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AS INFLUENCIAS DE VOZES APRECIATIVAS NA NOSSA CONSTITUIGAO IDENTITARIA THE INFLUENCE OF APPRECIATIVE VOICES ON OUR IDENTITY BUILDING RESUMO: Tendo como base alguns pressupos- ts do construcionsmo social, ieias da aborda- gem colaborativa e vialogca, das praticas narra- vas da investigagdo apreciatva, apreserto um caso cfnico que ilistra concetas as terapias Os-modernas atraves de conversagoes transtor- madras que emergem de trocas dalogicas entre o terapeuta e o cliente. Neste artigo compartiio essa experiéncia cca que ampla nossa com= preens2o sabre a concepsaa de self daligico, a constuig2o polvocal de nossa idetidada, consi- derando seimas construidos através dos relacio- ramentos das quai fazemas parte ede reconhe- ccermgs as vozes de pessoas signficatvas de nossas vidas para restaurarmos uma verso mais aprecialova de nos mesmos. ABSTRACT: Alongside the prerequisites of So- cial eonstrucionism, collaboratwe and dalagical approaches, natracive therapy and appreciative inquiry, | present a clinical case that exempl- fies post-modem therapies concepts through a Drocess of transforming tak that occurs from dialagical exchanges between the therapist and the client. n this article I share this clinical ex perience that increases our comprehension of dialogicalsel's conception, the paiywacal com- Position of our identity, contemplating that we are boi through our relationships and the meaningful people's voices recognition to rebuild an appre- cia-tve version of ourselves. KEYWORDS: Narrative Sel; Identity; Post-moder- rity; Dialogue; Collaborative and narrative therapy. PALAVRAS-CHAVE: Self narrativa; Identidade, Pos-madernidade; Diogo; Colaboragaoe terapia narratva, FUNDAMENTOS DE UMA PRATICA CLINIGA POS-MODERNA AS nossas tradig6es terapéuticas merecem uma revisdo que nos permita ques- tionar e restaurar 0s relacionamentos com nossos clientes, a forma habitual com que pensamos sobre ¢ nos dirigimos a eles. Estamos diante do desafio de polemizar a estrutura e a linguagem de um processo terapeutico, de deslizar da verticalidade A horizontalidade na relagio terapeutica, na esperanga de que nossas praticas fun- cionem mais apropriadamente as conformidades contemporaneas. Muitos de nés parecem recorrer a terapia para revisar conceitos, abandonar habitos arcaicos descontextualizados e buscar um crescimento mais profundo de si mesmo; assim, por esta razio, as nossas atuacdes terapéuticas merecem revisao sempre que possivel. Nao podemos continuar adotando a visio modernista de ex- pertise, que defende uma posigdo neutra e objetiva sobre os fendmenos dos quais, fazemos parte, mas, ao invés disso, parece prudente adotarmos uma atitude mais, colaborativa, horizontal e corresponsivel, tipica das préticas terapeuticas coletivas que prezam por um compartilhamento (Gergen, 2017, 2018; Gergen & Warhus, tpl dong 10.21452/2594-4363201 82762304 ARTIGO NINA VASCONCELOS GUIMARAES Instituto Hurnanitas, SalvadoriBA, Brasil Repebido em: 08/05/2018 ‘Aprovado em: 250072018, PS 82 | Decombr 2018 2001; Grandesso, 2018; McNamee, 2018; McNamee & Gergen, 1998). A precisio do discurso cientifico deixa de ser 0 tinico baluarte consi- deravel (Gergen & Gergen, 2010). Os discursos construcionistas/rompem com as convengdes tradicionais reco- nhecidas como tinicas e verdadeiras, e propdem uma revisio critica que ndo adota mais uma verdade tnica e sin- gular, mas sim um amplo espectro de possibilidades, um convite infinito de alternativas onde podemos transfor- mar um problema em uma possibili- dade, a depender do uso linguistico com que nos referimos aos fendme- nos. Assim, “o que é real deriva de acordos entre comunidades de pesso- as, as afirmagdes da verdade devem se encontrar no ambito dessas relagdes” (Gergen & Gergen, 2010, p. 29). ‘Uma investigagio terapéutica ba- seada nos principios pés-modernos pressupde processos discu lacionais de produgao de sentido fo- calizados no modo como as pessoas constroem, numa ago conjunta e cor- porificada de uso da linguagem, deter- minadas realidades conversacionais (Rasera & Guanaes, 2010). Os momentos denominados mar- cantes em relacionamentos humanos, em especial, no contexto privilegia- do da terapia, oportunizam que algo, nunca antes dito, encontre sua for- ma de expresso. Quando isso ocor- re estamos diante da poética social. A construgao local de um conhecimento novo e significativo torna-se possivel quando abandonamos qualquer saber @ priori, geralmente associado a figura de um terapeuta expert que encaixaria o cliente em um critério classificatério, reduzindo suas possibilidades de vida. A postica social devolve-Ihe o senso de autoria, descortinando um multiverso a ser explorado (Grandesso, 2018; Ra- sera & Guanaes, 2010). 0s € Te- ‘Nova Perspectiva Sistémica,n, 62, p. 55-70, dezembro 2018. Grandesso (2000) defende a ideia de que para que haja a possibilida- de de reconstrucio de significados, seja necessaria a quebra de sentido de acontecimentos que nao se encaixam nas narrativas emergentes, transfor- mando o familiar em exético. Do mes- mo modo, Rasera e Guanaes (2010), discutindo e citando Shotter e Katz (1999), falam sobre as possibilidades de significagio que emergem a partir da pratica da poética social, defenden- do que uma terapia de base conver- sacional tem o objetivo de favorecer um entendimento que da visibilidade a algo ja presente no relato do cliente, ‘mas que ainda no tinha se destacado como descrigdo predominant ou en- contraclo um espaco de expresstio em outros contextos conversacionais. Novos mundos tornam-se possi- veis na medida em que a mudanga vai se operando. No cenario terapéutico a mudanca € distintamente conside- rada dentre as perspectivas moderna e pos-moderna. Na primeira delas, os critérios diagnésticos e os sintomas devem ser considerados e a evolucio terapéutica segue um critério de re- mogao de sintoma e transformagio de comportamentos ditos problema- ticos para outros mais “aceitéveis” socialmente. Jé na perspectiva pos- -moderna, baseada em. pressupostos construcionists sociais, 0 processo de mudanga ndo segue a légica linear de 0 individuo sair de um quadro para 0 outro de evolugio, mas, sim, favorece ao sujeito narrativas conversacionais transformadoras que ampliem suas possibilidades de existéncia, que ndo estejam reduzidas a um tinico olhar ou voz, mas que sejam favorecidas pela multivocalidade. Como afirma Guanaes (2006), importa as terapias com foco na conversagdo buscar os sentidos de mudanga que mais se aproximem da narrativa de problema apresentada pelo cliente, e que pos- sam ampliar suas possibilidades de vida e de relacionamento, © encontro dialégico € 0 cenario privilegiado para a emergéncia de no- vos significados em nossas vidas. uma oportunidade tinica para os inter- Jocutores construirem conjuntamente uma gama de novos sentidos para suas experiéncias. O dialogo é uma ativi- dade colaborativa e relacional onde a qualidade da relagdo assume impor- tancia vital. A presungao precedente de antevermos 0 que 0 outro deseja nos falar é substituida por uma inda- gacdo compartilhada em que a voz do outro € enaltecida e respeitada, con- siderando que podemos apenas nos aproximar do significado do relato que ele nos apresenta (Anderson, 2017). Grandesso (2018) retoma as ideias de Bakhtin que inspiraram Shotter sobre a distingao de um pensamento with- ness em detrimento de um pensamen- to aboutness. Diz a autora: Enquanto uma relagdo aboutness apresenta-se como monoldgica, tendo uma voz privilegiada que versa sobre uma determinada si- tuagio, a relagio withness ¢ emi- nentemente dial6gica, convidando 0 envolvidos na rela¢ao para uma ago conjunta de investigagao com- partilhada. O que resulta desta re- lagdo € de autoria coletiva, uma vez que a relagio withness cria tanto © seu contexto como o contetido processo, (p. 156) Pauitada nos pressupostos cons- trucionistas sociais e nas praticas co- laborativas e dialégicas, os didlogos s6 ocorrem mediante as agdes su- plementares de seus integrantes, que complementam e se reportam aquilo que é dito nas conversagdes. Portan- to, nossas ages devem ser conside- radas como construgdes conjuntas que permitem a emergéncia de novos significados. Somos parceiros conver- sacionais, desfrutando de um senso de mutualidade que inclui o respeito, © interesse e a curiosidade genuina que se traduz em uma postura filo- s6fica denominada de ndo saber. Esta posi¢do de nao saber evita um posi- Clonamento prematuro e opressor de compreensio do dilema, nos convida a adotar uma curiosidade genuina e nos envolve em uma busca horizon- tal, igualitaria e reciproca de compre- ensio (Anderson, 2011). Grandesso (2018) complementa essa ideia se re- ferindo a uma entrevista colaborativa como uma pritica dialigica que segue diferentes estradas, sem um roteiro aprioristico, onde o terapeuta transita pela incerteza enquanto aliada de sta curiosidade genuina, mantendo sua escuta eminentemente aberta. Ainda de acordo com a ética cons- trucionista, a nossa identidade é com- posta pelo olhar do outro, somos seres constituidos em relagao. O nosso self € fuido e sujeito a mudangas, a de- pender das interlocugdes que estabe- lecemos durante a vida. A concepgio moderna de um self essencialista, fixo e permanente ¢ descartada e conside- rada uma ilusto. Em sua célebre fra- se, 0 relacionamento & a morada do conhecimento, Gergen prope que, as verdades e as identidades, por serem 0 produto de relacionamentos humanos, no sejam fixas, nem imutiveis, mas sim flexiveis e temporarias. Dentro da perspectiva de que nos- sas identidades sao fluidas e constan- temente sujeitas a adaptagoes, fazemos referéncia ao conceito dialégico e re- lacional de self de Harlene Anderson (2011). Deacordo coma autora, nossas identidades e aquelas que atribuimos aos demais sto relacionais e se cons- troem no didlogo e na conversagio cinco vues sores names ent lentria rs rs Gomis ‘Nova Perspectiva Sistémica, n. 62, p. 35-70, dezembro 2018. 57 PS 82 | Decombr 2018 (Gergen, 2016; 2017). Falamos, pensa- mos e atuamos com uma multiplicida- de de vores que habita em cada um de nds, Toda narrativa que construimos de nés mesmos pode ser renarrada e transformada, ofertando uma nova forma e um novo lugar ao sujeito. A construcao dialégica do self permite descartar a nogio de esséncia do indi- viduo e considerar uma multiplicida- de de nogdes de selves que emergem de dentro do proprio dialogo em curso ~ um self como um constructo sécio- -cultural singular dos discursos mais amplos e locais em que ocorre. A nogio de self narrativo amplia as perspectivas de mudangas no cliente, tanto quanto algumas priticas narrati- vas pés-modernas de White e Epston (1990), particularmente duas delas, a de re-autoria e a de re-associagao. Es- ses autores contemplam a idea de que nenhuma histéria, em si, condensa os miiltiplos significados que ela propria constitui, o que faz.com que o terapeu- tadeva permanecer atento as contradi- goes presentes no relato de sew cliente, as lacunas que vém a ser preenchidas por acontecimentos extraordinaios (Galvao & Guimaraes, 2014). A terapia narrativa permite ao tera- peuta compor uma visio mais otimis- tae competente do cliente, Através de cenas recuperadas em diilogos tera- péuticos, 6 possivel escavar momentos extraordinérios dele, acompanhados de personagens significativos de sua vida que, em algum momento, podem emprestar uma versio menos saturada mais alternativa de si. Cada nova his- {ria re-narrada em terapia, contem- plada pelo olhar apreciativo de nossos interlocutores, aqueles com os quais nos relacionamos ou os demais que permanecem internalizados em nos, permite a composicdo de uma hist6- ria subordinada forte o suficiente para aplacar a hist6ria dominante. ‘Nova Perspectiva Sistémica,n, 62, p. 55-70, dezembro 2018. De acordo com esta proposta te- rapéutica, a vida das pessoas € multi- -historiada por uma historia domi- nante/oficial, que apresenta parte das experiéncias vividas que acabam por qualificar e constituir o sujeito, e por uma histéria_subordinada/secundé- ria, formada por uma variedade de narrativas alternativas que incluem as experiéncias negligenciadas pela his- toria dominante. A busca da historia subordinada permite ao sujeito aden- trar outros territ6rios de sua identida- de, explorando recursos, habilidades e capacidades até entao ocultas e ador- ‘mecidas (Palma, 2008). ‘A pritica narrativa de re-autoria surge de nossas conversagbes e fa- vorece uma gama de competéncias, talentos ¢ habilidades a vida de nos- so cliente, restaurando uma imagem denegrida em uma percepgio mais otimista ¢ promissora, recuperando © seu senso de autoria. Aos poucos as conversagdes terapéuticas podem resgatar personagens importantes de nossas vidas que nos trazem uma vi- ssio mais apreciativa de nés e, assim, os didlogos nos conduzem a uma outra pratica narrativa - a re-associagéo (re -membering). Esta pratica terapéutica de re-asso- ciagao utilizada por Michael White so- feu influéncia direta dos trabalhos de- senvolvidos pela antropologa Barbara Meyerhoff, com grupos de minoria, chegando a considerar a importancia do termo re-membering (re-membrar, re-associar), ressaltando o significado de recuperarmos pessoas importantes em algum momento de nossas hist6- rias de vida que permaneceram “apa- gadas" Estas pessoas que apresentam status diferentes em determinados momen- tos de nossa existéncia sio 0s sécios ou membros do que se denomina clube da vida. O pensamento subjacente a esta pritica de re-associagio se baseia na concepgao pés-estruturalista de que nossas identidades sio tecidas pelos relacionamentos que estabelecemos com outras pessoas. Ressaltar pessoas importantes em alguns momentos de nossas hist6rias de vida que permaneceram “apagadas” consiste em uma oportunidade tnica e trazé-las a toma nos remete ao quan- to foram importantes na construgio de nossas identidades e, consequente- mente, influenciaram na forma como nos percebemos, As conversagdes de re-membra- mento tornam-se titeis sempre que 0 cliente se refere a alguém importante de seu passado, ou quando sustenta uma visio negativa de si mesmo. So conversagdes que funcionam como antidoto pois, ao se sentirem desani- mados e desesperangosos na vida, a pritica de re-membramento propor- ciona a ampliagdo ou resgate de “s6- ios” significativos que promovam imagens adversas mais positivas do que aquelas saturadas carregadas pelo cliente. O caso a ser aqui apresentado mos- tra-se particularmente instigante para oestudo das conversagdes terapéuticas transformadoras pautadas em alguns pressupostos do construcionismo so- cial, em duas praticas narrativas, a de re-autoria e re-associagio de Micha- el White e David Epston (1990), na Abordagem Colaborativa de Harlene Anderson (2011) ¢ na Investigagao Apreciativa de Cooperrider e Whit- ney (2005). A forma construtiva como © didlogo terapéutico se estabeleceu dentro de uma horizontalidade e uma curiosidade favoreceu uma mudanga nna imagem que a cliente sustentava de sia partir do resgate de pessoas signi- ficativas de sua vida que compuseram ‘uma imagem mais apreciativa dela. To- das essas abordagens, cada uma com sua singularidade, encontram conver- géncias quanto a énfase nos processos relacionais, no enaltecimento da lin- guagem e na postura terapéutica vol- tada a horizontalidade, a coconstrucio e a0 interesse pelo significado (Rasera & Guanaes, 2010). Particularmente, me guiei pelas ideias construcionistas e fundamentei nossas conversagdes mantendo (a) 0 foco no significado; (b) em como as pessoas se constroem em relaciona- mentos € nos significados que orien- tam suas vidas; (c) na postura cocons- trutora do terapeuta, abandonando o papel de especialista e criando con- vversagdes que suigerem novos sentidos para a vida do cliente; (d) na énfase polivocal em oposigao a ideia de uma linica e verdadeira definicio do real; e (e) na visio de um self unificado que promove uma multiplicidade de for- mas de descrever um problema e na pluralidade de selves que nos habita ‘nos varios relacionamentos que cons- ‘truimos Para complementar as reflexes, faco referencia a algumas posturas de priticas colaborativas € dialégicas de Harlene Anderson (2017) que elevam © papel do didlogo, o estar com numa indagacao compartilhada e a postu- ra terapéutica do ndo saber, de uma curiosidade genuina frente ao relato do cliente, permitindo a emergéncia de novos significados para a sua vida. Utilizo duas priticas narrativas propostas por White e Epston (1990); refiro-me primeiramente a pratica da re-autoria, onde exploro historias alternativas e estocadas da vida da cliente e, depois, complemento com a pratica de re-associagdo, resgatan- do pessoas significativas de sua vida que participaram de sua constituigao identitaria e trouxeram um olhar mais promissor para sua imagem. Seguindo com uma postura pés-moderna, fago cinco vues sores names ent lentria rs rs Gomis ‘Nova Perspectiva Sistémica, n. 62, p. 35-70, dezembro 2018. PS 82 | Decombr 2018 referéncia aos seguintes pressupostos da Investigagio Apreciativa (Cooper- rider & Whitney, 2005): (a) de que as realidades surgem de um certo mo- mento, a partir da linguagem que uti- lizamos ao valorizarmos as diferengas e de (b) recuperar experiéncias do pas- sado que permite que as pessoas se sintam mais confortaveis e confiantes sobre os seus futuros (Mofarrej, Costa, & Pacheco, 2017), Considerando que uma mesma pes- soa pode apresentar varias narrativas a0 longo de um processo terapéutico, selecionei recortes de uma sessio es- pecifica individual que durow um ano e meio, com intervalos quinzenais no mew consult6rio particular. A. sesso de onde foram extraidos os fragmentos a serem analisados foi audiogravada e ocorreu na sala de espelho unidire- cional com equipe terapéutica duran- te uma aula do curso de formagio no Instituto Humanitas de Pesquisa e In- tervengdo em Sistemas Humanos, em Salvador, Bahia. A transcrigio foi re- alizada posteriormente pela terapeuta, para que algumas metaforas trazidas pela cliente pudessem ser literalmente recuperadas ea analise correlacionada a algumas priticas pés-modernas que pudessem ser mais bem estruturadas nesta produgio cientifica. Este traba- Iho respeitou todos os procedimentos éticos, contando com a leitura e auto- rizagio da pessoa atendida para a pu- blicagdo deste artigo. A fim de preser- var sua identidade, utilizarei um nome ficticio ao longo deste trabalho: Mal, O objetivo dessa produgao é refletir sobre o impacto de algumas conversa- Ges terapéuticas transformadoras que ocorreram na vida da cliente, especifi- camente, sobre a premissa construcio- nista de que somos sees constituidos pelo olhar do outro, cuja imagem iden titdria € moldada por aqueles que nos cercam, admitindo, dessa forma, que ‘Nova Perspectiva Sistémica,n, 62, p. 55-70, dezembro 2018. somos seres em construglo, flexiveis e mutiveis, ao adotarmos uma concep- fo de self narrativo, impermanente, que contraria a visio precedente de tum self inico, essencialistae inflexivel. Para refletir sobre essa_proposta apresento a seguir uma breve narrativa sobre a cliente, fazendo referéncia a al- guns aspectos precedentes do proceso terapeutico até a sessio eleita e recor- tada para a produgio deste artigo. AHISTORIA DE MALU: UMA VERSAO DEPRECIATIVA RESTAURADA POR VOZES APRECIATIVAS: Malu é uma mulher de trinta e cin- psicéloga, psicoterapeuta, separada ha trés anos, desde que ini- ciou a terapia, com um filho de quatro anos que mora com ela. Com relagio a stia familia de origem, tem um irmao trés anos mais novo, pais separados, uma mie com problemas psiquistri- cos e um pai provedor, poderoso, com quem sempre estabeleceu uma rela- gio de dependéncia econémica que, segundo relatos dela, dificultou sua entrada na adultez. Chega a afirmar que “nunca deixei de ser filha para ser esposa ¢ mae, sempre me senti instavel profissionalmente, pouco acreditava em ‘mim, nao precisava me manter, pois desde sempre contei com 0 apoio finan ceiro do meu pai’. Grande parte de seu percurso terapéutico transcorreu por tum trabalho de diferenciacao de self, pela busca de autonomia e a conquista de sua adulte7, associada a um periodo de elaboragtio de seu processo de se- paracao, Enquanto profissional, Malu sem- pre esteve envolvida em cursos de aprimoramento profissional que nao chegavam a conferir-the uma autoesti- ma elevada, nem a obter uma imagem confiante e segura de si. Considerava- co anos, -se sempre uma pessoa muito influen- ciavel, insegura, sem objetivos precisos na vida, com alguns momentos de- pressivos e dificuldades na vinculagaio com outros homens. Na sessdo eleita para anilise, se descreve “meio perdi- da’, afastada de sua rede social e com uma imagem muito depreciativa de si. Foi neste contexto de vida dela que, baseada na visto construcionista de self narrativo, fluido e em construgio, iniciamos uma conversacao terapéuti- ca que incluiu personagens significati- vos de sua vida que puderam ampliar sua versio de si mesma, dando novos sentidos para sta existéncia. Malu comeca a sessio contando a seguinte cena: Estava sentada em uma esteira na praia, olhando o horizonte ¢ 0 mar era encharcado por wm vazio ines- ‘gotdvel e inexplicavel, me dei conta das minhas lacunas a serem preen- chidas.. percebi que 0 futuro estava obscuro e um tanto indefinido. Uma necessidade arrebatadora de reco- nhecer quem sou me inunda e, ne~ nhuma resposta simples ou reconfor- tante surge, 0 que parece evidenciar a necessidade de que eu mergulhe ¢ Malu trouxe essa cena relacionada 4 virada do ano de 2017. Imediata- mente imaginei que seria util recorrer a outras pessoas significativas de sua vida que pudessem compor uma visio mais promissora sobre ela e fiz a se- guinte pergunta: pensando no seu mo- ‘mento presente e na dificuldade de vocé se reconhecer identitariamente com as caracteristicas que melhor te definem, a quem podemos recorrer enquanto olhar legitimador ¢ apreciativo de sua existéncia? Elame responde que fez partede um. grupo de nove mulheres na faculdade, todas ligadas entre si, algumas mais proximas do que outras, que sempre tiveram um olhar especial sobre ela Pedi que ela elegesse trés delas como olhares que ajudassem a compé-la, a recuperar alguma dimensio esquecida de si, devido ao desejo constante de sa- tisfazer as expectativas dos outros. ‘Assim, Malu prosseguiu: A primeira de minhas amigas éa que mais fortemente me vem em mente, porque sempre resgatou em mim uma profundidade da qual sempre temi e, por esta razao, costumava me afastar. Fla nunca me deixou escapar em quaisquer de minhas tentativas rasas para me manter na superficie. Agora, pensando, me vem em mente uma cena que vivemos na casa dessa ‘amiga: estévamos em uma piscina de sua casa que tinka ligacdo direta com ‘a sauna e passamos horas a fio con- versando nessa piscina, transitando mergulhando dela para a sauna, Ela sempre ressaltava 0 quanto nos- sas conversas traziam uma profiun- dissima intimidade peculiar, jamais experimentada com qualquer outra ‘amiga... era comiigo que as conver sas emergiam de uma cumplicida- de nunca dantes experienciada. De repente, a dgua fria da pise ‘aquecida pela sauna. Tenho a sen- saga que essas temiperaturas sempre oscilam em minha vida. A frieza de me definir através de minha versito saturada, de minha propria descri- ‘edo empobrecida de existéncia, era ‘aquecida pelo afeto e pela profun- didade dos novos significados que ‘emergiam, com a leveza que extrat- ‘amos de nossas conversas. Receben- do 0 calor afetuoso dessa amiga, me permitia ser auténtica, verdadeira e nao temia qualquer profundidade, mergulhava com as garantias do colo ‘aquecido que sempre recebi dela. 1a era cinco vues sores names ent lentria rs rs Gomis ‘Nova Perspectiva Sistémica, n. 62, p. 35-70, dezembro 2018. 61 PS 82 | Decombr 2018 Seguimos a sessio com a mesma consigna: me retrate uma cena com uma amiga de forte influéncia em sua vida, alguém que te védiferentemente de como vocé tem se descrito ultimamente. A segunda amiga traz a marca da aceitagao incondicional de minha inteireza, ela nunca permitiu que eu _fosse definida por um tinico recorte de ‘minha existencia. Eu costumava dizer que minha vida era como uma série de TV, feita de muitos capitulos, e essa amiga era testemunha de todo 0 eria- do, nao se permitia me ver sobre o an- gulo de um tinico episédio. Ser vista sob esta perspectiva que incorporava as diferentes dimensdes do meu ser ‘me “curava” de antigas feridas, onde fui denegrida, preconceituosamen- te, pelo olhar recriminador do outro. Além de me favorecer uma imagem de mim mais completa, minha amiga nao passava a mao por minha cabeca, era critica com o que me cabia revisar, sem que et me sentisse abandonada na minha necessidade de ser cuidada. E, por fim, Malu relatou: A terceira ¢ tltima delas que quero trazer ressaltava 0 meu humor, a mi- nha autenticidade, pois ela mesma nao se deixava vencer pelos olhares criticos de outrem, me convidando @ usar minha ludicidade, meu hu- mor, minha alegria e meu despoja- ‘mento, sem me deixar restringir ds possiveis criticas alheias. Quando eu ficava diante de sua transparéncia € autenticidade, sem tirar nem por, me permitia, cada vez mais, ser eu mesma, de uma maneira inica, ori- ginal e singular, me despedindo de sum habito incémodo e initil que me acompanhou em grande parte de mi- ha existéncia, a mania que me per- seguia de querer agradar a terceiros. ‘Nova Perspectiva Sistémica,n, 62, p. 55-70, dezembro 2018. Finalizamos a sessio com Malu demonstrando surpresa e comogio com a rota que percorremas, com as memérias resgatadas de cenas com suas amigas que permitiram iniimeras reflexes a respeito de seu isolamento social, de sua baixa autoestima e perda de espontaneidade, afirmando estar comegando a nomear sentimentos ¢ sensagdes que, por muito tempo, per- maneceram confusos, indefinidos ¢ mal elaborados. CONSIDERAGOES CONSTRUCIONISTAS, COLABORATIVAS, NARRATIVAS E ‘APRECIATIVAS DA HISTORIA DE MALU Os recortes acima expostos fizeram parte de conversagdes transformado- rasentre mime a cliente que funciona- ram como um disparador para que no- vos significados viessem & tona dando ‘margem a uma infinidade de reflexdes. Constituiamos um encontro verdadei- 10 de interlocucao dialogica generativa que refletia uma multiplicidade de no- vas oportunidades & sta vida. Imersa em principios terapéuticos condizen- tes com a pos-modernidade, revisitei algumas posturas clinicas e teorias que me permitiram estar com Malu, assu- mindo um clima de horizontalidade, de escuta respeitosa que validasse as diferentes maneiras com que se definia cera definida pelos outros. Nas intimeras sessdes_individuais que tivemos durante um ano e meio, construimos uma atmosfera dial6gica propicia a desconstrugao das narrativas que reificavam posigies estiticas, até entio sustentadas por ela, que restrin- giam seu senso identitario, obscure- cendo suas habilidades e seus recursos. clima emocional que nos permeava era de responsabilidade compartilhada, construg3e conjunta de novos signifi- cados que passaram a fazer mais senti- do paraa cliente, permitindo a abertura para novas perspectivas futuras. Perpassamos muitos relatos fortes de sua vida que pude testemunhar. O recorte de sessio eleito e transposto neste artigo segue na diregao de uma restauragio identitéria constituida pelo olhar de pessoas significativas da vida dela, Pautada em um dos pres- supostos do Construcionismo Social de que a nossa identidade € composta pelo olhar do outro e tecida pelos re- lacionamentos significativos de nossas vidas, a identidade de Malu era cons- truida e reconstruida a partir de nossas trocas dialogicas que permitiram que ela recuperasse cenas vividas com suas amigas e pudéssemos dar significados adversos a esses relacionamentos & imagem que, até entdo, ela sustentava de si. Uma vez que somos seres cons- tituidos em relagdo, a versio saturada e denegrida que Malu carregava foi, aos poucos, sendo substituida pelos olhares mais positivos de suas amigas. ‘A autoria individual cedia espago para ‘uma autoria miltipla através de nossa acao conjunta (Shotter, 1993). Como terapeuta fui deixando que Malu. acontecesse em mim. Deixar que 0 outro aconteca em vocé é uma expressdo utilizada por John Shotter (1993), denominada outreidade. Se- gundo 0 autor, a premissa subjacente € de que, enquanto terapeuta, nunca conseguimos alcangar exatamente 0 significado daquilo que escutamos. © nosso esforco é aproximativo com relago aquilo que o cliente diz pois, ao assumirmos uma postura de estar com (withness), tentamos nos apro- priar ao maximo do significado que o outro atribui ao seu relato. Por exem- plo, na conversagao estabelecida com ‘Malu apareceu em duas de suas ami- gas a importincia de ela manter sua espontaneidade e abandonar o habito de querer agradar aos outros. Quan- do nos referfamos temperatura fria da piscina e quente da sauna, fomos conjuntamente construindo analogias sobre diferentes momentos de sua vida - quando ela sentia que estava perden- do sua espontaneidade, se distanciava de seus propésitos em fungdo da ne- cessidade frequente de querer agradar a0 outro, Essa era a sua versio fia, a ‘temperatura que representava a sensa- a0 de estar distante de sua propria es- séncia, o que Ihe gerava uma sensacao de vazio, de “despersonalizacao” (sic), sem metas e esperancas de futuro. Contrariamente, a sensagio da sauna era de um calor aconchegante que Ihe permitia reconectar-se a sua essénci encontrar razées pessoais para sua existéncia, de se credibilizar a partir das valorizagbes ¢ legitimagoes esc tadas das amigas. Esse “aquecimento” afetivo proveniente dos seus vinculos amistosos reverberava uma imagem de Malt mais confiante, empoderada, espontinea e, consequentemente, com perspectivas otimistas de futuro. Até a presente sessiio Malu passava por um momento critico e fragil de sua autoconfianga, sustentava uma ima- gem apequenada de si, sujeita a revisio dos olhares apreciativos de suas verda- deiras amigas, amigas que fizeram par- te de sua rota de vida, testemunhas de outros momentos de seu passado em que se sentia mais segura e competer te. O trabalho terapéutico foi de resga- te de uma imagem mais forte e deter- minada de seu repert6rio “esquecide’, que trouxesse narrativas passadas de uma Malu diferente de agora, mais or- gulhosa de si. O significado que ela se dava nao podia pertencer unicamente a stia mente individual, mas, também, era produto dos didlogos que estabele- ciamos enquanto interlocutoras (Ger- gen & Warhus, 2001). cinco vues sores names ent lentria rs rs Gomis ‘Nova Perspectiva Sistémica, n. 62, p. 35-70, dezembro 2018. PS 82 | Decombr 2018 ‘Trazer A tona as memérias dessas amigas que representavam modelos para a cliente e resgatavam emogées positivas com as quais ela se reco- nectava - tais como alegria, humor, acolhimento, afeto, autenticidade e inteireza - teve um poder transforma- dor que expandiu suas possibilidades, direcionando pensamentos e atitudes, antidotos contra uma imagem em- pobrecida que ela carregava de si - 0 principio positivo proposto pela inves- tigagdo apreciativa ancorava as minhas investigagdes (Cooperrider & Whit- ney, 2005). Somadas a isso, as priticas narrativas de re-associagdo resgataram os olhares legitimadores de suas ami- gas, fazendo-a reconhecer a importan- cia dessas pessoas na sua construgio identitaria, ja que, através delas e dos didlogos que construfmos, a cliente recupera sua espontaneidade perdida, stia coragem em se mostrar mais, mes- mo correndo o risco de ser criticada e denegrida como havia sido em outras circunstincias de vida pois, quando se remeteu ao quanto era reconhecida pelas trés amigas, se sentiu fortalecida para se assumir mais integralmente, inclusive por ter experienciado com clas ser criticada construtivamente, sempre na diego de se tornar alguém ainda melhor. Quando participamos de um dislo- go cuja tOnica é mais voltada para um discurso problemitico e disfuncional das interagdes humanas, a realidade que surge desse diilogo ¢ mais per- meada por problemas e disfungdes. Quando investigamos o que esta fun- Cionando e 0 que as pessoas valorizam sobre aquilo que fazem, novas realida- des cheias de recursos e possibilidades so produzidas. Utilizando as ideias da investigacao apreciativa de que as relagdes humanas sio permeadas de potencialidades, sustentei um dialo- go e uma linguagem que enalteciam ‘Nova Perspectiva Sistémica,n, 62, p. 55-70, dezembro 2018. as experiéncias positivas do passado da cliente que ofertavam novas reali- dades, valorizando diferentes verses que surgiam a respeito de Malu. ‘Nao podia restringir Malu a visto pessimista daquele momento. Ao es- cavar novas historias de sew reper- tério pessoal, sabia que novas reali- dades emergiriam, favorecendo uma multiplicidade de opgdes para ela. Quando, finalmente, ela relata expe- rigncias de sua maternidade, de al- gumas dificuldades enfrentadas com um diagndstico dificil de sew filho, somadas a outros relatos positivos de sua vida profissional, podemos, jun- tas, re-significar parte do seu pasado e, também, estabelecer novas proje- goes futuras. Novamente me reportei as praticas narrativas de re-atitoria quando densifiquei a historia fina, compilando experiéncias positivas da vida de Mahi que, juntas, pudessem ser fortes o suficiente para combater sua versio dominante, enfraquecida © opressora. A pergunta disparadora para chegar a eventos extraordinarios de sua maternidade foi: Em que mo mento de sua vida vocé se reconheceu diferente e mais forte, demonstrando uma verséo de si que estava “apaga da” ou esquecida? Malu disparou em um relato de sua maternidade, desde © nascimento de seu filho e do quio 86 se sentiu, porque sua mae nao teve condigées psicolégicas para auxilid-la da forma como esperava até, princi- palmente, quando precisou encarar a realidade frente a médicos de que sew filho era especial, apresentava uma psicopatologia que requereria de Malu muito esforgo, dedicagio cttidados especiais. Embora sozinha ¢ desesperada, foi o momento onde ela se reconheceu mais forte e competen- te para defender a “cria’; seus receios e fantasmas se apequenaram diante da poténcia de seus instintos maternos. Interessada em recuperar outros eventos importantes de um passado remoto que conectassem Malu a uma imagem mais positiva de si mesma que fosse somada as cenas relacionadas & sua maternidade, fui escavando nar- rativas referentes a contextos mais po- sitivos. Algumas perguntas relevantes que utilizei em sessio foram: Que outras cenas de sua vida, além dessas com seu filhe, podem ser re- lembradas como fontes de orgulho ¢ satisfagao de sua vida? Quem eram as pessoas presentes nessas cenast Que efeitos teve para vocé resgatar as historias passadas com suas amigas e recuperar 0 olhar de cada uma delas sobre voce? Que fatores favoreceram voc’ aleangar uma imagem mais apreciativa de si mesma? Se imagi- ne dagui hd um ano, ent um cendrio onde todos os seus desejos possam ser realizados; como & esse cendrio? O que mudou? O que vocé precisou fa- zer para isso acontecer? O que as de- ‘mais pessoas envolvidas precisaram {fazer para isso acontecer? Quais séo as qualidades que voce mais admira em voce? © anel autorreflexivo temporal - presente, pasado e futuro - incluia © resgate de narrativas passadas, res- significando-as no tempo presente ¢ projetando, assim, um futuro dife- rente, nos mantendo nessa incursao, temporal que privilegiou os novos significados que emergiam no pre- sente, favorecendo uma dimensio fu- tura que pudesse estar relacionada a um ideal mais satisfatério na diregao de desejos e sonhos a serem alcanga- dos. © processo terapéutico foi de- marcado por momentos marcantes, ressaltados por elementos novos que surgiam mediante uma postura cola- borativa e uma investigagao narrati- va e apreciativa de uma nova historia que estava sendo escrita. Considerando, entdo, que as histé- rias ndo sio fixas e podem estar sujei- tas a transformagdes constantes atra- vés do contato com um interlocutor (que pode ser, inclusive, nés mesmos), elas nunca sto apenas relembradas, ‘mas, inclusive, re-significadas. Assim, nossos insights deixam de ser verdades fixas e passam a ter um status tempo- rario que “traduz” um dado momei to de nossa existéncia. Quanto mais excursionavamos em nossas conver- sagdes terapéuticas, mais linguajéva- ‘mos, € novos significados emergiam das narrativas da cliente, em um fluxo continuo de onde brotavam oportuni- dades diversificadas. Recuperar parte de nossas habilida- des perdidas e trazer a tona competé! cias ofuscadas pode fazer parte de um processo terapéutico pautado nas pré- ticas narrativas de re-autoria. Como terapeuta, eu garimpava historias al- ternativas de Malu com suas amigas de sta vida profissional e de sua experi- éncia como mie que se contrapunham 8 versio saturada que ela carregava de sie, aos poucos, uma histéria alterna tiva, mais densa e solida, saltava aos nossos olhos. Quanto mais adentrava esas narrativas, mals me deparava com recursos extraordindrios que no condiziam com sua versio saturada. Nossas narrativas de 6s mesmos e sobre os outros so narrativas “par- ciais” daquilo que vivenciamos, e a proposta das praticas narrativas é jus- tamente, propiciar ao cliente 0 acesso a eventos tinicos que ele mesmo possa ter estocado e omitido de sua consci éncia, que contrariem as verses do- minantes que os constituem, muitas vezes apresentando uma versio dele proprio que 0 incomoda e o infelicita. Sem me deter a sua historia dominan- te, fai escavando histérias subordi- cinco vues sores names ent lentria rs rs Gomis ‘Nova Perspectiva Sistémica, n. 62, p. 35-70, dezembro 2018. PS 82 | Decombr 2018 nadas alternativas que permitissem 4 Malu adentrar outros territorios de sua identidade, explorando recursos, habilidades e capacidades até entio ocultas e adormecidas para ela Malu se definia como inconsisten- te, rasa e superficial, alguém que nao se apropriava da prépria vida. Porém, essa visio saturada de si comegava a apresentar inconsisténcias e contra- digdes, lacunas que, cuidadosamente, foram preenchidas durante o processo terapéutico, principalmente em nos- sos didlogos a respeito de sua pritica profissional como terapeuta, de como 0 cursos que realizava, seus estudos e todo o seu investimento eram notérios nas mudangas relativas 2 sua seguran- ae seu empoderamento profissional. Ser reconhecida como uma boa tera- peuta passou a ser uma conquista ce- lebrada e internalizada por ela, onde cada novo atendimento que fazia sig- nificava a oportunidade e a realizagio de se aprimorar e enxergar com admi- racio os seus esforcos, além de obter legitimidade pelos proprios clientes. Recuperar uma imagem mais com- petente de si através do olhar de suas amigas nos permiti conversagdes que incluiam outra pritica narrativa deno- minada re-associagao (re-membering). Esta pratica utilizada por Michael White sofreu influéncia direta dos trabalhos desenvolvidos pela antropé- Joga Barbara Meyethoff, com grupos de minoria, chegando a considerar a importincia do termo re-membering (re-membrar, re-associar), ressaltando o significado de recuperarmos pessoas importantes em algum momento de nossas hist6rias de vida que permane- ceram “apagadas”. Ao trazer & tona algumas das me- Ihores amigas de Malu através da pra- tica narrativa de re-associacio, que ressalta figuras importantes que foram apagadas da memoria do cliente, ela ‘Nova Perspectiva Sistémica,n, 62, p. 55-70, dezembro 2018. péde se remeter a importancia de cada uma delas na construgio de sua iden- tidade e, consequentemente, como passaram a influenciar na forma como ela se percebia, compreendendo, con- juntamente & cliente, que sua identida- de podia ser moldada diferentemente com os acréscimos tecidos por esses relacionamentos. As trés amigas apontadas pela clien- te, resgatadas de seu clube da vida (White, 2012; White & Epston, 1990), sio figuras recuperadas de seu acervo afetivo que representam o retrato refle- tido do melhor dela, permitindo que cada uma delas recompusesse sta iden- tidade a partir de momentos extraor- Gindrios relembrados e ressignificados que fizeram parte de narrativas passa- das (Mofarrej, Costa & Pacheco, 2017). Rememori-las na sessio trouxe a tona valores, propésitos e percepcdes ha muito tempo esquecidos que deram um novo sentido a vida de Malu. Al- guns de seus atributos pessoais, com 0s quais nao se conectava ha tempos, foram garimpados e restitufdos & sua identidade. Felizmente o seu self nao mais permanecia enrijecido numa tinica versio. PERSPECTIVAS FUTURAS NA VIDA DE MALU As sessdes subsequentes foram en- charcadas de contetidos explorados precedentemente. Revisitar sua postura de vida, reencontrar novos amigos que compuseram e somaram aos anteriores ‘uma imagem mais repleta e satisfat6- ria de si mesma fez Malu refletir sobre seus relacionamentos, inclusive revisi- tar seu percurso afetivo-sexual. Quan- doa questionei sobre 0s efeitos de nos- so encontro onde exploramos o olhar de suas trés amigas sobre ela, pude me surpreender com sua resposta: Houve um efeito corporal pés ses- 0, onde passei a questionar a imagem que carregava nos tiltimos anos, questionando e restaurando, os poucos, uma imagem mais sa- tisfeita e orgulhosa de mim a par- tir do olhar de minhas amigas. Me senti descomprimida, com uma sensagao de expansio e amplitude, ‘ganhando espago, Cheguei a trans- Jerir esses pensamentos e sensagdes (para 0 meu corpo € comecei a fa~ zer movimentos com minhas maos semelhantes a movimentos de uma borboleta. Ao relatar seus movimentos de bor- boleta, estavamos diante do que Shot- ter denomina de momentos marcan- tes, onde se abrem novos caminhos € perspectivas para a vida do cliente, que passa a responder ao entorno di- ferentemente. S30 momentos que se constroem do inesperado; uma forma postica de expressar novas compreen- sées daquilo ja vivido, encontrando respostas corporais as falas dos inter- locutores, ao mesmo tempo que per- mitem ao cliente seguir adiante (An- derson, 1996 apud Grandesso, 2018; Shotter & Katz, 1999). Assim Malu completou: Fui encontrando coragem para algar alguns voos, sair do meu isolamento e buscar amigos “esquecidos’. Essa descompresséo possibilitou reencon- fros com outras pessoas do passado, {que sempre traziam alguma imagem de mim ‘apagada’. Quanto mais en- contros desses eu participava, mais repleta e inteira me sentia. Fui ressig- nificando uma caracteristica muito marcante de meu passado, a sensi- bilidade, deixando de associé-la & fragilidade. E continuow: © que mais ressaltava em mim mes- ma era a capacidade de estar dispo- nivel para 0 outro, Antes, disponibili- dade era sindnimo de facilidade com ‘os homens, estar em uma condigéo vulnerdvel frente ao masculino que ‘autorizava que abusassem de mim. ‘Mas quando transpus essa caracte- ristica para 0 meu campo profissio- nal, minha profissdo de terapeuta, estar disponivel para os meus clientes uma das minhas maiores virtudes, ‘0 que me faz ser boa profissional, re- conhecida. Ao me revisar, comeco a redescobrir que gosto de minka sim- plicidade, do meu senso de justica e de minha espontaneidade. Aos pou- cos vou compondo um mosaico da- 4quilo que sou, que sinto e gosto em mim. A frigil e débil identidade de ‘outrora cede espaco para uma nova mulher que surgia de dentro de nim. Quando finalmente encontrei espa- Go para introduzir a dimensdo futura em seu relato, Malu disse temer que eu fizesse esta tio esperada pergun- ta, embora nao se desconcertasse em me responder. Disse que se via dai a um ano consolidando cada vez mais © espago terapéutico que havia recém inaugurado em sociedade com uma colega, que as sessOes durante esse ano e meio de percurso terapeutico, prin- cipalmente aquelas onde rememo- rou cenas com sta amigas, ajudaram muito em se revisar identitariamente, possibilitando que ela repensasse cer- tas posturas na Vida, inclusive em seus proximos relacionamentos com os homens, pois se sentia mais consoli- dada, segura e disposta a assumir um compromisso. Deixei uma reflexio para a sessio posterior - que nos leva- ria a exploragdo de sua disponibilida- de com masculino. Esse era 0 novo tema que emergia para nossas prés mas conversages. cinco vues sores names ent lentria rs rs Gomis ‘Nova Perspectiva Sistémica, n. 62, p. 35-70, dezembro 2018. 67 PS 82 | Decombr 2018 CONSIDERAGOES FINAIS Quando “abrimos os nossos olhos € encaramos nossa cegueira” (McNa- mee& Gergen, 1998), somos privile- giados por um othar mais genuino e menos condicionado pela supremaci de crengas dominantes; deixamos que 0 outro aconteca em nds (Shotter, 1993). © contexto dialégico da psicotera- pia se desenvolve ao redor de um di- Jema a ser dissolvido mediante a fusto de horizontes entre os interlocutores ~ “mergulhar na piscina” com Malu nos envolveu em uma atmosfera quen- te da sauna, protegida pelo afeto que Ihe garantiu uma entrega verdadeira e transformadora, apenas possivel pelo encontro entre nés Inumeros foram os momentos mar- cantes que vivenciamos ¢ testemu- nhamos. Recompor lacunas de uma identidade fragil através de olhares le- gitimadores permitiu Malu se recom- por ese restaurar de antigas feridas, de posturas precedentes que obstrufam suas possibilidades existenciais. Estar comprometida com uma tinica hist6- ria de selfe identifica-ta como a tinica verdadeira era limitar terrivelmente as intimeras versoes de si mesma. A reconstragio de sua narrativa abriu_ novos cursos € possibilidades de vida que permaneciam restritas em um recorte empobrecido. Ressignifi- car suas historias ampliou suas pers- pectivas, suas agdes e experiéncias, renovando o seu repertério, mesmo sabendo que suas reflexes sao fruto de momentos marcantes e transforma- dores que podem se estender ot: nao para além da terapia, caso Malu reflita sobre sua postura nos futuros relacio- namentos e na forma como se perce- be. Imersa em diferentes abordagens pos-modernas, pude transitar entre praticas narrativas, conceitos e pressu- postos construcionistas e oferecer uma ‘Nova Perspectiva Sistémica,n, 62, p. 55-70, dezembro 2018. investigacao apreciativa que favoreceu a Malu estar consigo mesma e com os outros diferentemente. Quebrando antigos preceitos, ima- gens imaculadas e enrijecidas que obs- truiam seus movimentos libertadores, cla renovava seu repert6rio com olha- res miltiplos, internalizados de pesso- as significativas de sua vida. Em cada olhar ela se via mais e melhor, depa- rava-se com um espelho cuja imagem refletida a dignificava. Ao se remeter a cenas vivenciadas internalizadas com suas amigas que ressaltavam suas vir- tudes e competéncias, Malu ressurgiu mais empoderada. Um novelo de his- torias foi desatado por nossas conver- sages, nos surpreendendo pela poeti- ca social. Tuminadas por historias subordi- nadas e pelos novos significados que brotavam de nossos encontros, essa nova versio de Malu encarnou a espe- ranga de passos fortes em dire¢aoa um futuro mais consciente de suas fragi- lidades, seus méritos e de um acervo afetivo que a direcione para possiveis novas conquistas. Compartilhamos momentos marcantes, transformado- res de sua identidade, uma vez sus- tentadas pela nogio de self dialégico e relacional. Em nossas trocas dialogicas attamos com uma multiplicidade de vozes que habitavam nela, vozes in- ternalizadas de suas amigas que per- mitiram mudangas significativas: no contexto local do qual participamos. Esperemos que essas transformacées se facam presentes em outros cendrios € relacionamentos, mesmo que nao ossamos garantir a extensiio do 3 cance dessas transformagoes. REFERERENCIAS Anderson, H. (2011). Conversagao, linguagem e possibilidades: um en- foque pés-moderno da terapia. S80 Paulo: Rocca. Anderson, H. (2017). 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