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Te METERS iovadoras da alualidadk Eco e one) EyaUce VBL Sociedade do Cansaco ote oy Pau ERe es Meee mies SO ent Se care aeun on PCy Our Meee) Cee y EDITORA Nieydax) iil 328-4806 0 ‘Dados Imternacionats de Catalogacio na Pblisio (CIP) (Cimara Brasileira do Liv, SP Brasil) Han, Byang-Chal Sociedade doeansgo/ Byam: Chul Han radugio de Elo Paulo Giachinh.~ Petrol, RJ: Vout, 2015. ‘Tiul orignal: Midighetageslchat Bibiogeaia ISBN 978-85-996-1096.6 1. Depressio mental ~ Aspects sols 2 Fadia seat ~ Aspects socias 3. Paradigmas (Ciéncias Socks) 4 Sociedade L Thule 1s-01597 cpp 201.01, Inches para catdlogo sstematen: 1. Sociclogiaeflosoa 301.01 BYUNG-CHUL HAN Sociedade do cansaso ‘Tradugio de Enio Paulo Giachini 4? Reimprosséo y EDITORA VOZES Petropolis Mathes Sits Belin Very Beri, 2010. Tino ovginal em lems Madhiteeelichat ‘Dygitos de pubicajo em logs portuguesa ~ Bras ‘©2015, altos Yours Ld ua Frei Lay, 100| 23689-900 Petropolis RT vwiozescombe ‘rea ‘Todos dros cera, Neuma prt desta obra poder er eprodunda ou transmatids por qualqut forma. fou guasqier moos (etal oy mecink, indo {oracopie grass) ov aquvada em cual sistema oa ‘bnco de dado sm permite exits da econ. Disetor editorial rot Antal Moser Ealtoree Alin dos Santos Carnelro Tost Maia do Sie Lido Fret Mase Larsine en Secrtirio executive Joo Batista Kreoch adoro Hine Diagromao: Sandra Betz Proje de cpe: Parte Fascha Arte insted Obe0 SBN 978-85-126-4996-6 (Baal) ISBN 978-3-48221-616-5 (Aleman) [Bitte coatorme o novo aconio etree ‘Bate lofo compost empress pela Baltora Vous Ade ‘Sumario 1 Avioléncia neuronal, 7 2. Alem da sociedade disciplinar, 23 3 O tédio profundo, 31 4 Vita activa, 39 5 Pedagogia do ver, 52 6 OCaso Bartleby, 59 7 Sociedade do cansago, 69 1 A violéncia neuronal Cada época possuiu suas enfermidades fundamentais. Desse modo, temos uma época bacterioligica. que chegou ao seu fim com a descoberta dos antibisticos. Apesar do medo {menso que temos hoje de uma pandemia gri- pal, ndo vivemos numa época viral. Gragas & téonica imunolégica, jf deixamos para trés essa época, Visto a partir da perspectiva pato- 1dgica, o comego do século XXI nao é definido como bacteriolégico nem viral, mas neuronal Doengas neuronais como a depressio, trans- torno de déficit de atengio com sindrome de hiperatividade (Tah), “Transtorno de pesso~ nalidade limitrofe (TPL) ou a Sindrome de Burnout (SB) determinam a paisagem pato- ligica do comego do século XI, Nao so in- ecybes, mas enfartos, provocados ndo pela ne- ‘gatividade de algo imunologicamente diverso, ‘mas pelo excesso de positividade. Assim, eles escapam a qualquer técnica imunolégica, que tem 2 fungio de afastar a negatividade daquilo que € estranho, © século passado fot uma época imunclé. gica, Trata-se de uma época na qual se estabe- leceu uma divisio nitida entre dentro e fora, amigo e inimigo ou entre proprio ¢ estranko. Mesmo a Guerra Fria seguia esse esquema imanolégico © proprio paradigma imuno- légico do século passado foi integralmente dominado pelo vocabulitio dessa guerra, por tum dispositive francamente militar. A agio imunoligica € definida como ataque e defesa. Nesse dispositive imunoligice, que ultrapas- sou o campo biologico adentrando no campo em todo o ambito social, ali foi inscrita uma cegueira: Pela defesa, afasta-se tudo que & es- tranho. © objeto da defesa imunoligica éaes- tranheza como tal, Mesmo que o estranho nao tenha nenhuma intengdo hostl, mesmo que cle nao represente nenhum perigo, é elimina- do em virtude de sua alteridade. Nesses itimos tempos, tém surgida di ‘versos discursos sociais que se server nitida- mente de modelos explicativos imunol6gicos. Todavia, a atualidade do discurso imunclégi- co nao pode ser interpretada como sinal de ue a ongenizagio da sociedade de hoje seria uma época mais imunolégica do que qual- quer outra, O fato de um paradigma ser eri- sido propriamente como objeto de reflexio, rmuitas vezes, é sinal de sew declinio, Imper- ceptivelmente, jf desde hé algum tempo, vai se delineando uma mudanga de paradigm. O fim da Guerra Fria ocorreu precisamente no curso dessa mudanga de paradigma'. Hoje a 1€ imteressantenotar que hd uma fuga mata en- ne dcumos sodas e boléicos. Clncias nao esto Ios de cspostves que nfo sfo de erger clertifa. Assim, ‘298 © fim da Gers Fra, encontramas uma mudanca de paradigma também dentro da imunologl medina 2 imunologsta americana Poly Matinge res 0 vtho paradigm Imunoléeco da Guerra ria. De acordo com seu modelo Inurogico, 0 sistema inunokigc nko ds- ‘ingue ere safe none, entre propio © estranho ou ‘outro, mas entre lend e dangerous (ct, MATZINGER,P. “rlenaly and dangerous signals: the tes in contol” ‘nature immunctogy, vo-8, 82,2007, . 11-23). 0 ebjeto 9 sociedade esté entrando cada vez mais numa constelagio que se afasta totalmente do esque- ma de organizagio ¢ de defesa imunolégicas. Caracteriza-se pelo desaparecimento da alteri- dade eda estranheza. A alteridade€ a categoria fundamental da imunologia. Toda e qualquer reagio imunolbgica é uma reagio a alteridade. ‘Mas hoje em dia, em lugar da alteridade en- tra em cena a diferenga, que no provoca ne- nnhuma seagéo imunoldgica. A diferenga pés- imunologica, sim, a diferenga pés-moderna nio faz adoecer. Em nivel imunolégico, ela 0 mesmo’, Falta & diferenga, de certo modo, a doesn unos jt nfo & masa esranheza ou aa teridade como tal 54s repele apenas aquelainromss80 sesvanha que se por destrutvamente no imerir do pré- rie. Nesa perspective, enquantooexranho no chamaa atenqdo no tocado pela dees imuncgica. De acordo ‘com a Kia de Mating osster tmanoléico botgico ¢ mais hospitalero do que se admit ato presente. So conhece nenhurayenofois mais intalgente, portant, ‘que a sociedode humans com yanofobia. Esa € uma rex 2 imunologiespotoloicamerte potenciasa, prejudicial Incite 30 desenvolimante do pro. 2 Tembém 0 pensemento de Heidegger aponta um teor lmunolégizo. Assim, el rechaa ceaticamente @ gut! € Ihe conrapSe o mesmo Convaramente20igu, meso possul uma ntnriade, na qual repouse toda & quaauer reacdo imunoléaea 0 ‘© aguilho da estranheza, que provocaria uma Violenta reagio imunolégica. Também a estra- nheza se neutralize numa formula de consu- mo, O estranho cede lugar a0 exstico, O fou rist viga para visité-lo. O turista ou 0 consu- imidor jd ndo é mais um sujeito imunolégico. Dessa forma, também Roberto Esposito coloca una alsa hipétese na base de sua Teo- ria da Immunitas, ao afirmer: “Em quslqner dia do ‘itimo ano podemos ler o relato nos jornais,talvez até na mesma pagina, a respel- to de diversos acontecimentos. © que tém em ccomum entre si fendmenos como alluta contra 6 surto de uma nova epidemia, a resisténcia ‘contra um pedido de extradigdo de um che- fe de Estado estrangeira, acusado de violagio dos direitos humanos, 0 reforgo das barreitas contra a imigragio legal ¢ as estratégias para neutralizar 0 ataque dos virus de computa- dor mais recentes? Nada, na medida em que (5 interpretamos dentro de seus respectivos Ambitos, separados entre si, como a medici- na, 0 direito, ¢ politica soclal ¢ « tecnologia da informética. Mas isso se modifica quando n nos referimos a uma categoria interpretativa, cuja especificidade mais propria consiste na capacidade de cruzar transversalmente aque- Jas Tinguagens particulares, referindo-nos a tum ¢ ao mesmo horizonte de sentide, Como fica evidente ja partir do titulo desse volume, proporiho essa categoria como sendo a cate- seria da ‘imunizagaot [..] Os acontecimentos dlescritos acima, independente de sua dest- sgaldade lesical, podem ser todos reduzidos a uma reacio de protecio contra um riscd”. ‘Nenhum dos acontecimentos mencionados por Esposito apanta para o fato de que nos encontramos em meio a uma época imunolé- gica. Também 0 assim chamado “imigrante’ hoje em dia, jé no é mais imunclogicamente ‘um outro; no & um estrangeiro, em sentido enfitico, que representaria um perigo real ou alguém que nos causasse medo, Imigrantes ‘0 vistos mais como um peso do que como ‘uma ameage, Também o problema do virus de computador jé no tem mais tanto impac- 3 ESPOSITO, Ramus —Scrute und Negation des labors. Bert, 200, p.7 2 to social. Nao & por acaso que, entdo, que em sua andlise imunol6gica, Esposito nio se volta para problemas da atualidade, mas exclusiva- mente a objetos do passado. © paradigma imunokigico nio se coaduna ‘com 0 processo de globalizagio. A alteridade, ‘que provocaria uma imunorreagl0 atuaria con- trapondo-se ao processo de suspensio de bar- reiras. O mundo organizado imunclogicamen- te possui uma topologia especifica, B marcado por barreiras, passagens e soleiras, por cercas, trincheiras e maros. Essas impedem 0 proces- s0 de troca ¢ intercimbio. A promiscuidade eral que hoje em dia toma conta de todos os mbitos da vida, ea falta da alteridade iruno- logicamente ativa, condicionam-se mutuamen- te, Também a hibridizagao, que domina néo apenas 0 atual discurso teorético-cultural mas também o sentimento que se tem hoje em dia da vida, € diametralmente contrivia precisa- mente a imunizagio. A hiperestesia imunolégi- ‘eando admite qualquer hibridizagao. ‘A dialética da negatividade € 0 trago fun- damental da imunidade. O imunologicamente B ‘outro € 0 negativo, que penetra no proprio e procura negi-lo, Nessa negatividade do outro ‘© priprio sucumbe, quando nao consegue, de seu lado, negar Aquele. A autoafirmagio imo- noligica do proprio, portanto, se realiza como regagdo da negacio. O proprio afirma-se ro outro, negando a negatividade do outro. ‘Também a profilasia imunotégica, portanto a vacinagdo, segue a dialética da negatividade, Introdus-se no proprio apenas fragmentos do ‘outro para provocar @ imunorreagio. Nesse ‘aso a negacio da negacio ocorte sem perigo de vida, visto que a defesa imunoligica nao é confrontada com 0 outro, ele mesmo, Delibe- radamente, far-se um pouco de autoviolén- cia para proteger-se de uma violéncia ainda ‘maior, que seria mortal. desaparecimento daalteridade significa que vivemos numa épo- «a pobre de negatividades. £ bem verdade que (05 adoecimentos neuronais do século XXI se- {guem, por seu turno, sua dialética, nioa diaé- tica da negatividade, mas a da positividade. Sio estados patologicos devidos a um exagero de positividade, “ {A violéncia ndo provém apenas da negat- -vidade, mas também da positividade, nfo ape- nas do outro ou do estranho, mas também do jgual. Boudeillard aponta claramente para essa violencia da positividade quando escreve so- bre gua “Quem vive do igual, também pe- rece pelo igual”, Baudrillard fala igualmente da “obesidade de todos os sistemas atuais" do sistema de informagio, do sistema de comu- nicagio e do sistema de produgio, No existe imunorreagio @ gordora, Mas Baudrillard ex- Oe o totalitarismo do igual a partir da pers- pectiva imunolégica ~ e essa é a debilidade de sua teoria: “no é por acaso que se fala tanto de imunidade, anticorpos, de inseminacio € aborto, Em tempos de carestia, a preocupa- Gf estévoltada para a absorcio e assimilagio, ‘Em épocas de superabundincia, 0 problema -olta-se mais para arejeigao e expulsto. A co- municagio generalizada ea superinformacio ameagam todas as forcas humanas de defesa", {4 BAUORILLARO, I. Die Tronsparenz des Buen En Essay Aber extreme Phsnornene. Berlin, 1982 p75. ibid p86. 5 ‘Num sistema onde domina o igual sé se pode falar de forga de defesa em sentido figurado. A defesa imunol6gica volta-se sempre contra ‘6 outro o1 0 estranko em sentido entitico. ‘gual ndo leva & formacio de anticorpos. Num sistema dominado pelo igual nao faz sentido fortalecer os mecanismos de defesa. Temos de istinguir entre rejeigio (Adstssung) imuno- ligica ¢ ndo imunol6gica. Essa se aplica a um excesso de igual, um exagero de positividade. All nao hé participagao de nenhuma negati- vidade, Ela tampouco é uma exclusio (Aus- iliessung), que pressupde um espago interno imunologico. A rejeigdo imunoldgica se dé, 20 contririo, independentemente do. quantum, pois é uma reagao & negatividade do outro. O sujeito imunologico rejeita © outro com sua interioridade, o exclu, mesmo que exista em quantidade minima, ‘A violencia da positividade que resulta da superproduglo, superdesempenho ou super- ‘comunicagéo jé no & mats “viral” A imuno- Jogia ndo assegura mais nenhum acesso a ela, A rejelgio frente ao excesso de positividade 6 no apresenta nenhuma defésa imunolégica, mas uma ab-reacdo neuronal-digestiva, uma rejeigdo. Tampouco 0 esgotamento, a exaus- tio € o sufocamento frente a demasia sio rea- ges imunolégicas. Todas essas sio manifes- tacoes de uma violéncia neuronal, que nio & viral, uma vez. que nao podem ser reduridas negatividade imanolégica. Assim, a teoria da violéncia de Baudrillard esté perpassada de refutagées argumentativas, porque busca descrever imunologicamente a violencia da positividade ou do igual, do qual néo partici- panenhuma alteridade, Assim, ele escreve:“E Viral, aquela da rede © do vir- ‘tual. Uma violéncia da aniquilacio suave, uma violéncia genética ede comunicacio; uma vio- lencia do consenso [..J. Essa violencia é viral ‘uma violenci no sentido de no operar diretamente, através de infecgio, reagio em cadeia e eliminagio de todas as imunidades. Também no sentido de {que atua em contraposiglo 8 violencia nega- tiva e histérica através de um excesso de po- sitividade, precisamente como céhulas cance- rigenas, através de uma proliferagio infinita, wv cexcrescéncia e metistase. Ha um parentesco seereto entre virtualidade e viralidade”. De acordo com a genealogia da inimizade de Baudrillard, 0 inimigo aparece num pri- eiro estigio como Iobo. Ele é um “inimigo exterior que ataca ¢, contra o qual, nos defen- demos, construindo fortiicagdes € muros”, [No proximo estégio, o inimigo toma a forma de um rato. £ um inimigo que atua nos sub- terrineos, que se combate através da higiene. Num estigio seguinte, 0 estégio do besouro, finalmente o inimigo toma a forma viral: “O quarto estagio toma a forma dos virus, esses se movem praticamente na quarta dimensio. # mais dificil defender-se do virus, pois estdo Jocalizadas no coragao do sistema". Surge um “inimigo fantasma, que se estende sobre todo planeta, como um virus, que em geral se infil- tra e penetra em todas as fendas do poder™. A td, p58 “7 BAUDRILARO, 1. Der Gets des Terrrismus Viena, 2002, p85. Bibid, p85. 9 id. p. 20, 8 vvioléncia viral parte daquelas singularidades ‘que se instalam no sistema como céfulas po- tenciais teroristas,¢ buscam minar o sistema 4 partir do interior, Baudrillard apresenta o terrorismo como a principal figura da violén- cia viral, em consequéncia de uma revolta do singular frente ao global ‘Mesmo em forma viral, a inimizade segue ‘oesquema imunolégico, O virus inimigo pene- tra no sistema, que funciona como um sistema imunol6gico e repele 0 invasor viral. Todavia a genealogia da inimizade nio coincide com 12 genealogia da violencia, A violencia da po- sitividade ndo pressupde nenhuma inimizade, Desenvolve-se precisamente numa sociedade permissiva e pacificada, Por isso ela ¢ mais in- Visivel que uma violéncia viral, Habita 0 espago livre de negatividade do igual, onde nao se di nenhuma polarizagéo entre inimigo e amigo, Interior e exterior ou entre proprio eestranho, A positivagio do mundo faz surgir novas formas de violéncia, Essas no partem do ou- tro imunolégico. Ao contritio, elas sio ima- nentes ao sistema. Precisamente em virtude @ de sua imanéncia, ndo evocam a defesa imu- nologica. Aquela violencia neuronal que leva ‘20 infarto psiquico & um terror da imanéncia, Esse se distingue radicalmente daquele horror ‘que procede do estranho no sentido imunolé- ico. A Medusa € quigd 0 outro imunoldgico em sua forma extrema. Constitui uma alteri- dade radical, que nem sequer se pode olhar, sem sucumbir. Assim, a violéncia neuronal, ‘0 contrério, escapa a toda ética imunclégica, pois no tem negatividade. A violencia da po- sitividade nao ¢ privativa, mas saturante; nao cexcludente, mas exaustiva. Por isso é inacessi- vel a uma percepeao direta. ‘A violéncia viral, que continua seguindo ‘o-esquema imunalegico de interior ¢ exterior ou de proprio e outro, e pressupse uma singu- laridade ou alteridade hostil 20 sistema, nao esta mais em condigdes de descrever enfermi dades neuronais como depressio, Tdah ou SB. ‘A violéncia neuronal nao parte mais de uma negatividade estranha ao sistema. B antes uma violéncta sista isto & uma violencia ima- nente ao sistema, Tanto a depressio quanto 0 Fy ‘Tdah ou 0 SB apontam para um excesso de po- sitividade, A SB & uma queima do eu por su- eraquecimento, devido a um excesso de igual. O hiper da hiperatividade nfo é uma categoria ‘munot6gica. Representa apenas uma massif cago do positivo, 2 Além da sociedade disciplinar ‘A sociedade disciplinar de Foucault, feta de hospitais, asilos, presidios, quarts efabrt- cas, nio é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, hé muito tempo, entrou uma outa so- ciedade, a saber, uma sociedade de academias de ftnes, prédios de escritérios, bancos, aero- portos, shopping centers e laboratérios de ge nética. A sociedade do século XI nao é mais a sociedade disciplinas, mas uma sociedade de desempenho, Também seus habitantes néo se chamam mais “sujitos da obedineia’, mas sujeitos de desempenho e produgio, Sio em- presarios de si mesmos, Nesse sentido, aqueles ‘uros das instituigSes disciplinares, que deli- ‘mitam 0s espagos entre o normal e o anormal, se tornaram arcaicos. A analitica do poder de Foucault nio pode descrever as modificagées _psiquicas e topoldgicas que se realizaram com a mudanga da sociedade disciplinar para a so- ‘iedacle do desempenbo, Também aquele con- ceito da “Sociedade de controle” nao dé mais conta de explicar aquela mudanga. Ble contém. sempre ainda muita negatividade, A sociedade disciplinar ¢ uma sociedade da negatividade. ¥ determinada pela negati- vvidade da proibigio, O verbo modal negativo que a domina é 0 nto-ter-o-direto. Também ao dever incre uma negatividade, a negativi- dade da coergio. A sociedade de desempenho vai se desvinculando cada ver. mais da negati- vidade. Justamente « destegulamentagao cres- cente vai abolindo-a. © poder ilimitado ¢ 0 ‘verbo modal positivo da sociedade de desem- penho. © plural coletivo da afirmacio Yes, we ‘can expressa precisamente o cariter de positi- vidade da sociedade de desempenho. No lu- gar de proibicao, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa € motivagio, A sociedade isciplinar ainda esté dominada pelo ndo, Sua x negatividade gera loucos ¢ delinquentes. A so- ciedade do desempenho, a0 contririo, produz depressivos e fracassados, ‘A mudanga de paradigma da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho aponta para a continuidade de um nivel. i habita, naturalmente, o inconsciente social, 0 desejo de maximizar a produgi, A partir de determinado ponto da produtividade, a técni- ca disciplinar ou 0 esquema negativo da proi- bisfo se choca rapidamente com seus limites. Para elevar a produtividade, 0 paradigma da disciplina é substituido pelo paradigma do de- sempenho ou pelo esquema positive do poder, pois a partic de um determinado nivel de pro- utividade, a negatividade da. proibigto tem um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento. A pasitividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. Assim 0 inconsciente social do dever troca de registro para o registro do poder. O sujito de desempenho ¢ mais ripido € mais produtivo que 0 sujeito da obedincia. O poder, porém, nfo cancela o dever. O sujeito de desempenho B continua disciplinado, Fle tem atras de si o estdigio disciplinar. O poder eleva o nivel de produtividade que ¢ intencionado através da t6enica disciplinar,o imperativo do dever. Mas ‘em relagio & elevacao da produtividade nao ha ‘qualquer ruptura; hé apenas continuidade. Alain Ehrenberg localiza a depressao na passage da sociedade disciplinar para a so- iedade de desempenho: “A carreira da de- pressio comega no instante em que o modelo Adisciplinar de controle comportamental, que, autoritiria e proibitivamente, estabeleceu seu papel as classes sociais e aos dois géneros, foi abolide em favor de uma norma que incita ‘cada um a iniciativa pessoal: em que cada um se comprometa a tornar-se ele mesmo, [..] 0 depressive nao esta cheio, no limite, mas esté exgotado pelo esforgo de ter de ser ele mes- mo", Problematicamente, Alain Ehrenberg aborda a depressto apenas a partir da pers- pectiva da economia do si-mesmo. O que nos toma depressivos seria o imperativo de obede- AD EHRENBERG, A. Dos eschopte Slit - Depression und ‘Geach In dr Gegenwart. Frankfurt 2M, 2008.16. % cer apenas a n6s mesmos, Para ele, a depres- sto & a expressio putoldgica do fracasso do hhomem pés-moderno em ser ele mesmo, Mas pertence também & depressio, precisamente, fa caréncia de vinculos, caracteristica para & crescente fragmentacio e atomizagao do so- cial. Esse aspecto da depressio no aparece na anilise de Ehrenberg. Ele passa por alto tam- bbém a violencia sistOmica inerente i sociedade dedesempenho, que produz infartas psiquicos. (© que causa a depressio do esgotamento nio €0 imperativo de obedecer apenas a si mes- ‘mo, mas a pressao de desempenho. Visto a par- tir daqui, a Sindrome de Burnout nio expressa (0 st mesmo esgotado, mas antes a alma con- sumida. Segundo Ehrenberg, a depressio se expande ai onde 0s mandatos ¢ as proibigées 4a sociedade disciplinar dio lugar & respon- sabilidade propria e @ iniciativa, O que torna doente, na realidade, nio é 0 excesso de res- ponsabilidade e iniciativa, mas o imperative do desempenho como um novo mandato da sociedade pés-moderna do trabalho. ‘Alain Ehrenberg equipara equivocadamen- {eo tipo humano da atualidade com ohomem a soberano nietzscheano: “O homem sobera- ‘no, igual a si mesmo, ¢ cuja vinda Nietzsche anunciou, esté prestes a tornar-se realidade en ‘masse, Nada hé acima dele que the possa di- zer quem ele deve ser, pois ele di mostras de obedecer apenas a si mesmo”, Precisamente Nietzsche diria que aguele tipo humano esté em vias de tornar-se realidade en masse, sobe- rano nao 60 super-homerm, mas 0 itimo ho- ‘mem, que apenas ainda trabalia!. Essa sobe- rania esta precisamente ausente daquele novo tipo humano, esposto e entregue indefeso a0 excesso de positividade. © homem depressivo € aquele animal laborans que explora asi mes- mo e quicé deliberadamente, sem qualquer coagio estranha, f agressor ¢ vitima ao mes- ‘mo tempo. O si-mesmo em sentido enfatico é ainda uma categoria imunoldgica, Mas a de- pressio se esquiva de todo e qualquer esque- bid, p56. 120 ttime homem de Mitscheolevs a sadde 3 categoria de ua deusa: “ounamos 2 sae ~ nds enconramos 2 felicidad! ~ dizer os dirs homens 2 pscam os alos” (Also sproch Zorathstea—Krche Gesamtauseabe 52 se- 80,603, p.28) 2B ‘ma imunolégico. Ela irrompe no momento em ‘que 0 sujelto de desempenho nao pote mais poder. Hla & de principio um cansago de fazer de poder. A lamuria do individuo depress vvo de que nada é possivel 9 se torna possivel numa sociedade que cré que nada ¢ impossivl Nio-mais-poder poder leva a uma autoacusa- fo destrativa ea uma autoagresssio, O sujeito cde desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo, 0 depressivo € 0 invélido dessa guerra internalizada. A depressio € o adoecimento de tuma sociedade que sofre sob o excesso de po- sitividade. Reflete aquela humanidade que esté «em guerra consigo mesma. © sujeito de desempenho esté livre da instancia externa de dominio que 0 obtiga a trabalhar ou que poderia exploré-lo. £ senhor «© soberano de si mesmo, Assim, nio esté sub- misso a ninguém ou esté submisso apenas a si mesmo. £ nisso que ele se distingue do su- jelto de obediéncia. A queda da instancia do- ‘minadora nio leva & liberdade. Ao contritio, faz. com que liberdade © coagao coincidam. Assim, 0 sujeito de desempenho se entrega & 2» liberdade coercitva ou a livre coergao de maxi- mizar 0 desempenho". 0 excesso de trabalho ¢ desempenho agudiza-se numa autoexplora- ‘80, Essa é mais eficiente que uma exploragio do outro, pois caminha de mios dadas com o sentimento de libercade. © explorador & a0 ‘mesmo tempo o explorado, Agressor ¢ vitima ‘io podem mais ser distinguidos. Essa autor- referencialidade gera uma iberdade paradoxal ‘que, em virtude das estruturas coercitivas que Ihe sao inerentes, se transforma em violencia Os adoecimentos psiquicos da sociedade de desempenbo sio precisamente as manifesta ‘es patologicas dessa liberdade paradoxal 433.Em seu sani verdadero, iberdade est iad com 1 negatvdade. € sempre uma Rberdade da coayS0 que prowém do outro Imunclico. Onde # neatvade code lugar 20 excesso de posowdide, desaparece também 2 fase da lberdade, que surge daletcamente& oegns3o i negasto. 30 3 O tédio profundo (© excesso de positividede se manifesta também como excesso de estimulos, infor- mages ¢ impulsos. Modifica radicalmente a estrutura ¢ economia da atengio, Com isso s¢ fragmenta e destrdi a atengio. Também a crescente sobrecarga de trabalho torna neces- séria uma técnica especifica relacionada 20 tempo e & atengao, que tem efeitos novamente na estrutura da atengao, A técnica temporal e de atengio multitastasking (multitarefa) ndo representa nenhum progresso civlizatério. A ‘multitarefa ndo & uma capacidade para a qual 6 seria capaz. 0 homem na sociedade traba- Ihista e de informagio pés-moderma. Trata-se antes de um retrocesso, A multitarefa esta am- plamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atengio, indispensivel para sobreviver na vida selvagem, Um animal ocupado no exercicio da mas- tigagio de sua comida tem de ocupar-se a0 _mesmo tempo também com outras atividades, Deve cuidar para que, a0 comer, ele préprio no acabe comido. Ao mesmo tempo tem de ‘vigiar sua prole e manter olho em sew(sua) pparceiro(a). Na vida selvagem, o animal esté ‘obrigado a dividir sua atengdo em diversas atividades. Por isso, nao é capar. de aprofun- ‘damento contemplativo ~ nem no comer nem zno copula. © animal néo pode mergulhar contemplativamente-no que tem diante de si, ‘pois tem de claborar ao mesmo tempo 0 que tem atrés de si. Nao apenas a multitarefa, mas também atividades como jogos de computa- dor geram uma atengao ampla, mas rasa, que se assemelha & atengdo de um animal selva- gem. As mais recentes evolugdes sociais ¢ @ rudanga de estrutura da atengao aproximam cada veo mais a sociedade humana da vida selvagem., Entrementes, o assédio moral, por exemplo, alcanga uma desproporgio pandé- 2 mica. A preocupagio pelo bem vives, & qual faz parte também uma convivéncia bem-suce- ida, cede lugar cada vez mais & preocupacio por sobreviver. (Os desempenhos culturais da humanida- de, dos quais faz parte também a filosofia, de- ‘vem-se a uma atengao profunda, contemplati- vva.Accultura pressupde um ambiente onde seja possivel uma atencio profunda. Essa atengo profunda é cada vez mais deslocada por uma forma de atencio bem distinta, « hiperaten- ao (hyperattention). Essa atengio dispersa se caractetiza por uma rapida mudanga de foco centre diversas atividades, fontes informativas.¢ pprocessos, E visto que ele tem uma tolerancia ‘bem pequena para otédio, também néo admi- te aquele tédio profundo que nao deixa de ser importante para um processo criativo. Walter Benjamin chama a esse tédio profundo de um “pissaro onirico, que choca o ovo da experién- cia", Seo sono perfaz ponto alto do descan- 0 fisico, 0 tédio profundo constitui o ponto 214 BENUAMIN, YL GesommelteSctiften, Val Wf. Franke furcaMt, 1977, 9.446, B alto do descanso espiritual, Pura inguietasao ido gera nada de novo. Reproduz e acelera 0 ji existente, Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de repouso do pissaro onitico ‘std desaparecendo cada ver mais na moder- ridade. Nao se “tece mais ¢ nio se fia © tédio seria um “pano cinza quente, forrado por den- tro com o mais incandescente e o mais colo- ido revestimento de seda que j exist” e no qual “nos entolamos quando sonhamos”, Nos “arabescos de seu revestimento estariamos em casa". Com 0 desaparecimento do des-

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