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IH! ! EBiM o pensamentoaindavive.

ianieIBensald
Com a ajuda do fim do comunismo de
estado, Daniel Bensaidnos oferece um Marx
complexo, arrebatador.Um Marx livre."

LeMondedesLivres

ll@ lãHiEll;M, Marx é um


pioneiro das revoluções científicas futuras
e seu pensamento está em sintonia com
as controvérsias contemporâneas."

Marx. Intent festivo

FSEN 85-20S-0481-4

335.401
B474trt

"Elra#s20! o04814 CIVILIZAÇÃO

.b
13RASILE.IRA
Dance! BensaTd

Marx, o
intempestivo
Grandezas e misérias de
uma aventura crítica
(séculos XIX e XX)

TRADUÇÃO DE
Lula Cavaicanti de M. Guerra

BIBLIOTECA NGK-PUC/SP

100223394
11

e
Rio de Janeiro
1999
COPYRIGHT
© Librairie Plon, 1997 Sumário
HTULO ORIGINAL FRANCÊS

Marx I'intempestif: grandeurset misêresd'une aventurecritique


CAPA

Et,eiyn Gmmacb

PROJaOGRÁFICO
Evelyn Gmmaçb e Joga de Sal,lzaLeite
O trovão inaudíve], :Z]
PREPARAÇÃODE ORIGINAIS
Hemtínia Mana ToHI de Castra PRIMEIRAPARTE: DO SAGRADO AO PROFANO

MARX CRÍTICODA RAZÃO HISTÓRICA


EDITORAÇÃO ELnRÓNICA

Minion Tipogra$a Edita?ia! 1. Uma nova escrita da história, 2:Z


MISÉRIASDO POPPERISMO.
25
CIP-BRASIL. CAIALOGAÇÁO-NA-FONTE
OALFABETODA NOVAESCRITA.34
SINDICATONACIONAL DOS EDHORES DE LIVROS, N
MACACOS, CONDES E HOMENS. 46
BensaTd,Daniel
B41 8m Marx, o intempestivo : grandezas e misérias DESCONSTRUIR
A HISTÓRIAUNIVERSAL56
de uma aventura crítia(séculos XIX e XX)/ Daniel Bensald
tradução de Luiz Cavalcanti de MenezesGuerra.
- Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1999.
512p. 2. Os tempos em discordância (A propósito do marxismo analí.
taco), 63
Tradução de: Marx I'intempestif : grandeurs et misêres
d'une aventurecritique MARX tEÓRico DA NORMA HISTÓRICA?.67
Inclui bibliografia
ISBN 85-200-04844. CORRESPONOÊNCIAS
E 0TiMAUOAOE. 7.f
INTERMITÊNCIAS
E CONTRATEMPOS,
80
1. Marx, Kart, 181 8-1883 - Crítica e interpretação.
2. Marxismo- 3. Filosofia marxista. 4. Ciência política. NECESSIDADEHiStÓRiCA E POSSIBILIDADESEFETivAS. 84
1.Título.CaIrIa PROGRESSO
soB BENEFÍCIODe INVENTÁRIO,93
CDD - 335.4
98-1649 CDU- 330.85
3. Uma nova escuta do tempo, í03
Todos os direitos reservados.Proibida a reprodução, armazenamento ou SONHOS E PESADELOSDA HISTÓRIA. Í 05
transmissão de partes destelivro, atravésde quaisquer meios, semprévia
autorização por escrito. o roMPOCOMOREI.AÇÃO
SOCIAL.
l ll
TEMPO MENSURADO E MENSURAN'rE. ] Í8
lk)dos os direitos desta edição adquiridos pela BCD União de Editoras S.A.
Av Rio Branco, 99/ 20' andai 20040-004, Rio de Janeiro, RJ, Brasil CRÍTICAONTOLÓGICA E CRÍTICA MESSIÂNICA. 123
Telefone (021) 263-2082. Fax / Venda (021) 2634604 A POLínCA PASSA DORAVANTE À FRENTE OA HISTÓRIA. :13Í

PEDIDOSPELO REEMBOUO POSTAL:

Caixa Postal 23052, Rio de Janeiro, RJ, 20922-970 SEGUNDA PARTE:'A LUTA E A NECESSIDADE

Impresso no Brasil MARXCR[TICODARAZÃOSOCIOLÓGICA


1999
MARX. O INTEMPESTIVO SUMÁRIO

41IAs c]assesou o sujeito perdido, ]4] 9. A angústia da lógica histórica, 363


À SOCIOLOGIA QUE NÃO SE POOL ACHAR. ]44 CAUSAUOADE HISTÓRICA E POSSIBIUDADE 0BJETiVA. 366
PRODUÇÃOE REL.AÇÃO
DE EXPLORAÇÃO.
Í 53 CAUSA
INTnANSiTiVA
EuvncNECESSIDADE.
37]
CIRCULAÇÃO E TRABALHO PRODUTIVO. Í55 NECESSIDADE
WEcANiCA E NECESSIDADE
PERMISSIVA.37.S

A REPRODUÇÃOGLOBAL E O ENIGMA DO CAPÍTULO INACABADO. ]S8 NECESSIDADES iNCUNANTeS E LEIS TENDENCIAIS.393


CLASSES
SOCIAISE REPRESENTAÇÃO
POLITICA,Í 64

10. Coreografias caóticas, 399


5. Lutar não é jogar (Marx em face das teorias dos jogos e da OSTRAÇOS
OOCAOS,402
justiça), :Z75 A CRISE DAS CIÊNCIAS CUROPÉIAS. 406
UMA CONCEPÇÃONÃO JURÍDICA 0A JUSTIÇA, iZ79 LÓGICAS TUnBILHONANTES. 4Í3
JOGO FINITO. JOGO INFINITO. Í 87 o BAILE OE MÁSCARAS DAS MERCADORIAS. 420
AQUÉU E ALÉM DA JUSTIÇA.19Í
ADEUS. VALOR, TRABALHO ABSTRAT0-« 20Í ll. Os tormentos da matéria (Contribuição à crítica da ecolo
OS EQUÍVOCOS DA EQÜiDAOE. 2Í3 gia política), 43=Z
o DETERMINISMOSEREVOLTA.223 UM SER NATURAL HUMANO. 434
EM BUSCA DA ENERGIA DISSIPADA. 453

6. Mas onde estão as classesde outrora?, 229 TRABALHO FÍSICO.TRABALHOSOCiAl. 464


UMA TEORIA GERAL DA EXPLORAÇÃO,232 0ESRAZÓESECOLÓGICASDA RAZÃO ECONÓMICA. 474
O PORRETEDAS CLASSESMÉDIAS.244 A MISERÁVELMEDIDA OETODA RIQUEZA.482
QUEM EXPLORAQUEM?. 25Í
o PnoLerÁRio NÁO É MAIS VERMELHO?.259 BIBUOGRAnA.497

TERCEIRAPARTE:A ORDEMDA DESORDEM


MARX CKITiCO DA POSITIVIDADECIENTÍFICA

7. Fazer ciência de outra maneira, 281


A CIÊNCIA NO SENTIDO ALEMÃO. 284
AS FONTES DA CIÊNCIA ALEMÃ. 29Í
PERMANÊNCIAS
DACRÍTICA.
3Í 2

8. Uma nova iminência, 331


TOTAUDADE ABERTA E coNTRADiçÃO. 335

A DETERMINAÇÃOCOMO Arnv,4çHO, 342


UMA CIÊNCIADO CONCRETO
PARTICULAR.349
ORDEM LÓGICA. ORDEM HISTÓRICA. 353

6
MARX. O INTEMPESTIVO

futuro", ela significa então um efeito de "causalidade inversa", Cujas


condições a vir determinam a orientação do processo.

Considerando o capital como uma relação social dinâmica em desequi-


líbrio crónico, Marx entrevê, sem ainda poder decifra-los, "os traços do
caos sobre a areia do tempo".3s Sobre a via de preenchimentos e de sin-
gularidades históricas inacessíveisao aperfeiçoamento puro e simples do
cálculo, sua ciência é inicialmente uma crítica das formas mercantis.
Senão se trata somentede interpretar o mundo, de que se trata
então? ll. Os tormentos da matéria
Certamente de muda-lo.
(Contribuição à crítica da
Marx pareceàs vezesanunciar o devir ciência da filosofia, como
se a certeza positiva das luzes devesselevar definitivamente a melhor
ecologia política)
contra as obscuras incertezas hermenêuticas. Seu prefácio ao Capita/
começa assim por render uma vibrante homenagem às leis naturais da
física, mas ela acaba por sublinhar o caráter polêmico do conheci-
mento enquanto produção social: "No terreno da economia política,
a livre pesquisacientífica encontra bem mais inimigos que em outros
campos de exploração." Prisioneira das servidõesterrestres, essalivre
pesquisa, de acordo com as imagensheroicizadas da ciência e dos sá-
bios, permanecetrivialmente sobre "o campo de batalha", onde ela
encontra "as paixões mais vivas, mais mesquinhase mais odiáveis do
coração humano, todas as fúrias do interesse privado".3õ Científica
num certo sentido e numa certa medida, a crítica da economia políti-
ca está assim condenada a enfrentar as ilusões ideológicas da opinião
sem poder escapar completamente aos logros do fetichismo. Ela evoca
e chama as sutilezas a vir de uma "mecânica orgânica", o conheci-
mento ondulante de uma desordemordenada, em suma, uma outra
maneira de fazer ciência.

3slan Stewart, Doeujo#e-r-il aux dési, op. cit.


3óKarl Marx, prefácioà primeira ediçãodo Capital, OP.cit.

430
Mau gênio produtivista ou anjo da guarda ecologista?
Que façam dele o responsávelpelo produtivismo burocrático e
suascatástrofesou sepretenda torna-lo um partidário incontestedos
verdes, sempre se encontrarão em Marx trechos suscetíveis de alimen-
tar um e outro discursos. Dos escritos da juventude às Noras sobre
Ado/pb Wagmer,sua obra não é certamentehomogênea.Mas, em
termos da época presente, caminhos há muito obstruídos pelo pesado
edifício das vulgarizações didáticas começam novamente a se abrir.
Com toda a certeza, seria anacrónico exonerar Marx das ilusões
prometéicas de seu tempo Seria igualmente abusivo fazer dele um pre-
gador descuidosoda industrialização a qualquer preço e do progresso
em sentido único. Não se teria condições de confundir as questões que
ele levantou com as respostas oferecidas ulteriormente pelos epígonos
social-democratas ou stalinianos. Neste, como em outros pontos, acon-
tra-revolução burocrática na URSSmarca uma ruptura.
As pesquisasde Vernadski, Gause, Kasharov, Stanchiski davam
passagema uma ecologia pioneira, que teria podido integrar-seàs
promessasde "transformação do modo de vida" dos anosvinte. As
datas são eloquentes. Em 1933, Stanchiski foi preso, sua aventura
interrrompida, suasidéias banidas das universidadessoviéticas.Os
delírios produtivistas da coletivização forçada, os entusiasmos pela
industrialização acelerada,o frenesi stakhanovista tornavam-seincom-
patíveis com as inovações de uma ecologia crítica. No momento em
que os ideólogos do regime inventavam "a construção do socialismo
num só país", ela teria obrigado a pensaro desenvolvimentoda eco-
nomia soviética dentro das exigências de seu ambiente mundial. Teria

433
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

exigido escolhasdemocráticasde prioridadese do modo de cresci- mais exatamente, seu "ser natural", significa que sua força de trabalho
mento, em absoluta contradição com o confisco do poder e a crista- consumida no processo de produção é, originalmente, força vital. O ser
lização dos privilégios. Enfim, uma certa idéia da interdependência natural é "um ser natural humano". Nessa humanidade, a determinação
entre o homem e a natureza, uma consciência de sua dupla determi- natural nega-sesemseabolir. O fetichismo da mercadoria não secontenta
nação social e natural teriam batido de frente com o voluntarismo em mudar as relações humanas em coisas: ele degrada igualmente o natu-
burocrático que fazia do homem o "capital mais precioso". ral à condição de "bestial". A inversão dos papéis e dos valores é geral:
Depois da SegundaGuerra Mundial, o renascimento da ecologia "Temos assim,como resultado, que o homem não sesentemais livremen-
crítica contribuiu para desfazera crençanum fim redentor da história. te ativo senão em suas funções animais, comer, beber e procriar, quanto
em que a humanidade reconciliada consigo mesma desfrutaria pela eter- mais ainda na moradia, nas coisas da casa etc., e que, em suas funções de
nidade da plenitude dos tempos. Ao perfurar essessedimentos ideológi- homem, ele não sesente mais que animal. O bestial toma-se o humano e
cos para encontrar novamenteo filão teórico abandonado, as interroga- o humano torna-se o bestial. Comer, beber, procriar são certamentetam-
ções atuais permitem compreender de outro modo as de ontem. bém funções autenticamente humanas. Mas, separadas abstratamente do
resto do campo das atividades humanas e tornadas assim o fim último e
único, elas são bestiais."z Em lugar de enriquecer a humanidade, as carên-
cias determinadas pelo capital são unilaterais e compulsivas. São elas que
UM SERNATURAL HUMANO possuem o homem, e não o inverso. Essa liberdade negada remete-o não
mais a uma bestialidadeoriginal ou natural, mas a uma bestialidadeso-
Marx concebe a relação de produção, indissociavelmente, como uma cial, que pode muito bem revelar-semais feroz ainda.
relação dos homens com a natureza e dos homens entre si, mediada pelo A negaçãoda humanidade no homem coloca a reconquista de sua
trabalho. A irredutibilidade do vivente não desaparecena socializaçãoda naturalidade como condiçãode sua emancipação.Esseo motivo por
natureza. Assim, "a primeira premissade toda a história humana é com que, depois de ter afirmado a identidade do humanismo e de um
toda a certeza a existência de sereshumanos vivos individuais". Desde os naturalismo consequente, o jovem Marx designa simplesmente o co-
À4a scritos de ]844 a natureza é designada como "o corpo inorgânico munismo como um "naturalismo consumado"
do homem". Enquanto ser natural humano, "o homem é imediatamente Essa problemática conduz à crítica da economia enquanto campo
ser díz nzafureza". De um lado, enquanto ser nzafurn/ z/iz/o,ele é "provido de racionalidade parcelar, à autonomia ilusória. A capacidadedo ho-
de forças naturais, de forças vitais". De outro lado, enquanto ser natural mem vivo em produzir trabalho excedenteremeteem última análisea
"de carne e osso, sensível, objetivo, ele é, tal como os animais e as plantas, um fato "extra-económico": "0 único bafo extra-económico é que o
um serpassivo,depelzdenfe e /imolado".íA fórmula do Cáfila/, ao con- homem não precisa de todo o seutempo para produzir artigos de pri-
siderar o trabalho o pai dasriquezasmateriaise a naturezasuamãe, não meira necessidadee que ele dispõe de tempo livre além do tempo de
é portanto lançada ao acaso: ela se inscreve numa estrita continuidade. trabalho necessário à sua subsistência, de tal modo que ele pode even.
A abordagem do jovem Marx inaugura com efeito o longo percurso tualmente efetuar um trabalho excedente."s Marx insiste com notável
crítico da economia política. O fato de o homem pertencer à natureza ou,
2 Kart Marx, Àfa scrífs de 1844, op. cit., p. 61
1 Karl Marx, À an scrils de 1844, Paras,Éditíons sociales, 1962, pp. 136-138. 3 Kart Marx, Gm#drisse, 1, op. cit.

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MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

constância nessa exuberância do trabalho vivo, cuja impetuosidade à sua própria reprodução manifesta a um só tempo uma propriedade
vai mais longe que o cálculo económico e faz rebentar a camisa-de- enigmática da "força vital"
força de sua medida. 4) A "dependência" irredutível do homem para com sua determina-
Em ação desde1844, essalógica não se extingue com a liquidação çãoprimeira manifesta-sena carêncianatural, ponto de partida de qual-
da consciência filosófica. Ao contrário, ela continua o seu caminho. quer sistema de carências.Ele exprime a relação de incompletude do
1) Colocando o princípio de um monismo radical, Marx afirma o homemcom a natureza, enquanto relação da parte com o todo. Suafi-
primado do vivente e humilha o espírito convocado à sua miserável nitude não cessade evocar-se nele pela falta. E antes de tudo pela fome,
dependênciapara com a matéria. Primeiro comer e vestir-se, diz He- inextinguível reivindicação do corpo que não pára de trazer o espírito
gel. O homem é inicialmente um corpo que anda e que respira, reforça para a terra e de força-lo a "confessar" sua miserável condição material.4
Marx. "Na origem ele é natureza", "um ser natural objetivo". Tudo 5) O que foi rebaixadodeveser realçado.Marx ressaltao anjo já
parte daí. prestes a tornar-se besta. O homem é um ser natural, mas é "um ser
2) As antinomias filosóficas clássicas (entre materialismo e idea- natural humano". Nessahumanidade, a natureza nega-sesem se apa-
lismo, entre natureza e história) resolvem-senesse monismo radical. gar. Ela funde-se e diferencia sem romper-se. Da mesma forma que o ser
Marx rompe o círculo vicioso de oposiçõesfalaciosas. Enquanto uma e o nada se unem no devir, o natural e o humano se unem na história,
certa ecologia contemporânea ressuscitaa querela do naturalismo e que é o devir específico de ambos. Pois "nem a natureza no sentido
do humanismo, ele sugere, ao contrário, que "naturalismo conseqüen- objetivo, nem a natureza no sentido subjetivo existem imediatamente de
te" e humanismo são uma coisa só. A contradição formal entre ma- uma maneira adequada ao ser humano". Em sua particularidade, dis-
terialismo e idealismo resolve-seem sua unidade. Do ponto de vista tinta de sua universalidade natural, o homem é portanto especificamen-
dessa unidade íntima, "só o naturalismo é capaz de compreender o te determinado por sua historicidade: a história é seu ato de nascimento.
ato da história universal". Decorre daí uma reviravolta da relação entre Daí por que, longe de opor-se à natureza numa antinomia insuperável,
sujeito e objeto, uma transformação das próprias noções de sujeito e "a história é a verdadeira história natural do homem"
subjetividade, de objeto e objetividade: "Um ser que não tem nenhum Essa atitude dinâmica do jovem Marx conserva-se para além dos
objeto fora de si não é um ser objetivo." A objetividade supõe a in- remanejamentosteóricos ulteriores. Sob todas as formas da produção, a
completude e a alteridade... do sujeito. força de trabalho humana é sempre concebida como "exteriorização de
3) O fato de o homem pertencer originalmente à natureza ou, de uma força natural". No trabalho, o homem "se opõe enquanto poder
maneira mais exala, seu "ser natural", implica igualmente que ele se natural à matéria da natureza". Ele ageenquanto homem "exteriormen-
acha antes de tudo "provido de forças naturais, de forças vitais". O te sobre a natureza e a modifica, modificando ao mesmo tempo sua pró-
que aparececomo "força de trabalho" no processo de produção é pria natureza", e "desenvolve as potencialidades que ali repousam".s
realmente, em sua origem, "força vital". Essa determinação natural
persistena determinaçãosocial da força de trabalho. Qualquer que 4Ver DionysMascolo,l.e Comm#nisme,répol#rfo et çomm icalfo o# la di-
seja o seu orgulho, o homem continua sendo animal e continua sendo alecffq#e des ua/e ts et des besoi#s, Paria, Gallimard, 1953; Agnês Heller, l.a
Tbéorie des besof#s c&ez Àfarx, Pauis, UGE, 1978; Philippe Bayer, Besoin radial
planta. Enquanto o lucro parece surgir "ex-/zibl/o", a teoria da explo- ef co#tfadicfio radlcale cbez À4arx, texto fotocopiado, Poitiers, fevereiro de 1992.
ração e da mais-valia elucida no Cáfila/ o mistério dessenada. Mas s Karl Marx, l,e Capital)livro 1, Paria,Flammarion,"Champô', t. 1, 1985,
a capacidade da força de trabalho em fornecer mais que o necessário P. 139

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MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

A crítica de um em-si natural, não medrado pelo homem, e da gos; e utilizar como matérias-primas suas novas qualidades; o desenvol-
autonomia alegada da consciência para com a natureza, é aqui fron- vimento máximo das ciências da natureza; a descoberta,a criação, a
tal. A história não é nem um conjunto caótico de fatos (como em Scho- satisfação de novas carências surgidas da própria sociedade"
penhauer), nem uma estrutura significativa unificada (como em He- A produção baseadano capital cria ao mesmotempo a indústria
gel). O mundo enquanto totalidade articulada não está submetido a universal e um sistema de exploração universal das propriedades na-
nenhuma idéia unitária que Ihe conferida um sentido. Factualidade turais e humanas. Nada mais parece ter um valor superior em si ou
antiutópica por excelência,último chamadoda finitude natural, a morte ser justificado por si fora dessecírculo da produção e das trocas so-
ilustra a impotência de qualquer metafísica e de qualquer teodicéia. A ciais. É portanto somente o capital "que cria a sociedade civil burgue-
estelimite detém-sea determinação própria da humanaliberdade.É sa e desenvolvea apropriação fzíuersa/da fzal reza e da própria
essatambém a razão por que a morte conserva-sefora do campo fi- conexão social pelos membros da sociedade". Daí sua "grande influên-
losófico. Há muita coisa para dizer sobre ela, mas pouca para pensar. cia civilizadora". Ele gera um nível de desenvolvimentosocial em
relação ao qual todos os desenvolvimentos anteriores aparecem como
O caminho aberto pelos À4a/zuscri]osde ]844 e as Teses sobre uma idolatria natural local e limitada. Com a produçãocapitalista
Fezlerbac# desemboca dez anos mais tarde nos desenvolvimentos ma- propriamente dita, "a naturezatorna-se um mero objeto para o ho-
gistrais dos GTKndrisse.A criação de valor excedente absoluto pelo mem, uma simples questão de utilidade, ela deixa de ser reconhecida
capital leva o círculo da circulação a ampliar-se constantemente. A como uma potência por si; e mesmo o conhecimento teórico de suas
produção dominada pelo capital implica portanto "um cücu/o flz- leis autónomas não aparecesenãocomo um ardil visando a submetê-
cessanfemenfeamp/fado da Gire /anão, tanto no caso em que esse la às carências humanas, seja como objeto de consumo, seja como
círculo cresça diretamente, quanto no caso em que se transforme meio de produção". Essadinâmica do capital põe de cabeça para baixo
um maior número de seuspontos em pontos de produção". A ten- "as barreiras e os preconceitos nacionais". Ela derruba "os obstáculos
dência a criar o mercado mundial se acha assim "imediatamente que creiam o desenvolvimento das forças produtivas, a extensão das
implícita no conceitode capital". carências,a diversidade da produção e da exploração e o intercâmbio
A produção de valor excedentebaseadano aumento das forças das forças naturais e intelectuais"
produtivas exige, por outro lado, "a produção de novo consumo", pri- Se ele supera "de maneira ideal" cada obstáculo dessetipo, o
meiramente pela "ampliação quantitativa do consumo existente": em capital "nem por isso o supera realmente". Sua produção "move-se
segundo lugar, pela extensão das carências existentes a um círculo mais em contradições que são constantementesuperadas,mas também
amplo; em terceiro lugar, pela "produção de novas carências" e a "cri- constantemente colocadas". A universalidade a que ele aspira choca-
ação de novos valores de uso". De onde "a exploração da natureza se com os limites inerentesà sua própria natureza, que fazem dele,
inteira", "a busca de novas qualidades úteis nas coisas", "a troca em num certo momento de seu desenvolvimento, "o obstáculo maior a
escala universal de produtos fabricados sob todos os climas e em todos essamesmatendência à universalidade".ó
os países", os novos "tratamentos (artificiais) aplicados aos objetos Essetexto decisivo penetra no âmago da contradição que assom-
naturais" para dar-lhesnovos valores de uso.De onde, enfim, "a exp/o- bra o modo de produção capitalista:
rago da Terra em lodos os sefzfldos,tanto para descobrir novos objetos
utilizáveis quanto para dar novas propriedades de utilização aos anti- 6 Kart Marx, À4aHuscrilsde 1857-]858, op. cit., t. 1, pp. 346-349

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MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

1) A criação de valor excedenteabsoluto constitui a chave da nha um dinamismo fecundo, levando à "busca de novas qualidades
aceleração histórica inerente à reprodução ampliada e à mundializa- úteis nas coisas" e à universalização das carências(logo, da própria
ção da produção mercantil generalizada. Elas estão "imediatamente humanidade) para além das barreiras naturais e das particularidades
implícitas no conceito de capital". Em 1858, uma tal compreensão climáticas. Disso resulta uma curiosidade insaciável, uma busca febril
manifesta uma surpreendentecapacidade de antecipação teórica. de "novas qualidades" na matéria, um desenvolvimento sem prece'
2) O primado do valor de troca, em sua unidade contraditória dentes da ciência e das próprias carências sociais. A aplicação à natu-
com o valor de uso, permite um distanciamento (um "desenraízamen- reza da noção de exploração nem por isso teria como ser fortuita. Ela
to") em relaçãoà naturezae a suasexigências.O "momento" da referencia uma contradição e sugerecaminhos, logo abandonados pela
produção subordina-seao do comércio, tornado mediação necessária ortodoxia, que Walter Benjamin soube encontrar no momento cm que
entre produções imediatamente heteronâmicas e mediatamente inter- o maior perigo aguçavao sentido do risco: "Tal como é concebido no
dependentes.Daí resulta uma metamorfose da agricultura, que se presente,o trabalho visa à exploração da natureza' exploração que
emancipa de suascondições e regulaçõesnaturais para cair sob a lei com ingênua suficiência costuma-se opor à do pro]etariado]-.]. À
implacável da produção mercantil. Pode-selamentar que Marx não idéia corrompida de trabalho corresponde a idéia complementar de
tenha estendido essacompreensãoàs matérias-primas, à energia, ao uma natureza que, de acordo com a fórmula de Dietzgen, aí está,
meio ambiente. Lembremosentretanto, para seu desencargo,o lugar grátis." Essasconcepçõescomplementaresdo trabalho e da natureza
ainda determinanteda agricultura nos paísesmais desenvolvidosde opoe'm-se à idéia de que "os produtos aproveitam ao trabalhador" e
seu tempo e os limites da industrialização. O CaP/la/ é anterior ao à ideia de um trabalho que, "longe de explorar a natureza", estaria
aparecimento do imperialismo financeiro moderno.7 em condições de "fazer nascer dela as criações virtuais que repousam
em seu seio".s Portanto, um trabalho que já não seria uma atividade
3) A "produção de valor excedente relativo" e a caça aos ganhos
de produtividade não exigem apenas uma ampliação constante da esfera sob coaçãona verdadejá não seria nem mesmo um trabalho, mas
da produção e uma fuga para a frente produtivista, mas também uma uma livre atividade criadora.
ampliação simultânea proporcional da esfera da circulação e uma 5) Sob o látego do capital, a formação de um "sistema de explo-
metamorfose constante das carências. O aumento ilimitado da produ- ração universal das propriedades naturais e humanas" aciona um
acesso de dessacralização da natureza. Seessa dessacralização toma
ção não pode com efeito ser absorvido só pela extensão quantitativa
do consumo. Ele leva à "produção de novas carências e à descoberta inelutavelmente a forma alienada do desencantamento, a constatação
e criação de novos valores de uso". A lógica própria do capital anun- não comporta nenhum traço de nostalgia passadistapara com um
cia assim o surgimento da sociedade de consumo. mundo encantado. O capital apenascria, sob as tomas ainda religio-
4) Esseturbilhão, onde produção e circulação acarretam-se mu- sas do fetichismo, as precondições de uma secularização da existência
tuamente, tem por conseqüência inédita "a exploração da natureza humana liberada de seus pesadelos místicos.
inteira". O termo não revesteaqui um sentido necessariamente
pejo- 6) Levado por seu impulso, esseentusiasmo prometéico passadire-
rativo por analogia com a exploração do trabalho humano. Ele subli- tamente da desmitificação da natureza à sua "apropriação universal",
louvando na socialização integral das relações humanas a influência

7 Ver Ted Benton, "Marxism and Natural Limits', New l.e# Rwfew, novembro
de 1989. ' ' BWalter Benjamin, Tbêsessur le concebi d'bisfoire, op cit., teseXL

441
440
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

unilateralmente "civilizadora" do capital. Por muito tempo suportada apressadosatribuir-lhe uma vontade sem rédeas de possuir e de domi-
como um poder misterioso e tirânico, a natureza fica enfim reduzida a nação da natureza. Em contraste com os socialistas vulgares e produ-
"mero objeto para o homem" e a "uma mera questão de utilidade". A tivistas, ele entretanto jamais considera que a natureza seja ofertada
própria ciência finge submeter-se às suasleis para melhor roubar-lhe "de graça". Assim, "a primeira premissade toda a história humanaé
seussegredose coloca-los a serviço da produção e do consumo. com toda a certeza a existência de seres bwmalzos pipos f dfufduals. O
7) Um dos índices essenciaisda civilização reside em seu grau de primeiro fato a estabeleceré portanto a organizaçãofísica dessesin-
universalização. A "tendência a criar um mercado mundial" derruba divíduos e as relaçõesque daí resultam com o resto da natureza. Evi-
inelutavelmente as barreiras estreitasda tradição e dilacera a linha de dentemente, não podemos entrar aqui nem na verdadeira natureza física
horizonte. Ela parecemandar para o espaço)irremediavelmente,os do homem, nem nas condições naturais em que a humanidade se acha
"preconceitos nacionais" e p6r um termo à divinização mágica da mergulhada -- geológicas, hidrográficas, climáticas, e assim por dian-
natureza. Voltamos a encontrar aqui os acentos admirativos do Ma- te. Todo escrito histórico deve partir dessas bases naturais e de suas
m#bsiocomu#isla diante da energiado capital em destruir e revolu- modificações no curso da história pelo viés da ação dos homens".P
cionar "constantemente tudo isso", em liberar a extensão e a diversi- Contrariamente ao que pretende Lukács, a determinação natural
ficação das carências. Pois o homem não é uma essênciaintemporal, não se extingue na socialização histórica. "Corpo inorgânico do ho-
mas a unidade de suas próprias carências, que o determinam dentro mem", a naturezaaparenta«se,no jovem Marx, à substânciaspinozista.
de uma relação de troca e de enriquecimentorecíproco tanto com o Dessemodo, ele não reduz apenasao trabalho as fontes da riqueza
seu meio natural quanto com o seumeio social. O desenvolvimento material. A fórmula segundoa qual o trabalho é seu pai e a terra sua
quantitativo e qualitativo dascarênciasé portanto um enriquecimen- mãe, reforçada pela demonstração darwiniana da continuidade do bio-
to de suapersonalidadegenéricae individual. Nenhum traço aqui de lógico e do cultural, é retomada literalmente por Engels:"0 trabalho,
robinsonada. Nenhuma nostalgia por uma humanidade original vi- dizem os economistas, é a fonte de toda riqueza; e]e o é efetivamente [-.]
vendo em harmonia elementarcom a natureza. conjuntamente com a natureza que Ihe fornece a matéria que ele trans-
8) Nem por isso Marx se lança a uma apologia cega do "progres- forma em riqueza."toAs Glosasmargfnlaisao programado pa#fdo
so". O desenvolvimento das carências é certamente um enriquecimen- op«arfa a/elzzãoinsistem ainda mais no assunto: "0 trabalho não é a
to em potência da personalidade. Mas sua determinação pelasexigên- fonte de toda a riqueza. A natureza é tanto a (ante dos valores de uso
cias do capital, pela alienaçãodo trabalho e pela deificaçãomercantil quanto o trabalho, qae não é outra coisa senão a manifestação de uma
faz delas carências mutiladas. A dessacralização da natureza esboça Óoçu (&z al#reza,a força de trabalho humana."''
assim um gesto emancipador para logo ceder à tirania de novos feti-
ches e ao desencantamento patente das relações mercantis. A univer- 9Karl Marx, L'ldéo/agir aZlemande,
op. cit.
salização em tela é uma universalização truncada, que não cessade se io Friedrich Engels, DfalecrfqKe de la nal#re, op. cit., p. 171. Essa aborda-
negar, chocando-secontra as barreiras do capital tornado em si mes- gem dispõe Marx a acolher favoravelmente as intuições ecologistas de Liebig.
mo seu próprio limite. Rejeitando ainda a noção de rendimentos decrescentes,ele é com efeito sensível
à distinção entre agricultura de espoliação e agricultura de recuperação,tanto
Essesdesenvolvimentos ilustram as variações de Marx sobre o como à oposição entre grande exploração rural e agricultura em pequenaescala,
conceito de natureza. Seudesgosto precoce pelo naturalismo român- grandes aglomerações urbanas e urbanização dispersa.
tico e suas mitologias duvidosas é o que basta para muitos exegetas H Karl Marx, Crifiqwe d programme de Caiba, op. cit.

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MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

Também ele nunca foi moderno.ís


Alfred Schmidt defendede maneira convincente que para Marx a
natweza é irredutível a uma categoria social: "Entre as propriedades
inatas da matéria, o movimento é a primeira e a mais importante, não O discurso vulgar sobre a crise do marxismo aprisiona Marx no limi-
apenas enquanto movimento mecânico e matemático, mas mais ainda tado horizonte de seuséculo,fixando-o em um "pódio epistemológi-
como instinto, espírito vital, força expansiva,f07memloda l zaféria co" caduco.Ele seria o avatar tardio de uma filosofia estreitamente
determinista e mecanicista. Essa caracterização sumária choca-se de
(para empregar a expressão de Jacob Bõhme)[-.]. Na seqüência de
sua evolução, o materialismo torna-se estreito, o mundo se#süe/ per- frente com a lógica intrínseca e a arquitetura do Cáfila/.
de o seu emcatltooriginal e torna-se a materialidade abstrata do geâ- A partir da SagradaÁamí7/a, uma concepçãonão mecânicada ma-
melra. O movimento físico é sacrificado ao movimento mecá#ico ozl téria inspirada da crítica hegeliana do entendimento opõe-se à geometri-
matemático. O materialismo se faz misantropo. Para poder dar com- zação abstrata e guarda suas distâncias "da ciência francesa da nature-
bate ao espírito misantropo e desencarnado em seu próprio terreno, o za". A referência a Jacob Bõhme e às fontes místicas da dialética alemã
materialismose vê forçado a mortificar a própria carne e tornar-se não tem nada de fortuito. Os mistérios da economia capitalista não
asceta.Ele apresenta-secomo um ser de razão, mas desenvolve igual- teriam como ser resolvidos apenasno terreno da economia.
mente a lógica inexorável do entendimento."íz Os textos de juventude O trabalho testemunhao "tormento da matéria", a irrupção dolo-
desenvolvem com efeito uma concepção não mecânica da matéria. A rosa da vida na não-vida: "Enquanto criador de valores de uso, enquanto
trabalho útil, o trabalho é portanto uma das condições da existência do
mecânica e as matemáticas são momentos do movimento, cuja tota-
lidade concreta implica uma lógica do vivente, evocada pelas noções homem independente de todas as formas sociais. Ele constitui uma me-
de impulso, de espírito vital, de força de expansão. diação natural extema necessáriaentre homem e natureza."i4 No traba-
Não haveria como a natureza ser exterior e subordinada ao huma- Ihó, o homem não é apenasobjetivado, mas ainda alienado. Seucorpo é-
no, tanto quanto o homem não poderia erigir-seem sujeito dominador. Ihe inteiramente roubado, sua existência é reduzida à sua função
A oposição entre sujeitos de direito e objetos de conhecimento é, de económica. A separaçãodo trabalho junto com suascondições naturais
leva à aniquilação da condição natural do homem enquanto homem que
saída, estranha à unidade diabética do sujeito e do objeto. Esse o motivo
por que não é quase concebível teoricamente "intemalizar" no cálculo vive da terra e de seu trabalho. No entanto, "em si mesmoo tempo de.
económico uma natureza que já antes dali foi excluída, abstrata e arbi- trabalho não existe senãosob a forma subjetiva da atividade": "Subjeti-
trariamente. O desenvolvimentolüstórico é um processogeral de hibri- vamente, isso significa que o tempo de trabalho do operário não pode ser
dação(de naturalização/humanização). Os "objetos híbridos"(ao mes- trocado diretamente contra nenhum outro."ts Para que essatroca geral
mo tempo forças naturais e sociais) e a compreensão da "ciência como se tome possível, "ele deve tomar uma forma diferente de si mesmo". Em
relação social" vão assim ao encontro da rejeição inaugural, desdeas uma palavra: tornar-se abstrato, objetivar-se, alienar-se,tomar-se traba-
Tesessob e Fe «bac#, do materialismopassivoe do atavismomístico. lho geral abstrato que faz dos indivíduos "simples órgãos do trabalho"
As categoriaspráticas de Marx são "híbridas" de matéria e de
i3 Ver a tal respeitoBruno Latour, Nows H'auons/amais éfémover e$,Pauis,La
conhecimento.
Découverte, 1991. Consultar igualmente os artigos de Bruno Latour e de Cathe-
rine Larrêre no número5 da Écologie et polfliqKe, 1991.
155. Ver Alfred Schmidt, l,e Coizcepf í4 Kart Marx, l.e Capa/al,livro 1, t. 1, op. cit.
is Karl Marx, Grw drisse, 1, op. cit., p. 153.

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MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Então, "o tempo é tudo, o homem não é nada". No capital, o morto apreendeo vivo.
"Quando muito, a carcaça do tempo.-" No trabalho, a vida rebela-seobstinadamente contra a morte que
Pela mediação do trabalho abstrato, o elemento vivo e individual a espreita.
de uma singularidade irredutível à abstração económica, toma-se medi.. Os desenvolvimentos, à primeira vista anedóticos,do Cáfila/ sobre
(&zcomum. Ele acabará se rebelando, pois, enquanto relação necessária a morte da jovem modista Mary-Ann Walkley ali encontram,ao contrá-
do homem com a natureza, "a força de trabalho de um homem é pura rio, perfeitamenteo seulugar. Essafenomenologiada vida e da morte no
e simplesmente aqui/o q e #á de z//uo em seu imdfuí'2 o". Ao insistir na campo do labor participa da desmistificaçãonecessária:"Para perceber
individualidade do vivente, Marx coloca o fundamento de toda resistên- melhor a lei da acumulação capitalista, devemos considerar por um
cia à universalizaçãoabstrata e formal. A "força vital" mostra-sesob a momento a vida privada [do traba]hador] e dar uma olhada em sua ali-
força de trabalho reduzida à sorte de mercadoria e submetida ao despo- mentação e sua moradia."i' Pois "esse mundo tem por base a existência
tismo da empresa. As categorias económicas nunca são portanto auto- do trabalhador", e o capital tem "pelo sanguedo trabalho vivo" uma
suficientes.O valor de uso nega-sdno valor de troca. A mudançada "sede de vampiro". A exploração é antes de tudo submissão e mutilação
teleologia vital em teleologia económica revira-se por sua vez. A impo- dos corpos vivos. De onde certos desenvolvimentos do Gzpíla/ que mais
tência da circulação para produzir uma valorização do valor remeteao parecemuma martiriologia do proletário torturado em sua carne.
laboratório secretoda produção,ou seja,ao laboralórío secretodo
corpo que produz mais-valia. A noção de "troca orgânica" ou de metabolismo(Sfo/7üecbse/) apa-
Michel Henry vê nisso o sinal de uma dissociação entre "uma esfera rece desdeos Ma scrilos de í844. Ela remete a uma lógica do ser
da aparência e uma esfera secretada subjetividade", onde o próprio vivo que contraria a causalidade mecânica e anuncia a ecologia nas-
capital seria produto.íó A capacidadedo homem vivo em produzir cente. Marx aí comparece pela herança da filosofia alemã da natureza
trabalho excedenteseria, em última análise,um fato "extra-económi- concebida como totalidade em movimento e unidade do sujeito e do
co", "o único fato extra-económico", como afirma Marx. Essa capa- objeto. Contemporâneos da vedação do Capffal, os livros de Jacob
cidade de dispor do tempo além da estrita exigência de reprodução Moleschott(Pbysíologie desSfo/7üecbse/i# PZanze#und Tlere#, 1851;
remeteria portanto a uma propriedade decisiva do vivente(da nature- Der Kreisla /des l,ebens, 1857; Die Eimbeff des Lebe#s, 1864) defen-
za). Essa exuberância do "trabalho vivo" convoca o enigma da deter- dem um materialismo científico-naturalista inspirado na filosofia da
minação natural: "0 trabalho é um fogo vivo que molda a matéria, natureza de Schelling. Eles analisam a natureza como um grande pro-
ele é aquilo que há de perecível e temporal nela, é a informação do cesso de transformação e de troca. Influenciado por essatradição, Marx
objeto pelo tempo vivo. [-.] O traba]ho vivo deve reapreender esses considera a troca orgânica entre o homem e a natureza, mediada pelo
objetos, ressuscita-losde entre os mortos e convertê-los de utilidades "fogo vivo" do trabalho, como "o nó estratégicodo ser social".t8
possíveis em utilidades eficazes. Lambidos pela chama do trabalho,
transformados em seusórgãos, chamados por seu sopro a preencher i7 Karl Marx, Le Capital, livro 1, t. 1, op. cit., P. 427.
i8 André Tonel, HPhilosophie de la praxis et ontologie de I'être social', cm
suas funções próprias, eles são também consumidos."
Idéologie, symbollq#e, onlologie, Paria, Éditions du CNRS, 1987. Alfred Schmidt
observa que esseconceito de troca orgânica introduz em Marx uma compreensão
ió Michel Henry, Àlan, # e p#f/osop#fe de la ráz/iré, Pauis, Gallimard, "Tel', nova das relaçõesdo homem com a natureza, estranha ao horizonte cultural das
1991,t.l, P. 241. Luzes (op. cit.) p. 112}.

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Em Hegel,a Naturezanão é um ser determinadoem si, maso O progresso não é condenado enquanto tal, mas por sua abstra-
momento da idéia alienadaenquanto abstraçãouniversal antes de vol- ção e seu formalismo. Com efeito: "Todos os progressos da civiliza-
tar a si mesmano Espírito absoluto. Mediação entre a Lógica e o Espí- ção ou, em outras palavras, todo aumento das forças produtivas so-
rito, ela própria se divide em três momentos que tendem à singularida- ciais, se se quiser, das forças produtivas do próprio trabalho --
de: o da mecânica, de onde ressaltam as categorias de espaço e de consideradas como resultado da ciência, das invenções,da divisão e
tempo, de matéria e de movimento; o da física, a que se articulam as da combinação do trabalho, da criação do mercado mundial, das má-
categorias do universal, do particular e do singular; e, por fim, o da quinas etc. --, não enriquecem o trabalhador, mas o capital, não fa-
física orgânica(o do ser vivo), que sesubdivide, na ordem de concretude zem portanto por sua vez senão aumentar o poder que exerce sua
crescente, em natureza geológica, vegetal e animal. De acordo com essa dominação sobre o trabalho, aumentam somente a força produtiva
filosofia da Natureza, mecânicae física são momentos da organicidade do capital. Como o capital é o oposto do trabalhador, leis progressos
concreta do ser vivo, e não o modelo acabado da racionalidade cientí- aumentam unicamente o poder objetivo que reina sobre o trabalho.'zü
fica. Do mesmo modo, a Vida pertence à lógica do conceito e, na lógica Essacrítica da imagem de progresso glorificada pela ideologia do-
do conceito, ao momento de consumação da totalidade: o da Idéia. minante não tem nada de acidental. Ela contradiz o lugar-comum de um
A lógica do (;zP/Za/percorre os momentos da produção(caracteri- Marx cientificista e produtivista, beatamente confiante no porvir garan-
zada por uma organização linear e mecânica do tempo), da circulação tido pelo sentidoda história: "0 conjunto do desenvolvimento,abar-
(caracterizadapor uma organizaçãofísica circular do tempo) e da re- cando ao mesmo tempo a gênesedo assalariado e a do capitalista, tem
produção global(caracterizada por uma temporalidade orgânica do ser como ponto de partida a servidão dos trabalhadores; o progresso que se
vivo). Ao longo dessasabstraçõesdeterminadas,o capital revela-sepou- realfm consisteem mzl(tzr a fOlHa de szi/lição, a conduzir a metamor-
co a pouco como um ser vivo, que além disso é "um vampiro". A con- fose da exploração feudal em exploração capitalista.":' Submetido à
corrência entre uma pluralidade de capitais evoca o metabolismo da determinaçãodo capital, o progressoconserva-se um progressoem
"troca orgânica". Assim, não é nada fortuito vermos se multiplicarem, potência, sob reservae sob condição,que não cessade negar-sea si
no livro 111,as metáforas do corpo e da circulação sanguínea. mesmo. Assim, "todo progresso na agricultura capitalista é um progres-
Essalógica do ser vivo não forma um bom par com a imagem so na arte não apenas de roubar o camponês, mais ainda de espoliar o
mecânicada engrenagem azeitadado progresso.Em ruptura com o se/o, todo progresso no aumento temporário da fertilidade do solo é um
otimismo tecnológico de seu tempo, Marx repele a idéia de um pro- progresso para a 7 ha a prazo das 6onles dessa/b#iZI(ücü". Mais geral-
gresso homogêneo andando com passos regulares no sentido da his- mente,"a produtividade do trabalho estátambém ligada a condições
tória. Insiste antes sobre "a relação desigual entre o desenvolvimento naturais cujo rendimento não raro diminui na mesmaproporção em
da produção material e, por exemplo, o da produção artística"; ou que a produtividade aumenta. De onde um movimento em sentido con-
ainda sobre o fato de que "as relaçõesde produção seguem,enquanto trário nessasesferas diferentes. Aqui, progresso. Ali, regressão".zzEste
relaçõesjurídicas, um desenvolvimentodesigual". Mais fundamental- trecho decisivo não secontenta em afirmar a ambivalência do "progres-
mente, ele recomenda "que não se tome o conceito de progresso sob
sua forma abstrata habitual".ÍP
soKarl Marx, Gmndrisse,op- cit., p. 247.
zi Kart Marx, Le Capffal, livro 1, capítulo XXVI.
i9 Karl Mata(, Gn'xf drisse, 1, op. cit., pp. 44-46. u Karl Marx, Le CaPlfal,livro 111,
t. 1, op. cit.) P. 272

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MARX. O l NTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

se" capitalista. Ele a articula com a relação contraditória entre a explo- fator unilateral de progresso,independentementede sua imbricação
ração ilimitada e a exigência natural. Na medida em que o trabalhador concreta num modo de produção dado. Elas tanto podem enriquecer-se
conserva-se um ser natural, na medida em que matérias-primas, ferra- com conhecimentos e formas de cooperação sociais novas, quanto nega-
mentas e ambiente permanecem, em última análise, parte interessada da rem-se a si mesmas mudando-se em seu contrário, em forças destrutivas.
"troca orgânica", a determinaçãonatural continua a exercer seucons- Revelador da ideologia progressista que mina o movimento ope-
trangimento sobre a determinaçãosocial. Essaa razão por que Marx rário nascente,o fetichismo do trabalho ressaltada "fraseologia bur-
encara a anulação dos "progressos" da produtividade social pelo esgo- guesa". "Não é senão na medida em que o homem age como propri-
fame/zfo (üs "condições nzazurafs"e por seu "rendimento" decrescente. elárío re/affuame fe à al reza, essafonte primária de todos os meios
A finitude e a "dependência" do homem enquanto ser natural humano e materiais de trabalho, e a fraca como ob/eto que /be perra ce que
invocam-se assim duramente a ele: "De um lado, despertaram para a seu trabalho torna-se a fonte dos valores de uso, portanto da riqueza.
vida forças industriais científicas de cuja existência sequer se poderia Os burguesestêm excelentesrazões para atribuir ao trabalho esse
suspeitar em qualquer uma das épocas históricas precedentes. De Outro sobre af ra/ poder de criação: pois, já que o trabalho se acha na
lado, existem sfnlomas de decadê cia que ultrapassam em muito os hor- dependênciada natureza, segue-sedaí que o homem que não possua
rores que a história conheceu nos últimos tempos do império romano. nada além de sua força de trabalho será forçosamente,em qualquer
Hoje tudo parece carregar consigo sua própria contradição. Vemos que estado de sociedade e de civilização, o escravo de outros homens que
máquinas dotadas de maravilhosas capacidadesde abreviar e de tornar se terão erigido em detentores das condições objetivas de trabalho."
mais fecundo o trabalho humano provocam a fome e o esgotamento do Haveria entretanto "um hiato entre as premissasfilosóficas materi-
trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertastransformam-se. alistas e a teoria da história, de um lado, e, de outro, certos conceitos
por um estranho malefício, em fontes de privações. Os triunfos da arte básicosda teoria económica".u Essesconceitos marcariam um recuo
parecem adquiridos ao preço de qualidades morais. A dominação da em relação às intuições críticas sobre as abstraçõesdo progresso. A
natureza pelo homem é cada vez maior, mas ao mesmo tempo o homem determinação natural tenderia a desaparecerna estrita determinação
se transforma em escravodos outros homense de sua própria infâmia. social das categorias económicas. Essa confusão teria desviado Marx da
Ele não é até ali a luz límpida da ciência que não possa brilhar senão compreensão, presente em certos textos, das crises ecológicas.
sobre o fundo tenebroso da ignorância. Todas as nossasinz/ençõese Tributários de seutempo, Marx e Engelsteriam em suma resistido
nossos progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais, a admitir limites naturais. Na polêmica de ambos contra Malthus, eles
enquanto elas reduzem a vida humana a uma força material benta"la declaram que, ainda quando este último tivesse razão, seria urgentíssi-
ma uma transformação social para que se criassemas condiçõessociais
No julgamento em que é acusado de produtivismo, Marx não secom- de domínio dos instintos. Evitam assimpronunciar-se sobreo fundo da
porta propriamente como um réu dócil. Censuram-lhea ambiguidade questão demográfica. Engelscontenta-se em recomendar vigorosamente
da noção de "forças produtivas".2'Mas neleelas não constituemum sua redução à questão económica: "Graças a essa teoria, bem como à
economiaem geral, nossaatenção foi atraída para a força produtiva da
u Kar\ Matx, Speacb at tbe Annivetsary oftbe Peoples Paper, 1.8S6.
terra e da humanidade; e depois de ter desmontado essedesesperoeco-
24"A visão ecológica das condições da existência humana", escreveMarti-
nez-Allier, "teria podido ser facilmente ligada ao marxismo por uma definição
adequada das forças produtivas. Foi o que Marx não fez." zsTed Benton, "Marxism and Natural Limits", loc. cit

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nâmico, achamo-nostranqüilizados para semprequanto ao temor do Enfim, a conceituaçãomarxiana do processode trabalho e das
superpovoamento." Ele reconhece limites sociais transitórios, inerentes indústrias de transformações permaneceria defeituosa. Por várias ra-
às "barreiras" que o capital cria para si mesmo, mas recusa os "limites zões,segundoTed Benton:
naturais" considerados como o álibi apologético da economia política.a a) a natureza material dos instrumentos e matérias-primas limita-
A redução das qualidades naturais da terra à função de "matérias- rá cedo ou tarde sua utilização-transformação em função de intenções
primas" interditada do mesmo modo o aprofundamento crítico dessa humanas;
categoria. Elas se inscreveriam assim na evolução instrumental de uma b) ainda que tais instrumentos sejam o produto de um processo
agricultura doravante subordinada ao processo industrial de produção: de trabalho anterior, nem por isso passam a depender menos, mesmo
"No processo de trabalho agrícola, diferentemente dos processos de de maneira mediada, da apropriação da natureza;
transformação, o trabalho humano não é utilizado para imprimir uma c) o próprio trabalho, enquanto consumo de força de trabalho,
transformação desejadaa uma matéria-prima. Ele é antes despendido permanecesob a exigência da determinação natural.
para sustentar e regular as condições de ambiente graças às quais as Mao( teria portanto subestimado a autonomia relativa das condi-
sementese o gado arrendado podem crescer e desenvolver-se.Há real- çõesnaturalmente dadas e não manipuláveis.28A censura pode sem
mente um momento de transformação nessetipo de processo de traba- dúvida basear seu argumento no credo produtivista expresso em certos
lho, mas as transformações são produzidas por mecanismos orgânicos textos de Engels: "Toda a esfera das condições de vida que cercam o
dados, não pela aplicação do trabalho humano. A agricultura e outros homem,e que também o dominaram, cai agora sob o domínio e o con-
processosde trabalho ecorreguladorestêm portanto uma estrutura in- trole do homem, que pela primeira vez toma-se o dono real e consciente
tencional que é muito diferente da do processode trabalho produtivo da Natureza, porque no presente ele se tornou o dono de sua própria
transformador."z7 Marx, ao contrário, teria assimilado todo processo organização social. As leis de sua própria ação social, que o encaravam
de trabalho ao modelo produtivo-transformador. Ora, se a caça, a co- como se elas Ihe fossem tão estranhas quanto as da natureza, serão
leta, a extração assinalam,à primeira vista, antes a produção do que a então utilizadas e dominadas por ele com uma plena compreensão."a A
ecorregulação, "nessas atividades, o lugar das matérias-primas princi- lógica instrumental da razão cartesiana toma aqui um impulso lírico.
pais e secundárias é ocupado por materiais naturalmente dados ou por O Sr. Hyde sob o Dr. Jekyll.
serescuja disponibilidade é absolutaou relativamente independentede
manipulações intencionais". Assim, a apropriação simples não transfor-
ma as condições naturais de que ela se conserva fortemente dependente.
EM BUSCA DA ENERGIA DISSIPADA

zóNo debate sobre a demografia, por ocasião de conferências mundiais sobre a


população, a discussão sobre Malthus conserva uma inegável atualidade. Con- Seriaderrisório esboçarà força de citaçõesum Marx produtivista
sultar a tal propósito Les Spectresde Mú/rb#s, coletivo, Paria, ORSTOM-EDl- contra um Marx ecologista antes da hora. É melhor instalar-seem
CEPED, 1991; C. Reboul, Monsfeur /e Capffal et Madame la Terra, EDl-INRA,
1989; Hervé Le Bus, Les l.Imlfes de /a pZanêre,Paras,Flammarion, 1 991; c ainda
o excelenteartigo de Maxime Durand, "Pour en tinir aves Malthus", Crillque 28 Ibid.
commumfsfe, n' 139, outono de 1994. 29Friedrich Engels, Socfúlisme #fopiqae et socfallsme scielzli/iq#e, Paras,
27Ted Benton, "Marxism and Natural Limits", loc. cit. Éditions sociales, 1960.

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suascontradições e leva-las a sério. Desselugar problemático, estro. A reprodução social ampliada (que reveste, no modo de produção
tégias de leituras divergentesconfrontam-se. Seele participa de urn capitalista, a forma de acumulação do capital) baseia-separa Marx
otimismo científico e tecnológico ambiente, Marx não é nem um puro na prodigiosa capacidade da força de trabalho em fornecer mais ener-
visionário nem um simplesfilho de seuséculo.O ano em que elete.. gia do que consomepara sua própria reprodução. Ele não procura
mina o livro l do Capela/é igualmenteo ano em que aparece,eH entretanto elucidar essemistério.
Haeckel, a noção de ecologia. Socialistaucraniano, SergePodolinski publica em 1880, na Re-
Hoje a ecologia é definida como ciência dos ecossistemas, ou seja jsfa goela/isca,um breve artigo intitulado "0 socialismo e a unidade
dos subconjuntos, qualquer que seja o tamanho destes (pântano, lago, das forças físicas". Ele coloca a questão de frente: "De acordo com a
floresta), apresentando uma certa unidade funcional entre organismo teoria da produção formulada por Marx e aceita pelos socialistas,o
e biosfera. Seuobjeto emergelentamente à medida que se desenvolve trabalho humano, exprimindo-se a /ingKagemda/bica, acumula em
a ciência moderna: da "economia da natureza", proposta por Lineu à seusprodutos uma quantidade maior de energia que aquela que tev©
Mor/o/agia gera/ dos erga /!smas, de Haeckel, passando pelos estudos de ser despendida para a produção da força dos trabalhadores. Por
de Fraassobre a flora e o clima, pela crítica da agricultura moderna que e como se efetua essaacumulação?" E por que prodígio o traba-
por Liebig, pela compreensão do ser vivo em termos de interação lho humano pode funcionar por mais tempo que o tempo necessário
dinâmica em Wallace: "A carência se exprime, nas sociedadestoma- para a sua própria reprodução? Podolinski lembra as leis de distribui-
daspela dinâmica conquistadora e predatória do capitalismo, por uma ção da energiae a constância do fluxo solar. Acha-se no poder da
compreensão mais profunda da marcha da natureza para o confessa- humanidade "produzir certas modificações nessadistribuição da ener-
do objetivo de estendere aumentar a eficácia de sua exploração.A gia solar", pois o homem"pode aumentara quantidadede energia
ecologia vai nascer dessa necessidade e dessa carência. A idéia de que solar acumulada sobre a terra e diminuir a quantidade dispersa", es-
o mesmo equilíbrio natural rege a marcha da sociedade e a da natu- pecialmente melhorando a agricultura e a produtividade biológica da
reza vai fundar a ecologia,do mesmomodo que havia fundadoa natureza. A partir de um balanço energético da agricultura francessa,
ecollollllâ."JV eledemonstra que cadacaloria de trabalho despendidapara cultivar
Ernst Haeckel entende por ecologia "a ciência das relações dos um hectarede pradaria artificial devolve em troco, nas condiçõesde
organismos com o mundo exterior, no qual podemos reconhecer de produtividade da época,cerca de quarenta.
um modo mais amplo os fatores da luta pela existência". Nascida de Qual é portanto o favor multiplicador?
uma época antes confiante na ciência e no progresso, a ecologia vai De acordo com as leis da termodinâmica, embora a energia do
entretanto impor-se, ramificando-se em ecologia vegetal e animal, em universo seja constante, ela tende a dissipar-se. A entropia designa a
oceanografia e limnologia. A partir dos anos 1850-1 860, o impulso quantidade crescente de energia inconversível em outras formas de ener-
das teorias da energia desemboca na quantificação de seus fluxos. Ela gia. O primeiro princípio (de conservação da energia), formulado qua-
torna concebível a determinação da parte de energia solar intercepta- se simultaneamentepor Joule, Mayer, Helmoltz nos anos 1840, afirma
da pela Terra, dissipada novamente no espaço, e da parte que as plan- que a quantidade de energia de um sistema fechado é constante. O se-
tas podem transformar em carbonos. gundo princípio, entrevisto por Carnot a partir de 1824(A corça mo-
Irlz do gago) e formulado em 1865 por Clausius, afirma que toda trans-
30Jean-Paul Deléage,Hislofre de I'écologie, Paras,La Découverte, 1991, p. 58. formação de energia acompanha-se de uma degradação. Sem nunca ser

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destruída(conservação quantitativa), a energia muda assim de forma substâncias vegetais, transformam uma parte dessa energia acumula- l
(dissipação qualitativa) até transformar-se em calor, sem que seja, in. da em trabalho mecânico, e eles o dissipam assim no espaço. Se a
versamente, possível transformar completamente essecalor em traba- quantidade de energia acumulada pelos vegetais fosse maior que a
lho.3i Podolinski não faz distinção entre sistema aberto e sistema fecha. dissipada pelos animais, ter-se-ia uma espécie de estocagem de ener-
do. Tampouco aborda a relaçãoentre termodinâmica e seleçãonatural gia, por exemplo, no período de formação do carvão-de-pedra, quan-
(embora ele tenha polemizado contra o darwinismo social). Aos seus do a vida vegetal era evidentemente preponderante em relação à vida
olhos, a pobreza não é o efeito de uma penúria energética, antes um animal. Se,em contrapartida, preponderassea vida animal, os estu-
fenómeno social ligado à desigualdadee ao desperdício. Ele oferece ques de energia seriam rapidamente dissipados e a própria vida vege-
tal deveria recuar até os limites fixados pelo reino vegetal. Haveria
todavia a hipótese de dois processos concorrentes, o dos vegetais que
acumulam a energia através da fotossíntese, o dos animais que a dissi. assimum certo equilíbrio entre acumulaçãoe dissipaçãoda energia:
pam. Haveria estocagem no primeiro caso, desestocagemno segundo. o balanço energético da superfície terrestre corresponderia a uma
Participando do processoanimal de desestocagem,o homem modifica- grandeza mais ou menos estável, mas a acumulação nítida de energia
baixaria a zero ou, em todos os casosde figura, a um nível muito mais
ria por seu trabalho útil o equilíbrio entre produção e acumulação de
energia. Sua força de trabalho e sua exploração estariam realmente na baixo que na época da preponderância vegetal."sz
origem da mais-valia na relação social, mas não constituiriam sua fonte Podolinski orienta-se assim para uma interpretação energética da
última. O trabalho humano agiria em última instância como simples produtividade do trabalho. Convencido de que o ser humano "tem a
conversorenergético.O produto excedentesocialteria assim por ori- capacidadede transformar um quinto da energiaacumuladapor as-
gem a desestocagem das energias vegetais e fósseis. similação de alimentos em energia muscular", ele qualifica essarela-
Numa carta a Marx de 8 de abril de 1880, Podolinski apresenta ção de "coeficiente económico". Daí conclui que o corpo humano age
sua iniciativa como "uma tentativa de harmonizar o trabalho exce- como um conversor de energia mais eficiente que a máquina a vapor:
dente e as teorias físicas atuais". Ele adianta a hipótese de uma rela- "A humanidade é uma máquina que não apenastransforma o calor e
ção recíproca entre energiae "formas de sociedade". Paralelamente outras forças físicas em trabalho, como também consegue,além disso,
realizar o ciclo inverso, isto é, transformar o trabalho em calor e outras
aos neoclássicos,examina os processoseconómicosde um ponto de
vista termodinâmico. A teoria da conservação da energia indica que o forças físicas necessáriasà satisfação de nossascarências, de modo
trabalho humano não pode tirar coisa alguma do nada, mas apenas que ela é por assim dizer capaz de aquecer o seu próprio aquecedor
modificar fluxos de energiaexistentespara adapta-los à satisfaçãodas por seupróprio trabalho convertido em calor." Desdeque a produti-
carências. Os seres vivos seriam portanto os agentes de um equilíbrio vidade energética do trabalho seja pelo menos igual ao coeficiente
precário entre acumulação(vegetal)e dissipaçãoda energia solar económico,ele poderia acumular uma quantidade de energiamaior
absorvidapelo sistemada vida: "Encontramo-nosaqui em face de
dois processos paralelos que constituem juntos o que se costuma cha- 'z SergePodolinski, "MenschlichcArbeit und Einheit der Kraft', Die Nele Zeil,
1883. Sobre Podolinski, além de Jean-PaulDeléage,vet Joan Martinez-Allier c
mar de o cic/o da t,ída(K eis/a /des l.ebelzs).As plantas têm a facul- Klaus Schlüpman, la ecologü y Lzeconomia, México, EFE, 1991; Martinez-Allier,
dade de acumular energia solar, enquanto os animais, nutrindo-se de "la confluencedons I'éco-socialismo', em L'idée d sacia/ismea-t-e/le at/e-
mir?,Acf#e/ Mare, Paria,PUF, 1991; e Tiziano Bagarolo, "Encore sur marxismo
ai Vcr Bernard Brunhes, l,a Diegradaffo# de /'énergie, Pauis, Flammarion, 1909. et écologie", Quafriême / fenzaffo ale, maio de 1992.

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MARX. O INTEMPESTIVO

que a despendida para a sobrevivência Tal seriaa basematerial pri.


Y A ORDEM DA DESORDEM

partir de sua fmPodanlÊsima descobef'la, ele acabou cometendo um


medra de toda sociedade.33 erro, porque quis encontrar uma nova prova científica da justeza do
socialismo, misf#rando por isso /bica e eco/zomba."3óEmbora regozi-
Tido não raro como responsávelpelo desencontroentre crítica da jando-se com a importância da descoberta, Engels não está de acordo
economia política e ecologia, Engelsgoza da sólida reputação de rigo- com suas conclusões. O melhor e o pior mesclam-se nesseveredicto.
roso cientista.n Entre 1 875 e 1 886, .Afzli-Dübrjlzg, l,udmfg Fe e Óac&
! o fim da filosofiaclássica
aletnãe Dialêticada naturezatentam O primeiro motivo de desconfiançaé diretamente ideológico. Ele visa
formalizar uma unidade de método e de conteúdo, ao preço de incon- as extrapolações religiosas sobre "o decreto de morte térmica do
testáveis escorregões positivistas. "Ora, se deduzimos o esquema do universo" derivadas da teoria da entropia. Paralelamente à atualiza-
universo não do cérebro, mas do mundo real unicamente através do ção do discurso malthusiano sobre os limites naturais e às tesesraciais
cérebro, se deduzimos os princípios do Ser daquilo que é, não preci- de Haeckel anunciando a problemática do espaço vital, os sucessos da
samospara isso de filosofia, mas de conhecimentopositivo sobre o termodinâmica alimentam então, com efeito, especulaçõesmísticas. A
mundo e o que nele se produz, e o que resulta disso tampouco é filo- segundalei é especialmenteexplorada por uma teologia pessimista.
soíla, mas ciência positiva.nss A.Dialetica da natureza deve com. razão Contra essasvisões apocalípticas, Engels empenha-se em defender a
sua má fama à célebreformalização das "leis da diabética", "deduzi- permanênciada substânciamaterial. Ele adereao primeiro princípio
das" da naturezaedo credocientífico segundoo qual doravante"toda (de conservação da energia) enquanto recusa o segundo (sua degrada-
a natureza estende-sediante de nós como um sistema de encadeamen- ção progressiva). Considera a dissipação entrópica como uma aparên-
tos e de processos explicado e compreendido em suas grandes linhas" cia ligada aos limites provisórios do conhecimento. Caberia "aos sá-
Consultado por Marx sobre as tesesdo correspondente ucraniano. biosdo amanhã" descobrircomo "o calor irradiado no espaçodeve
Engels dá uma resposta categórica. Embora convencido de que o prin- necessariamente ter a possibilidade de se converter em uma outra forma
cípio de conservação da energia "torna necessária uma revisão de todas de movimento, sob a qual ele pode mais uma vez concentrar-se e voltar
as concepções tradicionais", rejeita entretanto as sugestões energetis- a tornar-se ativo. Cai dessemodo a principal dificuldade que se opu'
tas: "Eis como vejo a história de Podolinski: sua verdadeira descober- nha à reconversão de sóis mortos em nebulosas incandescentes".s7Essa
ta é que o trabalho humano é capaz de reter e de prolongar a ação do
sol na superfícieda terra além do que ela duraria sem essetrabalho. H Friedrich Engels, l.errres sur /es sciencesde la at re, Paria, Éditions socialcs,
Todas as consideraçõeseconómicas que ele retira daí são falsas... .4 1973, p. 103. Sobre Engels e a conservação da energia, ver o apaixonante artigo
de Éric Alliez e lsabelle Stengers, "Énergie et valeur: le problême de la conserva-
tion de I'énergic chez Engels et Marx', seminário do Collêge internacional de
s] Ver Joan Martinez-Allier e Klaus Schlüpman,la eco/agiay /a economfalop. philosophie,1984.
cit., PP.66-72. ' s7A conservação da energia coloca mais problemas do que os resolve: "Para
H Em l,e SlalKf marxlsfe de la p#l/osopbfe, op. cit., G. Labica chamou ju- alguns (o caso, por exemplo, de Poincaré c de Durem), a conservação da energia
diciosamente a atenção para as idéias recebidas e os lugares-comuns que tornam (há alguma coisa que permanececonstante) é um princípio de investigação cuja
dificilmente acessívela personalidadehumana e teórica no entanto decisivae verdadenão tem outra bitola senãoa fecundidade.Paraoutros (como Ostwald),
sedutora de Engels. Ele insiste sobre os riscos inerentes a uma pesquisa "marxis- a diferença qualitativa entre as diferentes formas de energia é irredutível e a
ta" que consideraa contribuição de Engelscomo acessória. mecânica não passa portanto de uma ciência entre outras. Há ainda os quc con-
ss Friedrich Engels, Anil-l)übtlng, OP cit. sideram que a conservação da energia implica a possibilidade de reduzir todas as

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MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

hipótese da energia perdida e recuperada não é em seu tempo Uma inclusive a promoção ao sfafus de "fato científico" daquilo que não
extravagância. Ela responde à dificuldade de conciliar a conservação era até então mais que uma hipótesefilosófica: a unidadede todo o
quantitativa e a degradaçãoqualitativa, como à de conjugar a pers- movimento na natureza. Mas ele se recusa obstinadamente a admitir
pectiva entrópica da termodinâmica e a perspectiva criadora da evo. os princípios de Clausius: "A atração e a força centrífuga de Newton
lução. Os físicos ainda se colocarão por muito tempo a questão de são um exemplo de pensamento metafísico: o problema não está re-
saber se pode existir uma reconcentração da enorme quantidade de solvido, mas apenascolocado, e isso é ofertado como uma solução.
energia irradiada em todos os sentidos.Alguns admitem de bom gra- Do mesmo modo, a perda de calor de Clausius." A lei da entropia
do a degradação num sistema fechado, mas interrogam-se sobre o fato aparece-lheclaramente como uma brecha por onde poderia insinuar-
de que o universo material seja precisamenteum sistema fechado. se o retorno do religioso. É um /eifmofiu das notas sobre a física na
William Thomson considera assim operações "impossíveis sob o im- Dia/ética da lzaf reza: "A questão de saber o que advém do calor
pério das leis a que estão submetidas as operações conhecidas que têm aparentementeperdido não é por assim dizer nitidamente colocada
atualmente lugar no mundo material". Mais geralmente, uma elite senãoa partir de 1867 (Clausius)." Engels considera que pode ainda
intelectual convencidada conservaçãoe cética diante da degradação escoar bastante tempo antes que ela seja resolvida, mas o será "tão
obstina-se no fim do séculoXIX a pensar que, se algo se perde todos certamente como se acha estabelecido que não ocorrem milagres na
os dias, ele será recuperado mais tarde, e que a energia dissipada se natureza e que o calor primitivo da esfera nebulosa não Ihe é transmi-
Feconcentfâfá.JÕ tido por milagre do exterior do mundo". O ciclo não se encerrará
Esforçando-se por assimilar as descobertas de Joule sobre a con- antesque "se tenha descobertocomo o calor irradiado volta a tornas-
versão do calor e os desenvolvimentos da geologia de Lyell, Engels se utilizável". Clausius demonstra que o mundo foi criado e que a
inclina-se por seulado pela "proposição de Descartes", segundoa qual matéria criada pode também ser destruída. De qualquer maneira que
"a quantidade de movimento no universo é constante". Ainda que a se apresente seu segundo princípio, "ele implica em todo caso que
prefira à de "força", ele acolhe com reserva a própria noção de ener- energia se perde qualitativamente se não quantitativamente": "0 re-
gia. De um lado, ela não apreenderiasenãoum aspectodo conjunto lógio do universodeveprimeiro ter sido remontado, depois elefunciona
da relação de movimento: a ação, mas não a reação; de outro lado, até o momento em que chega ao estado de equilíbrio; a partir desse
ela evocada de maneira duvidosa "algo exterior à matéria". Engels momento, só um milagre poderá retira-lo desseestado e repâ-lo em
compreende as transformações da energia como conversões entre di- movimento1"3P
versas formas de movimento, insistindo sobre a lei da "equivalência O que está em jogo é claro. Engels rejeita o segundoprincípio da
quantitativa do movimento em todas as suas transformações". Vê aí termodinâmica em virtude de suas possíveis consequências teológicas.
Ao condenar uma descobertacientífica em nome da suposta ideologia
formas de energia a uma única, a energia mecânica. Situada em seu contexto do sábio, ele acaba por se situar igualmente no terreno da ideologia. O
histórico, a descobertada conservaçãoda energianão apareceportanto suscetí- tom passa a ser o da profissão de fé: "É num ciclo eterno que a matéria
vel de constituir um modelo que outras ciências devessemseguir. Ela constitui semove [...] ciclo no qual todo modo finito de existênciada matériaé
antes mais um problema de que cada um dos protagonistas se apodera e se serve
igualmente transitório e onde nada existe de eterno senão a matéria em
para fundar sua concepção da ciência. Engels é um desses protagonistas" (É. Alli-
ez e 1. Stengen,"Énergic et valeur-.", loc. cit.).
38BernardBrunhes,l,a Dégradalio de /'éKergfe,op. cit., pp. 370-374. 39Fricdrich Engels,Z,erfressur /es sciefzcesde /a af re, op. cit., p. 292

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etema mudança, em eterno movimento, e as leis segundo as quais ela $e vitais contrário às leis da termodinâmica.Alguns buscaramsalvar a
move e muda." Mas, "por.maior que seja o tempo necessáriopara que. compatibilidade das duas abordagens explicando a dinâmica da vida
num sistemasolar, as condiçõesda vida orgânica se estabeleçamainda pela conversão da energia dissipada em energia mental.
que sobre um único planeta; por maior que seja o número dos seres A contradição tem a ver, por um lado, com uma reduçãodo social
orgânicos que devam primeiro aparecer e perecer antes que tirem de seu ao físico, cujo perigo foi bem percebido por Engels.As teorias dos sis-
seio animais com um cérebro capaz de pensar e que encontrem por um temas abertos, da informação, da organização ofereceram depois ele-
curto lapso de tempo condiçõespróprias à sua vida, para em seguida Hentos de resposta à contradição então desconcertante entre a entropia
serem também elesexterminados sem misericórdia -- temos a certeza termodinâmica e a criatividade da evolução. A seleção natural seleciona
que em todas essastransformações,a matéria conserva-seeternamente os instintos sociais da mesmaforma como se comporta com os outros
a mesma, que nenhum de seus atributos pode jamais perder-se, e que. instintos, favorecendo o aumento da racionalidade e concedendoum
por consequência,seela deveexterminar um dia sobrea terra, com uma privilégio aos comportamentos de solidariedade e assistência:"É um
necessidadede bronze, sua floração suprema, o espírito pensante,é outro efeito da seleçãonatural que vem contrariar um outro efeito,
preciso com a mesma necessidade que, em qualquer outra parte, e a uma primitivo e mais bem reconhecido,pois se confunde com a própria se-
outra hora,ela o reproduza".40 leção, o qual tinha antes presidido pela eliminação dos menos aptos ao
Às tentaçõescriacionistasda termodinâmica, Engelsreplica por aperfeiçoamento da espécie. Passa-seassim da eliminação à proteção,
um credo cosmológicosobre a eternidadeda matéria. Viola assim da exterminação à assistência.Em sua própria evolução histórica, a
duplamente sua própria recomendaçãode não admitir a validade dos seleçãonatural acaba portanto por negar-sea si mesma." Trata-se do
conhecimentos científicos senão relativamente ao seu campo de apli- que Patrick Tort chama de "efeito reversivo" ou "subversão sem ruptu-
cação: "Toda a nossa física, nossa química e nossa biologia oficiais ra" no seio da lógica seletiva estendida ao homem.4z
são exclusivamentegeocêntricas,praz/iscassome#lepa a a l€7r#."4i De modo mais geral, a evolução neutraliza ou corrige parcialmente
Estesaudávelprincípio deveriater tudo para leva-lo a admitir as leis as tendênciastermodinâmicas. O Caciforez/ersiz/opermite assim olhar de
de Clausius à escala dessesistema (fechado), sem especular sobre uma frente as conseqüências ecológicas do consumo acelerado de energias
eventual recuperaçãoda energia dissipada à escala de um sistema não renováveis sem se resignar à fatalidade, em nossa escala de espaço
(aberto) mais vasto, cujas leis específicas seriam (ainda) desconheci- e de tempo, de uma morte térmica inelutável. A fotossíntesevegetal não
das. A teoria da evolução teria podido trazer-lhe, além disso, argu- utilizaria mais do que cerca de 1% da energia solar, o sistemaindustrial
mentos úteis contra a visão de um universo reduzido a cinzas. Quan- dissiparia sem utilidade mais de 50% da energia consumida, e somente
do, em 1852, William Thomson publicou seumomentoso artigo sobre 10% a 20% do dispêndio energético seriam justificados em relação às
"a tendência universal à dissipação da energia mecânica na nature- metas desejadas.Pode-se portanto imaginar que um efeito reversivo li-
za", a lei da evolução implicava, de acordo com Darwin, uma melhor gado ao desenvolvimento da informação(ao saber e à cooperação so-
adaptação às condições de ambiente na corrida para a vida. Os físicos cial) permita contrariar as tendênciasentrópicas por um melhor rendi-
por sua vez mostraram-se reticentes diante desseaumento das forças mento do consumo energético, pelo recurso às energias renováveis, por
um dispêndio mais lento que a recuperação dos estoques.
40lbid., p. 291.
4i Friedrich Engels, Dia/ecffg e de Zanal re, op. cit., p. 241. 4z Patrick Toro, La Ralso# classe/icaloire, Pauis,Aubier, 1991, pp 406-408

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MARX. O INTEMPESTIVO
A ORDEMDA DESORDEM

TRABALHO FÍSICO.TRABALHOSOCIAL
Em 1778, a dissertação de Coulomb sobre .A 607'ça dos bomems
visa a "determinar a quantidade de ação que os homens podem for-
A segunda crítica de Engels é de ordem epistemológica.
necer por seu trabalho cotidiano, de acordo com as diferentes manei-
No mesmo sentido de sua polêmica contra o materialismo vulgar de ras com que eles empregamsuas forças". Trata-se, num processo de
Büchner ou de Moleschott, ele censuraPodolinski por ter querido "encon- racionalizaçãodo trabalho, de medir não os desempenhosexcepcio-
trar uma nova prova científica da justeza do socialismo". O que sejoga e nais, mas as capacidades ordinárias do homem médio ao realizar uma
decide na luta de classesnunca é redutível a uma querela de especialistas, "honestajornada de trabalho". A medidasocial do valor impondo
por mais que eles intervenham para defender a inocência da técnica ou progressivamentesualei pela abstraçãodo trabalho (a média de Cou-
para fundar cientificamente uma política ecológica. SeMarx anunciou em lomb) é assim levada à sua quantificação física, com a preocupação
várias oportunidades a vocação das ciências sociais e naturais para se fun- declarada de maximizar a relação efeito/fadiga que exprime a eficácia
direm numa "única ciência" histórica, essatendênciaé um processode económicado trabalho. É com efeito a fadiga /bica, e não a força
longa duração. No imediato, Engels recusa-se a "juntar a física e a econo- social de trabalho, que se pretende então retribuir. Exceto no caso em
mia", a confundir as noções de "forças" específicas a uma e outra, a "apli- que se conceba o homem como uma máquina de converter energia,
car à sociedadea teoria das ciênciasda natureza". Desconsiderandoque nada mais permite entretanto avàliá-lo senão o metabolismo mercan-
se possamavaliar em "joules" a mão-de-obrae o capital, ele combate o til que determina a "jornada normal" de trabalho.+
dogmatismo energéticona moda(em que seinspiram Walras e os neoclás- A admiração fisicalista do começo do século XIX corre em socor-
sicos) e a redução dos indivíduos a simples conversores energéticos. ro da economia clássica. Buscando uma medida comum para traba-
O erro de Podolinski residiria portanto numa tradução abusiva da lhos diferentes, Navier a ela se refere como uma "moeda mecânica"
economia para a linguagem da física. Suaengenhosa hipótese contribui que permite medir a capacidade de uma máquina independentemente
ativamente para a refutação do materialismo vulgar e de "sua preten- do conteúdo do trabalho realizado. Em contrapartida, Coriolis come-
são em aplicar à sociedade a teoria das ciências da natureza". Em .Afzfi-
ça por distinguir o formalismofísico da significaçãoeconómica.O
Dübríng e em suasnotas para um "Anta-Büchner"(DiaZélica da #alzl- trabalho é antes de tudo a "justa medida da ação das máquinas, e o
reza), Engelschocou-seefetivamentecom a confusão entre física e rendimento em trabalho útil, a de sua eficácia". Utilizado para desig-
economia. Abrindo caminho para o conceito de energia e para a termo- nar tanto o esforço quanto o resultado do esforço, o termo trabalho
dinâmica, a própria noção de trabalho apareceu na física dos anos 1 820
para pensar a economia das máquinas.43Ela articula então teoricamen- H Este ideal físico é bem ilustrado pela dissertaçãode Lavoisier publicada em
te física e economia ao procurar medir a produção e o dispêndio dos 1789 pela Academia das Ciências: "Pode-se conhecer a quantas libras em peso
correspondem os esforços de um homem que pronuncia um discurso, de um música
homens e das máquinas, a fim de otimizar o desempenho de ambos.
que toca um instrumento. Poder-se-ia mesmo avaliar o que há de mecânico no
Reata assim com a problemática de uma grande mecânica universal trabalho do filósofo que reflete, do homem de letras que escreve,do músico que
presente na argumentação leibniziana sobre as forças vivas. compõe. Tais efeitos, considerados como puramente morais, têm qualquer coisa
de físico e de material que permite, sob essarelação, compara-los com o homem
que realiza um trabalho braçal. Não foi portanto sem alguma justeza que a lín-
" A noção de trabalho foi introduzida oficialmente em física por Coriolis em gua francesa confundiu, sob a denominação comum de trabalho, tanto os esfor-
1829. Ver a esterespeito o precioso estudo de François Vatin, l,e Trai/ail, écono- ços do espírito quanto os do corpo, o trabalho de gabinete e o trabalho do mer-
mie ef pbysfqwe,í 780-] 830, Pauis,PUF, 1993. cenário.

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conserva-seambíguo. Seo trabalho seconserva fisicamente, uma parte Essetambém é o motivo por que, diferentemente de Marx, ele insiste
é perdida economicamentena medida em que ele se degradaao rea. sobre a distância mantida entre ciência da natureza e "ciência" do ho-
gizarseuefeito produtivo.'s Tocamosassimos limites do projeto físi- mem, determinação social e determinação natural. A crítica da economia
co-económico dos engenheiros baseado no saber mecânico das Luzes. política mantém-separa ele do lado da história e da cultura. Na medida
Confrontados com o impulso capitalista, seusconceitos são estendi- em que as ciênciasda complexidade(teoria dos sistemase teorias do
dos ao máximo de suaspossibilidades,exigindo o advento do novo caos) privilegiam um novo paradigma holista do sabercientífico, a que-
pensamento termodinâmico: "0 tratamento da questão do tempo acha- rela pode parecer fora de moda. No século passado, a defesa intransigen-
se no âmago desta passagem,através da economia, da antiga à nova te da relação específica de uma ciência com o seu objeto participa de uma
física... Pensar a transformação da força viva em trabalho é, com efei- luta necessáriapara emanciparos procedimentoscientíficos de seuinvó-
to, conceber um processo irreversível, uma transformação energética, lucro ideológico.Contra os lugares-comuns,convémportanto recom-
que não conseguiria, mesmo teoricamente, operar sem perda. Catego- pensar Engels quando ele recusa a fusão da economia e da física em
ria do pensamentofísico-económicoe não propriamente físico, o con- nome de uma admiração energetista apressadaou quando se insurge
ceito de trabalho pressupõea seta do tempo que em breve a termodi- contra a extensão spenceriana da "luta pela vida" às ciências humanas.
nâmica conceltuará."" Seu discurso inscreve-se ainda na grande divisão entre ciências da natu-
Propondo determinar a "quantidade de ação" enquanto grandeza reza e ciências humanas ou sociais (ele fala da economia política como de
fisiológico-económica pelo trabalho braçal, Coulomb mistura materia- uma "ciência histórica") que então domina a classificação das ciências.
lismo mecanicistae simbólica bíblica. Marx se coloca, ao contrário, na As "ciências da natureza"(mecânica, física, química) têm por objeto "o
contradição social da quantificaçãoda força de trabalho, ao mesmo estudo das diferentes formas do movimento".47 A mecânica só conhece
tempo necessáriado ponto de vista do trabalho abstrato e impossíveldo quantidades, a física e a química afrontam a conversão de quantidade em
ponto de vista do trabalho concreto. A despeitodas similitudes formais qualidade. O organismo vivo é "seguramente a unidade superior que
com a moeda mecânicade Navier enquanto "dispêndio de força huma- engloba em um todo mecânica, física e química, na qual a trindade não
na", seu conceito de valor-trabalho muda então de terreno e rompe a pode mais ser dissociada". O problema é precisamentecompreender
equivalência entre física e economia, integrando a dimensão energética como conhecimentos complexos, tais como a crítica da economia políti-
à dimensão social. Se se conservao objetivo de encontrar uma medida ca, a ecologia,a história, articulam os saberesque a razão classificatória
comum entre as mercadoriasheterogênease a mercadoria força de tra- separa. A julgar pelos seus trabalhos, Engels parece mais inclinado que
balho, a crítica da economiapolítica constrói-secontra a confusão entre Marx a respeitar a autonomia das ciências exatas e positivas. Depois de
física e economia. Compreende-semelhor desde então a vigilância de sua retirada dos negócios comerciaise sua instalação em Londres, ele
Engels em face do que Ihe parece uma recaída e uma regressão teóricas. anuncia ter empreendido "uma operação de muda" completa "em ma-
temáticas e nas ciências da natureza".'8 Contra toda tentação idealista,
+' François Vatin, l.e Trauaf/--, op. cit., p. 78. Coriolis percebe a degradação ele mantém todavia que o conhecimentocientífico, inclusivea matemá-
económica do trabalho quando a física ainda ignora a lei da entropia. Ele é assim tica, está enraizado na história pela mediação das carências humanas.
levadoa estabeleceruma preciosadistinção entre o próprio trabalho e a "facul-
dade de produzir trabalho", que anuncia a distinção decisiva entre trabalho e
força de trabalho. 47Carta a Marx de 30 de maio de 1873.
« Ibid., P. 91. 41Friedrich Engels,introdução ao Abri-Dübring, op. cit

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MARX. O INTEMPESTIVO
Y A ORDEMDA DESORDEM

Em suma, Engels censura Podolinski por querer traduzir a economia No quadro específicode um modo de produção historicamente
para a linguagem da física e novamente confundir a noção física de tra- determinado, a hipótese de Podolinski não ameaça portanto a teoria
balho (enquanto "medida do movimento") com seu conceito social. do valor-trabalho. O capital acumulado é realmente a cristalização de
Essa crítica ressoa as polêmicas de Marx (especialmente na "Crítica do um trabalho não pago. Essaabordagem permite esclareceros impul-
Programa de Gotha") contra a idealização simplista do trabalhador sos e a dinâmica do conflito social, distinguir interessesantagónicos,
manual, sob o pretexto de que seu tllabalho teria a miraculosa faculdade tomar partido. À luz dos princípios da termodinâmica,Engelsrecusa
de produzir a riqueza enquantoproduto quasenatural do que, antes, categoricamente qualquerteoria energéticado valor segundoa qual
enquantoproduto social. O laço entre o trabalho fornecido e a justa "a contabilidade energética forneceria uma base científica à teoria do
repartição social dos bens pode levar a um socialismo ilusório da distri- valor-trabalho":4P "A medida do valor energético de um martelo, de
buição em lugar de examinar fundo as raízes da exploração. um parafuso ou de uma agulha, de acordo com os custos de produ-
Engelsreage tanto mais vivamente quanto mais a termodinâmica. ção, é uma impossibilidade total. Em minha opinião, é absolutamente
transposta sem precaução para o campo económico, pode ameaçara impossível querer exprimir as relações económicas em unidades de
teoria do valor-trabalho. Ele cuida em preservar a distinção entre tra- medida da física." Mas uma determinação não suprime a outra. Elas
balho económico e trabalho mecânico. Havendo registrado os laços operam em níveis diferentes. A validade da teoria do valor no quadro
de família formais entre as teorias da energia e a do valor, ele compre- de relações de produções específicas não elimina o interesse dos ba-
ende realmente que a confusão das duas poderia levar, por extensão lanços energéticosem uma outra escala de duração.
da lei da entropia, à idéia de uma mais-valia negativa, de uma perda A relação conflitual de classe formaliza a contradição subjacente
pura e simplesque ameaçasse
a própria coerênciada relaçãode ex- entre estocageme desestocagemde energia, o trabalho humano de-
ploração enquanto resposta ao enigma do lucro e da acumulação. Pela sempenhando o papel de conversor. Da mesma maneira que a aboli-
quantificação energéticada troca social, pode-secom efeito chegar-se ção da exploração de classenão significa mecanicamenteo fim da
à conclusão de que o trabalhador consome mais energia do que é capaz opressão de sexo, assim também o desfecho do primeiro conflito não
de recuperar pelo seu trabalho produtivo. Neste caso, o mistério da é suficiente para resolver essa contradição. Em outras palavras, as
acumulação conservar-se-iaintegral, a menos que ela fosseconcebida tormentas ecológicasnão assinalam unicamente o caos da concorrên-
como uma mera antecipação física e uma desestocagemdas reservas cia capitalista. O ecocida burocrático é capaz de desastrespelo menos
naturais. Refutando pelo absurdo as hipóteses de Podolinski, Engels equivalentes. Sea ecologia radical é necessariamenteanticapitalista,
acentua que o homem não conseguiria desenvolver pelo seu trabalho este necessário não é, com toda a certeza, suficiente.
uma energia superior à que se acha contida em seu consumo, seu ren- Essascríticas desviaram Engels de hipóteses fecundas. E isso é tanto
dimento energético sendo necessariamente inferior a 1. A atividade mais lamentável quanto ele próprio chegou a fisgar uma problemática
económica pode perfeitamente conduzir a uma produção energetica- ecológica. Em seu famoso texto Sobre o pape/ do íraba/bo na Irams-
mente superior ao trabalho humano despendidanão em virtude da lormação do manco em comem, ele chega a escrever:"Não nos van-
produtividade energéticaprópria do homem,mas pela exploração gloriemos muito de nossasvitórias sobre a natureza. Ela se vinga em
sacia/ da força de trabalho, a antecipaçãoe a conversão de outros nós de cada uma delas [...]. Assim, a cada passo os fatos estão nos
recursosenergéticos,cuja apropriação e repartição são socialmente
mediadas pela organização do trabalho. +9Friedrich Engels, introdução ao Abri-Dübrfng, op. cit., p. 69

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lembrando que de modo algum reinamos sobre a natureza como um questão de uma "medida comum" entre resultados imediatos e efeitos
conquistador exerce o seu poder sobre um povo estrangeiro, como longínquos, Engels levanta o espinhoso problema da comensurabili-
alguém que estivessefora da natureza, mas sim que Ihe pertencetnos dade das carências e das riquezas entre gerações. O cálculo energético
com nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro, que nos achamos eR não teria como trazer só por si uma resposta. Pode em compensação
seu seio e que todo o nosso domínio sobre ela reside na vantagem que fornecer preciosas indicações.sz
temos, sobre o conjunto das demais criaturas, de conhecermos suas Nos anosvinte impõe-sea idéia de um processotermodinâmico
leis e de podermos nos servir judiciosamente delas [-.]. E, sendo as. duplo (acumulação e dissipação da energia solar), caracterizando es-
sim, mais os homens não apenas sentirão, como também saberão truturalmente uma comunidade ecológica. Os pesquisadoressoviéti-
novamente que eles formam uma só coisa com a natureza, e mais se cos acham-se então na ponta de um pensamento em gestação. Em 1926,
tornará impossível essaidéia absurda e antinatural de uma oposição Vladimir Vernadski estuda em A biosfera a vida terrestre enquanto
entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo totalidade. Por esselivro, ele passaa serconsiderado o pai da ecologia
[.-]." E]e exprime assim uma consciência aguda das ambivalências do global. Em 1930, a obra foi objeto de uma resenhaassinadapor
progresso: "Cada progresso na evolução orgânica é ao mesmo tempo Raymond Queneau na revista A cr#fca socfa/. Queneau acentua "a
um recuo, pois, ao fixar uma evolução unilateral, ele exclui a possi- importância do estudoquantitativo da vida em suasrelaçõesindisso-
bilidade de evolução em muitas outras direções."se O progresso não lúveis com os fenómenosquímicos do planeta". Vernadski chama a
é portanto mensurável em termos de avanços e dc recuos, sobre o eixo atenção para uma degradação inquietante que não seria solucionada
uniforme do escoamentotemporal, mas antes, em termos comparati- senão através da mudança dos modelos alimentares e das fontes de
vos, possíveis temporariamente abandonados e virtualidades perdidas energia. Numerosos institutos de pesquisa e de ensino consagrados à
para sempre. ecologia foram então abertos na jovem república soviética.
'll O desenvolvimento nunca é um simplesaumento quantitativo. Ele Em 1930, o quarto congressopan-russo dos zoólogos registra "a
11é sempre também uma escolha. extraordinária importância da ecologia não somente por suas aplica-
Desde então, o progresso não teria como reduzir-se a uma pesa- ções, mas também do ponto de vista teórico". O congresso recomenda
gem de ganhos imediatos, indiferente às perdas a médio e longo pra- então que a nova disciplina ganhe um lugar nas escolassuperiores de
zo. Ora, o capital leva ao cúmulo a racionalidade unilateral dos mo- agronomia e de pedagogia. Em 1931, D. N. Kasharov publica um com-
dos de produção passadosque "não visaram senão a atingir o efeito pêndio sobre a ecologia das comunidades, Mlefo amóienfe e corou/zf(&z-
útil mais imediato do trabalho: deixavam-seinteiramentedc lado as des,e estimula a criação de uma publicação periódica dedicadaà eco-
conseqüências longínquas, aquelas que só intervinham em seguida, logia e à biocenologia.Os trabalhos de Gausesobre as populaçõese os
que só entravam em ação por causada repetição e da acumulação nichos ecológicos estudam "a estrutura dinâmica e evolutiva das comu-
progressiva". Com efeito, "tanto em relação à natureza como à soci- nidades vivas, em toda a riqueza das estratégias de suas diversas popu'
edade, não se considera principalmente, no modo de produção atual, lações: ataque, defesa, esquiva, fuga, cooperação, simbiose, parasitismo
senão o resultado mais próximo, o mais tangíuei".sl Co\orando a szWilhelm Ostwald tentou, em nome do imperativo energético,redefinir o pro-
gresso como o aumento da disponibilidade de energia, a substituição da energia
seFriedrich Engels,Dfalecffq#ede la ar#re, op. cit., p. 316. humana por outras energias alternativas e o aumento do rendimento termodinâ-
n Friedrich Engels, Dia/ecifq e de / ature, op. cit., pp 182-183 mico na utilização da energia.

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etc.".s3Se os trabalhos de Vemadski e de Gause foram conhecidos e -- Enfim, uma certa idéia de interdependência entre o homem e
reconhecidos quase imediatamente fora da União Soviética, o mesmo a natureza, uma consciênciade sua dupla determinação social e natu.
não aconteceuno casodo ucraniano Vladimir Stanchiski. Ele parte do ral, teria batido de frentecom o voluntarismo burocrático que acaba-
fato de que "a quantidadede matériaviva na biosfera é diretamente va de decretar que o homem era "o capital mais precioso"
dependenteda quantidade de energiasolar transformada pelas plantas A nascente ecologia soviética conheceu portanto a sorte do art
autotróficas" que constitui "a baseeconómicado mundo vivo". A pró. nouueazí,do desurbanismo, da pedagogia de vanguarda. Depois do
peia biosfera seria composta de subsistemas(biocenoses). O equilíbrio Termidor burocrático, já não se trata de mudar a vida, mas de "agar-
dinâmico de cada biocenose seexplicaria pela existência de relaçõesde.. rar e superar" os desempenhosdo próprio capitalismo, de acordo com
finidas e proporcionadas "entre os componentesautotróficos e hetero- a máxima competitiva do produtivismo industrial e esportivo.
tróficos, entre os herbívoros e os camívoros, entre hospedeiros e parasi- Acurados leitores haviam no entanto entrevisto as perspectivas
tas", praticamente ignorados até então. Num artigo de 1931, Stanchiski abertas. Na apresentação de Vernadski, Queneau insiste sobre as
apresenta um modelo matemático que descreveo balanço energético diferençasentre o tempo biológico e o tempo astronómico.Num
anual de uma biocenoseteórica.HSuaaventura intelectual é rompida a outro número de A críflca socfa/, o economista austríaco Julius
partir de 1933. Vítima de perseguiçõesburocráticas, caiu em desgraçae Dickmann busca uma relação entre "o esgotamentodos recursos
foi preso,e suasidéias foram por muito tempo mantidas em segredo. naturais" e a brutalidade das reviravoltas sociais que sacodem en-
Essa ecologia pioneira no país dos sovietes, cuja riqueza foi ma- tão o planeta. Ele chega a sugerir que o socialismo seria não o re-
nifestada pelo CongressoInternacional de História das Ciências e da sultado de um impulso impetuoso das forças produtivas, mas antes
Tecnologia de 19311,teria podido participar da "transformação do uma necessidade imposta pela "diminuição da reserva de recursos
modo de vida", promessa dos anos vinte. Não escapou entretanto à naturais" dilapidados pelo capital. Ele acentua as relações de repro-
reação burocrática. Por razões, aliás, compreensíveis. dução global: "É precisamenteporque se negligencia o ponto de vista
-- Uma ecologia consequentenão teria condições de coabitar com da reprodução que nos achamos completamente enganados quanto
os delírios produtivistas da coletivizaçãoforçada e da industrializa- à capacidadede crescimento das forças produtivas."ss O que, se-
ção acelerada, nem com o frenesi stakhanovista dos anos trinta. gundo ele, caracteriza a fase atual do capitalismo são menosos seus
-- Ela teria obrigadoa pensaro desenvolvimento da economia entraves ao impulso das forças produtivas do que o desenvolvimen-
soviética dentro das exigênciasde seu meio ambiente mundial, no to "irrefletido"em detrimento de suas "condições de reprodução
próprio momento em que os ideólogos do regime inventavam "a cons- permanente", que mina as próprias condiçõesde existência do gê-
trução do socialismo num só país". nero humano. Essa a razão por que haveria ocasião de considerar
-- Ela teria exigido uma verdadeira escolha democrática sobre as com muito ceticismo a eventualidade de um crescimentocontínuo
prioridades e o modo de desenvolvimento,em contradição direta com da produtividade do trabalho.
a cristalização dos privilégios burocráticos e o confisco do poder.

ssJean-Paul Deléage, Hisfolre de I'écologie, op. cit., pp. 166-172. ssJuliusDickmann,"La véritablelimite de la productioncapitalista",La Criti-
s' Ver Jean Batou, "Révolution russe et écologie(1917-1934)", XXême slêcle, que soclale, n' 9, setembro de 1933. A resenha de Queneau sobre Vernadski foi
35. 1992 publicada em outubro de 1931 no número 3 da mesma revista.

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DESRAZÕES ECOLÓGICAS DA RAZÃO ECONÓMICA Nem por isso o debate chega a seu fim.
Os estudos da biosfera tendem a mostrar a vulnerabilidade de seus
Proposta por Raymond Lindeman em plena guerra mundial, a noção equilíbrios e de suassintonias finas. Assim, a emancipação da exigên-
de ecossistema (enquanto unidade das trocas de energia na natureza) cia natural (que reivindicamosaltivamente como nossaliberdade)
inaugura a era da ecologia moderna. O laço entre a mundialização da arrisca-sea ser paga por um desregulamento irremediável. Mas deve-
economia e a emergência de uma "ecologia-mundo" é evidente: «A sepor issoconsiderar adquirida a idéia de um fluxo limitado de matéria
constituição de um espaçoprodutivo mundial é portadora da unifica- e de energia disponível?
ção ecológica do mundo." Essatendência favorece a tomada de cona. Na hipótese segundo a qual o dispêndio de energia animal ou
ciência crescente dos riscos de ruptura nos processos bioquímicos, nas humana desestoca energia solar acumulada sob a forma de energia
perturbações climáticas, nas evoluçõesdemográficas. "A civilização vegetal ou fóssil, as escolhas industriais, a evolução demográfica, os
humana comporta uma série de processos cíclicos interdependentes danos já provocados aceleram vertiginosamente essa desestocagem.
que trazem todos a marca de uma tendência ao crescimento indefini- Nem por isso resulta daí que estejamosameaçadosde penúria energé-
do -- todos, com exceçãode apenasum: o processonatural, insubs- tica absoluta. À escalada espéciehumana, o fluxo de energia recebida
tituível e absolutamente essencial,da contribuição dos recursos pro- bastaria para responder a dispêndios em expansão até a extinção dos
venientesdas riquezasminerais e terrestrese da ecosfera. Um conflito fogos solares ou o Big Crunch. A penúria anunciada é portanto rela-
entre essatendência dos setores da atividade humana, que, no interior tiva. Se for verdade que a energia é também "tempo estacado", trata-
do ciclo, buscamprogredir nele,e os limites intransponíveisdo setor se realmente de um problema de temporalidades. O risco não é o de
da natureza torna-se então inevitável."só Num contexto marcado pela uma pane repentina, mas o do esgotamento de certas formas de ener-
recessão, pela Guerra dos Seis Dias, pela alta do preço do petróleo, os gia, desestocadas
de maneira muito mais rápida do que o ritmo de
anos setenta caracterizam-sepor uma tomada de consciência ecolo. reposição. Evidentemente, tudo isso já se mostra bastante grave para
gasta,pelos apelos de fora-da-lei rebeldescomo René Dumont, assim que se considerem políticas energéticas, escolhas de caminhos, a pri-
como pelos alarmes oficiais do Clube de Romã. Nossascivilizações oridade dada às energiasrenováveis,todas questõesde primeira im-
começam a lembrar-se de que são mortais. portância. Mas não é uma razão suficiente para ceder às ideologias
Hoje é claro que os modelos de crescimento e de consumo dos crepusculares e às robinsonadas. É sempre possível que a humanidade
paísesmais ricos não se estendema todo o planeta. A produção de descubra e defina outros modos de consumo.
uma caloria alimentar consome nessespaíses oito a dez calorias fós- Enquanto se espera, uma autolimitação consciente e consentida
seis. Nesse ritmo, o risco de "crise ecológica" torna-se praticamente dos dispêndios é perfeitamente plausível (e indispensável). O proble-
inelutável: "Quando as temporalidadesda história humanasuperam ma reside de forma clara nessa consciência e nesseconsentimento.
as temporalidades da história ecológica, limiares são então definitiva- Nenhuma escolha ecológica consequente teria com efeito como aco-
mente escancarados na não-reproduçãodosecossistemas ou para sua modar-se à perpetuação das desigualdades,onde o sacrifício reclama-
entropia crescente."s7 do a uns compensada e desencargaria a irresponsabilidade consentida
aos outros.
sóB. Commoner, citado por Deléage,Hlsfoíre dr I'Écolo81e,op. cit., p. 270. Para além das peripécias eleitorais, o debate ecológico tem o mérito
s7Jcan-PauIDeléage,op.cit.,p.250 ' ' '' de colocar brutalmente questões de sociedade essenciais. Certas res-

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Os eventosecológicosdependemde uma longa, e até mesmode


postas com efeito, são não apenascríticas quanto ao produtivisma
uma muito longa duração. Uma medida comum entre seu registro tem-
capitalista ou burocrático, mais visivelmente antiprodutivistas e natu-
ralistas. Sualógica poderia assim conduzir a lamentar que os progres- poral e o da troca social num determinado modo de produção não é
uma coisa evidente. Desencorajado por essaincomensurabilidade, Jean-
sos da medicina, ao erradicar tal ou qual doença, falseiem a regulação
demográfica natural, já que, afinal, não se acha escrito em nenhum Baptiste Say abandonava os recursos naturais a um além inacessível
lugar que a humanidade tenha interesseou prazer em viver cada vez para a racionalidade económica: "As riquezas naturais são inesgotá-
mais velha e cada vez mais numerosa. Nessesretornou de arrependi- veis, pois sem issonão as obteríamos gratuitamente. Não podendo ser
multiplicadas nem esgotadas,elas não são o objeto das ciências eco-
dos a uma natureza nutria, nem sempre a religiosidade está muito longe.
O perigo não é novo. Em 1850, Marx comenta na Napa Gazela nómicas." Esse raciocínio é perfeitamente circular. Se as riquezas
naturais são gratuitas, isso aconteceporque elas não são raras. Senão
Renamoo livro de Daumer, Dfe Re/!gfolzdes BebemWe/fa/leis, típico
de um medievalismo nostálgico. Anatureza e a mulher, escreveDau- são raras, são inesgotáveis. Ergo: as riquezas ditas naturais não são
mer, "são a verdadeira divindade, em contraste com a humanidade e riquezas economicas.
o macho". A submissãodo humano ao natural, do masculino ao h- Say pressupõe uma "economia" definida como gestão de recursos

minino, é "a autêntica, a única humildade, a mais elevada e, na ver- raros. Ora, sua noção de gratuidade é uma categoria económica (liga-
da à troca de bens limitados) exportada sem precauções para dentro
dade, a única virtude e devoçãoque existe". Essareviravolta de pers-
da esfera "extra-económica" (de acordo com sua própria concepção)
pectiva contém o seu grão de legitimidade. A ciência e a tecnologia
modernas impuseram-se correlativamente à exclusão da mulher do da riqueza natural. O que é considerado economicamente gratuito,
espaço público e do saber. Os procedimentos e categorias de um e nos limites de um modo de produção determinado, pode ainda sê-lo
em uma outra escala espaço-temporal?
outro estão impregnados do monopólio masculino. A tal respeito Marx
não detectamenos em Daumer os acentosde um naturalismo reacio-
onde se encontra a falha por onde a. derrocada se propagará. O mundo é vítima
nário. Sua réplica é cortante: "Em face da tragédia histórica que se da opulência em que tem vivido à sua custa, mas ao fazer isso ele também se
abate sobre ele, o Sr. Daumer refugia-se na pretensa natureza, ou seja, renova e acabará encontrando um pouco mais de equilíbrio com um pouco menos
nos estúpidosidílios bucólicos [...]. E]e tenta reconstruir sob forma de habitantes, de beleza e de riqueza. Uma grande pobreza será a consequência
modernizada a antiga religião pré-cristã da natureza [...]. Procura necessária da opulência [-.]. SÓ a pobreza pode nos salvar [-.]: a exigência à
renúncia. E já que ninguém escolherá espontaneamenteo estado de pobreza en-
consolar as mulheres por sua miséria burguesa dizendo-lhes que seus
quanto as riquezas estiverem ao alcance da mão, essapobreza deverá instaurar-
talentos acabam com o casamento,que em seguida têm de cuidar das se como um fado inelutável"(Jürgen Dahl, "La derniêreillusion", Die Zeit, 23
crianças, que podem aleítá-las até os sessentaanos etc. O Sr. Daumer de novembro de 1990, citado por André Gota em (bPifalfsme, Écologie, Socia-
chama tudo isso de submissãodo masculino ao feminino." Aparece Ifsme,Pauis,Galilée, 1991). Aos equívocos de uma ecologia romântica, Cora opõe
assim a face sombria de uma ecologia naturalista, prestes a ressuscitar uma racionalidade ecológica que consiste em satisfazerda melhor maneira as
carênciasmateriais com uma quantidade tão exígua quanto possível de benscom
os cultos pagãosda natureza e a combater a emancipação das mulhe-
valor de uso e durabilidade elevados,portanto mobilizando um mínimo de tra-
res em nome das funções naturais da maternidade.s8 balho, de capital e de recursosnaturais: "A busca do rendimento económico
maximal, emcontrapartida, consisteem vendercom um lucro tão elevadoquan-
to possível um máximo de produções realizadas como o máximo de eficácia, o
sl As afinidades entre os fundamentalismos verdes e religiosos não são circuns-
que exige uma maximização dos consumos e das carências.'
tanciais. André Gorz cita um texto sintomático: "Seria presunçoso ousar predizer

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A querela entre a ecologia e a economia(tal como a entendepelo como uma pechincha ofertada graciosamente à humanidade saberá.
menos a economia clássica e neoclássica) remete ao divórcio entre duas na. Coisa de positivismo e cientificismo.
temporalidades heterogêneas: uma temporalidade económica ritmada
pela reprodução do capital e da força de trabalho; uma temporalidade O capital vive no dia-a-dia, na imediatidade do gozo e na despreocupação
ecológica regida pela estocagem e o dispêndio de energia, que é também pelo amanhã. SÓa burocracia pode rivalizar com seu egoísmode vista
tempo estocada. Recomendando a Engels a leitwa de um livro de Niko. curta. Contra sua pretensãoà etemidade, a ecologiapolítica ataca com
maus
Fraas,"darwinianoantesde Darwin", sobreo clima e a flora no um impiedoso veredicto. Em face dos lugares-comunsdo fetichismo
tempo, Mao( acentua os estragos a longo prazo de certas formas de agri- mercantil,ela constitui um antimito temivelmenteeâcaz.Assim,o merca-
cultura(desertificação).Ele volta ao assuntono livro ll do(;zpíza!, insis- do não satisfaz as carências, mas a demanda. Assim, a moeda não é o
tindo sobre a desarticulação entre a longa duração da silvicultura e a da real, mas sua representaçãofantástica. Assim, a utilidade coletiva não é
economia mercantil: "A longa duração do tempo de produção(que não redutível a uma soma de utilidades individuais. Assim, o económico não
compreende mais que um tempo de trabalho relativamente restrito), e por implica necessariamenteo social, e os lucros do dia não ensejamnecessa-
conseguinte a amP/fl de dos p«fados de roMção fazem da Silvicultua riamente os empregosdo amanhã. Assim, enfim, a esferada economia
algo pouco propício à exploraçãocapitalista, essencialmente privada."sP mercantil não equivale à biosfera: ela nunca é senãouma pequenabolha
Sem alcançar ainda um cálculo em termos de fluxo de energia e cuja racionalidade parcial funciona em detrimento do conjunto.60
sem levar em conta o custo energético dos fertilizantes, Liebig procu- O "reducionismo mercantil" faz como seos fluxos reaise mone-
rava a partir de 1840 a passagemprometedora de uma agricultura de tários, trocando-se uns aos outros, obedecessema uma mesmalógica.
exploração a uma agricultura de recuperação.Tornava-se possível Bastaria então "internalizar" o custo social do dispêndio ecológico
determinar a parte de energiasolar transformada em carbono pelas para restabelecera harmonia da regulação mercantil. Uma tal solução
plantas. No começo dos anos 1880, Podolinski esforçava-sepor in- supõe compatíveis a otimização mercantil e a reprodução do meio
troduzir o problema da energiana crítica da economia política. Em natural na basede uma medida comum, enquanto a energia funciona-
sua brochura de 1885, Sobre as edemase#ergéfícase s#a zlli/ilação ria como "denominador comum a todos os bens que pertencessemou
ao será//çoda # ma/cidade,Clausius fazia soar o alarJnea propósito não à esferamercantil". Todo bem material seria então exprimível
da "questão do carvão": "Nós consumimos essas reservas desde ago- pela quantidade de energia que ele encerra.õí
ra e nos comportamos como herdeiros pródigos."
As descobertasrelativas à transformação e à dissipação da ener- Enquanto a naturezamaximiza estuques(a biomassa)a partir de um fluxo
dado(a radiação solar), a economiamaximiza os fluxos mercantisesgotandoos
gia quase não tiveram entretanto repercussõesimediatas sobre a teo-
estuques naturais não mercantis, cuja diminuição, não aparecendo em nenhum
ria económica. Os obstáculos à "crítica da ecologia política" eram balançoeconómico,não exerce nenhumaação corretiva sobreessesfluxos. En-
consideráveis,o impulso do capitalismo favorecia a divisão do traba- quanto a natureza obedecea uma lógica da interdependência e da circularidade,
lho e o aumento de poder da razão instrumental. Infelizmente. a difu- a decisão económica apóia-se numa relação causal linear simples que confronta
são do marxismo militava no mesmosentido. Os teóricosortodoxos a variaçãode um dispêndio e de um resultado. Ora, todo elementointroduzido
segundo essalógica na esfera económica espalha-se pelos diferentes comparti-
da ll Internacional concebiam comefeito majoritariamente a natureza mentos da biosfera e continua a realizar ali a sua obra"(Rena Passei,"Limites
de la régulation marchando", l,e Àlonde Dip/omafíque, junho de 1992).
s9Kart Marx, l,e Cáfila/, livro 11,t. 11,op. cit., p. 225. õi René Passct, I'Éco omfq e el Je Vít/aHr, Paria, Payot, 1979.

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Infelizmente, objeta René Passet, "a esfera económica e a biosfera SÓuma democraciapolítica radical poderia introduzir um meio-ter-
mo entre esferassem medida comum imediata. Tal é realmente o nó
nunca funcionaram de acordo com a mesma lógica, e, se se podia ig-
norar essefato por todo o tempo em que a primeira não parecia da questão: "0 fato fundamental que a economia ecológica faz valer
ameaçar a existência da segunda, hoje as coisas já não se passam as. contra a economia ortodoxa nãoé outro senão a incomefzsurabi/icü-
sim: nos ritmos naturais que se desenrolam e harmonizam há milênios de. Somos incapazesde conferir aos bens que consumimosvalores
(e às vezes,milhões de anos) a gestão económica introduz a ruptura monetários que dêem conta dos custos ecológicos atualizados."ó3 Não
das maximizações breves,ruptura cujos efeitos não sefarão sentir senão raro perceptíveisa longo, e até mesmoa muitíssimolongo prazo so-
para as geraçõesvindouras".ózEssacrítica invoca uma medida não mente, essescustos deveriam ser avaliados por geraçõesàs quais não
mercantil, estranhaao domínio de uma economia autâmata semcons- podemos atribuir nossas prioridades e nossos critérios de julgamento.
ciência política nem escrúpulo social. Tratar-se-ia de reimbricar a Como contabiliza-los hoje, com a ajuda de instrumentosde me-
economia numa totalidade de determinaçõesecológicase sociais. Sem dida que variam com o tempo? Alguns concluem daí, peremptoria-
substituir completamentea informação monetária, critérios como, por mente, que a "comensurabilidadenão existe".a E até não poderia
exemplo, balanços materiais e balanços energéticos forneceriam in- mesmoexistir no acanhadoterreno da "economia política". Pondo a
formações ignoradas pela racionalidade mercantil. A inserção do eco- nu a relatividade histórica de sua racionalidade, a crítica ecológica da
nómico num conjunto ecossocialexigiria assim "uma gestão norma- economia política reforça sua crítica social. Assim, Georgescu-Roe-
tiva sob constrangimento"; em outras palavras, uma escolha cívica gen não secontenta em chamar a atenção para a parcialidade do ponto
determinada pelas carênciase inscrita no tempo longo deveria preva- de vista económico clássico: ele desvela sua incapacidade (já assinala-
lecer sobre os automatismos mercantis. da por Henryk Grossmann)em pensar de outro modo que não seja
A noção de "gestão normativa", da mesma maneira que a dimen- em termos de equilíbrio. Essa impotência traz a marca de uma episte-
são temporal inscrita nas confusas noções de desenvolvimento dura- mologia mecanicista datada a que a economia analítica, concebendo
douro e sustentável,ressuscitapara algunso espectroda planificação o processo económico como um sistema fechado, conservou-se fiel.a
burocrática. É uma das principais queixas liberais contra a ecologia A construção da economia mercantil como sistemafechado implica
radical. Opondo-se aos efeitos da concorrência cega, ela despertada com efeito uma separação entre os (atores internos e os fatores "exter-
os velhos fantasmasde planificação totalitária. A gestão ecológica nos" ao objeto assimcircunscrito. As "externalidades" sãoentão trata-
normativa corre com efeito os mesmos riscos que a planificação socia- das como fraquezasem relação ao ideal de concorrência perfeita, e o
lista. Ela pode revestir a forma de um novo autoritarismo tecnocráti-
co ou a de uma planificação autogestorae democrática por inventar.
õsJoan Martinez-Allier e Klaus Schlüpman, La.ecologia y la economia, OP. cit.
René Passeté perfeitamente lógico. A previsão a longo prazo, a « William Kapp, Les Coüts Sociaur dalzsI'Économie de À4arcbé,Paras,Flam-
economia de recursos não renováveis, a definição de um novo modo marion, 1976.
de consumo implicam uma reviravolta do próprio modo de produção õs«Não há concepçãomais distanciada de uma interpretação carreta da
realidade. Mesmo que não consideremos senão o aspecto físico do processoeco-
e são incompatíveis com a ditadura de critérios mercantis a curto prazo.
nómico. estenão é circular, mas unidirecional. Também sob esteângulo, o pro'
cessoeconómicoé constituído por uma transformação constantede uma baixa
ózRené Passei,"Régulation marchando au temps despollutions globales", em l,e entropia numa entropia elevada, ou seja, em um desperdício irrevogável" (Geor-
Molde est-ll upzÀfarc#é?,Acr e/ À4an, Pauis,PUF, 1991. gescu-Roegen,Tbe EnlroPy Law and rbe Eco omlc Process,Londres, 1971)-

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meio ambiente como um de seuscasosparticulares. A avaliação more. não teriam como intervir diretamente. A incomensurabilidade entre o
pária dos bens e serviços relativos ao meio ambiente não exprime senão nível económico e o nível ecológico não é absoluta. Ela não é menos
de modo insatisfatório seu "verdadeiro valor". É com efeito impossível real no quadro do modo de produção capitalista e testemunhapor
estabelecer "corretamente" uma tal avaliação sem passar pela produção isso mesmo seus limites históricos.
e a troca, pelo trabalho abstrato, que funda a comensurabilidadesocial A passagemjá longamente citada dos Grundrlsse ilustra a largue-
das mercadorias. Já "a economia do bem-estar", segundo Pagou, sugeria za de vista de Marx a esserespeito. À medida que se desenvolvea
taxas que representavam não mais uma medida mercantil, mas Uma produção industrial, que se torna mais complexa a organização do
estimaçãodos custossociaispelo Estado,portanto um juízo diretamen- trabalho, que o próprio trabalho incorpora mais sabersocialacumu-
te político. Para ele, a taxa equivale a um sinal-preço cujo propósito é lado, "a criação da riqueza" entretém uma relação cada vez mais
supostamente restabelecer a concorrência perfeita. Essastentativas de longínqua com "o tempo de trabalho imediatamente despendidopara
internalização levam em conta problemas malsãos aproximativamente produzi-la". Ela depende"do nível geral da ciência e do progresso da
conversiveisem critérios mercantis,mais do que os danos duradouros tecnologia": "A riqueza real manifesta-se antes na extraordinária
infligidos à biosfera de acordo com uma outra escala temporal. Contra desproporção entre o tempo de trabalho utilizado e seu produto, exa-
os esboços de economia social, a racionalidade concorrencial e a busca tamente como na discordância qualitativa entre um trabalho reduzido
do lucro máximo levam constantemente as empresas a externalizar os a uma pura abstraçãoe a força do processo de produção que ele con-
custose a intcrnalizar os benefícios.O estabelecimentoextra-económi- trola." O trabalhador vivo torna-se cada vez mais estranho ao pró-
co de uma "norma ambiental" permaneceportanto uma operação in- prio trabalho. Ele é deixado "de lado do processoda produção em
certa que depende, em última instância, de arbitragens democráticas.« lugar de ser seu agente essencial"
A conseqüência explosiva dessa transformação é que a própria
medida de toda riqueza(e por conseguinte a medida comum de toda a
relação social que liga entre si trabalhos isolados e parcelares) torna-se
A MISERÁVELMEDIDA DE TODA niQUEZA derrisóriae "miserável": "0 roubo do tempo de trabalho de outrem
sobre o qual repousa a riqueza atual aparece como wma base mlseráz.'e/
Pode-se conjugar racionalidades distintas sem confundi-las, como o comparada à recentementedesenvolvida, que foi criada pela própria
faz André Gorz quando confereà baixa tendencial da taxa de lucro grande indústria. A partir do momento em que o trabalho sob a sua
um fundamento ligado ao meio ambiente. O rendimento decrescente forma imediata deixou de ser a grandefonte da riqueza,o tempo de
ou o esgotamento relativo de recursos naturais pode acarretar indire- trabalho deixa necessariamentede ser sua medida e por conseguinteo
tamente uma elevação da composição orgânica do capital. Mas o efei- valor de troca de ser a medida do valor de uso [...]. De um lado, portan-
to ambiental não irrompe sem mediações nas tendências específicas to, [o capita]] dá vida a todas as forças da ciência e da natureza, como
da acumulaçãocapitalista. Ele exprime-sepor intermédio de suas às da combinação e da comunicação sociais para tornar a criação de
categorias conceituais específicas (composição orgânica, valor exce- riqueza independente(relativamente)do tempo de trabalho que está
dente, taxa média de lucro) em cuja formação os balanços energéticos contido ali. Por outro lado, ele quer medir pelo tempo de trabalho essas
gigantescasforças sociais assim criadas e aprisiona-las dentro dos limi-
õóWilliam Kapp, Les coúlssoclauxdais /'écomomie
de marcbé,op. cit. tes requeridos para conservar como valor o valor já criado." Essabase

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miserável traz consigo o desregramentogeneralizado da relação dos pamentos técnicos e a organização do trabalho quanto o desenvolvi-
homens entre si, assim como de sua relação com a natureza. mento do sabercientífico e as condições institucionais de sua produção.
AÍ estamos! O desemprego estrutural massivo, o subemprego e a Como as classessociais ou o trabalho produtivo, as forças produtivas
marginalidade generalizados,as exclusõessociais em escala planeta. não têm portanto nem o mesmo conteúdo nem a mesma significação,
ria manifestam de maneira surpreendentea inadequação do tempo de segundo sejam consideradas /zo sefzfido amp/o, comum a diferentes
trabalho enquanto medida das "gigantescasforças sociais". A crítica modos de produção, ou no sefzlido especí#co ao modo de produção
ecológica acrescentaa essediagnóstico que o tempo de trabalho apa- cáfila/fofa. Produfiz/as do ponto de pista do cáfila/, elas podem revelas-
rece a Áorl/ori como uma unidade de medida bastante "miserável» se destrutivas para o porvir da humanidade.
para regular as trocas entre o homem e a natureza ou para estabelecer À medida que se passa das determinações mais abstratas (natu-
uma relação de solidariedade entre gerações. Em outras palavras, se é rais e técnicas) para as mais concretas (incluindo a relação social de
perigoso confundir pura e simplesmente as temporalidades e os crité- trabalho, a produção e a aplicação dos conhecimentoscientíficos
rios próprios da economiae da ecologia,de fundir seuscamposde etc.), a contradição já não diz respeito apenasàs forças produtivas
conhecimento interdependentes mas específicos, elas têm condições e às relações de produção. Ela se inscreve no próprio âmago das
de marcar um encontro numa crítica comum da incomensurabilidade. forças produtivas e põe em ação noções como crescimento e desen-
na compreensão da crise generalizada da medida pelo tempo de tra- volvimento. Há com efeito "crescimentos sem desenvolvimento",
balho e na exigência de uma outra regulação da relação social. Sese em que a oscilação quantitativa da razão instrumental nega suas
conseguir estabelecerum laço lógico, orgânico, não formal, entre as finalidades sociais.
metamorfoses do trabalho, o desperdício acelerado da força de traba- A idéia de uma transformação das forças potencialmenteprodu-
lho e os parâmetros da crise ecológica planetária, esseencontro pode- tivas em forças efetivamente destrutivas, num outro registro tempo-
rá tornar-se o ponto de partida para uma nova aliança teórica. ral, é sem qualquer dúvida mais fecunda que o esquemamecanicista
da oposição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as rela-
Ao acentuar os limites da economia política, a crítica ecológica poria ções de produção que a entravam. Ela libera o caminho para uma
em evidência,de acordo com Martinez-Allier, duas falhas da teoria elaboração crítica do próprio conceito de progresso, enquanto "pro-
marxiana.
gressodiferenciado" (de acordo com uma fórmula de Ernst Bloch),
1) "0 ponto de vista ecológico põe em risco a noção de forças pro- oposto à abstração unilateral das ilusões do progresso.
dutivas, mas não oferece novas teorias do valor económico." Ele dá 2) Buscando no cálculo energético "uma contribuição aos críticos
uma definição mais adequada do conceito de forças produtivas, forne- das teorias do valor", Joan Martinez-Allier contradiz em parte sua
cendo-lhe"uma clara referênciaempírica". Uma acepçãonão crítica própria profissão de fé: "Nós economistas ecologistas não propomos
dessa noção de forças produtivas teria alimentado as quimeras de um uma nova teoria do valor: contestamos a comensurabilidade, seja em
comunismo onde o curinga da abundância suprimida as contradições termos de preços de calorias ou de tempo de produção."ózE ainda
da distribuição e o problema de uma informação não monetária. Marx. afirmando a incomensurabilidade de temporalidades heterogêneas,
com efeito, quase não define essasforças produtivas. Procedendo por umas em relação às outras, ele não tira disso as conclusões lógicas que
determinações,ele se contenta,na maior parte do tempo, com um in-
ventário descritivo, que compreende tanto as matérias-primas, os equi- õ7Joan Martinez-Allier e Klaus Schlüpman,La ecologia y la ecofzomia,op. cit

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se impõem. A teoria do valor-trabalho não pretende fundar uma nova cantil, mas em nome da natureza oposta ao artifício), as campanhas
ciência económica. Ela conserva-seum saber negativo, uma crítica da contra a contraconcepção e o direito ao aborto em nome da naturalida-
economia política imanente a seu objeto específico (a economia en- de das funçõesmaternais. Mais geralmente,não é fortuito que um na-
quanto esfera separada),chamada a extinguir-se em sua superação.A turalismo radical possa desembocar num "realismo" anti-humanista:
crítica ecológica, em termos de balanços materiais ou energia, exige "Nossa solicitude humanista para com os pobres dos bairros miseráveis
ao contrário uma mudança de terreno, uma superação da economia das grandes cidades ou do terceiro mundo e nossa obsessãoquase obs-
política do ponto de vista da biosfera. Ela se situa num outro plano cena da morte, do sofrimento e da dor -- como se, enquanto tais, essas
lógico e dependede uma outra racionalidade que não a teoria do valor. coisas fossem malsãs --, todos essaspensamentos desviam o espírito do
que ela não saberiainvalidar em seupróprio nível de determinação. problema de nossa dominação rude e excessivado mundo natural."óP
Do restabelecimento do ser vivo em sua unidade orgânica, Gala Mudança de direção e de prioridade.
surge como uma sedutora e poética hipótese. O homem já não se acha Último ato da revolução copernicana e darwiniana.
separado de seu meio ambiente, mas intricado como a parte no todo. Fim do grande sonho prometéico. Banido do centro do mundo para
Sejaportanto a envolvente e acariciante Gala. Mas uma deusaconti- seuslimites sem margem, o homem não é mais o segredodo homem
nua sendo uma deusa. A recusa declarada do antropocentrismo ali- nem sua senha. Suas misérias, suas epidemias, seus sofrimentos e sua
menta a contragosto o reencantamento antropomórfico da natureza morte não são mais que peripécias e avataresde um grande equilíbrio,
tornada novamente mulher, misteriosa e maternal como é preciso. Uma sem entendimento nem vontade, algo que já horrorizava Leibniz. Hou-
religiosidade sorrateira insinua-se até nas palavras, coisa que preocu- ve necessidade do egoísmo furioso, a pretensão e o orgulho do animal
pa o próprio pai de Gaia: "De modo algum considero Gaia um ser humano para achar que possui uma tal precedência no coração de Gaia,
sensível,um substituto de Deus [...]. Quando elaborei meu primeiro equitativamente aberto a todas as criaturas. De acordo com essalógica,
livro sobre Gala", escreveJamesLovelock, "não fazia a menor idéia a natureza acaba por ter costas largas. Se sua relação com os homens
de que seria encarado como uma obra religiosa. Ainda que eu achasse passasemprepela mediação da relação dos homens entre si, o procla-
que seu tema central fosse a ciência, um número bastante expressivo mado primado da natureza sobre o homem conserva-secomo o álibi de
de leitores foi de opinião diferente. Praticamente dois terços das car- interessessociais bem particulares. A EC0-92, realizada no Rio de Ja-
tas que então recebi e que continuam chegando dizem respeito ao neiro, ilustrou à sua maneira a imbricação da ecologia nas relaçõesso-
significado de Guia no contexto da fé religiosa."õ8 ciais de exploração, de dependência e de dominação.
Suainquietaçãoparecetanto mais justificada quanto a denúncia da Grávida de vários desenvolvimentos possíveis,ela não é um novo
liberdade humana como fatos de perturbação do ecossistemapode con- abre-te sésamo.Enquanto o "ecodesenvolvimento" invoca um domí-
duzir a "novas alianças" inesperadas,tendo como premissas expedien- nio consciente e coletivo das ciências, das técnicas, das escolhas de
tes como o controle autoritário dos nascimentos,esterilização forçada, produção e de consumo, por conseguinte uma opção democrática
a rejeição das técnicas procriativas(não em função de sua lógica mer- radical e uma iniciativa de todos recusando-sea reduzir a ecologia ao
mero papel de muleta de um progresso disforme, a "ecocracia" pode-
ria valer-se, ao contrário, das formas de um ambientalismo re(ormista
õ8JamesLovelock, l,es .agesde Gala, Paria, Laffont, 1990. Vcr a propósito o
artigo de R. Locheade C.-A. Udry, "La vie en retour-. d'une ruptura'p l.a Brêcbe,
número especial, de 17 de janeiro de 1992, Lausanne.

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e tecnocrático, perpetuando, sob o pretexto do conhecimento de cau. zações longas, onde se eliminam as diferenças entre modos de produ-
sa especializado, o desencargo e a desresponsabilização do cidadão. A ção e onde se mitigam escolhas sociais esse#cialsem esmZab mama,
um ultradeterminismo ecológico e energético teria conseqiiências aná-
ecologia não permite responder à questão: quem decide e em função
de que critérios? Quando a comunidade científica se divide, a compe- logas. A crítica da economia política submergeria então no oceano
tência não teria como pretender resolver sozinha a controvérsia. sem fundo nem praias da ecologia geral. Se a escolha energética do
moinho de vento ou da energia nuclear embarcou irreversivelmente a
A ecologianão escapaà política. A alternativa entre ecologia
naturalista e ecologia política remetea problemas essenciais.Onde as humanidade por vários séculosnuma aventura que ela já não pode
falsas evidências podem tornar as pessoascegas para o mais impor- dominar, as responsabilidadespropriamentepolíticas, fortemente
tante. A própria palavra ecologia tende a passar a idéia de uma dis- condicionadas e terrivelmente restritas, não se exercem mais senão à
ciplina científica bem definida e estabelecida.Popper, entretanto, te- margem. Tratar-se-ia apenas de moderar os efeitos imediatos de um
ria atribuído à ecologia, como fez com o marxismo e a psicanálise, o crescimento predatório e de rezar pela conjuração da catástrofe final.
status de ciência que não se pode refutar, portanto uma não-ciência. A menos que se invertam as propostas e se reivindique, em nome
O objeto específico do que se anuncia como ecologia é certamente de uma crítica da ecologiapolítica, um aumentode livre responsabi-
difícil de escrutar. No caso de especifica-lo, ela estará alertando com lidade e de responsávelliberdade para o homem enquanto "ser natu-
disciplinas parciais já constituídas.No caso de assumir-secomo co- ral humano"
nhecimento de uma totalidade orgânica, estará erigindo-se como meta-
história, metaciência e metafísica ao mesmo tempo. Afirmando a identidade entre humanismo e naturalismo conseqüente,
Entre essesdois lados, a ecologia deveria, mais modestamente. o jovem Marx encaravao comunismo como um "naturalismo consu-
definir suas relaçõescom a economia e com as teorias existentes. Do mado". "0 comunismo, abolição positiva da propriedade privada (ela
ponto de vista do tempo longo, Jean-PaulDeléageconsidera os siste- mesmaalienaçãohumana de si) e por conseguinte apropriação real da
mas energéticos como determinantes pesados, comuns a diferentes essência humana pelo homem e para o homem; portanto retorno total
sistemasprodutivos. Um sistema energético pode assim submeter a si do homem para si enquanto homem social, isto é, humano, retorno
diversos modos de produção. Dessa maneira, a energia nuclear deter- consciente e que se operou conservando toda a riqueza do desenvol-
minaria a dinâmica das economiascapitalistas de mercado como eco- vimento anterior. Essecomunismo enquanto naturalismo consumado
nomias burocráticas de comando.'o Nutrida dos trabalhos históricos = humanismo, enquanto humanismo consumado = naturalismo; ele é
sobre o tempo longo, essahipótese divide com eles suas conseqüênci- a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza,
as paradoxais. Autores como Pierre Chaunu ou Emmanuel Le Roy entre o homem e o homem, a verdadeira solução da luta entre existên-
Ladurie, que condenam Marx por seudeterminismo económico, mer- cia e essência,entre objetivaçãoe afirmação de si, entre liberdade e
gulham assim num ultradeterminismo climatológico, geológico, de- necessidade,entre indivíduo e gênero. Ele é o enigma resolvido da
história e se reconhece como essa solução."7í
mográfico, a ponto de reduzir o evento a uma peripécia acidental, de
Essa superação histórica das antinomias filosóficas implica uma
que não haveria historicamente mais nada a dizer. Propondo periodi-
conclusão audaciosa para o conhecimento científico: "Portanto a socie-

'oJcan-} aul Dcléage, em colaboração com Jcan-Claude Debeir c Daniel Hémery,


7i Kart Marx, Àla scrifs de 2844, OP. cit
Z,esSemlmdes de la p fssance, ##e #isfoire de /'é#ergfe, Paria, Flammarion, 1987.

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dadeé o remateda unidadeessencialdo homemcom a natureza.a o universo, a hipótese é factualmente falsa. Ela conserva-sepertinente
verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem numa concepçãoinspirada em Vico e em sua "ciência nova", em que a
e o humanismo realizado da natureza [-.]. A própria história é uma parte conhecível da natureza é precisamente a da natureza humanizada
parte real da história da natureza,da Ira sáozma(:ão
da nmlurezaem pelo trabalho; aquela em que a praxis imprimiu sua marca identificável.
comem. As ciências da natureza compreenderão mais tarde também a Desseponto de vista, não haveria como existir aí separaçãodefi-
ciência do homem quanto a cfê cla do comem eng/obarü as ciê elas da nitiva entre naturezae sociedade.Contra suaprópria afirmaçãorepe-
zalzl em: baterá alma zZnía cfê cla."n Quem quer que seavenhaà idéia tida, segundo a qual a determinação social não elimina a determina-
de um Marx cientificista, erigindo as ciênciaspositivas da natureza ção natural, Marx pareceassim considerar que não existe nenhum
como modelo absoluto de cientificidade, não pode sentir-se senãodes- limite natural fora doslimites sociais.É pelo menosa interpretaçãode
concertado por esta perspectiva. Ela manda para o espaço a grande Lukács, que, num estágio determinado do desenvolvimento histórico,
fronteira classificatória entre ciências experimentais e ciências humanas. reduz a natureza a uma categoria social: "A natureza é #ma calegorfa
naturais e sociais, monográficas e idiográficas. A idéia de uma socializa- soda/, ou seja, num estágiodeterminado do desenvolvimentosocial
ção integral da natureza, "da transformação da natureza em homem". aparececomo naturezao modo sob o qual se realiza a relaçãoentre
sugere que as ciências da natureza seriam chamadas a fundir-se na ciên- essanatureza e o homem e a forma sob a qual seproduz a adequação
cia do homem. Não é entretanto o que diz Marx. Na verdade,ele assi- entre este e aquela, e, por conseguinte, o que a natureza deve signifi-
nala para um terceiro caminho, o de um envolvimento recíproco, no car concernenteà sua forma e ao seu conteúdo,seualcancee sua
qual as ciências da natureza "compreendam" a ciência do homem, que objetividade, é sempresocialmentecondicionado."'s Assumindoa parte
as "engloba". Essecredo epistemológicotraduz uma estratégiacogniti- ativa do idealismo, essainterpretação subjetiviza a natureza ao redu-
va. Enquanto um naturalismo inconseqiientesubordina as ciênciasdo zi-la à sua auto-organização sob o efeito da praxis histórica. Inversa-
homem a uma metaciência natural, o "naturalismo consequente" faz da mente, a ortodoxia positivista do marxismo stalinizado reduz a pra-
natureza socializada o verdadeiro objeto de conhecimento. xis histórica a um mero aspecto das relações naturais objetivas.
Marx volta alguns mesesmais tarde ao assunto na Idem/agia a/emã: Essadupla tentação é o reflexo de uma dificuldade não superada, na
"Nós não conhecemos selzão alma c/anciã, a ciê/zcü (&z b/sfórü. SÓ a qual a relação incerta entre natureza e história recobre a relação igual-
história pode ser considerada sob os dois aspectos, dividindo-se em his- menteproblemática entreo morto e o vivo, entrea naturezacomo forma
tória da natureza e história da humanidade. Entretanto, não se devem universalda "matéria não viva em movimento"(Engels)e a história
separar essesdois aspectos; na medida em que os homens existem, a como auto-organizaçãodinâmica da matéria viva. No horizonte episte-
história da natureza e a história dos homens condicionam-se reciproca- mológico de sua época, Marx não baseia a unidade da ciência, como fará
mente." Esta idéia participa da ruptura com Feuerbach.A naturezaan- ulteriormente Carnap, na redutibilidade de toda reflexão científica a seu
terior à história humana "já não existe em qualquer lugar em nossos modelo físico. Tampouco resigna-seà grande divisão entre ciências físi-
dias, senão talvez nos mares austrais e em alguns atóis". Ela está dora- case históricas. Ele instala-se numa contradição real. A unidade da ciên-
vante humanizada e historicizada pelo trabalho humano. Seentendemos cia não poderia ser proclamada arbitrariamente. Ela própria é um pro-
por natureza não apenasa terra e seu meio ambiente imediato, mas ainda cessohistórico de unificação mediada entre sujeito e objeto.

n Ibid., p.96. Hfsfoíre el co#scie ce declasse,Paria, Éditions deMinuit, 1965

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Assim compreendida, a perspectiva "de uma só ciência" é antes mos de novo a mensagemdo convencional Coupé de I'Ousefalando
confirmada pelas tendências epistemológicas profundas de nosso tem- de "economia social" ou do historiador Edward P. Thomsonfalando
po: aproximação das ciências do ser vivo e das ciências sociais com as de "economia moral".7ó Social ou moral, essa economia é irredutível.
teorias de informação e dos sistemas, trocas e confrontos entre subsis- seja unicamente à medida monetária, seja unicamente à medida ener-
temas económicos abertos para os sistemas ecológicos (ecossistemase gética.Ela esforça-sepor manter as duas pontas unidaspela escolha
biosfera), dialética estrutural e hermenêutica, impulso das ciênciasda democrática. Se se renuncia às ilusões de uma socialização integral da
forma.74 natureza como de uma naturalização integral do homem, a contradi-
ção aparece em sua realidade crua.
A crítica da economia política não pretende fundar uma ciência geral Impossível escapar então aos tormentos da matéria.
da economia. Ela se quer como crítica do capital. Por isso não teria O conhecimento introduz um princípio de evolução (de informa-
como esgotar as exigências das determinações naturais e acabar de ção, de auto-organização, de entropia negativa) contraditória com as
vez com o tormento da matéria. sombrias predições termodinâmicas. A questão é de saber se, como na
A crítica da ecologia política, por sua vez, não conseguiria, a ri- evolução das espécies,esse"efeito reversivo" da consciênciacoletiva
gor, absorver a crítica da economia política. Uma e outra podem, em é ou não suscetível de resolver a antinomia entre economia e ecologia.
compensação, estabelecer uma relação fecunda a partir de temporali- Em outras palavras, se a economia mora/ e elzPmPO/bica pode har-
dades diferentes. O diálogo entre ambas é então rigorosamente in- monizar os ritmos de renovação dos recursos naturais, dos levanta-
compatívelcom oscânonesdo "individualismo metodológico", já que mentos autorizados, de autodepuração dos meios, enquanto se espera
o cálculo de interesse privado ignora por princípio a relação univer- a descoberta de novas energias renováveis ou o meio de reciclar a
salista e altruísta entre gerações: "A teoria económica, baseando-se grande massa de energia improdutivamente dissipada.
apenasnas trocas entre agentescuja conduta orienta-se pela raciona-
lidade postulada e o cálculo utilitarista, é incapaz de tratar a atribui- "A verdadeira riqueza da sociedade e a possibilidade de uma ampli-
ção intergeracional dos recursos esgotáveis."7s ação ininterrupta de seu processo de reprodução não dependempor-
Na falta de comensurabilidade monetária, essarelação deve ser tanto da duraçãodo trabalho excedente,mas de sua produtividade e
pensada em termos éticos, estéticos ou simplesmente políticos. Tra- das condições cais ou menos aperfeiçoadas dentro das quais ele se
tando-se de utilizar e de distribuir recursos esgotáveis, é com efeito realiza. De fato, o reino da liberdade começasomente quando se dei-
impossível separar a eficácia económica do critério social. Voltamos xa de trabalhar por necessidade e oportunidade imposta do exterior;
a encontrar assim pensamentosque quase não admitiam a idéia de assim, ele $esitua além da esferade produção material propriamente
economia, pura e simplesmente,de lógica mercantil bruta. Recebe- dita. Da mesmamaneiraque o homemprimitivo develutar contra a

74Essaanalogia entre a economia c as "ciências da vida'(de preferência às ciên-


cias mecânicas) foi sublinhada desdeo começo do século por estudiosos tão di- 7õEm l.a Tbéorie desbesofns cbez Maré, Agnês Heller sublinha igualmente que
hrentes entre si quanto K. Boulding, Dali, RenéPassct,JamesLovclock, Benoít a categoria de carências transgride os limites da economia política, precisamente
Mandelbrot. porque ela sutura, atravésda historicidade das carências,o natural e o social.
7sJoan Martincz-Allier e Klaus Schlüpman,la ecologü y ü economia op Opera por conseguinte como uma espécie de categoria crítica do horizonte da
economiapolítica e de categoriatransitória para o horizonte do comunismo.

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para.prover suas carências, manter-se vivo e reproduzir-se, vés da incomensurabilidade crescentede atividades sociais não redu-
o homem civilizado é também forçado a fazê-lo e fazê-lo sob qualquer tíveis ao trabalho abstrato. Já acontecia isso com a obra de arte, cujo
estrutura da sociedade e modo de produção. Com o seu desenvolvi- valor mercantil é determinado especulativamente, sem relação conce-
mento estende-seigualmente o domínio da necessidadenatural, por- bível com o tempo de trabalho socialmente necessárioà sua produ-
que as carências aumentam; mas, ao mesmo tempo) ampliam-se as ção. E assim vem acontecendo cada vez mais com os trabalhos inte-
forças produtivas para satisfazê-las.Neste domínio, a única liberdade lectuais e científicos: "Se o processo produtivo torna-se esfera de
possível é que o homem social, os produtores associadosregulem aplicação da ciência, então a ciência torna-se inversamenteuma fun-
racionalmente suas trocas com a natureza, que eles a controlem jun- ção do processo produtivo [...]. Enquanto produto do trabalho inte-
tos em lugar de serem dominados por sua força cega e que realizem lectual, a ciência seacha sempre abaixo de seu valor. Porque o tempo
essastrocas despendendoo mínimo de forças e nas condiçõesmais de trabalho necessárioà sua reprodução não tem nenhumarelação
dignas, mais conformes à sua natureza humana. Mas essa atividade com o tempo de trabalho necessárioà sua produçãooriginal."'8 A
constituirá sempreo reino da necessidade.É além que começao de- economia política tropeça exatamente aqui com a incomensurabilida-
senvolvimento das forças humanascomo fim em si, o verdadeiro rei- de entre temporalidadesheterogêneas(ciclo do capital e ciclos da
no da liberdade que não pode expandir-se senãose fundando sobre o natureza, relações temporais entre gerações) e com o caráter miserá-
outro reino, sobre a outra base,a da necessidade.A condição essen- t/e/ de suas próprias medidas, que sua crítica ecológica confirma.
cial dessa expansão é a redução da jornada de trabalho."77
Atribuir a Marx uma concepção profética do fim da história no
reino da liberdade é um lugar-comum. Essabanalidade repousa numa
interpretação trivial da "necessidade" confundida com a fatalidade.
Vimos que a necessidadenão é em seu pensamentoa certeza positiva
do porvir, mas a percepção negativa dos limites íntimos do capital. A
crítica da ecologiapolítica reforça a da economia política. O capital
pode sobreviver a si mesmo e decompor-se no círculo de ferro desses
limites, sem chegara transgredi-los.Ele pode mudãt de escalae de
dimensão sem convulsõesporque é incapaz de dar origem às novas
medidas sociais que permitam harmonizar as relações dos homens entre
si e com a natureza.

A exploração mercantil da força de trabalho e a redução das re-


laçõessociaiscom a medida comum do tempo de trabalho social re-
vela a perda de funcionalidade profetizada pelos Gr#ndrísse através
de um desempregode massaendêmico,de novas precariedadese
marginalidades, das crisesde produção excedente,mas também atra-

n Kart Man, l.e Capital, livro 111,


t. lll, OP.cic.,P. 199. 7sKarl Mare, Àda#uscrils
de 1861-1863, OP.cit

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