceiros da


regional leste se dá por meio de duas linguagens: a imagem e a escrita. Cada
uma, a sua maneira, tenta dar conta de algumas impressões que tive a partir
desse encontro.

13
Prática proposta em uma das poucas metodologias sistematizadas para a antropologia visual
desenvolvida por John COOLIER já na década de 1960.
Mas é importante ressaltar um contraste fundamental entre as linguagens
que aponta para uma potência da imagem enquanto ferramenta metodológica
durante a pesquisa. A produção das fotografias em máquina digital permite
que as pessoas retratadas vejam e comentem as imagens imediatamente
após sua produção. Além disso, a metodologia de imprimir e levar até o
grupo as imagens materializadas em papel fotográfico, permite uma
discussão que traz dados muitas vezes preciosos para a pesquisa, só
revelados nesse momento. Foi, por exemplo, com as fotografias que percebi
de forma mais clara como a referência fundamental e a atenção primeira nas
relações entre os homens é o animal. Geralmente, ao levar para o bota-fora
as fotografias, a abundância de comentários que surgia nesse sentido era
freqüente: em poucos minutos eram narradas as biografias dos animais,
eram analisados seu estado de saúde e trato, aconteciam comentários sobre
suas características do tipo “bravo”, “manso”, “bonito”, “magro demais” e
assim por diante. Em vários momentos, inclusive, nada se falava do
carroceiro propriamente, ou quando muito, de maneira rápida e fazendo
referência ao animal, do tipo “essa égua está melhor agora com fulano do
que quando estava com sicrano”. Já a reflexão via texto, além de não possuir
essa instantaneidade de produção14, é de difícil compartilhamento, não só
porque neste caso específico, muitas pessoas do grupo são analfabetas, mas
porque de fato, o texto não despertava interesse15.

1.1_ Pequena história e contextualização etnográfica dos carroceiros do


bairro São Geraldo

Liberdade

O ofício de carroceiro é antigo e, no Brasil, pelo menos desde o século XIX


está vinculado a uma espécie de liberdade, que além de caracterizar um

14
O diário de campo, ainda que produzido obviamente em campo, é mais esquemático em
termos formais, e muito diferente de uma reflexão posterior. A imagem, por sua vez,
permanece a mesma.
15
Um dado significativo da pesquisa é que fiquei conhecido no grupo pela alcunha de “o
fotógrafo”.
aspecto de vida, possibilitou uma dinâmica comercial que foi fundamental
para a delicada operação de transição entre o ambiente rural e o almejado
urbanismo moderno. Segundo MOURA16 a infra-estrutura urbana da capital
brasileira, o Rio de Janeiro do século XIX, foi formada predominantemente
pela mão-de-obra livre que transitava num universo sócio-econômico
estruturado pela escravidão e pela monocultura exportadora.

Em meados do século XIX, os carroceiros formavam essa mão-de-obra que


foi responsável por interligar duas partes da cidade: a metropolitana,
constituída das freguesias comerciais, já então um centro exportador-
importador, que apresentava núcleos de produção manufatureira e fabril, e
que monopolizava o “aparato burocrático da administração política brasileira”;
e as freguesias de fora, chamadas de sertão carioca, de população dispersa,
com “economia de coleta, artesanato, pecuária e horticultura [que] abastec[ia]
o centro urbano17.

Assim, dois universos contrastantes, mas dependentes, supriam-se


mutuamente principalmente a partir das rotas e trajetos comerciais dos
carroceiros:

O crescimento da produção e da população [do Rio de Janeiro] entre 1849


e 1856 amplia o mercado de trabalho para o carroceiro. Há necessidade de
distribuir, para um mercado consumidor crescente na cidade, não só as
mercadorias importadas mas também as aqui mesmo produzidas. O
produto do seu artesanato, de oficinas e de manufaturas, o tijolo para a
construção, a lenha para as cozinhas, aqui consumidas ou exportadas junto
18
às sacas de café, nos armazéns do porto, é levado nas carroças

As atividades eram variadas e no espaço dessas duas décadas, o Rio de


Janeiro assistiu a um crescimento sem precedentes do ofício, num

16
MOURA, Ana Maria da Silva. Cocheiros e carroceiros: homens livres no Rio de senhores e escravos.
São Paulo: HUCITEC, 1988.
17
Idem, (p.27 a 29)
18
idem, (p. 42)
movimento de transição do tipo de abastecimento terrestre da cidade, que até
o início do século era feito pelo antigo sistema de tropas19.

Numa cidade de ruas estreitas, sujas e tortuosas, os pequenos carroceiros


proliferam cobrindo todo o tipo de serviços: mudanças, trastes (revendas de
roupas e móveis usados), carregamento de material de construção, aterro,
lixo, água, forragens para os animais das cocheiras das cidades; revenda
de artesanato da região; fretes de café, couro, tabaco, mandioca em farinha
(farinha de pau); azeite, vinho, frutas européias para as casas de
importação e exportação; transporte e revenda das esteiras, cerâmica,
barro vindo do sertão carioca; frete das mercadorias das lojas aos
compradores, enfim, cobrindo e unindo as freguesias comerciais
20
residenciais e o sertão . [grifo nosso]

Se a lista de carregamentos é ampla - inclusive já abrangendo os principais


tipos de transportes realizados ainda hoje em Belo Horizonte (grifados) – isso
está diretamente ligado à inexistência de vínculo empregatício formal. Num
país escravagista, a parcela mais pobre e livre da sociedade carioca tinha no
ofício uma fonte de renda possível e constante.

“...na década de 50 [do século XIX], e mesmo desde meados dos anos 40,
as carroças e os carroceiros estão bastante ligados ao transporte do café
para o porto, às atividades de exportação e importação, mas sem vinculo
empregatício com as casas de alto comércio detentoras destas atividades.
Diria, em linguagem atual, que os carroceiros seriam autônomos. Nesta
fase os serviços prestados à e na cidade estão limitados a mudanças de
utensílios domésticos e carretos especiais. Sua atividade está concentrada
na região do porto e sua moradia, colocada nos pedidos de licença, nas
ruas, ruelas e becos ao redor do centro escoador da produção de café. A
carroça é utilizada por um só trabalhador-proprietário. O carroceiro é o
proprietário de sua ferramenta de trabalho, seu único meio de
21
rendimento..” [grifo nosso]

19
Idem (p.20)
20
Idem, (p.44)
21
Idem, (p.41)
Em Belo Horizonte a profissão sempre existiu22, contudo não há um estudo
histórico sistemático sobre o ofício ou sobre o grupo23. Atualmente, a geração
mais velha em atividade está entre os 70 e 80 anos. Em conversa com os
mais velhos, o máximo que se pode retornar historicamente é até a década
de 60 do século XX – momento em que esta geração iniciava seus trabalhos.
Claro, neste período as condições de infra-estrutura urbana de Belo
Horizonte já encontrava-se bem diversa da relatada por MOURA, no Rio de
Janeiro do século XIX. Portanto, não é de se espantar que essa parcela
preponderante do comércio direto de produtos e mercadorias já não
acontecesse via carroceiros, mas por automóveis.

O grupo que freqüenta o bota-fora da Avenida Andradas é formado por


aproximadamente 60 carroceiros. A geração que tem presença mais maciça
é a que se encontra na faixa de 35 a 55 anos, ou seja, a segunda geração a
partir da mais velha hoje em atividade24. Ela é formada, basicamente, pelos
filhos da geração mais velha e pelos novos carroceiros.

Assim, a geração mais velha e seus filhos ainda carregam memórias e


experiências vividas entre a década de 50 e 60. Olavo tem 46 anos, nasceu e
foi criado no bairro São Geraldo. É filho de carroceiro e ainda criança, aos 4
anos, começou a acompanhar o pai, que segundo ele, está no ofício pelo
menos desde a década 50. Assim ele relata sobre os carroceiros e as
atividades que existiam na época:

Olavo: Os carroceiros antigos eu lembro de cada um. Era Seu Jordão, Seu
Vavá, Seu Vicente, Zé Pequeno, Getúlio, Luis Bigode, Seu Jésus, dessa
regiãozinha aqui, né, mas tinha pra toda a região, que era todo mundo

22
Em anexo (1 e 2) apresentamos algumas fotografias das primeiras décadas da cidade em que é
possível vermos a circulação e utilização das carroças em situações semelhantes às descritas por
MOURA.
23
Desde a criação do Programa Carroceiros, em 1997, algumas dissertações que tangem o universo do
carroceiro em Belo Horizonte foram produzidas na UFMG, contudo, relativas a um contexto
contemporâneo. Falta, assim, uma visão histórica sobre o grupo. Algumas referências: REZENDE,
2003; SILVA, 2005; SIMOES, 2009;
24
Em sua maioria, a geração mais velha não é nascida em Belo Horizonte e nas décadas de 50 e 60,
chegava do interior com o difundido discurso de “ganhar a vida na cidade grande”. Atualmente três
gerações trabalham com carroça, representada pelos filhos e netos da geração mais velha. As duas
gerações mais novas são constituídas ainda de novos carroceiros que não tem vinculo familiar com o
ofício.
muito unido. Tinha o Seu Raimundo, que tirava areia do rio, Seu Antenor,
que tirava areia no rio, cada um tinha uma função diferente. Por exemplo, o
Seu Jésus entregava água. No Casa Branca, não tinha asfalto, não tinha
água, não tinha nada, mas na casa dele tinha. Eu lembro que com 7 anos
eu trabalhei pra ele, com carroça. Colocava um tambor aqui, outro atrás, de
150L, e entregava água nas casas. O Seu Antenor criava porco e tirava
areia. O Luis Bigode, durante toda a vida, mexeu com carreto, de todo tipo.
Inclusive foi ele quem iniciou, praticamente, esse negócio de carregar
entulho. Não se falava em caçamba, nem nada, jogava onde dava pra
jogar, na beira de rio, em lote vago, aquele negócio todo. Depois a
prefeitura organizou isso. O Seu Vavá, já era assim: ele tinha muito animal,
e usava a carroça mais pra tratar de animal, e saía a meninada toda na rua
pra caçar carreto. Nessa época, a gente carregava mudança, mudança
mesmo. Pessoal ia mudar de casa, contratava a gente, e a gente dava, 4,
5, 6 viagens, carregava tudo era aqui, geladeira, guarda-roupa, o que se
tinha na época, que não é igual hoje, né, poucos móveis e tal, mas era de
carroça. Todo transporte, na verdade era de carroça. Quando era coisa
muito grande a pessoa alugava caminhão, quando era pequena, alugava
carroça. Só que era de tudo. Meu pai carregava, pra você fazer uma idéia,
farinha de trigo pra padaria, na carroça. Aí ele forrava tudo com lona, ele
era muito caprichoso. Aí ele carregava farinha de trigo, tinha uma padaria,
não sei se era no Horto, ele buscava, se não me engano, na Cidade
Industrial, e trazia pro Horto, ele já tinha, quase que um contrato com esse
cara da padaria. Ele carregava açúcar, mantimento, tudo ni carroça. E olha
que eu não sou dessa geração tão mais velha, igual meu pai. Mas eu
peguei essa época que carregava essas coisas tudo.

Nian: O serviço era bem mais variado do que hoje, né....

Olavo: Muito, e inclusive tinha valor mesmo, porque era um transporte


alternativo, porque o que você via era aquelas caminhonetonas antigas, o
carreto era caríssimo, a carroça era um recurso bom pra época. Então,
assim, meu pai, por exemplo, ele fala, carregava de tudo. Eu, quando eu
comecei a mexer com carroça, carregava de tudo. Carregava geladeira...a
gente buscava em loja. Porque não tinha esse trem de entregar, a gente
tinha que ir lá buscar. Tinha que ter aquele cuidado de amarrar, a gente
aprendia a ter aquele cuidado com a carga por causa disso, pra não
estragar as coisas. Tudo... depósito de material de construção. Só se a
pessoa comprasse um caminhão fechado de areia que o depósito
entregava no caminhão. O resto era tudo, tudo, na carroça. Areia, cimento,
brita, cascalho, pedra, tudo carroça. Já carreguei muita coisa em carroça,
carreto de feira, de mantimento, tinha gente que comprava compra muito
grande, e a gente levava... tinha gente que fazia aquelas compras
enormes, e levava tudo em carroça, ração pra porco....

Seu Luis Bigode é o carroceiro mais velho em atividade na região. Ele tem 71
anos, e há 33 trabalha com carroça. Ele também relata algumas atividades
que eram comuns quando começou:

Luis: Tinha chegado da roça. Tinha um véi que tirava cascaio aqui na
Abadia e perguntou, você não quer tirar cascaio mais eu, pra carregar na
carroça, e vender não? Aí eu comecei, comecei a luta, né, eu analfabeto,
meus meninos pequenos, e comecei aquilo...

Nian: Tinha muita gente que já trabalhava com carroça?

Luis: Não tinha tanto carroceiro igual hoje não. Mas tinha bastante. Tinha
uns que carregava ferro, cascaio, entulho.

Assim, há uma série de carregamentos e transportes relatados por essas


duas gerações - que coincidem com os apontados por MOURA - que
mostram, principalmente, que a não existência de vínculo empregatício
sempre caracterizou o serviço em Belo Horizonte. E a chamada informalidade
permite que o carroceiro estabeleça seus dias de trabalho, suas horas de
folga, e sua “especialidade” de carregamento. Seu Luiz Bigode, ao longo da
vida exerceu outras profissões e trabalhou fichado até aposentar. Um dia,
conversando sobre seus outros empregos, ele me contou a história de sua
aposentadoria. Na época, trabalhava como vigia em uma empresa de
transportes no bairro São Francisco e continuava com o serviço da carroça.

Luiz: Ó, meu amigo, eu tava doido pra aposentar, sabe o quê que é, porque
lá na firma tava tendo muito roubo de motorista. E na época tinha um outro
cara que me rendia. Tinha uma guarita, né, e tinha uma peça lá, muito cara.
Aí eu vi, chega um subgerente num Opala, entrou lá pra dentro enquanto
eu fui trocar de roupa. E eu vi ele pegando a peça. E esse outro homem
que me rendia se chamava Seu Viriato. E aí eu falei assim, Ô Seu Viriato,
aquele ali tá pegando aquela peça. Aí quando eu cheguei de tarde o
gerente vira pra mim e fala “Eu tô querendo é você aqui. Ô Seu Luiz, tá
tendo muito roubo aqui à noite, eu quero ver o quê que tá acontecendo,
sumiu uma peça dentro da guarita, cara”. Aí eu virei pra ele, e falei, “O
senhor tá igual o marido com a mulher, depois que a mulher dá, dá, ele é o
último a saber. Aí eu falei com ele desse jeito, rapaz. E ele falou, “O quê?
Quê isso, rapaz”... eu falei, “Seu Agenor, quem pegou a peça foi o
Lourival”. “Uai, mas você tem prova?” “Eu tenho, na hora que eu cheguei
pra apanhar serviço ele tava colocando no carro”. O Seu Viriato tinha ido
embora, ele falou pra esperar ele chegar. O Viriato era um negão alto. Aí
quando ele chegou subimos nós dois pro escritório. E ele disse que foi o
Lourival. Aí eles mandaram o Lourival embora, sem acerto, sem nada, o
homem tinha 10 anos de casa... então eu fiquei doido pra aposentar,
porque o galpão era grande demais, tinha muita coisa de valor, que
carregava nas carreta, televisão, roupa....

Procê ver o quê que eu passei: um dia tinha um carro parado assim, lá
tinha um poço pra servir óleo no caminhão. Aí um dia chegaram três caras
num carro, de madrugada e chamou eu. “Ô meu amigo, vem cá. Tem jeito
de ver um litro de óleo pra mim, não?” Aí eu falei pra ele, “Meu amigo, eu
não tenho nada”. Como fiquei meio cabreiro botei o revólver na cintura. Aí
eles perguntaram, “E uma calça jeans? Tem jeito do senhor arrumar pra
nós?” Aí falei, “Companheiro, aqui não tem nada”. Aí eu falei assim, “eu vou
ligar pra polícia, que vocês tão querendo cortar cola comigo”, e esse cara
era policia, rapá! Porque o homem mandou investigar eu... aí eu já
desgostei, e até um motorista do rio falou comigo, “É Seu Luiz, o senhor é
duro na parada, hein. O homem falou comigo que botou a polícia pra
investigar o senhor aí, e o senhor não abre a mão de nada, né?”. Aí eu vi
que isso não servia pra mim, “ah eu tenho que aposentar”. Quando eu
fiz uma cirurgia, eu fiquei 9 meses sem receber, naquela época INSS não
pagava não. Eu tinha dois animal de carroça, mas eu não tava podendo
trabalhar, e tava com a pressão muita alta, e os meus meninos trabalhava
com animal, pra levar a comida pra mim, pagar a conta de luz, eles tinham
família, e trataram de eu. Aí, depois que o médico me deu alta, mas eu
ainda tava com isso aqui inchado, tinha batido na carroça, né, aí fui lá no
INSS pra eles fazerem a contagem, e deu 36 anos e 6 meses, que eu
trabalhava só a noite, né...aí a mulher de lá falou, se eu fosse ele,
agüentava mais uns tempos, que o ordenado dele vai melhorar. Aí mandou
a firma encher o papel. Pra mandar pra SP, né. Aí mandou e o gerente, e
eu falei pra ele que tava doente, né, que não tava trabalhando não. Ele
falou comigo assim, ó, você quer que os outro completa folha procê
aposentar? Olha, você ta muito forte, você tem que trabalhar, você não vai
aposentar não. Aí o dono daqui, o primeiro a trabalhar com ele aqui foi eu.
Ele chamava Agenor, eu tinha o telefone dele, também. Aí liguei pra ele e
falei, ô seu Agenor, eu to com o papel aí, pra encher, pra mim aposentar, e
ele respondeu: amanhã, você pode esperar no malote de manhã, que
chega. Aí chegou o papel, eu levei lá, e eles aposentou eu.

Nian: E isso é diferente pros carroceiros, né?

É, aqui eu sou meu chefe, eu decido tudo.

Exponho o caso na íntegra por considerar significativo que a série de


pormenores do serviço de vigia, que implicavam em restrição e subordinação,
incomodavam a Seu Luiz a ponto de o levarem a solicitar sua aposentadoria.
A condição de sujeição à arbitrariedade de medidas de uma chefia - que num
caso de desconfiança sobre sua honestidade chegou a investigá-lo e
literalmente lhe preparou uma armadilha - foi contada a mim como o principal
motivo que o levou a solicitar sua aposentadoria. É claro, uma série de outras
situações parecidas com essa ou que de alguma forma expunham essa
condição empregador-empregado foram vividas por Seu Luiz ao longo da
vida. Outro ponto é que sua idade e os anos de serviço já lhe permitiam, por
direito e por necessidade, a aposentadoria. Mas essa conversa partiu de uma
pergunta que lhe fiz, sobre ele preferir o serviço de vigia ou de carroceiro; e o
que ele me apontou como medida de comparação foram essas
características da condição de empregado.

Assim, há uma classificação generalizada que o grupo faz que é entre o


homem fichado e o não-fichado: “aqueles que vendem suas horas” para um
empregador, que trabalham com carteira assinada, um patrão e um horário
fixo e aqueles que “resolvem o que fazer do seu tempo”. Portanto, a relação
com o trabalho na carroça é bem distinta. Estávamos numa roça, na estrada
para Sabará, onde diariamente Seu Luiz leva restos de comida que servem
de lavagem para os porcos e outros animais, quando ele me contou:

Eu já fui um camarada que pegava [trabalho] até as 7h da noite.... aquela


época eu era mais novo, eu tinha 3 animal. Ia lá em casa, desarreava um
animal, e pegava outro. Depois que eu aposentei é de 7h às 17h da tarde.
Mas de uns tempos pra cá eu tô meio baqueado.... de vez em quando,
quando eu acho uns freguês bom, antigo, eu vou lá e tiro. Mas eu não pego
mais entulho porque deixa eu explicar procê... eu sou um camarada
analfabeto, mas nunca pus a mão em nada que é dos outros, tudo que eu
tenho, é no suor, e eu sou muito, assim, nervoso. Às vezes, vai uns
vagabundo tirar entulho e rouba coisas que é dos outro. Aí as pessoas às
vezes acham que todo carroceiro é ladrão. E eu tô velho pra isso... achar
que eu sou ladrão... No sacolão eu tiro lixo de domingo a domingo, eles
paga eu R$200. Mas do queijo ao alho eles me dá. Eu posso pegar tudo na
banca que eles não cobram de mim não. Esse homem aí [dono da roça em
que estamos], ele me paga, ele e o filho dele, R$500, mas eu posso ter
porco aí. Aí onde nós lá vai tem um animal meu e eles não cobram de
mim... porque eu não gosto de ficar muito ali, no meio daquele povo, no
bota-fora. É muito custoso eu ir lá. Você é novo, mas eu sou velho. Tem dia
que eu tô assim, chateado, e eu venho praqui, destraio, né... vou vendo a
criação, eles me dão até almoço aí.

Assim, também devido a idade e por diversos pormenores do ofício, Seu Luiz
praticamente não carrega mais entulho. Contudo uma série de outros
carregamentos continuam lhe rendendo além de uma remuneração fixa, a
possibilidade de permutas. Há uma rede de relacionamentos e trocas que
são construídos a partir dos vínculos pessoal e profissional, que lhe permite,
inclusive, o descanso e a permanência longa num sítio, durante um dia que
não esteja bem.

A comparação que faz Seu Arnaud, outro carroceiro, também segue a


mesma linha:

É serviço pra quem estudou pouco, mas é muito melhor do que trabalhar
de servente, é lógico. E tem hora que é melhor você trabalhar de carroça
do que vender hora pros outros. Porque correndo atrás direitinho dá pra
sobreviver. Nós tudo aqui, eu mesmo e todo mundo aqui [do bairro São
Geraldo] sobreviveu foi com carroça.

Nian: E o senhor já trabalhou com outro emprego ao mesmo tempo?

Não. Eu era empregado, terminei uma obra que eu trabalhava de vigia e


parei. Aí comecei a trabalhar com carroça, gostei, e tava mais ou menos
elas por elas, com a carroça até dando mais um pouco, aí eu continuei. Aí
consegui aposentar também e continuei a vida com a carroça.

Assim, ainda que as dificuldades sejam várias, o carroceiro tem uma


liberdade e uma certa autonomia sobre seu tempo e seu trabalho que são
muito valiosas. Por ser seu próprio patrão, o indivíduo tem uma certa
possibilidade de escolha de serviços que prefere fazer e pode escolher o
número de viagens que fará no dia – é comum, por exemplo, carroceiros
passarem uns para os outros serviços, por diversos motivos.

Ainda que o ganho do carroceiro seja diário, e “recusar ou passar carreto”


seja “perder dinheiro”, esta é uma situação frequente. A autonomia para
escolher o serviço que se quer fazer é muito valiosa, como essa conversa
que transcrevo abaixo entre dois carroceiros mostra bem. No caso, Paulo
contava a Noel sobre um cliente que queria um carreto mas estava achando
o serviço caro.

Paulo: O cliente chegou pedindo um serviço. Falei, “onde que é?”. E ele
falou: “Não, é pra sábado. Aí eu falei, “ah, tá bom... mas me dá o
endereço”. E ele: “Não, eu quero saber se você vai porque é numa loja
minha, eu não vou ta lá não, vou lá só pra te receber”. Eu falei: “Chefe, não
me espera porque eu não vou não. Combina com os meninos aí porque eu
não vou não”... Pô, o cara tá querendo que eu vá lá fazer o serviço,
sábado, às duas horas da tarde, e ainda achou caro!

Noel – A mulher me ligou no sábado querendo que eu vá buscar uma


janela pra ela lá no São Gabriel.

P – São Gabriel?!

N – É. Mas ela mora aqui na Av. Potomaio. Virei pra ela e falei, “Olha, o
caminho é meio longe... Você não quer ver se arruma uma caminhonete,
ela vai te cobrar o mesmo preço que eu vou te cobrar”. Aí ela falou, “Mas
você tem o telefone?”. Aí dei o telefone do Luiz. Não sei se ela ligou.
Buscar uma janela e a porta...

P – Lá no São Gabriel...

N – Não... lá até eu vou, andando à toa.... mas fazer carreto?! Ainda mais
que ela queria que eu carregasse janela, com vidro e tudo.

P – Cobra uns R$100, R$120 contos...

N – Melhor ela pegar uma caminhonete. Ele cobra dela aí uns R$50
conto.... é bem vindo...

P- Bem mais seguro... e mais barato pra ela.


N – É que eu carreguei pra ela aqui, né.... Eu falei com ela, “eu não gosto
de carregar esse tipo de coisa. Isso aí e telha”... porque essa porra quebra
e eu vou ter que pagar isso”.

P – Esse tipo de coisa tem que arrumar é um carro pra levar mesmo. Igual
um cara que eu faço uns serviços pra ele, ali no Caetano. Cheguei lá, tinha
mais de uma caçamba de entulho, lá, dentro da casa do cara. Falei pra ele,
“olha meu amigo, eu acho que é mais viável você pegar uma caçamba.
Porque eu vou cobrar de você, 200, 250 conto”... “Ah, mas eu achei
caçamba de R$160!” Aí falei com ele, “então pega depressa! Pega porque
eu não pego por menos de R$200 contos não”. Dentro de casa?! Falei pra
ele, “você vai pagar o cara pra tirar o entulho de dentro da sua casa e a
caçamba. Ou você carrega ou paga alguém”. É o terceiro serviço que eu
pego na mesma rua, naquela que tem a Igreja que o Valdir administrava ali,
pertinho do ponto final do amarelinho ali, na subida assim.

N – Eu ganhei um serviço lá também e falei pro cara pegar uma caçamba.


Falei, ou você pega uma caçamba ou você pega o Quinzinho aqui, que tem
um caminhão, você arruma duas pessoas pra encher.

P – É, uai... Eu falei, “eu não consigo fazer esse serviço num dia só, é 250
conto”. “Ah, mas tá muito caro!”. “Chama a caçamba então. R$160 procê tá
barato”!

Outra prática comum é um carroceiro passar serviços para outros. Seja


porque o outro esteja num dia ruim, ou reconhecidamente numa situação
financeira mais difícil, seja porque o carroceiro não tenha tempo para realizar
o serviço. Estávamos conversando eu, Seu Luiz Bigode e Seu Mauro, que
contou este caso.

Mauro: Ô Seu Luiz, outro dia eu vim com três carretos escrito no papel.
Cacei o filho do senhor lá, o André. Não tava. Aí chegou aquele Nilsim,
aquele pichichim. Falei com ele, vem cá! Tem um carreto lá perto desse
Posto de Gasolina, aí ele olhou, “Ô Seu Mauro, não sei como o senhor.... o
senhor caiu do céu! Tô até agora sem nenhuma prata, sem nenhum restim
de carreto!”. Eu falei, “é 3 carretos lá, mas o cara só pode pagar R$25, que
tá fora do pagamento deles”. Ele falou, “cê tá doido, rapaz, do jeito que eu
tô eu puxava até por 20!” Ganhou 75. Ele passou por mim, agradeceu.
Igual o filho do senhor. Outro dia foi 4 carrretos que eu trouxe. Cheguei,
topei como ele logo de cara. Mostrei pra ele, e ele “Ó Seu Mauro, eu sei
onde é”. E me perguntou, “marcou preço?”. Eu falei que não, que era de 25
a 30, o preço da carroçada. Pagaram 25, o preço do carreto todo foi 100
conto!

É certo, contudo, que recusar ou passar serviço aconteça numa situação


ideal, em momentos em que não faltem serviços em geral. Geralmente, os
períodos ruins, são entre os últimos dias do mês até o dia 10 seguinte,
quando “o dinheiro das pessoas acabou e ainda não entrou o salário”. Outra
época ruim é em véspera de feriado, “quando o pessoal tá ajuntando dinheiro
pra viajar”. Nesses períodos, dificilmente um carroceiro irá recusar ou passar
serviço.

Carroceiro velho e novo carroceiro

A explicação sócio-econômica lógica para o ingresso na vida de carroça na


cidade é o analfabetismo e a experiência anteriormente adquirida no interior.
Estes elementos também são a origem do estigma que irá marcar o grupo.
Contudo, além de uma parcela significativa dos carroceiros ser hoje em dia
nascida em Belo Horizonte, a opção pelo ofício passa por uma série de
outros fatores (principalmente associados ao universo de criação animal).

Assim, mais do que uma questão de tempo e idade, o que diferencia um novo
carroceiro de um carroceiro velho tem forte relação com a continuidade de
uma tradição característica da região do bairro São Geraldo e à perpetuação
do conhecimento pragmático-simbólico deste universo. Na realidade, aqueles
que vêem a carroça mais como um simples ofício estão de alguma forma
numa posição diferenciada em relação aqueles que assumem a carroça
como uma forma de vida.

Seu Arnaud é um carroceiro de 68 anos, baiano de Mucuri, que chegou há 37


anos em Belo Horizonte. No interior, trabalhava como vaqueiro, tropeiro e
sempre teve relação próxima com criação de animais, mas ao chegar em
Belo Horizonte começou a trabalhar com outros ofícios. Há 20 anos mudou
para a região do bairro São Geraldo e assim ele conta sua chegada:

Depois que cheguei a Belo Horizonte, trabalhei muitos anos fichado, de


25
vigia e depois furando tubulão . No que eu mudei para o São Geraldo,

25
Serviço de escavação para fundação de prédios e obras de construção civil.
porque antes eu morava no Jardim América... porque aqui, todo mundo é
carroceiro, a luta aqui é carroceiro, aí com 30 dias que eu tava aqui eu já
tinha dois cavalos. Aí acostumei ficar no meio da turma aí e fui trabalhar
com carroça. A carroça aqui é a luta do dia-a-dia.

Olavo, irmão de Paulo, tem 46 anos, nasceu e foi criado no bairro São
Geraldo. É filho de carroceiro, e desde criança começou a acompanhar o pai
no ofício. Seu vinculo com o universo da carroça, e com o bairro é um tanto
diferente:

Olavo: Na verdade, eu sou carroceiro nato, porque eu fui criado com meu
pai mexendo com carroça. Meu pai era carroceiro e criou a família toda
mexendo com isso. E eu já cresci junto com ele nisso, então venho dessa
forma. Só que eu sempre exerci outras atividades. Então, toda vida a
carroça foi meu primeiro plano em hobby, em gostar, em tudo, mas sempre
tive que ter outras rendas. Já mexi com tudo quanto é tipo de serviço e a
carroça, nas horas vagas, eu sempre usei ela pra fazer carreto. Desde
menino, sempre assim... Hoje em dia eu sou cozinheiro, sou funcionário
público, e como eu trabalho 12h por 36h, aí de folga eu uso a carroça. Até
que eu fiquei muito tempo parado com a carroça trabalhando com eventos,
mas aí eu preferi voltar pra mexer com a carroça de novo, e manter o
emprego e os carretos.

Nian – E por que você sempre volta pra carroça, por mais que tenha outros
empregos?

Eu não sei, isso é como se fizesse parte da gente é uma coisa que se eu
quisesse ficar livre, parece que eu não conseguiria não. Tá no sangue, a
história da minha vida é isso. Fui criado com isso, e a gente pega gosto.
Porque isso aqui pra mim tá além de profissão, tá além de ganhar dinheiro.
Tem época que eu nem ganho, que eu só gasto. Porque o animal parado,
ele come. Tem época que eu to direto no emprego. Carreto tando ruim,
tando bom, o animal come. Muitas vezes eu preocupo mais com o arreio
dele do que com uma roupa minha. Eu como um arroz puro com feijão,
mas ele não come sem ração. Então, você vê, é uma coisa de gostar
mesmo. Gosto do animal, e aí o quê que acontece... na verdade, a carroça,
eu conciliei ela com meu prazer, com meu hobby. Porque, primeiro, daqui,
sai o sustento do animal. Depois, o que sobrar, é pra mim, já que eu tenho
emprego. Se eu tivesse que depender só de carroça, daria também, mas aí
eu iria trabalhar muito com isso. Eu trabalho mesmo porque eu concilio a
folga. Mas, na verdade, assim, não parece nem uma escolha minha não, é
uma coisa que entrou na minha vida. Eu trouxe isso desde criança, quando
eu comecei a andar de carroça com meu pai eu devia ter 4 anos de idade.
Ou menos...

Nian – E já era aqui no São Geraldo?

Era. Fui nascido e criado aqui. O meu pai, nossa senhora, tem um
conhecimento fora de série com carroça, e ele também mexeu a vida
inteira, criou família com isso e ensinou a gente gostar mesmo, respeitar o
animal, entender do trabalho.

Noel é um carroceiro com mais de 50 anos, nascido e criado no bairro São


Geraldo, mas que sempre trabalhou como pedreiro e há poucos anos
começou a atividade de carroceiro. É respeitado por exercer o ofício de forma
correta e séria. Contudo não tem um vínculo anterior à vida com carroça e
com criação.

Há mais ou menos 5 anos trabalho com carroça, antes mexia com


construção. Mudei porque vale mais a pena pra mim. O serviço é menos
pesado e consigo tirar até mais dinheiro do que antes.

Ao comparar esses três carroceiros, a escala por idade, em sentido


decrescente seria: Arnaud ⇒ Noel ⇒ Olavo. Em tempo de serviço efetivo
com carroça ficaria algo assim: Arnaud ⇔ Olavo ⇒ Noel. E, finalmente, numa
escala de velho carroceiro para novo, seria: Olavo ⇒ Arnaud ⇒ Noel.

Em relação a tempo de serviço, ainda que Olavo desde criança tenha relação
com a carroça, começou no ofício efetivamente, por conta própria, há pouco
mais de 20 anos. Mais ou menos o mesmo tempo que Arnaud. Na Bahia,
desde pequeno Arnaud esteve envolvido com o universo de criação,
exercendo ofícios que tivessem relação com animal – contudo, só veio de
fato ser carroceiro no São Geraldo. Portanto, em escala de tempo de serviço
e intimidade com o animal (que como apontarei no segundo capítulo é um
fator essencial para o status que se terá no grupo) ambos estão mais ou
menos na mesma situação. Contudo, em relação a posição que cada um
ocupa no grupo, Seu Arnaud está numa escala inferior a Olavo. Aqui, entra
diretamente esses dois fatores que citei acima: a manutenção de uma
tradição da região e a perpetuação deste conhecimento. Esses dois fatores
estão associados a uma outra variante que é a questão afetiva, que apesar
de ser constante – todos os carroceiros tem uma relação afetiva não só com
seus animais mas também com os dos outros – tem uma gradação bem
ampla.

Olavo é um dos carroceiros mais ativos politicamente e junto de seu irmão


Paulo, também carroceiro, ocupa um lugar de destaque. São filhos de um
carroceiro, “que criou 14 filhos montado na carroça”, sempre morando no São
Geraldo. Ambos são referência, tanto em relação ao trato do animal, como
em decisões que devem ser discutidas e conduzidas com outros grupos e
atores sociais.

Já Arnaud, apesar de ser uma referência também pelo tempo de serviço,


além de não ser originalmente da região, o que é marcado pelo grupo26, tem
uma relação mais utilitária com a carroça. Não estou querendo dizer que
carroceiros como Paulo e Olavo não se preocupem com a manutenção da
clientela e com o lucro. Por exemplo, desde o início do ano, Paulo, que
trabalhava como motorista de caminhão numa empresa de transportes, foi
demitido, e portanto, tira o sustento diário da família na carroça. Contudo, a
relação afetiva e simbólica com o universo carroceiro os coloca numa
situação de respeito e relevância para o grupo maior do que a de Seu
Arnaud.

Podemos acrescentar ainda que esse último, assume uma postura que
apesar de ser comum, não é muito bem vista pelo grupo, que de certa forma
o afasta. Ele é proprietário de três carroças, e hoje em dia dificilmente faz
carretos ele próprio. Assim, ele tem um acordo com três jovens que
trabalham para ele, e que dividem os lucros em 50%. O fato de não estar na
lida diária, o que o transforma numa espécie de “empresário”27, o coloca

26
Pelo que percebi, essa diferença ganhou uma significação muito grande a partir da criação dos bota-
fora pela Prefeitura. Os relatos dos carroceiros velhos são generalizados de que a partir do momento
em que o ofício foi legitimado uma série de novos carroceiros apareceram em busca de “dinheiro
fácil”. Contudo, o caso específico de Seu Arnaud não é esse, uma vez que mora e trabalha na região
antes da criação do Programa Carroceiros.
27
Exagero no termo empresário para marcar a diferença, não estou propondo de fato uma classificação
e posição dentro do grupo tão dispare, até porque Seu Arnaud faz parte do grupo.
numa posição diferenciada, seu vínculo primeiro com a carroça é muito mais
utilitário do que afetivo.

Em comparação, o fato de os irmãos trabalharem em outras atividades


poderia colocá-los numa posição de afastamento em relação ao grupo. Paulo
trabalhando de motorista, frequentemente fica meses fora da cidade, e Olavo,
trabalhando como chef de cozinha do Palácio da Liberdade, chega a passar
uma semana sem trabalhar na carroça. Já os cavalos de Seu Arnaud
trabalham de segunda a sábado e ele se relaciona frequentemente, para não
falar diariamente, com outros carroceiros.

Contudo, apesar de Arnaud ser inclusive de uma geração mais velha que
Olavo, é o segundo que é considerado como um carroceiro mais antigo no
grupo. A categoria de carroceiro antigo é talvez a mais valorizada, porque
está associada tanto a conhecimentos práticos sobre o animal (trato,
preparação, diagnóstico e manutenção da saúde do animal), quanto a
sapiência e poder de decisão no grupo (ainda que esta seja exercida muito
raramente, pois como veremos, a associação e mobilização dos carroceiros
é, por um determinado ponto de vista, frouxa28) e principalmente, como
portador e difusor da “tradição carroceira”.

A nova geração, que seria aquela que hoje tem menos de 30 anos, não
compartilha em sua maioria essa tradição e veremos que carregam outros
símbolos e interesses. Em sua maioria, inclusive, não são filhos de
carroceiros. Trabalham há muito pouco tempo com carroça, e os mais novos
de 20 anos em grande parte trabalham em regime de sociedade, dando uma
porcentagem para o dono do animal e da carroça. Contudo o respeito e a
admiração em relação ao velhos carroceiros é latente. Olavo, por exemplo, é
chamado por toda essa geração de “Padrinho”. Portanto, ainda que a difusão
dessa “tradição” não seja um interesse generalizado, ela é muito respeitada,
e dá ao carroceiro um lugar de destaque no grupo.

28
A mobilização que destaco como frágil e rara é aquela mais próxima de uma associação de classe
que poderia concentrar em si o papel político de articulação com o Estado e outras instituições.
Ressalto aqui, um ponto que será desenvolvido no próximo capítulo, que diz respeito às redes de
relações entre indivíduos que caracterizam não só o próprio grupo, mas sua maneira mais generalizada
de interlocução externa.
Enfim, Noel, ainda que uma das pessoas mais próximas de Olavo e Paulo
(inclusive os três compartilham o terreno onde guardam animais), não tem a
mesma projeção no grupo. Sua posição está muito mais relacionada ao
respeito que vem dos carroceiros mais velhos àqueles que, ainda que
“novos”, entendem a profissão e a exercem da maneira que consideram
correta. Em certa medida está muito próximo da turma que freqüenta
diariamente o bota-fora, inclusive, bem mais que Arnaud. Contudo, assim
como Arnaud, tem uma relação com o animal e com o universo carroceiro de
uma maneira mais comercial. Seu interesse não passa por uma “paixão” pelo
animal – pelo menos da forma extremada que os velhos mantém. Associada
a isso, sua pouca experiência o coloca na turma dos “novos carroceiros”.

Apontamentos iniciais para o capítulo 2

2. Sobre o espaço e sobre o tempo

O bota-fora nunca é o mesmo. A cada hora, a cada dia, a paisagem se


transforma. Ou poderia descrever exatamente o oposto. O bota-fora é
sempre o mesmo, montes de lixo espalhados pelo terreno, caçambas cheias
engolidas por caminhões que rumam em direção ao aterro, enquanto outros
derramam as caçambas vazias que daqui algumas horas sairão dali.

É um ciclo constante, lento mas incessante, de encher-esvaziar, juntar-levar,


carregar-descarregar, sujar-limpar. E esse ritmo cíclico fundamenta a vida do
carroceiro.

2.1 Experiência de cidade

Há períodos de seca e chuva, inclusive na cidade. As árvores crescem em


qualquer lugar que tenha um mínimo de terra. As águas das chuvas correm
para algum lugar. Há um ciclo natural e biológico que perpassa o social que
nunca será interrompido, que na cidade fica como que escondido por baixo
das várias camadas e ritmos urbanos. O século XX em especial vê surgir
uma estruturação urbana na qual a presença massiva do concreto e asfalto
promovem uma mudança paisagística que irá alterar a experiência espacial e
a percepção temporal daqueles que vivem na cidade. Belo Horizonte, já há
alguns anos passa por uma onda desenvolvimentista, de construção de
avenidas, trincheiras e edifícios, que aparentemente busca retirar da cidade
tudo que esteja associado à natureza. Nessa lógica tudo aquilo que é artificial
e produzido pelo homem ou pela máquina é sinal de avanço e progresso.

Mas há uma série de realidades e estratégias que convivem dentro da cidade


que desviam da funcionalidade e deste contexto inicial estabelecidos pelas
políticas públicas. Nesse sentido, os carroceiros parecem compartilhar uma
percepção espaço-temporal da cidade um tanto diversa.

O ciclo do lixo

Na realidade, no contexto urbano, todos aqueles que tem o lixo como


material de trabalho e fonte de renda, já possuem uma posição básica e
distinta daquela de descarte e ocultação relativa a maioria da sociedade.
Compartilham, assim, uma experiência que o mundo moderno sempre tentou
esconder. Estão em contato com tudo aquilo que de alguma maneira foi
considerado inútil, descartável, sujo ou perigoso, e que como num passe de
mágica, some ao entrar num saco azul. Um movimento recente que está
alterando esta postura é o discurso amplamente difundido do planeta
sustentável e todas as campanhas políticas (e mercantilistas) da
responsabilidade ambiental e social. Mas se este discurso gradativamente
vem ganhando força ainda há uma grande parte da sociedade que vê - ou
que na prática se relaciona com - o lixo como um resto ao qual deve dar um
fim. Nesse sentido, o termo bota-fora, cunhado popularmente para designar
as URPVs não poderia ser mais adequado...

Os carroceiros são um dos agentes sociais que lidam exatamente na lógica


inversa. O lixo é o início de um processo, ou melhor, está inserido dentro de
um ritmo cíclico distante de um fim. Uma das conseqüências primeiras desse
movimento contínuo é que estes indivíduos devem lidar com a realidade de
transformação das coisas. A velha máxima, ‘na natureza nada se cria, nada
se perde, tudo se transforma’ é aqui vivida diariamente, ou antes, é ela quem
irá tornar possível a prática do carroceiro.
Bem, os carroceiros não são os lixeiros. Não se consideram como tal, assim
como aqueles que os contratam, em sua maioria, também não os vêem
dessa forma. Mas há uma série de indícios que mostram como o ciclo
natural-biológico das coisas em processo – tão esquecido na cidade – é
definidor de uma certa relação do grupo com a cidade como um todo.

Um dos primeiros aspectos relacionados a essa afirmação é seu contato


direto com quatro tipos de carregamento: restos de alimentos; podas de
árvores; objetos, utensílios e aparelhos domésticos velhos; e entulho da
construção civil.

Os restos de alimento, quando em bom estado servem de alimentação para


os próprios carroceiros, ou tornam-se alimento para as várias criações de
porcos, galinhas, patos e outros animais que ainda existem na cidade. O
carreto de podas das árvores são outra constante no ofício. Uma vez que o
serviço seja bem feito, a clientela está garantida, já que este é um serviço
regular. As árvores podadas, dali a uns meses crescem e são novamente
cortadas.

Estes dois tipos de carregamentos estão vinculados ao ciclo natural das


coisas.

Os outros dois tipos de carregamentos a que me referi fazem parte de um


“ritmo natural da urbanidade”, que também é cíclico. Móveis,
eletrodomésticos, roupas, bolsas, revistas, e toda espécie de utensílio que
por algum motivo foram considerados desnecessários ou inúteis são em
grande medida aproveitadas e reutilizadas por todos aqueles que vivem em
relação direta com o lixo.

E, de todos os carregamentos que os carroceiros fazem, a maior parte é


constituída de entulho da construção civil. Vivemos como que um boom de
obras em Belo Horizonte. Independente das críticas lógicas a essa política, o
que nos interessa especificamente é que o progresso significa construção. E
cada vez mais construção implica demolição. Demolir o antigo para gerar o
novo. Nesse sentido o ciclo natural da cidade é crescer (estou me referindo
ao crescimento físico-material), e esse crescimento gera entulhos. Os dejetos
e sobras aqui podem ser associados diretamente aos dejetos naturais e que
também estão dentro de um ciclo. E os carroceiros são os principais
responsáveis por esse recolhimento. O intuito de reinserção social do
Programa Carroceiros, os coloca, inclusive, como os principais agentes
sociais para carregamento do entulho gerado na construção civil. Assim, de
maneira geral, o carroceiro é o agente social responsável pela manutenção
de uma ordem cíclica da cidade – tanto em seu aspecto natural como urbano.

Capim na cidade

Para analisar essa dimensão do universo dos carroceiros mais


detalhadamente temos que descrever uma série de elementos, muitos dos
quais estão diretamente associados a complexa relação que existe entre o
homem e o animal nos seus aspectos prático, afetivo e simbólico.

Os animais se alimentam basicamente de capim, ração e feno. A ração e o


feno devem ser comprados e são um gasto considerável na renda mensal.
De acordo com as conversas que tive, o gasto mensal com alimentação
adequada gira em torno de R$550,00 na época de chuva (entre novembro a
abril). Assim, um carroceiro que tem o ganho médio de R$1.500,00 por mês,
gasta com a alimentação do animal mais de 36% de seu ganho.

A boa alimentação do animal é uma preocupação constante e é uma dos


elementos que caracterizam o bom carroceiro29. Contudo, a alimentação é
dispendiosa e não são todos que gastam essa quantia com o tratamento de
seu animal. E até para aqueles que gastam, o capim continua sendo uma
fonte básica30.

O mato cresce naturalmente, de acordo com as estações, em inúmeras


localidades na cidade. No caso dos carroceiros que trabalham principalmente
29
Meu objetivo é descrever na dissertação como essa relação bons carroceiros-maus carroceiros é
construída por uma complexa rede de discursos, que por fim irá marcar um status social no próprio
grupo. Os tons variam desde uma preocupação estético-afetiva dessas pessoas enquanto admiradoras e
criadoras de animais até um discurso politizado daqueles que lutam pela mudança da imagem negativa
generalizada que a sociedade tem dos carroceiros.
30
Há uma grande variedade de capins que podem ser dadas para o animal. De acordo com o tipo de
capim, ele pode ser consumido diretamente ou deve antes ser triturado para uma melhor digestão do
animal. Este processo também demanda uma estruturação maior, uma vez que a trituração é feita por
máquina. Descreverei de maneira pormenorizada todo o processo de tratamento do animal.
no bota-fora da Av. Andradas, uma fonte primeira de capim é a própria
vegetação que margeia o Ribeirão Arrudas. No período de chuvas, entre
novembro e abril, o capim cresce bastante, e é comum vermos alguns
cavalos se alimentando desses capins nos arredores do bota-fora. No
intervalo entre viagens e carretos, os animais podem ser encostados por
alguns minutos, de modo que além de descansar conseguem se alimentar
desse mato. É comum, também, vermos carroceiros munidos com foices,
adentrarem essa área para encher um ou dois sacos de capim.

Mas a cidade é grande e de fato existem verdadeiros pastos - lotes vagos e


terrenos com extensões relativamente grandes - que são utilizados pelos
carroceiros para alimentação diária de seus animais. (Até algumas décadas
atrás, criar estes animais soltos nos pastos era uma prática difundida31. Hoje
em dia esse modo de guardar o animal é mal visto entre a maioria dos
carroceiros32 e em certa medida é tida como um desleixo ou inconseqüência
do dono).

Mas independente se o animal é criado solto ou preso todos eles são


alimentados com capim. E começa aí uma experiência de cidade muito
própria do ofício. Assim, entre os bairros São Geraldo, Boa Vista e Nova
Vista, existem uma série de áreas reconhecidas como pasto (quando
grandes) ou de simples recolhimento de capim (quando menores). Assim,
um dos principais alimentos para o cavalo é conseguido de forma gratuita, a
partir da vegetação que ainda cresce em toda a cidade. Seu conhecimento
sobre essas regiões é ponto fundamental para a manutenção do ofício.

Também aqui há uma rotina do carroceiro associada a isso que estou


chamando de ciclo natural-biológico. Se a ração e o feno são produtos
comercializados, que fazem parte da dieta do animal e que podem ser
adquiridos em qualquer época do ano mediante pagamento, independente

31
Gradativamente essa possibilidade vai acabando, principalmente devido a extinção destes lugares.
Contudo, segundo relatos, até meados da década de 90, essa prática era muito difundida.
32
Apesar do discurso ser quase unânime em relação ao problema de criação de animais soltos, esta
ainda é uma prática muito difundida. Na realidade uma série de fatores irá determinar o modo de
criação desses animais: econômico, afetivo e de relacionamento social. Deve-se considerar, ainda, que
o discurso contra a criação solta também tem a ver com a dinâmica do Programa Carroceiro.
das condições climáticas e ambientais, o capim é um dos únicos alimentos
que pode ser conseguido de forma gratuita, o que, nesse caso, é uma
variante essencial. Portanto, os carroceiros estão de início realizando uma
prática básica de criação do animal que contrasta de frente com a lógica
urbana. A SLU é responsável por manter os matos da cidade podados.
Contudo, o capim continua presente na paisagem urbana, e obviamente, a
proporção de sua presença aumenta na medida em que afasta-se dos bairros
mais ricos da cidade. E ainda que o serviço municipal tente dar conta de seu
surgimento a tarefa torna-se quase impossível. O capim cresce muito em
qualquer brecha ou fresta de terra da cidade, o que é uma garantia do nicho
econômico pelo qual sobrevive o carroceiro.

Deve-se ressaltar, ainda, uma grande parte da regional leste fazem fronteira
com Sabará: Santa Inês, Nova Vista, Boa Vista, São Geraldo, Casa Branca,
Caetano Furquim, Taquaril. E essa fronteira é marcada por várias terrenos
pouco assistidos pelas duas prefeituras, o que torna a presença da terra, e
consequentemente da vegetação muito mais presentes.

E como a lógica do pasto é simples – há capim abundante na estação das


chuvas, de novembro a abril – e não exige uma manutenção direta por parte
dos carroceiros essa é uma prática constante.

E na medida em que exatamente os pastos são um mal a ser extirpado da


cidade, num discurso reiterado tanto pelo senso comum quanto pelas vozes
oficiais, localizá-los, conhecê-los e fazer deles uma fonte de alimentação para
o animal vai se tornando, gradativamente, uma espécie de arqueologia
urbana.

Enfim, essa relação com a cidade a partir de um ritmo cíclico, talvez marque
esta proximidade que o grupo tem com uma série de elementos rurais. E
talvez este seja um dos elementos que originam a difícil posição que ocupam
num contexto social. São como “aberrações”, que ainda que necessárias a
cidade, devem ser invisíveis, por mostrarem a uma sociedade de pretenso
ares cosmopolitas (as construções estão aí, em grande medida, para atestar
essa modernidade globalizada e levam esse discurso às ultimas
conseqüências) seus fortes traços provincianos, rurais.
É claro que a posição do carroceiro é muito mais complexa que isso, mas de
fato sua imagem (e aqui o termo imagem é utilizado tanto em sentido literal
quanto metafórico) é construída nesse sentido33.

Referências Bibliográficas

COOLIER, John. Antropologia visual: a fotografia como método de pesquisa. São


Paulo, EPU, 1973.

MOURA, Ana Maria da Silva. Cocheiros e carroceiros: homens livres no Rio de


senhores e escravos. São Paulo: HUCITEC, 1988.

SILVA, P.J. Políticas públicas e gestão ambiental: Um estudo das praticas de


administração publica de resíduos da construção civil na cidade de Belo Horizonte.
Lavras, 2005.

SIMÕES, Carla Araújo Estudo da Rede de Gerenciamento de Pequenos volumes de


resíduos da construção civil em Belo Horizonte: Uma analise espacial com o apoio
de geoprocessamento. Dissertação de mestrado. UFMG, Instituto de Geociências,
2009

REZENDE, Heloisa Helena Capuano de. Perfil sócio-econômico dos carroceiros de


Belo Horizonte entre 1998 e 2003. Dissertação de mestrado - UFMG, Escola de
Veterinaria.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas:crônicas. São Paulo, Cia. das Letras,
2008.

Referência de sites

http://portalpbh.pbh.gov.br

http://www.fcasa.com.br/sobre-a-fca/historia/

33
Ver anexo 3 e 4 que mostram claramente a imagem arcaica e clandestina que é construída sobre o
carroceiro. O anexo 1 é uma reportagem de 2010 que estampa na manchete o atraso que representa a
existência do ofício em BH. E o anexo 2 uma campanha da Assembléia de Minas Gerais de março de
2012, que pinta o carroceiro como agente clandestino e miserável. Nesta imagem é significativo o
golpe certeiro de monstrificação do carroceiro, que na imagem é retratado sem o seu bem mais valioso
que é o animal.

Você também pode gostar