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Unicórnios no Deserto: sensibilidade e originalidade das práticas narrativas

Nina Vasconcelos Guimarães

Resumo
Os resumos em português, espanhol e inglês devem ser formatados em parágrafos únicos, contendo
no máximo 150 palavras cada.
Palavras-chave: Listar pelo menos três e no máximo cinco palavras-chave (em letras
minúsculas e separadas por ponto e vírgula).

Introdução

Caro David,
Estou te escrevendo diretamente de Nárnia, lugar para onde você me transportou
durante o seu curso e onde permaneço após alguns dias de nosso encontro presencial.
Embora você povoe nossos corações, nossas mentes e asas, gostaria de deixar
registrado o que mais me impregnou de suas últimas palavras, dos novos rumos da
terapia narrativa, de como ser uma artista, um mago, em como trazer a arte e a magia
para essas práticas. Em Nárnia, eu costumo dar asas a e qualquer imaginação, ao
mesmo tempo em que tremo e temo que parte das minhas invenções possam não
alcançar alguns dos objetivos terapêuticos mais literais e necessários à vida de meus
clientes. Embora me assuste com o olhar que deles eu possa receber, também me
conforto e me encorajo a abrilhantar os desejos e o fascínio mágico das intervenções
que me invadem. Os sinos tocam, as metáforas pulam, os duendes acenam e, daqui de
Nárnia, tudo parece possível. Quando me refiro a esse tudo, estou me referindo a
qualquer sofrimento humano passível de ser aquecido com um bálsamo que dilua a
dor. E não consigo pensar em nenhum outro bálsamo do que me fazer artífice em mãos
das práticas narrativas. Vivenciar pela primeira vez a testemunha desde dentro foi uma
excursão espetacular para os nossos mundos e diálogos internos através do que de
melhor e mais apreciativo a gente percebe em nossos clientes. Poder encarnar os
nossos clientes é o melhor presente que podemos oferecer-lhes. Mas também reafirmo
parte da preocupação que foi lançada durante o curso, de que ao nos transportarmos
imediatamente para o que de mais fantástico possamos oferecer, talvez corramos o
risco de negligenciar as partes mais sombrias do cliente e, portanto, calemos neles os
gritos que ainda não puderam sair. Mas o risco é uma escolha que, quando
amorosamente afinada, acalma a angústia dos desesperados. Saímos de desertos rumo
à unicórnios. Preciso esclarecer essas duas metáforas. A desertos, refiro-me às
circunstâncias em que não encontramos os nossos recursos e acreditamos que falimos
diante de nós mesmos. A unicórnios, por outro lado, exalto as preciosidades que
desvendamos de nós mesmos face à mão terapêutica que nos é ofertada. Os unicórnios
são a poesia que há tempos esquecemos, são a fantasia da nossa criança mais inocente,
são as melhores notas musicais que garantem a orquestra. Aqui em Nárnia as
orquestras, os sinos e os unicórnios galopam e, assim, temos a certeza do amanhã,
temos um encontro verdadeiro com o melhor do outro, pois as luzes se acendem em
meio a escuridão. Daqui de Nárnia eu te escrevo essa carta para manter o
compromisso de levar asas às práticas narrativas rumo a uma contemporaneidade
distante dos meros ventrículos robotizados que se perderam órfãos de originalidade.
Prometo honrar a apropriação e a personificação de cada rota por mim percorrida.
Fervilho pensando quais seriam as minhas melhores perguntas a fim de manter minha
disponibilidade e devolver a dignidade restaurando o caráter tão merecido de meus
clientes. Levarei a magia em minhas impressões digitais, devolvendo unicórnios aos
desertos existenciais de quem me procura. Reverenciando o entusiasmo da existência,
agradeço cada uma de suas palavras, deixando que elas cantem para minha alma. Com
esperança, sempre, Nina.

Esta carta foi escrita em outubro de 2019, logo após o curso “Re-imaginando a Terapia
Narrativa”, ofertado por Marilene Grandesso em São Paulo, proferido por David Epston, Tom
Carlson e Sanni Paljakka. Éramos aproximadamente duzentas e cinquenta pessoas, uma
audiência que testemunhou momentos marcantes da história da terapia narrativa a três mãos,
que, conosco, dialogaram sobre o compromisso e a responsabilidade de seguirmos em direção
aos novos rumos das práticas narrativas. No propósito de honrar esses mestres apresento este
artigo, inicialmente, retomando historicamente alguns dos principais pressupostos da Terapia
Narrativa de Michael White e David Epston (1993) e prossigo fazendo um recorte dessas
práticas, explorando as relações de poder em nossa sociedade, em como os discursos
totalizadores podem obstruir nossas opções de vida, ao mesmo tempo em que podemos
amplia-las através do resgate de pessoas significativas que fazem parte dela, recuperadas
como sócios de nosso clube da vida, que nos dão subsídios para construirmos versões mais
apreciativas de nós mesmos a partir do olhar delas sobre nós. Vivas ou mortas, essas pessoas
compõem um acervo afetivo importante que contribui para nossa constituição identitária, para
a recuperação de uma visão mais respeitosa e autoral de nós mesmos quando estamos diante
de momentos críticos de desesperança.
Para ilustrar a vertente ativista política e do uso das cartas terapêuticas defendido pelas
práticas narrativas, faço uso de outra carta de teor distinto da primeira que abre esse artigo,
que foi mais poética. Esta segunda, com um teor mais político, foi escrita por Danielle
Miterrand (comunicação pública, janeiro de 1996) ao povo da França quando, inundada pela
coragem de convidar para o velório de seu marido, o então presidente François Mitterand, sua
filha bastarda, chocou a sociedade com a sinceridade do descarte à hipocrisia, respondendo
coerentemente, através de sua atitude, a todos os valores e condutas que acompanharam a
trajetória dessa feminista ativista durante seu legado de vida e como primeira dama da França.
Aproveito a potência desta carta para ativar as vozes internalizadas de nosso clube da vida,
daqueles que influenciam nossa trajetória de vida através dos discursos que deles
internalizamos, fazendo valer a voz representativa de Danielle Mitterand como inspiração
para todos os filhos bastardos ou amantes que, de alguma forma, se sentiram legitimados pela
expressividade do discurso em defesa daqueles marginalizados por uma condição de
invisibilidade.
Por fim, inspirada por uma vertente mais atual de David Epston, gostaria de “flutuar
pelo território de Nárnia”, esse cenário majestoso de unicórnios, duendes, fadas e magia que
habitamos com nossos clientes quando sustentamos a esperança de sermos o artista narrativo,
aquele que inventa sua própria prática e resgata a dignidade e o caráter por vezes estremecidos
neles, acreditando que a terapia é, também, um reino de deliberação moral.

A História para chegar em Nárnia

As nossas práticas terapêuticas testemunharam uma extraordinária mudança em torno


da década de oitenta quando o paciente, o problema, o mundo obscuro e árido dos sofrimentos
humanos pôde se deparar com a sensibilidade e a originalidade de dois terapeutas de enormes
repercussões mundiais. Michael White, um consistente forasteiro que nos permitiu sair do
deserto de narrativas restritivas de nossos clientes para um colorido esperançoso que
introduziu a fantasia, o otimismo e a criatividade em nosso ofício terapêutico. David Epston,
na sólida fratria por eles constituída, esteve sempre ao seu lado, convicto e cuidadoso em
manter suas próprias digitais. Ele prosseguiu dando asas à narrativa através da magia, da arte
e da poesia, tão presentes na atualidade. A metáfora que aparece na carta e no título desse
capítulo traz o deserto como um território árido, sem perspectivas e, de certa maneira,
presunçoso, como se as possibilidades exploratórias fossem restritas e já exploradas, sem
chances do terapeuta acreditar em um percurso construído conjuntamente com seu cliente,
onde ambos pudessem se maravilhar com o inédito e, ainda, inexplorado. Éramos
acostumados a prever o resultado de uma narrativa mesmo antes do cliente terminá-la,
fazendo de nosso arsenal técnico e de nossa experiência profissional o terreno previsível e
determinístico de qualquer resultado terapêutico.
Diferente desse modelo mais ortodoxo, as práticas narrativas nos convidam a uma
liberdade exploratória de territórios estocados, até então, virgens, capazes de oferecer uma
gama de rotas indefinidas, surpreendentes e inexploradas. Esta multiplicidade de alternativas
concede ao terapeuta a liberdade de ser criativo e original, alquimista e mago, onde as
competências do cliente sempre prevalecem. É com esse olhar estético e poético das práticas
narrativas que extraio a metáfora dos unicórnios, essas figuras mágicas de nossa imaginação,
que são convidados pelos terapeutas a cavalgar por desertos que, aparentemente, são uma
terra seca, infértil, sem vida e sem condições de adubar.
Os novos enredos possíveis a partir da exploração criativa das práticas narrativas,
escavadas dos enredos de vida dos clientes, nos distancia da frieza técnica e ortodoxa de
nossas intervenções terapêuticas precedentes. A métrica reducionista do especialista que
categorizava, diagnosticava e condicionava o cliente a rotulações de seu comportamento,
cedeu espaço para um tipo de intervenção mais ousada e original, relacionada às
competências e habilidades existentes, as quais, em algum momento, sumiram do repertório
de sua vida. Como terapeutas narrativos, ousamos adentrar mais nessa exploração rica e
imprevisível da vida de quem está em sofrimento, transformando esse percurso numa aventura
que promove a recuperação das histórias estocadas nos tesouros de suas vidas, tornando-os
autores e senhores de seus destinos.

Quando os desertos florescem

Desertos são solos áridos onde, a princípio, não enxergamos possibilidades de


transformação. Estão relacionados a momentos críticos de nossa existência em que
carregamos uma visão depreciativa de nós ou introjetmos os discursos dominantes e as
Verdades de nossa cultura, sem qualquer senso crítico questionador. Mas os desertos também
existem quando, na condição de terapeutas, assumimos uma postura convencional e previsível
dos fenômenos humanos, como se pudéssemos antever, tanto o que nos é dito, quanto o
resultado da experiência da qual fazemos parte. Assim, o cenário terapêutico passa a ser a
terra seca e infértil, incapaz de gerar vidas, mundos e significados múltiplos.
As práticas narrativas constituem o florescimento desses desertos, as novas conquistas
onde, aparentemente, a impossibilidade do impasse havia se instalado. Uma das grandes
contribuições dessas práticas está na capacidade extraordinária de resgatar competências em
terras secas, florir os desertos através do resgate de histórias subordinadas, as relíquias
esquecidas que, por algum momento, deixaram de fazer parte das narrativas dominantes.
Segundo White e Epston (1993), os relatos e histórias de nossas vidas são recortes
através dos quais atribuímos significados às nossas experiências, tecendo narrativas parciais
que, em alguns momentos podem se confundir com quem pensamos ser. Geralmente fazemos
um recorte de nossas experiências de vida e transformamos esse recorte em uma história a
qual, obviamente, não contém a riqueza de toda experiência vivida. Essa história eleita, que
nos leva a procurar por terapia, é uma versão reduzida de nossas experiências, que, na maioria
das vezes, nos caracteriza como alguém limitado, incompetente e fracassado.
Este primeiro relato apresentado na terapia denomina-se história dominante. Na
perspectiva narrativa, o trabalho terapêutico consiste numa exploração e descoberta de outros
relatos, até então, adormecidos na memória dos clientes, esquecidos do território do problema.
Quando recontamos nossas histórias, sempre surgem novas narrativas que não apareciam na
versão dominante, e elas passam a constituir um acervo importante que vai transformar a
imagem empobrecida que elegemos para nos definir no início de um processo terapêutico.
Depois de um tempo, encorpamos nossos relatos com mais histórias subordinadas que
adentram o território de nossa identidade, onde são escavados novos recursos, habilidades e
capacidades, até então, ocultos e adormecidos (Palma, 2008; Guimarães, 2018a).
Uma vez compreendendo que somos as histórias que contamos de nós mesmos, é por
meio de nossas narrativas que recuperamos a autoria e o agenciamento de nossas vidas. O
agenciamento é uma postura ativa assumida por nós que garante uma regência da própria vida
com liberdade e esperança. A liberdade de transitar por histórias passadas, pelas visões
aprisionadas de esperanças e transformá-las em futuros promissores, onde resgatamos a
esperança em nós mesmos, os atos de heroísmo que podemos nos proporcionar em direção a
um futuro repleto de oportunidades (Guimarães, 2018a).
As histórias contadas versam sobre diferentes temas e experiências - podem ser
histórias sobre vidas, relacionamentos, poder, subjugação, interesses, conquistas, fracassos
etc. A forma como desenvolvemos essas histórias é determinada pela maneira como
vinculamos os eventos em uma sequência temporal, ao mesmo tempo em que atribuímos
novos significados a eles.
Uma história isolada não possui a mesma força e magnitude quando relacionada às
outras histórias exploradas em terapia. Ao ser associada a tantas outras, ganha potência e
visibilidade para aplacar a versão dominante, até então, o único enredo possível que nos
definia. No decorrer do processo terapêutico, novas histórias vão surgindo da escavação
acurada do terapeuta, favorecendo que a história fina possa ser densificada e, assim, tenha o
poder e a consistência para se contrapor à história do problema.
Como podemos auxiliar nossos clientes a romper com algumas das conclusões
finas e limitadas que constituíram, através do tempo, a versão única identitária que eles
carregam, obstruindo uma dimensão mais ampla de sua visão de mundo? Como fazê-los
acreditar em suas próprias competências para construírem histórias novas e preferidas
que revelem a autoria e o agenciamento de suas vidas e de seus relacionamentos?
Analogamente, como convidar unicórnios a cavalgarem por terras secas, desertos
existenciais cujas muralhas de desesperança se desvaneçam frente a essas criaturas
místicas, doces e fantasiosas, que inspiram a emergência de novas terras, terras de
fantasia, magia e esperança em nossas vidas?
Geralmente, os clientes chegam à terapia como desertos, áridos e inférteis,
descrevendo histórias embrutecidas e calcificadas por um sofrimento, tão certas de serem a
única versão de existência que a presença de unicórnios parece apenas uma cálida ilusão. A
esperança é o elixir que introduz a magia e a arte da qual suas vidas carecem. É fenomenal a
capacidade que temos de nos reduzir a uma versão inútil e incompetente quando estamos
deprimidos e desesperançosos. Tanto nós quanto às pessoas importantes ao nosso redor
podem influenciar na visão que carregamos de nós mesmos. No decorrer de nosso
desenvolvimento pessoal e relacional, podemos ser definidos pobremente por nossos pais,
professores ou até mesmo por profissionais da área de saúde, que passam a compreender e
definir nossas ações através de descrições finas. Essas conclusões finas enfraquecem as
pessoas rotuladas por narrativas esmagadores de seus selves.
Expandir o universo que habitamos em nós mesmos é deixar que o elixir seja
absorvido para nos libertar da sensação de sermos alguém com o interior danificado. O
encontro terapêutico imbuído das práticas narrativas permite que esse fracasso se dilua de
duas maneiras. A primeira delas, quando desconstrói a ideia de um eu frágil que assume o
fracasso como fruto de nossa incompetência individual e o desloca para a cultura, a maior
responsável em produzir discursos totalizantes que introjetamos como verdades
inquestionáveis. Estas oprimem nossa clarividência de pensamentos e nos incute sentimentos
de culpa e opressão social, transformando-nos, como afirmava Michel Foucault (2002), em
corpos dóceis, corpos subjugados pelo poder das classes dominantes. A segunda maneira de
diluir o sentimento de fracasso no sujeito ocorre mediante o resgate de pessoas significativas
que transitam por nossas vidas e emprestam um olhar mais apreciativo sobre nós mesmos,
recuperando memórias e relatos onde fomos personagens mais competentes e autorais,
embora esquecidos de nossa bravura.

Unicórnios sobrevivem no deserto? O poder que oprime e resseca um território

Vivemos circunstâncias extremas que desnutrem qualquer existência. Podemos adubar


o solo que habitamos, bem como deixar que grandes Outros se apossem de nossas terras nos
transformando em meros escravos submetidos à colonização da Senhora Cultura, a mestra
opressora dos desvalidos. Quão difícil pode parecer tentar adubar o território árido, o
deserto de um ser oprimido, assolado pela culpa de seu funcionamento interior débil e
aparentemente incapaz de combater as forças que reduzem sua autoria de vida? Como
convidar unicórnios a galoparem nesses terrenos?
Para responder à essas perguntas e compreender como se constituiu o sujeito em nossa
sociedade, o filósofo Michel Foucault ampliou o olhar da filosofia e revisitou o saber opressor
da psiquiatria, que tanto estigmatizou e fragmentou o homem moderno entre um ser normal e
patológico. Sua mente inquieta percorreu áreas da filosofia, da psicologia e da história,
fomentando discussões interessantes a respeito de justiça, poder, saber médico e regras de
conduta sexual. Uma das grandes preocupações de Foucault estava relacionada aos
mecanismos de controle das instituições por ele denominadas de instituições de “sequestro” -
escolas, hospitais psiquiátricos e prisões, que denunciavam o risco do indivíduo ser isolado de
seu contexto, submetido a um regime punitivo e opressor que moldasse o seu corpo e a sua
mente, domesticados por uma elite dominante.
O paciente era mais um desses seres oprimidos, submetido a especialistas, detentores
de saberes tiranos, que detinham a força humilhante de reduzi-lo à sua mais ínfima condição.
O doente nada mais era do que uma identidade diagnóstica determinista e imutável,
condenado a um único destino patológico, que atuava tanto em sua consciência como em seu
corpo, fragilizando sua dignidade. Corpos Dóceis são a expressão máxima do filósofo para se
referir a corpos submetidos, aperfeiçoados e subjugados.
A noção essencialista de self é superada pela ideia de que somos meros produtos do
Estado, de um poder que vem de fora e nos constitui como corpos subvertidos. O homem
moderno, portanto, é dominado e estigmatizado pelo controle social, é vítima de atributos
desqualificadores, de práticas de objetivação e coisificação dos corpos portadores de defeitos
e perturbações, que sofrem um julgamento normalizador decorrente das disciplinas
profissionais que Foucault apresenta como mecanismos de controle social (Grandesso, 2018).
É papel do terapeuta identificar os efeitos desses discursos opressores sobre a vida de seus
clientes, deslocando essas narrativas para a comunidade, em vez de situá-las dentro do
indivíduo (Tibiriçá, 2014). Nesse esforço, o profissional atua como um ativista sociopolítico
que se vê imerso na linguagem adotada por um determinado contexto cultural sem se render
ao domínio dele, uma vez que elucida para o cliente a força e a dominância dos discursos
opressores culturais, na intenção de que seu corpo dócil possa responder com tenacidade a
esses discursos e o liberte da opressão para explorar modos de vida e de pensamentos
alternativos.
Conhecido por sacudir as evidências, Foucault traz uma filosofia crítica que
questiona o pensamento óbvio e familiar, tornando visível o que é visível. Assim como os
terapeutas narrativos, Foucault exorciza o doméstico, questiona as evidências e assume uma
postura crítica frente às verdades dadas como únicas. A desconstrução dos discursos
dominantes e a postura sociopolítica adotada pelos terapeutas narrativos têm o objetivo de
produzir um senso de autoria nos clientes que os capacite a agir contra a opressão. Os
discursos totalizantes por eles introjetados e vivenciados como debilidades próprias são
deslocados para a cultura, permitindo uma compreensão menos opressora e mais libertadora.
Quando, à sua frente, as terras parecem secas e desvitalizadas, os terapeutas narrativos
adubam com possibilidades de vida, construindo mundos e futuros possíveis, embora, até
então, inimagináveis. As realidades fatalistas condenadas a um único destino são restauradas e
ampliadas pelos terapeutas e seus clientes, dignificando-os, sem permissão de se renderem às
desistências humanas.

Politizar Unicórnios: quando fadas se tornam líderes conscientes de suas ações

Quando um discurso parece imperar como única realidade ele pode alcançar o status
de verdade incontestável. O cenário em que estas verdades se impõem são contextos
opressores, cujas perspectivas múltiplas parecem nunca existir. Na terapia narrativa, as
pessoas dão sentido à sua existência e legitimam suas ações organizando suas histórias em um
fluxo contínuo e sequencial, muitas vezes apresentadas em forma de cartas terapêuticas.
As cartas terapêuticas propostas por White e Epston (1990) convidam os terapeutas a
escreverem aos seus clientes. São utilizadas com o propósito de alcançar âmbitos relacionais,
relativos aos acontecimentos presentes na sessão, às possíveis descrições que convidam, tanto
o cliente, quanto o terapeuta, a estabelecerem futuros possíveis e reflexões concernentes ao
processo terapêutico. O próprio terapeuta revisa suas atuações através das elocubrações
construídas na escrita da carta.
As cartas terapêuticas geralmente são mais literárias do que diagnósticas e retomam
passagens importantes das conversações terapêuticas presenciais. Poética ou politizada, as
cartas terapêuticas anunciam realidades alternativas, convidam os clientes a habitarem
territórios novos, onde eles renarram suas histórias e revisam as possibilidades de vida futuras
(Paiva & Rasera, 2012)..
A carta apresentada no início deste artigo é um exemplo de carta literária. Imbuída da
magia do curso de Epston e seus colaboradores, escrevi para ele no intuito de compartilhar
reflexões reverberadas pelo curso. Pude manter vivas algumas passagens teóricas enquanto
refletia sobre elas na escrita, eternizando-as como trocas dialógicas que checavam
compreensões conjuntas.
Aqui nesta seção será apresentada uma carta politizada e incisiva, mais coerente com a
função de ativista sóciopolítico que podemos assumir em alguns momentos de um processo
terapêutico. Foi escrita por Danielle Mitterand (comunicação pública, janeiro de 1996) como
resposta direta às críticas impiedosas que lhes foram feitas ao decidir autorizar a presença da
amante e da filha bastarda no velório de seu marido, presidente François Mitterand. É uma
carta que pode ser utilizada em sessão como instrumento terapêutico, ilustração de como
discursos dominantes operam restringindo a autonomia do sujeito, bem como a própria figura
feminista de Danielle Mitterand e tudo que ela representou enquanto legado feminista, de
força e ativismo político. Ela é tanto autora da carta como uma personagem emblemática de
inspiração para aqueles que necessitam dela no seu clube da vida, como figura que inspire
tantas outras mulheres, mães e amantes, filhas bastardas que compõem uma sociedade cheia
de injustiças e desigualdades, temas tão recorrentes das práticas narrativas.
Alguns trechos da carta apresentados a seguir compõem a resposta de Danielle
(comunicação pública, janeiro de 1996) ao alvoroço causado na sociedade francesa.
Representando a primeira dama da França e encarnada de posicionamentos contrários ao
conformismo e à hipocrisia, desde o início do documento ela já esclarece a força de seus
argumentos, ao ratificar a ideia de não ser um pedido de desculpas e do risco que assumimos
quando nos precipitamos a interpretar os fatos antecipada e preconceituosamente.

Antes de mais nada devo deixar claro que não é um pedido de desculpas. Muito menos
um enunciado de justificativas vãs, comum aos covardes ou àqueles que vivem
preocupados em excesso com a opinião dos outros. Aos 71 anos, vivendo a hora do
balanço de uma existência que é um sulco bem traçado e profundo, já não mais
preciso, e nem devo, correr atrás de possíveis enganos. Vivo o momento em que as
sombras já esclarecem e que as ausências são lindas expressões de perenidade e
criação. Sombras e ausências podem ser tudo, ao passo que luzes e presenças
confundem os mais precipitados, os mais jovens...

Esta carta é um exemplo de ativismo político e crítica a alguns dos discursos


totalizadores que obstruem as possibilidades de existência do sujeito. Coerente com suas
famosas ações em direção a sensibilização de um mundo mais solidário e pacífico, Danielle
encarna a desconstrução de algumas ideia totalizadoras: primeiro, a de que um filho fora do
casamento, ilegítimo e bastardo, é, em si, alguém que não pode desfrutar de seus direitos e,
por isso, deve se manter à margem da sociedade. Essa “verdade” é desde o início contestada
pelo próprio convite à amante e sua filha de comparecerem ao funeral, tanto quanto o efeito
transformador desse cenário retratado para todo o mundo e repercutindo no direito adquirido a
tantos outros filhos bastardos que puderam comparecer a funerais de seus pais após sua
atitude, algo jamais pensado antes de Danielle tornar pública suas ideias através de sua carta
escrita e endereçada à França e ao resto do mundo.

Aceitei a filha de meu marido e hoje recebo mensagens do mundo inteiro de filhos
angustiados que me dizem: - "Obrigado por ter aberto um caminho. Meu pai vai
morrer, mas eu não poderia ir ao enterro porque a mulher dele não aceitava.

Outro discurso dominante por ela contestado é a perfeição do amor e do parceiro.


Contrária a tal discurso, ela segue defendendo o verdadeiro amor como aquele que inclui as
falhas do parceiro, a necessidade de o considerarmos por inteiro, sem a ingenuidade de que,
no amor, não há enganos. De que qualquer relacionamento amoroso pode ter que incluir,
sabiamente, a constatação de que não podemos suprir toda e qualquer necessidade do outro,
de que não somos os únicos que bastam à existência do outro. Somos, sim, muito importantes,
mesmo sem sermos o centro da vida dele. Assim, diz Danielle:

Vivi com François 51 anos; estive com ele em muito desse tempo e me coloquei
sempre. […] Por isso tentei entendê-lo, relacionar-me com sua complexidade, com as
variações de sua pessoa e não de seu caráter... Quem entende ou, pelo menos luta para
compreender as variações do outro, o ama realmente. E nunca poderá dizer que foi
enganada ou que jamais enganou. Não nos enganamos, nos confundimos quando nos
perdemos da identidade vital do parceiro, familiar ou irmão. Ou jamais os
conhecemos, o eu também, não é um engano. Quem não conhece, não tem enganos.
Nas variações do outro, não cabe o apaziguador que destrói tudo antes do tempo em
forma de tranqüilidade. Uma relação a dois não deve ser apaziguada, mas vibrante,
apaixonada, e não, enfastiada. Nessa complexidade vi que meu marido era tão meu
amante quanto da política. Vi, também, que como um homem sensível poderia se
enamorar, se encantar com outras pessoas, sem deixar de me amar. Achar que somos
feitos para um único e fiel amor é hipocrisia, conformismo. É preciso admitir
docemente que um ser humano é capaz de amar apaixonadamente alguém e depois,
com o passar dos anos, amar de forma diferente. Não somos o centro amorável do
mundo do outro. É preciso aceitar, também, outros amores que passam a fazer parte
desse amor como mais uma gota d'água que se incorpora ao nosso lago (comunicação
pública, janeiro de 1996).

Também expõe a coragem feminista que carece àquelas mulheres que não se colocam,
se intimidam e, assim, fragilizam o movimento feminista de lhes dar a tão merecida voz. De
maneira firme e contundente, Danielle provoca a docilidade pacifista, omissa e subjugada de
um feminino frágil e esteta, que se limita a posar como troféu ao lado de um homem opressor.
Ela segue convocando este mesmo feminino a se posicionar criticamente, como um ser
escutado e respeitado por suas convicções: “Vivi com François 51 anos; estive com ele em
muito desse tempo e me coloquei sempre. Há mulheres que não se colocam, embora estejam;
que não se situam, embora componham o cenário da situação presumível”.
Através de sua carta ela convida todos nós a evocar dúvidas constrangedoras sobre
verdades inquestionáveis. Escancara a necessidade de revermos nossas certezas hipócritas,
legitimadas pelos interesses de uma sociedade normalizadora. Ataca a moralidade e a calúnia
que nos apequena, por sustentarmos uma visão reducionista dos fenômenos - convidar uma
filha a participar do funeral de um pai é muito maior do que quebrar com uma moralidade
hipócrita, capaz de excluir o direito de paternidade, filiação, consanguinidade e legitimidade
de qualquer forma de parentesco. E, por fim, explicita a necessidade de assumirmos nossas
convicções a partir da confiança que temos em nós mesmos.

É preciso viver sem mesquinhez, sem um sentido pequeno, lamacento, comum aos
moralistas, aos caluniadores e aos paranóicos azedos que teimam em sujar tudo.
Espero que as pessoas sejam generosas e amplas para compreender e amar seus
parceiros em suas dúvidas, fragilidades, divisões e pequenas paixões. Isso é amar por
inteiro e ter confiança em si mesmo.

Assim, podemos pensar nesta carta de Danielle como mais um recurso das práticas
narrativas, retratando-a como personagem emblemática que inspira a vida de tantas mulheres
que necessitam de sua força e presença para que garantam, com mais competência, sua
existência. Danielle personifica um unicórnio politizado, aquele que reúne a fantasia e a
esperança de um mundo mais justo e, portanto, melhor, com a fibra de podermos contar com
um clube de pessoas que endossam os nossos direitos de existência. Nesse sentido, Danielle
passa a ser um sócio do clube da vida dessas clientes que nos procuram, apequenadas de si
mesmas e de seus direitos como cidadãs. Onde um futuro parecia improvável, erguê-las e
dignifica-las é manter vivo o legado de White e Epston, devolvendo-lhes o que lhes é de
direito através das conversações de remembrança.

Os Unicórnios se Multiplicam: conversações de remembrança

As conversações de remembrança são práticas narrativas que permitem ao cliente


recuperar vozes de pessoas significativas de sua vida que têm “autoridade” para imprimir
alguma ideia sobre sua identidade. O cliente consegue reconhecer, mais diretamente,
contribuições importantes e valiosas dessas pessoas, que nem sempre permaneceram vivas em
suas memórias, mas merecem ser recuperadas e ressaltadas por contribuírem de maneira mais
consistente na sua re-edição identitária.
Esta prática terapêutica utilizada por Michael White foi fortemente influenciada pelos
trabalhos desenvolvidos pela antropóloga Bárbara Meyerhoff. Ao estudar algumas
comunidades judias do sul da Califórnia, que haviam perdido suas famílias no Holocausto,
desenvolveram um espírito de comunidade. Lutaram contra o isolamento e a extinção de suas
tradições ressaltando pessoas importantes de suas vidas que, por alguma razão, permaneceram
“apagadas”. Essa tentativa de romper com a invisibilidade se mantinha através da prática de
contar e recontar suas histórias de forma contundente para uma comunidade mais ampla,
mantendo vivo o legado de sua cultura (White, 2012; Payne, 2014).
O pensamento subjacente a esta prática de remembrança se baseia na concepção pós-
estruturalista de que nossas identidades são tecidas pelos relacionamentos que estabelecemos
com outras pessoas. De que somos “encorpados” pelos outros, a partir de como eles nos
vêem e do olhar que imprimem sobre nós. Geralmente as perguntas utilizadas nas
conversações de remembrança engatilham o começo de uma história alternativa, pois revelam
o olhar mais apreciativo desses sócios do clube da vida dos nossos clientes. São elas: De que
forma esta pessoa contribui em sua vida ou proporcionou diferença na sua existência? A
maneira como essa pessoa importante via e agia com você mudou sua forma de ser e
pensar sobre si mesmo? Por que será que esta figura demonstrou interesse por você? O
que acha que você representou/significou na vida dela e que diferença você fez quanto à
maneira desta pessoa levar a vida dela? O que essas pessoas testemunharam na sua vida
que representam valores, compromissos que são importantes para você? Que significado
teve para elas perceberem isso? (Guimarães, 2018b).
Responder à essas perguntas significa compor um coro de vozes, resgatar os
unicórnios que povoaram a vida de nossos clientes e que só estão à espera de um convite para
celebrar alguns méritos de passagens importantes da vida deles. Tendemos a compilar uma
série de discursos que nos fazem sentido de pessoas que compõem o nosso clube da vida. Em
momentos de fragilidade, torna-se útil reacender essas vozes que nos compõem e que
abrilhantam nossa existência, pois ressaltam nossas competências quando deixamos de
acreditar em nós. A marginalização com que as amantes e os filhos bastardos lidam
constantemente na sociedade os imprensam, cada vez mais, nos cantos ocultos de uma
comunidade, sem que tenham o direito de voz e de existência. Uma voz potente, como da
feminista e esposa de um presidente, reacende nesses indivíduos esquecidos a reivindicação
de seus direitos de cidadão. Quantas amantes e filhos marginais puderam, a partir da voz
internalizada de Danielle, se confortar, talvez pela primeira e única vez na vida, com a
legitimidade tão sonhada e, muitas vezes, deveras esquecida. Escolher desistir de um discurso
moralista em prol de um direito de existência permitiu que vidas áridas e desprestigiadas
fossem adubadas pelo sonho da legitimidade. Como vozes ou unicórnios, vivos ou mortos,
testemunhamos a diferença que faz diferença quando nossos clientes os escutam, seja através
da presença física ou de memórias resgatadas de quem já partiu, ou ainda através do terapeuta
quando ele assume encarnar a voz de seu cliente na prática da testemunha desde dentro.
As práticas de remembrança assumem, então, contornos adversos, como o mais novo
deles - a testemunha desde dentro. Nessas conversações, o terapeuta encarna a voz de seu
cliente e é entrevistado como se fosse o próprio cliente, trazendo à tona as imagens
internalizadas dele durante o processo terapêutico. Ainda em construção, esse tipo de
entrevista surge com a força e a imponência de presentearmos originalmente nossos clientes
ao imaginarmos os impactos e as sensações de assistirem a uma entrevista onde se vêm
encarnados na figura sábia e admirada de seu terapeuta.

Nárnia: Terra de desertos adubados onde vivem fadas, duendes, unicórnios e artistas
narrativos

O movimento atual das práticas narrativas nos convida para além do que
originalmente foi proposto por Michael White e nos transporta para o território fantástico
onde a magia e a arte garantem o caráter e a dignidade de seus habitantes, Nárnia. É de lá que
Epston nos inspira em nossas práticas. Nárnia é uma terra que clama pela arte de darmos asas
a nossa imaginação. Saímos dos mapas originais cuidadosos em não permanecerem como
rotas rígidas e, sim, como roteiros a serem contrariados, e nos lançamos nessa terra de tanta
magia, sem o pudor de qualquer restrição. O mapa era um fio condutor de auxílio à sessão,
um precioso instrumento de viagem que ganha asas sempre que nos autorizamos a mexer nas
"rotas". Voar é possível, desde que seja na altura conquistada pela solidez técnica e
epistemológica construídas precedentemente. Muito depois de ficarmos presos a laboratórios
de experimentação ganhamos as asas que nos deslocam para a imensidão do universo.
Chegamos em Nárnia, terra de novas dimensões, onde a liberdade e a criatividade nos
salvam da heresia de sermos meros discípulos-ventrículos. Uma das preocupações mais
pulsantes de White e Epston era de que nós, seguidores, transformássemos as práticas e os
mapas sugeridos em técnicas e manuais, sem imprimirmos qualquer originalidade, fruto de
nossa própria experiência. Insistiram na importância de testarmos nossas perguntas nas
entrevistas que conduzíamos até chegarmos a “exaustão” de qualquer bom treino que nos
conceda a arte e a originalidade da licença poética. Através dela, endossamos novos
significados para nossas vidas, analogamente às recriações imanentes de obras literárias - as
histórias de nossas vidas são lapidadas pela arte dos significados múltiplos.
Expandir a terapia narrativa para a poesia significa autorizá-la a uma influência
imaginativa muito maior do que a velha hospedeira objetividade convencional. O
encantamento a que nos referimos neste tipo de prática terapêutica não é feitiço ou bruxaria,
mas, sim, o reconhecimento e a consciência de que a vida pode nos levar a territórios
desconhecidos, inundados de prazer, beleza e poesia.
Um dos fantásticos territórios recém explorados pela arte da terapia narrativa é o da
testemunha desde dentro ou testemunha compassiva, como tem sido traduzida na língua
espanhola. Essa prática consiste em um entrevistador entrevistar e gravar a entrevista feita
com o terapeuta encarnando o seu cliente e, posteriormente, mostra-la ao próprio cliente. A
potência de se ver através dos olhos de seu terapeuta permite ao cliente alcançar saltos
inimagináveis, descritos por alguns deles como “um momento a ser eternizado onde puderam
se ver para além deles próprios”.
Essa prática, ainda em evolução, parece dar continuidade à anteriormente
desenvolvida por Anderson (2011), o exercício reflexivo do “como se”. Neste,
particularmente, os integrantes da família, depois de escutados pela equipe de terapeutas, têm
a oportunidade de ser representados por eles, com comentários sobre o dilema apresentado
pela família. Uma diversidade de pontos de vista individuais são colocados, gerando um
diálogo rico e imprevisível, produzindo significados e mudanças inesperados. Cada voz,
respeitada em sua singularidade, ganha mais força quando incorporada a outras tantas vozes
externalizadas. À medida em que uma voz aparece na conversação, outras vozes são
convidadas a criar algo novo e diferente. Cada voz dá boas vindas a entrada de outras vozes
que ofertam à família novos repertórios de vida (Guimarães, 2018a).
A testemunha desde dentro dá mais um salto nas construções dialógicas terapêuticas
quando Epston anuncia trazer, pela primeira vez, a voz do próprio terapeuta se fazendo passar
por seu cliente, diferente do que habitualmente estávamos acostumados - o terapeuta falando
à respeito de seu cliente. Nesta prática, o terapeuta não fala sobre o cliente, mas, sim, é o
próprio cliente, encarnado. O propósito maior desse exercício é fazer o cliente vivenciar seu
terapeuta trazendo sua própria voz.
Sempre fomos conscientes de nossa dimensão de “suposto saber”, sustentada por
nossos clientes. Oferecer-lhes nossa voz sobre eles próprios pode ser uma experiência
inigualável, na medida em que quaisquer conjecturas que eles tenham feito do que
pensávamos deles é exposta e externalizada, passível de ser questionada e restaurada. Será
que podemos imaginar o impacto dessa prática? Qual a dimensão das revisões que eles
se oportunizam depois dessa experiência? Como sobrevivem os desertos depois de terem
recebido tanto adubo? Quantos unicórnios galopam por essas terras depois que nossos
clientes se veem em nós?
A audácia proposta pela testemunha desde dentro desbanca qualquer hierarquia
precedente da Era Moderna. Na medida em que nos emprestamos para sermos nossos clientes,
a versão verticalizada anterior perde espaço e nos horizontaliza, definitivamente. Somos dois
mundos em um só, dois personagens que se fundem, terapeuta e cliente, e produzem uma
porção mágica de vida que abre para novos horizontes. A dimensão sagrada do setting
acontece quando devolvemos para nossos clientes o respeito que, em algum momento, ele
pode ter perdido de si mesmo e resgatamos a dignidade da qual ele nunca pode se separar.

Afinal, Podemos Eternizar Unicórnios em Nossas Vidas?

Quando imergimos nas práticas narrativas imprimimos um novo olhar em nossas


vidas. É um convite irreversível que nos conecta às possibilidades, às aventuras às cores que
ofertamos a nós mesmos e àqueles que nos procuram no lamento e no sofrimento. Quando
nossos clientes trazem desertos como única opção de existência, emprestamos nosso olhar
impregnado de esperança, credibilidade e respeito à ele, enaltecendo as flores esquecidas de
sua memória. A arte de fazer florescer também nos revigora e é por esta razão que a
abordagem narrativa imprime tanto impacto por todos os territórios que ela alcança.
Tirar de si as vestes de uma cultura ou o peso de um rótulo opressor faz o cliente
reconhecer sua força e seu brio. Somos os jardineiros do amanhã, os artistas criativos que
desvendam unicórnios de desertos. As rotas que percorremos são pautadas pela esperança e
pela crença de que sempre há flores para replantar e renascer. Sobre uma terra endurecida,
adubamos com os tesouros escondidos de nossos clientes, reverenciando as competências que
deles emergem. Contamos com a riqueza de um acervo de pessoas significativas de suas vidas
que, assim como nós terapeutas, emprestam florescimento à imagem apagada de quem vive
um profundo sofrimento. Os olhares que os constituem “jardinam” a versão empobrecida e
adubam os clientes na intenção de que possam percorrer as novas fronteiras que se abrem,
com a infinitude das melhores versões que podem alcançar.
Convocamos a Sra. Cultura e todos os discursos dominantes por ela sustentados para
libertarem nossos clientes de uma ideia distorcida que, muitas vezes, ele veste - a ideia de ser
imperfeito, de internalizar uma culpa que não é sua, mas, sim, consiste no resultado da
impregnação de discursos preferidos de uma classe dominante que sobrevive às custas de
injustiças e delírios individualistas. Uma classe que insiste em fragilizar o indivíduo que,
condenado, busca ajuda terapêutica. Nesse momento, nós, profissionais, nos imbuímos de
uma consciência política, e não permitimos reproduzir em nossas terapias esses discursos
opressores que insistem em esmagar as possibilidades do sujeito. Encarnamos o papel de
ativista sóciopolítico, deslocando para a cultura o que lhe pertence. Libertemos nossos
clientes desses discursos opressores e devolvamos flores ao deserto.
As práticas narrativas podem ser a terra de eternos unicórnios? Sem dúvida
alguma, essas práticas resgatam os melhores adubos da vida de uma pessoa, reconhecem as
terras mais floridas e encorajam a exploração de vastos territórios de esperança. São terras que
nos transportam à Nárnia. Flutuar por Nárnia é assumir a dimensão estética e poética da
terapia, é ser um artífice de magia em territórios de sofrimento, dor e desesperança. Cruzar o
limite hierárquico e propor a um terapeuta encarnar seu próprio cliente através da Testemunha
desde Dentro ilustra uma modalidade de entrevista narrativa absolutamente original. O
personagem mais sublime de um terapeuta encarnar talvez seja o seu cliente. Dar a ele essa
dimensão mágica de se ver na figura de seu terapeuta é pisar em Nárnia, em um mundo que,
até então, parecia impossível de habitar.
Portanto, o nosso compromisso é levar adiante a Obra de White e Espton sem que
sejamos meros ventrículos das rotas por eles já percorridas. Honrar o legado é reconhecer a
responsabilidade de desbravar territórios novos com marcas próprias, imprimindo nossas
digitais e, para avançarmos a partir deles, podemos registrar nossos caminhos, os cruzamentos
que passamos, as encruzilhadas que vivemos para, então, deixar nossas marcas que, somadas
às deles, explorem o deserto para transformá-lo em jardim.

Referências

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