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SUMÁRIO

Capa
Rosto
INTRODUÇÃO: As ecologias não políticas do net-ativismo
PARTE I – AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS
1. PARA ALÉM DAS FORMAS SOCIAIS DA PARTICIPAÇÃO
1.1 A crise da ideia sociológica do social
1.2 Das morfologias sociais às ecologias comunicativas
2. AS TRÊS ECOLOGIAS DA INTERAÇÃO
2.1 Sobre a ideia ecológica da comunicação
2.2 As três ecologias comunicativas da interação
PARTE II – AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS SOCIAIS
3. AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS SOCIAIS
3.1 As arquiteturas informativas de disseminação
3.2 As arquiteturas informativas de diálogo
4. DEMOCRACIAS ELETRÔNICAS
4.1 As Ecologias eletrônicas
4.2 O campo demoscópico e o m dos pontos de vista centrais
PARTE III – AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS DA COLABORAÇÃO SÓCIO-
TÉCNICA
5. DO PÚBLICO PARA AS REDES
5.1 As ecologias comunicativas da colaboração
5.2 Da participação democrática às redes colaborativas
5.3 O caráter não social das redes digitais colaborativas
6. ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO NET-ATIVISMO
6.1 A forma rede do net-ativismo
6.2 A fase de origem: o ciberativismo e o cyberpunk
6.2.1 Da mídia alternativa à mídia participativa
6.2.2 O ciberativismo e o cyberpunk
6.2.3 Hakim Bey e as zonas autônomas temporárias
6.2.4 Luther Blissett: o ativismo comunicativo e a participação anônima
6.3 A rede descentralizada: o neozapatismo e a con itualidade intergaláctica
6.3.1 Do cyber ao net-ativismo
6.3.2 O neozapatismo e a con itualidade intergaláctica
6.3.3 A forma rede do neozapatismo
6.4 O net-ativismo, o con ito e a participação em redes distribuídas
6.4.1 As ecologias comunicativas colaborativas do net-ativismo: uma pesquisa
internacional
7. O NET-ATIVISMO E AS DIMENSÕES ECOLÓGICAS DO AGIR DAS REDES
DIGITAIS: 20 TESES EM BUSCA DE UMA LINGUAGEM
PARTE IV – AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS TRANSORGÂNICAS
8. ECOLOGIAS TRANSORGÂNICAS
8.1 De planeta a organismo vivo: Gaia e a crise da ecologia ocidental
8.2 A info-ecologia: as redes digitais como condição habitativa
8.3 A infomatéria: do antropoceno aos sistemas operativos ecológicos
9. O FIM DA AÇÃO SOCIAL: O NET-ATIVISMO E AS DIMENSÕES NÃO
AGREGADORAS DO COMUM DIGITAL
9.1 Era uma vez o ator social: as ecologias transorgânicas e a impossibilidade da ação
9.2 “Fechando o zíper” da barraca: por que as ciências sociais e a Teoria Ator-Rede não têm
nada a dizer sobre as redes digitais?
9.3 Por que as redes digitais não são resultados de ações de actantes?
10. αιον – O ATO CONECTIVO: AS INTERAÇÕES TRANSORGÂNICAS NAS
REDES DIGITAIS
αιον-0 - Da ação ao ato conectivo
αιον-1 - A transubstanciação: o sangue digital e a substância conectiva
αιον-2 - A-dinamismos conectivos
αιον-3 - Pokemon Go: a infoação
Referências Bibliográ cas
Coleção
Ficha Catalográ ca
Notas
INTRODUÇÃO

As ecologias não políticas do net-ativismo


A crise ecológica contemporânea, que tem gerado eventos e debates
culminados na última Conferência do Clima (COP 21), realizada em Paris em
novembro passado, e que tem começado a inspirar políticas em nível mundial,
tanto por parte de governos quanto nas áreas de gestão empresarial, constitui
provavelmente uma das máximas expressões da crise do imaginário político
moderno, baseado na centralidade da ação humana e em uma suposta e urbana
separação entre o sujeito humano e a natureza. A própria ideia de democracia,
imaginada como o livre debate entre indivíduos e sujeitos racionais no interior
da pólis, assim como a ideia sociológica do social – que o concebera limitando-
o a membros unicamente humanos, como algo organizado a partir de uma
contratualidade entre “soci”, que opunha grupos e classes sociais por interesses
e visões de mundo –, não conseguem mais descrever a complexidade das
interações que se ativam no interior de Gaia. A crise de nitiva de tal concepção
antropocêntrica, que tem marcado a tradição losó ca, política e social do
Ocidente, encontra, na época contemporânea, origem nas novas formas de
conexão possíveis, após a difusão das redes ecológicas digitais, isto é, nas
diversas formas de conexão de vários tipos de superfície (Internet of things) que
têm permitido a emissão de uma in nidade de informações em tempo real na
web, provenientes de todo tipo de substância: vegetal, animal, geológica etc.
Tal inovação tem engendrado, em toda a biosfera, uma comunicação
generalizada que tornou possível o contínuo monitoramento do estado de
saúde e do impacto das atividades humanas (antropoceno) na superfície
terrestre, no ar, nos oceanos, nas orestas etc. O resultado foi uma clara tomada
de consciência dos limites da ação humana e de sua estreita dependência de
elementos e estruturas não humanas e, consequentemente, a emergência de um
novo tipo de protagonismo e de uma nova ideia de interação realizada em
colaboração com diversos atores não humanos (água, ar, orestas, oceanos,
biodiversidade) excluídos pela pólis e, até pouco tempo, dentro do contexto da
tradição política, losó ca e social do Ocidente, não participantes, nem ativos
como membros das esferas públicas de discussão e de decisão. Um ulterior
passo em direção à superação da centralidade do sujeito humano e da ideia
ocidental de política foi cumprido pelo advento dos Big Data, que tornaram
possível a superação das ecologias urbanas, e o advento de complexidades
informativas globais.
A conexão via sensores e a transmissão em ondas RFID, de diversos tipos de
superfícies (Internet of things), têm contribuído para gerar uma quantidade
incalculável de dados, cujas gestão e organização são con adas a robôs e
softwares de administração de dados capazes de reunir, manipular e analisar
uma massa inestimável de dados (Big Data). O ambiente até agora considerado
externo e circundante, transformado em informações e uxos de dados,
tornou-se, assim, comunicante, distribuindo dados em rede capazes de
informar-nos em tempo real sobre alterações que a ação produtiva humana
provoca no território. A temperatura da água dos oceanos, as dimensões das
calotas polares, o nível de emissões de CO2 tornaram-se, desse modo, sujeitos
atuantes no interior do convívio social e capazes de in uenciar as escolhas e
políticas de governos, empresas e cidadãos. Resultado disso foi uma convulsão
da ecologia social, que se tornou bem mais ampla que as formas urbanas,
próprias dos estados nacionais e das respectivas esferas públicas nacionais.
Do ponto de vista de M. Serres e B. Latour, os “actantes humanos e não
humanos” teriam aberto um parlamento das coisas para discutir estratégias de
mediação e instaurar novas formas de contratualidade, com o objetivo de evitar
a ameaça de ruptura dos níveis sustentáveis de equilíbrio. Eventos
contemporâneos como a COP 21 seriam a expressão, portanto, do
aparecimento de um novo tipo de contrato social (M. Serres), não mais
antropocêntrico, mas cosmopolítico (I. Stengers). O que esse interessante
conjunto de análises e re exões omite completamente é que as interações entre
humanos e não humanos têm começado a assumir formas e dinâmicas
qualitativamente interativas somente após as interações comunicativas
realizadas pela Internet das coisas e, sucessivamente, depois da capacidade de
processamento dos softwares de gestão de dados, que permitiram analisar e
correlacionar quantidades de informação produzidas por não humanos e
inadministráveis, dado o seu grande volume, pela mente humana. A própria
ideia de Gaia é, ao mesmo tempo, a expressão e o resultado de um novo tipo
de ecologia informativa e informatizada capaz de conectar tudo o que existe e
de monitorar, em tempo real, as alterações e as interações.
A biosfera torna-se, assim, uma condição habitativa que não pode ser
traduzida apenas em suas dimensões políticas, se por política entendemos
aquilo que é, com esse termo, compreendido pela tradição ocidental, que tem
limitado seu âmbito às ações e ao fazer conveniente por parte da espécie
humana. Tampouco é possível pensá-la como uma realidade objetiva, “natural”
e externa, na medida em que nossa dimensão ecológica contemporânea, como
brevemente acenada, é o resultado de interações técnicas e de conexões,
híbridas e atópicas, entre diversas entidades e naturezas. Se esse contexto
expressa o m do signi cado do fazer político, próprio da tradição ocidental,
ou, ao contrário, a sua expansão a dimensões extra-humanas (M. Serres, B.
Latour, I. Stengers), trata-se de algo que vale a pena ser re etido com seriedade
e é em tal direção que se orientam as contribuições experimentais que formam
o âmbito de interesse do net-ativismo. Mais do que um conceito coerente e
linear, ou um campo de estudos, com seus delimitados âmbitos de interesse, o
net-ativismo vem exprimir um “campo de forças” que reúne os e resultados de
pesquisas de âmbitos disciplinares diversos, das ciências sociais à estética, à
física, à biologia, às ciências políticas, à loso a e à comunicação.
Inspirado pelo conceito da física elaborado no âmbito dos estudos de J. C.
Maxwell, a ideia de “campo de forças” permite-nos superar as delimitações,
frequentemente mais político-acadêmicas que conceituais, dos domínios
disciplinares, abrindo, assim, ao mesmo tempo, caminho para um anarquismo
conceitual que permite associar âmbitos disciplinares historicamente distantes,
reunidos pelo comum interesse de avançar na compreensão das dinâmicas a-
direcionais e não agregativas do agir em rede. Um agir que se apresenta, no
interior de Gaia, e na época de informatização da biosfera, como não
transitivo, nem antropomór co, nem sujeito-cêntrico, mas transespecí co e
transubstanciado. Um agir cuja não natureza e cuja dimensão atópica (do
grego ατοπος, lugar atípico, fora do lugar e indizível) tornam difícil a sua
própria narração. Da complexidade das dinâmicas reticulares e não apenas
humanas dos conhecimentos cientí cos – as quais se desenvolvem nas
ecologias complexas dos âmbitos laboratoriais e que produzem um saber
resultante de dinâmicas que associam os instrumentos técnicos utilizados em
laboratório, os humanos, as substâncias etc. (B. Latour) aos a-dinamismos
ecosó cos (M. Maffesoli) de um novo sentir ecológico –, passando pelas
formas “gami cadas” do ativismo e das formas de participação e
con itualidade em rede, até a gestão de ilimitados bancos de dados,
organizados e gerenciados a partir da intervenção de inteligências arti ciais,
assistimos à emergência de uma nova condição, não mais apenas humana ou
técnica, ou anti-humana, muito menos social ou sociotécnica, cujas
características e formas constituem o âmbito de interesse do net-ativismo.
Disso segue que um dos âmbitos estratégicos para narrar a complexidade e os
signi cados do net-ativismo é o âmbito relativo à comunicação, não somente
porque as interações de qualquer tipo, no interior de Gaia e das redes digitais,
referem-se a lógicas comunicativas – obviamente não àquelas analógicas e
tradicionais elaboradas nas disciplinas de comunicação da época industrial –,
mas, sobretudo, porque as dimensões conectivas e comunicativas das info-
matérias, assim como as conexões transorgânicas das biotecnologias, requerem,
além de uma nova concepção sobre a matéria, a constatação do caráter
comunicativo absoluto das ecologias da biosfera. Por conseguinte, as
especi cidades comunicativas que o net-ativismo desenvolve requerem a
criação de uma nova ideia de comunicação que permita a narração dos
contextos ecológicos das redes de interação, nos quais os processos
informativos desenvolvem “formas comunicativas do habitar” e alterações dos
próprios estados de natureza, e não, portanto, somente processos de
distribuição de mensagens e informações. A necessidade de pensar uma nova
ideia de comunicação surge do processo de digitalização, o qual, após a difusão
da banda larga e da Internet das coisas, dos Big Data e das diversas formas de
conexão de todo tipo de superfície, tem contribuído para a criação de
ambientes comunicativos reticulares e interativos, semelhantes a ecossistemas
no interior dos quais, mais do que a simples transmissão de informações,
criam-se condições habitativas especí cas, capazes de alterar o estatuto inicial
de natureza dos membros, humanos e não humanos, e de fomentar processos
de hibridação e de transespeci cidade.
Nesse sentido, o processo de digitalização é assimilável a um processo total e
não apenas social ou comunicativo, capaz de conectar os diversos tipos de
superfícies e de transformar as sequências informativas das substâncias. São
exemplos disso as nanotecnologias, as biotecnologias, as práticas de tecnologias
biomiméticas e todas as diversas formas de digitalização dos territórios que
exprimem, juntamente com as outras formas elencadas, uma nova dimensão
ecológica não mais externa, nem interna, mas resultado de conexões múltiplas
e de espacialidades atópicas. O net-ativismo, então, nasce como a tentativa de
interpretar tais ecologias reticulares a partir das especi cidades conectivas
derivadas do processo de digitalização, entendido como processo de alteração
de todas as substâncias.
Este livro, originado dos estudos realizados pelo Centro Internacional de
Pesquisa em Comunicação Digital Atopos da Universidade de São Paulo, no
Brasil, refere-se, de modo especí co, à descrição das ecologias comunicativas da
participação e de con ito expressas nas redes digitais, e que exprimem um dos
diversos âmbitos de interesse e de estudo do net-ativismo. Mais que a análise
das qualidades conectivas das interações net-ativistas, a obra a seguir apresenta
os resultados teóricos do estudo realizado comparativamente em quatro países,
com a contribuição fundamental da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP), sobre as ecologias das interações dos
movimentos net-ativistas. O estudo, elaborado em colaboração com as
universidades de Lisboa, Roma III e Paris V, produziu também dois congressos
internacionais com a participação de pesquisadores especialistas na temática e
conferencistas de movimentos de diversos países: dos palestrantes da Primavera
Árabe aos pesquisadores e net-ativistas da Europa e das Américas do Norte,
Central e do Sul.
Tal diversidade permitiu a realização de uma comparação que, guardadas as
devidas diferenças entre os contextos culturais, sociais e políticos, tornou
possível identi car alguns elementos comuns que exprimem as características
de ecologias de participação não mais parlamentares, nem sujeitocêntricas,
apresentadas a seguir neste livro. A tais descrições reunimos uma reconstrução
histórica que vai das primeiras dinâmicas ciberativistas, surgidas com as
primeiras formas de web, até as experiências contemporâneas, desenvolvidas
após a web 2.0 e as redes sociais digitais. Tal aproximação tornou possível a
reconstrução histórica das características das ecologias net-ativistas, permitindo
identi car mudanças e continuidades entre elas. Portanto, pretende-se aqui
esclarecer as qualidades, a ecologia e as características das interações e das
ecologias net-ativistas, identi cando seus signi cados não políticos e
evidenciando suas formas conectivas especí cas que as distinguem das
ecologias comunicativas de participação das democracias ocidentais.
A tese de fundo apresentada nesta obra é a de que as formas de
con itualidade que se difundiram nos últimos anos, em cada canto do planeta,
não são apenas a expressão de um novo tipo de con itualidade social, mas a
consequência de uma profunda alteração da condição habitativa que se
desenvolve pelas múltiplas conexões de diversos tipos de uxos de informações,
bancos de dados e territorialidades. Essa singular interação é o resultado, de
um lado, da disseminação em larga escala dos dispositivos móveis de conexão
(tablets, smartphones, notebooks etc.) e de formas de conexão wi- (banda larga,
via satélite, RFID etc.) e, do outro, da difusão dos social networks, que têm
originado uma particular forma conectiva ecológica não apenas social, capaz de
conectar em tempo real pessoas, dispositivos, informações, territórios e dados
de toda espécie. Esse tipo singular de interatividade representa o advento de
formas conectivas e transorgânicas do habitar que exprimem um particular
tipo de interação e de ecologia reticular, não mais dizível por meio da
linguagem teórica do social desenvolvido pelas disciplinas positivistas
europeias, nem delimitável pela tradicional dimensão antropomór ca da
política.
Contrária a tal tese é aquela difundida sobretudo a partir de estudos e
contribuições de importantes estudiosos europeus, segundo os quais as formas
de contratualidade não mais modernas, que veem como protagonistas no
interior de Gaia, além dos humanos, o clima, a água, as emissões, as orestas e
a biodiversidade, seriam as expressões não só de um declínio do político, mas
de uma evolução que exprimiria um novo tipo de “contratualidade natural”
(M. Serres), uma nova ideia de “comum” (T. Negri) e, assim, formas de
“políticas da natureza” (B. Latour), ou mesmo formas de “cosmopolítica” (I.
Stengers). Segundo esse ponto de vista, o “parlamento das coisas” constituiria
um novo tipo de pólis, estendida também aos não humanos, no interior da
qual os próprios humanos estabeleceriam acordos e entrariam em um diálogo
de negociação com elementos não humanos e com as próprias forças da
natureza. Vista desde Paris, ou das dependências de seus centros de pesquisa,
ou desde as janelas das salas de aula de suas prestigiadas universidades, a
natureza assemelha-se muito aos parques que decoram a cidade. Aparece como
uma alteridade ou um sujeito decorativo, bela e ordinária, com o qual o
diálogo se apresenta fácil e com o qual não parece difícil estabelecer acordos e
contratos. Algo semelhante ao hábito cotidiano de oferecer migalhas de pão aos
patos da lagoa. Vista desde as orestas tropicais e de outras latitudes, a “não
natureza” urbana aparece, ao contrário, como uma força irracional e
predatória. Vista dos trópicos e de outras latitudes não urbanas, mais que um
parlamento e um lugar de diálogo, a “não natureza” apresenta-nos como a
expressão de uma violência descontrolada e generalizada. Nesses contextos,
mais que uma dimensão política, o que rege as interações parece ser a
imprevisível dimensão conectiva, criadora e devastadora ao mesmo tempo.
Desse outro ponto de vista, mais que a superação das formas dialéticas da
modernidade, as novas dimensões dos “bens comuns” (P. Barnes, T. Negri, S.
Rodotà etc.), as contratualidades naturais e as políticas da natureza (B. Latour)
parecem propor a extensão da dimensão política e contratual a toda a biosfera,
urbanizando, assim, o ar, os oceanos, as orestas, as formigas e os esquilos.
Baseado na centralidade da dimensão transespecí ca e conectiva, o net-
ativismo, ao contrário, lança a re exão para além da dimensão relacional ou
social-agregativa, identi cando na dimensão ecológica e habitativa a sua
possível chave de leitura e deixando, assim, aos jaguares, às formigas, aos
oceanos, às orestas e aos próprios humanos a própria dimensão e condição de
inumanidade.
P A R T E

I
AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS
Capítulo 1
PARA ALÉM DAS FORMAS SOCIAIS DA PARTICIPAÇÃO

1.1 A crise da ideia sociológica do social

P
restes a partirem para a expedição militar, vestidos com ar-madura e
reunidos em cerimônia o cial, os soldados atenienses recebiam a
seguinte invocação como augúrio: “aonde quer que fordes, sereis pólis”.
Portadores de valores democráticos, os antigos guerreiros gregos eram pioneiros
inconscientes daquele processo secular que levara o Ocidente a exportar para o
mundo os próprios modelos sociais, os próprios valores, as próprias divindades,
atravessando os mares, superando distâncias e conquistando povos e terras, mas
sem jamais encontrar alguém. Um processo unidirecional que reproduziu
elmente à imagem e semelhança cidades, estradas, monumentos, espaços
públicos, igrejas e símbolos em terras distantes e que hoje, após a crise de todos
os tipos de colonialismo, assume claramente as características de uma crise de
um processo histórico especí co, o da expansão do Ocidente e de sua estrutura
epistêmica totalitária.
Da organização urbana do território à evangelização e às formas de
colonização culturais e simbólicas, o Ocidente europeu não fez mais do que
reproduzir o mesmo onde quer que fosse, difundindo não apenas uma ideia de
sociedade, mas também uma especí ca ideia de conhecimento e de saber. [1]
Concebida no mundo industrial e no contexto positivista europeu, a sociologia
herdou a forma sistêmica e estruturalista própria da cultura racionalista
ocidental, exportando para todo o mundo uma ideia de social e conferindo a
tal visão e a tais categorias uma dimensão planetária, além de transformar,
assim, conceitos particulares, enquanto geogra camente e culturalmente
elaborados, em conceitos universais. A origem europeia, positivista e industrial
da disciplina sociológica condicionou fortemente seus desenvolvimentos
futuros e, nesse sentido, algumas dessas características originárias se
mantiveram nas diversas declinações desenvolvidas em seguida em outros
contextos geográ cos e culturais.
Ainda que reconhecendo, obviamente, os méritos e as numerosas qualidades
das formas de saber derivadas do método cientí co e das epistemologias
ocidentais, é necessário, no interior da crise ecológica contemporânea, perceber
alguns de seus limites relativos à ideia de ecologia elaborada pela loso a e
pelas ciências sociais: em particular, não somente à distinção entre cultura e
natureza proposta pela tradição das ciências que se ocuparam do social, [2] mas,
sobretudo, em relação à própria ideia de social desenvolvida nos âmbitos
urbanos e industriais da Europa dos últimos dois séculos.
Diante das mudanças climáticas, da devastação da biodiversidade, do
derretimento das calotas polares provocado pelo efeito estufa, e de todas as
consequências da passagem para a época do antropoceno, advertimos para a
inadequação não só dos estilos de vida e do impacto das nossas atividades
econômicas sobre o planeta, mas também quanto à forma de pensar essa
realidade, que não consegue nos oferecer interpretações novas em relação
àquelas produzidas pelo pensamento ocidental acerca da ideia de ambiente (do
latim, ambire: aquilo que está em torno), de natureza e sobre a própria
concepção de humano. Existe, no contexto da tradição do pensamento
ocidental, um traço unitário claramente reconhecível e conduzível à ideia de
centralidade do humano, herdada da tradição do mito bíblico do domínio do
ser humano sobre o mundo. Tal noção seria continuada no pensamento
losó co grego, chegando, com a loso a humanista renascentista, até a
modernidade e in uenciando o pensamento social que acabara por reproduzir,
acriticamente, as diversas “antinomias” construídas por tal tradição
(homem/natureza, homem/técnica, homem/ambiente etc.).
Perante a crise ecológica que caracteriza como fenômeno global a nossa
contemporaneidade, trata-se, portanto, de reconsiderar os pressupostos
epistêmicos e losó cos que formaram o saber ocidental e criaram os
pressupostos do agir humano sobre o mundo. Tarefa titânica, empreendida já
por F. Guattari, G. Bateson, M. Serres e tantos outros. Perante as características
da crise da ecologia antropo e sujeitocêntrica, produzida pelo pensamento
humanista ocidental, somos chamados a repensar, inevitavelmente, os estudos
sobre o social e sobre a sociedade, questionando, mais do que suas técnicas e
práticas de pesquisa, seus próprios pressupostos losó cos.
No m do século passado, em diversos signi cados e modos, a sociologia
começou a passar por um processo de crise. De um lado, a discussão do
método unitário nas ciências exatas, no início do século XX, que, a partir dos
diversos pontos de vista (E. Morin, F. Ferrarotti, B. Latour, M. Callon, J.
Meyrowitz etc.), começa a ressoar nas ciências sociais, enfraquecendo as
pretensões de objetividade de seus estudos; e, do outro lado, a crise do sistema
industrial e o advento de formas digitais e conectivas de comunicação, as quais
têm contribuído para criar arquiteturas de interação não somente entre
humanos, tornando necessário o desenvolvimento de um tipo diferente de
abordagem relacionada às interações sociais e à própria ideia de social e à
particular concepção da sociedade desenvolvida pela sociologia na era
industrial.
Após o impacto e a tomada de consciência com respeito à ecologia do
antropoceno e àquela proposta pela teoria de Gaia, os elementos de tal crise
ecológica resultam hoje muito mais evidentes e podemos, ainda que
simpli cando muito, reduzi-los a quatro âmbitos principais: a) Em primeiro
lugar, a concepção antropocêntrica das dimensões sociais, elemento fundante
da tradição ocidental que in uenciou a ideia de um ser humano social,
limitando a dimensão agregativa e a própria vida social unicamente aos
humanos e excluindo as outras entidades (animais, vegetais, tecnologias,
minerais e elementos da natureza em geral); b) Em segundo lugar, a ideia
sobretudo “urbana” do social que limitara sua dimensão ecológica às cidades e
às arquiteturas industriais, construindo uma ideia de cidadania que não previa
as formas não urbanas nem se interessava muito pelas dimensões climáticas,
ecológicas e ambientais, ou seja, o impacto da própria industrialização e da
urbanidade sobre o ambiente. Temática essa tornada hoje central em todos os
âmbitos do social; c) Em terceiro lugar, a consequente incapacidade de
compreender a qualidade do papel social da tecnologia da comunicação no
interior dos processos de formação e não somente de transformação da vida das
comunidades e dos indivíduos; d) Por m, a de nição de ação social que
limitava o campo de aplicação desta à única atividade dos sujeitos-atores
humanos.
A) O processo de dominação do sujeito sobre o mundo, que de fato marca
toda a história do Ocidente, é explicado por Martin Heidegger como produto
da metafísica ocidental, responsável pela construção de ontologias abstratas,
atemporais e não relacionais. Na era pós-iluminista e industrial, com a difusão
da sociedade a contrato, as ciências sociais herdaram no contexto europeu a
mesma ontologia metafísica humanista que inspirou o estudo de um social
composto somente por seres humanos, suas instituições e baseado sobre suas
próprias nalidades. Com exceção de pouquíssimos autores, que buscaram
complexi car o estudo da sociedade, da sociobiologia de H. Spencer à
microssociologia de G. Tarde, e que buscaram pensar a dimensão social no
interior das ciências biológicas, os pressupostos epistemológicos das ciências
sociais permaneceram restritos ao âmbito humanístico, conferindo à sociedade
uma dimensão antropomór ca. A partir de tal pressuposto, a ciência do social
e a sociologia devem ser consideradas como a continuação, na época moderna,
da tradição da narrativa europeia ocidental sobre o humano e a natureza,
primeiramente helênica e depois cristã, e então iluminista e racional nos
séculos XVIII e XIX. Tal narrativa é baseada sobre o pressuposto do mito do
antropocentrismo, explicado por Roberto Marchesini (2002) como paradigma
sustentado por três coordenadas principais: “I. A pretensão de uma
autofundação do homem em um devir antropopoiético; II. A consideração do
homem como entidade de medida e concepção do mundo; III. A
preconcepção de uma pureza essencialista na avaliação da relação humano-
tecnologia” (MARCHESINI, 2002, p. 164). A sociologia construiu suas
teorias sobre o social partindo do pressuposto epistemológico de
independência e supremacia do ser humano sobre a técnica e a natureza. Tal
narrativa e tal pressuposto, no interior das perspectivas conectivas próprias das
culturas das redes e daquelas ecointerativas de Gaia, resultam hoje forte e
evidentemente inadequadas para enfrentar as questões de nosso tempo.
B) Da experiência da pólis ao Iluminismo, a tradição europeia delimitou o
conceito de sociedade às atividades dos indivíduos, reduzindo o mundo ao seu
entorno a objetos, matérias-primas, recursos, e a utensílios necessários à
consecução de determinados ns, aderindo assim àquela que M. Heidegger
havia de nido como a característica da loso a e da metafísica ocidentais. A
delimitação do conceito de social à sua dimensão urbana, inspirada na
concepção humanística, contribuiu para a construção de uma hierarquia ideal,
a qual indicou como arcaicas e não desenvolvidas todas as realidades
“extramuros” – criando assim uma contraposição conceitual simpli cada e
inadequada que opunha o campo à cidade, o arcaico ao moderno, a tradição à
inovação, o desenvolvimento ao não desenvolvimento etc.
Desse modo, o espaço urbano tornou-se não somente o cenário principal da
sociedade, entendida como uma região dominada e governada pela
contratualidade social, mas também a paisagem e o palco privilegiado da
convivência humana: Imerso em um contrato exclusivamente social, o homem
político subscreve-o, reescreve-o e o faz observar até hoje, mas apenas na
qualidade de especialista em relações públicas e ciências sociais […] Nenhum
de seus discursos falava do mundo, ocupando-se em tempo integral
exclusivamente dos humanos (SERRES, 1990, p. 55).
Além de exportar uma concepção política e uma ideia de humano, a cultura
ocidental exportou para além da Europa uma ecologia social, urbana e
dialética, baseada sobre a ideia da separação do mundo humano em relação ao
ambiente. A difusão de tal ecologia urbana social, perpetuada pela perspectiva
sociológica europeia, contribuiu para fortalecer conceitualmente a divisão entre
o espaço humano e o espaço “natural”, gerando assim uma ecologia
antropomór ca na qual a ideia de: Natureza reduz-se à natureza humana que,
por sua vez, reduz-se à história e à razão. O mundo desaparece. O direito
natural moderno diferencia-se do clássico por tal anulamento […] Com o
contrato social, isso ignora e escamoteia o mundo, o qual reconhecemos
somente porque o dominamos (SERRES, 1990, p. 59).
C) Os limites das interpretações e das narrações sociológicas sobre o social
são hoje mais evidentes do que no passado. Tal clareza é devida, entre outros
aspectos, ao incremento do papel social dos objetos, dos dispositivos e dos
entes não humanos em geral, possibilitado pelas tecnologias digitais por meio
de conexão e da interação dos circuitos informativos com as ecologias
transorgânicas. As formas de comunicação wi- , RFID, via satélite, a Internet
of things etc. contribuíram para expandir as dimensões do social, participando
da construção de um novo tipo de ecologia estendida a toda a biosfera,
alterando assim não somente as dimensões, mas também as características e a
qualidade das interações sociais e, ao mesmo tempo, tornando visível a
contribuição dos “não humanos” para a construção das agregações sociais e
coletivas. A dimensão social e agregativa de nossas interações, assim como
expressas pelas formas do social elaboradas pela sociologia, seja essa moderna
ou pós-moderna, não conseguem contemplar a complexidade das ecologias
contemporâneas. Esse aspecto requer o desenvolvimento de uma nova teoria
sobre o social capaz de expandir a dimensão do mesmo, seja aos elementos
tecnológicos e inorgânicos, seja aos outros elementos orgânicos, como as
orestas, as biodiversidades e as outras substâncias que compõem a biosfera e
contribuem para a regulação do clima e a manutenção das condições favoráveis
à perpetuação da vida dos humanos no planeta. A passagem da sociologia à
ciência das associações, proposta por B. Latour, M. Callon e J. Law, é um
primeiro e importante passo em tal direção, embora não comporte ainda a
adoção de uma postura reticular que descreva os processos não como
agregativos ou associativos, ou seja, como baseados em um determinismo
analógico e sistêmico, mas como as dimensões conectivas e transorgânicas de
um novo tipo de complexidade.
Pensar a forma rede, tanto em suas dimensões digitais como naquelas
ecoconectivas de Gaia, signi ca considerar seriamente uma importante
transformação epistêmica que marca a passagem de uma complexidade
estruturalista e sistêmica a uma complexidade reticular, hologramática (E.
Morin), conectiva e transorgânica, não completamente dizível em termos de
agregação e de associação (B. Latour, M. Callon etc.).
É nessa perspectiva que a dimensão não relacional e comunicativa assume a
dimensão de uma forma formantis, isto é, a dimensão que explicita o poder
criativo da conexão que descreve, contrariamente à dimensão estrutural-
funcionalista, própria da tradição sociológica americana (T. Parsons) e daquela
agregativa da ciência das associações (B. Latour e M. Callon etc.), o
imprevisível processo de construção das conexões ecológicas transorgânicas e
reticulares. Desse modo, o social não é mais uma estrutura xa ou o conjunto
de estruturas independentes, mas se torna evento comunicativo e a-sistêmico.
A esfera comunicativa, nessa perspectiva, não mais pode ser considerada
somente em sua dimensão instrumental, isto é, como media, ou seja, conjunto
de meios e instrumentos de transferência dos uxos informativos. A
comunicação, nessa perspectiva, deixa também de ser o ponto de conjunção
entre atores pra se tornar forma constituinte. Disso resulta que, para o estudo e
a interpretação das dimensões conectivas nas redes digitais, para nada servem as
interpretações e os estudos sociológicos sobre a comunicação desenvolvidos em
âmbito industrial, enquanto inseridos em narrativas dos sociais e de tecnologias
não mais contemporâneas.
A complexidade das dimensões das interações em rede remete-nos,
provavelmente, a uma alteração do próprio status do social e o advento de uma
nova forma do comunicar não mais inscritível na dimensão instrumental-
comunicativa. Ter circunscrito o papel social da técnica e da comunicação
unicamente às dimensões mecanicistas e instrumentais limitou tanto os seus
contributos ao funcionamento do social como a possibilidade de compreensão
e de análise das teorias sociológicas sobre ecologias complexas, conectivas e
transorgânicas das condições habitativas contemporâneas. A passagem das
lógicas sistêmicas ou daquelas emergentes-agregativas àquela conectiva digital e
transubstancial das conexões transorgânicas resulta indispensável à
compreensão das ecologias de Gaia.
D) A adoção acrítica da concepção sistêmica, que expressou a supremacia da
estrutura sobre a forma, impediu o pensamento sociológico de identi car a
importância das informações e das dimensões tecnocomunicativas sobre a
situação social. [3] Excluindo o elemento formante dos uxos informativos e
das tecnologias conectivas, a representação sociológica do social consegue
narrar apenas uma parte da complexidade do conjunto de relações, perdendo
assim o dinamismo ecológico das conexões não somente humanas e perdendo,
em consequência, a possibilidade de avançar em direção a uma teoria ecológica
da ação social capaz de reunir os diversos atores, humanos e não humanos,
envolvidos na realização de uma ação. Devemos a B. Latour, M. Callon e J.
Law progressos signi cativos nessa direção. Superando a teoria clássica da ação
social que a circunscrevia às atividades do sujeito-ator, enquanto autor
principal do dinamismo social, a Teoria Ator-Rede (TAR) enfatizou a
necessidade de repensar a própria ideia de social a partir de sua vocação
dinâmica e agregativa: É hora de modi car o que se entende por social […]
Dado que a palavra tem a mesma origem – a raiz latina socius – podemos
permanecer éis às instituições originárias das ciências sociais rede nindo a
sociologia não como a “ciência do social”, mas como a investigação sobre as
associações. Desde esse ponto de vista, o adjetivo social não designa mais uma
coisa entre as outras, como uma ovelha negra entre ovelhas brancas, e sim um
tipo de relação entre coisas que não são, em si mesmas, sociais. [4]
No entanto, essa perspectiva acaba por minimizar a importância da dimensão
informativo-digital, construindo uma ideia de agregação social não baseada em
uma ideia conectiva de comunicação, mas em uma dimensão agregadora ainda
inteiramente limitada por uma concepção instrumental e passiva dos processos
comunicativos, como veremos a seguir.
A crise do imaginário social da sociologia europeia, resultante da crise do
imaginário industrial e da crise da narrativa positivista-sistêmica, bem como o
advento das tecnologias de conexão generalizada, abrem-nos a uma perspectiva
tão complexa quanto sedutora, a qual nos impele a repensar a própria ideia de
social e de sociedade, não somente para além da dimensão sujeitocêntrica, mas
também para além da dimensão agregativa emergente, oferecendo-nos a
possibilidade de examinar as dimensões, nem internas nem externas, das
transorganicidades conectivas.

1.2 DAS MORFOLOGIAS SOCIAIS ÀS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS


Ao contrário do que é comum pensar, as formas de participação e os
pressupostos das formas de governo e dos processos decisórios não são somente
o resultado ou a simples aplicação de ideias ou princípios abstratos elaborados
por sujeitos humanos. Apesar de poder ser considerada, em parte, minoritária,
é ainda possível distinguir uma tradição que põe em relação as dinâmicas de
participação, e suas qualidades, com as formas das mesmas, mais que com os
princípios, os valores ou os programas elaborados pelos sujeitos. Podemos
distinguir, no interior dessa tradição, uma primeira tendência, atenta às
engenharias jurídicas e aos formalismos dos ritos democráticos, mais do que
aos dinamismos sociopolíticos. Em primeiro lugar, a concepção formal da
democracia de N. Bobbio, o qual enfatiza o aspecto ritualístico e processual da
democracia: A rmo que o único modo de compreender quando se fala de
democracia, enquanto contraposta a todas as formas de governo autocrático, é
considerando-a como um conjunto de regras (primeiras ou fundamentais) que
estabelecem quem é autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais
procedimentos. [5]
Segundo tal tradição, é a forma que garante os conteúdos democráticos e não
o contrário. A qualidade da gestão dos processos decisórios e de participação e,
em última análise, a própria qualidade da democracia apresentar-se-iam, assim,
em essência, mais como uma estética pública ou uma arquitetura processual do
que como um conjunto de valores abstratos, ideias e conteúdos.
Sempre no contexto de tal tradição que põe ênfase no formato dos processos
decisórios e nos processos de participação, podemos incluir ampla corrente que
relaciona a difusão de sistemas de governo e de práticas democráticas, o
incremento da participação na vida pública e nos processos decisórios, com o
advento dos media e de tecnologias de difusão de conteúdos, os quais
permitiram não somente o surgimento das esferas públicas nacionais, mas a
difusão da própria cultura do debate público, entendido não mais como a
discussão e o intercâmbio limitado à praça e aos lugares físicos públicos, mas
estendido a dimensões eletrônicas, nacionais e coletivas. Ainda que
historicamente a relação entre media e participação seja mais comumente
associada a formas de controle e de manipulação (T. Adorno, M. Horkheimer
etc.), existe ainda outra tradição que, ao contrário, prefere evidenciar a
inseparável relação existente entre as distintas arquiteturas informativas e as
diversas dinâmicas e modalidades de participação. [6]
O que inibiu o aprofundamento da relação simbiótica entre as tecnologias
comunicativas (TICs) e as formas de participação é o limite conceitual posto
pela ideia de comunicação industrial, que tem historicamente limitado o
estudo e a análise aos processos comunicativos, entendidos como as práticas de
distribuição de conteúdos entre emissores e receptores. Dentro dessa jaula
conceitual, não foi possível cumprir signi cativos passos adiante, e a própria
análise das arquiteturas informativas de redes foi, por um longo tempo,
limitada a tais concepções instrumentais. Tratada como um processo técnico, a
ideia de comunicação foi, sobretudo após as duas guerras mundiais,
identi cada como um processo engenherístico de produção e de disseminação
de conteúdos, dividido em etapas sequenciais que previam um início, um
processo e um m. Os diversos modelos informativos elaborados na segunda
metade do século passado e que fortemente in uenciaram a ideia moderna de
comunicação concentravam sua atenção na funcionalidade do processo
informativo, limitando-lhe à própria essência ou ao seu poder de disseminação
(Teoria Hipodérmica, Two-Step Flow eory, de P. Lazarsfeld etc.), a seus
conteúdos e signi cados (Modelo Semiótico-Textual, de Eco e Fabbri) e a sua
função social e capacidade de persuasão (T. Adorno, M. Horkheimer etc.). Será
a Escola de Toronto (W. J. Ong, H. Innis, M. McLuhan) a primeira a oferecer
uma perspectiva não instrumental dos processos tecnológico-comunicativos,
revelando o caráter formante dos media e dos suportes comunicativos. Se, para
Innis, cada tecnologia seria capaz de formar a arquitetura dos processos
cognitivos e as formas de transmissão do saber, in uenciando assim as
estruturas políticas e econômicas, [7] e se, para Ong, a passagem da oralidade à
escrita seria capaz de alterar a racionalidade e o formato do conhecimento e da
inteligência, para McLuhan, a eletricidade e os media modernos teriam sido
responsáveis pela alteração das próprias arquiteturas sensoriais dos indivíduos.
A tradição da Escola de Toronto teve o mérito, como é sabido, de deslocar a
atenção dos conteúdos para os processos e as formas, ou seja, das práticas de
distribuição e os relativos impactos sociais e políticos dos media às arquiteturas
cognitivas desenvolvidas a partir do advento das tecnologias comunicativas. A
oralidade, a escrita, a tipogra a e a eletricidade não seriam assim interpretadas
simplesmente como o resultado de transformações técnicas comunicativas, mas
como alterações das arquiteturas cognitivas e das formas dos processos
sensoriais e midiáticos.
Mesmo reconhecendo a histórica importância dessa última tradição, é
necessário assinalar a sua inadequação para o estudo das formas comunicativas
digitais próprias do habitar em redes conectivas. As arquiteturas
contemporâneas de interações digitais, enquanto arquiteturas informativas
colaborativas baseadas em processos de acesso e compartilhamento em
ambientes informativos – dentro dos quais diversos tipos de substâncias se
conectam e interagem –, obrigam-nos a repensar a própria ideia de
comunicação. Essa nos aparece como mais do que um conjunto de processos
de intercâmbio de informações entre emissores e receptores, como uma
ecologia pancomunicativa no interior da qual cada membro, humano e não
humano, é, ao mesmo tempo, produto e produtor do ambiente comunicativo
no qual interage. Tal peculiar condição habitativa, [8] caracterizada por um
hábitat nem interno, nem externo, é bastante distante da ideia de “morfologia
social” [9] própria das disciplinas sociológicas, sendo mais próxima da noção de
ecologia das ciências biológicas.
A diferença principal, como veremos em seguida, entre a ideia de morfologia
social utilizada pela sociologia e a noção de ecologia própria das ciências
biológicas, está na maior ênfase, posta por essa última, no aspecto interativo,
entendido não apenas como um intercâmbio comunicativo entre entidades
diversas (grupos humanos, território, estruturas etc.), mas como uma condição
habitativa [10] comum e conectiva, nem interna, nem externa.
Torna-se, portanto, necessário, se se deseja avançar no estudo e no
aprofundamento interpretativo das ecologias comunicativas da interação, sair
das armadilhas conceituais preparadas pelas ciências sociais, que aprisionaram a
ideia de comunicação no interior das próprias dinâmicas sociais, e buscar
contribuições oriundas de outros âmbitos disciplinares. Desde a sua de nição
original, elaborada pelo cientista alemão Ernst Haeckel (1834-1919) no livro
Generelle Morphologie der Organismen, o termo ecologia a rma-se como um
âmbito complexo de conhecimento que privilegia o estudo das relações
comunicativas entre diversos membros e componentes de determinado
território analisando: O conjunto de conhecimentos que se referem à
economia da natureza; a investigação da complexidade das relações de um
animal com seu contexto, seja inorgânico, seja orgânico, compreendendo,
sobretudo, suas relações positivas e negativas com os animais e as plantas com
as quais entre diretamente ou indiretamente em contato. Em uma palavra, a
ecologia é o estudo de todas aquelas complexas relações. [11]
Um ulterior passo adiante em direção à elaboração de uma ideia não social,
mas ecológica das relações foi oferecida por Amos Hawley em seu célebre
artigo Ecology and human ecology, publicado em 1944. Nesse texto, Amos
Hawley, tomando distância das contribuições da ecologia humana elaboradas
pelos membros da Escola de Chicago (R. Park, omas, Znaniecki etc.),
apresenta a ideia de uma continuidade entre a ecologia biológica e a ecologia
humana e a necessidade de uma superação dos limites do ambiente urbano,
substituindo isso pela ideia de ecologia humana adequada ao estudo de todos
os tipos de reagrupamento. Mas serão, sobretudo, os artigos de Otis D.
Duncan e L. F. Schnore que rea rmarão, em con ito com as linhas
predominantes da sociologia americana da época, a necessidade de superar a
ideia de sociedade humana e de pensá-la como uma comunidade sediada sobre
um território e dentro de um ecossistema. O que distinguia, em suas visões,
uma ecologia habitada por humanos por uma ecologia não habitada por
humanos era: O grande desenvolvimento de dois elementos, inclusive
presentes também na natureza: a organização social e a instrumentação
tecnológica. O complexo ecológico é o sistema que resulta da interação entre
população, organização, tecnologia e ambiente; cada um desses componentes
pode, de tempos em tempos, ser considerado variável dependente ou
independente nas análises da ecologia humana. [12]
A passagem de uma lógica social e sociológica, baseada na centralidade dos
humanos e no estudo predominante de suas relações, a uma ideia ecológica,
territorial, aberta a uma perspectiva complexa e comunicativa será indicada
pela noção elaborada por P. Odum, no texto Fundamentals of ecology (1963), o
qual passará a considerar os ecossistemas não apenas como realidades formadas
por uxos energéticos, mas também por uxos informativos. Devido também
ao desenvolvimento das ciências da informação, abrir-se-á assim um campo de
estudos que permitirá pensar de modo original os ambientes da vida, de
maneira diversa daquela dos signi cados atribuídos pelas ciências sociais.
A ideia de poder estudar as interações entre os diversos organismos e seu
ambiente, em uma perspectiva comunicativa, permite-nos avançar na
construção de uma ideia ecológica da comunicação que contemple tanto a
dimensão interativa e conectiva, nem interna, nem externa, dos ambientes
comunicativos digitais, quanto sua dimensão atópica reticular, [13] capaz de
produzir uma forma a-sistêmica, incoerente e emergente. A ideia de uma
ecologia da comunicação foi também apresentada pelo antropólogo de origem
indiana A. Appadurai, que, analisando a importância dos media na construção
e reprodução dos processos de identidade dos imigrantes indianos de segunda
geração nos Estados Unidos, propõe o termo “mediascape” para indicar os
espaços midiático-informativos pelos quais as novas gerações, lhas dos
imigrantes, mantinham contato com suas terras e a cultura de origem. Os
lmes, difundidos a partir das tas de VHS, e a música, distribuída pelo CD,
proporcionavam a expansão da condição habitativa dos lhos dos imigrantes
indianos nascidos já nos Estados Unidos, permitindo-lhes a extensão das
próprias identidades em uma perspectiva múltipla.
Mas será, sobretudo, a ideia do campo perceptivo, elaborada por J.
Meyrowitz, que, partindo da observação de como os media produziam novas
relações entre as pessoas e os espaços, propõe estudar a relação entre os media e
as interações sociais, chegando a descrever as consequências do impacto dos
media como a causa da transformação na tradicional relação entre ambiente
físico e situação social.
Para ele, mais que os lugares, na determinação do comportamento e da
situação social da qual o indivíduo faz parte, são os uxos informativos que se
destacam, sobrepondo-se àqueles e à percepção: Com efeito, uma análise
aprofundada das dinâmicas de situações e comportamentos indica que o lugar
enquanto tal é, na verdade, uma subcategoria da noção mais inclusiva de
campo perceptivo. A natureza da interação não é determinada pelo ambiente
físico enquanto tal, mas pelos modelos de uxo informativo. Com efeito, a
análise da de nição da situação social pode ser totalmente separada do
problema da presença física direta e concentrar nosso interesse unicamente no
acesso à informação. [14]
A eletri cação dos espaços era, segundo Meyrowitz, responsável pela
alteração do espaço e pelo advento de um novo tipo de situação social: A
situação social e os comportamentos no interior da sociedade podem ser
modi cados com a introdução de novos meios de comunicação […] A situação
social pode também ser considerada como um sistema informativo, isto é,
determinado modelo de acesso às informações sociais, determinado modelo de
acesso ao comportamento de outras pessoas. [15]
O conceito de sistema informativo desenvolvido por Meyrowitz indica que
os ambientes físicos e os “ambientes” dos media pertencem a um continuum,
não a uma dicotomia, tornando a difusão de meios eletrônicos capaz de criar
muitas novas situações sociais: Talvez um dos motivos pelos quais os teóricos
das situações e dos papéis tenham tido a tendência em considerar bastante
estáveis as situações sociais seja a raríssima eventualidade de uma repentina e
maciça mudança no alinhamento de portas e paredes, na con guração de uma
cidade ou em outras estruturas arquitetônicas e geográ cas. Mas a
transformação que advém nas situações e nos comportamentos, quando se
abrem e se fecham portas e quando se constroem ou se deslocam paredes, hoje
corresponde ao ligeiro disparo de um microfone que se liga, a uma televisão
que é ligada, ou ao instante no qual se eleva aquele que atenderá o telefone
para responder a uma chamada. [16]
A partir de tais concepções é possível pensar nos processos comunicativos não
somente como a realidade técnico-informativa, mas também como
espacialidades informativas e ecologias de interação.
A ecologia comunicativa aparece assim como uma forma formantis, uma
arquitetura comunicante capaz de dar forma às interações entre os membros,
humanos e não humanos, os uxos informativos e as territorialidades, criando
particulares modalidades de interação e dinâmicas informativas próprias. O
conceito de forma formantis encontra diversas interpretações. Partindo da ideia
de fazer espaço, elaborada por Heidegger, segundo o qual o recipiente, além de
criar uma forma, torna-se criador de espaço e de formas do habitar, [17] é
possível pensar a forma formante como uma ecologia complexa e dinâmica,
capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, limites, cânones e, contraditoriamente,
possibilidades.
Em Pareyson, a forma formante assume na arte o signi cado de uma forma
que precede a obra do artista e da qual essa última não é mais que uma visão.
Simultaneamente, a mesma descreve algo que não tem forma de nida, mas que
sempre assume uma nova forma. Como se sabe, ao realizar a distinção, apenas
indicativa e não real, entre a forma formada e a forma formante, Pareyson
pretende indicar como a obra, mesmo antes de existir como realidade formada,
já existe como entidade formante, capaz de guiar e plasmar o processo de
criação e de condicionar sua realização e seu resultado.
Em um de seus estudos sobre a forma, Perniola, aluno de Pareyson, oferece-
nos elementos importantes para pensar a forma, a sua autonomia e a sua
dimensão ecológica. Ao contrário da distinção própria do pensamento grego
entre eidos (species, em latim), forma inteligível, e morphe (forma, em latim),
forma sensível, a estética da forma no século XX posiciona-se, segundo
Perniola, em um espaço intermediário. É um primeiro exemplo disso a
inseparabilidade entre forma e conteúdo proposta por Wolffin: As formas da
representação visual não são algo exterior, mas se tornam quase condições da
possibilidade das experiências estéticas […] Para Wolffin, o clássico e o barroco
constituem quase a priori históricos. Nem tudo é possível em cada época. O
modo de ver tem uma história própria. As formas da representação visual são
independentes das escolhas expressivas individuais; elas se impõem a cada
artista porque condicionam seu modo de perceber a realidade. O ver por linhas
é essencialmente diferente do ver por manchas. A linha e o pictórico
constituem duas orientações opostas da sensibilidade, semelhantes a duas
línguas diferentes. [18]
Sempre na direção de uma forma formante, que não separe o conteúdo de
sua expressão material, Perniola considera a perspectiva do estudioso russo P.
Florenskij, que reavalia a função e as características dos ícones no contexto da
tradição religiosa ortodoxa: Para ele, as duas noções antigas de forma, eidos (a
forma suprassensível) e morphe (a forma sensível) coincidem completamente
no ícone, o qual, por isso, não tem a necessidade de remeter a algo de
transcendente, pois já é o ponto de contato entre o invisível e o visível, o lugar
no qual os dois mundos se tocam e torna-se contemplável a sua conjugação. O
ícone não é a imitação do original, mas o próprio original: por isso, as fontes
dessa concepção não estão em Platão, que considerava a forma sensível
ontologicamente inferior àquela suprassensível, mas em Plotino e na estética
bizantina, pelos quais o ser e a beleza são inseparáveis. A imagem, nesse
sentido, deve ser considerada não como uma simples representação do original,
mas uma evocação, uma porta através da qual Deus entra no mundo sensível
[…] A metafísica de Florenskij é uma metafísica concreta, uma teologia visual
que vê no ícone o ponto de união entre o mundo invisível e o mundo visível.
[19]

Nessa direção é possível acolher a proposta de uma forma que não somente é
conteúdo, mas que se abre a uma perspectiva ecológica e que pode ser pensada
como algo vivo. Será essa a interpretação oferecida pelo historiador de arte
francês H. Focillon, que, na obra Vie des formes, apresenta uma concepção de
forma capaz de superar a oposição espírito/matéria enquanto baseada na ideia
de exterioridade. Tal concepção torna-se, de fato, a mais radical uma vez que
não se preocupa mais em reunir eidos e morphe ou em estabelecer a não
contraposição entre os termos, mas sim se propõe a alcançar uma terceira via
pelo uso de uma terceira palavra que, sempre segundo Perniola: Abre um
horizonte semântico-conceitual completamente diferente daquele que temos
visto até agora: o schema (em latim, habitus) remete precisamente à ideia de
uma forma exterior que pode ser também abstrata e intelectual. No schema, o
problema metafísico da separação entre sensível e suprassensível sequer se
coloca: os romanos traduziam schemata como habitus, cultus, vestitus, victus,
gestus, sermones et actiones. O denominador comum de tais expressões é
precisamente a exterioridade, atribuída às atitudes, à vestimenta, ao modo de
comportamento, às guras da dança, às formas de governo, aos modos de vida,
às guras retóricas, gramaticais, geométricas, astronômicas […]. [20]
Essa ideia de forma tem a sua raiz na romanidade e, assim, no contexto da
ritualidade dos antigos romanos, que se exprimia como a repetição, por si
mesma, de gestos e rituais “sem mitos”: [21]
De fato, foram mesmo os antigos romanos que elaboraram a noção de forma
a partir do modelo do rito religioso e da ação jurídica; é a forma, isto é, a
execução exterior de atos convencionados e preestabelecidos, que confere
efetualidade à cerimônia religiosa e ao procedimento jurídico: o que importa
não é tanto o conteúdo subjetivo das ações quanto a sua forma, que não
necessita de um sentido adjunto a quem a realiza, uma vez que tem já em si
mesma um sentido implícito. Focillon evidencia a diferença entre signo e
forma: o primeiro refere-se a algo diferente de si mesmo, a forma, contudo,
significa si mesma. [22]

Nasce, assim, a ideia de um “sentir por formas”, baseada na consideração de


sua autonomia e independência da história política, econômica e social: As
formas têm – segundo Focillon – uma vida autônoma e independente da vida
orgânica do homem. Entre orgânico e inorgânico, Focillon vê uma interação,
um trânsito que, de um lado, estende a biologia das coisas e, de outro, por
meio do ornamento e da moda, cria uma humanidade arti cial. [23]
A ideia de forma formante de Pareyson e Wolffin, a do ícone como forma
viva de Florenskij e a do sentir da forma de H. Focillon tornam possível pensar
a dimensão comunicativa da forma, entendida não segundo as teorias do
pensamento informativo e comunicacional do século XX, mas na perspectiva
de “condição habitativa”, [24] ou seja, naquela de uma ecologia formante,
composta de elementos distintos que se conectam por meio das modalidades
acordadas pela própria forma-ecológica, contribuindo, ao mesmo tempo, para
a sua constituição. Contrariamente à ideia de morfologia social, dedicada ao
estudo da distribuição territorial dos fenômenos sociais e ao esclarecimento da
“topogra a especí ca dos fenômenos observados e suas variações em diálogo
com as características do ambiente natural ou arti cial (rural ou urbano)”, [25]
a concepção da forma comunicativa ecológica nos impulsiona em direção a
uma dimensão reticular complexa, viva e mutante, que estabelece e põe em
acordo, de tempos em tempos, suas características, suas formas e suas
modalidades de interação.
Capítulo 2
AS TRÊS ECOLOGIAS DA INTERAÇÃO

2.1 Sobre a ideia ecológica da comunicação

O
que marca a passagem da concepção industrial e analógica de
comunicação, desenvolvida no século passado, àquela capaz de
exprimir as complexidades reticulares e ecológico-habitativas
próprias das condições comunicativas contemporâneas é o questionamento da
própria ideia de comunicação. Essa não é mais descritível como um simples
uxo de informações e o intercâmbio comunicativo entre conteúdos,
tecnologias e público. Não somente o incremento das quantidades de dados,
mas as formas reticulares das arquiteturas interativas exigem uma alteração do
próprio léxico utilizado nas disciplinas que estudam a comunicação, a partir da
substituição do termo media (meio e instrumento), que exprime
inevitavelmente uma relação de instrumentalidade, pela expressão “forma
formante” [1] ou por “condição habitativa”, [2] capaz de projetar-nos em uma
dimensão ecológica e não mais funcionalista dos processos de interação e
comunicação. O que as inovações tecnológicas do novo milênio nos levam a
pensar é a recusa da perspectiva humanocêntrica da comunicação, que
descrevia a atividade do comunicar como uma faculdade exclusivamente
humana.
Na segunda metade do século passado, graças aos estudos da cibernética, tal
modo de interpretar a comunicação começa a entrar em crise. Os estudos de
G. Bateson sobre a comunicação dos gol nhos e os sistemas inteligentes, [3]
além dos de Wiener sobre a comunicação entre máquinas e circuitos, [4]
contribuíram para começar a problematizar a ideia de uma comunicação
delimitada somente aos âmbitos sociais e humanos e limitada ao trânsito de
informações entre esses. Nessa perspectiva diversa, os próprios instrumentos do
comunicar deveriam ser considerados não mais como meios utilizáveis para a
difusão de conteúdos no interior das arquiteturas sociais, mas, sim, como
instrumentos de dissolução e de agenciamento [5] da comunicação humana. [6]
De fato, de um ponto de vista histórico, a comunicação humana é tal somente
enquanto construída e realizada com a colaboração de entidades não humanas
(voz, alfabeto, escritura, eletricidade etc.), cuja função não é, como analisado
por uma ampla bibliogra a, [7] meramente instrumental, mas constitui a forma
e o modo “arti cial” do próprio comunicar: A comunicação humana é um
processo arti cial. Baseia-se em artifícios, descobertas, utensílios e
instrumentos, em outras palavras, símbolos familiares organizados em códigos.
Os homens comunicam-se um com o outro de maneira não natural: as
palavras não são o produto de sons naturais, tais como o canto de um pássaro,
e a escrita não é um gesto natural como a dança das abelhas […] o caráter
arti cial da comunicação humana (isto é, o fato de que o homem entra em
comunicação com o outro por meio de artefatos) não é sempre totalmente
consciente. Assim que aprendemos um código, tendemos a esquecer a sua
arti cialidade… [8]
Em tal perspectiva, a comunicação nunca foi, assim, uma atividade
exclusivamente humana. Mesmo quando excluímos, se isso é possível, os
dispositivos tecnológicos e nos concentramos em uma comunicação face a face,
devemos reconhecer que naquele momento tal interação só é possível a partir
das sinergias de um conjunto de processos comunicativos adicionais, como a
respiração, o batimento cardíaco, as interações de nosso corpo com o meio
ambiente, o uxo de nossos pensamentos e a comunicação em geral com o
meio ambiente em torno (odores, sons, ruídos, informações visuais etc.), além
do contínuo movimento dos uxos informativos, que, embora tecnicamente
ausentes naquele momento, contribuíram ativamente para a formação de
nossas opiniões e nosso conhecimento. Portanto, rejeitando a ideia de uma
centralidade do corpo nos processos comunicativos, é necessário,
provavelmente, assumir a dimensão ecológica, complexa e não sujeitocêntrica
dos processos de comunicação. Em outras palavras, ao se falar em
comunicação, deve-se falar sempre em ecologia ou, ainda, como proposto no
contexto tecnológico contemporâneo, de forma análoga, em redes.
É possível reconduzir idealmente as origens de tal ideia ecológica de
comunicação à obra de W. Benjamin e, de modo particular, a algumas
referências, entre outras, propostas em sua célebre A obra de arte na época de
sua reprodutibilidade técnica. Nesse trabalho, ao narrar as transformações
operadas pela máquina fotográ ca sobre a percepção, Benjamin detém-se na
análise das mudanças aportadas pelo cinema à percepção do ambiente e às
formas do habitar: Nossos bares e as ruas das nossas metrópoles, nossos
escritórios e nossos quartos mobiliados, nossas estações e nossas fábricas
pareciam fechar-nos irremediavelmente. Mas então veio o cinema e, com a
dinamite do décimo de segundo, fez saltar este mundo semelhante a uma
prisão, assim, somos já capazes de empreender tranquilamente aventurosas
viagens em meio às suas ruínas espalhadas. Com o primeiro plano, dilata-se o
espaço, com a câmera lenta, dilata-se o movimento. [9]
O impacto da fotogra a e do cinema na perspectiva de Benjamin não se
refere apenas à percepção, mas, de modo mais signi cativo e radical, parece
interferir na constituição da própria natureza. Na citação seguinte, Benjamin
interpreta, talvez do modo mais radical até então veri cado no pensamento
ocidental, a alteração tecnológica do estado da natureza, dando a esse o
signi cado de uma transformação ecológica: “Entende-se, assim, como a
natureza que fala à câmera seja diversa daquela que fala ao olho”. [10]
Outra referência importante para a interpretação ecológica e não
humanocêntrica dos processos comunicativos pode ser encontrada nas
contribuições, propostas em diversos âmbitos de seu pensamento, por M.
McLuhan, que coloca em estreita relação as mudanças tecnológico-
comunicativas com a condição habitativa e as relações entre o humano e o
ambiente: O homem letrado e civilizado tende a restringir o espaço e a separar
as funções, enquanto o homem tribal projeta livremente a forma do seu corpo
para abarcar o Universo […] Para o homem tribal e a sociedade não letrada, a
habitação era uma imagem tanto do corpo como do universo. A construção da
casa, com o seu braseiro e a sua lareira, era ritualmente associada a um ato de
criação […] Tendo aceitado uma tecnologia analítica fragmentada, o homem
letrado não encontra acesso às estruturas cósmicas tão facilmente quanto o
homem tribal. Prefere os espaços separados e compartimentados aos espaços
abertos. [11]
Além de W. Benjamin e M. McLuhan, podemos identi car J. Meyrowitz
como outro autor que, nos últimos tempos, mesmo sem se referir
explicitamente à ideia de ecologia da comunicação, estabelece uma relação
comunicativa entre as tecnologias, os uxos informativos, as pessoas e o
ambiente social, baseada na ideia de um continuum e de formas de interação
não opositiva: De acordo com minha abordagem, […] os media são tipos de
ambientes sociais que incluem ou excluem, unem ou dividem as pessoas de
modos especí cos. Assim, a análise das transformações nos media é análoga ao
estudo das mudanças arquitetônicas ou geográ cas ou os efeitos da imigração
ou da urbanização. Examinei com atenção os modos com os quais um novo
medium, ou um novo tipo de medium, pode reestruturar as situações sociais,
bem como construindo ou demolindo paredes, ou realocando sicamente as
pessoas […] Antes do advento dos media eletrônicos, […] os lugares de niam
a maior parte dos sistemas de informação […] Os meios eletrônicos deram um
novo passo adiante e levaram a uma dissociação quase total entre localização
física e localização social. [12]
De forma explícita, a ideia de uma ecologia da comunicação aparece
primeiramente no texto de Abraham Moles, que defende a ideia de uma
comunicação que ocorre entre diferentes organismos e/ou sistemas que
interagem entre si, características essas que diferenciariam a abordagem
conteudística daquela realizada pela sociologia ou pela psicologia e que
justi cariam a criação de um novo âmbito de estudos: a ecologia da
comunicação. [13] Do mesmo modo, a abordagem crítica de V. Flusser sobre a
ideia de comunicação moderna apontou para a possibilidade de pensar a
perspectiva de uma interação comunicativa ecológica e não linear, composta de
símbolos, códigos, artefatos, utensílios, instrumentos e pessoas. [14]
Na época mais recente e em uma perspectiva diversa, deparamo-nos com as
contribuições de V. Romano, que de ne a ecologia da comunicação como:
Tese teórica e investigativa que trata, por um lado, do impacto da técnica no
caráter da comunicação humana (relação tecnologia/comunicação) e, por
outro, dos efeitos da comunicação tecnologizada sobre a natureza humana
(relação comunicação técnica/ser humano), na sociedade (relação comunicação
técnica/cultura-civilização) e sobre a natureza extra-humana. [15]
Em oposição a tal perspectiva ainda decididamente humanocêntrica, que
atribui à ecologia da comunicação o signi cado de uma ecologia humana [16]
da comunicação, encontramos alguns estudos norte-americanos: a ecologia da
comunicação B. Nevitt, mas sobretudo a mais recente obra de J. D. Peters, e
marvelous clouds, na qual, questionando a perspectiva da ecologia humana da
comunicação, leva em conta a consideração de que os próprios elementos
naturais, o vento, o ar, as plantas e os objetos, são hoje, graças às formas de
conexão instauradas pela Internet das coisas, transformados em media: Os
media são as nossas infraestruturas do ser, os hábitats e materiais pelos quais
atuamos e somos […] Micróbios e bits são ambos media de existência. Os
estudos de media podem ter uma forma de antropologia losó ca […] A velha
ideia de que os media são ambientes pode ser invertida: ambientes são também
media. Água, fogo, céu, terra e éter são elementos – caseiro, sublime, perigoso
e maravilhoso – que sustentam a existência e nós ainda não descobrimos como
cuidar deles; nossos esforços para fazê-lo constituem nossa história técnica […]
Para dizer que o oceano, a terra, o fogo ou o céu é um medium, nesse ponto de
vista, é diluir o conceito para além do limite da utilidade. […] Os dispositivos
digitais convidam-nos a pensar os media como ambientais, como parte do
hábitat, e não apenas como inputs semióticos para as mentes das pessoas. [17]
Sem pretensões de esgotar o âmbito complexo das diferentes interpretações
sobre a ideia ecológica da comunicação, a m de um esclarecimento útil a uma
melhor compreensão do signi cado aqui atribuído à ecologia comunicativa da
participação, podemos contemplar três outras perspectivas. A primeira é
elaborada por A. Abruzzese, que, ao analisar o fenômeno de difusão da
metrópole e das tecnologias relacionados à eletricidade, nas primeiras décadas
do século XX, destaca a superação da territorialidade física e a instauração de
uma nova sinergia possibilitada pelas interações entre luzes (cinema, imagens) e
território: Fotogra a e cinema são linguagens destinadas a exprimir o novo
fenômeno luz-território. O olhar fotográ co se apropria das estratégias da luz.
Não se apropria dos objetos ou da realidade física como tal, mas das formas
com que as coisas são realmente mostradas e resplendem: as imagens são
iluminações ou conjuntos dessas. A luz arti cial e a película xam, em um
instante, o mundo e, assim, espacializam o tempo, sujeitando-o ao presente.
[18]

Tal como na tradição proposta por W. Benjamin e de modo distinto daquele


empreendido por M. McLuhan, à alteração tecnológico-midiática corresponde
uma alteração não apenas da percepção, mas do mundo e da própria natureza.
Já a segunda perspectiva refere-se ao estudo realizado por A. Rafele sobre os
fundamentos teóricos para o desenvolvimento de uma ideia reticular de
comunicação. Nesse estudo, Rafele identi ca três categorias com a intenção de
interpretar as características das ecologias comunicativas, compostas, em sua
visão, por formas, interações de dependência e conexões. [19]
Por m, a terceira perspectiva, ao contrário, faz referência à ideia de ecologia
comunicativa e reticular, por mim proposta no texto Redes digitais e
sustentabilidade [20] e inspirada pelo conceito de “fazer espaço”, de M.
Heidegger. Enquanto a re exão sobre o habitar marca em certa medida toda a
pesquisa do lósofo alemão, como um ponto-chave de seu pensamento, a
re exão de Heidegger sobre o espaço aparece em breve conferência de 1964 na
Galerie im Erker, St. Gallen, e que tinha como título Raum, Mensch und
Sprache. Tomando distância da tradição da metafísica ocidental que procedia
separando o ser em relação ao ente e, assim, subtraindo-o da dimensão
temporal, “Heidegger […] reconhece o espaço como um Urphanomen, que
não pode ser reduzido a outro; e se esforça para descrever a existência em
termos espaciais, primeiramente identi cando o acontecimento da verdade
como um fazer espaço”. [21]
Tomando distância da ideia cientí ca, objetiva e absoluta do espaço proposta
pela física, que o circunscrevia a sua dimensão mensurável, Heidegger propõe a
passagem do “espaço” aos “espaços”, ou seja, a multiplicação do mesmo e a sua
declinação em múltiplos signi cados. A partir dessa premissa, o lósofo alemão
procede tentando responder à questão: como é possível encontrar aquilo que é
próprio do espaço: Do que fala a linguagem na palavra espaço? Na palavra
espaço fala o fazer – e o deixar – espaço. O que signi ca des orestar, arar. O
fazer espaço porta o livre, a abertura para um assentar-se e um habitar do
homem. O fazer espaço é, pensado naquilo que lhe é próprio, livre doação de
lugares nos quais os destinos dos homens que os habitam se realizam na
felicidade de possuir uma pátria ou na infelicidade por serem dessa privados
[…] O fazer espaço confere a localidade que prepara ao longo do tempo um
habitar […] O fazer espaço é livre doação de lugares. No fazer espaço fala e
esconde-se, ao mesmo tempo, um acontecimento. [22]
A ideia de um espaço que “abre sítios”, que é um fazer espaço e, portanto, em
consonância com a ideia não metafísica da ontologia relacional de Heidegger, e
que se manifesta como um “acontecimento”, pode nos oferecer a possibilidade
de pensar em uma ecologia mutante e, portanto, comunicante, que esconde
um acontecimento e que, assim, está sujeita a um constante devir
comunicativo.
Outro passo em tal direção podemos empreender a partir da metáfora da
ponte, elaborada pelo próprio Heidegger no texto Construir, habitar, pensar,
que faz referência à alteração ecológica empenhada pela construção de uma
ponte sobre um rio a qual reúne duas margens: As pontes põem em
comunicação por diversos modos […] A ponte não se situa em um lugar que já
existe, mas é o lugar que começa a existir a partir da ponte. A ponte é uma
coisa que reúne os quatro elementos, mas os reúne no sentido que confere a
eles um lugar […] As coisas dessa espécie são lugares, e são as coisas a
determinarem, cada vez, os espaços. [23]
Podemos, a partir de livre e não canônica interpretação, atribuir às
arquiteturas informativas a mesma função conferida pelo lósofo alemão à
ponte. Seriam essas, assim, que promovem um acordo da localidade com o
lugar e que fazem espaço. A ecologia comunicativa seria, pois, o resultado de
particulares interações que se desenvolvem entre as diversas arquiteturas
informativas (oralidade, escrita, impressão, eletricidade, o digital etc.), os
espaços e as interações criados e que concordam, especi camente, com cada
nova arquitetura informativa. A forma de uma ecologia comunicativa da
participação e da interação move-se por tais re exões e é baseada na concepção
de que as ecologias comunicativas não só in uenciam, plasmam e caracterizam
as dinâmicas participativas e as interações em determinado contexto histórico-
tecnológico, mas, assim como a ponte de Heidegger, determinam-lhe o espaço,
a qualidade e as características principais.
Podemos, assim, distinguir três ecologias comunicativas: as sociais e
opinativas, próprias da democracia; a sociotécnica, da colaboração, e a das
redes transorgânicas, correspondendo a três formas distintas de interação.
Comecemos, portanto, a tratar da primeira forma ecológico-comunicativa,
partindo da re exão sobre suas características especí cas de interação
identi cadas na disseminação e no diálogo.
Em seu célebre texto Speaking into the air, Peters distingue dois modelos
comunicativos principais, um baseado na disseminação e outro no diálogo.
Para identi car suas diferenças, Peters liga ambas às práticas comunicativas de
duas importantes guras históricas do Ocidente: Jesus Cristo e Sócrates: Na
instituição de um confronto entre o maior sustentador do diálogo, Sócrates, e a
voz mais duradoura em favor da disseminação, Jesus, proponho-me a
redescobrir tanto as sutilezas que podem ser imputadas ao diálogo como a
felicidade das formas não dialógicas, entre as quais a disseminação […]
Sócrates e Jesus são as guras centrais na vida moral do mundo ocidental […]
Essas duas concepções de comunicação – um diálogo com vínculo estrito e
uma disseminação com vínculo fraco […] Meu objetivo, nesse sentido, é
contrapor dois Grundbegriffe na teoria da comunicação, o diálogo e a
disseminação, assim como se formaram historicamente e efetivamente no
pensamento europeu. [24]
A partir da distinção proposta por J. D. Peters sobre os modelos
comunicativos, podemos identi car, mesmo nessas duas formas, os dois
principais modelos de relação informativa que constituem e caracterizam o
ambiente comunicativo das práticas comunicativas sociais desenvolvidas no
Ocidente.

2.2 AS TRÊS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS DA INTERAÇÃO


A partir da ideia do “sentir da forma” (H. Focillon) e da noção de sua
autonomia, própria de uma tradição estética especí ca, como brevemente
apresentado, podemos reconhecer, por um olhar não apenas histórico, diversas
ecologias comunicativas da interação que, ao longo do tempo, têm dado uma
forma especí ca às relações entre arquiteturas e tecnologias da comunicação, à
participação pública e às interações.
Além de contribuir para a mudança das formas de interação e participação, o
advento de uma nova tecnologia e de uma nova arquitetura da comunicação,
[25] em determinado momento da história da humanidade, acaba por atingir a

esfera de interação com o mundo, contribuindo para determinar a


transformação da estrutura da percepção da realidade. [26]
Observar a história das transformações comunicativas não signi ca somente
conhecer as mudanças das formas de organização, armazenamento e
distribuição das informações, em uma perspectiva evolutiva, mas sim perceber
o caráter qualitativo de cada transformação comunicativa e, com essa,
identi car, em cada fase, a importância das arquiteturas informativas e sua
capacidade de introduzir alterações na forma de perceber o mundo e de de nir
a realidade, a partir da construção de novas formas do sentir: Durante os
longos períodos históricos, juntamente aos modos globais de existência dos
coletivos humanos, modi cam-se também os modos e os gêneros de sua
percepção sensorial. A maneira pela qual se organiza a percepção sensorial
humana – o medium com que essa se realiza – não é condicionado apenas no
sentido natural, mas também no sentido histórico. [27]
Em outras palavras, toda inovação comunicativa pode, a partir dessa
perspectiva, ser vista para além de nova dimensão da história da sensorialidade
(W. Benjamin, M. McLuhan etc.), também como a efetivação de uma nova
ecologia da interação.
Historicamente, a humanidade sofreu a in uência de várias transformações
comunicativas. Momentos importantes que marcaram não somente o advento
de inéditas tecnologias informativas e o início de novas formas do comunicar,
mas também o início de novas possibilidades de comunicação e,
consequentemente, a efetivação de novas práticas de interação, de socialidade,
alterando a própria arquitetura do social, as formas de participação e, ao
mesmo tempo, também a dinâmica de percepção e interação com o ambiente.
[28]

M. Baldini, no texto História da comunicação, [29] de ne tais mudanças como


verdadeiras e próprias revoluções, embora, de nossa perspectiva, possamos
pensá-las como ecologias comunicativas, ou seja, como formas comunicativas
do habitar que, ao longo do tempo, constituíram as arquiteturas da percepção
e do comunicar. A introdução da escrita, o advento da imprensa, bem como,
sucessivamente, a disseminação de informações pelo telefone, o rádio, o
cinema e a televisão, tornaram possível não somente novas práticas
comunicativas e sociais e novas formas de interação com o território e a
paisagem. Assim como o telescópio de Galileu criou outro tipo de percepção
tecno-humana e, portanto, diferente daquela permitida pela escrita, que
possibilitou a passagem a outra condição habitativa, aquela de outro tipo de
universo, a fotogra a e o cinema permitiram a reprodução tecnológica do
espaço e o início de uma espacialidade arti cial e de novo tipo de perspectiva
mecânica. A cada uma das diversas inovações comunicativas, a qualidade de tal
alteração deve ser entendida não somente como a passagem de uma tecnologia
a outra, mas também como a transição de um modo de interação a outro, de
uma condição habitativa e de uma arquitetura ecológica a outra. Em outras
palavras, com o advento de novas arquiteturas da informação alteram-se,
juntamente com nossa percepção sensorial, nossa comunicação, nossa forma de
interação com o ambiente e nossa condição habitativa. [30]
A humanidade está enfrentando, na época contemporânea, uma ulterior
transformação, implementada pelo advento das tecnologias digitais, a qual
constitui, em uma perspectiva histórica, mais uma transformação comunicativa
que, de forma análoga às outras, tem possibilitado importantes mudanças no
âmbito dos diversos aspectos da convivência humana e das mais amplas
interações ecológicas. A inovação digital, além de outras expansões dos
processos comunicativos, permitiu o acesso às informações a um público
ilimitado a partir da possibilidade de transmissão em tempo real de uma
quantidade in nita de mensagens. Mas, sobretudo, produziu a transformação
do próprio processo e do próprio signi cado do comunicar. Tal processo
inovador, ainda em curso, mostrou, de fato, ainda com maior clareza, a
impossibilidade de pensar a história das inovações comunicativas por uma
perspectiva diacrônico-evolutiva. Na verdade, de um ponto de vista histórico,
foi comum e possível narrar a estrutura das dinâmicas de produção e
distribuição de informações – em um período que vai da revolução da escrita
até a revolução eletrônica de massa da sociedade industrial – como um
processo homogêneo, no interior do qual existe clara separação entre emissor e
receptor, que permanece como um elemento imprescindível de cada processo
comunicativo, seja esse uma obra teatral, um programa radiofônico ou um
lme. Ao contrário, resulta impossível, nos contextos digitais contemporâneos,
interpretar as complexas ecologias comunicativas por meio das dinâmicas
analógicas das arquiteturas de massa, representadas como baseadas no processo
de construção e distribuição das informações. Pela primeira vez na história da
humanidade, a comunicação torna-se um processo não mais apenas
socialmente construído, no interior do qual as distinções entre emissor, canal e
receptor confundem-se e se intercambiam até o estabelecimento de outras
formas e outras dinâmicas de interação, impossíveis de representar segundo o
modelo dos paradigmas comunicativos tradicionais (Shannon-Weaver, Katz-
Lazarsfeld, Eco-Fabbri etc.).
Conectados às redes móveis, podemos nos comunicar somente se interagimos
com nossas interfaces (teclados, touch screen, smartphones, tablets etc.) a partir
de um diálogo constante e livre de qualquer tipo de passividade tecnológica de
interação, própria das formas comunicativas do espetáculo, e qualquer forma
nítida de distinção entre quem produz e quem recebe as mensagens. A
construção de uma comunicação em rede, caracterizada por circuitos
informativos interativos, obriga-nos a repensar as formas e as práticas de
interação social para além da concepção funcional e estruturalista, baseada nas
distinções identitárias entre emissor e receptor, produtor e consumidor,
empresa e público, instituições e cidadãos, público e privado, que já não
conseguem mais explicar a complexidade das relações das formas
metageográ cas do habitar contemporâneo. Essas irrompem além das
estruturas urbano-metropolitanas e, expandindo-se nas arquiteturas digitais
por meio dos códigos alfanuméricos 010101010, alteram qualitativamente o
signi cado das nossas relações com o ambiente e o território, tal como ocorre
com as interações aportadas pelos Sistemas Informativos Geográ cos (G.I.S.),
com aquelas realizadas pela conexão de todos os tipos de superfície mediante a
transmissão RFID e o etiquetamento de todo tipo de material, e com todas as
diferentes formas de monitoramento e de conexão das diversas substâncias que
povoam a biosfera.
A partir dessas considerações, podemos identi car, paralelamente às
alterações comunicativas, as transformações das formas ecológicas de
comunicação e interação, demarcando três formatos principais: o das ecologias
comunicativas sociais, o das ecologias comunicativas da colaboração e o das
ecologias comunicativas transorgânicas. Cada um deles, enquanto ecologia
comunicativa, estabelece diferentes modelos e práticas de participação e
interação. O primeiro, articulado em duas formas de interação – a da
disseminação e a do diálogo, é a ecologia que fundou as formas democráticas
de participação. As duas últimas, mais recentes, são aquelas que estão
incrementando processos de interação em rede e permitindo a experimentação
de processos de participação estendidos aos dispositivos, aos bancos de dados e
às arquiteturas informativas construídas na rede, no caso das ecologias da
colaboração, e mesmo aos territórios, à biodiversidade e aos diferentes tipos de
superfície conectadas entre si por meio das novas tecnologias de conexão
(RFID, Internet of things), como no caso de ecologias comunicativas
transorgânicas.
De um ponto de vista comunicativo, o que caracteriza as ecologias
comunicativas da democracia é a centralidade, em seu interior, da dimensão
social antropomór ca, marcada pela forma de arquiteturas comunicativas
sociais centralizadas e disseminativas, capazes de produzir e distribuir
conteúdos para um amplo público. O teatro, as praças, num primeiro
momento, e os media de massa, o jornal, o rádio e a TV, desde sempre, criaram
um público que, uma vez exposto aos conteúdos e alcançado pelas mensagens,
podia opinar sobre os conteúdos exprimindo a sua aprovação ou a sua
discordância, mas limitando a própria participação à dimensão opinativa
(ecologia comunicativa do diálogo), ou seja, à reação a conteúdos produzidos
por outros. Em outras palavras, as ecologias comunicativas da democracia
aparecem-nos, hoje, em outro contexto comunicativo e tecnológico, como as
arquiteturas que organizaram e restringiram as formas da cidadania e da
interação à reação por parte apenas dos humanos – entendidos como sujeitos
racionais –, às mensagens – sejam essas faladas, escritas ou lmadas –, à
possibilidade do voto e à soma, assim, das vontades dos cidadãos, isto é, dos
únicos “animais inteligentes” (ζοϖν πόλιτικον). Tal função apenas social da
interação limitou também a ideia da comunicação a uma dimensão
instrumental, centrada nos meios e nas mensagens. Pelo contrário, as redes
ecológico-comunicativas introduzidas pelas redes digitais, devido à sua singular
capacidade de conexão de superfícies diversas, conseguem criar uma ecologia
particular de interação, não mais restrita unicamente aos cidadãos humanos,
mas estendida aos diferentes dispositivos, às TICs, aos Big Data e a todos os
elementos digitalizados da biosfera e do território, criando um tipo de
interação participativa não mais limitada aos processos decisórios e opinativos,
mas ativadora, pelo processo de digitalização de formas de sinergia e formas de
colaboração entre diferentes substâncias e elementos, orgânicos e não
orgânicos.
Enquanto a primeira ecologia, em suas duas modalidades, contribuiu para a
propagação das formas sociais e democráticas, a segunda inaugura um novo
âmbito ecológico já não mais exclusivamente ligado às práticas da opinião e aos
processos de interação racionais e antropomór cos da esfera pública, mas
estendidos a interações com circuitos informativos e bancos de dados. Essa
extensão às interações não mais sociais e antropomór cas será qualitativamente
ampliada, por m, pela terceira ecologia comunicativa da interação, a qual é
formada por ecologias comunicativas transorgânicas, compostas por múltiplas
conexões entre os diferentes elementos constituintes da biosfera e tornadas
possíveis pelas novas formas de conexão entre diversos tipos de superfícies (wi-
, Internet of things, RFID, via satélite etc.).
Há outra consideração importante a fazer antes de começarmos a analisar o
nascimento e o signi cado da passagem das ecologias comunicativas sociais da
democracia àquelas colaborativas dos personal media e das redes digitais, bem
como àquelas transorgânicas, próprias das interações informatizadas que se
desenvolvem em Gaia e já não mais se limitam ao debate entre sujeitos
humanos. O texto seguinte produz uma concepção distintiva, mas não
dicotômica ou dialética. O público e as redes, as tecnologias da democracia, de
colaboração e transorgânicas são conceitualmente realidades qualitativamente
diversas, mas a relação entre esses polos não deve ser interpretada no sentido
diacrônico-evolutivo e, portanto, não em termos de superação. Próprias como
o sentir por formas de Focillon, as três ecologias comunicativas da
comunicação apresentadas a seguir exprimem uma não temporalidade e,
portanto, não representam fases e etapas de um processo unitário e diacrônico.
A ecologia dos media de massa – ligada às formas frontais do espetáculo, às
práticas de diálogo, próprias dos processos urbanos e sociais antropomór cos
–, a ecologia das redes interativas – que se expressa nas formas das interações e
do anonimato – e a ecologia das redes ecológicas transorgânicas, o conceito
social de democracia, de colaboração e de transorganicidade são todos
enunciados que constituem uma tentativa experimental de descrever as
transformações tecnológico-comunicativas e a qualidade das transformações
ecológico-interativas no mundo contemporâneo e, como tal, devem ser
interpretadas como realidades diversas, que convivem ainda de modo
dinâmico, mutante, complexo e mesmo híbrido e contraditório. A história dos
media e as oportunas observações de M. McLuhan a respeito das inovações
midiáticas devem ser levadas em séria consideração durante a leitura deste
texto. [31]
O objetivo que propomos como chave interpretativa no texto seguinte é o de
oferecer uma leitura que enfatize o conceito das ecologias de interação,
derivação de outro conceito por mim desenvolvido em um ulterior contexto e
com a expressão “formas comunicativas do habitar”, [32] entendido como a
convivência paradoxal entre diversos modelos ecológico-comunicativos, o
modelo social da democracia – baseado nas formas da opinião e da
participação discursiva dos sujeitos, reunidos na esfera pública eletri cada e
estimulados pela recepção das mensagens distribuídas segundo as geometrias
informativas centralizadas dos media de massa –, o modelo sociotécnico da
colaboração – caracterizado pelas interações em redes informativas digitais
complexas, que permitem a produção generalizada e a distribuição, em larga
escala, de uma ilimitada quantidade de informações por parte não só de
indivíduos ou sujeitos críticos, mas de redes de conexão que associam actantes,
humanos e não humanos, de diversas naturezas –, além dos modelos ecológicos
transorgânicos, que, a partir da digitalização, tornam possíveis a alteração e a
hibridação das substâncias conectadas.
Esse último tipo de ecologia da comunicação em rede não apenas não prevê,
pela sua realização, a frontalidade e a exposição dos diversos indivíduos a um
único uxo de conteúdos, organizado (agenda setting) e distribuído
simultaneamente no mesmo formato e pelos mesmos meios para toda a
população, mas é articulado a partir da transformação contínua de toda a
ecologia comunicativa, na medida em que, pela sua própria realização, prevê a
sinergia conectiva de circuitos informativos, indivíduos, bancos de dados,
dispositivos, conexões de vários tipos, reunidos em rede e, portanto, capazes de
produzir e distribuir dados e modalidades de interação. Mais que a reação a um
estímulo informativo e, portanto, como a soma das opiniões individuais sobre
um tema comum, a interação nos contextos ecológicos reticulares efetiva-se
como a consequência das conexões transorgânicas dos membros conectados em
uma ecologia não sistêmica (E. Morin, I. Stengers etc.), no interior da qual
desenvolvem a própria forma emergente e a própria função somente “enquanto
digitalizados”, ou seja, em seguida ao advento de dinâmicas conectivas.
A particular ideia de rede [33] aqui adotada diferencia-se tanto de suas
concepções mecanicistas ou daquelas ligadas ao ramo das engenharias – que se
contentam em descrever seus componentes e suas partes –, como daquelas
matemático-estruturais (Barabási, Granovetter etc.) – que preferem considerar
seus links e agregações a m de tentar reconstituir suas dinâmicas, tipologias e
estados – ou mesmo daquelas agregativas sociotécnicas, que buscam identi car
seus diversos actantes. Pelo contrário, nossa opção, ainda que não
necessariamente em oposição às outras, na medida em que contempla sua visão
e não exclui sua importância, pensa a rede como expressão de um “não ser” e
como a forma formante de uma complexidade outra, não decomponível nem
delimitável, não portadora de uma essência, mas produtora de possibilidades,
de conexões emergentes, imprevisíveis, temporárias e reconhecíveis somente
em parte. Algo similar às trajetórias dos elétrons de W. Heisenberg ou às
dinâmicas ilimitáveis de um ecossistema vivo, como relatado por A. Tansley.
Nessa perspectiva, entende-se como a lógica ecológica da interação na sua
forma digital perde a sua dimensão social e sujeitocêntrica e torna-se algo
diferente da soma das opiniões dos sujeitos racionais, pensantes e polêmicos.
Aqui a interação se exprime em forma de conexão múltipla de acesso, não
apenas humana, não somente opinativa, tampouco centralizada somente em
conteúdos.
A leitura que proponho é uma leitura conceitualmente e tecnologicamente
antagonista, porém não, como antes esclarecido, no sentido histórico. Com
efeito, histórica e politicamente, os dois modelos coexistem e parecem opor-se
apenas como manifestação da expressão de ecologias da interação, diversas, mas
contemporâneas, próximas e distantes ao mesmo tempo.
Uma distinção, pois, que faz referência a um princípio não dialético. Algo
próximo à ideia de hospitalidade simbiótica, difundida entre alguns
organismos vivos e que envolve a aceitação da coexistência de diferentes níveis
de lógica da realidade, expressão de outras dimensões suas, diversas e
contemporâneas. Algo que, portanto, rejeitando a superação dos opostos e sua
negação recíproca – ligada à ideia da extinção e morte necessária, enquanto
condição única para a passagem de um nível ou estado a outro –, exprime a
não ontologia da conexão transespecí ca. O mundo já mudou e nós com ele.
Surpreendemo-nos, às vezes, diante das novas formas de participação e de
con itualidade e de nossa percepção delas, por vivermos uma experiência
inédita, uma dimensão do sentir que não conseguimos dizer, uma vez que não
encontramos, no léxico das nossas disciplinas e da nossa tradição teórica da
participação, os termos apropriados. Mas, ao mesmo tempo, frequentemente,
surpreendemo-nos ao revivermos pela enésima vez experiências e formas do
sentir que já experimentamos em numerosas ocasiões, cuja enésima repetição
apresenta-se como uma não ação e como a nítida percepção de um “já
vivido” [34] (M. Perniola). Da esfera das relações sociais àquela íntima da
percepção e do prazer, até a dimensão da participação e da política, deslocamo-
nos, num instante, entre o arcaico e o novo, entre o “já vivido” e o inédito,
entre a repetição e a transgressão, vivendo simultaneamente sua incoerente
união opositiva.
Esta primeira parte do texto propõe uma chave de leitura que se caracteriza
pela distinção de três diferentes tipos de ecologias comunicativas da interação:
as ecologias comunicativas da democracia, as ecologias comunicativas
colaborativas, difundidas com as redes digitais e os social networks, e as
arquiteturas de redes ecológicas digitais transorgânicas.
Ecologias e mundos contemporâneos, mas diversos. Por um lado, o mundo e
a ecologia comunicativa social, antiga e ocidental, das opiniões e da política
antropocêntrica que representam o sujeito como o centro de uma ecologia de
objetos controláveis, submissos e utilizáveis segundo as exigências e nalidades
humanas e reduzidos a recursos e matérias-primas. Do outro, uma ecologia não
empática que se manifesta como viva e sempre diversa, que nos impõe limites e
decisões e nos leva para além de nossa especi cidade humana, portadora de
uma condição (do latim conditio, conditionis) que se nos apresenta, ao mesmo
tempo, e contraditoriamente, como um limite e uma oportunidade.
P A R T E

II
AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS SOCIAIS
N
as ecologias comunicativas sociais, as interações são caracterizadas
pelas trocas de ideias e opiniões entre cidadãos humanos. Em um
primeiro momento, tal troca, que marca toda a história do Ocidente
europeu, é facilitada pelo advento das arquiteturas inclusivas urbanas: o teatro,
a praça, o fórum e os espaços físicos públicos. Em um segundo momento, o
advento da imprensa, da eletricidade, da TV e da mídia de massa, tal interação
assume as dimensões nacionais das esferas públicas, sempre mantendo seu
signi cado antropomór co do debate público e da troca de opiniões entre
cidadãos livres. As arquiteturas informativas que regulam tal debate permitem
uma ampla disseminação de conteúdos, proporcionando e organizando o
debate sobre temas gerais. A dimensão antropocêntrica, política e opinativa
marca as interações e as diversas formas de participação. A mediação das
tecnologias midiáticas, mesmo introduzindo qualitativas transformações
perceptivas e sensoriais, não permite ainda a superação da centralidade do
humano, produzindo um debate opinativo entre atores políticos no interior de
tais ecologias comunicativas que assumem no Ocidente a forma do diálogo
democrático.
*
Capítulo 3
AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS SOCIAIS

3.1 As arquiteturas informativas de disseminação

O
teatro, na Antiguidade, não era um simples espetáculo de distração.
À época de Péricles, no século V a.C., o bilhete de entrada era
reembolsado pela administração da cidade. Os cidadãos atenienses
iam ao teatro para conhecer preceitos religiosos, re etir sobre os dramas e as
vicissitudes da vida e tomar consciência dos deveres civis e dos
comportamentos éticos, capazes de assegurar o bem à pólis.
Era comum entre os antigos habitantes das principais cidades da Magna
Grécia, no nal da tarde e no início de cada primavera, subir a colina mais alta
da cidade para chegar ao teatro e assistir a uma apresentação. Espetáculo e
atividade cívica, ao mesmo tempo, entretenimento e diversão, mas também
evento ético e educativo, o teatro antigo reunia em si todos os elementos que
constituiriam as bases da política na civilização ocidental, estabelecendo, desde
então, a estreita relação entre o espetáculo e a política. J. P. Vernant, eminente
estudioso da civilização grega, relacionava a atividade política do mundo grego
com as representações e competições teatrais que ocorriam no interior da pólis:
Os gregos eram um povo de espectadores […] o sujeito cognoscente era
estruturado como um observador; aquilo que era desconhecido também era
invisível […] O teatro, mais do que a assembleia ou o tribunal, é o lugar onde
a emoção de massa manifesta-se plenamente […] As tragédias podiam levar
para a cena, de forma simbólica, debates contemporâneos sobre temas políticos
e morais de primeira importância, como a limitação dos poderes do Areópago,
nas Eumênides de Ésquilo […] Mas seu signi cado cívico e político podia ser
ainda mais difundido […] As tragédias traziam também o problema dos
perigos inerentes ao exercício do poder (Os persas, Oresteia, Antígona),
mostrando as terríveis consequências da divisão e da discórdia na cidade. [1]
Mais do que nas acaloradas discussões da praça, o sentimento público e as
práticas de decisão coletiva estavam contidos, de acordo com a visão do
estudioso francês, nas apresentações públicas e naquelas simbólico-
comunicativas das tragédias. Nessas, além do elemento competitivo, que exigia,
em alguns casos, a participação e o voto do público, eram comunicados os
denominadores éticos comuns da vida social. No interior da ecologia dos
teatros, os heróis eram celebrados, reconhecidos, aplaudidos pelo público e
indicados como modelos a serem seguidos. Sempre construídos em uma
posição estratégica, geralmente no topo de uma colina que dava para o mar,
todos os teatros gregos apareciam como um lugar irreal, no interior do qual os
elementos narrativos eram acompanhados por diversos efeitos técnicos como a
chegada do “deus ex machina” e as intervenções sonoras do coro, elementos
todos que tinham como nalidade, não só a de conduzir o público ao delírio e
à comoção, conseguindo assim despertar a sua atenção, mas, sobretudo, a de
permitir uma disseminação mais fácil e e caz dos conteúdos.
Encontramos, em tais aspectos, outro elemento fundamental que passará a
caracterizar, no contexto da história das democracias do Ocidente, a forma e as
práticas de participação dos cidadãos na vida pública. Tal elemento é relativo à
importância para o desenvolvimento da vida democrática, da disseminação de
conteúdos realizada pelo poder comunicativo de certas ecologias. Poder
midiático e, assim, tecnológico que, desde o teatro, permitirá o acesso ao
debate e à participação, atribuindo à vida pública, a partir de então, um
aspecto não apenas simbólico e social, mas também tecnológico-comunicativo.
A própria forma arquitetônica do teatro, que permitia uma plena visão desde
qualquer ponto, e o efeito de uma ótima acústica, a qual tornava possível, de
qualquer distância, uma e ciente recepção de conteúdos, demonstram como,
ao contrário do que foi comum pensar, a dimensão ecológico-comunicativa,
mais do que um elemento externo ou um instrumento midiático das práticas
de participação, constituía o hábitat, o lugar de origem, o pressuposto e a
condição da própria existência da democracia grega.
As tecnologias de comunicação, as tecnologias do espetáculo e os espaços da
participação pública formariam, a partir de então, os elementos constitutivos e
a própria ecologia da vida pública no Ocidente, permanecendo, mesmo com o
passar dos séculos, os elementos prioritários no interior e por meio dos quais
ocorrerá a participação dos cidadãos nas decisões e na vida pública. Desde as
suas primeiras formas históricas, desenvolvidas nos contextos das pólis, as
ecologias comunicativas da participação apresentam-se, no Ocidente,
principalmente como arquiteturas de disseminação de conteúdos e de acesso
público às informações.
Outro exemplo de ecologia comunicativa disseminativa é constituído pelas
ecologias da escrita, responsáveis pela disseminação de informações que
contribuíram não só para a alteração dos conteúdos e das dinâmicas do social,
mas também para a criação de ecologias comunicativas comunitárias
metaterritoriais. Um dos casos historicamente mais notáveis está relacionado à
difusão da mensagem cristã, que teve início com a criação de novas
comunidades, fundadas, em geral, por Paulo de Tarso, judeu da Cilícia, com
cidadania romana, que, convertendo-se ao cristianismo, torna-se o principal
artí ce da proliferação da mensagem cristã por meio da disseminação de textos
escritos em formato de carta.
As diversas comunidades, espalhadas pelo Ocidente, constituíam uma rede
que formava a Igreja primitiva, reunida, fundada e formada pela contínua
divulgação das mensagens contidas nas cartas que o apóstolo Paulo escrevia e
que tinham como objetivo instruir os neocristãos sobre os fundamentos da
nova doutrina. Em uma época na qual não existiam importantes canais de
distribuição de informações e no contexto especí co que via a emergência, em
localidades diferentes, de novos crentes, os quais não haviam tido a
possibilidade de conhecer diretamente a mensagem cristã, as cartas de Paulo
criariam uma ecologia informativa capaz de erguer e consolidar a nova religião
cristã, reunindo, em um credo e em uma doutrina comuns, todos os novos éis
espalhados pelo mundo. A epístola que Paulo enviava periodicamente aos
diversos grupos de crentes conseguia formar uma unidade ecológica e manter
as comunidades em comunhão, “formando um único corpo”, denominado
“ecclesia”. As cartas eram esperadas e sempre lidas em público, de modo que
seu conteúdo pudesse alcançar indistintamente todos os membros; o próprio
apóstolo recomendava a sua máxima e pública difusão: “Rogo-vos, em nome
do Senhor, para ler esta carta a todos os irmãos e irmãs”. [2]
O poder de disseminação da escrita e sua capacidade de formar ecologias
imateriais, capazes de criar arquiteturas comuns e de reunir pessoas em torno
de crenças, conceitos e ideias, serão ampli cados pela invenção dos caracteres
móveis e da tipogra a, que surge no século XV. Foram, de fato, tais inovações
– difundindo não só o hábito da leitura, mas com esse as ideias de Lutero, num
primeiro momento, e os ideais iluministas, posteriormente – que disseminaram
as formas de um novo tipo de participação, capaz de destruir o mundo feudal e
criar as ecologias a pedido das sociedades laicas modernas. Sem a tipogra a, a
Enciclopédia, os pamphlet e os textos impressos, os ideais iluministas não

Í
seriam capazes de sobreviver à queima pública dos livros legados ao Índex,
realizada na época pela Igreja em todas as praças europeias.
Do teatro grego, passando pelas competições de oratória no Fórum Romano,
as ecologias imateriais da escrita, as cerimônias públicas nas praças
renascentistas, até as cenogra as midiáticas da era da televisão, a democracia e a
competição política apresentaram-se no mundo ocidental sob a forma de
ecologias comunicativas do espetáculo, ou seja, por meio da apresentação
pública de argumentos submetidos ao julgamento dos espectadores. Em toda
essa longa e heterogênea tradição, a ideia de democracia coincidiu com a de
disseminação de mensagens e a de acesso aos conteúdos.
Essa tradição que se desenvolveu no curso da história ocidental põe em
estreita relação as ecologias e as arquiteturas comunicativas do espetáculo, do
teatro à TV, com aquelas dos processos de construção da cidade, da república
ou, em épocas mais recentes, com aquelas do Estado-nação, criando, assim,
uma condição simbiótica entre as práticas de interação e os espaços produzidos
pelas arquiteturas informativas.
Do ponto de vista comunicativo, as ecologias comunicativas da participação
social criaram público, espaço e conteúdos comuns por meio da construção de
ecologias comunicativas baseadas na separação entre emissores e receptores, ou
seja, formadas por arquiteturas informativas analógicas (do grego: άνα λύω,
proceder separando) e caracterizadas pela instauração da distinção entre ator e
público, sacerdote e el, político e cidadão. A forma analógica da ecologia
comunicativa disseminativa conseguia realizar um processo de comunicação,
enquanto mantinha separados os distintos momentos de construção e de
transferência das informações (emissor, mensagem, medium, canal, receptor
etc.), à medida que instituía as formas de distinção identitária entre o sujeito
emissor (ator, político, deus) – e iniciador do processo de comunicação – e os
sujeitos receptores (cidadãos e público).
O teatro, a imprensa, o cinema, o rádio e a TV representam as formas
históricas das ecologias comunicativas da disseminação, na medida em que
compreendem arquiteturas de disseminação e acesso a conteúdos e a
informações criando cronotopos que permitiram a fruição deles a uma
quantidade de público cada vez maior. O teatro, a imprensa, o rádio, o cinema
e a televisão consolidaram e ampliaram historicamente a forma analógica do
habitar e as ecologias disseminativas da participação democrática no Ocidente.
A óbvia e estreita relação entre a disseminação via arquiteturas de informação
cada vez mais e cientes e o acesso do público às informações, com a
consequente possibilidade de participação na tomada pública de decisões,
ainda que sublinhada por muitos estudos, não foi sempre considerada como
uma condição para o desenvolvimento de processos democráticos. Ao
contrário, foram muitas as re exões e os ilustres pensadores que condenaram
enfaticamente, em épocas diversas, a disseminação de informações e o acesso
das massas a elas.
De acordo com esse difundido pensamento, a participação ativa do público
nos vários setores da sociedade e o protagonismo das massas, tornado possível
pelo advento de novos “instrumentos” tecnológicos, deveriam ser considerados
como uma ameaça. Em épocas e contextos diversos, é possível entrever os
mesmos argumentos que revelam o mesmo tipo de aversão nos confrontos de
ampliação da participação, relacionada à vida pública, dos setores da população
anteriormente excluídos. O primeiro de todos, em ordem cronológica e
argumentativa, foi Platão, que, preocupado com os eventos comunicativos e as
representações teatrais que estimulavam, além da medida, a participação das
massas, exprimia sua crítica aos confrontos do público, o qual, seduzido pelos
poetas, era levado a expressar-se com um “entusiasmo próprio das Bacantes”:
“O público do teatro, de mudo, tornou-se falante, como se pudesse entender
aquilo que na arte é belo e aquilo que não é; mais do que uma aristocracia na
música, temos uma miserável teatrocracia”. [3]
A inclinação popular para opinar sobre cada assunto era associada por Platão
à natural tendência das massas a infringir as regras. Seria a propagação dessa
índole, segundo o lósofo, uma ameaça à harmonia da cidade. A expressão
mais evidente de tal perigosa tendência é particularmente encontrada, no
entender do lósofo, nas formas públicas de julgamento e opinião consentidas
nas representações teatrais de Siracusa, onde o público, no nal do espetáculo,
era convidado a exprimir o seu juízo sobre as representações e “onde a música
era submetida ao juízo da multidão e dos espectadores a ponto de esses últimos
proclamarem o vencedor por meio do levantamento de mãos”. [4]
A mesma aversão platônica à participação do público encontramos como
uma constante na história política do Ocidente, em ambientes e contextos
midiáticos diferentes. Na Alemanha do século XVI, após a tradução do texto
sagrado na língua dos camponeses – realizada por M. Lutero, o que permitiu,
pela primeira vez na história, a leitura da Bíblia e o acesso a seu conteúdo por
parte do público leigo –, veri ca-se uma aversão das autoridades católicas que
denunciaram a tradução e a divulgação dos textos como uma vulgarização e
uma disseminação dos conteúdos sagrados. Em tempos mais recentes, logo
depois da Revolução Industrial, quando o desenvolvimento dos media
começou a determinar a emergência de uma nova cultura de massa,
encontramos o pensamento e a obra de muitos autores claramente hostis aos
confrontos dos processos de inclusão das massas na vida pública, perpetuando,
assim, a tradição platônica e eclesiástica.
Quando, na época moderna, a cultura e o consumo de massa consolidam-se
pelo poder de disseminação dos meios de comunicação, a crítica sobre o
incremento do protagonismo das massas alcança o seu ápice. A. Tocqueville,
em seu célebre Democracy in America, realiza uma entre as primeiras críticas
efetuadas no Ocidente à sociedade de massa. Analisando o contexto da
sociedade industrial americana, baseada nas formas super ciais e rápidas de
interação e na “doença democrática da inveja”, Tocqueville observa como a
cultura é ameaçada por formas de banalização e monotonia e pela luta para
“golpear, e não para interessar, e para agitar as paixões, mais do que para atrair
o gosto”. [5]
Como sublinhado por vários autores desse período, a sociedade dos grandes
números parecia estar ameaçada, assim como a pólis segundo Platão, pela
disseminação das informações e pelo consequente incremento da participação
nas diversas atividades da vida social por parte do público. Entre os outros, T.
S. Eliot parece transferir o receio expresso por Platão quanto à teatrocracia para
a sociedade do século XIX, ameaçada pela chegada de uma nova cultura e um
novo poder político das massas. Mas a analogia com os escritos do lósofo
grego é ainda mais direta na obra de Ortega y Gasset, como demonstram
algumas passagens emblemáticas e todo o espírito do livro A revolta das massas
(1978): “As massas vieram à ribalta da vida social, ocupando os postos,
utilizando os instrumentos e desfrutando dos prazeres até então reservados a
poucos”. [6]
Tais transformações constituiriam uma nova ameaça para a cultura europeia,
desa ada por esses “novos bárbaros incapazes de qualquer esforço além daquele
estritamente imposto a eles como uma reação à coerção externa”, os quais
teriam levado inevitavelmente à degradação da sociedade.
Sem continuar na longa lista de críticos da cultura de massa, [7] é possível
reconhecer, no interior da cultura democrática ocidental, duas tendências
opostas em relação à disseminação: uma que pertence à tradição do signi cado
latino de pubblicus, que faz coincidir a disseminação de conteúdos com o
acesso às informações por parte do público e com o consequente incremento
da sua participação nas questões de interesse coletivo; e a tendência platônica,
que interpreta a livre disseminação das informações e dos conteúdos no sentido
negativo, relacionando-a com a δοχα, ou seja, com o nível mais baixo do
conhecimento indicado pelo próprio lósofo grego, como engano, mentira, na
medida em que se refere ao senso comum e ao conhecimento adquirido pelos
sentidos humanos. Duas tradições que permaneceriam distintas e atravessariam
os séculos da história das democracias ocidentais, mas que habitariam,
indistintamente, a mesma ecologia comunicativa.

3.2 AS ARQUITETURAS INFORMATIVAS DE DIÁLOGO


Ao lado da disseminação encontramos outra importante característica
própria da forma ecológica comunicativa social das democracias, que modela,
na história do Ocidente, as interações, sobretudo após o advento da tipogra a
e da difusão da imprensa. Tal característica refere-se à instauração de práticas
de diálogo entre os cidadãos reunidos em torno de questões de interesse
público.
Como sublinhado por J. Habermas, [8] no coração da Europa, entre os
séculos XVII e XVIII, emerge um novo tipo de socialidade, que se desenvolve
primeiramente na Inglaterra e na França, difundindo-se, apenas
sucessivamente, nos demais países do velho continente.
Tal fenômeno signi cou a emergência de nova dimensão da vida coletiva e
social, que, distintamente das épocas passadas, tem o seu eixo na dimensão
pública e racional. Como se sabe, essa transformação é o resultado de
mudanças qualitativas que vão do nascimento da burguesia, passando pelo
processo de separação entre o Estado e a sociedade civil, até o advento do
processo de industrialização e do novo modo de produção.
Para Habermas, essa nova esfera do social e do “público” desenvolveu-se
como resultado de dois processos: por um lado, em consequência do conjunto
de ações e reivindicações da burguesia contra a aristocracia e o poder baseado
na tradição e no direito divino; e, por outro, devido ao surgimento de uma
nova subjetividade no âmbito da sociedade civil, isto é, fora da corte e das
relações feudais servis, e situada na esfera privada da lógica econômico-racional
do comércio e na esfera íntima e privada do indivíduo: “A esfera pública
burguesa pode ser concebida em um primeiro momento como a esfera dos
privados reunidos como público”. [9]
Nascia, assim, um novo tipo de organização social, pública e privada,
resultado da soma dos interesses burgueses dos indivíduos e, por isso,
portadora de uma nova racionalidade jurídica, dialogante e coletiva, muito
diferente das práticas normativas feudais, irracionais e dogmáticas da tradição
cristã europeia.
Ao lado de tal reconstrução – a qual, ao descrever o processo histórico que
marcou o advento de uma nova dimensão contratual do social, privilegiava
categorias socioeconômicas –, podemos distinguir outra interpretação que
relaciona a origem de uma nova ecologia comunicativa, baseada em
arquiteturas públicas do diálogo, com o advento da imprensa e a difusão da
prática da leitura – como muito enfatizado por M. McLuhan, num primeiro
momento, e, mais recentemente, entre outros, por P. Burke: A prensa facilitou
a acumulação de conhecimentos, difundindo mais amplamente as descobertas
e tornando mais difícil a perda de informações. Por outro lado, […] a nova
técnica desestabilizou o conhecimento, ou aquilo que era entendido como tal,
para tornar os leitores mais conscientes da existência de histórias e
interpretações contrastantes. [10]
Em vez de uma ruptura socioeconômica e cultural, como apontado por
Habermas (2006), para o historiador inglês, o processo de formação de um
novo conceito de público deveria também ser concebido na relação com um
fato histórico-técnico, a invenção da imprensa e, assim, com um preciso
momento histórico, aquele em que Lutero propunha o reconhecimento do
sacerdócio de todos os crentes, traduzindo os textos sagrados na língua
vernácula, difundindo e encorajando sua leitura.
Entender o advento da esfera pública como o advento de nova ecologia
comunicativa de discussão signi ca ir além da descrição das dinâmicas dos
fenômenos ligados aos aspectos socioculturais e aos con itos sociais. Trata-se,
nesse sentido, de reconhecer em tal mudança o signi cado de uma alteração da
dimensão habitativa que permitiu a formação de um espaço imaterial e
informativo de discussão, incentivando, ao mesmo tempo, a disseminação de
informações e a ampliação de seus conteúdos.
A tipogra a e o livro, num primeiro momento, e a imprensa, o rádio, o
cinema e a TV, mais tarde, permitiram a instauração e a progressiva ampliação
de um social midiático e técnico de debate que constituirá uma das principais
características da era moderna, juntamente com o surgimento dos estados
nacionais e da sociedade de massa.
Desse ponto de vista, o conceito de esfera pública não pode ser limitado
unicamente a sua dimensão política e relacional, nem circunscrito aos
signi cados do agir comunicativo (J. Habermas), mas deve, segundo o ponto
de vista aqui exposto, incluir também a alteração qualitativa da condição
habitativa, que permitiria, progressivamente, a passagem das formas locais de
relação e administração às formas participativas, nacionais e globais da era
moderna. A ampliação das ecologias comunicativas da democracia à dimensão
do diálogo conhece, no século XIX, diversas fases distintas: A uni cação
linguística da nação, a expansão da alfabetização em massa, a criação de um
sentir comum por meio da educação, o desenvolvimento das infraestruturas e
dos meios de comunicação, o desenvolvimento de normas jurídicas para
proteger o livre intercâmbio de ideias. [11]
Nasce, assim, um conceito de esfera pública interpretado como uma ecologia
comunicativa das ideias, que enfatiza sua forma e sua capacidade de criar um
ambiente informativo no interior do qual é favorecida e encorajada a livre
circulação material do debate público. Um dos aspectos que distinguem a
ecologia comunicativa das ideias em relação à noção habermasiana de esfera
pública é a referência, por parte da primeira, à dimensão material das ideias, ou
seja, aos diferentes suportes e formatos que forjam suas dimensões,
estabelecendo-lhe, ao mesmo tempo, as condições do diálogo. Ao circularem,
as ideias, as discussões, os conteúdos assumem uma dimensão material, seja
essa escrita em áudio ou audiovisual, que, por suas características midiáticas
especí cas, condiciona a produção e recepção desses primeiros, incidindo,
inevitavelmente, também sobre seus conteúdos. Os contínuos debates políticos
na televisão contribuíram qualitativamente para a alteração não só da
linguagem política, tornando-a mais popular e menos ideológica, mas também
para o processo de aceleração dos tempos da política, chamada já a interagir em
tempo real pela rapidez e dinamismo das sucessões das programações televisivas
e, consequentemente, obrigada ao contínuo confronto público e ao julgamento
da sociedade civil sobre o trabalho de seus representantes.
O que resulta pouco claro na discussão sobre a esfera pública e no debate
aberto, sempre por J. Habermas, acerca do agir comunicativo, é a relação não
dissociável entre o conteúdo das opiniões e das informações e sua forma, tema
esse aberto, como se sabe, no âmbito dos estudos da comunicação por M.
McLuhan. Avançando em tal direção, é necessário observar que as ecologias
comunicativas da participação não somente sempre desenvolveram papel ativo
no processo de produção e disseminação dos conteúdos – e nos processos de
discussão e debate –, mas devem ser consideradas, elas mesmas, o lugar do
debate e, consequentemente, o corpo histórico de seu ser: Nem a ideia de
democracia, nem a emergência de uma esfera pública, de forma alguma,
poderiam, sozinhas, garantir a gênese e a formação da opinião pública –
política, mas também social e cultural – sem o desenvolvimento
contemporâneo de um outro fenômeno típico da modernidade: a comunicação
mediada. [12]
A qualidade da relação entre a ecologia comunicativa e os conteúdos e as
formas de participação, de acordo com a perspectiva aqui apresentada,
convida-nos a pensar sobre a relação entre as arquiteturas informativas, os
media e os processos de formação do consenso e da legitimidade, além dos
tradicionais limites dos signi cados que faziam referência, quase
exclusivamente, ao poder de controle dos conteúdos (agenda setting) e à força
de manipulação das próprias opiniões. [13]
O limite da abordagem sociológica sobre os processos comunicativos reside
propriamente em não saber identi car plenamente, nesses, a sua função
ecológica e a dimensão extrassocial dos media, limitando a sua contribuição às
in uências sobre as opiniões e sobre o imaginário e à própria e simples função
instrumental de disseminação de conteúdos.
Constituem ainda outro exemplo os estudos sobre opinião pública que se
dedicaram, predominantemente no século passado, a analisar as formas de
difusão midiática das opiniões e, de modo particular, a in uência dos media
nos processos de formação delas.
Contrariamente a essa concepção instrumental dos processos de formação
das opiniões – compartilhada tanto pelos estudos quantitativos
mercadológicos, propensos a mensurar as mudanças e as tendências das
opiniões, quanto por aqueles losó co-críticos, sempre propensos às investidas
contra a cultura de massa e todos os tipos de alienação e dependência –, é
possível distinguir, no heterogêneo e amplo contexto dos estudos sobre os
processos opinativos, uma interpretação diversa que atribui aos media e às
arquiteturas informativas importantes funções. Tal papel ativo dos media foi
sublinhado por diversos autores e sintetizado por Grossi (2004) em três
competências especí cas que os próprios meios de comunicação teriam
desenvolvido, como atores e protagonistas dos processos de formação da
opinião.
A primeira competência especí ca é aquela relacionada à capacidade dos
media de atrair a atenção sobre temas e eventos que se tornam objeto de
discussão e debate de opiniões e, portanto, à capacidade de fornecer
visibilidade a eles. Já a segunda competência é identi cada pela capacidade
deles de realizar um papel de interpretação das tendências da opinião pública.
Por m, a terceira competência estaria orientada para o duplo papel
desenvolvido pelos media como criadores e, ao mesmo tempo, veículos da
difusão de opiniões, efetivando, assim, contemporaneamente, “o papel de caixa
de ressonância e de articuladores dos conteúdos”. [14]
A importância especí ca das arquiteturas informativas e das ecologias
comunicativas é ignorada e subestimada pelos principais estudos sobre a esfera
pública. A própria análise sobre o agir comunicativo desenvolvida por J.
Habermas é, quanto a isso, explícita ao evitar levar em conta seriamente a
função das arquiteturas informativas no interior dos processos de participação.
Distanciando-se da ideia elaborada por M. Weber sobre o agir social –
caracterizado por seus quatro tipos diversos (o racional-teleológico; o racional
baseado em valores; o passional e emotivo; o tradicional) –, Habermas
distingue dois tipos principais de ação: a ação instrumental e a ação estratégica.
A primeira estaria orientada à consecução de resultados e, assim, produzida
para determinadas nalidades; já a segunda seria guiada pelas regras e
avaliações de seu impacto sobre outros membros do social: Denominamos ação
instrumental quando é orientada pelos resultados […] e quando analisamos o
grau de efetividade de uma interação segundo uma concatenação entre estados
e eventos; denominamos uma ação estratégica quando a consideramos sob o
aspecto da observação de regras […] Por outro lado, falamos de ação
comunicativa quando os planos de ação dos atores envolvidos são coordenados
não somente por cálculos egocêntricos ou pelas nalidades que desejam
alcançar, mas pelos atos de entendimento. No agir comunicativo [os
indivíduos] não se orientam pelo êxito de si mesmos, mas perseguem seus ns
individuais sob a condição de que sejam capazes de conciliar seus diversos
planos de ação com as bases e as de nições comuns no contexto da situação
vivida. Nesse sentido, a negociação sobre as de nições a respeito da situação
vivida deve ser considerada como um componente essencial das exigências
interpretativas necessárias ao agir comunicativo. […] Mais especi camente,
podem-se distinguir as ações sociais segundo o seguinte critério: ou os
participantes assumem uma atitude orientada pelas nalidades, ou assumem
uma atitude orientada pelo diálogo. [15]
Dessas considerações resultam evidentes dois pressupostos teóricos: em
primeiro lugar, a redução da ideia de ação social unicamente às atividades dos
humanos, atores e participantes únicos; em segundo lugar, a completa negação
de qualquer interferência dos elementos não humanos (ambiente, tecnologias,
media, uxos informativos etc.) sobre o agir dos atores sociais, reconhecidos
como o centro e a nalidade de toda atividade social. As interações são
pensadas apenas como o diálogo entre sujeitos pensantes e seu próprio agir e
como uma atividade principalmente racional: As ações comunicativas exigem
sempre uma interpretação racional desde o seu início. Em princípio, as relações
de quem age diante do mundo objetivo, do mundo social e do mundo
subjetivo, seja de maneira estratégica, seja segundo as relações por nome, seja
dramaturgicamente, estão sujeitas a um juízo objetivo – tanto por parte dos
atores quanto por parte dos espectadores e em igual medida. No agir
comunicativo, até mesmo o ponto de partida das interações torna-se
dependente do fato de se os membros envolvidos são capazes de chegar a um
acordo entre si a respeito de um juízo intersubjetivamente válido […] Segundo
esse modelo de ação, uma interação só poderá obter sucesso à medida que os
membros envolvidos sejam capazes de chegar a um acordo entre si; e tal
consenso, por sua vez, depende das posições do tipo sim/não diante de
pretensões potencialmente baseadas na razão. [16]
O esquecimento da análise das formas e das ecologias do comunicar e a
concentração sobre o impacto e os signi cados provocados pelos
“instrumentos” e “meios” de comunicação foram um dos principais motivos
que levaram a análise sociológica a perder o sentido e a capacidade de
interpretação da dimensão comunicativa do social contemporâneo.
Evitando estender a discussão já extremamente exercitada sobre as diferentes
escolas de pensamento e as tendências que animaram o debate sobre as teorias
e os signi cados sociais da opinião pública, limitamo-nos aqui a observar como
a crescente in uência social dos media, com a expansão das inovações
tecnológico-comunicativas, tornou-se, com o tempo, capaz não só de
modi car e ampliar as dimensões da esfera pública, mas também de incidir
sobre a sua própria natureza: Formando um público de leitores mais vasto (e
distinto) do público dos oradores, e a criação de uma publicidade mediada, ou
seja, de uma espécie de esfera pública e de opinião pública cada vez menos
produto de interações “face a face” e cada vez mais a consequência de relações
interativas a partir dos media. [17]
A passagem das formas unidirecionais próprias das ecologias disseminativas
às dinâmicas complexas e multidirecionais das ecologias do diálogo é, assim,
consequência da transição das arquiteturas informativas centralizadas às
arquiteturas informativas múltiplas, próprias das dinâmicas plurais dos
processos democráticos e dialogantes.
Capítulo 4
DEMOCRACIAS ELETRÔNICAS

4.1 As Ecologias eletrônicas

O
processo de difusão das formas de comunicação de massa não só
levou à eletri cação das esferas públicas nacionais – consolidando e
uni cando, graças ao cinema, à imprensa e, sobretudo, à TV, as
identidades linguísticas e os imaginários no contexto de cada Estado-nação –,
como também contribuiu para a dilatação das fronteiras geopolíticas,
incrementando as relações de diálogo e os processos políticos em escala global e
contribuindo para a integração econômica e política das várias áreas geográ cas
do planeta. Como apontado por A. Abruzzese: O modelo de produção da
metrópole do século XIX será caracterizado pelo progressivo desenvolvimento
da encenação coletiva do live: uxos e aparições da multidão, espetáculos de
massa, grandes magazines, exposições universais […] Mas dará vida também a
uma vasta rede de dispositivos metaterritoriais, de veículos de produção e de
consumo para a opinião pública: urbanismo, jornais, revistas ilustradas,
propaganda, fotogra a. [1]
Como havia ocorrido com a imprensa, o telégrafo, a eletricidade e a ferrovia,
também os media eletrônicos contribuíram para a mudança de percepção do
território e para as próprias formas de interação com esse, o que nos leva à
elucidação, ainda no início de tal processo histórico, feita por W. Benjamin:
Nossos cafés, as ruas de nossas metrópoles, os escritórios, os quartos
mobiliados, as estações, as fábricas, davam-nos a impressão de sufocar-nos
irremediavelmente. Então veio o cinema e, com a dinamite das frações de
segundo, fez explodir esse mundo similar a uma prisão: assim, podemos
tranquilamente começar viagens aventurosas em meio a suas ruínas. Com o
primeiro plano, dilata-se o espaço, com a câmera lenta, dilata-se o movimento.
[2]

Uma forma especí ca de alteração das dimensões geopolíticas – e, com essas,


das próprias categorias losó cas que haviam orientado o Ocidente –
empreendida pelas arquiteturas informativas eletrônicas, foi aquela tratada por
G. Vattimo no texto A sociedade transparente e indicada por ele como a crise da
concepção unitária de história: A crise da história traz consigo a crise da ideia
de progresso: se não existe um curso único dos eventos humanos, muito menos
se poderá defender que esses caminhem em direção a um m, que eles realizem
um plano racional de aprimoramento, educação, emancipação. […] Se
consideramos tudo isso, percebemos também que a crise atual da concepção
unitária de história, a crise resultante da ideia de progresso e do m da
modernidade, não são apenas eventos determinados pelas transformações
teóricas […] Paralelamente ao m do colonialismo e do imperialismo, um
outro grande fator foi determinante para a dissolução da ideia de história e
para o m da modernidade: o advento da sociedade da comunicação. […] Os
meios de comunicação – jornais, rádio, televisão – foram determinantes para o
processo de dissolução dos pontos de vista centrais e daquilo que o lósofo
francês J. F. Lyotard denomina como grandes narrativas. [3]
A estreita relação entre processo de instauração de uma dimensão planetária,
que será sucessivamente denominada como globalização, e a difusão das
tecnologias de comunicação de massa in uenciará todas as formas de
participação, expandindo suas dimensões locais ou nacionais em níveis globais
e transformando e impondo aos con itos internos uma dimensão mundial. Do
Vietnã a Cuba, nas formas e nas práticas de consumo culturais da
contracultura – surgidas no nal dos anos sessenta e nascidas das formas de
contestação da juventude nas universidades, primeiramente no México, nos
Estados Unidos, em Paris e, gradualmente, em todo o Ocidente –, a dimensão
eletrônica e comunicativa transformou as ecologias das interações sociais locais
em formas políticas globais. Uma nova ecologia comunicativa pouco a pouco
reuniu mundos, até pouco tempo antes, desconhecidos e sem comunicação
entre si, tornando-os próximos e interagentes.
Constituem alguns exemplos emblemáticos disso a música, o debate
acadêmico, o imaginário político, as formas de con itualidade, as culturas
juvenis e aquelas dos consumos em geral. Em todos os âmbitos, a eletri cação
produziu a instauração de ecologias planetárias que deram à participação e ao
social uma dimensão inédita que in uenciou e alterou as próprias dinâmicas
locais, modi cando qualitativamente a dimensão habitativa, alterando as
dimensões de proximidade e distância, de interno e de externo. Desse ponto de
vista, os estudos mais famosos, produzidos por alguns dos membros da Escola
de Frankfurt nesse período, não conseguiram captar plenamente a qualidade de
tal transformação, detendo-se apenas sobre a dimensão socioeconômica
provocada pelas tecnologias comunicativas e sobre sua função social alienante.
A estreita relação entre as dimensões culturais, as tecnológico-comunicativas e
as econômico-produtivas da sociedade capitalista restringiu a complexidade dos
fenômenos e das transformações em ato ao interior das coerentes barreiras de
um teorema que impedia a identi cação de suas contradições e os aspectos não
inerentes a tal modelo interpretativo. [4]
Os processos de eletri cação e o incremento das interações comunicativas,
viabilizadas pelas inovações tecnológicas do século XX, não podem ser
interpretados apenas como a consequência das exigências reprodutivas do
mercado capitalista. E não o podem não somente porque, em muitos casos, as
próprias dinâmicas disseminativas e as mesmas ecologias comunicativas –
consideradas funcionais ao sistema por alguns membros da Escola de Frankfurt
– disseminaram o con ito, o protesto e a revolta, ou porque a relação entre
inovação tecnológica e produção não é inscritível em uma relação funcional,
mas, sobretudo, porque o signi cado da participação e todos os aspectos das
dinâmicas do social sofreram com tal processo uma alteração ecológico-
qualitativa que, como é próprio de tal dimensão, modi cou não só suas
dinâmicas e relações, mas sua própria essência. Será J. Baudrillard, anos depois,
que apontará, com mais propriedade, e analisará, com maior profundidade, a
complexidade das alterações introduzidas pelas arquiteturas informativas de
massa, as quais, como a rmado em uma de suas célebres frases, levariam a
ordem mundial a uma dimensão “disney cada”. [5]
As ecologias eletrônicas do século XX, além da difusão das culturas de massa
e dos processos de globalização cultural, alteraram o espaço da participação,
expandindo-o em nível planetário e, sobretudo no contexto da guerra fria,
atribuindo a essa um signi cado sistêmico, que a via como parte de um todo
ou de uma lógica política, geográ ca e intelectual maior. Sobretudo na segunda
metade do século XX, a expansão da eletri cação das dinâmicas e das formas
de participação comportou um incremento de sua própria visualização,
expandindo o debate de suas dimensões conceituais e racionais às dimensões
emotivas e visuais.
O incremento da importância da visualidade e das formas estéticas em
relação àquelas racionais, próprias das ecologias da escrita, foi sublinhado,
entre outros autores, por M. Maffesoli, o qual tem insistido sobre a estetização
das relações sociais e a “barroconização” do mundo. De modo análogo àquele
descrito por W. Benjamin, ao se referir à passagem da mão ao olho realizada
pela máquina fotográ ca, Maffesoli destaca o poder agregativo comunitário da
imagem, por ele de nida como “mesocosmo”, ou seja, como síntese entre o
macro e o micro, e sobretudo daquelas produzidas eletronicamente: Tenho
muitas vezes mostrado que o estereótipo cotidiano da imagem trivial
(publicidade e televisão, por exemplo) tem suas raízes em um arquétipo
substrato e estabelece mesmo uma comunhão não desprezível entre todos
aqueles que participam de um arquétipo-estéreo desse tipo. […] Cada vez que
uma imagem tende a prevalecer, assistimos a uma acentuação da ideia ou do
ideal comunitário. Poder-se-ia até identi car, nesse sentido, uma verdadeira e
própria lei veri cável em cada lugar e em cada época: a dos vasos comunicantes
entre imagem e comunidade. […] Graças também à televisão, estamos diante
de um gigantesco melting pot, de uma espécie de sincretismo geral em que
cada um e cada coisa encontra os próprios lhos e em que, acima de tudo,
busca-se uma excitação dos sentidos […]. [6]
Tal excitação coletiva dos sentidos é apresentada, em diversos contextos,
como um elemento fundante do comunitarismo contemporâneo,
denominado, a partir da etimologia da palavra grega οργία, um “sentir com”
que assume as formas midiáticas dos rituais e dos eventos televisivos: Por meio
da televisão, a comunhão já não tem mais fronteiras e pode-se ter compaixão e
regozijar-se magicamente das punições ou das alegrias do mundo inteiro […]
Milhões de pessoas em todo o mundo participam, de fato, das mesmas alegrias
e das mesmas tristezas, em uma espécie de nova comunhão dos santos que tem
a mesma e cácia daquela que havia unido, em seu momento fundante, os éis
da Igreja cristã. [7]
Além da dimensão de um sentir comum, as ecologias eletrônicas
contribuíram para a criação de uma linguagem comum que permitiu o diálogo
e tornou possível as dimensões nacionais, num primeiro momento e,
posteriormente, globais, da reciprocidade e do con ito político. Em outras
palavras, as ecologias eletrônicas, além de tornar comum o mundo, de reunir,
pensemos, as funções do rádio, das jukeboxes, além da televisão, produziram “a
atmosfera englobante” da participação democrática. Tomando por empréstimo
a ideia de “atmosfera”, de M. Maffesoli, podemos pensar as ecologias
comunicativas da democracia como atmosferas eletrônicas, ao mesmo tempo
etéreas e tangíveis: A atmosfera é a conditio sine qua non de toda a vida em
sociedade. O termo Zeitgeist, espírito do tempo, é muito apropriado e faz
pensar no ar que respiramos. […] Daí a necessidade de compreender um
determinado espaço de civilidade, de se interrogar sobre a atmosfera que o
circunda e que lhe permite ser aquilo que é. […] O indivíduo não pode ser
compreendido senão em suas interações. A interação com o ambiente natural e
com seu ambiente social. Dinâmica que faz, sim, com que o conjunto seja algo
a mais que as partes que o compõem. […] De imediato, é su ciente indicar
que a atmosfera englobante determina fortemente as atitudes individuais, a
maneira de viver, o modo de pensar, as diversas relações sociais, econômicas,
políticas, ideológicas, religiosas que constituem a vida social. Atribuindo ao
termo o seu sentido mais completo, a atmosfera é a matriz que os faz nascer e
se desenvolver. [8]
As ecologias eletrônicas permitiram, além de uma expansão do debate
público, o seu próprio desenvolvimento, condicionando-lhe, a partir das
diferentes arquiteturas midiáticas, as modalidades e as formas. As ecologias
democráticas da imprensa, do rádio e da televisão, segundo tal ponto de vista,
não só transmitiram o debate democrático, tornando-o público, mas o
constituíram, dando ao mesmo forma, modalidade, características de fruição e
tempos diferentes.

4.2 O CAMPO DEMOSCÓPICO E O FIM DOS PONTOS DE VISTA


CENTRAIS
Em um célebre texto dos anos oitenta, o lósofo G. Vattimo advertia para a
necessidade de não limitar a análise dos social media, e de suas funções, no
contexto dos esquemas de postulados mecanicistas que repetiam o refrão:
produção industrial, cultura dominante e manipulação dos media. Inserida no
âmbito de uma lógica industrial que reproduzia seus uxos em formas
geométricas e unidirecionais, a ideia de comunicação elaborada durante a
difusão dos media analógicos coincidia com a descrição de sua função social,
limitada ao incremento do consumo e à reprodução da sociedade capitalista.
Os meios e processos comunicativos foram interpretados, no contexto da ideia
industrial de comunicação, como simples mecanismos de transmissão e, em
última análise, como as partes e os instrumentos funcionais do grande relógio
do capitalismo industrial.
Expressão de uma concepção sistêmica e positivista, difundida nos âmbitos
industriais, a leitura instrumental e funcional do papel social dos media, assim
como as geometrias da representação dos modelos informativos disseminados
nesse período, reproduziam acriticamente a forma estrutural e segmentada
própria das produções industriais, dentro das quais cada peça não encontrava
explicação em si mesma, mas somente no interior de uma inteligência e lógica
maiores que revelavam sua função especí ca.
Durante o século e o milênio que deixamos para trás, essa concepção
sistêmica, instrumental e mecanicista uniu autores distintos, [9] convertendo-se
em um lugar-comum, quase inquestionável. O próprio U. Eco narrou de
modo dialético tais concepções em seu famoso texto Apocalípticos e integrados,
oferecendo, em seguida, uma ideia mais complexa dos processos comunicativos
em Obra aberta. Além dele, foram poucos os céticos. Entre esses, pode-se
certamente considerar o texto A sociedade transparente, de G. Vattimo, obra
que, paralelamente à tradição proposta pela Escola de Turim, mais focada no
impacto histórico e perceptivo dos media, buscava oferecer aos media e às
formas de comunicação uma função diversa daquela reprodutiva e
instrumental. Indo corajosamente contra a corrente, Vattimo, na citada obra,
atribuía à difusão dos media de massa uma importante função emancipadora,
pondo em relação algumas dinâmicas históricas do século XX, como o m do
colonialismo e a crise da concepção unitária da história, com os processos de
multiplicação das imagens e com aqueles de difusão e de acesso das grandes
massas às informações.
Os considerados povos “primitivos”, colonizados pelos europeus em nome do
bom direito da civilidade “superior” e mais evoluída, rebelaram-se e tornaram
problemática a ideia de uma história unitária e centralizada. O ideal europeu
de humanidade foi revelado como um ideal entre outros, não necessariamente
pior, mas que não poderia, sem violência, ter a pretensão de propor-se como a
verdadeira essência do homem e de todos os homens. [10]

Esse processo de multiplicação das imagens criadas pelos mass media foi
interpretado por Vattimo como um processo qualitativo capaz não só de
multiplicar estéticas, notícias e informações, mas, consequentemente, de
relativizar os pontos de vista centrais e as visões do mundo consideradas
universais pelas loso as do velho continente.
O que realmente aconteceu, apesar de todos os esforços das multinacionais e
dos grandes capitalistas, foi que o rádio, a televisão e os jornais tornaram-se
elementos de uma explosão e proliferação generalizada de Weltanschauungen,
de visões de mundo. Essa multiplicação vertiginosa da comunicação, essa
tomada da palavra por parte de um número crescente de subculturas é o efeito
mais evidente dos mass media e é também o fato que – conectado com o fim
ou, pelo menos, com a transformação radical do imperialismo europeu –
determina a passagem da nossa sociedade ao pós-moderno. [11]

Com o passar do tempo, mesmo no âmbito dos estudos da opinião pública, a


concepção instrumental dos media e a centralidade dos processos sociais e
opinativos dos sujeitos começaram a deixar espaço para as ecologias do diálogo.
Um exemplo claro disso são duas tendências. A primeira é constituída pela
transição das lógicas comunicativas piramidais e unidirecionais – que
descreviam os processos de formação das opiniões a partir da Teoria do Two-
step Flow e a intermediação dos líderes de opinião – às lógicas distribuídas dos
empreendedores cognitivos. Segundo tal concepção, em um contexto de
comunicação generalizada, não seriam somente os gestores dos canais
midiáticos e os personagens públicos a in uenciarem as opiniões dos cidadãos,
mas também os indivíduos anônimos, os quais, por algum motivo, teriam tido
um contato privilegiado com as informações e os eventos em debate e, como
tais, seriam reconhecidos pelo público como testemunhas-chave, conseguindo
in uenciar a leitura e a interpretação sobre um fenômeno ou uma questão
especí ca.
Um segundo exemplo é constituído pelos estudos elaborados sobre o “clima
de opinião”, os quais geraram os mapas do campo demoscópico, identi cado
como uma ecologia dos processos relacionais de opinion building: O campo
demoscópico é o âmbito, o espaço social designado, no qual se forma, circula e
se manifesta a opinião pública. O que faz pensar a public opinion como o
resultado de um conjunto de uxos comunicativos, cognitivos e simbólicos
(racionais e emotivos, individuais e coletivos, interiores e exteriores) que nunca
é o produto unilateral de um só componente (a opinião pública como opinião
de elite como uma opinião de massa), mas o resultado de um processo de
construção e de múltipla in uência. [12]
É evidente que o campo demoscópico problematiza as interpretações
simpli cadas dos processos de formação da opinião, as quais buscaram de nir,
identi cando referências estáveis e coerentes de tais processos (o agenda setting,
a espiral do silêncio, a teoria dos líderes de opinião etc.). Enquanto tais teorias
tendiam a explicar as dinâmicas dos processos opinativos e de participação a
partir de princípios causais e impositivos, o campo demoscópico permitia
reconstruir os mesmos processos durante a sua veri cação, oferecendo, ao
mesmo tempo, a possibilidade de produzir mapas dos diferentes atores e dos
distintos elementos intervenientes, gradualmente, na construção da opinião no
interior das práticas ecológicas comunicativas do diálogo.
Além do pensamento comum que descrevia a opinião pública como a soma
das opiniões individuais, ganhava, assim, cada vez mais força a ideia de pensar
a opinião pública como “um clima” complexo e não mais como a simples
consequência do conjunto dos processos de sua formação, postos em ação
pelos “opinion leaders” e pelas dinâmicas unidirecionais dos processos
informativos. A ideia de clima de opinião, que remete a uma dimensão
ecológica e construtivista dos processos de formação da opinião, denominados
em inglês opinion building, substitui, assim, progressivamente, a concepção
industrial e simpli cada relacionada aos processos de produção da opinião
pública.
A ideia de campo demoscópico, que passa a substituir aquela tradicional dos
processos mecânicos de produção da opinião pública, torna-se, assim, de modo
análogo à noção de campo proposta por Maxwell na física, um conceito
operativo que permite, ao longo do tempo, descrever os processos de
construção das dinâmicas opinativas sem determinar, a priori e
ideologicamente, seu sentido, sua qualidade ou sua função. Ao lado da
concepção de atmosfera social, a ideia de clima de opinião e o conceito
operativo relacionado ao campo demoscópico tornam-se instrumentos
interpretativos dinâmicos e adequados para descrever os processos de diálogo e
as dinâmicas emergentes das ecologias eletrônicas democráticas, marcadas pela
troca de opiniões entre cidadãos.
P A R T E

III
AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS DA
COLABORAÇÃO SÓCIO-TÉCNICA
O
advento das arquiteturas informativas e interativas digitais determina
uma qualitativa alteração das formas de participação. Sobretudo com
a difusão da banda larga e das formas de conexão wi- , as redes
digitais con guram-se como ecologias complexas de interação, que
implementam dinâmicas colaborativas entre dispositivos de conexão humanos,
dados e circuitos informativos.
A dimensão da interação, consequentemente, não se con gura apenas como
o conjunto da troca de opiniões entre cidadãos, própria das dinâmicas políticas
e racionais da esfera pública, mas como a colaboração interativa e sociotécnica
entre entidades que, uma vez conectadas, colaboram para a construção de
interações reticulares complexas. As ecologias interativas digitais e
colaborativas, geradas da Internet à bra ótica, permitem a experimentação das
interatividades net-ativistas, ou seja, do conjunto das a-dinâmicas digitais das
interações advindas por meio da contínua troca de informações entre
humanos, dispositivos de conexão e dados.
A participação assume, assim, as formas de um particular tipo de interação,
não mais resultado de um fazer do sujeito-ator, nem de um fazer técnico sobre
o sujeito, mas de algo que toma forma pelas múltiplas interações colaborativas
entre entidades diversas.
Capítulo 5
DO PÚBLICO PARA AS REDES

5.1 As ecologias comunicativas da colaboração


Cada vez que se fala em medium ou em comunicação, seria necessário distanciar-se, o máximo
possível, da opinião dos jornalistas e dos intelectuais que estão na moda. Dever-se-ia, ao
contrário, reconhecer que, quando se menciona a palavra comunicação, não se faz
simplesmente referência à informação e às mensagens, mas se define o modo como uma
época ou determinada sociedade se relacionam com os mortos, os vivos e a natureza.
S. Kierkegaard
A passagem da tecnologia analógica para as digitais comporta a modi cação da
própria ideia de comunicação. A transferência do processo comunicativo para o
formato digital é responsável pela alteração não só da troca informativa que
não advém mais – por conta das arquiteturas em rede – a partir da
transferência de conteúdos de um emissor a um receptor, mas da própria
arquitetura da informação que se enriquece de outros atores, não só as
tecnologias e os dispositivos, mas os bancos de dados, os aplicativos, as
arquiteturas de redes etc. Todos os novos atores do processo comunicativo
tornam-se capazes de criar ecologias interativas, dinâmicas e abertas que vêm a
constituir o hábitat comunicativo que organiza o conjunto das arquiteturas e as
próprias dinâmicas de interação em seu interior. Consequentemente ao
advento das redes digitais, sobretudo após a difusão da banda larga, as
interações comunicativas não se deixavam mais descrever por meio dos
modelos dos uxos informativos unidirecionais de A para B, nem mesmo por
aqueles mais complexos que previam a decodi cação, o ruído, e não a
passividade dos receptores (modelo semiótico textual U. Eco – P. Fabbri).
Diversamente desses modelos, a comunicação digital em rede apresentava
algo como um processo reticular comunicativo e interativo no qual a
tradicional distinção entre emissor e destinatário era substituída por uma
in nidade de interações entre os usuários da Internet, os dispositivos de
conexão, as interfaces, os dados e as redes, cuja interação se traduzia em uma
navegação única e individual, e era representada com a passagem dos media de
massa aos media pessoais. Mas que, talvez, de modo mais preciso, pudesse ser
indicada como a criação de um processo de comunicação colaborativa entre as
diversas arquiteturas informativas (site, blog, comunidades virtuais etc.), os
dispositivos de conexão (smartphones, tablets, computadores etc.), os bancos de
dados e as pessoas a esses conectadas.
Mais que um uxo unidirecional de informações (teatro, livro, lme, rádio e
TV), a comunicação em rede apresenta-se como um conjunto de camadas por
meio das quais não é possível reconstruir uma fonte de emissão única, ou
reconstruir uma direção única, pois cada internauta, em tais hábitats,
construirá, de forma autônoma e única, a sua rota de navegação: O emissor
não emitia mais mensagens, mas construía um sistema com percursos de
navegação e conexões. A mensagem tornava-se um programa interativo que era
de nido pelo modo em que era acessada, de maneira que a mensagem era
modi cada à medida que atendia às solicitações daqueles que manipulavam o
programa. Essas manipulações eram conduzidas por meio de uma tela
interativa ou de uma interface que são lugares e instrumentos para o diálogo. [1]
A alteração da própria ideia de comunicação e do contexto da sua própria
arquitetura foi sublinhada também por P. Lévy: Junto às taxas de crescimento
de transmissão, a tendência à interconexão provoca uma mutação na física da
comunicação: passa-se pelas noções de rede de canais e um sentido de espaço
envolvente. Os veículos de informações não estariam mais no espaço, mas, por
meio de uma espécie de torsão topológica, todo o espaço se tornaria um canal
interativo. […] Além de um sistema físico de comunicação, a interconexão
constitui a humanidade em um continuum sem limite, escava um ambiente
informativo oceânico, mergulha os seres e as coisas no mesmo banho de
comunicação interativa. A interconexão tece um universal por contato. [2]
O que resulta claro na passagem das ecologias comunicativas eletrônicas
àquelas em rede é que nessas o processo comunicativo é completamente
dependente das múltiplas interações, que se instauram não apenas entre
indivíduos e tecnologias (media), mas entre um conjunto múltiplo de
interações e conexões entre uxos informativos, dispositivos móveis, banco de
dados e aplicativos com várias funções.
Tais importantes transformações requerem a reelaboração do próprio
conceito de interação. No século passado, a teoria sociológica (M. Weber) e a
da comunicação política (J. Habermas) atri-buíram ao conceito de interação
um signi cado que exprimia, sobretudo, a sua dimensão antropomór ca,
mesmo quando, em alguns casos, era suposto um componente técnico;
preferia-se, em cada caso, propor uma leitura baseada na centralidade e na
capacidade do indivíduo de interpretar e reformular as mensagens e de
produzir interações a partir de sua capacidade de gerenciar tais processos.
Mesmo quando tais interações eram interpretadas, caso do pensamento de
McLuhan, como o conjunto das dinâmicas construídas em diálogo com os
media e as tecnologias, continuavam a ser vistas como os dinamismos
extensivos das faculdades perceptivas e sensoriais humanas.
O que veio a partir das diversas formas de conexão e após os processos de
digitalização generalizada foi a transformação da ecologia comunicativa, a qual
comportou, inevitavelmente, a alteração da própria ideia de comunicação
expressa na tradução da centralidade da mensagem, de seu impacto, sua fonte,
suas funções, seus efeitos e seus signi cados à dimensão ecológica e habitativa
expressa pelas interações reticulares entre pessoas, dispositivos de conexão,
redes informativas e dados. Em tal nova concepção, não são mais os indivíduos
como sujeitos únicos que se comunicam entre si, nem somente as tecnologias
ou as máquinas informativas (N. Wiener), mas as ecologias conectadas. Daí a
própria problematização do sujeito comunicante, seja esse emissor ou receptor:
O surgimento da cultura digital e de seus sistemas de comunicação mediada
eletronicamente transforma o nosso modo de pensar o sujeito […] A gura de
um eu, xado no tempo e no espaço, capaz de exercitar um controle cognitivo
sobre os objetos a seu redor não se justi ca mais. A comunicação eletrônica
remove sistematicamente os pontos xos, os fundamentos que eram essenciais
para a construção das teorias modernas […] Na nova ideia dos media a
realidade torna-se múltipla […] Toda a gama de práticas inclusivas próprias da
comunicação em rede – via e-mail, mensagens, videoconferências etc. –,
constitui um sujeito múltiplo, instável, mutável, difuso e fragmentado, ou seja,
uma constituição incompleta, sempre em formação. [3]
Em uma perspectiva análoga, De Kerckhove estabelece uma sinergia não
opositiva entre a dimensão psicológica e aquela tecnológica: A nossa realidade
psicológica não é algo “natural”. Depende em parte de como nosso ambiente,
inclusive as extensões tecnológicas, atingem-nos. […] A “Tecnopsicologia” é o
estudo da condição psicológica das pessoas que vivem sob a in uência de
inovação tecnológica. A tecnopsicologia assume ainda mais importância agora
que já existem as extensões tecnológicas para as nossas faculdades psíquicas.
Inventou-se o termo psicotecnologia, baseado no modelo das biotecnologias,
para de nir qualquer tecnologia que emule, estenda ou ampli que o poder da
mente. [4]
Se acrescentamos a tais interpretações a passagem das interações tecnológicas
de massa para aquelas dos media pessoais, ampli cadas pelo advento das
tecnologias portáteis e das conexões móveis, resulta ainda mais evidente a
passagem de um modelo comunicativo, baseado na exposição do sujeito aos
media e nas ecologias de diálogo mediado entre pessoas – e expresso em
ecologias comunicativas de troca de opiniões (imprensa, rádio, TV) – para
outro no qual a comunicação não transmite mais somente os conteúdos
produzidos pelos indivíduos, mas, junto a esses, uma in nidade de
informações produzidas, manipuladas e trocadas pelas tecnologias informativas
e, sobretudo, construídas em colaboração entre humanos e não humanos no
interior de ecologias colaborativas de interação e conexão.
Nas duas últimas décadas, as redes digitais forneceram, ao lado de uma nova
interação com os media, novas tipologias de socialidade. Para M. Castells, o
conceito de sociedade da informação se posiciona como um ponto de
referência de análise da sociedade contemporânea, capaz de identi car as
tecnologias da informação como os agentes constituidores tanto do processo de
produção como das relações sociais. A sociedade da informação seria, portanto,
entendida como uma forma especí ca de organização social, na qual a geração,
a elaboração e a transformação das informações torna-se fonte de socialidade:
Nesta sociedade, a informação assume um papel central e as redes digitais
constituem a base material da transformação social e de reestruturação dos
modos de produção capitalista/estatal e do desenvolvimento industrial em
direção ao “informacionalismo” […] A geração, a elaboração e a transmissão
das informações tornam-se fontes fundamentais de produtividade e poder,
devidas às novas condições tecnológicas. [5]
Por tais pressupostos, segundo o ponto de vista apresentado neste livro, é
possível dar outro passo à frente que nos leve a a rmar que as redes digitais não
devem ser entendidas somente como o espaço do diálogo e da circulação das
diversas opiniões humanas, mas sim como as formas de interação comunicativa
entre humanos e não humanos. Por tal perspectiva, mesmo a ideia moderna de
esfera pública, como arquitetura de emanação e diálogo de conteúdos públicos
por meio dos suportes midiáticos audiovisuais e impressos, não mais parece
su ciente para descrever a complexidade e a qualidade das interações no
interior das arquiteturas digitais. Nessas últimas, os processos comunicativos de
interação, mais que a extensão dos sentidos e dos conteúdos humanos, devem
ser postos em relação a formas comunicativas do habitar, ou seja, a condições
habitativas mutantes nas quais as interações, os contextos e a própria ecologia
não são mais construídos apenas por sujeitos e atores humanos, mas passam a
tomar forma, cada vez mais, em maneira colaborativa, a partir das interações
produzidas pelos diversos membros e pelas diversas entidades não humanas
conectados.
A principal distinção entre as arquiteturas sociais da democracia e as
arquiteturas da colaboração está no deslocamento não humano das interações e
dos diálogos que advêm nessas últimas. Se, nas arquiteturas sociais da
democracia, a comunicação que circula é relativa, predominantemente, aos
conteúdos e aos uxos informativos trocados entre sujeitos, instituições e
grupos – apresentando-se como um diálogo entre humanos, o qual veicula
conteúdos elaborados por esse –, nas arquiteturas colaborativas, produz-se um
tipo de comunicação em rede, produzida e formada pela interação de diversas
entidades (circuitos, dados, dispositivos, arquiteturas informativas) que, em
sinergia com os internautas humanos, originam diversos tipos de interação.
Se as ecologias da socialidade e da democracia, os teatros, as praças, as
cidades, a imprensa e as esferas nacionais televisivas desenvolvem as interações
entre humanos por meio da disseminação e do diálogo entre esses e os diversos
conteúdos dos media, o que ocorre quando as relações entre os diversos
indivíduos, as informações, os dispositivos, as arquiteturas informativas e o
território formam-se por meio de tecnologias interativas em rede, resultado de
processos de digitalização?
O que surge na interação e na participação quando a ecologia é formada por
agentes de diversas naturezas, humanos e não humanos, conectados entre si,
ativos produtores de conteúdo e de interações?
As características de tais interações desenvolvidas nos contextos digitais entre
indivíduos, tecnologias, circuitos informativos e territórios assumem, segundo
Manuel Castells (2001), a forma e as características de um “espaço de uxo” de
informações. Mas tal espaço, conforme o sociólogo espanhol, não levaria
necessariamente à alteração qualitativa das formas de participação, e, sim, mais
que outro, a um incremento da participação ativa dos cidadãos nas decisões e à
própria expansão dos processos democráticos: No interior do processo de
coevolução da Internet e da sociedade, a dimensão política de nossas vidas é
profundamente transformada […] A Internet envolve um extraordinário
potencial para a expressão dos direitos dos cidadãos e a comunicação dos
valores humanos […] colocando as pessoas em contato em uma ágora pública,
para poder exprimir suas preocupações e esperanças. [6]
Segundo tal perspectiva, mais que a expressão de um novo tipo de ecologia
da interação, as redes digitais seriam somente a extensão virtual das praças e
dos espaços públicos, oferecendo modalidades e formatos novos a práticas e
signi cados já existentes.
Em outra perspectiva mais complexa e menos sociocêntrica, pareceria útil
reconhecer, em primeiro lugar, que tais tipos de transformações introduzem
não apenas a expansão das práticas de participação, mas um novo tipo de
ambiente, formado não somente por entidades biológicas, mas também por
tecnologias e elementos não orgânicos: O desenvolvimento das redes digitais
de comunicação assistida nos leva a de nir a técnica e o território como
inteligências distribuídas por toda parte, colocadas em sinergia em tempo real.
Esse novo conceito poderia substituir o de inteligência arti cial e proporcionar
uma nova orientação das ciências cognitivas e ecológicas. [7]
Em tais ecologias comunicativas, de fato, não só as opiniões, mas também o
território, a percepção do lugar, os dados, os signi cados, assim como as
formas de interação, são continuamente alterados pela intervenção de novas
entidades interagentes e pelo contínuo uxo de informações produzidas em
rede. Essas formas de interação complexas assumem o signi cado não de um
conjunto de trocas de informações, mas aquele qualitativo de uma contínua
alteração da própria condição habitativa. [8]
O resultado desse processo de interação é a criação de ecologias informativas
em contínua transformação que assumem formas e signi cados diversos
conforme o usuário conectado, o tipo de interface utilizada, os circuitos
informativos e os dados acessados, as dinâmicas desenvolvidas e/ou o tipo de
interação construídos dinamicamente em arquiteturas comunicativas
especí cas.
Indicamos, portanto, como ecologias colaborativas de interação, em primeiro
lugar, as formas complexas de interações entre humanos, tecnologias de
informações, dispositivos de conexões, uxos informativos, dados e
arquiteturas de interação que surgem, após o processo de digitalização, nas
redes digitais; em segundo lugar, as expressões e práticas de participação que,
ultrapassando a troca de opiniões entre os cidadãos e os sujeitos políticos
humanos, próprias das dinâmicas democráticas, abrem à socialidade e às
interações novos horizontes e signi cados.
Segue daí a necessidade de repensar, além disso, e como já visto, a própria
ideia de comunicação, mesmo a de participação, em uma perspectiva diversa
daquela dos signi cados próprios da interação social e dos signi cados políticos
da ação.
No interior das ecologias colaborativas, a interação não se manifesta mais
somente como prática de cidadania, nem somente como forma de participação
social, como veremos no próximo parágrafo, mas como um inédito tipo de
interação que, conectando em rede entidades diversas, convida-nos a uma
necessária ruptura epistêmica, que nos permita ver além dos signi cados sociais
da ação e ocidentais do político.
Na reconstrução histórica, a transição das arquiteturas analógicas da
participação para aquelas das formas digitais determina, portanto, a
transformação, não só de um conjunto de características e práticas de gestão
dos processos decisórios, mas também da própria ecologia da interação.
Se o advento dos mass media eletrônicos havia consolidado as democracias e
os estados nacionais por meio da criação de uma esfera pública de debate,
acessível a uma vasta população, a comunicação digital de ne, como
sublinhado, um novo tipo de ecologia das interações, não mais baseado
somente na troca das opiniões entre humanos, mas em uma complexa rede de
interações entre entidades diversas.
Em modo sintético e esquemático, podemos distinguir o signi cado da
participação no interior das ecologias comunicativas democráticas e sociais
daquele da participação no interior das ecologias comunicativas colaborativas a
partir das seguintes características, sintetizadas no diagrama seguinte:
A participação nas ecologias comunicativas sociais da democracia
– Trocas de conteúdos e ideias produzidas exclusivamente por humanos.
– Utilização de suportes analógicos (rádio, televisão e jornais) que
tecnologicamente impedem o diálogo direto, estimulando e limitando a
participação à troca privada das opiniões.
– Produção e disseminação de conteúdos financeiramente muito dispendiosos.
– Identificação da participação com o debate e a troca de ideias entre os
cidadãos.
– Predomínio de conteúdos e debates nacionais.
– Limitação da participação dos cidadãos ao voto.
– Centralidade da luta pela conquista do consenso e do poder como espaço
principal do confronto político e fim último do agir político.
– Absolutização dos elementos competitivos.
– Redução da participação dos cidadãos ao papel de espectador/público.
– Tendência à personalização da política devida à centralidade do sistema
eleitoral baseado na eleição de candidatos e líderes.

A participação nas ecologias comunicativas da colaboração


O advento das redes digitais estabelece uma forma comunicativa feita de
uxos e trocas de informações que colocam em interação, em tempo real, não
apenas os indivíduos e os media, mas uma série de outras entidades (bancos de
dados, dispositivos de conexão, arquiteturas de interações etc.), permitindo
não apenas a circulação de uma quantidade ilimitada de informações
transmitidas em rede e o advento de um novo tipo de temporalidade de
interação sincrônica, mas também o surgimento de uma ecologia de interação
não mais local nem nacional, habitável por meio da colaboração interativa
entre entidades de diversas naturezas.
Do ponto de vista da participação, assistimos, portanto, a uma translação das
formas, dos modos e do hábitat das interações. Ainda que esquematicamente,
podemos caracterizar a participação nas ecologias comunicativas da
colaboração a partir das seguintes tendências: – O uso de tecnologias
interativas digitais que permitem a difusão de interações de diálogo não
unidirecionais por meio do uso de chat com câmeras de vídeo e de fotogra a
digitais, e o acesso a bancos de dados públicos e on-line (Dropbox, Gmail,
Wikipedia etc.), transformaram a dimensão ecológica da participação
superando sua dimensão subjetiva e antropomór ca, substituindo-a por uma
dimensão ecológico-colaborativa.
– Tal participação surge como consequência do diálogo com algumas
específicas tecnologias digitais de interação, que tornam possível a produção
coletiva de conteúdos e sua difusão em rede, assim como o acesso
generalizado aos conteúdos e às informações.
– As próprias arquiteturas interativas, em sua especificidade não instrumental
nem causal, tornam possível a organização temática on-line dos conteúdos
(sobre o ambiente, as disparidades econômicas, a participação nas decisões
etc.) e a realização de pesquisas temáticas aprofundadas sobre assuntos
específicos em bancos de dados em diversos idiomas.
– Tais características manifestam a tendência a atribuir à participação um
significado de interação não mais apenas social, dando a possibilidade de
construir os conteúdos, os territórios e interações coletivas, sem geralmente o
recurso ao estímulo de uma instituição política intermediária ou de um líder.
– A dimensão informativa de tais interações tende a favorecer a criação de
formas de participação nem locais nem globais.
– Tendência a passar da dimensão política da participação à sua dimensão
informativa, encorajando o indivíduo não só a participar, e a interagir, mas a se
informar.
– Superação da necessidade de vultosos recursos econômicos para a produção
e disseminação dos conteúdos; os custos para a produção e disseminação de
conteúdos on-line são quase zero.
– Passagem da disputa pelo poder para a interação colaborativa experimental a
fim de solucionar problemáticas específicas (campanhas cívicas, soluções de
problemas ambientais específicos, campanhas pela defesa dos direitos das
minorias etc.).
– As formas de participação em rede não parecem ser mais apenas a expressão
de um agir político, ligado e produzido por uma ideologia ou uma orientação
particular, mas, porque assumem a forma das interações on-line, de modo
emergente, em contínuo diálogo com os fluxos informativos e as diversas
realidades envolvidas, ultrapassam a dimensão opinativa humana, dando vida a
um agir não mais antropomórfico e sujeito-cêntrico.
– As ecologias comunicativas colaborativas promovem formas de participação
em rede, as quais, na maior parte dos casos, mudam o objetivo inicial que
havia gerado a própria conexão, transformando no tempo, por meio da
interação colaborativa entre as diversas entidades, suas próprias finalidades.
– Assim, a criação de uma ecologia de colaboração exprime, em muitos casos,
a forma-conteúdo da própria interação; ainda que aparentemente motivada
por específicas e manifestas motivações, caracteriza-se pela experimentação de
originais dinâmicas de interação.
– A dimensão colaborativa apresenta-se como uma ecologia não só opinativa,
e, assim, não descritível apenas na sua expressão de interação político-
democrática.
A perspectiva esquematicamente aqui apresentada da ecologia colaborativa da
interação distingue-se tanto daquela sociocêntrica de M. Castells, que vê nas
formas de ativismo em rede a expansão das práticas de con itualidades sociais e
das práticas democráticas de participação, quanto daquela da ação em rede
proposta por B. Latour, o qual, embora assuma a dimensão complexa e
colaborativa do agir, exclui inteiramente a sua qualidade digital e sua
metamorfose ecológica.

5.2 DA PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA ÀS REDES


COLABORATIVAS
Em O futuro da democracia, Norberto Bobbio descreve a ideia de uma plena
realização da democracia e de seu espírito profundo como a condição utópica
na qual todo cidadão deve encontrar-se na possibilidade real de ser
continuamente chamado a opinar sobre cada decisão: “Ninguém pode
imaginar um estado que possa ser governado por meio do contínuo apelo ao
povo […] Salvo na hipótese, por ora ccional, de que cada cidadão possa
transmitir o próprio voto, comodamente desde a sua casa, apertando um
botão”. [9]
Quando Bobbio escrevera essas linhas, a Internet ainda não havia surgido em
sua versão civil. Hoje, décadas depois, tal condição parece ter se tornado
possível. Na maior parte dos casos, a discussão sobre a participação digital, seja
na forma de gestão pública dos dados digitais (e-government) ou naquela da
democracia de base, fundamentada na participação ativa e autônoma dos
cidadãos conectados (e-governance), não vai muito além da ideia de expansão
da participação democrática, por meio das novas tecnologias responsáveis por
permitir o acesso público aos dados, proporcionando maior transparência e um
incremento da participação direta dos cidadãos.
No texto Democracia eletrônica, D. Pitteri identi ca cinco orientações
principais no estudo da participação nos contextos digitais: um primeiro
cenário por ele denominado “grande irmão”, segundo o qual as redes
informativas seriam as novas arquiteturas do controle generalizado; um
segundo cenário, “tecnocrático”, próximo à ideia de dominação perpetuada por
uma nova elite tecnocrática; um terceiro cenário, da democracia direta,
baseado na ideia de participação generalizada dos cidadãos por meio das novas
tecnologias. Ao lado desses três cenários, Pitteri contempla outros dois: o
cenário da democracia representativa, inspirado em Barber (1984), para o qual
as novas tecnologias incrementariam a e ciência das instituições democráticas,
reforçando-as, e, por m, o cenário da democracia participativa, que atribui às
arquiteturas digitais a importante função de tornar possível a expansão do
diálogo, estendendo assim a concepção habermasiana de ação comunicativa.
[10] Alinhado à última perspectiva, insere-se o estudo de S. Rodotá sobre a

relação entre as novas tecnologias e as redes digitais, que, em sua interpretação,


constituem “o espaço constitucional de interação entre as atividades dos
cidadãos e as atividades das instituições”. [11]
No interior dessa lógica que pensa as arquiteturas digitais como os novos
espaços do diálogo entre cidadãos e instituições, encontramos a ideia e os
estudos do e-government, o governo eletrônico. Esses últimos são baseados na
ideia de que as redes digitais possam oferecer acesso generalizado dos cidadãos
às informações públicas, permitindo, ao mesmo tempo, a todos eles, o acesso
ao debate, favorecendo suas interações em tempos propícios e por meio de
modalidades e regras preestabelecidas.
Pitteri, no livro citado, elenca “os instrumentos aptos a garantir um processo
participativo contínuo”: a) Instrumentos de conhecimento que concedem aos
cidadãos o acesso a todas as informações.
b) Instrumentos de intervenção não formalizada, que permitem aos cidadãos
participar dos processos decisórios, cuja escolha final é confiada a outros
sujeitos.
c) Instrumentos de avaliação crítica.
d) Instrumentos de controle.
e) Instrumentos de proposta, que obrigam os sujeitos públicos a levarem em
consideração as ideias e as sugestões dos cidadãos.
f) Instrumentos de consulta.
g) Instrumentos de gestão autônoma.
h) Instrumentos de decisão, capazes de inovar as práticas e as modalidades
tradicionais dos referendos. [12]
Sempre por meio da comunicação digital seria possível, segundo Pitteri,
“recorrer ao conjunto de todos esses instrumentos, dando lugar a uma forma
de democracia que não nega a forma representativa nem a direta”. [13]
Sobre a mesma linha que interpreta as redes digitais como a ampliação das
esferas públicas da participação, em última instância, como o processo de
aperfeiçoamento das instituições democráticas, encontramos o debate sobre o
e-democracy, ou seja, sobre as práticas da democracia eletrônica. Pitteri
identi ca cinco modelos principais de e-democracy: I - O e-government, ou seja,
a administração eletrônica dos dados e o processo de digitalização das
informações da administração pública.
II - A e-democracy administrativa, caracterizada pela abertura dos dados e a
possibilidade de acesso a esses com o consequente incremento dos processos de
transparência.
III - A e-democracy consultiva, que leva as instituições e as administrações
locais ou nacionais a instaurar formas de diálogo e de consulta dos cidadãos a
respeito de questões de particular relevância coletiva. Como sabiamente
observado pelo próprio Pitteri: Trata-se de uma forma de e-democracy que
mantém o cidadão ancorado a uma posição de subalternidade em relação aos
processos decisórios da política e às atividades deliberativas das instituições,
ainda mais reforçadas pelas modalidades segundo as quais, para estimular e
incentivar a participação de base, são utilizadas novas tecnologias, de maneira
geralmente mass-midiática, one to many, e para as quais o resultado esperado
do processo comunicativo é um feedback restrito a opções predeterminadas e
não modi cáveis. [14]
IV - A e-democracy participativa, na qual os cidadãos são convidados pelas
instituições para participar da formação dos processos decisórios, tendo um
papel ativo, mas sem ainda poder ter a responsabilidade pelas escolhas nais
que competem ainda às instituições.
V - A e-democracy deliberativa, que se caracteriza pela existência de espaços de
debate público no interior dos quais instituições e cidadãos discutem e juntos
procuram soluções para problemas de interesse público: [15]
O plano de fundo sobre o qual se insere é, de qualquer modo, uma forma de
democracia eletrônica decididamente vertical, que põe no centro dos processos
as instituições – que se tornam suas promotoras, reguladoras e atuadoras – e
que tende a englobar, a conter (a comprimir) e a dirigir as instâncias
provenientes da base. [16]

Em direção oposta à tradição dos signi cados da e-democracy, encontramos as


formas de e-governance, ou seja, formas de gestão de base realizadas pela
sociedade civil conectada, que, de forma autônoma, passa a deliberar e a
autogovernar-se. A interpretação de tal processo identi ca os signi cados da
participação em rede sempre no interior das práticas democráticas, ou seja,
sempre no interior das interações opinativas e deliberativas gerenciadas
somente por humanos, mas interpreta seus signi cados em uma acepção
evolutiva, caracterizada não só pelo alargamento do acesso a dados, mas pela
difusão de novas práticas de interação, autonomia e autogoverno.
O exemplo mais notável no interior da tradição sociológica e política de
interpretação de tais estudos é a abordagem que M. Castells apresenta em
vários âmbitos. O ponto de partida do sociólogo espanhol é o estudo dos
movimentos sociais em rede, ou seja, a digitalização dos grupos da sociedade
civil e das organizações sociais já existentes que passam a utilizar as arquiteturas
informativas digitais para melhorar a própria performance, deixando pouco ou
nada ao estudo das redes e às distintas formas de digitalização e conexão: O
papel da Internet e da comunicação sem o nos atuais movimentos sociais em
rede é fundamental […] Mas a compreensão desses foi ofuscada por um debate
sem sentido, nos media e nos circuitos acadêmicos, que tinha como m negar
que as tecnologias comunicativas fossem a origem dos fenômenos sociais. Isso é
óbvio. Nem a Internet nem nenhuma outra tecnologia podem estar na origem
dos fenômenos sociais. Os movimentos sociais surgem da contradição e dos
con itos de sociedades especí cas e exprimem as revoltas e os projetos das
pessoas resultantes de suas experiências multidimensionais. [17]
Analisando as dinâmicas sociais da participação nas redes digitais, M. Castells
identi ca quatro características comuns por ele indicadas como as qualidades
gerais de tais movimentos, que resultam como: a) conectados em rede em
múltiplas formas; b) globais e locais ao mesmo tempo; c) virais; d)
autorre exivos. [18]
É reconhecido que o debate sociológico e político sobre a participação em
rede, em todas as suas abordagens, coloca-as sempre como a continuação de
uma tradição precisa, considerada no interior da cultura ocidental como linear
e que vai da pólis grega às democracias e às esferas públicas nacionais europeias.
O interesse da tradição dos estudos políticos e sociológicos sobre a relação
entre redes digitais e participação concentrou-se todo na mesma direção: a de
pensar a funcionalidade, seja essa positiva ou negativa, das novas tecnologias
nos processos de formação do poder, na gestão dos processos decisórios e no
limite ou incremento das práticas de participação. A lógica antropocêntrica dos
processos sociais e políticos tem, assim, monopolizado o debate, impedindo,
muitas vezes, sua abertura a análises mais profundas. Assinalamos alguns dos
limites principais de tais abordagens do tema, os quais impedem, em nossa
visão, a sua utilização para o estudo das arquiteturas da interação colaborativa:
1. A ausência da complexi cação da relação entre arquiteturas comunicativas e
participação, além da continuação da lógica instrumental dos media,
entendidos em geral como canais informativos e instrumentos de diálogo.
2. A centralidade do sujeito político humano (antropocentrismo).
3. A suposta superioridade dos conteúdos nas interações informativas em
relação a suas formas.
4. O compartilhamento generalizado de uma ideia antropomór ca de
participação que limita essa no interior das formas históricas democráticas,
sejam essas expressas pelos parlamentares ou pela participação em rede de
movimentos autônomos.
5. A não problematização do signi cado de ação e de seu relativo próximo,
ou seja, aquele de interação, no interior das ecologias e das redes digitais.
Tais limitações contribuem para a manutenção do debate sobre as redes
digitais no contexto da tradição política e social acadêmica, limitando-o no
interior das categorias tradicionais da democracia, impedindo sua
problematização histórica e, consequentemente, o início de um necessário re-
pensamento sobre essa para além da lógica da soma de opiniões, da contagem
dos votos e da representatividade.
Ao contrário da abordagem sociológica, o estudo das ecologias colaborativas
coloca-se ao lado de tal tradição enquanto considera que as interações se
realizam em outros contextos, em ecologias diversas, nem materiais nem
virtuais, no interior das quais as interações não são somente aquelas do diálogo
opinativo, mas as da alteração do conjunto das substâncias envolvidas e dos
próprios signi cados construídos em colaboração entre humanos e não
humanos.
Em tal especí ca e última direção vão os estudos de M. Callon e B. Latour,
entre outros, conhecidos como Actor-Network eory (ANT), [19] que se
dedicam a repensar a ideia de sociedade e de social, criticando a forma
sistêmica e conceitual proposta pela sociologia moderna e substituindo-a pelo
estudo das associações em rede, realizadas pelas múltiplas interações entre
humanos e não humanos.
Partindo da necessidade de superar o conceito sociológico de sociedade,
considerado abstrato e muito distante das agregações reais, B. Latour propõe a
substituição dos estudos sobre a sociedade pela análise dos coletivos. Inspirado
na microssociologia de G. Tarde, o sociólogo francês descreve a passagem da
sociologia à ciência das associações: enquanto a primeira preferia de nir a
sociedade partindo de conceitos e categorias abstratas, posteriormente
veri cadas em campo, a ciência das associações se proporia a uma abordagem
problemática, dando espaço à incerteza sobre a natureza dos grupos, sobre a
das ações, dos objetos e dos fatos. [20]
Na proposta da Teoria Ator-Rede, os grupos não são estáveis, mas, sim, redes
agregativas em contínua composição, formadas não por um conjunto de
sujeitos ou de unidades, mas por “atores-rede”, por sua vez, redes
impulsionadas a agir por outras e, portanto, não produtoras de ação: O ator, na
expressão hifenizada ator-rede, não é uma fonte de um ato, e, sim, o destino
móvel de um amplo conjunto de entidades que caminham na sua direção. […]
Por de nição, a ação é deslocada. A ação é tomada por empréstimo,
distribuída, sugerida, in uenciada, dominada, traída, traduzida. Ao se dizer
que um ator é um ator-rede, indica-se, em primeiro lugar, que ele próprio
representa a principal fonte de incerteza em relação à origem da ação. [21]
A ideia de agregações em rede proposta por Latour indica a superação da
perspectiva sistêmica e estruturalista da sociedade e a sua substituição por uma
arquitetura associativa mutante, continuamente em reformulação por conta da
ocorrência de contínuas associações e desagregações. Buscando uma maior
precisão na descrição das interações em rede, Latour propõe a substituição do
termo “ator” por “actante”, inspirado por A. J. Greimas, termo considerado
mais preciso para indicar a complexidade das interações em rede enquanto
de níveis como “qualquer tipo de entidade, humana ou não humana, que
in uencia ou intervém na realização de uma ação”. [22]
O fato de ter aberto a ideia de social para uma perspectiva não
exclusivamente humana, como já proposta anteriormente por M. Serres, [23]
oferece uma abordagem interessante à perspectiva dos estudos sobre a
participação. Ainda que nem M. Serres nem B. Latour e M. Callon se re ram
minimamente às redes digitais contemporâneas, algumas de suas considerações
podem ajudar na compreensão da participação nas redes.
Elencamos, em seguida, algumas delas que, a nosso modo de ver, nos podem
ser úteis na análise do net-ativismo e das ecologias comunicativas da interação
colaborativa. Em primeiro lugar, a ideia não mais antropomór ca de sociedade.
Em segundo lugar, a complexidade e a imprevisibilidade da ação. Em terceiro
lugar, a superação da ideia de ator, entendido como sujeito agente, e a sua
substituição pelo actante, entidade com muitas naturezas. Por m, a dimensão
emergente e imprevisível das agregações e dos grupos, que podem ser
reconhecidos somente após a sua própria formação. Esses quatro aspectos
transportados nos âmbitos mais complexos das redes digitais que, como
veremos, apresentam-se como qualitativamente distintos da ideia de redes
associativas de Latour, podem se tornar úteis para descrever a interação no
interior das ecologias colaborativas, que, de fato, se realiza não apenas a partir
do agir de um ator social e político, mas por meio da interação de diversos
“actantes”, entre os quais distinguimos os dispositivos de conexão, os circuitos
informativos, as arquiteturas de rede de interações, os dados etc.
Em consequência a tudo isso, torna-se necessário repensar, além das formas e
das dinâmicas do social, a sua própria arquitetura, evidenciando seus limites da
dimensão antropomór ca. Descobrimos, provavelmente, assim, que o
signi cado da digitalização das informações, das interações entre humanos e
não humanos, impulsiona-nos a pensar em um nível mais profundo das
interações e a entender as conexões para além das perspectivas próprias do agir
político, baseado na troca de opiniões e nas práticas de participação no destino
da coisa pública.
Desse ponto de vista, é provavelmente mais frutífero pensar que, alterando o
modelo de comunicação e a qualidade das arquiteturas de interação, como
visto, é necessário identi car um novo paradigma de interação, não mais
apenas social.
Ao contrário da ideia popperiana de democracia – segundo a qual essa última
era de nida na tradição ocidental tanto como forma de relação entre os
cidadãos quanto como gestão do poder, seja esse concedido pelo povo ou pela
maioria –, nos contextos digitais, as interações informativas e as relações de
colaboração on-line estimulam a pensar a interação como a consequência de
conexões digitais realizadas por diversos actantes, humanos e não humanos,
estendidas não só à troca de opiniões e de pontos de vista sobre questões
públicas, mas à experimentação de dinâmicas de alteração das condições
habitativas que, além dos indivíduos, das informações, dos dados, dos
dispositivos, incluem também a experimentação de experiências inéditas de
interação.
Além da capacidade, oferecida pelas redes digitais, de conectar pessoas a
dados por meio dos diversos tipos de dispositivos, realizando formas de
comunicação capazes de se efetivar sem a mediação das autoridades e das
instituições locais ou nacionais, as ecologias colaborativas inauguram um
original tipo de interação emergente não mais antropomór ca.
De fato, o advento de tais ecologias não se dá apenas pela decisão ou pelo
agir humano, mas pelo processo de digitalização, que, ao conectar dados,
informações, dispositivos e humanos, coloca-os em condição de experimentar
novas práticas de interatividade que oferecem à dimensão do participar uma
nova dimensão ecológica.
As dinâmicas de participação não aparecem mais somente como uma
interação baseada na solução de problemáticas sociais, propostas pelo diálogo
dos cidadãos humanos, entendidos como sujeitos políticos ativos, nem como a
busca de soluções para o bem comum humano, mas como as colaborações a-
dinâmicas entre humanos e não humanos que deslocam a participação para
além das dimensões do agir político, experimentando ecologias não mais
completamente de níveis como sociais. Realiza-se, assim, a passagem das
formas participativas do agir para aquelas colaborativas, e não somente
humanas, da interação.

5.3 O CARÁTER NÃO SOCIAL DAS REDES DIGITAIS


COLABORATIVAS
Tradicionalmente, o signi cado do termo “sociedade”, no interior da cultura
ocidental, é relacionado à sua origem latina “societas”, o qual indicava, já na
época romana, um conjunto de pessoas, em paridade jurídica, reunidas
voluntariamente para alcançar e realizar objetivos comuns.
Além de tal tradição, a ideia de sociedade será posteriormente desenvolvida
pela loso a social de Tomás de Aquino, o qual a descreverá como um corpo
único, dividido em partes e órgãos diversos, emanação da vontade divina e,
portanto, expressão de um convívio natural e ordenado. [24]
Contrariamente a tais arcaicas interpretações, a concepção moderna de
sociedade nascerá baseada na concepção contratualista, a qual, a partir do
Iluminismo, a pensará como o resultado de con itos econômicos e políticos
entre diversos grupos e atores humanos. Não mais emanação divina, a
sociedade tornava-se, nessa perspectiva, uma realidade humana problemática
não natural, mas resultante das tensões e dos con itos entre seus membros.
Desde esse momento, as ciências sociais começarão a atribuir à sociedade
signi cados e características diversas, mantendo, todavia, no interior do
pensamento sociológico, em sua multiplicidade, algumas características
comuns. A primeira é aquela de limitar a conformação social apenas aos atores
humanos, delimitando claramente a ecologia social à relação entre coletivos
humanos e determinado território. O social será, assim, de nido como o
conjunto das: populações e das coletividades estabelecidas sobre um território
delimitado do qual é excluído, por força ou por direito, o estabelecimento ou o
trânsito em massa de outras populações, cujos componentes – de nidos, na
maior parte, em seu interior por meio da reprodução sexual – compartilham há
tempos a mesma cultura, são conscientes de sua identidade e continuidade
coletiva, e têm entre si distintas relações econômicas e políticas, bem como
particulares relações afetivas, instrumentais, expressivas […] etc. [25]
O social em rede, como vimos, no âmbito da tradição sociológica, seja aquela
da tradição sociopolítica ligada a M. Castells, seja aquela associativa e não
humanocêntrica de B. Latour, M. Callon etc., con gura-se como uma forma
social em rede e complexa. Ainda que, desde muitos pontos de vista, tal
constatação apareça como novidade, provavelmente o social tenha sido sempre
complexo, independentemente do nível tecnológico adquirido por dada
sociedade em determinado momento histórico. E provavelmente mesmo a sua
dimensão sociotécnica não mereça ser pensada como algo de inédito, que tem
origem na época e nos contextos digitais e não naqueles anteriores da
eletricidade, do cinema e da TV. A dimensão técnica, como evidenciado pela
perspectiva heideggeriana, nunca foi externa à condição humana, como
descrito pela tradição losó ca ocidental e, consequentemente, nunca estranha
à própria dimensão social.
A questão que as tradições sociológico-política e associativa optam por não
trazer à discussão é outra. Ao assumirem a dimensão e a forma reticular, tanto a
perspectiva sociopolítica como a associativa da Teoria Ator-Rede não
especi cam com a devida atenção se o social em rede e o social em redes
digitais coincidem, ou seja, se são a mesma coisa ou não. Em outras palavras, se
as redes sociais digitais se sobrepõem e coincidem, de algum modo, com as
redes sociais off-line, constituindo eventualmente uma versão ampli cada e
visível dessas últimas, ou se, ao contrário, exprimem, em relação a elas, uma
natureza qualitativamente diversa.
Na maior parte dos estudos sociais sobre redes, como visto, não se põe a
questão (B. Latour, M. Callon), ou simplesmente é conferido a essa um
signi cado instrumental, assumindo, como no caso de M. Castells, que o
social em redes digitais é a expansão ou a cópia de seu social original (B.
Wellman).
O pressuposto do qual articulamos a nossa argumentação é outro e se baseia
mesmo na suposição da existência de uma qualitativa diferença entre as redes
sociais e associativas e aquelas digitais colaborativas.
Para melhor entender a especi cidade das digital networks, é necessário
compreender o que é, como se constituiu a web 2.0 e, consequentemente, o
que caracterizara o nascimento das redes digitais. Tal breve consideração pode
nos fornecer elucidações importantes para identi carmos o caráter não só
humano das mesmas redes, mas a sua especí ca dimensão não social.
A primeira consideração a se fazer é que os assim denominados social
networks, em sua versão digital, nascem de uma importante e especí ca
transformação tecnológica caracterizada pelo advento da banda larga, o qual
levara, na primeira década dos anos 2000, à difusão de um novo tipo de
Internet denominado web 2.0. A utilização da bra ótica determinou a
possibilidade, até então inexistente, de poder distribuir on-line grande
quantidade de conteúdo, em uma escala extremamente mais elevada em
relação às conexões da web anterior. Tal inovação tecnológica precipita
transformações sociais e culturais, assumindo valores extratécnicos e alterando
qualitativamente as arquiteturas sociais, conferindo-lhes formatos e práticas de
interações até então inexistentes.
Um cabo de bra ótica é composto por milhares de lamentos em bra de
vidro, em quartzo ou em material plástico, mais ou menos das dimensões de
um cabelo. Tal conformação exprime uma das maiores inovações tecnológicas
da história das comunicações, pois permite a transmissão não mais por meio de
sinais elétricos, mas a partir de sinais óticos, oferecendo, pela propagação da luz
e por sua frequência elevada, uma possibilidade de transmissão de uma
quantidade quase ilimitada de dados.
A passagem da eletricidade e dos cabos telefônicos para a bra ótica criou um
novo tipo de Internet, o qual faz circular a informação não mais pelos
tradicionais cabos de cobre (trançados) que transportavam elétrons (que,
enquanto massa, eram menos ágeis e menos uidos), mas por meio dos fótons
constituídos por ondas eletromagnéticas e, portanto, portadores de pura
energia. Passamos, assim, da Internet eletrônica à Internet fotônica, conduzida
a bra ótica, a qual permite, além de um incremento incalculável da
quantidade de dados e formatos (sons, imagens etc.) que podem ser
compartilhados e distribuídos, uma alteração qualitativa da arquitetura da
rede.
Tal importante transformação será comumente denominada web 2.0 e
marcada por uma alteração técnica que modi cará radicalmente a própria ideia
de comunicação na Internet. Se a web 1.0, baseada no compartilhamento de
dados ADSL com cabos telefônicos, conectava terminais por meio do sinal
modem, criando uma rede de computadores, a Internet a bra ótica, ou a web
2.0, passará a conter informações e bancos de dados localizados nas nuvens
(cloud computing) e, portanto, externos ao computador e aos terminais. Ao
contrário da web 1.0, que arquivava os dados nas memórias dos discos rígidos,
ou seja, no hardware, a rede 2.0 permitirá o acesso a dados externos ao
computador e, a partir da conexão por cloud provider, passará a oferecer não só
conteúdos, mas também softwares remotos e a serviço de vários gêneros para a
gestão dos dados – não mais instalados no próprio computador, mas acessíveis
on-line. Nascerá, assim, a Internet da Wikipédia, do Skype, do Youtube, do
Flickr, da Amazon, de todas as redes sociais como o Facebook, o LinkedIn, o
Orkut, o Twitter etc.
Podemos, portanto, começar a compreender como a comunicação a bra
ótica e a banda larga conferiu às interações um espírito qualitativamente
diverso daquele oferecido, em épocas diversas, pela interação com os media.
Além da possibilidade de criar interações temáticas em formatos múltiplos
(vídeos no Youtube, música autoproduzida no SoundCloud, fotos no Flickr),
outra e qualitativa contribuição à especi cidade das relações e da participação
on-line na época da bra ótica é fornecida pela mobilidade, isto é, a
propagação, no mercado, de dispositivos móveis e as formas de acesso wi- que
têm permitido a difusão de um novo tipo de socialidade atópica [26] e always
online, que signi caria uma alteração qualitativa das relações sociais e das
dinâmicas de interação.
O social da bra ótica é um social conectado, tornando-se, assim, algo
diverso do social presencial, possibilitando, além da superação das distâncias
geográ cas, o surgimento de uma forma de temporalidade sincrônica, por
meio da difusão de interações contínuas e uma duração permanente. Porém,
mais que a alteração das formas das relações, o que distingue, com maior
evidência, a especi cidade das relações nos tipos de interação produzidos pela
banda larga é a alteração de suas próprias ecologias, as quais, por serem
produzidas em diálogo com dispositivos de conexão e por meio do acesso
contínuo a dados, interações e serviços em “cloud”, alteram para sempre o
lugar e a própria arquitetura do social. [27]
Esse último aspecto, que direciona a atenção para as alterações da forma e do
signi cado do digital, mais do que para as suas características processuais e
fenomenológicas, foi pouco estudado. [28] A sua análise, ao contrário, levaria à
evidência da passagem das ecologias sociais, associativas ou políticas
sociotécnicas para aquelas colaborativas, construídas em diálogo constante a
partir da conexão em ecologias reticulares digitais.
O que, de fato, a comunicação a bra ótica e a cloud computing –
externalizando os dados do computador e as interações – produzem é a criação
de ambientes de compartilhamento, no interior dos quais se acessa não
somente informação, mas também relações, interações, conhecimento,
conteúdos, afetividades etc. Tais ambientes constituem ecologias comunicativas
e condições habitativas com características dinâmicas e interações próprias.
Provavelmente, para o estudo das ecologias atópicas, distribuídas em
arquiteturas de uxos de energia, o estudo das dinâmicas complexas das
interações entre os diversos “actantes” e as cartogra as dessas últimas não são
su cientes. É necessário não ignorar o papel qualitativo que a digitalização
cumpre na transformação do “hic et nunc” sobre a condição habitativa,
abrindo essa última a uma perspectiva, como veremos em seguida, não apenas
dinâmica, e a uma ecologia não mais somente externa, frontal e observável.
Uma perspectiva interessante em direção a uma problematização ainda que
não substancial, uma vez que insere as interações digitais ainda no interior das
dimensões sociais, é aquela sugerida por Barry Wellman e Lee Rainie, em seu
texto histórico Networked: e new social operating system, no qual encaram a
temática de nindo as redes digitais como um novo sistema operativo social que
promove um novo tipo de interação baseada em um “networked indivi‐
dualism”: A evidência mostra que nenhuma dessas tecnologias é um sistema
isolado ou capaz de isolar pessoas. As tecnologias de hoje são mais integradas à
vida social do que as tecnologias precedentes. As pessoas não são ligadas aos
gadgets, são ligadas umas com as outras. Quando navegam na Internet, não se
isolam: ao contrário, conversam com os outros – trata-se de bloggers, usuários
de e-mail, de Facebook ou de Wikipédia […] No momento em que
incorporaram as tecnologias, as pessoas transformaram seu modo de comunicar
entre si. Tornaram-se cada vez mais networked enquanto indivíduos
especí cos, mais do que como integradas em grupos. [29]
Wellman, em sua análise, mais do que pela continuidade entre o social
tradicional e aquele tornado possível pelas redes sociais, parece optar por uma
abertura ao novo e para o advento de uma inédita perspectiva de interação,
expressa pela ideia de um “novo sistema operativo social”. Apesar de, no texto,
a dimensão sociológica e sociotécnica resultar ainda predominante: Os limites
entre informações, comunicação e ação social tornaram-se esfumaçados: os
indivíduos em rede usam a Internet, a telefonia móvel e os sites de redes sociais
para ter à mão as informações e para agir com essas, reforçando as
reivindicações de competência. [30]
Em nossa visão, os pontos que esclarecem a dimensão não social das redes
apoiam-se sobre os seguintes argumentos.
O primeiro desses refere-se à própria composição do social [31] (quem
compõe o social), o caráter não só humano das interações em rede, que, como
visto, nascem de transformações técnicas precisas e de interações que essas
tendem a instaurar em diálogo com os humanos, contribuindo para a
produção de sinergias, hábitos, culturas, que privilegiam a troca colaborativa e
as diversas formas de conexão. Tais formas de inovação não devem ser mais
vistas no interior da estéril dialética imposta pelas ciências sociais, que
interpretam seus signi cados e dinamismos dentro das prisões interpretativas
da dicotomia tecnodeterminística ou humano-determinística. A perspectiva
reticular, e a ecológico-comunicativa, impõe-nos uma nova visão e também,
provavelmente, um novo posicionamento hermenêutico, direcionado, mais do
que a de nir, a descobrir as transformações contínuas aportadas pelas conexões
em rede. As ecologias reticulares não podem ser ditas, de modo de nitivo, ou a
partir de categorias ontológicas – pois têm na transformação contínua de suas
formas e dos próprios membros conectados – a sua dimensão constitutiva.
Pode-se, portanto, considerar não social a dimensão conectiva, não apenas
porque comporta, supostamente, além de humanos também dispositivos,
dados e instrumentos técnicos interativos diversos, mas sim porque a forma das
ecologias colaborativas não é mais de nível, no sentido ontológico, nem como
humana nem como técnica.
O segundo argumento, que motiva a ideia da não completa adequação da
interpretação sociológica do social para o estudo das redes digitais, refere-se às
dimensões e à geogra a do social (onde surge o social) e relaciona-se às
peculiares dimensões ecológicas das redes digitais que superam,
inevitavelmente, seja a dimensão global ou local, seja aquela relativa às
dimensões urbanas, nacionais antropomór cas, próprias do hábitat das
interações sociais. Ao contrário da dimensão urbana e geográ ca do social, as
interações em redes digitais estendem-se além das esferas geográ cas e físicas,
incluindo, mais do que as dimensões midiáticas informativas, aquelas dos
bancos de dados e dos uxos informativos que, atravessando os espaços físicos,
alteram continuamente sua dimensão e seu signi cado. [32] De tal concepção,
resulta a necessidade de repensar o hábitat social, não mais narrável como um
“hic et nunc” nem somente delimitável no interior dos espaços político-
nacionais próprios das esferas públicas eletrônicas. As redes digitais deslocam a
ecologia da participação e o hábitat das interações para além da dimensão
social e política, projetando-os em uma metamorfose que ocorre por meio das
interações colaborativas entre diversas substâncias (circuitos informativos,
bancos de dados, dispositivos, arquiteturas informativas, pessoas e territórios).
En m, o terceiro aspecto que nos propulsiona a descrever a colaboração no
interior das redes digitais como não social remete, além da composição do
social – relativa à identidade dos atores (quem interage) e às suas dimensões
ecológicas e contextuais (o hábitat e o lugar onde se dá o social) –, às
qualidades e à natureza das próprias interações.
De fato, como dito, não somente o caráter dessas últimas manifesta-se como
não político – enquanto não apenas antropomór co nem apenas urbano ou
nacional e situado em uma localidade atópica –, como também aquele das
ecologias digitais, expressão, pois, de uma dimensão conectiva, mas parece
exprimir um agir problemático, nem sujeito-cêntrico (teoria do ator social),
nem objeto/tecnocêntrico (teoria dos simulacros ou exotopia). Nas ecologias
comunicativas da colaboração, a participação nasce de um tipo particular de
interação não apenas associativa, que surge antes das dinâmicas con itivas,
opinativas, agregativas e contratualistas, enquanto consequência do processo de
digitalização e das formas complexas, como visto, de conexão generalizada. Os
atores e os contratantes humanos não são os únicos a agir, nem os únicos a
estabelecer as regras de suas interações, mas constroem juntos outras entidades,
o estímulo, a forma e o hábitat de um agir experimental e de uma condição
habitativa de difícil de nição, surgida do prévio processo de digitalização.
Emerge, assim, uma perspectiva de interação não mais baseada em uma
dimensão somente voluntarística, seja essa contratualista ou associativa, mas
em interações informativas e colaborativas de diversas entidades que, ao
contribuírem para a construção das ecologias comunicativas, mudam
continuamente de forma.
A ideia de uma dimensão colaborativa e não apenas social das interações em
rede distingue-se, nesse ponto de vista, de uma perspectiva hermenêutico-
interpretativa ou estética. A origem da abordagem hermenêutica e social da
interação encontra uma primeira inspiração no livro de Umberto Eco A obra
aberta, de 1962. Nele, Eco de ne o termo “obra aberta” como uma forma
estética que propõe uma problemática e como: Uma categoria mais restrita de
obras que, por sua capacidade de assumir diversas e imprevistas estruturas
sicamente não implementadas, poderíamos de nir como obras em
movimento […] – obras em que – o receptor colabora efetivamente para uma
criação do objeto estético. [33]
A forma estética proposta por essas obras problemáticas, segundo U. Eco,
não é de nida, encerrada em uma noção objetiva de beleza ou de simetria, mas
pertence ao reino das possibilidades, ou seja, em vez de fechar a experiência e o
conhecimento em um modo de nido, abrem sua forma à pluralidade
contraditória de signi cados, práticas e interpretações.
Analisando o cubo de Husserl, Eco o descreve como: Um objeto que
apresenta diversas Abschattungen (ou per s), mas são diversos pontos de vista
possíveis sobre uma mesma Abschattungen. O objeto, para ser de nido, deve
ser transcendido para a série total de que ele, enquanto uma das aparições
possíveis, é membro. [34]
Se transferimos o conceito de obra aberta, ou de obra em movimento, para as
dinâmicas colaborativas das ecologias comunicativas, devemos considerar uma
distinção importante. A colaboração nas ecologias das redes digitais não ocorre
no nível interpretativo, ou seja, após as múltiplas leituras possíveis, como
assinalado pela estética da obra em movimento, apresentada por Eco, mas no
nível das interações e da mesma condição habitativa. A dimensão ecológica
colaborativa exprime-se bem nas interações open source, que não só permitem a
todos acessar os conteúdos e modi cá-los, mas também colaborar na
construção do mesmo ambiente de interação. A passagem das ecologias
comunicativas das democracias, no interior das quais as interações são
principalmente conceituais e opinativas, para aquelas da colaboração assume o
signi cado de uma importante transformação conceitual que indica a
necessidade de superação da dimensão antropomór ca das relações e a abertura
a interações conectivas entre entidades de diversas naturezas.
Capítulo 6
ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO NET-ATIVISMO

6.1 A forma rede do net-ativismo

O
estudo das formas de interação em rede tem diversas abordagens.
Uma primeira é aquela relativa à observação e à mensuração (métrica)
de suas dinâmicas de interação. Além das casuais, sem escalas e a
pequenos mundos (Paul Erdös, Alfred Rényi, Watts, Barabási, Buchanan,
Milgram), tal abordagem distinguia as formas de interação em redes sociais
emergentes e de a liação daquelas associativas, as primeiras menores e com
maiores uxos informativos entre os membros, as segundas ainda menores e
com menos necessidade de participação.
Se essa primeira abordagem sobre os estudos das interações em rede
concentrou-se sobre a descrição de suas características formais-agregativas e
sobre a observação de seu funcionamento, na tentativa de identi car seus
“hubs” e seu potencial de interação, um segundo tipo de estudos colocou em
evidência a sua forma inovadora, pensando nas dinâmicas em rede como a um
desa o hermenêutico e metodológico, expressão de um novo tipo de
complexidade (E. Morin, G. Deleuze, M. Serres, M. Callon, B. Latour etc.).
Em tal perspectiva, as dinâmicas de rede, ainda entendidas como complexidades
agregativas e não digitais, manifestam dinâmicas e características inovadoras,
di cilmente narráveis no interior das categorias modernas e dos conceitos
antinômicos das ciências sociais. Dos princípios das formas autoeco-organizadas
de Morin aos mil platôs de Deleuze, àquelas mutantes de M. Serres e às
dinâmicas associativas da Teoria Ator-Rede de B. Latour e M. Callon, tal
segundo tipo de abordagem preferira uma narração problemática, capaz de pôr
em discussão as representações sistêmicas e ordenadas da complexidade.
Por ocasião da difusão das formas de comunicação em redes digitais
colaborativas (web 2.0), muitos estudos disseminaram-se, em nível losó co e
teórico, partindo das especi cidades técnico-comunicativas das redes digitais, na
tentativa de propor percursos interpretativos. Enquanto os estudos baseados nas
dimensões das interações em rede e aqueles baseados em sua complexidade e nas
dinâmicas associativas não levavam em conta, na maior parte dos casos, aspectos
infotécnicos qualitativos das redes digitais, uma série de re exões losó cas têm
optado por repensar, a partir das dimensões digitais das redes, a relação entre
sujeito e tecnologia e, por consequência, a necessidade de sublinhar a
emergência de formas de colaboração de inteligência tecno-humana.
Entre essas contribuições, a obra de Pierre Lévy nos incita a considerar as
“tecnologias digitais da inteligência” e a informática como as modalidades de
gestão do conhecimento que, de modo análogo à escrita no passado, atuariam
não só no nível de substituição dos formatos e dos códigos informativos, mas
“atuando, ao mesmo tempo, na passagem das formas cognitivas individuais para
aquelas coletivas e distribuídas”. [1]
Por m, podemos distinguir outra abordagem no estudo das redes digitais que
prefere estudar seu impacto social, evidenciando-lhes os aspectos problemáticos
e críticos (S. Turkle, L. Manovich etc.) ou as potencialidades positivas (M.
Castells, B. Wellman e outros).
Em A era da informação (2002a), vasta obra dividida em três volumes, Manuel
Castells, adotando em sua pesquisa o ponto de vista sociotecnológico, distingue
cinco características principais da “sociedade em rede”: a informação, a
exibilidade da produção, a lógica reticular, a difusão e a convergência das
tecnologias de comunicação digital. Nessa sociedade, segundo o sociólogo
espanhol, a informação teria assumido um papel central e as redes digitais
teriam começado a constituir a base material da transformação social e da
reestruturação dos modos de produção e do desenvolvimento industrial em
direção ao “informacionalismo”: “a geração, a elaboração e a transmissão das
informações tornam-se fontes fundamentais de produtividade e de poder,
devidas às novas condições tecnológicas”. [2]
Em consequência do desenvolvimento de novas TICs, as sociedades estariam
passando de formas de participação e modos de produção burocráticos e
verticalizados para estruturas reticulares e horizontais, expressões de um novo
paradigma comunicativo e produtivo, no qual o acesso às redes e à possibilidade
de troca de informações teriam se tornado fatores determinantes para a
participação e as interações sociais.
Em tal direção vai também a breve e famosa contribuição, escrita em ns dos
anos noventa por E. S. Raymond, sob o título A catedral e o bazar, na qual são
apresentadas duas arquiteturas diversas de softwares às quais correspondem
análogas formas de organização. A primeira é aquela relacionada às catedrais da
Idade Média, construída por técnicos especializados, que, no mais completo
isolamento, eram capazes de produzir as fórmulas que tornariam possíveis as

É
construções. É esse, para Raymond, um tipo de software já pronto, elaborado
por técnicos que secretamente de niam o seu formato e suas características,
deixando para os executores a virtude da obediência. Em contraposição a tal
modelo, o autor apresenta o bazar, ou seja, um modelo de desenvolvimento de
software aberto, que é realizado mesmo como no caos de um mercado, de modo
desordenado e colaborativo. Nesse segundo tipo, são centrais, para a realização e
o aperfeiçoamento disso, as dinâmicas relacionais, e não aquelas hierárquicas.
Em tais abordagens, aqui apenas acenadas, não se põe em destaque a estreita
dimensão entre as formas interativas das redes digitais e as transformações da
própria condição habitativa. Em outros termos, as redes, sejam essas digitais ou
associativas, continuam a ser pensadas como arquiteturas externas, como
sistemas operativos de expansão e de transformação das interações sociais e do
próprio conhecimento que surge nos espaços, nas arquiteturas e nos
dinamismos sociais ou associativos, sem interferir nas ecologias e no hábitat que
formam os ambientes da participação.
Ao contrário de tais abordagens e alinhado à ideia ecológico-comunicativa da
participação e da interação, propomos organizar, a seguir, a história do net-
ativismo relacionando-a com a reconstrução das diversas formas de rede, que,
em contextos tecnológicos e épocas diversas, in uenciaram suas formas e
modalidades de interação, conferindo à participação net-ativista características
diversas. Apontaremos, então, mais do que para os aspectos sociais e políticos,
para aqueles das formas e das ecologias da interação.
Partindo de modelos de rede elaborados na época do surgimento da Internet,
e que descreveram seus tipos centralizado, descentralizado e distribuído, criados
por P. Baran, podemos distinguir três principais épocas do net-ativismo, as quais
correspondem a três diversas formas ecológicas participativas, que assinalam
uma possível história das atuais formas de con ito que se difundiram em vários
contextos e exprimiram-se por meio de um novo tipo de interação, desenvolvida
em colaboração com os uxos interativos das redes digitais.
A primeira fase da história do net-ativismo, que pode ser considerada como
uma etapa preparatória, é ligada ao advento da Internet na sua primeira forma
de rede de computadores, conectados via cabos telefônicos e modem, a qual
tornava possível a difusão e o compartilhamento de textos entre internautas,
realizando uma ecologia de compartilhamento de conteúdos por meio da rede e
dos computadores que marcava a passagem da mídia alternativa para a mídia
participativa – que se exprimia a partir de formas de con itualidade não mais
sujeitocêntricas e baseadas na gura de líderes –; a segunda é marcada, em vez
disso, pela experimentação das primeiras formas de con itualidade, que, a partir
da Internet, se difundem numa espacialidade informático-planetária que
começa a inaugurar novos tipos de con itos e de participação descentralizados,
realizados em sinergia entre pessoas, movimentos e tecnologias digitais; já a
terceira fase é assinalada pelo advento da web 2.0 e das redes sociais,
exprimindo-se por movimentos de protesto, subversão de vários tipos e a
criação de redes e cazes distribuídas de interação colaborativa entre pessoas,
dispositivos de conexão, bancos de dados e territorialidades.
Na primeira fase, a da formação, ligada a movimentos notáveis da época como
o dos ciberativistas ou o do cyberpunk, veri ca-se a emergência de formas
experimentais de con ito que nascem em contextos especí cos, mas que, por
meio de sua disseminação, assumem dimensões globais, estimulando o interesse
de jovens e pessoas de todas as partes do planeta. Tais novos tipos de con ito
nascem e difundem-se por meio da Internet, ainda em sua dimensão 1.0, sem
contar com uma estrutura institucional nem história anterior, adquirindo uma
forma de disseminação ainda centralizada, surgindo em sites e arquiteturas
especí cas e difundindo-se nas redes. Na segunda fase, assistimos a um
fenômeno novo, em grande parte ligado ao advento do neozapatismo, no início
dos anos noventa, que experimenta originais formas de con itualidade sem
lugar, denominadas na época “intergalácticas”, que dão vida a uma original
interação colaborativa entre Internet, territórios, pessoas e uxos informativos.
Não se trata mais de uma con itualidade que se expande, como nos casos do
cyberpunk, de um ponto de vista central via Internet em todo o mundo, mas de
um tipo de con itualidade que, ainda que surgida em lugar determinado (em
Chiapas, entre as comunidades indígenas descendentes dos povos maias), torna-
se pluriforme e descentraliza-se, originando, em outros contextos ou em
continentes diversos, formas de con ito autônomas, mesmo que inseridas no
próprio âmbito e expressão de uma forma de con itualidade colaborativa, em
redes descentralizadas e não institucionalizadas e, portanto, não narráveis por
meio das categorias da política ocidental.
Por m, a terceira fase, aquela madura, é marcada pelo advento da banda
larga, das redes sociais e das formas de conexão móveis, que oferecem a
consolidação de uma ecologia colaborativa que instaura interações
experimentais entre dispositivos de conexão, bancos de dados, pessoas e grupos
em forma distribuída em cada parte do planeta, provocando em muitos casos
É
rupturas nas estruturas de poder. É a fase da explosão do ativismo global que,
por meio dos movimentos pós-zapatistas, que se unem contra a reunião do G7,
começam a difundir as práticas de con itualidade on-line, que – da Primavera
Árabe, passando pelo Occupy Wall Street, pelos Anonymous, pelo 15M, aos
movimentos contra a ditadura na China e aos protestos generalizados no Brasil,
na Argentina e no restante da América Latina – atribuem à participação um
signi cado anti-institucional, e não mais sujeito-cêntrico.
Do ponto de vista da ecologia comunicativa e das formas de rede, esse último
tipo de con itualidade e participação pode ser relacionado à formulação
elaborada por P. Baran (1964), denominada “rede distribuída”, de nida como
um modelo no qual as informações navegam de modo distribuído, horizontal,
dialógico e redundante, onde cada nó tem igual proximidade das informações.

Fig. 1 – Rede centralizada, descentralizada e distribuída.

6.2 A FASE DE ORIGEM: O CIBERATIVISMO E O CYBERPUNK

6.2.1 Da mídia alternativa à mídia participativa


Além da promoção de nova cultura com a expansão da Internet (M. Castells,
P. Lévy), surgiu uma série de movimentos de ação direta, com práticas sociais e
comunicativas especí cas, que começou a explicitar, na rede, novas formas de
relações e con itualidade. Após tal difusão, faz-se necessário ampliar e
diversi car o signi cado do termo “ativismo”, de origem estadunidense, que era
entendido como forma de organização e de ação política direta de base,
marcada pela difusão de informações em rede e com o objetivo de boicotar o
consumo de determinados produtos, de realizar ocupações, manifestações e
protestos ligados aos direitos humanos, civis e ambientais. [3]
A emergência, a partir dos anos noventa, de novos movimentos e novas
formas de participação era não só caracterizada pela ascensão de temáticas
planetárias e de formas de participação extranacionais, mas pela utilização
comum das novas arquiteturas de informação digitais que asseguravam, além de
uma ampla divulgação, também novas práticas experimentais de con ito.
Um dos primeiros exemplos de inovação das práticas de participação após o
advento da comunicação digital e do ativismo foi a Association pour le Progrès
des Communications (APC), criada em 1988, que compreendia, nesse período,
mais de 6 mil [4] membros de diversas organizações paci stas, ecologistas,
ligadas aos direitos humanos etc.: A APC apresentava-se como uma rede de
redes telemáticas que reunia grupos de militantes internacionais. Seus objetivos
eram colocar à disposição uma rede informática interconectada em nível
mundial e que permitia a difusão de informações entre os militantes, a troca de
mensagens eletrônicas e a organização de debates por meio de fóruns de
discussão e teleconferências. [5]
No mesmo período nascia, no interior da APC, o Women’s Networking
Support Programme: “O Wednet (Le Réseau Femmes, Environnement et
Développement) teceu conexões entre as bases existentes no Canadá, entre os
pesquisadores africanos e com o grupo ‘mujer a mujer’, associação de mulheres
de base no México”, [6] originando uma série de redes informativas baseadas
principalmente em boletins eletrônicos como o Women Envision d’Isis, Seawin,
Southeast Asian Women’s Information Projects. [7]
Sempre nos primeiros anos de 1990, na Austrália e na Índia, começou a
formar-se uma série de movimentos de teóricos da estética e dos media, os quais
buscavam criar estratégias de intervenção a partir das interações com os media
digitais, de nindo-se tactical media. Sua atuação estendia-se do campo das artes,
da política à comunicação, e era caracterizada pela pesquisa de estratégias de
intervenção inovadoras. Como sublinhado pelos autores D. Cardon e F.
Granjon, no texto Mediactivistes, a experiência dos tactical media terá uma
rápida rami cação internacional, primeiramente nos Estados Unidos, por meio
do Critical Art Ensemble e Electronic Disturbance eater, começando a
desenvolver uma concepção de luta no interior dos bits e dos circuitos
informativos digitais. Começaram a se difundir, nessa mesma época, os
primeiros casos de “mail bombing”, exemplos de manifestações virtuais e
protestos on-line. Nascia, assim, um novo tipo de participação, o qual, mais do
que utilizar os media para fazer contrainformação (media independente),
começava a utilizar as tecnologias digitais como lugar e estratégia para a
participação, experimentando, assim, um novo tipo de interação midiática
participativa, a qual começará a tecer formas de con ito global informáticas.
Tais novas formas de participação começariam a ser identi cadas como
Internet activism, electronic advocacy ou ciberativismo.
6.2.2 O ciberativismo e o cyberpunk
O termo “ciberativismo” surgiu nos anos 1990 para indicar uma ampla e
heterogênea quantidade de movimentos, caracterizados por um novo tipo de
participação que ocorria por meio do uso das tecnologias digitais e começava a
se manifestar em diversas partes do mundo. Esse tipo de ativismo midiático
tinha nas tecnologias digitais de comunicação um válido instrumento para
reforçar as organizações, seja local ou globalmente, permitindo a coleta capilar
de fundos, facilitando a coordenação internacional de campanhas e protestos,
obtendo e difundindo informações, denúncias e petições. Em termos gerais,
nessa primeira fase, o ciberativismo referia-se ao uso da Internet para dar
suporte aos movimentos globais e às causas locais, utilizando as arquiteturas
informativas do primeiro tipo de Internet para disseminar informações,
promover a discussão coletiva de ideias e a proposta de ações, criando canais de
participação [8] e difundindo estilos e práticas experimentais de con itualidade.
Todavia, o que caracterizava o ciberativismo ou o ativismo on-line não se
limitava à simples integração da Internet aos processos comunicativos de
ativismo, mas incluía a forma como essas arquiteturas comunicativas
transformavam o próprio ativismo e as próprias formas da participação, os
espaços de debate, as identidades coletivas e a estratégia do con ito. [9]
É nesse período e nesse contexto comunicativo que se difundiram, em várias
localidades de todo o mundo, uma série diversi cada de atividades, publicações
e estéticas reconhecidas sob o nome de cyberpunk. Uma de nição consensual
desse termo seria inapropriada e impossível, uma vez que se refere a uma
pluralidade de atividades sem síntese: pessoas, loso as, visões de mundo
diferentes entre si e uma heterogênea matriz de movimentos contrários a
qualquer tipo de homogeneidade e difundidos em diversos países.
A primeira coisa a observar é que o cyberpunk não consistia na simples
digitalização do movimento punk, mas se articulava como algo diverso e muito
mais complexo. A própria origem do termo cyberpunk é incerta. Segundo
alguns, teria origem pelo título de um conto de Bruce Bethke de 1980.
Segundo outros, o termo deveria ter por coerência estética uma origem também
plural, que o associasse a uma série de autores, obras literárias, artistas,
ideólogos e ativistas da área digital. Outras interpretações preferiam relacioná-lo
a uma série de atmosferas e argumentos que se encontram no famoso livro
Neuromancer, de W. Gibson, e no Fanzine Cheap Truth, publicado por B.
Sterling. Outros ainda atribuíam sua paternidade a um conjunto de autores
como Rudy Rucker, John Shirley, Michael Swanwick, Richard Kadrey, Pat
Lewis Shiner. [10] Em todo o cyberpunk, a crítica à sociedade contemporânea era
comumente feita por meio da cção, da metáfora da construção de mundos
virtuais e da percepção de um futuro no qual a dimensão da ação política era
associada à interação com a tecnologia, com claras referências ao cyborg e às
biotecnologias. A heterogeneidade do cyberpunk se difunde em diversos âmbitos
das culturas juvenis.
Entre a grande diversidade de posições, movimentos, estéticas não
sintetizáveis, surgidas nesse período e nascidas das arquiteturas digitais, há dois
fenômenos que merecem uma análise mais aprofundada, não só por sua difusão
mundial, mas por ter inaugurado algumas estratégias, fórmulas e estilos que
inspirariam, nas décadas seguintes, inúmeros movimentos e ações net-ativistas, a
tal ponto de poder ser considerados como a origem de algumas tendências que
permaneceriam constantes no âmbito das formas de con itualidade futuras.
Referimo-nos à gura de Hakim Bey e à de Luther Blissett, dois personagens
midiáticos sem identidade, dois nomes coletivos utilizados por muitos ativistas
que em muitos países e em modos diversos começaram a fazer experimentações
de participação informativa, teorizando novas formas de protagonismo
ecológico-comunicativo.
Em ambos os casos, as redes digitais não foram meros instrumentos de difusão
dos conteúdos, mas os lugares e as ecologias das interações e das formas
experimentais de tais novos tipos de participação.
6.2.3 Hakim Bey e as zonas autônomas temporárias
Para muitos, o pseudônimo de Hakim Bey tornara-se conhecido a partir da
difusão dos textos traduzidos em muitas línguas e publicados integralmente na
Internet e que, na base da crítica explícita ao conceito de revolução, propunham
a realização de ações libertárias, a criação de zonas autônomas temporárias e a
difusão do terrorismo poético.
A heterogeneidade de estilos e conteúdos que apareciam publicados,
traduzidos e disseminados na Internet, por muito tempo, levaram a pensar em
uma produção coletiva, um conjunto diversi cado de autores que, sob o mesmo
nome, começaram a distribuir ideias e conteúdos em uma perspectiva de
insurreição e emancipação radical.
No início dos anos noventa, na Internet, nos movimentos de vários lugares de
todo o mundo, nas práticas dos grupos jovens e nos movimentos de inspiração
anárquica, o conceito de zona autônoma temporária tornou-se um ponto de
referência constante para a experimentação de novas práticas de participação e
de ativismo.
A perspectiva teórica que inspirava Hakim Bey era uma tomada de distância
em relação à forma de emancipação política. Durante os séculos XIX e XX, a
con itualidade foi inspirada por uma perspectiva revolucionária e por uma
disputa pela conquista do poder. A promessa de cada processo revolucionário,
no contexto das formas políticas ocidentais da modernidade pós-iluminista, era
que o seu desenvolvimento teria derrubado as hierarquias autoritárias e posto
m às injustiças. Era inerente a essa abordagem a promessa de um futuro
melhor, que seria realizado por meio de um processo de luta e insurreição.
Do ponto de vista de H. Bey, à diferença do previsto e do prometido, todos os
processos revolucionários teriam, inevitavelmente, levado ao surgimento de
novas ditaduras que, em pouco tempo, como demonstrado pela história, teriam
instaurado novas formas de opressão e justi cado, em consequência, o
nascimento de um enésimo processo revolucionário, dessa vez contra os
mesmos governos revolucionários. Assim ocorria na ex-URSS, na China e em
todos os países do Leste europeu. Mais que um autêntico processo de
transformação, as histórias das revoluções do século XX haviam demonstrado,
ao contrário, a impossibilidade, por meio dos processos revolucionários, de
alcançar uma profunda transformação, revelando-se como um modo singular a
partir do qual a estrutura de poder se reproduzia e se perpetuava no tempo. Em
outras palavras, a promessa de emancipação e de liberdade radical depositada
em cada processo revolucionário era pontual e historicamente traída por si
mesma, transformando-se no pesadelo do autoritarismo e da opressão
revolucionária.
Tal perspectiva de falência, descrita por H. Bey, havia substituído, na história,
a forma da insurreição que, ao contrário da perspectiva revolucionária, não se
transformava nunca em um novo sistema de opressão, sendo uma experiência
limitada no tempo, conseguindo, assim, evitar o ciclo histórico Estado opressivo-
revolução-Estado opressivo: Sublevação ou a forma latina insurreição são as
palavras usadas pelos historiadores para etiquetar as revoluções falidas – os
movimentos que não se conformam à curva prevista, à trajetória aprovada pelo
consenso: revolução, reação, traição, a fundação de um Estado mais forte e
ainda mais opressor – o giro da roda, o retorno da história ainda na sua forma
mais alta: chute no rosto da humanidade para sempre. Ao não respeitar essa
curva, a sublevação sugere a possibilidade de um movimento fora e além da
espiral hegeliana daquele processo que secretamente outro não é do que um
círculo vicioso. […] Um adeus àquela desgraçada paródia do giro cármico, a
histórica futilidade revolucionária. O slogan revolução é alterado pelo sinal de
alarme à malé ca toxina, uma maligna armadilha do destino pseudognóstico,
um pesadelo em que não importa por quanto tempo se combate – não
conseguiremos fugir do malé co Éon, aquele pesadelo: o Estado, um Estado
após o outro […]. Se a história é tempo, como diz ser, então a insurreição é um
momento que salta sobre e fora do tempo, violando a lei da história. Se o
Estado é a história, como diz ser, então a insurreição é o momento proibido,
uma imperdoável negação da dialética. [11]
Em substituição à dialética revolucionária e à ação diacrônica e histórica, H.
Bey propunha a criação de “zonas autônomas temporárias” (em inglês: T.A.Z.)
que se revelavam como o modo pelo qual a participação conseguia sair da
alternância cármica status quo-revolução-governo revolucionário-status quo: A
T.A.Z. é um m exclusivo em si, que toma o posto de todas as outras formas de
organização, táticas e objetivos […]. A T.A.Z. é como um motim que não
confronta diretamente o Estado, uma operação de guerrilha que libera uma área
(de tempo, de terra e de imaginação) e logo depois se dissolve para reformar-se
em um outro lugar, em um outro tempo, antes que o Estado a possa esmagar.
[12]

Além de uma prática de emancipação, a T.A.Z. propunha-se como uma forma


de ação pós-política fora da história, da con itualidade dialética e evolutiva da
política do Ocidente: Começar uma T.A.Z. pode requerer táticas de violência e
de defesa, mas a sua maior força está na sua invisibilidade – o Estado não pode
reconhecê-la porque a história a de ne […]. A T.A.Z. é um acampamento de
guerrilheiros ontológicos: protestar e fugir, manter toda a tribo em movimento,
ainda que se trate somente de dados em rede. [13]
Outro pressuposto dessa forma de emancipação temporária concentrava-se em
outra crítica à ideia da ação política ocidental, entendida comumente como um
tipo de ação desenvolvida principalmente no espaço público e, então, em uma
dimensão distante da esfera privada e do corpo do indivíduo. A loso a da ação
na T.A.Z. não tinha como objetivo a construção nem a realização de uma
estratégia política própria, mas o seu desaparecimento e o advento de uma
temporalidade que se propunha a substituir o futuro pelo presente. Desse ponto
de vista, a própria tentativa de descrição e de nição da T.A.Z. resultava
conceitualmente incoerente. As ideias e referências eram, sobretudo, poéticas e
metafóricas e indicavam épocas e contextos históricos diversos, cujo objetivo
não era de nir um código, mas apenas a rmar-se como fonte de inspiração.
Uma das mais frequentes referências históricas ligadas à T.A.Z. poderia ser
encontrada, segundo H. Bey, nas formas de atuação e de organização dos piratas
do século XVIII. Esses foram capazes, em pleno contexto colonial, de: Criar
uma rede de informação que se estendia em todo o globo: primitiva e
concentrada principalmente no comércio ilegal, mas com diversas funções. As
redes eram difusas em ilhas, esconderijos remotos, onde os navios podiam fazer
o carregamento de água e comida e onde fazia trocas de bens. Algumas dessas
ilhas abrigavam “comunidades internacionais”, minissociedades inteiras que
viviam conscientemente além da lei e decididas a se manterem nessa dimensão,
mesmo que por breves, mas felizes momentos de existência. [14]
As ações dos piratas limitavam-se a uma vida errante e aos assaltos aos navios
europeus, sempre cheios de materiais preciosos e de escravos. Depois de liberar
os escravos e se apropriar de todo o conteúdo do navio, refugiavam-se em baías
escondidas, distantes das trajetórias dos percursos o ciais, nas quais
compartilhavam as riquezas conquistadas. À diferença dos quilombos e das
comunidades alternativas da época, tais formas de agregação duravam somente
o tempo su ciente para o total consumo dos meios de subsistência. Pouco
depois, a comunidade desfazia-se e cada um voltava a seguir o próprio destino:
É simplesmente equivocado de nir esses piratas como simples bandidos do mar
ou como protocapitalistas, como alguns historiadores costumavam de ni-los.
De algum modo, eram bandidos sociais, ainda que suas comunidades de base
não fossem comunidades cidadãs tradicionais, mas utopias criadas do nada em
terras desconhecidas, enclaves de total liberdade que ocupavam espaços vazios
nos mapas. […] A maior parte das utopias piratas eram destinadas a ser
temporárias, de fato as verdadeiras repúblicas piratas eram seus navios […] os
enclaves nas praias frequentemente não possuíam nenhum tipo de lei. [15]
O mundo dos piratas era um mundo culturalmente heterogêneo, composto
por pessoas provenientes de lugares diversos e de vários tipos de outsiders: “os
núcleos eram sempre compostos por escravos em fuga, criminais (isto é, mais
pobres), prostitutas (em geral mulheres brancas que haviam se casado com não
brancos) e membros de várias tribos nativas”. [16]
Outra característica no contexto do singular ativismo ligado à ação
temporânea proposta por H. Bey era expressa pela proposta do “terrorismo
poético”, cuja função principal era a de subverter a lógica racional e
funcionalista da vida cotidiana, abrindo o indivíduo a uma dimensão poética e
criativa. A metáfora dos piratas, os indivíduos fora da lei, os apátridas sem clara
identidade social, não ligados a nenhum lugar de nido, eram relacionados a
imagens de outras guras históricas como os ciganos, os migrantes, os índios, os
refugiados e os sem moradia xa etc. O que aproximava tais formas diversas era
o seu comum “nomadismo psíquico” e seu “cosmopolitismo sem raízes”: Esses
nômades praticam o furto, são piratas, são vírus: têm necessidade e querem
T.A.Z., acampamentos de tendas negras sob as estrelas no deserto, interzonas,
oásis forti cados escondidos atrás de caravanas secretas, partes de bosques e
planícies livres, zonas proibidas, mercados negros e bazares subterrâneos. Esses
nômades traçaram seus percursos com estrelas estranhas, que podem ser
luminosas junto aos outros elementos do ciberespaço ou simples alucinações.
[17]

Além da forma não permanente das ações propostas por H. Bey,


multiplicaram-se formas originais de atuação em uma perspectiva que era
de nida como “nomadismo ontológico”, entre esses, para além do terrorismo
poético, havia o sequestro relâmpago.
O primeiro consistia na invasão de habitações, de lugares de trabalho ou de
espaços públicos para difundir poesias ou para sua distribuição e sua
declamação pública. O sequestro consistia, em vez disso, em raptar um
indivíduo para fazê-lo feliz. Um indivíduo tinha o direito, durante o tempo de
seu sequestro, de satisfazer todos os seus desejos. Mais do que uma organização
política ou uma instituição rebelde com fundamentos ideológicos comuns, a
T.A.Z. e os escritos de H. Bey, disseminados on-line pela Internet em quase
todos os continentes, foram responsáveis pela criação de uma rede autônoma de
participação que já demonstrava claramente uma forma de a-con itualidade
não mais local, identitária ou ideológica. Tal rede nascia em torno dos
comunicados e dos sites especí cos em diversos idiomas na Internet, que se
constituíam como a ecologia participativa e o espaço fértil de interação de tais
novas ideias e práticas.
6.2.4 Luther Blissett: o ativismo comunicativo e a participação anônima
A segunda forma importante de ativismo que se difunde nesse período e que
encontra na Internet a sua ecologia de interação e de con ito é aquela relativa
ao conjunto de ações reunidas sob o nome de Luther Blissett. A partir dos anos
1990, em vários países, milhares de pessoas decidiram executar ações midiáticas,
fazer reivindicações e petições públicas na Internet, escrever textos teóricos,
documentos, publicar páginas na web, sob a mesma e única assinatura: Luther
Blissett, dando origem a uma potente guerrilha midiática que era expressão de
uma crítica às identidades ideológicas e ao conceito de sujeito político,
entendido como expressão de uma cultura ordenadora e autoritária.
Luther Blissett é um Gemeinwesen. Gemeinwesen (em alemão significa ser
coletivo) […] A reputação de Blissett pode ser utilizada por qualquer um que
queira usá-la como arma para as novas guerras de classe […]. Não há mais
nenhum ponto arquimédico a partir do qual se pode fazer girar o mundo,
nenhum sujeito principal da revolução, como acreditavam as diversas correntes
do comunismo no século XX. […] A ação pode começar de qualquer ponto. [18]

Em poucos anos, Luther Blissett torna-se ativo em diversos países, realizando


protestos e ações originais de guerrilha midiática. Na Itália, por exemplo, estava
presente na rádio por meio da criação de um canal. Luther Blissett, que fazia
transmissões para Bolonha e Roma – cujos redatores se chamavam todos Luther
Blissett e usavam sempre o mesmo nome –, era narrado em primeira pessoa,
comentando suas ações ou aquelas dos outros membros da rádio. Foram
publicados, também nesse período, três números da revista Luther Blissett –
Revista Mundial de Guerra Psíquica, que seria seguida três anos depois por uma
segunda série que se chamava Quaderni Rossi di Luther Blissett. [19] Mas será,
sobretudo, na Internet que L. Blissett estenderá sua presença por meio da
difusão de numerosos sites, documentos, páginas temáticas, grupos de discussão,
experimentação de vários gêneros etc., tornando-se conhecido como o Robin
Hood da comunicação.
Uma das ações mais conhecidas de L. Blissett era aquela de nida como
“terrorismo midiático”. Frequentemente, eram distribuídas informações para os
media de massa, muitas vezes com ns jornalísticos ou imagens fortes, que
tinham como objetivo despertar a atenção dos meios de comunicação, que, por
sua vez, reproduziam a informação suscitando debates que, em muitos casos,
envolviam analistas, especialistas, lósofos, teólogos etc. Quando a atenção
sobre o tema era geral, tendo já alcançado seu ápice, os próprios organizadores
da distribuição da notícia enviavam um videocassete ou uma declaração na qual
a rmavam a não veracidade da informação, denunciando, assim, a estupidez da
cultura jornalística e midiática, e reivindicando, em seguida, a ação como uma
forma de criação de curto-circuito nos media de massa realizada por Luther
Blissett.
Um exemplo entre os mais famosos foi a experiência do verão de 1994,
realizada em Bolonha, quando, em diversos locais públicos da cidade, foram
encontrados restos de órgãos internos e de partes de corpos de animais. Ônibus,
parques, estacionamentos tornaram-se alvo de tais ações que sublinharam em
pouco tempo debates e discussões que envolveram, mais uma vez, grupos de
“especialistas”, sociólogos, psicólogos, críticos de arte, lósofos, prelados etc. No
m do verão, o mistério foi revelado: o evento havia sido criado por L. Blissett
como ação que demonstrava a super cialidade dos media de massa e seu poder
de in uência e manipulação sobre cada indivíduo. Inspirada na arte da guerra
de Sun Tzu, “a guerrilha midiática se constituía como um método homeopático
de defesa pela ingerência/presença dos media de massa no imaginário coletivo e
em nossas vidas”. [20] Em um dos tantos documentos assinados por L. Blissett,
veiculados na revista Guerra Psíquica, era possível ler uma síntese esclarecedora
da loso a de L. Blissett: 1. Luther Blissett é uma personagem-metodologia. A
ideia é a de suscitar um interesse mórbido nas obras, ações e reputações de
Luther Blissett. Luther Blissett quer fugir da prisão da arte e mudar o mundo
[…]. 2. Qualquer pessoa pode se tornar Luther Blissett simplesmente se
declarando parte do projeto e assinando com o nome coletivo Luther Blissett.
Trata-se de um genuíno experimento existencial, um exercício de loso a
prática. [21]
Muito antes das diversas formas de anonimato e do surgimento do
movimento net-ativista global Anonymous, que se espalhariam décadas depois
no mundo, Luther Blissett havia já inaugurado um ativismo sem líderes nem
identidade, por isso irreconhecível e não identi cável e, assim, fora da história e
das dinâmicas políticas da luta pelo poder.
Na passagem para o novo milênio, os ativistas de mídia e as revistas italianas
que haviam organizado ações de terrorismo midiático e várias atividades sob o
nome de Luther Blissett decidiram realizar um seppuku, ou seja, o cumprimento
de um ritual de suicídio: O suicídio era a demonstração prática da renúncia de
L. Blissett à sobrevivência como lógica identitária e territorial. O suicídio era a
última, extrema, radical fuga de um herói popular […]. O seppuku não era
uma diretriz, Luther Blissett era um nome que qualquer um poderia ter
continuado a usar mesmo depois da passagem para o novo milênio. Existiam
países nos quais a luta com a máscara de Blissett acabava de começar e seria
bom que continuasse. […] o tornar-se estrangeiro sem nome em territórios
desconhecidos: para alguns isso signi cava começar a chamar-se Luther Blissett,
para outros signi cava exatamente o contrário. […] Para aqueles que
participaram, o suicídio de Blissett signi cou parar de assinar com esse nome,
mas, ao mesmo tempo, continuar um percurso. […] Pelo seppuku, Luther
Blissett dará vida a múltiplos renascimentos, liberando-se do uso de um nome.
[…] Portanto, realizar o seppuku, deixar a criatura una e múltipla em si mesma,
no tempo inde nido do mito, não signi ca, de nenhum modo, retirar-se, mas
abrir novas pistas, traçando novas rotas […] Blissett não morre, renasce e se
reencarna em muitos modos diversos. [22]

6.3 A REDE DESCENTRALIZADA: O NEOZAPATISMO E A


CONFLITUALIDADE INTERGALÁCTICA

6.3.1 Do cyber ao net-ativismo


A segunda fase do ativismo digital é caracterizada para além da expansão
planetária do fenômeno, da consolidação de uma nova forma digital da
participação na qual a interação com as tecnologias interativas começa a
produzir uma diferença qualitativa nas próprias dinâmicas dos con itos,
revelando o caráter qualitativo da interação com os media digitais. Nessa
segunda fase, algumas das tendências que já se manifestavam em alguns dos
fenômenos inovadores como as formas de con itualidade das T.A.Z. e as de
Luther Blissett, tornaram-se tendências mundiais.
Expressão dessas foi, em primeiro lugar, o movimento neozapatista em
Chiapas (1994) – que inaugurou uma nova forma de con ito divulgando os
próprios comunicados por meio das redes, conectando-se, assim, a outros
movimentos sociais globais e experimentando um particular tipo de atuação
conjunta com a sociedade civil internacional (cf. DI FELICE; MUÑOZ, 1998)
– até os movimentos antiglobalização surgidos após o m da Gerra Fria, com a
crise do Estado de bem-estar social na Europa e das barreiras econômicas criadas
pelos monopólios multinacionais, o que se difundiu foi, a partir do uso de uma
nova tecnologia de comunicação, a emergência de um novo tipo de
protagonismo, advindo pela interação em rede e organizado de forma
descentralizada e complexa.
Diante desse processo de expansão e de posterior descentralização, tornou-se
necessário rever o amplo universo de signi cados que circundavam o conceito
de ciberativismo. O incremento das formas de interação em nível planetário
entre indivíduos, territórios, redes e tecnologias digitais, que tinha visto emergir
um tipo de con itualidade que se exprimia tanto on-line quanto em diversas
áreas de con ito, como a expressão de uma participação sem líderes e, em
muitos casos, anônima, havia tornado necessário descrever o tipo particular de
ação que surgia da interação das redes digitais a partir de um novo ponto de
vista, capaz de enfatizar a sua dimensão de conectividade.
Em seu livro NetActivism: How Citizens use the Internet, Schwatz utiliza o
termo netactivism como simpli cação da expressão Network-Activism, com a
intenção de superar o limite contido no termo ciberativismo, que lhe limitava as
dinâmicas e formas de participação ao ciberespaço, isto é, ao uso da Internet
baseado, como é veri cado na primeira fase preparatória, a uma troca de
informações e de práticas de participação na web, marcadas, sobretudo, pela
troca de conteúdos e de textos (web 1.0). A esse primeiro contexto de interação
que se desenrola predominantemente no ciberespaço, apoiava-se, pouco a
pouco, uma nova forma de ativismo digital que começava a experimentar um
tipo de con ito e de participação descentralizada e pluriforme.
Tal mudança pode ser hoje observada com clareza, tendo sua origem indicada
no advento de nova cidadania em rede, não mais limitável ao âmbito das
antinomias global/local, que, partindo de uma perspectiva de participação
planetária, e local ao mesmo tempo, facilitada pela expansão da Internet em
nível mundial, em vez de negar as diversidades e as especi cidades identitárias
locais, assumia com maior força as reivindicações graças às dimensões
descentralizadas proporcionadas pela web – que oferecia amplo poder de
comunicação global a cada pequena realidade e a cada particular etnia ou
movimento.
As formas de ativismo que caracterizavam tais novas formas de participação
eram a nítida expressão e o resultado de uma profícua interação com as
tecnologias digitais em rede, que desenvolvia uma notável interação não
opositiva entre indivíduos, grupos, culturas locais, informações, dados e
territorialidades, fazendo emergir novo tipo de interação colaborativa não mais
somente sujeitocêntrica, [23] ou seja, resultado apenas das ações do sujeito
político e do cidadão-ator.
É emblemático que a origem dessa segunda fase de interação seja constituída
pela interação neozapatista, surgida no sul do México, em Chiapas, expressão
das identidades e culturas indígenas descendentes dos maias, em um contexto,
portanto, não ocidental, mas que, por meio da Internet, deu início a uma
original forma de con itualidade que colocou em contínuo diálogo a Selva
Lacandona e as comunidades indígenas com o restante do mundo. Uma
con itualidade fora das instituições políticas da tradição ocidental e diversa, na
linguagem e na prática, daquelas realizadas pelas ideologias revolucionárias
europeias e latino-americanas. Uma con itualidade que experimentou novo
tipo de con ito sem lugares, por meio de uma linguagem mestiça e híbrida,
difundida via Internet no mundo e que assumiu, em poucos anos, dimensões
planetárias, criando uma miríade de grupos espontâneos não somente de
solidariedade, mas também autônomos e ativos no con ito de várias formas.
6.3.2 O neozapatismo e a conflitualidade intergaláctica
No dia 1º de janeiro de 1994, as atenções do mundo inteiro foram capturadas
pelas notícias que chegavam do extremo sul do México. Homens e mulheres
armados e com seus rostos cobertos haviam ocupado, durante o nascer do sol,
sete municípios no estado de Chiapas e declarado guerra ao exército mexicano.
Na cidade de San Cristóbal de las Casas, onde haviam tomado a sede do
governo local, anunciaram ser membros do Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN). Aos jornais internacionais e ao povo mexicano distribuíram
um comunicado que informava o início de uma luta para “o trabalho, a terra, a
comida, a saúde, a educação, a independência, a democracia, a liberdade, a
justiça e a paz”.
O porta-voz desse movimento, de rosto coberto, chamava-se Subcomandante
Marcos e declarava não ser o líder do movimento, uma vez que esse era dirigido
pelas comunidades indígenas da região meridional do México, comunidades
essas que, cansadas de 500 anos de pobreza e exclusão, haviam decidido dizer
“Ya basta!”.
Era 1º de janeiro de 1994 e a ocupação dos municípios coincidia com a
entrada em vigor do NAFTA, acordo econômico entre Estados Unidos, Canadá
e México e que, segundo o então presidente Salinas de Gortari, conduziria o
país latino-americano ao direito de entrar no “primeiro mundo”.
Depois de doze dias de combates entre rebeldes e o exército, uma trégua é
estabelecida. A possibilidade de diálogo é promovida por vários setores da
sociedade civil, procurando evitar derramamento de sangue. A diocese de San
Cristóbal torna-se o cenário do qual partiriam as primeiras propostas de paz e
diálogo. Don Samuel Ruiz, bispo de San Cristóbal, é proposto pelo EZLN
como mediador, enquanto Manuel Camacho Solis é eleito representante do
governo para o diálogo.
Com o m do con ito armado, o EZLN retirara-se para a Selva Lacandona,
inaugurando uma inédita forma de con ito que se articulava por meio de um
constante diálogo, via Internet, com a sociedade civil e a imprensa mexicanas, a
sociedade civil e a imprensa internacionais e com as demais comunidades
indígenas.
Desde os primeiros momentos, a forma de con ito praticada pelo Exército
Zapatista se diferenciava das estratégias e das atuações clássicas dos movimentos
de guerrilha latino-americanos, baseados na criação de “focos revolucionários” e
“áreas liberadas” que, expandindo-se, levariam progressivamente à construção
do exército popular revolucionário e à conquista do poder.
O comandante indígena Tacho, em entrevista, explicara claramente que o
objetivo do exército – composto predominantemente de indígenas – não era o
de tomar o poder “conquistando o palácio do governo”, nem o de sequestrar o
país com as armas, mas aquele mais ambicioso de “habitar o coração de cada
mexicano” e de buscar uma transição pací ca em direção a uma nova sociedade,
um novo México, onde imperasse “Democracia, Liberdade, Justiça”.
Desde os primeiros meses, a con itualidade inaugurada pelas comunidades
zapatistas era caracterizada por intensa ação comunicativa, quase diária, que
enviava via Internet comunicados ao mundo, explicando em linguagem não
política, mas literária e poética, as razões daquela escolha, de suas reivindicações,
contando sobre o cotidiano das comunidades e a vida de todos os dias. Os
comunicados e os escritos que chegavam via Internet a todo o mundo eram
assinados pelo Subcomandante Marcos ou pelo Comitê Clandestino
Revolucionário Indígena (CCRI).
As interações estabelecidas via Internet pelos insurgentes não se limitavam a
um simples diálogo, mas se estendiam a uma série de formas originais de
participação que, em pouco tempo, conseguiram romper os limites geográ cos
do con ito e o isolamento histórico das comunidades indígenas descendentes
dos maias.
Assim, em agosto de 1994, o EZLN chamou a sociedade civil mexicana – não
os partidos ou as instituições – a uma Convenção Nacional Democrática, cujo
escopo era aquele de discutir a transição em direção a uma nova sociedade.
Milhares de pessoas atenderam ao convite e, superando di culdades, distâncias
ambientais e a tentativa de bloquear os acessos por parte do exército federal,
transformaram a oresta em um laboratório de interação para a pesquisa de
novas formas de ativismo.
Em 1995, apesar das tentativas de diálogo, o exército mexicano chegou a
circundar as comunidades indígenas, avançando ameaçadoramente e
constrangendo muitas comunidades a deixarem os seus vilarejos e se
esconderem na oresta. Em poucos dias, após os comunicados distribuídos ao
mundo, via e-mail, milhares de pessoas nas mais diversas capitais do planeta
começaram a circundar as embaixadas mexicanas, pedindo a retirada do exército
das áreas indígenas e a solução pací ca do con ito. Ao mesmo tempo, milhões
de e-mails foram enviados às autoridades mexicanas, provenientes de pessoas e
grupos de apoio de todas as regiões do planeta, solicitando o respeito aos
direitos das comunidades indígenas de Chiapas. A soma dessas diversas ações da
sociedade civil internacional levou o governo mexicano a abandonar a ação
militar, evitando, assim, um preço político contraproducente. [24]
Vale a pena acrescentar como o chamamento à sociedade civil nacional e
internacional não era, na perspectiva dos zapatistas, apenas um estratagema ou
uma ação estratégica nalizada simplesmente para exercitar pressão sobre o
governo mexicano, mas constituía parte integrante de sua especí ca forma de
con itualidade, que, longe de ser a expressão de uma vanguarda revolucionária
com um claro projeto político, caracterizava-se como um con ito que reunia,
por meio das diversas interações informáticas, mais mundos.
Tal aspecto que exprimia a dimensão não vanguardista e não apenas local do
con ito torna-se ainda mais explícita no curso da consulta nacional e
internacional, lançada pelos zapatistas, em 1995, para decidir a forma política
que o zapatismo deveria assumir, ou seja, se esse deveria se tornar uma força
política organizada como um partido ou se deveria continuar como um quase
exército ou um quase movimento. Em vários lugares do mundo e no México,
milhões de pessoas participaram de tal consulta, demonstrando a profunda
ligação que unia a sociedade civil internacional ao movimento e o caráter
descentralizado de sua atuação.
Com a organização do I Encontro Internacional pela Humanidade e contra o
Neoliberalismo ocorrido na oresta, em agosto de 1996, do qual participaram
delegações de todos os continentes, o Exército Zapatista rompe novamente o
assédio e o isolamento, demonstrando, mais uma vez, a dimensão não só local
ou nacional do con ito, o qual, por meio das redes digitais, havia reunido
pessoas e setores de todas as partes do mundo em um único espaço
comunicativo sem limites. Na ocasião do I Encontro, a con itualidade zapatista
assume o signi cado e as dimensões de um con ito sem lugar, que seria
denominado “intergaláctico”.
6.3.3 A forma rede do neozapatismo
Além do tipo de con itualidade caracterizada pelo uso da Internet e por um
tipo de atuação comunicativa transnacional, que resultava na criação de uma
rede de movimentos ativos e de pessoas autônomas em diversos países do
planeta, o neozapatismo apresentava-se como uma anomalia também por sua
particular forma de organização. Todas as decisões eram discutidas e elaboradas
por cada uma das sete etnias que compunham a rede neozapatista em Chiapas.
Cada vilarejo, de cada etnia, após tê-la debatido, reportava sua decisão ao nível
regional, onde eram reunidas as decisões de todos os membros de cada grupo
étnico de pertencimento. As decisões tomadas em cada etnia eram reportadas
pelos “porta-vozes” ao CCRI, composto por porta-vozes das sete etnias. As
decisões eram, então, tomadas segundo a lógica do “mandar obedeciendo”, que
substituía a gura do delegado ou do representante eleito, próprias das
arquiteturas das democracias ocidentais, pela gura do porta-voz, cujo papel se
limitava à comunicação da decisão tomada para a comunidade nas assembleias.
Ao lado dessa organização reticular, baseada nas características culturais
especí cas das diversas etnias, havia o Exército Zapatista, que tinha como
objetivo defender as comunidades e cuja organização militar era con ada à
direção do Subcomandante Marcos. O termo “Subcomandante” indicava a
submissão do exército e da própria gura de Marcos às comunidades: Tenho a
honra de ter como meus superiores os melhores homens e as melhores mulheres
das etnias tzeltal, tzotzil, chol, tojolabal, mam e zoque. Com elas, vivi mais de
dez anos e sou orgulhoso de pôr a seu serviço meus braços e minha alma. Elas
me ensinaram mais do que aquilo que estamos ensinando fora do país e ao
mundo todo. São os meus comandantes e os seguirei pela estrada que
escolherem. São a liderança coletiva e democrática do EZLN […]. Se tivermos
que escolher entre diversos percursos, escolheremos sempre aquele da
dignidade. Se encontrarmos uma paz digna, seguiremos a via da paz digna. Se
avistarmos uma guerra digna, empunharemos nossas armas e iremos ao seu
encontro. Se encontrarmos uma vida digna, continuaremos a viver. Se, em vez
disso, a dignidade signi car morte, então iremos encontrá-la sem hesitação. [25]
À cosmogonia originária que caracterizava, na forma de rede, a economia
complexa de cada vilarejo das diversas etnias descendentes dos maias, à rede
complexa que marcava as relações e o imaginário de cada vilarejo indígena,
somaram-se as redes de relações entre os vilarejos de cada etnia especí ca e, a
essas, a rede maior do CCRI, que reunia as sete etnias no movimento zapatista.
Sob essas redes, cosmogônicas, ecológicas, relacionais e de interação, instalava-se
a rede da internet, que conseguia conectar essas diversas complexidades entre si
e com as redes de pessoas, comunidades de países, línguas e culturas diversas. O
neozapatismo, por meio da Internet, ativou, assim, uma rede de redes, fértil e
complexa, pela qual nasceram, nos anos seguintes, muitas das formas de
participação net-ativistas.
Um conflito estranho às categorias da política ocidental
Um dos aspectos característicos da organização interna do movimento
zapatista, que o diferenciava do movimento revolucionário das guerrilhas latino-
americanas, era o de ser um movimento composto majoritariamente por
indígenas, isto é, formado e dirigido por representantes das sete etnias que
constituem uma parte signi cativa dos povos descendentes dos maias do Sul do
México.
A con itualidade zapatista apresentava-se como um con ito fora da “pólis” e
estranho à modernidade europeia. [26] O componente indígena, sua cultura e
sua visão de mundo permeavam toda a ação zapatista, da organização do
movimento – baseado nas formas de democracia direta e em um outro conceito
de deliberação não representativa, sintetizada na expressão “mandar
obedeciendo” –, passando por suas formas de comunicar e agir, até sua loso a,
não reconhecível pelos paradigmas ideológicos e dialéticos da política moderna.
Mas o conjunto de tais características não era relativo a uma suposta dimensão
arcaica e “pré-moderna”, indígena, pré-urbana ou pré-industrial – uma vez que,
como visto, as interações e con itualidades indígenas tinham dimensão
mundial e a mesma forma dos bits –, tampouco devia ser interpretado como
uma simples reivindicação “étnica” e local que se propunha ao reconhecimento
dos direitos de uma “minoria”, tornando-a análoga às múltiplas lutas de
reivindicações do reconhecimento e das autonomias étnicas. A luta dos índios
tzetal, tzotzil, chol, tojolabal, mam e zoque não era uma luta para o direito à
terra e a obter “reservas” por meio da criação de “áreas de proteção”, nem uma
luta que estabelecia “cotas” ou outras medidas a rmativas de modo que um
grupo, ou uma etnia, pudesse usufruir de benefícios especí cos: Unido a Votán,
na guarda e no coração do povo, Zapata se levantou de novo para lutar pela
democracia, pela liberdade, pela justiça e por todos os mexicanos. Mesmo que
haja sangue indígena, Votán-Zapata não luta somente pelos indígenas, luta
também por aqueles que não são indígenas, mas vivem na mesma miséria, sem
direitos, sem justiça em seu trabalho, sem democracia para suas decisões e sem
liberdade para seus pensamentos e suas palavras. [27]
Os numerosos encontros internacionais, a consulta mundial e o papel
autônomo e ativo dos comitês nas mais diversas partes do mundo – que, muitas
vezes e de modos diferentes, intervieram no con ito com originais formas de
luta – haviam demonstrado a impossibilidade de reconduzir a con itualidade
zapatista ao interior das categorias de reivindicações étnicas e regionais: [28]
Há entre nós, como em nossa Grande Nação Mexicana, sangue indígena e
sangue mestiço. Somos orgulhosos dos dois e aspiramos a ser parte de todos os
sangues que são dignos. O país que queremos, queremos para todos os
mexicanos, e não só para os indígenas. A Democracia, a Liberdade e a Justiça
que queremos, queremos para todos os mexicanos, e não só para os indígenas.
Não queremos nos separar da Nação Mexicana, queremos ser parte dela,
queremos que nos aceitem como iguais, como seres dignos, como seres
humanos… [29]

Nem arcaica, nem regional, “nem moderna, nem pós-moderna”, [30] a


con itualidade zapatista con gurava-se como alheia às categorias da política
ocidental, não sendo portadora de uma estratégia política e assumindo formas
plurais e imprevisíveis que colocavam em ação um tipo particular de
con itualidade comunicativa e experimental.
Nesse sentido, a ação do EZLN apresentava-se como algo radicalmente
alternativo às usuais formas de con itualidade dos movimentos guerrilheiros e a
tudo aquilo que havia sido produzido em termos de con itualidade nas
sociedades modernas latino-americanas. Não só não tinham uma estrutura
rigidamente hierárquica comum a todo movimento político, não só não se
propunham, como objetivo, a instauração de um processo revolucionário que
previsse a tomada do poder, mas também não se consideravam sequer uma
vanguarda, no sentido de que não tinham e não propunham um modelo de
sociedade alternativo e mais justo; ao contrário, optavam por convidar a
sociedade civil e, pela Internet, cada indivíduo, a empenharem-se e
contribuírem para a construção de algo que não estava já pronto ou pensado,
mas que deveria ser inventado. O destaque das formas con itivas para a luta
pelo poder, próprias das dialéticas ideológicas europeias e dos movimentos de
esquerda modernos, era total e foi claramente expresso em uma famosa carta ao
EPR (Exército Popular Revolucionário), movimento guerrilheiro mexicano
ativo naquele período: O que buscamos, aquilo de que precisamos e que
queremos é que todas essas pessoas sem partido, sem organização, entrem em
acordo sobre aquilo que não querem e sobre como é possível se organizar para
alcançarem esse objetivo (preferindo vias civis e pací cas); não almejamos tomar
o poder, mas sim exercê-lo. Já sei que dirão que é utópico e pouco ortodoxo,
mas esse é o método dos zapatistas. “Ni modos”... Nós temos traçado um
percurso novo e radical que todas as correntes políticas criticam e veem com
descon ança, vocês inclusive. Estamos desconfortáveis. “Ni modos”, assim é o
método dos zapatistas…
Vocês lutam para tomar o poder, nós pela democracia, pela liberdade e pela
justiça. Não é a mesma coisa. Mesmo que vocês tivessem um resultado e
conquistassem o poder, nós continuaríamos lutando pela democracia, pela
liberdade e pela justiça, não importa quem está no poder, os zapatistas estão e
estarão lutando pela democracia, pela liberdade e pela justiça. [31]
Um conjunto de elementos fez do Exército Zapatista de Libertação Nacional
uma organização anômala no interior do cenário político mundial. A utilização
das categorias políticas europeias e das ideologias que caracterizaram a
con itualidade social na época moderna, mesmo na América Latina, resultavam
improponíveis e insu cientes para compreender os zapatistas, seu impacto e seu
signi cado no cenário mundial. Somente hoje, em um cenário onde o net-
ativismo tornou-se a forma predominante de con itualidade e de participação,
isso nos parece nítido. Para além das lógicas ordenadas e imobilizadoras da
política e das dialéticas europeias, a con itualidade comunicativa zapatista
antecipou e in uenciou as várias formas de net-ativismo que autonomamente e
heterogeneamente se multiplicaram nos últimos anos no mundo,
experimentando novas práticas de participação. É nesse sentido que, ainda hoje,
conectados às redes digitais, os índios tzeltal, tzotzil, chol, tojolabal, mam e
zoque continuam a rodar o mundo.
O conflito comunicativo e o caráter não instrumental das redes digitais
Ao contrário do que já foi muitas vezes escrito, o papel da Internet e da
comunicação não foi apenas o de ajudar estrategicamente as comunidades
indígenas na gestão do con ito, rompendo seu isolamento geográ co e
comunicativo. Naqueles anos, em muitas ocasiões, pude acompanhar e estudar
diretamente as atividades dos comitês e das bases de apoio zapatista em diversos
países. Os resultados de tais pesquisas [32] e observações me induzem a ressaltar
que as redes digitais têm dado forma a um tipo de participação sem limites
de nidos, que, a partir do con ito das comunidades indígenas do Sul do
México, começou a tecer uma rede que experimentava um tipo de
con itualidade inédita sem lugares.
Tal con itualidade teve lugar não apenas na Selva Lacandona, mas também
em uma a-geogra a informativa que se estendia por países e contextos diversos.
O con ito que opunha as comunidades indígenas chiapanecas ao exército
mexicano, por meio dos comunicados, vídeos e documentários, assumiu uma
proporção mundial, não apenas, como visto, pedindo e estimulando a
solidariedade e o apoio de comitês e grupos de diversos países e continentes,
mas também criando uma rede de atores e interlocutores ativos e atuantes no
con ito. Tal característica não foi planejada, tampouco teorizada por uma
proposta especí ca, mas criada após a difusão digital das redes de sustentação
que surgiam, nos mais diversos lugares, com a disseminação dos comunicados
do Subcomandante Marcos.
Em outros termos, evidencia-se, na própria história do processo, o papel não
instrumental das redes digitais, que ampliaram o con ito, alterando-o e criando
uma nova dimensão da qual as comunidades externas não só participavam, mas
se consideravam parte integrante. Várias foram as formas de participação direta
dos próprios grupos de apoio internacionais: das caravanas eletrônicas que
enviavam, de todas as partes do mundo, e-mails e mensagens de fax às
autoridades mexicanas, em quantidades que levavam à queda do sistema
informático do governo; passando pelos grupos internacionais de intermediação
de paz, que criavam acampamentos em torno das comunidades indígenas com o
objetivo de impedir o avanço do exército; até as constantes pressões dos grupos
de solidariedade internacionais, desenvolvidas em seus respectivos países, com
seus próprios governos realizando petições e discussões parlamentares, que, em
diversos casos, levaram governos europeus a realizar explícitas pressões sobre o
governo mexicano em nome de uma resolução pací ca do con ito.
O conjunto dessas outras atividades, difundidas e acessíveis em rede, acabou
por criar um con ito aberto e ilimitado que experimentou, antes das várias
formas de net-ativismo que interessariam nos anos futuros ao resto do planeta,
dos Estados Unidos à Europa, à China e ao mundo árabe, um tipo de
con itualidade aberta e atópica, realizada por meio do acesso a informações on-
line e da criação de interações que conectavam territórios distantes, populações
diversas, uxos informativos e dados.
A con itualidade tradicional, previsível, perpetuada por atores políticos
institucionais ativos sobre um território, onde cada um cumpria seu papel a
partir da própria identidade política de nida e inalterável, é assim substituída
por uma con itualidade dinâmica e comunicativa, em que os atores
multiplicavam-se continuamente, atuando no con ito de maneira imprevisível.
Esse último se delineava, consequentemente, como um cenário múltiplo de
difícil controle, no qual a identidade e os papéis dos atores, além de serem
múltiplos, moviam-se em continuação em uma pluralidade de espaços e em
diversas formas de atuação.
Desse modo, o neozapatismo con gurou-se como um tipo de con itualidade
transnacional, sem representantes nem porta-vozes, sem líderes nem hierarquias,
em que “as armas e as áreas liberadas e a luta pelo poder foram substituídas pela
comunicação eletrônica e pelo ‘con ito sem lugares’”. [33]
Um mundo onde caibam todos os mundos: o papel da Internet na
construção de uma linguagem polissêmica e mestiça
Transferindo o con ito para os “bits eletrônicos”, os zapatistas zeram da
linguagem sincrética e das “palavras digitais” as suas armas principais. Se a
linguagem ideológica da política moderna ocidental contrapunha, de forma
dialética e exclusiva, verdade a verdade, ideologia a ideologia, bandeira a
bandeira, líder a líder, a linguagem e a representação lógica dos zapatistas
criavam uma linguagem mestiça a que e na qual tinham acesso e voz “todos os
mundos”.
A introdução, na América Latina, da loso a iluminista e seus conceitos
universais, que havia constituído a base do surgimento dos Estados nacionais e
da emancipação dos domínios coloniais, determinara também a sistemática
exclusão das linguagens e visões de mundo não originariamente europeias que
constituíam o heterogêneo universo cultural latino-americano. A linguagem
político-ideológica que nascera em seu contexto e que, ainda hoje, fundamenta
as democracias contemporâneas da região, não era uma linguagem latino-
americana, expressão da mestiçagem afro-indígena-camponesa-asiática-europeia,
mas a construção, branca e eurocêntrica, da sociedade e da democracia,
inspirada e baseada nas categorias e na experiência dos processos revolucionários
europeus. A linguagem político-moderna latino-americana assume, portanto, o
aspecto de uma linguagem racista, baseada em visões que, em muitos casos, não
permitiam ler a complexidade nem as peculiaridades culturais do universo
sociocultural dos países do “subcontinente”.
Tal cegueira impediu, além do nascimento de uma política tipicamente latino-
americana, o acesso às formas de cidadania e aos mundos de origem não
europeia, abrindo um abismo entre as instituições inspiradas no velho mundo e
as diferentes realidades das culturas e populações latino-americanas, híbridas e
culturalmente diversas. Tanto a homogeneização linguística, que empobrecera o
complexo universo semântico latino-americano, quanto a assunção passiva das
linguagens políticas europeias assumiram claramente o signi cado da
perpetuação no tempo do processo de “embranquecimento” preconizado pelos
antigos domínios coloniais, preferindo representar a esconder, atrás de formas
de hibridação folclóricas e evasivas, a real riqueza das diversidades culturais e
linguísticas latino-americanas.
Em tal contexto, a difusão na Internet dos comunicados e escritos literários do
Subcomandante Marcos – que exprimiam uma estética semântica, polissêmica e
polifônica, enquanto híbridos e contaminados por mitos, contos, palavras
indígenas e, ao mesmo tempo, portadores de uma tradição literária mestiça
latino-americana (J. L. Borges, J. Rulfo, O. Paz, Popol Vuh etc.) em relação
àquela clássica europeia (W. Shakespeare, C. Pavese etc.) – assumia o signi cado
qualitativo da criação de uma ecologia mestiça e de um espaço de hibridação
fértil entre mundos e universos semânticos diversos. Tal espaço, sublinha-se, era
digital e, portanto, aberto, público e andante.
A linguagem digital dos comunicados assumia a dimensão de um espaço fora
da história ocidental, em que os diversos mundos que compunham cada espaço,
cada praça, cada estrada da América dialogavam e se mesclavam parindo formas
híbridas e inéditas. A linguagem do pensamento único, seja em sua versão
dogmática neoliberal ou naquela ideológico-socialista, foi assim superada em
relação ao estilo mestiço da escrita dos comunicados que se apresentava híbrido
e alheio a qualquer purismo ideológico, linguístico, antropológico, étnico etc. Se
por mais de 500 anos a América Latina havia importado linguagens e visões de
mundo estrangeiras, predominantemente europeias, tanto no nível religioso,
político e econômico, introjetando representações dogmáticas, os comunicados
digitais e a rede conseguiram abrir um espaço de encontro e diálogo entre
linguagens, idiomas e visões de mundo até aquele momento permanecidos
distantes e estranhos na história dos continentes.
O conflito não permanente e o suicídio comunicativo do holograma
Subcomandante Marcos
Desde o seu aparecimento em 1º de janeiro de 1994, a con itualidade
zapatista caracterizava-se pela assunção de uma forma de atuação não
permanente. A ocupação de sete municípios foi temporária e seguida, logo
depois, pela retirada dos rebeldes dos vilarejos da oresta aonde haviam
chegado. Mesmo depois de ter organizado a Convenção Nacional Democrática,
a consulta internacional, os encontros intercontinentais pela humanidade e
contra o neoliberalismo, o aspecto não convencional e temporário, instável,
permanece como uma constante e uma característica de tal atuação. As ações
zapatistas apareciam e desapareciam rapidamente sem se apresentarem como
práticas políticas institucionais e duradouras, impedindo o enquadramento de
tais ações no contexto da tradição dos movimentos guerrilheiros em geral, como
naquele da maior parte dos movimentos sociais, difundidos nas décadas do m
do último século na América Latina.
A insurreição indígena teve sempre um caráter temporário, refutando
qualquer tipo de institucionalização, como demonstrara a marcha e a ocupação
da Cidade do México realizada em março de 2001, quando, depois de ter
percorrido todo o país, a delegação zapatista entrou na capital e a ocupou
simbolicamente por vários dias. A liberação militar das áreas, a ocupação das
instituições, a luta pelo poder, as obras exemplares dos heróis revolucionários,
foram, assim, substituídas por ações temporárias de homens e mulheres
indígenas, com os rostos cobertos por máscaras e sem nomes. Daquele
momento em diante se difundiriam diferentes movimentos no mundo,
experimentando, em outros contextos, formas de con itualidade temporárias,
sem líderes, sem vanguardas, sem partidos, sem bandeiras, imprevisíveis e
contagiosas.
No interior de tal contexto de instabilidade permanente e de modo análogo
ao que fora realizado por Luther Blissett, em maio de 2014, o Subcomandante
Marcos deixou de existir. O holograma sem rosto nem identidade se dera à
morte. A decisão e as motivações foram explicadas em uma carta lida durante
um encontro do próprio ex-Subcomandante, a qual tinha como título “Entre a
luz e a sombra”. Trazemos uma parte dela a seguir.
Entre a luz e a sombra Boa noite, fim de tarde, dia, qualquer que seja a
sua geografia, tempo e modo.
Bom amanhecer.
Peço […] que haja paciência, tolerância e compreensão para aquilo que vou
dizer, pois essas serão minhas últimas palavras em público antes de deixar de
existir.
Apelo a vocês e àqueles que a partir de vocês nos escutam e nos olham.
Talvez no início, ou durante esse discurso, possa nascer no coração de vocês a
sensação de que algo esteja fora de lugar, de que algo não se enquadra, como
se faltassem peças para dar sentido ao quebra-cabeça que se delineia. Como se
faltasse algo.
Talvez depois, dias, semanas, meses, anos, décadas se compreenda aquilo que
vamos dizer agora.
Minhas companheiras e companheiros do EZNL, em todos os níveis, não me
preocupam, pois esse é o nosso modo: caminhar, lutar, sabendo que falta
sempre ainda alguma coisa.
Além disso, ninguém se ofenda, mas a inteligência das/dos compas zapatistas é
muito acima da média.
(...)
Bem, então, bem-vindas e bem-vindos à realidade zapatista.
I - Uma decisão difícil Quando, em 1994, com sangue e fogo irrompemos
e interrompemos, para nós, zapatistas, não começava a guerra.
A guerra do alto, com a morte e a destruição, a espoliação e a humilhação, a
exploração e o silêncio impostos aos vencidos, lá estávamos já sofrendo por
séculos.
Aquilo que para nós começa em 1994 é um dos muitos momentos da guerra
daqueles que estão embaixo contra aqueles que estão acima, contra seu
mundo.
Aquela guerra de resistência que se desenvolve dia a dia pelas ruas de cada
canto dos cinco continentes, nos campos e sobre as montanhas.
A nossa, como aquela de muitos e muitas dos de baixo, era e é uma guerra pela
humanidade e contra o neoliberalismo.
Contra a morte, nós pedíamos vida.
Contra o silêncio, exigíamos a palavra e o respeito.
Contra o esquecimento, a memória.
Contra a humilhação e o desprezo, a dignidade.
Contra a opressão, a rebelião.
Contra a escravidão, a liberdade.
Contra a imposição, a democracia.
Contra o crime, a justiça.
Quem, com um pouco de humanidade nas veias, poderia ou pode contestar
esses desejos?
E naqueles momentos muitos ouviram.
A guerra que começamos se dá o privilégio de alcançar os ouvidos e corações
atentos e generosos em geografias próximas e distantes.
Faltava certamente algo, e ainda falta, mas agora conseguimos o olhar do
outro, seu ouvido, seu coração.
(...)
Não é, portanto, somente uma frase, afortunada ou desafortunada por ser
observada por cima ou por baixo, esta “estamos aqui, os mortos de sempre,
que morrem de novo, mas agora para viver”. É a realidade.
E quase vinte anos depois…
Em 21 de dezembro de 2012, quando política e esoterismo coincidiram, como
outras vezes, na previsão de catástrofes que caem, na maioria das vezes, sobre
os de baixo, replicamos o golpe de 1º de janeiro de 94 e, sem disparar um só
tiro, sem armas, somente com nosso silêncio, derrubamos novamente a soberba
da cidade, berço e ninho do racismo e do desprezo.
Se, em 1º de janeiro, milhares de homens e mulheres sem rosto atacaram e
tomaram as guarnições que protegiam a cidade, em 21 de dezembro de 2012
foram dezenas de milhares de pessoas que tomaram, sem palavras, os edifícios
de onde se celebrava o nosso desaparecimento.
O mero fato inquestionável de que o EZLN não só não havia enfraquecido,
tampouco desaparecido, mas que havia crescido quantitativa e
qualitativamente, seria suficiente a qualquer mente medianamente inteligente
para que se desse conta de que, nesses vinte anos, algo mudara no interior do
EZLN e das comunidades.
Talvez mais de um pense que nos equivocamos na escolha, que um exército não
pode nem deve empenhar-se pela paz.
Por muitas razões, certamente, mas a principal era e é porque, com uma
escolha diversa, teríamos acabado por desaparecer.
Talvez seja verdade. Talvez tenhamos errado ao escolher cultivar a vida em vez
de adorar a morte.
(...)
Escolhemos olhando-nos e ouvindo-nos, como o Votán coletivo que somos.
Escolhemos a rebelião, isto é, a vida.
Isso não quer dizer que não sabíamos que a guerra do outro teria buscado e
busca impor novamente seu domínio sobre nós.
Sabíamos e sabemos que devemos sempre defender sempre o que somos e
como somos.
Sabíamos e sabemos que continuará a haver a morte até que haja a vida.
Sabíamos e sabemos que, para viver, morremos.
II - Um fracasso?
Daquela parte dizem que não obtivemos nada para nós.
Não para de nos surpreender como manipulam com tanta imprudência essa
posição.
Pensam que os filhos e as filhas dos comandantes e das “comandantas”
deveriam desfrutar de viagens do exterior, de estudos em escolas privadas e
depois cargos de relevo em empresas ou na política.
Que, em vez de trabalhar a terra para arrancar dela o alimento com suor e
cansaço, deveriam se exibir nas redes sociais enquanto se divertem nos locais a
exibirem o luxo.
Talvez os subcomandantes devessem procriar e passar, por hereditariedade, a
seus descendentes, os cargos, as regalias, as honrarias, como fazem os políticos
de todas as partes.
Talvez devêssemos, como os dirigentes da CIOAC-H e de outras organizações
camponesas, receber privilégios e dinheiro em projetos e ajudas, reter a sua
maior parte e deixar qualquer migalha em troca de seguir as ordens criminais
que vêm do alto.
Mas é verdade, não obtivemos nada de tudo isso para nós.
Difícil acreditar que, depois de vinte anos, descobre-se agora que aquele “nada
para nós” não era um slogan, uma boa frase para cartazes e canções, mas uma
realidade, uma realidade.
Se o resultado disso é um fracasso, então a incoerência é a estrada para o
sucesso, para o Poder.
Mas nós não queremos pegar aquela estrada.
Não nos interessa.
Sobre essas bases, preferimos falhar a vencer.
(...)
IV - Um holograma cintilante e a modo. Aquele que não será.
Antes do amanhecer de 1994, passei dez anos nessas montanhas. Conheci e
tive o que fazer pessoalmente com alguns por cuja morte morremos em muitos.
Conheço e tenho o que fazer a partir de agora com outros e outras que hoje
estão aqui como nós.
Durante muitos amanheceres, encontrei-me buscando assimilar as histórias que
me contavam, os mundos que desenhavam com silêncios, mãos e olhares, sua
insistência em indicar algo a mais lá.
Aquele mundo tão outro, tão distante, tão alheio, era um sonho?
Às vezes, eu pensava que eram muitos adiante, que as palavras que nos
guiavam e guiam vinham de tempos para os quais não havia ainda calendários
adequados, perdidos como eram em geografias imprecisas: o sul digno sempre
onipresente em todos os pontos cardeais.
(...)
Somos guerreiros e como tal sabemos qual é nosso papel e nosso momento.
Ao amanhecer do primeiro dia do primeiro mês do ano de 1994, um exército de
gigantes, isto é, de indígenas rebeldes, desce à cidade para sacudir o mundo em
sua passagem.
Somente poucos dias depois, com o sangue de nossas baixas ainda fresco pelas
ruas da cidade, demo-nos conta de que aqueles de fora não nos viam.
Habituados a ver os indígenas do alto, não levantavam o olhar para ver-nos.
Habituados a ver-nos humilhados, seu coração não compreendia nossa digna
rebelião.
Seus olhos haviam parado no único mestiço portando uma máscara, na
verdade, não viam.
Então nossos anciãos e anciãs disseram: “Veem apenas enquanto são
pequenos, criemos alguém pequeno como esses a fim de que o vejam e por
meio dele nos vejam”.
Iniciou-se, assim, uma complexa manobra de distração, um truque de mágica
terrível e maravilhoso, um malicioso truque de nosso coração indígena, a
sabedoria indígena desafiava a modernidade em um de seus bastiões: os meios
de comunicação.
Começou, assim, a construção do personagem chamado “Marcos”.
Peço a vocês que me sigam nesse raciocínio: Suponhamos que haja outro modo
para neutralizar um criminoso. Por exemplo, criando a sua própria arma mortal,
fazendo-lhe acreditar que é eficaz e, sob a base de sua eficácia, deixá-lo
elaborar um plano, de modo que, no momento em que se prepara para
disparar, “a arma” volte a ser aquilo que sempre foi: uma ilusão.
Todo o sistema, mas, sobretudo, seus meios de comunicação, jogam para
construir notoriedades para depois destruí-las se essas não servem a seus
propósitos.
Seu poder residia (agora não mais, por isso foram suplantados pelas redes
sociais) na decisão sobre que coisa e quem existiria no momento em que
escolhiam o que dizer e o que silenciar.
Enfim, mas deixemos estar, como foi demonstrado nesses vinte anos, não sei
nada de meios de comunicação de massa.
Fato é que o Sub-Marcos passou de ser um porta-voz a ser um elemento de
distração.
Se a estrada da guerra, isto é, da morte, tomou-nos dez anos, a da vida nos
tomou mais tempo e demandou mais esforços, para não dizer no sangue.
Porque, ainda que não acreditem vocês, é mais fácil morrer do que viver.
Precisávamos de tempo para ser e para encontrar quem soubesse nos ver por
aquilo que somos.
Precisávamos de tempo para encontrar quem nos visse não do alto, não de
baixo, que nos visse de frente, que nos visse com olhar companheiro.
Dizia a vocês que começava, então, a construção do personagem.
Marcos, em um dia tinha os olhos azuis, em um outro os tinha verdes, ou
marrons, ou castanhos, ou negros, de acordo com quem fazia a entrevista ou
fizesse a foto. Era reserva em algum time de futebol, funcionário em algum
negócio, motorista, filósofo, cineasta, e os etecéteras que possam encontrar nos
media financiados daqueles calendários e em diversas geografias. Havia um
Marcos para cada ocasião, isto é, para cada entrevista. E não foi fácil,
acreditem, não havia então Wikipédia e, se vinha do Estado Espanhol, devia
saber se Il Corte Inglês, por exemplo, era um corte de roupa típico da Inglaterra,
um negócio de gêneros alimentares ou um supermercado.
Se posso definir o personagem Marcos, diria, sem pestanejar, que foi uma
armação.
Para compreendê-lo, digamos que Marcos era um Meio não Livre (atenção: não
é a mesma coisa de um meio financiado).
Na construção e manutenção do personagem, cometemos alguns erros.
“Errar é humano”, diz-se.
Durante o primeiro ano exaurimos todo o possível repertório dos “Marcos”. De
modo que, no início de 1995, estávamos em dificuldades e o processo de
autonomia dos povos dava seus primeiros passos.
Então, em 1995, não sabíamos mais o que fazer. É quando Zedillo, PAN à mão,
“descobre” Marcos com o mesmo método científico com o qual encontra os
esqueletos, isto é, por informação esotérica.
A história do tampiqueño deu-nos um pouco de ar, ainda que a fraude
subsequente da Paca de Lozano nos tenha feito temer que a imprensa
financiada colocasse em dúvida mesmo o “desmascaramento” de Marcos e
descobrisse que se tratava de uma outra fraude.
Felizmente não foi assim. Como nesse caso, os media continuaram a comprar
outros absurdos semelhantes.
Algum tempo depois, o tampiqueño veio a essas terras. Junto ao
Subcomandante Insurgente Moisés fomos falar-lhe. Propusemos a ele convocar
uma entrevista coletiva conjunta e assim poder ficar livre da perseguição, dado
que teria ficado evidente que ele e Marcos não eram a mesma pessoa. Não
aceitou. Veio para viver aqui. Viajara algumas vezes e seu rosto aparece nas
fotografias dos cortejos fúnebres de seus pais. Se quiserem, podem entrevistá-
lo. Agora vivem em uma comunidade, a…
Ah, não quer nem que se saiba onde vive. Não diremos qualquer outra coisa até
que seja ele mesmo, se um dia o virmos, a contar a história que vivera desde 9
de fevereiro de 1995. De nossa parte, não nos resta mais do que agradecer-lhe
por ter passado informações que, ocasionalmente, usamos para alimentar a
“certeza” de que o Sub-Marcos não é aquilo que na realidade é, uma armação
ou um holograma, mas um professor universitário originário do atual doloroso
Tamaulipas.
Enquanto isso, continuamos a procurar, a procurar vocês, vocês que estão aqui,
quem não está aqui, mas está.
Lançamos milhares de iniciativas para encontrar o outro, a outra, o outro
companheiro.
Diversas iniciativas para encontrar o olhar e o ouvido daquele que necessitamos
e merecemos.
Enquanto isso, prosseguia o progredir das nossas comunidades e a renovação
da qual se falou muito ou pouco, mas que se pode constatar diretamente, sem
intermediários.
Na busca do outro, falhamos muitas vezes.
Aqueles que encontrávamos, ou nos queriam guiar ou queriam que os
guiássemos.
Havia quem se aproximava e o faziam para usar-nos, ou para ver atrás, ou com
a nostalgia antropológica, ou com a nostalgia militante.
Assim, para alguns éramos comunistas, para outros, trotskistas, para outros,
anarquistas, para outros maoístas, para outros, milenaristas, e omito “istas”,
que deixo para vocês completarem.
Assim foi até a Sexta Declaração da Selva Lacandona, a mais audaz e a mais
zapatista das iniciativas que lançamos até agora.
Com a Sexta, finalmente encontramos quem nos olha de frente e nos
cumprimenta e abraça, e é assim que se cumprimenta e abraça.
Com a Sexta, finalmente encontramos vocês.
Finalmente alguém que entendia que não procurávamos nem pastores que nos
guiassem nem rebanhos para conduzir à terra prometida. Nem patrões, nem
escravos. Nem líderes, nem massas sem cabeça.
Mas faltava ver se vocês eram capazes de ver e ouvir o que somos.
No interior, os progressos das comunidades eram impressionantes.
Depois veio o curso “A liberdade segundo @s zapatistas”.
Em três turnos, percebemos que havia então uma geração que podia nos olhar
nos olhos, que podia nos ouvir e falar-nos sem esperar guias ou lideranças, nem
pretender submissão nem controle.
Marcos, o personagem, não era mais necessário.
A nova etapa da luta zapatista estava preparada.
Ocorreu, então, aquilo que ocorreu a muitas e muitos de vocês, companheiras e
companheiros da Sexta, sabem-no de forma direta.
Poder-se-á dizer que a questão do personagem era inútil. Mas um olhar honesto
sobre aqueles dias revelará quantas e quantos nos olharam, com prazer ou
aborrecimento, por causa dos disfarces de uma figura fantasiosa.
Assim, a renovação não é devido à doença ou à morte, nem para transferências
internas, expurgos ou inspiração.
Segue a lógica das transformações internas no interior do EZLN.
Sei que isso não se enquadra nos rígidos esquemas do alto, mas essa é a pura
verdade.
E se isso estraga a indolor e pobre elaboração dos badernólogos e zapatólogos
de Jovel, paciência.
Não sou nem nunca fui doente, não sou nem nunca fui morto.
Ou sim, ainda que tantas vezes me tenham matado, tantas vezes fui morto, de
novo estou aqui.
Se alimentamos essas vozes foi porque assim convinha.
O último truque do holograma foi simular uma doença terminal, incluindo todas
as mortes sofridas.
De fato, o comentário “se a saúde dele permite” que o Subcomandante
Insurgente Moisés fez no comunicado anunciando o encontro com o CNI era o
equivalente de “se o povo o pede” ou “se as sondagens me favorecem” ou “se
Deus quiser” e outros lugares comuns que foram o refrão da classe política nos
últimos tempos.
Se vocês me permitem um conselho: deveriam cultivar um pouco mais o senso
de humor, não só para a saúde mental e física, mas também porque, sem senso
de humor, não entendem o zapatismo. E quem não compreende, julga; e quem
julga, condena.
Na realidade, aquela foi a parte mais simples do personagem. Para alimentar o
boato, era necessário apenas contar às pessoas certas: “Te revelo um segredo,
mas promete não contá-lo a ninguém”.
Obviamente, contaram-no.
Os principais colaboradores involuntários das vozes sobre a doença e a morte
foram os “especialistas em zapatologia”, que, na soberba Jovel e na caótica
Cidade do México, vangloriam-se de sua proximidade ao zapatismo e do seu
profundo conhecimento, e, claramente, também aos policiais pagos como
jornalistas, jornalistas pagos como policiais, e jornalist@s somente pagos, e mal,
como jornalistas.
Obrigado a todas e todos eles. Obrigado pela sua discrição. Fizeram exatamente
como supúnhamos que fariam. O único lado negativo de tudo isso é que agora
duvido que qualquer um deles confie a outro algum segredo.
É nossa convenção e nossa prática que, para rebelar-se e lutar, não são
necessários nem líder, nem chefe, nem messias, nem salvadores. Para lutar, é
preciso apenas um pouco de vergonha, um tanto de dignidade e muita
organização.
O resto, ou serve para o conjunto coletivo ou não serve.
(...)
Quem aspira e olha para o alto pode continuar a procurar o próprio líder; pode
continuar a pensar que se respeitarão os resultados eleitorais; que Slim apoiará
a esquerda; que aparecerão os dragões e as batalhas de Game of Thrones; que
Kirkman será fiel aos quadrinhos originais da série televisiva The Walking Dead;
que os objetos feitos na China quebrarão no primeiro uso; que o futebol será
um esporte, e não um negócio.
Sim, talvez em algum caso tenham razão, mas não há necessidade de esquecer
que, em todos esses casos, trata-se de meros espectadores, isto é, consumidores
passivos.
Aqueles que têm amado e odiado o Sub-Marcos agora sabem que odiaram e
amaram um holograma. Seus amor e ódio foram, assim, inúteis, estéreis, vagos,
vazios.
Não haverá, portanto, casas-museus ou placas de metal com seu escrito: aqui
nasceu e cresceu. Nem haverá quem dirá que foi o Subcomandante Marcos.
Nem se herdará seu nome ou seu título. Não haverá viagens pagas ao exterior
para dar conferências. Não haverá transferências, nem cuidados em hospital de
luxo. Não haverá viúvas, nem herdeiros. Não haverá funerais, nem honras, nem
estátuas, nem museus, nem prêmios, nem nada disso que o sistema faz para
promover o culto à personalidade e para diminuir a coletividade.
O personagem foi criado e agora seus criadores, os zapatistas e as zapatistas,
destroem-no.
Se alguém compreende a lição das nossas companheiras e companheiros, terá
compreendido um dos fundamentos do zapatismo.
Assim, nos últimos anos, ocorreu o que ocorreu.
Então nos demos conta de que a armação, o personagem, o holograma não
eram mais necessários.
Temos repetidamente planejado e, em seguida, repetidamente esperado pelo
momento certo: o calendário e a geografia precisos para mostrar o que na
realidade somos a quem na realidade é.
Depois veio Galeano com sua morte a marcar a geografia e o calendário: “Aqui,
na Realidade; agora: na dor e na raiva”.
V - A Dor e a Raiva. Sussurros e gritos.
Quando chegamos aqui ao caracol da Realidade, sem que ninguém o dissesse,
começamos a falar sussurrando.
Nossa dor falava brandamente, brandamente a nossa raiva.
Como se procurássemos evitar que Galeano fosse incomodado pelos rumores,
pelos sons a ele estranhos.
Como se nossas vozes e nossos passos o chamassem.
“Espera ‘compa’”, dizia nosso silêncio.
“Não vão lá”, sussurravam as palavras.
(...)
Aquela que nós queremos, pela qual lutamos, não se exaure com a descoberta
dos assassinos do “compa” Galeano e talvez de sua punição (se isso acontecer,
que ninguém se deixe induzir ao erro).
A busca paciente e tenaz quer a verdade, não o alívio da resignação.
A justiça grande tem a ver com o companheiro Galeano enterrado.
Nosso companheiro, chefe e porta-voz do EZLN, o Subcomandante Insurgente
Moisés, disse-nos que, assassinando Galeano ou qualquer um dos zapatistas,
aqueles de cima queriam assassinar o EZLN.
E disseram que viemos aqui, como Comando Geral do Exército Zapatista de
Libertação Nacional, a desenterrar Galeano.
Achamos que é necessário que um de nós morra até que Galeano viva.
E, para satisfazer a morte impertinente, no lugar de Galeano, colocamos outro
nome até que Galeano viva e a morte não leve embora uma vida, mas somente
um nome, poucas letras privadas de sentido, sem história própria, sem vida.
Então decidimos que Marcos, a partir de hoje, deixa de existir. Levá-lo-ão pela
mão o guerreiro sombra e a pequena luz até que ele não se perca ao longo do
caminho. Don Durito irá com ele, e assim também o Velho Antônio.
Não faltará às meninas e aos meninos aquele em torno do qual ficarão a ouvir
as suas histórias, pois já são adultos, têm juízo, lutam pela liberdade, pela
democracia e pela justiça, que é o dever de cada zapatista.
O gato-cão, e não um cisne, entoará o canto de adeus.
Ao final, quem entender saberá que não se vai quem nunca foi, nem morre
quem nunca viveu.
E a morte irá embora enganada por um indígena com o nome de luta de
Galeano e, sobre as pedras colocadas sobre sua tumba, voltará a caminhar e a
ensinar, a quem quiser, o fundamento do zapatismo, isto é, não se vender, não
se render, não vacilar.
Oh morte! Como se não fosse evidente que libera aqueles de cima de todas as
responsabilidades para além da oração fúnebre, a homenagem branda, a
estátua estéril, o museu controlador.
A nós? Bem, porque nós, a morte nos empenha à vida que contém.
Então estamos aqui, a simular a morte na realidade.
“Compas”:
Dito isso, às 2h08 do dia 25 de maio de 2014, no front de combate sul-oriental
do EZLN, declaro que deixa de existir o conhecido como Subcomandante
Insurgente Marcos, o autodenominado “subcomandante de aço inoxidável”.
É tudo.
Pela minha voz não falará mais a voz do Exército Zapatista de Libertação
Nacional.
Bem, Saúde e até nunca mais… ou até sempre, quem entendeu sabe que isso
não tem importância, nunca teve.
Desde a realidade zapatista.
Subcomandante Insurgente Marcos México, 24 de maio de 2014.
P.S.1.- “Game is over”?
P.S.2.- Xeque-mate?
P.S.3.- Touché?
P.S.4.- Conformem-se, e mandem tabaco.
P.S.5.- Mmm... e isso seria o inferno ... Aquele Piporro, Pedro, José Alfredo!
Como? Aqueles machistas? Naah, não acho, mas se eu nunca tive mais...
P.S.6.- Assim, sem disfarce, agora eu posso sair por aí nu?
P.S.7.- Eih, está escuro aqui, dá-me um pouco de luz.
(...)
(Ouve-se uma voz ao longe) Companheiras e companheiros, desejo-lhes bons
amanheceres. Meu nome é Galeano, Subcomandante Insurgente Galeano.
Mais alguém chamado Galeano?
(Levantam-se vozes e gritos) Oh, disseram-me que, quando renascer, eu o farei
coletivamente.
Que assim seja então.
Boa viagem. Cuidem de si mesmos, e de nós.

6.4 O NET-ATIVISMO, O CONFLITO E A PARTICIPAÇÃO EM REDES


DISTRIBUÍDAS

6.4.1 As ecologias comunicativas colaborativas


do net-ativismo: uma pesquisa internacional
A partir da difusão da banda larga, das redes sociais, do wi- e dos dispositivos
móveis, disseminou-se no mundo uma série de formas de participação e
con itualidades que começaram a experimentar, em formas e contextos
diversos, práticas que, partindo de sites, redes sociais e grupos temáticos on-line,
conseguiam não só formar agregações de enormes proporções, mas criar um
curto-circuito comunicativo, gerando bancos de dados digitais que começavam
a difundir informações e a experimentar formas de ativismo sobre temáticas
especí cas. Quase todas essas experiências têm experimentado uma singular
condição habitativa colaborativa que permitiu o trânsito informativo e a
conexão entre os dispositivos tecnológicos, os dados, as pessoas e as
territorialidades informatizadas.
Mesmo quando tais formas de participação ocuparam temporariamente,
como em muitos casos, praças, ruas, assumindo aparentemente os aspectos
tradicionais das formas de protesto públicas, na realidade continuavam
conectadas às redes digitais, postando, em tempo real, imagens, comentários e
vídeos, documentando on-line cada evento e dando, portanto, às arquiteturas
urbanas e aos espaços públicos, uma dimensão digital e informativa e, ao
mesmo tempo, conferindo à própria participação as características de um agir
colaborativo em rede entre humanos, dispositivos de conexão, dados e
territórios. Tais formas colaborativas de participação tiveram uma disseminação
planetária, assumindo as características de um novo modo de interação que
superaria as dinâmicas representativas para assumir as dimensões de um
ativismo em rede emergente, dinâmico, temporário e imprevisível. A partir de
tal constatação, o Centro Internacional de Pesquisa Atopos, da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, realizou uma pesquisa
comparativa que analisou a colaboração de outros importantes centros de
investigação de Portugal, França e Itália. [34]
Como visto, a passagem do ciberativismo ao net-ativismo está ligada à
evolução técnica das redes digitais, particularmente ao advento da web 2.0, que
permitiu a conexão móvel e a difusão das redes sociais. Além do zapatismo, tais
formas ecológicas de participação net-ativista seriam também experimentadas
por movimentos como People’s Global Action, bem como por uma miríade de
indivíduos e redes sociais digitais que organizaram os grandes protestos e os
con itos de Seattle (1999), Gênova (2001), Londres (2004). No mesmo
período, começou a difundir-se rapidamente, em todo o mundo, uma série de
experiências de participação e con ito que tinham em comum uma particular
dimensão ecológica, que, partindo das redes digitais, atravessava o território,
permitindo a participação simultânea de pessoas comuns, o acesso e o
compartilhamento de informações.
Um dos primeiros movimentos em tal direção foi o Vaffanculo Day, realizado
em 8 de setembro de 2007 nas principais cidades italianas, que reuniu uma
multidão a partir do convite em rede realizado pelo blog de um comediante
(Beppe Grillo) com o objetivo de propor uma lei que proibisse a candidatura de
políticos que respondiam a processos legais, e que também elegesse critérios
mínimos de elegibilidade em uma iniciativa que seria denominada “parlamento
limpo”. Do V-Day nasceram, em seguida, os meet up e, sucessivamente, o
Movimento Cinque Stelle, que decide participar das eleições, iniciando um
experimento de organização híbrida (movimento-partido) ainda em curso.
As ações dos coletivos Anonymous, que, desde 2008, têm atuado globalmente
em defesa da liberdade da rede, da liberdade de expressão e dos direitos em
geral, evocam, além das formas de con itualidade expressas pelas ecologias
midiáticas de Luther Blissett, também as formas anônimas, distribuídas e
espetaculares propostas pelos neozapatistas. A falta de uma liderança e a radical
descentralização organizacional indicam a incorporação das linguagens da rede,
que, além de constituírem sua forma, são também sua ecologia e seu lugar de
atuação. Os Anonymous não têm um programa nem um líder ou uma
bandeira, qualquer um pode ser Anonymous.
Após a web 2.0 também surgiram na rede, ao lado dessas, ações análogas que,
por meio das ecologias das redes sociais, impactaram fortemente os cenários da
participação em vários países. Em muitas partes do mundo, surgiram
movimento e revoltas a partir do acesso e da difusão das informações em rede.
Nessa perspectiva, 2011 foi um ano importante. As revoltas nos países árabes, o
movimento dos Indignados [35] (na Europa e, sobretudo, na Espanha) e o
Occupy Wall Street [36] (Estados Unidos) foram alguns dos eventos que
marcaram a difusão planetária de um tipo de participação que nascia das
ecologias digitais de interação, criando uma sinergia colaborativa entre dados,
informações, pessoas e movimentos.
Nesse mesmo período, graças à banda larga e à difusão da Internet fotônica
com bra ótica, desenvolveu-se uma ecologia do ativismo que presenciaria, além
do nascimento em rede das mais diversas formas de ativismo, a participação de
atores informáticos e de arquiteturas de interação como o Facebook, o Twitter,
assim como aquela dos sites de compartilhamento de vídeos como o Youtube, os
quais contribuíram para o desenvolvimento das ações dos cidadãos individuais,
colaborando para a criação de ecologias net-ativistas.
Tais ecologias, que conectaram em rede informações, dispositivos e pessoas,
foram capazes de elevar e sustentar os protestos nos países árabes. A Tunísia foi
o primeiro país árabe a insurgir contra a opressão de um regime autoritário e a
favor da democratização de suas instituições políticas, levando à derrubada do
governo de Ben Ali (14 de janeiro de 2011), assim como o Egito (11 de
fevereiro de 2011), a Líbia (20 de outubro de 2011) e o Iêmen (20 de fevereiro
de 2012). Tais revoltas foram conduzidas predominantemente por jovens,
sobretudo, mulheres, ou seja, pela parte da população que, em alguns desses
países, não era ainda considerada como sujeito político ou, como no caso do
Egito, também censuradas das atividades políticas. Nesses, como em muitos
casos, Facebook, Youtube e tantas outras redes constituíram a construção de
uma ecologia de participação aberta e alternativa àquela restrita proposta das
esferas públicas nacionais.
Casos análogos disseminaram-se na China, na luta pela democracia e na
defesa da permanência das comunidades sobre seus territórios, expulsas pela
realização de grandes obras públicas, ou no Brasil, entre as comunidades
indígenas e os movimentos contra a corrupção ou a construção de grandes
empreendimentos em regiões de proteção ambiental etc.
Em todos esses casos e em muitos outros, as arquiteturas informativas
permitiam a emergência de uma forma espontânea de participação, autônoma,
não mais dependente das centrais de gestão e monopolização ideológica das
agências de mediação da participação (partidos, sindicatos e movimentos sociais
mais ou menos institucionalizados) e, ao mesmo tempo, a ampliação da atuação
de novos movimentos que, graças ao poder de difusão das redes, conseguiram,
em pouco tempo, formas signi cativas de impacto e consenso. Trata-se, em
muitos casos, de movimentos outsider, sem história e que, em poucos meses,
alcançam uma difusão e uma presença nacional, com uma rapidíssima ascensão,
tais como os casos do Movimento Cinque Stelle, da Itália, dos Indignados e do
15M, da Espanha, do Movimento Geração À Rasca, de Portugal, ou das
Jornadas de Junho do Brasil, em 2014.
O que aproximava tais formas de participação em rede não se resumia à
simples incorporação da Internet nos processos comunicativos ou na difusão de
suas mensagens e de suas atividades (M. Castells), mas in uenciava diretamente
a própria estrutura organizacional da participação, que assumia, na maioria dos
casos, uma forma aberta, reticular e informal, dando às formas de ativismo e de
con itualidade uma dimensão distribuída e emergente.
Tais análises estimularam a criação da pesquisa comparativa internacional, [37]
à qual nos referimos há pouco, cujo objetivo foi duplo: de um lado, o estudo da
ecologia da ação net-ativista, ou seja, a identi cação do lugar de onde e como
surgia a participação e, de outro, identi car suas eventuais características
comuns.
O ponto de partida era exatamente a localidade e a localização “atópica” de tal
ativismo que começava em rede, seguia assumindo formas e presenças em
localidades e espaços públicos, mas sempre mantendo a conexão contínua e o
acesso às redes, que se exprimiam por meio da documentação das práticas de
ação e da contínua troca das informações, até mesmo através das formas de
jornalismo espontâneo on-line surgidas durante as manifestações ou atos de
protesto, conectando as ruas e o con ito ao resto do país e do mundo.
Para analisar tal aspecto, a pesquisa elaborou uma tipologia de formas diversas
de interação a m de veri car a localidade das formas de participação e de
con itualidades net-ativistas. Tal tipologia era aplicada às diversas formas de
net-ativismo analisadas em países distintos, permitindo a identi cação da
ecologia da participação desenvolvida por cada uma delas. A tipologia era
subdividida em quatro níveis de interação: net-ativismo frontal, net-ativismo
imersivo, net-ativismo dialógico e net-ativismo ecológico.
a) Net-ativismo frontal O primeiro tipo de ecologia exprimia um tipo de
interação na qual os internautas construíam formas de ativismo exclusivamente
on-line, ou seja, limitando o próprio ativismo ao movimento dos dedos sobre o
teclado e ao simples clique, seja esse um like ou uma petição on-line, ou a
redação de uma carta de protesto. Tal ativismo, denominado muitas vezes no
sentido depreciativo como “ativismo de sofá”, tinha, em diversos casos,
desenvolvido ações importantes e, segundo a análise da pesquisa, não deveria ser
considerado inferior às outras formas de ativismo. O termo “frontal” indicava
apenas a dimensão ecológica de um agir que surgia diante de uma tela de
computador ou o touch screen de um celular.
b) Net-ativismo imersivo O segundo tipo de ecologia da participação indicava
outro aspecto do ativismo frontal que exprimia um tipo de participação intensa,
geralmente prolongada no tempo e realizada com frequência, que se desenvolvia
por meio da participação em grupos temáticos de discussão ou em arquiteturas
de interação municipais ou locais (e-governance) – as quais tinham como
objetivo, por exemplo, discutir problemas de seus bairros, apontando soluções
–, ou ainda por meio de formas experimentais de elaboração e discussão de leis
on-line etc. O tipo de empenho e a continuidade de tais interações tornaram
necessária a distinção em relação ao primeiro tipo, colocando em evidência o
maior nível de interatividade, o qual, requerendo tempo e um grande volume
de troca de conteúdos, manifestava um tipo de ecologia que solicitava, da parte
do ativista, uma imersão continuada, fosse no diálogo com os dados, fosse na
troca de informações on-line.
c) Net-ativismo dialógico O terceiro tipo de ecologia da participação é
referente à forma ecológica mais comum entre as diversas formas de net-
ativismo e exprime-se em uma dimensão de interações participativas complexas
que começavam on-line, estendiam-se nas ruas e nos espaços públicos, sempre
continuando sua dimensão conectiva e digital, evidente tanto nas diversas fases
de atuação, caracterizada pela produção e distribuição contínua de conteúdo on-
line, quanto em sua própria origem. Esse tipo de formas de con itualidade era,
assim, a expressão de um agir interativo que reunia pessoas, dispositivos, dados
e territórios em uma única ecologia colaborativa. Tal interatividade era
caracterizada por sua dimensão emergente, consequência da contínua troca
entre as diversas entidades conectadas e era a expressão de um tipo de ecologia e
de interação baseado em um constante diálogo entre indivíduos, arquiteturas
informativas, dados e territorialidades.
d) Net-ativismo ecológico O último tipo de ecologia da interação net-ativista
exprime, à diferença do dialógico, uma explícita expansão das interações aos
elementos não humanos e, em particular, uma extensão do ativismo a atores e
agentes da biodiversidade: clima, produtos “bio”, lagos, orestas, animais etc.
A cada um desses quatro tipos de interação eram associados três níveis
diferentes de interatividade das arquiteturas informativas com o objetivo de
descrever posteriormente o nível de participação permitido por cada respectiva
arquitetura digital.
Evidenciada a complexidade colaborativa da ecologia da participação net-
ativista, a pesquisa, realizada nos quatro países, passou a analisar as
características comuns de tais formas inovadoras de participação, chegando a
sugerir dez tendências principais.
10 características das formas de conflitualidade net-ativistas
1. A dimensão informativa do con ito caracterizada pela realização no interior
de uma ecologia colaborativa digital e não somente pela utilização de
tecnologias digitais A primeira característica comum nas diversas formas de net-
ativismo analisadas tem a ver com o lugar de origem das formas de net-
ativismo, lugar que se apresenta como uma geogra a digitalizada. Tais
movimentos nascem das redes digitais, mesmo nos poucos casos em que
apresentavam uma origem presencial, que, uma vez reunidas a uma dimensão
reticular, mudam de forma e características. A matriz digital e informativa
mantém-se também quando tais formas de participação assumem formas de
ocupação do espaço público, manifestando nas ruas ou ocupando as praças, na
medida em que tais práticas são lmadas, comentadas e narradas em tempo real
on-line e então postadas nas redes. Essas assumem não mais as aparências de
uma manifestação local, ocorrida em um “hic et nunc”, mas as de um ato
conectivo que reverbera em todos os recônditos do planeta. A dimensão
ecológica de tais formas de con itualidade apresenta-se não mais como as
aparências de uma con itualidade local e nacional, mas com aquelas de um
con ito atópico, que ocorre em um tipo de geogra a material e informatizada
ao mesmo tempo.
2. Não centralidade da luta pelo poder A segunda característica é a estranheza
comum de tais formas de participação na luta pelo poder. Todas as formas de
política e de participação na história da cultura ocidental têm compartilhado o
espaço comum da representação e da disputa pelo poder. Em tal âmbito, deu-se
a dinâmica que caracterizou e endereçou tais formas de participação. As diversas
formas e os diversos movimentos net-ativistas não habitam tal tipo de
con itualidade, não lutam pelo poder nem participam das corridas eleitorais
pela disputa do consenso. Não tendem à institucionalização e permanecem fora
das dinâmicas e dos espaços da contraposição política. Do movimento
neozapatista ao Anonymous, do Occupy Wall Street aos Indignados, até a
Primavera Árabe, as ecologias comunicativas do net-ativismo têm criado
dinâmicas colaborativas de participação sem partidos e em oposição explícita a
esses.
3. Con ito linguístico que exprime claramente uma dimensão alheia às
lógicas políticas da modernidade A dimensão colaborativa não mais
sujeitocêntrica das formas de participação nas redes digitais cria uma distinção
qualitativa que posiciona as diversas formas de net-ativismo no interior de uma
dimensão linguística inovadora. Um de seus pontos comuns é a ausência da
palavra líder e a difusão, em oposição, do termo “porta-voz”, assim como a
recusa da delegação e das representações dialéticas do pensamento político
moderno (esquerda-direita). A linguagem em rede de tal ecologia mostra
claramente a emergência de palavras que nada têm a ver com as fórmulas e
expressões da política moderna, as T.A.Z. – Zonas Autônomas Temporárias – o
Subcomandante, os tactical media, os meet upps, os Anonymous, as redes etc.,
expressões de uma busca e de práticas de experimentação originais. Outra
expressão importante de tal distinção linguística é a dimensão não só ocidental
dos signi cados produzidos pelo net-ativismo. Do seppuku de Luther Blissett,
passando pelos caracóis zapatistas, até as redes indígenas amazônicas, as formas
net-ativistas introduziram, nos signi cados da participação, dimensões e formas
linguísticas extraeuropeias.
4. Desenvolvimento de práticas e interações colaborativas e ausência de
hierarquias formais (a participação sem líderes) As formas de net-ativismo não
apresentam hierarquias, assumindo a forma da rede em sua perspectiva
distribuída, e exprimem dinâmicas emergentes e informais que não se
con guram como uxos informativos piramidais, os quais partem de um centro
emissor em direção à periferia, mas como uxos múltiplos provenientes,
espontaneamente, de todas as partes. A forma rede torna-se, portanto, além de
uma dinâmica comunicativa, também uma forma organizadora que
tendencialmente impede a construção de hierarquias formais, realizando
práticas de participação e interação sem líder, continuando uma tradição que se
mantém, como visto, desde as primeiras experiências de con itualidade net-
ativistas.
5. Anonimato e desenvolvimento de uma cultura antipersonalística A
interação descentralizada e colaborativa torna possível um tipo de participação
sem formas de centralização. Tanto nos casos de Luther Blissett, dos
neozapatistas, dos Anonymous, como do Occupy Wall Street ou da Primavera
Árabe, difundiu-se na rede uma cultura da participação anônima cujo
signi cado transcende a dimensão estratégica de defesa da própria identidade
para alcançar a dimensão maior de uma explícita e consciente desaparição do
sujeito. As formas de interação net-ativistas são antipersonalísticas e
con guram-se como o conjunto de interações de dados, pessoas, uxos
informativos, superando as dinâmicas personalísticas da política moderna e
tornando a ação algo diverso daquilo traçado pelo sujeito no espaço.
6. Recusa do diálogo com as instituições Em grande parte das formas de net-
ativismo, pode-se veri car a recusa a priori de qualquer forma de diálogo com as
instituições. A origem de tal recusa não reside apenas em um sentimento de
ruptura e de radicalismo, mas deve ser procurado, sobretudo, na dimensão
linguística que não se enquadra nas formas da dialética sujeitocêntrica,
dimensão essa que não pode mais se exprimir como oposição ou antagonismo,
mas como anomalia. A ausência de diálogo requer, portanto, não somente um
tipo de contraposição identitária ou ideológica, mas uma localidade linguística
diversa, ou seja, uma superação consciente dos signi cados e das palavras
produzidas pela tradição política moderna ocidental.
7. Ausência de uma ideologia comum A dimensão conectiva das redes leva à
agregação de indivíduos e não apenas de grupos organizados e movimentos
estruturados. A passagem dos media de massa aos personal media marca o início
de uma nova ecologia da participação que permite a cada indivíduo, por si
mesmo, não só acessar diretamente informações, mas exprimir, de modo
original, a sua participação. O net-ativismo tem visto surgir, nos últimos anos,
novas dinâmicas de participação que tem reunido, nas ruas conectadas, pessoas
diversas entre si, com pontos de vista e percursos distintos, criando uma estética
oposta àquela ideológica das manifestações políticas da modernidade. Nessas
últimas, além das palavras de ordem, destacavam-se as bandeiras, símbolos
compartilhados que homogeneizavam e dirigiam a multidão. Nas atuações net-
ativistas, além da ausência das bandeiras, desenvolve-se uma cultura da
autonomia individual de pensamento que se exprime tanto na recusa dos
símbolos tradicionais como na heterogeneidade dos conteúdos compartilhados,
que exprimem formas de agregação de diversos – e não, como na tradição
política moderna, formas de agregação de iguais.
8. A não permanência e a tendência à desagregação, que de nem tais ações de
con itualidade como práticas temporárias e intermitentes, tendentes à sua
própria desaparição Outro aspecto é constituído pela dimensão não permanente
de tais movimentos, que, não tendo uma estrutura institucional, hierarquias ou
estratégias precisas, tendem à desaparição. Surgem em momentos especí cos e,
muitas vezes, têm vida breve, assumindo as dinâmicas emergentes, associativas e
desagregadoras das redes. Em muitos casos, tal caráter fora também teorizado,
como nos casos de L. Blissett, H. Bey, do neozapatismo, tornando-se, assim,
uma explícita dimensão das práticas net-ativistas. Mesmo quando não explícita,
a dinâmica histórica das formas de net-ativismo mostra claramente a tendência
à não permanência de suas formas, como testemunhamos em diversos
movimentos e revoltas no Norte da África, na América Latina – caso das
Jornadas de Junho, no Brasil, ou de Yo Soy 132 no México – ou na Europa,
como em Il Popolo Viola, na Itália, ou Geração À Rasca, em Portugal etc.
9. Defesa da liberdade de acesso de todos a todas as informações Um tema
comum em quase todas as formas de net-ativismo é a reivindicação do acesso
generalizado às informações e às redes. Tal questão assumiu diversas formas, dos
movimentos para a difusão do software livre às críticas em direção aos grandes
canais de distribuição das informações. Reconhece-se que, quase sem exceção,
todas as formas de con itualidade desenvolveram-se no contexto das grandes
vias das redes, utilizando as principais arquiteturas existentes (Facebook,
Youtube, Twitter etc.).
10. Passagem das práticas e das estratégias políticas ao princípio da ação
emergente O particular tipo de interação colaborativa realizada
tecnologicamente estabelece uma nova ecologia, não mais limitada ao elemento
humano e aos espaços da civitas, mas estendida à tecnologia, às informações, aos
circuitos e aos territórios. Os uxos informativos e as tecnologias de acesso e
distribuição das informações são já parte integrante das formas de con ito e das
arquiteturas de interação, não mais sendo, assim, limitados aos espaços da esfera
pública e da opinião, mas abertos a um tipo de ativismo colaborativo. Resulta
disso o advento de uma dimensão emergente e imprevisível das práticas
colaborativas net-ativistas, que não apresentam mais as dinâmicas políticas
estratégicas, orientadas por objetivos e nalidades, mas aquelas reticulares e
emergentes das redes.
Capítulo 7
O NET-ATIVISMO E AS DIMENSÕES ECOLÓGICAS DO
AGIR DAS REDES DIGITAIS: 20 TESES EM BUSCA DE
UMA LINGUAGEM

A
s culturas ecológicas contemporâneas, as práticas de sustentabilidade,
os movimentos de ativismo digital que marcaram a Primavera Árabe e
os protestos em curso em todas as latitudes – a partir de formas de
con ito e de participação realizadas por meio das interações digitais em rede,
do acesso a dados informativos e das dinâmicas dos dispositivos móveis – são
claras expressões de um novo tipo de ação social, não mais direcionada ao
externo, não mais localizada no contexto dos conteúdos ideológicos ou
motivada pelos signi cados políticos da modernidade ocidental, nem resultada
somente de determinismo técnico externo.
Denominamos a complexidade de tais interações com o termo “net-
ativismo”, que exprime o conjunto das ações em rede que resultam da sinergia
entre atores de diversas naturezas – pessoas, dados, softwares, dispositivos, redes
sociais digitais, territorialidades informativas etc. – que tecem a emergência de
um novo tipo de ecologia (eko-logos) não mais opositiva e separatista, mas
estendida não só aos elementos biológicos não humanos, mas também às
tecnologias informativas, às entidades territoriais, às diversas superfícies,
capazes de conectar e de fazer interagir tudo o que existe no interior da
biosfera.
Diante dessa importante transformação, torna-se necessário repensar a ideia
de ação para além das dimensões antropomór cas e subjetivas e de suas
explicações sociais que limitam, tradicionalmente, o campo da ação às
dimensões humana e associativa.
A partir de tal consideração, é preciso buscar uma nova linguagem capaz de
descrever a complexidade de tais interações que exprimem uma dimensão
conectivo-reticular e uma condição habitativa inédita e difícil de expressar.
Escolhi, assim, a forma sintética de pequenas teses para começar a formular
uma linguagem que tente se aproximar da hipercomplexidade dos
emaranhados das interações net-ativistas: 1. As formas de con itualidade
difundidas nos últimos anos em todas as regiões do planeta não são apenas a
expressão de um novo tipo de con itualidade social, mas a consequência de
uma profunda alteração da condição habitativa que se caracteriza pela
agregação em rede, por meio de diversos tipos de conectividade, de indivíduos,
dispositivos de interação, uxos de informações, bancos de dados e
territorialidades informatizadas.
2. Tal interação singular é o resultado da difusão em larga escala, de um lado,
dos dispositivos móveis de conexão (tablets, smartphones, notebooks etc.) e de
formas de conexão wi- (banda larga, via satélite, RFID etc.), de outro, da
proliferação das redes sociais e, sobretudo, da difusão da Internet das coisas, as
quais deram origem a uma particular forma conectiva ecológica, não só social,
capaz de conectar, em tempo real, pessoas, dispositivos, informações,
territórios, dados e todo tipo de superfície. A complexidade inédita de tal
ecologia é expressa, no limite, também pelas materialidades provenientes das
impressoras 3D, que produzem formas experimentais de ecologias nem apenas
digitais, nem apenas materiais.
3. Tal interatividade representa o advento de formas conectivas e ecológicas
do habitar que exprimem um tipo particular de interação, o qual associa
pessoas, dispositivos, uxos informativos, bancos de dados e territorialidades
em um novo tipo de interação reticular colaborativa, não mais dizível a partir
da linguagem teórica do social desenvolvida pelas disciplinas positivistas
europeias, nem delimitável por meio da tradicional dimensão antropomór ca
das relações sociais e políticas.
4. As características de tais interatividades são determinadas por um novo
tipo de ação em rede, não mais expressão da atividade de um único sujeito-
ator, nem consequência de um tipo de movimento de um ator em direção ao
exterior e ao território.
5. Os diversos membros que intervêm e contribuem para a realização de uma
ação nas redes digitais não são, portanto, apenas os sujeitos humanos, mas
também todos os conjuntos de dispositivos, tecnologias, circuitos, bancos de
dados e todo tipo de entidade-ator que “deixa rastro” (B. Latour).
6. É necessário repensar, pois, a qualidade da ação expressa pelas formas de
ativismo em rede, dado que a mesma não expressa apenas o agir de um sujeito
(seja esse um indivíduo, grupo ou movimento), mas resulta ser o resultado
imprevisível da conexão colaborativa de diversos actantes e atores-rede humanos
e não humanos (B. Latour).
7. A forma rede nos obriga a repensar as características da qualidade das
interações que se disseminam em seu interior e que desenvolvem geometrias
não lineares, ou seja, nem frontais – direcionadas ao exterior (de A para B) –,
nem inversas, isto é, do exterior para o interior (de B para A). A condição
ecológica das interações colaborativas em rede leva-nos a descartar também a
perspectiva dialógica (de A para B e de B para A) enquanto simpli cadora do
conjunto e da complexa simultaneidade das interações “a-direcionais” em rede.
8. Ao mesmo tempo, parece oportuno descartar também a descrição das
interações digitais como o simples resultado de dinâmicas agregadoras e de
associações, surgidas a partir de controvérsias ou das dinâmicas associativas de
diversos actantes (B. Latour). A complexidade das interações em redes
conectadas apresenta-se, pois, como uma complexidade maior, marcada por
uma dimensão informativa que antecede as interações agregadoras e que
estabelece uma particular dimensão conectiva capaz de alterar as próprias
substâncias dos membros da rede.
9. A distinção entre ação e ato (no sentido do αìον grego, que ressalta sua
dimensão espontânea, impermanente e sua não reprodutibilidade) quali ca a
qualidade das ações em rede como a emergência de um ato conectivo (Di
Felice) que interpreta o agir não mais do ponto de vista do sujeito-ator, nem
do sujeito teleológico – consequência de uma estratégia racional humana –,
mas a partir da dimensão ecossistêmica e conectiva própria dos contextos
reticulares.
10. O ato conectivo con gura-se, assim, como a expressão de uma forma
comunicativa do habitar (Di Felice) instável e emergente que restabelece
continuamente, por meio da intermitência das práticas conectivas das
interações entre diversas substâncias, as características e as dimensões da
condição habitativa.
11. Mais que parte da esfera pública e da dimensão opinativa e política, as
práticas do net-ativismo são a expressão mais evidente da emergência de uma
nova cultura ecológica não mais sujeitocêntrica nem tecnocêntrica, mas
portadora de uma ontologia relacional temporária (M. Heidegger) e de uma
dimensão conectiva especí ca que altera continuamente forma e signi cados
das diversas realidades conectadas informativamente.
12. Tal ato conectivo dissemina-se, portanto, fora do social, ou seja, fora da
dimensão urbana e política ocidental, enquanto portadora de uma ecologia
reticular diversa, que não pode ser explicada apenas por meio de sua dimensão
comunicativa, se por comunicação entendemos somente a dimensão midiático-
informativa das trocas de informações.
13. Emerge, assim, uma ecologia interativa composta de um conjunto de
redes interativas e abertas que não pode mais ser pensado como um sistema ou
um conjunto holístico coerente, mas como a sucessão intermitente de variáveis
níveis de agregação e desagregação.
14. As ecologias reticulares (Di Felice), por meio da geração de conexões
instáveis e não duradouras, produzem a constante rede nição de cada “actante”
(humano e não humano) e de cada substância a partir do distanciamento em
relação a sua condição originária, provocado pelo conjunto das interações
conectivas.
15. A complexidade de tais interações é claramente visível nas ecologias de
interação dos movimentos net-ativistas. De fato, a maioria desses surgiu nas
redes digitais e a partir das redes sociais e, ainda que passem a produzir ações
nos espaços urbanos, continuam on-line lmando e transmitindo as próprias
ações, que são, assim, rapidamente transformadas em informações. Tal
multiplicidade e interatividade conectiva levam-nos a mudar continuamente
sua estratégia e seus próprios objetivos, descobrindo novas nalidades e formas
agregadoras durante o próprio desenvolvimento de suas ações, adquirindo um
singular tipo de interação always online.
16. Ao contrário do agir comunicativo (J. Habermas) e da tradição
conceitual do agir político (que vai de Aristóteles a Hannah Arendt), o ato
conectivo exprime um agir ecológico, nem sujeito-cêntrico nem racional, mas
experiencial e colaborativo, produzido pelas interações ecossistêmicas de um
conjunto de atores-rede (B. Latour), os quais, ao entrarem em relação de
conectividade, dão vida a um habitar e a uma ecologia comunicativo-
conectiva.
17. Enquanto resultado de interações conectivas entre indivíduos,
dispositivos, uxos informativos, bancos de dados e territorialidades, o net-
ativismo exprime uma forma de con itualidade pós-política (Di Felice), que não
habita mais os espaços urbanos ou identitários nacionais das esferas públicas
antropomór cas, mas as atopias conectivas, próximas às dimensões
cosmopolíticas (I. Stengers) interativas.
18. Assistimos hoje à passagem das dimensões ecológico-políticas e
antropocêntricas – organizadas por meio das saturadas formas eleitorais de
representação e baseadas na gestão do poder em sua monodimensão público-
humana – em direção a práticas de interação atópicas (Di Felice) que
expressam a formação de condições habitativas reticulares e emergentes, que,
por meio das dimensões de conectividade, deslocam, dos Estados nacionais e
da política, nossa condição habitativa em direção à biosfera e às
infoterritorialidades (A. Abruzzese), nem internas, nem externas de Gaia (J.
Lovelock).
19. O caráter impermanente e temporário (H. Bey) do ato conectivo nos leva
a de nir o net-ativismo como a dimensão de um agir colaborativo “a-
institucional” que toma forma desenvolvendo agregações e redes e que tende à
desagregação, ao seu próprio desaparecimento, substituindo, assim, a dimensão
política do poder pela dimensão ecossistêmica e interativa própria dos
organismos vivos e das formas emergentes de adaptação aos contextos abertos
(E. Morin) e interativos.
20. As redes e as interações conectivas marcam a passagem de uma dimensão
ecológico-habitativa antropomór ca, urbana, pública e política para uma
condição habitativa interativa, biosférica e colaborativa, que exprime o
deslocamento do hábitat moderno dos Estados nacionais, da esfera pública e
das democracias parlamentares para o hábitat interativo das redes ecológicas
digitais.
P A R T E

IV
AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS
TRANSORGÂNICAS
A
s formas de conexão geradas após o advento da banda larga, que têm
levado à extensão das redes digitais, às coisas (Internet of things) e às
formas arti ciais de inteligência e dos dados (Big Data), começaram, já
há alguns anos, a colocar em rede as biodiversidades, os territórios e os diversos
tipos de ecossistemas, inaugurando uma inédita condição habitativa conectiva,
nem tecnológica nem humana. De tal transformação, surge um novo tipo de
ecologia, acessível e habitável somente por meio de um particular tipo de
interação que ocorre entre diversas substâncias (orgânicas e inorgânicas),
conectadas digitalmente e, por isso, capazes de um singular tipo de interação a-
dinâmica que estimula a alteração de suas formas e seu estado originário.
Nos contextos atópicos das redes de última geração, as características
conectivas não podem mais ser descritas como as práticas dos dinamismos
sociais, coletivos, agregadores e sociotécnicos. Os diversos tipos de substâncias
conectadas em rede, próximas e distantes ao mesmo tempo, não parecem
desenvolver formas sociais de interação, mas a alteração de sua própria
composição. Mais que as formas associativas de coletivos criados pela ação
agregadora de actantes, humanos e não humanos (B. Latour), as ecologias
reticulares parecem formar condições habitativas mutantes, que, por meio de
um processo de transmutação de cada substância em informação e código
binário, permitem a conexão e alteração contínua de seu próprio estado de
natureza originário. Uma condição habitativa e um singular tipo de ecologia
reticular sem sujeitos nem objetos, mas também sem ação, ou seja, sem
nenhum tipo de deslocamento agregador e social em direção a um ponto.
Habitar a complexidade ecológica reticular signi ca, portanto, não somente
ser imerso e invadido por um emaranhado in nito de dados, mas também, ao
mesmo tempo, ser transformado em dados. As últimas gerações de conexão,
além de terem incrementado exponencialmente o uxo de dados (Internet of
things e Big Data), começaram a conectar entidades e substâncias diversas em
uma rede de interações que supera a dimensão comunicativa e social.
A natureza de tal ilimitada forma de interação, que conecta tudo o que existe,
merece uma análise aprofundada que não pode limitar-se à dimensão
associativa e emergente das redes sociais, mas pressupõe a reproblematização da
própria ideia de ação e de comunicação em uma perspectiva ecológica
transubstanciativa, capaz de interpretar as dimensões habitativas
transorgânicas. Nessas, desenvolvem-se formas de interação sem ação, uma vez
que não estão baseadas nem na capacidade ativa do sujeito nem nas
performances da técnica. Tais ecologias conectivas reticulares parecem
promover particulares formas de relações “aorísticas” (ilimitadas) de difícil
narração, que, mais do que estender as partes e os membros conectados,
permitem a criação de uma condição habitativa conectiva, instaurando a
transformação de cada substância e matéria em uma substância nova,
informativa, conectiva e material, ao mesmo tempo.
Tal alteração habitativa que marca nossa contemporaneidade não é, portanto,
o resultado de um dinamismo associativo sociotécnico, nem efeito de uma
alteração perceptiva ou cultural, mas a instauração de um novo tipo de ecologia
informativa, multiforme, reticular, mais complexa que sua dimensão material e
biológica e, portanto, diversa dessa, a qual se articula na conexão e na alteração
contínua de diversos tipos de substâncias informatizadas. Além da essência
supostamente natural e daquela tecnodeterminista, a dimensão reticular e
conectiva das ecologias contemporâneas nos convida a uma superação das
tradicionais categorias dicotômicas de interpretação (homem-natureza;
homem-técnica; técnica-natureza), abrindo nossa re exão a signi cados e
conceitos novos.
*
Capítulo 8
ECOLOGIAS TRANSORGÂNICAS

8.1 De planeta a organismo vivo: Gaia e a crise


da ecologia ocidental

E
ntre os cerca de dois bilhões de anos passados desde as primeiras formas
de proto-vida existentes em nosso planeta – as arqueobactérias e as
bactérias seguintes –, até as primeiras formas de organismos vivos –
surgidos em torno de 500 milhões de anos atrás –, o nascimento dos primeiros
primatas só pode ser detectado por volta de 70 milhões de anos atrás e o dos
nossos primeiros antepassados, há apenas 17 milhões de anos. A história da
vida em nosso planeta não se formara, como aprendemos na escola, por meio
da evolução separada de um conjunto de espécies diversas e isoladas: ao
contrário, no interior da biosfera, cada animal, cada vegetal e cada elemento
geológico puderam sobreviver e envolver-se, somente enquanto entidades
abertas, comunicantes e alteráveis, por meio das próprias interações
desenvolvidas entre si. Tal constatação levou, nas últimas décadas, a uma
importante mudança no que diz respeito à concepção da formação da vida e a
nossa própria ideia de planeta. A terra, o globo terrestre, nosso planeta, pacha
mama e, por último, Gaia, assumiram, assim, após tais novas interpretações, as
formas de outra ecologia, não mais apenas geográ ca ou material, como a
queria sua versão territorial e externa, mas viva e interagente.
O processo de transformação da percepção ecológica de nosso planeta tem se
desenvolvido em várias etapas ao longo da história e passado por diversas
alterações que transformaram, de tempos em tempos, a con guração e a forma
a ele atribuída. [1] A partir de um processo extremo de síntese, é possível
identi car um percurso composto por cinco fases principais, cinco momentos
históricos que hoje podemos reconhecer como importantes transformações
paradigmáticas da forma ecológica atribuída a nosso planeta. Tais etapas
marcam um percurso não necessariamente evolutivo, que assinalou a passagem
do hemisfério terrestre, composto por superfícies de terras e águas, à atual
concepção que descreve as formas e as interações do nosso hábitat como
aquelas de um organismo vivo.
Uma primeira importante fase que marca a mudança inicial paradigmática da
ideia-forma ecológica de nosso planeta foi, evidentemente, aquela que viu o
nascimento do planeta em sua totalidade, advinda após uma série de viagens e
expedições marítimas transoceânicas. Da navegação que possibilita a chegada
de Cristóvão Colombo às Américas, em 1492, à posterior viagem de Américo
Vespúcio, em 1497, passando pela circunavegação da África e a consequente
descoberta do caminho para o Oriente por Vasco da Gama, em 1498, até
chegar, então, ao término dessa primeira fase, com a circunavegação do globo
cumprida por Magellano, em 1521, o qual consegue percorrer e demonstrar,
de nitivamente, a esfericidade do planeta.
Uma segunda importante etapa na história da mudança da ideia ecológica de
nosso planeta é aquela realizada pelos estudos de Galileu e Copérnico no
século XVI, que, poucos anos após as várias circunavegações, transformaram a
superfície terrestre, de extensão plana, estática e estável, para globo rotacional,
em movimento constante no interior de uma galáxia cheia de planetas que
realizam evoluções circulares ao redor do sol. Outra terceira fase de
transformação da ecologia planetária é inaugurada com o início dos estudos
sobre o subsolo (geologia) e dos fósseis (paleontologia), os quais, além de dar à
ideia ecológica de nosso planeta nova dimensão, redirecionando a atenção da
superfície para o subsolo, torna possível a reconstrução de fases e períodos
evolutivos, conferindo-lhe uma história [2] baseada em um percurso mineral e
na acumulação de fases histórico-geológicas distintas.
Responsáveis por tal importante transformação serão os estudos sobre a
deriva dos continentes realizados no início do século passado pelo cientista
alemão Alfred Wegener:
É nos anos sessenta que surge um novo cosmo, e, junto a ele, uma nova Terra.
A teoria das placas tectônicas permite, então, conectar as ciências da terra em
uma concepção de conjunto, e o planeta, deixando de ser uma bola, um
suporte, um casco, torna-se um ser complexo que tem sua própria vida, as
próprias transformações, a própria história: esse ser é, ao mesmo tempo, uma
máquina térmica que incessantemente se autorreorganiza. A crosta terrestre
recobre o manto, uma espécie de ovo quente, que envolve um núcleo onde
reina um calor intenso. [3]

A quarta forma ecológica, historicamente atribuída ao nosso planeta,


coincide com um outro importante desembarque, aquele realizado na lua pela
sonda Apollo 11, em 20 de julho de 1969, e precedido pelo primeiro voo
circunterrestre, realizado em 1957 pelo Sputnik. [4] Em seguida a tal
desembarque, foram difundidas, pela primeira vez, imagens do globo terrestre
visto da lua, ou seja, desde uma perspectiva exotópica. De tal inédita visão,
nosso planeta nos parecia como um pequeno planeta, perdido em um cosmo
entre um número in nito de outros planetas, algo similar a uma pequena
astronave, com seu equipamento em uma viagem em direção ao in nito. Mais
uma vez, a percepção sobre nosso hábitat terrestre seria alterada e começaria a
assumir uma con guração inédita que exprimia as formas de uma nova
ecologia planetária cósmica. A última transformação, que constitui nossa linha
imaginária de reconstrução das alterações da ideia ecológica de nosso planeta,
nossa quinta mudança paradigmática, surge da recente difusão da concepção
que descreve a terra e nosso planeta como um organismo vivo, conhecida como
a teoria de Gaia.
O primeiro cientista a pensar a terra como um organismo vivo foi Vladimir
Vernadsky, em seu livro Biosfera, de 1926. Nessa obra, a biosfera é descrita
como uma na membrana cuja espessura é considerada como uma extensão
compreendida entre 45 e 60 km, que mede a distância que vai do leito do mar
à estratosfera, no interior da qual estão incluídas todas as formas de vida. À
superfície que envolve nosso planeta é atribuído o nome de Gaia, conferindo-
lhe a identidade de um organismo vivo. Devemos a James Lovelock o
aperfeiçoamento de tal concepção, cujos estudos, a partir dos anos 1970,
descreveram Gaia como um organismo vivo, formado por um corpo unitário
composto pela ora, pela fauna e por diversos componentes geoquímicos, os
quais, interagindo entre si, contribuiriam para a formação do clima do planeta
e para a perpetuação das condições de vida a partir da manutenção de um nível
de equilíbrio.
Segundo a teoria desenvolvida por Lovelock, em Gaia existe uma conexão
próxima entre o mundo animal, o mundo vegetal e o mundo mineral. O
oxigênio e o nitrogênio que existem no ar provêm, de fato, dos animais e dos
vegetais, assim como, de modo análogo, os depósitos de calcário, presentes no
solo e nas rochas, não são mais do que o resultado de sedimentações de
diversos micro-organismos da decomposição óssea dos corpos dos animais. De
tal constatação, resulta que a evolução da atmosfera, a das rochas e da
biodiversidade não só são entre si inseparáveis, como comporiam as partes de
um único organismo, intervindo em sua temperatura e em seu nível geral de
equilíbrio. Prova disso seria o preciso e rígido equilíbrio dos parâmetros do
nível de oxigênio, cujo simples aumento de cerca de 2% levaria a uma
possibilidade de incremento dos incêndios em 60% – bastaria um aumento de
apenas 4% para transformar o planeta inteiro em uma bola de fogo. Esse
delicado e preciso equilíbrio demonstraria a estreita interdependência entre o
nível de oxigênio, a ora, a fauna e os minerais, todos componentes, membros
do mesmo organismo e conectados em relação de interdependência. [5]
Os estudos de Lovelock produziram, além de uma alteração qualitativa da
perspectiva ecológica – baseada na translação de uma condição habitativa
antropocêntrica a uma condição habitativa geocêntrica, no interior da qual a
espécie humana não ocupa mais nem o centro nem o ápice da pirâmide –, um
conjunto de perspectivas inquietantes. Uma das mais conhecidas é, sem
dúvida, aquela relacionada à consciência do advento de uma alteração climática
e da consequente e provável extinção iminente de nossa espécie. As causas de
tal ameaça estariam concentradas no impacto da ação humano-industrial na
geosfera. De tal constatação resultaria, como veremos a seguir, a necessidade de
evidenciar os limites da concepção sujeitocêntrica do agir e a evidente
justi cação da construção de uma nova teoria ou ideia de ação. Essa última não
mais pode ser narrada como o movimento do sujeito em direção a um ponto,
tampouco como a visão de agregação colaborativa de “actantes” (B. Latour)
diversos, mas como a conexão invisível de diferentes substâncias.
A perspectiva de uma ecologia planetária conectada e viva, como evidenciado
pela ideia de Gaia, levou, inevitavelmente, à discussão da ideia ocidental de
ecologia. Essa, apesar da alternância de suas várias atribuições e as suas
múltiplas formas históricas, manteve comuns, todavia, alguns de seus aspectos
que formaram, no âmbito da tradição ocidental, a ideia e as características da
dimensão ecológica e da própria condição habitativa das populações ocidentais.
Tais características basearam-se, em nosso ponto de vista, em alguns
pressupostos que preferimos denominar mitos, na medida em que pertencem
às narrativas sobre a natureza e o humano desenvolvidas pelo Ocidente ao
longo dos séculos, formadas a partir das especí cas concepções metafísicas e
losó cas e das ontologias elaboradas pelo pensamento clássico. Enquanto
narrativas históricas, esses mitos são hoje postos em discussão enfaticamente
pela perspectiva de Gaia, ou seja, pelo tipo de complexidade e de ecologia que
veio a se de nir nas últimas décadas e que constituiu claro desa o ao
pensamento ecológico ocidental e aos seus mitos, o que, como proposto a
seguir, podemos identi car a partir de cinco características principais: a
externalidade, o antropocentrismo, o essencialismo, a fragmentariedade e a
dimensão política das interações.
O primeiro é o mito da ideia de uma ecologia externa, que constituirá a relação
homem-ambiente a partir da perspectiva do sujeito que observa e conhece a
natureza como algo diverso de si e uma realidade externa e separada, enquanto
território habitado por diversidades vegetais, animais etc. A partir desses
pressupostos ecológicos, o sujeito ocidental constrói, historicamente, a ideia de
um agir interpretado como uma ação projetada em direção ao exterior e ao
ambiente circundante (“ambiente”, do latim ambire: o que está no entorno),
percebendo-se não como parte da ecologia e da biodiversidade, mas como
sujeito transitivo, diverso e outro. As origens de tal mito devem ser veri cadas
na história contada no livro do Gênesis, na qual eram identi cadas e
estabelecidas as hierarquias das diversas espécies criadas, colocando, no ápice
dessas, a espécie humana, distinta por ser a única criada à imagem e
semelhança de Deus: E foi a tarde e a manhã: quinto dia. E Deus disse: “Que a
terra produza seres vivos segundo a sua espécie: gado, répteis e feras selvagens
segundo a sua espécie”. E assim aconteceu: Deus fez as feras selvagens segundo
a sua espécie e o gado segundo a sua espécie e todos os répteis da terra segundo
a sua espécie. E Deus viu que isso era bom. E Deus disse: “Façamos o homem
à nossa imagem, à nossa semelhança; e que domine os peixes do mar e os
pássaros do céu, o gado, as feras selvagens e todos os répteis que se movem
sobre a terra”. E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o
criou; macho e fêmea os criou.
E Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a
terra; sujeitai-a e dominai os peixes do mar, os pássaros do céu e todos os seres
vivos que se movem sobre a terra”.
E então Deus disse: “Eis que vos dou toda erva que produz semente e que está
sobre toda a terra e toda árvore na qual há o fruto que produz semente: serão
o vosso alimento. A todas as feras selvagens, a todos os pássaros do céu e a
todos os répteis que se movem sobre a terra e nos quais há sopro de vida, dou
como alimento toda erva verde”. E assim aconteceu. E Deus viu o quanto havia
feito, e eis que era muito bom. E foi a tarde e a manhã: sexto dia. [6]
Além dessa tradição, encontramos uma segunda matriz do mito da
externalidade ecológica nas próprias origens do pensamento ocidental, junto
aos lósofos denominados naturalistas, que procuravam a origem das coisas
(αρχή) nos diferentes elementos da paisagem, entendida como “natureza” outra
e observável. Desde então, com várias novas atribuições e características, a
ecologia ocidental manteve-se, até a de nição de ecologia desenvolvida por E.
Haeckel em 1866, uma realidade externa e separada do sujeito observador.
Vale ressaltar que, evidentemente, no interior de Gaia, ou seja, no interior da
biosfera, não nos é dado mais o horizonte como realidade e perspectiva
externa, senão de forma ilusória. [7]
O segundo mito da ideia ocidental de ecologia, intimamente relacionado ao
da externalidade que acabamos de citar, é aquele relativo à ideia
antropocêntrica do habitar, que se con gura, enquanto narrativa, como nos
outros casos, segundo uma categoria meta-histórica, que, atravessando os
milênios, permanece intacta desde a Grécia clássica do século V a.C. até a
Modernidade, chegando a in uenciar as ecologias antropomór cas propostas
pelas ciências sociais modernas. Tal narrativa da centralidade do humano e de
sua suposta condição privilegiada em relação aos outros membros e entidades
que povoam a biosfera funda-se, segundo R. Marchesini, em alguns outros
mitos: o primeiro é o da desjuntividade, ou seja, a ideia segundo a qual o
homem é uma realidade separada e distinta de outras entidades; o segundo é
veri cável na ideia do antropocentrismo, que se exprime na concepção da
funcionalidade das outras espécies animais e outras entidades ao destino do
homem e às suas nalidades; o terceiro é o do autopoietismo, ou seja, aquele
relativo ao mito, difundido nas loso as e nos saberes humanísticos, da total
independência e autossu ciência da realidade humana em relação ao mundo
externo, à técnica; e, por m, o quarto, aquele relacionado ao mito de sua
presumida centralidade, que relata o homem como medida de todas as coisas e
entre supremo. [8]
A ecologia antropocêntrica, fundada na suposta centralidade e superioridade
da espécie humana, é responsável, sempre segundo R. Marchesini, pela
invenção do antropocentrismo ontológico, expressão de dois diversos modelos: O
antropomor smo, que leva a dar uma conotação antropocentrada a tudo
aquilo que não é humano em nome de uma espécie de recursividade do
universo, onde o homem representa a regra fundamental; b) o
antropocentrismo separatista, que utiliza aquilo que não é humano em modo
funcional para colocar em evidência a descontinuidade. [9]
O antropocentrismo ontológico in uenciou as ideias de espaço e território
no Ocidente, atribuindo a essas realidades externas a condição instrumental e
funcional de cenários da ação do sujeito e de seu poder de atuação.
Um terceiro mito que caracteriza a ideia ocidental de ecologia é aquele
relativo à sua dimensão essencialista e natural. Segundo a interpretação do
pensamento ocidental, seja como criação – como proposto pelo pensamento
cristão –, seja como realidade externa ou coisa material – como sustentado pelo
pensamento losó co e pelo pensamento cientí co –, a ideia de ecologia,
interpretada como externalidade, coincidia com a realidade natural das coisas.
Como criação ou matéria externa, apresentava-se o sujeito como realidade
objetiva e natural, tanto como emanação de Deus quanto como mundo
fenomênico a ser observado, medido e descoberto.
Tal percepção essencialista, que aplicava ao mundo e à realidade externa um
estado de natureza, atribuía à mesma morfologia dinamismos próprios,
externos e independentes daqueles humanos e daqueles produzidos pelo
homem e pela técnica. Seja como mundo fenomênico, seja como realidade
material, a natureza, no pensamento ocidental, enquanto externa e outra em
relação ao homem, constituía uma ecologia separada que se coloca, diante do
sujeito, seja como coisa (res extensa), seja como prova da criação ou como
conjunto de fenômenos, movidos por leis perfeitas e universais (I. Newton).
Nem humana nem técnica, a ideia de natureza foi interpretada no interior do
pensamento ocidental, com poucas exceções, como uma ecologia à parte, pura
e natural, e, sobretudo, distante do humano. O conjunto das diversas
qualidades (essencialista, antropomór ca e externa, próprias da ideia ecológica
produzida pela tradição losó ca e cientí ca do Ocidente) inventa uma
concepção fragmentada, composta por partes separadas e dialogantes. Uma
ecologia formada por diversas ecologias, a humana, a social, a econômica, a
biológica etc.
Um exemplo emblemático de tal concepção que constitui, em nossa
reconstrução, a quarta característica do pensamento ecológico ocidental nos é
dada pelo famoso texto de F. Guattari, As três ecologias, no qual são de nidas as
características das ecologias mentais, das sociais e das ambientais: “as três
ecologias devem ser concebidas como o âmbito de interesse de uma disciplina
comum ético-estética e, ao mesmo tempo, como distintas, umas das outras, do
ponto de vista das práticas que as caracterizam”. [10]
A concepção fragmentária de ecologia e sua subdivisão em diversos tipos
comportam, inevitavelmente, a necessidade de um diálogo entre esses e o
desenvolvimento de uma diplomacia política.
O desenvolvimento de uma dimensão política e diplomática é a quinta e
última característica da ideia ocidental de ecologia. Existem duas linhas
principais em seu contexto. Uma primeira de tipo “ecologista”, que, constatado
o aumento das emissões de CO2, a destruição das orestas, o aumento da
temperatura do planeta, o derretimento das calotas polares etc., propõe um
novo tipo de parlamento, aberto aos não humanos, para poder dialogar e
construir, junto às diversas substâncias e elementos que habitam a biosfera,
políticas racionais que reduzam o impacto e consigam produzir formas de
desenvolvimento sustentável. Esse primeiro grupo contempla uma inversão
ética e de valores capaz de contemplar não apenas os interesses de nossa
espécie, mas também daqueles dos “não humanos” e dos diversos membros que
compõem e habitam a biosfera. Podem, por exemplo, ser contemplados nesse
grupo não só os diversos movimentos ambientalistas, mas também os governos
e as empresas que participaram e assinaram documentos da última reunião
COP 21 de Paris, assim como todos os intelectuais que há tempos defendem a
causa ambiental desde uma perspectiva teórica e losó ca (I. Sachs, E. Morin,
M. Serres etc.).
Existe, depois dessa, uma segunda linha, que atribui à ideia de uma política
da natureza um signi cado metodológico, uma espécie de técnica ou um
método para enfrentar, sem necessariamente vencer, a complexidade. Além de
M. Serres, essa é uma concepção particularmente proposta por B. Latour, tanto
em Politiques de la nature, como em Nous n’avons jamais été modernes, e
retomada também por outros autores, como I. Stengers, na obra
Cosmopolitique.
A ideia de uma ecologia política parte de Latour como uma aparente crítica à
perspectiva ocidental e moderna, responsável por ter expulsado do social os
não humanos e por ter criado um parlamento composto apenas de pessoas,
consideradas os únicos cidadãos do planeta. Partindo da crítica à representação
que separa o mundo em sujeitos e objetos, Latour descreve a ecologia política a
partir de seis pontos: 1. A ecologia política não fala da natureza e nunca
pretendeu dela falar. Ocupa-se das associações complexas entre os seres […] A
natureza não está em questão na ecologia política. 2. A ecologia política não
procura defender a natureza e nunca procurou fazê-lo. Ela, ao contrário,
pretende se ocupar […] de uma quantidade ainda maior de entidades e
destinos. 3. A ecologia política nunca pretendeu servir a natureza para o seu
próprio bem […] Mas suspende nossas certezas sobre o summum bonum dos
homens e das coisas […] 4. A ecologia política não sabe o que é um sistema
ecológico-político e não age seguindo uma ciência complexa. […] Essa é a sua
grande virtude: não saber o que faz ou não um sistema. 5. A ecologia política
[…] não forma, felizmente, uma ciência certa. 6. A ecologia política é incapaz
de integrar, em um programa total e hierarquizado, o conjunto de suas ações
pontuais e particulares […] Tal ignorância sobre a totalidade é exatamente
aquilo que a salva. [11]
No âmbito da concepção política de ecologia, assim como a natureza não
aparece mais como composta por objetos, do mesmo modo, também o social
não mais deve ser pensado como a reunião de sujeitos diversos distintos: “O
social não é mais composto por sujeitos, assim como a natureza não é mais
composta por objetos”. [12] Tal perspectiva propõe, assim, a passagem para uma
concepção nem sociocêntrica nem naturocêntrica que seja capaz de reunir os
coletivos formados por diversas entidades humanas e não humanas dentro de
um parlamento comum, denominado parlamento das coisas e assim de nido:
Em seu recinto, encontram-se recompostas as continuidades do coletivo. Não
há mais verdades nuas, mas, ao mesmo tempo, não há mais cidadãos nus. Os
mediadores dispõem de todo o espaço. As luzes encontraram nalmente o seu
lugar. As diversas naturezas estão presentes, mas por meio de seus
representantes, os cientistas que falam em seu nome. As sociedades estão
presentes, mas por meio dos objetos que as sustentam desde sempre. Pouco nos
interessa que um dos representantes fale do buraco na camada de ozônio, que
outro represente a indústria química, que um terceiro represente os operários
da indústria química, um quarto, os eleitores, um quinto, a meteorologia das
regiões polares, que outro fale em nome do Estado; interessa-nos pouco o fato
de que todos eles se pronunciem sobre a mesma coisa, ou seja, a respeito desse
quase-objeto que juntos criaram, esse objeto-discurso-natureza-sociedade cujas
novas propriedades surpreendem a todos e cujas redes se estendem da minha
geladeira à Antártida, passando pela química, pelo direito, pelo Estado, pela
economia e os satélites. As malhas das redes que não possuíam um lugar
possuem agora todo o espaço. São essas que devem ser representadas, é em
torno delas que, de agora em diante, reúne-se o parlamento das coisas. [13]
A ideia de reunir as diversas entidades, humanas e não humanas, em um
parlamento, não obstante as premissas antimodernistas assinaladas por Latour,
acaba por recolocar homens, coisas, animais e entidades de vários tipos no
interior da pólis, propondo o debate, a diplomacia e a troca (parlamentar) de
propostas entre esses: Como explicar as associações de humanos e não
humanos desses coletivos em via de reagrupamento? O termo que utilizamos
aqui parece infeliz, uma vez que ninguém imagina recorrer a um buraco negro,
a um elefante, a uma equação, ao motor de um avião cumprimentando-o
como um redundante cidadão […] Escolhemos para tal m a palavra
proposições, diremos que um rio, uma manada de elefantes, o clima, El Niño,
um ministro, um município, um parque apresentam aos coletivos propostas.
[…] Mais uma vez não se trata de ontologia, nem de metafísica, mas
unicamente de ecologia política. Utilizar o vocábulo proposto permite,
simplesmente, não utilizar o antigo sistema de enunciado por meio do qual os
humanos falavam a respeito de um mundo externo, do qual eram separados
por um abismo. [14]
Como pensar em uma ou mais propostas que sejam capazes de se expressar
sem recorrer à linguagem, ou seja, sem formular enunciados, isso Latour não
explica; ao contrário, levantando a bandeira da ecologia política e
impulsionado por uma retórica dialética “enuncia”: “Para a ecologia política
não existem mundo e linguagens – não existe nada mais que uma natureza e
culturas: existem propostas que insistem em fazer parte do mesmo coletivo”.
[15]

O atalho tomado por Latour não parece nos levar a nenhuma parte nem nos
aparece como situado em uma perspectiva não moderna: pode existir talvez
algo mais ocidental e moderno do que um “parlamento” e um diálogo
“político”?
Mesmo que explicitamente declarada como “não moderna”, a proposta de
Latour não consegue narrar uma ecologia qualitativamente diversa daquela
dialética e antinômica e nos aparece, francamente, mais como a continuidade
da ampla tradição ecológica ocidental do que como a sua superação. Mesmo
pretendendo a superação explícita da perspectiva ecológica antropomór ca e
daquela essencialista, o discurso de Latour promete-nos uma interação política
e parlamentar entre proposições, as quais se pressupõem sem linguagem, mas
misteriosamente portadoras de um particular tipo de palavra “indiscutível”:
Não pretendemos que as coisas falem sozinhas, pois ninguém, nem os
humanos, falam para si mesmos, mas sempre para outras coisas. Não exigimos
que os sujeitos humanos dividam o direito à palavra, do qual são
legitimamente orgulhosos, com as galáxias, os neurônios, as células, os vírus e
as plantas […] entre o sujeito falante da tradição política e as coisas mudas da
tradição epistemológica existe um terceiro termo, a palavra indiscutível. [16]
Contemplamos a proposta da ecologia política de B. Latour, expressa no livro
Politiques de la nature, no contexto da tradição da ideia ecológica ocidental,
pois nos parece que o parlamento das coisas não dá conta de narrar outra
ecologia, mas apenas a sua realização por meio de uma dinâmica de
proposições, apresentadas pelos porta-vozes humanos, que mantêm toda
intacta a ideia de uma relação “política” entre diversos.
O que escapa a Latour e o que sua proposta ignora completamente é que,
após os processos de digitalização surgidos com a Internet das coisas, os Big
Data e a Internet of everything, todos os membros de um coletivo, coisas,
animais, pessoas, têm assumido um formato digital, tornando-se não só
informações, mas produzindo, ao mesmo tempo, conteúdos e dinâmicas
conectivas, não agregadoras, que começaram a produzir novas substâncias,
híbridas e mutantes. Não somente as coisas, os animais, os ecossistemas têm
tomado as palavras, por meio de formas de etiquetamento RFID – conhecidas
como Internet of things –, como começaram a interagir autonomamente entre
si sem mais precisar de mediadores. Em outras palavras, como veremos a
seguir, a dimensão conectiva de Gaia não tem mais nada a ver com os coletivos
de humanos, coisas e entidades variadas, mas com uma alteração da própria
substância e da condição habitativa dos humanos, coisas, entidades etc.
Ainda em outras palavras, aplicando os mesmos oportunos argumentos de
Latour contra a ideia sociológica de sociedade, expressa na frase: “Quando
falamos do social, quantos somos? Quem somos?”, podemos, do mesmo modo,
oportunamente formular as seguintes outras perguntas: Quando falamos de
pessoas, “o que entendemos?”, “quem são estas?” e “a quem nos referimos?”;
quando falamos de entidades diversas, temos certeza de fazer referência àquilo
que indicam as palavras que usamos e que provêm de uma tradição especí ca?
Podemos ainda de nir o processo de digitalização generalizado como um
processo que reúne em comunicação pessoas (?), coisas (??) e entidades diversas
(???) ou devemos pensar em um processo de alteração qualitativa das próprias
substâncias e das próprias ecologias imaginadas na tradição ocidental como
externas e capazes de interações observáveis pelo olho humano?
A perspectiva inaugurada por Gaia não nos parece mais narrável por meio
das características, brevemente aqui apresentadas, das dimensões ecológicas
próprias da tradição ocidental. Sobretudo se se considera o caráter informativo
e qualitativo adquirido pelos territórios digitalizados e pelas ecologias dos
sistemas informativos geográ cos (em inglês G.I.S.) após as diversas formas de
informatização e conexão das biodiversidades, dos territórios e das coisas que
colocaram em rede toda a biosfera.
A passagem do planeta a um organismo vivo e ativo põe-nos diante de uma
inédita perspectiva que supera a dimensão biológica clássica proposta por
Haeckel para, assim, adquirir em seu contexto, além da dimensão humana,
também as dimensões tecnológica e informativa e aquela das formas
produzidas pelo processamento computadorizado e pelas alterações de cada
substância em bits e códigos binários múltiplos.

8.2 A INFOECOLOGIA: AS REDES DIGITAIS COMO CONDIÇÃO


HABITATIVA
As comunidades indígenas da etnia suruí, por meio de um acordo com o
Google, realizaram a digitalização da floresta que forma seu vasto território,
permitindo-lhes seu controle via satélite.
A digitalização do território possibilitou, além do controle, também a sua
alteração, transformando-o em uma realidade acessível por meio de
dispositivos e suportes em outros modos.

Em 2007, o povo suruí pater iniciou uma parceria com o Google Earth por
iniciativa do seu líder, Almir Narayamoga Suruí, que, ao conhecer o Google
pela Internet, conseguiu visitar a sede da empresa nos Estados Unidos para
elaborar em conjunto uma série de ações que pudessem reunir conhecimento
tradicional e tecnologia na gestão territorial e ambiental de sua terra indígena.
Na época, os suruí paiter estavam se reunindo para desenvolver o Plano de
Gestão Territorial da Terra Indígena Sete de Setembro, mais conhecido como o
Plano de 50 anos dos Suruí. A primeira ação em conjunto foi o
desenvolvimento do Mapa Cultural Suruí Paiter, a reconstrução cartográfica do
território desse povo, utilizando as ferramentas do Google Earth, Picasa,
Google Docs, Youtube. A equipe do Google Earth, dirigida por Rebecca
Moore, foi até o Território Indígena Sete de Setembro para ensinar aos jovens
suruí paiter como tirar fotos e registrar vídeos com o objetivo de coletarem
histórias dos anciões, a memória viva da comunidade, fotografar e filmar seu
território e sua biodiversidade e, consequentemente, dispor todo o material no
Mapa Digital. A percepção territorial tradicional reconstruída por meio de
interações tecnológicas, oriundas, por sua vez, de uma rede intercultural de
interações entre esse povo indígena e a equipe do Google, foi traduzida pelo
processo de digitalização do território que tornou possível a inclusão da
percepção cosmológica territorial suruí paiter na representação cartográfica
digital. Nas palavras de Rebecca Moore, foi um “encontro de saberes, o
Google veio com a tecnologia e os suruí com o conhecimento da floresta”.
A partir desse Mapa, estabeleceu-se, portanto, outro sentido de territorialidade
conectiva que não delimita o território aos seus componentes geográficos e
físicos, mas o amplia e o reelabora, agregando os modos imateriais particulares
da cosmologia suruí paiter. Difundindo, ao mesmo tempo, tais conteúdos e tais
ecologias on-line. Conferindo-lhe, de modo particular, uma narrativa e uma
estética conectiva situada numa localidade híbrida e comunicativa, deslocada
entre o local e o simbólico, o tecnológico comunicativo e o global.
O Mapa Cultural Suruí é acessível on-line pelo Google Earth. No Youtube
existem dois vídeos que apresentam essa experiência. Um produzido por
Denise Zemekhol (ZDfilms), com a participação da equipe Google envolvida no
projeto com os suruí paiter, com depoimentos de Almir Suruí e os jovens
indígenas, com imagens das oficinas que resultaram no Mapa Cultural. No
segundo vídeo, feito pelos próprios suruí, narrado por Almir Suruí e pelos
jovens participantes do projeto, visualiza-se, portanto, uma experiência
interativa e imersiva (3D) da territorialidade suruí paiter, onde, ao apresentarem
o seu território tomado pelas referências simbólicas e ecológicas desse povo, se
entrelaçam o povo suruí, os animais, as plantas, todos representados por
fotografias e desenhos feitos pelos jovens e crianças, reterritorializados no
espaço digital imagético e simbólico.
Através dessa narrativa digital suruí paiter proporcionada pelo Mapa Cultural e
pelas redes digitais, podemos nos conectar à complexa ecologia reticular desse
povo, que inclui o espaço físico, a floresta, o espaço simbólico e imaterial. Esta
ecologia digital, em lugar de se apresentar como uma imposição tecnológica
externa, exprime a complexidade reticular da ecologia do povo suruí paiter e
sua profunda ligação com o ambiente habitado. É importante aqui considerar
que, para os povos indígenas, a floresta não é vista como algo externo a eles,
como “recurso à disposição”. Para os suruí paiter, e para vários povos
indígenas, viver na floresta é depender dela em todos os seus níveis,
reconhecendo que o respeito aos seus elementos se converte numa norma de
convivência relacional basilar. Como exemplo, a interação deles com o fruto da
árvore do açaí, em lugar de expressar apenas uma relação de subsistência,
viabiliza também a comunicação com o mundo dos espíritos, realizando uma
ecologia reticular que reúne num habitar interagente o mundo vegetal e o
mundo animal com o mundo dos espíritos.
Além do Mapa Cultural em parceria com o Google, o Plano de Gestão
Territorial de 50 anos da Terra Indígena Sete de Setembro compreende também
a realização do Projeto Carbono Suruí, que tem por objetivo unir a conservação
ambiental desse território com o fortalecimento cultural, ao destinar os
recursos da venda de créditos de carbono para o financiamento de atividades
de proteção e fiscalização, como a compra de equipamentos. O projeto deu
aos suruí o pioneirismo de ser o primeiro povo indígena no mundo a ter a
certificação de carbono. Nas palavras de Almir Suruí, o projeto de carbono e as
tecnologias de comunicação convertem-se numa aliança do seu povo com o
mundo: “Nossa esperança é que possamos nos unir virtualmente e em pessoa,
e que possamos nos encontrar e implementar soluções em conjunto”.
Tal ação comunicativa e conectiva desse povo se conforma num ativismo
reticular que condensa todas as redes nele inscritas ou ativadas e produz,
igualmente, novos sentidos ecológicos e estéticos de sua cosmologia que
encontram no digital a sua (i)materialização cartográfica, reterritorializada,
somente possível pelo encontro e pelo diálogo intercultural e global, entre o
mundo do não indígena global – representado pela tecnologia e pelo próprio
Google – e o mundo indígena, formado pelo saber tradicional do povo suruí
paiter.
“Em diversas cidades do planeta, a difusão dos produtos biológicos e das
produções de gêneros alimentares a quilômetro-zero, ou seja, com baixo
impacto ambiental, tornou-se possível a partir da conexão direta entre
produtores e consumidores on-line por meio da implementação de arquiteturas
digitais que permitiam aos consumidores conhecer os camponeses e as
empresas agrícolas da região e seus produtos, além de efetuar on-line a
escolha dos gêneros a serem adquiridos, realizando, assim, o próprio pedido e
recebendo a compra em 24 horas. As arquiteturas digitais não só colocaram
em relação diretamente os produtores e os consumidores, mas criaram uma
ecologia virtuosa que premia as práticas biológicas, gerando, ao mesmo
tempo, um mercado e um consumo como expressão de uma ecologia não
apenas biológica, mas também técnica e informativa.” [17]
Nossa contemporaneidade é caracterizada por uma importante
transformação surgida com o orescer de uma nova condição habitativa. A
emergência de tal mudança tem origem em uma importante e qualitativa
alteração ecológica, desencadeada pelo advento das recentes formas
comunicativas de conexão. Referimo-nos, particularmente, às arquiteturas
conectivas surgidas com a banda larga, ou seja, após o tipo de conexão
instaurada pelos cabos de bra ótica, que permitiram não somente a expansão
da quantidade de dados e dos formatos circulantes, mas o início de novas
dinâmicas comunicativas não mais apenas sociotécnicas.
As formas de interação geradas após o advento desses novos tipos de conexão
– que levaram em um primeiro momento à extensão das redes digitais às coisas
(Internet of things) e à difusão de formas arti ciais de inteligência e de
elaboração de dados (Big Data) – começaram sucessivamente a colocar em rede
a biodiversidade, os territórios e os diversos tipos de ecossistemas, inaugurando
uma inédita condição habitativa conectiva, nem ecológica, nem humana. De
tal transformação surge um novo tipo de ecologia, acessível e habitável somente
por meio de um singular tipo de comunicação que ocorre entre substâncias
diversas, orgânicas, inorgânicas e híbridas, conectadas digitalmente e, por isso,
capazes de um particular tipo de interação a-dinâmica, resultado das alterações
das formas e do estado originário.
Nos contextos atópicos das redes de última geração, as características
conectivas não podem ser mais descritas como as práticas dos dinamismos
sociais, coletivos, agregadores. Os diversos tipos de substâncias conectadas em
rede, nem próximas nem distantes, ao mesmo tempo, não parecem desenvolver
formas sociais de interação, mas a alteração de sua própria composição. Mais
que as formas associativas de coletivos criados pela ação agregadora de actantes
“humanos e não humanos” (B. Latour), as ecologias reticulares parecem formar
condições conectivas mutantes, expressão de uma condição habitativa e de um
singular tipo de ecologia reticular não somente privada de sujeitos e objetos,
mas também sem ação, ou seja, sem nenhum tipo de deslocamento agregador e
social em direção a um ponto. A partir de tais considerações, é necessário
superar a interpretação exclusivamente informativa das redes digitais e
interpretá-las como uma condição habitativa, expressão de um novo tipo de
ecologia, não mais natural e não mais externa, capaz de instaurar uma própria
forma comunicativa do habitar. [18]
Habitar a complexidade ecológica reticular e conectiva signi ca, portanto,
não somente ser imersos e invadidos por um emaranhado in nito de dados,
mas também, ao mesmo tempo, ser transformados em dados. As últimas
gerações de conexão, além de terem incrementado exponencialmente o uxo
de dados (Internet of things, Big Data, Internet of Everything), têm conectado
entidades e substâncias diversas em uma rede de interações que, pelas próprias
características e diversidades envolvidas, superam a dimensão social,
introduzindo uma forma técnica e informativa da ecologia.
A natureza de tal ilimitada arquitetura de interação que conecta tudo aquilo
que existe em uma ecologia comum merece uma análise aprofundada, que não
pode se limitar à dimensão emergente e social das redes sociais, mas que deve
repensar a própria ideia de ação e de comunicação em uma perspectiva mais
complexa, se se deseja alcançar e interpretar as dimensões habitativas
transorgânicas. Essas últimas formam interações sem ação, na medida em que
não se baseiam somente na capacidade ativa do sujeito, tampouco nas
performances da técnica. De fato, tais ecologias conectivas reticulares
promovem formas particulares de interações “aorísticas” (ilimitadas) de difícil
narração, que, em vez de agregarem as partes e entidades conectadas,
transformam a mesma estrutura originária em uma nova “natureza”
informativa.
Como vimos, as formas de digitalização e conectividade ligadas à mobilidade
e à conexão dos territórios e das biodiversidades não podem ser narradas por
meio da linguagem das ecologias expressas pela tradição epistêmica ocidental,
que, conforme já pontuamos, sempre representaram as coisas, os objetos e as
substâncias como matéria externa, passiva e pouco comunicante. Como narrar,
portanto, esse novo tipo de ecologia transorgânica e conectada, cujas
substâncias apresentam-se como entidades a meio caminho entre a matéria e a
informação?
Um primeiro ponto de partida que gostaria de propor relaciona-se à
qualidade da abordagem ecológica. Desde o momento a partir do qual
começamos a falar em uma ecologia não mais sistêmica, mas conectada, ou
seja, de uma condição habitativa, não podemos ser capazes de analisá-la por
meio de suas diversas propriedades e declinações. Em outros termos, enquanto
infoarquitetura e condição habitativa de conexão e alteração substancial, não
pode mais ser expressa como um tipo de ecologia externa, associativa ou
político-agregadora (B. Latour). A peculiaridade de tal tipo de ecologia
encontra-se na sua dimensão digital, dimensão essa que a transforma em uma
ecologia informativa transorgânica, que coincide com a alteração de seu estado
material originário em informativo, ou seja, com um processo de
“transubstanciação”, [19] e não com o advento de processos agregadores sociais.
Essa condição habitativa ecológica transorgânica não se dá em um espaço
visível e após a combinação de diversos elementos atuantes. A ecologia
informatizada con gura-se, enquanto ecologia transorgânica, não como uma
arquitetura ontológica – baseada no conceito de natureza (do grego, φυσις) ou
no conceito medieval de criação, ou de qualquer outra dimensão essencialista,
nem como uma não estrutura emergente, política (B. Latour) ou cosmopolítica
(I. Stengers), mas como uma ecologia atópica (do grego atopos, fora de lugar,
lugar de difícil descrição, lugar atípico). Tal ecologia não é, portanto, como
dito, o resultado e a consequência de uma ação, mas, como veremos, a
expressão de uma condição habitativa.
Diferentemente das diversas teorias e abordagens sobre o estudo das redes
que preferiam colocar em evidência as dinâmicas agregadoras e desagregadoras,
descrevendo seus movimentos associativos (B. Latour, M. Callon etc.) e
contando suas ligações (Barabási, teoria matemática das redes), a forma
ecológica transorgânica não é baseada em uma ideia social ou compositiva das
redes. As redes conectivas sociais não devem ser, portanto, consideradas sociais,
pois não se formam por meio de um movimento agregador de um ponto de
vista a outro, ou a partir da ação de um actante, mas, enquanto infomatéria,
são já redes antes de qualquer tipo de interação e de combinação. Devemos
pensar, assim, na ecologia transorgânica não como em algo natural, nem
apenas como o resultado de atividades humanas – realizadas em diálogo com a
mesma técnica –, ou como produto mecânico da técnica, mas, além disso,
como algo que nos impõe rede nir a ideia de interação entre essa matéria
informatizada, as tecnologias digitais, os dados informativos, o ambiente e,
então, em última análise, a própria condição habitativa.
As ecologias transorgânicas não fazem parte, portanto, de um mundo
habitado por sujeitos e objetos, mas nos aparecem mais como a expressão de
um mundo “in essere”, [20] entendendo com tal expressão a ideia heideggeriana
de ser como evento, “um ser, todavia, não além de nós, não em nós, não em
torno de nós, mas, ao contrário, um ser no qual nos encontramos como
evento”. [21]
A passagem a uma materialidade informativa que substitui o objeto e o
mundo, propondo a passagem da coisa-matéria ao evento informativo,
conduz-nos a uma perspectiva não mais ontológica, natural ou somente
material da própria ecologia, como visto, da tradição losó ca ocidental.
Narrar as ecologias transorgânicas que exprimem os dinamismos da condição
habitativa atópica [22] remete-nos a duas interpretações-chave: o signi cado do
Dasein heideggeriano e o signi cado da etimologia da palavra latina conditio
conditionis.
Para explicar a primeira questão, relativa ao habitar como uma “não
essência”, Heidegger recorre ao conceito de Geviert (quadratura). É nesse
sentido que se torna possível pensar o habitar em Heidegger e o Geviert como
uma “ontologia relacional”, na qual o termo ontologia seria evidentemente
entendido não mais em seu signi cado losó co tradicional. O Ser (X) de
Heidegger, de fato, não é um ser puro, nem conceitual, mas uma possibilidade,
isto é, um ser em situação, “no mundo”, um Dasein, cuja tradução conceitual
recomendada por G. Vattimo seria “esserci”, algo como “ser-aí”: O Dasein […]
exprime bem o fato de que a existência não se de ne somente como
ultrapassamento, que transcende a realidade dada em direção à possibilidade,
mas que tal ultrapassamento é sempre ultrapassamento de algo, é sempre, isto
é, concretamente situado, é-nos. Existência, ser-aí, ser no mundo, são,
portanto, sinônimos. Todos os três conceitos referem-se ao fato de que o
homem é situado de maneira dinâmica, que, ou seja, está no modo do poder
ser, ou mesmo […] na forma de projeto. [23]
Portanto, a quadratura (Geviert), além de representar uma forma não situada
e autorreferencial do ser, convida à aceitação de um conjunto de signi cados,
bastante incomuns, no interior do pensamento ocidental.
Se, de fato, o “ser-aí” humano encontra o mundo por meio das coisas, é
também verdade que o ser e a mesma quadratura as habitam e que,
consequentemente, as coisas, como os espaços, não são mais de níveis por si
mesmas, mas somente como parte de uma ecologia. “Desse modo”, escreve a
respeito Galimberti: Heidegger rompe com o modo habitual de pensar da
loso a, que, desde séculos, se propunha a alcançar as coisas como são in se, e
mostra que o in se, buscado pela loso a e hoje, sob a forma da objetividade
da ciência, não é mais do que uma operação do homem efetuada em vista de
certos objetivos precisos. [24]
O habitar enquanto Dasein no pensamento de Heidegger, portanto, mais que
uma estrutura ou uma essência, apresenta-se como uma abertura nos
confrontos da quadratura e como um “cuidar” de seu devir. Somos colocados,
segundo tal premissa, diante de outro importante signi cado do habitar no
pensamento de M. Heidegger, aquele que o apresenta em sua dimensão
ecológica e não humanocêntrica, aspecto este que, nos ambientes
tecnomidiáticos contemporâneos, permite-nos interrogar sobre os signi cados
assumidos, com as redes informativas, por nossas relações simbióticas, nossos
circuitos tecnopsíquicos, nossas geogra as informativas e nossas proximidades
distantes. Uma arquitetura digital ou um dispositivo de conexão territorial
(GPS, smartphone, Sistema Informativo Geográ co – G.I.S.) devem ser
pensados, a partir dessa perspectiva, não mais como instrumentos ou meios,
como proposto pela tradição lógico-instrumental que reproduz suas ordens e
signi cados hierárquicos (sujeito/objeto, homem/técnica), nem tanto como os
membros de uma rede de complexidade relacional, mas sim como as
cossubstâncias informatizadas que compõem as ecologias transorgânicas
conectivas.
A não separação entre espaço, homem e quadratura abre a possibilidade de
pensar o habitar como o resultado de uma interação ecológica transorgânica
plural, cuja ocorrência depende, inevitavelmente, da conexão entre as diversas
substâncias, e não de uma própria essência identitária prede nida ou
socialmente adquirida.
O caráter dinâmico do ser relacional heideggeriano e o seu cumprir-se no
devir da quadratura presta-se, assim, a pensar o habitar infomaterial das
ecologias transorgânicas e do habitar em rede contemporâneo, no qual o
indivíduo experimenta, enquanto plugado, enquanto estendido por próteses
midiáticas e por psicotecnologias, ou enquanto imerso em ecossistemas
informativos, um habitar atípico e estranho que coincide com o realizar-se de
inédita e transorgânica quadratura: É possível, assim, ainda que isso possa
signi car uma interpretação não ortodoxa, pensar o “ser-aí” contemporâneo
como a realização de uma quadratura comunicativa ecotecno-humana, no
interior da qual, terra e céu, divinos e mortais, são entendidos livremente por
meio de formas e signi cados metafóricos. Os céus e os mortais, os divinos e as
terras que habitamos e, “sendo”, traduzem na realidade nosso ser-aí
contemporâneo, são de outras e múltiplas naturezas. [25]
A partir de tal premissa, é possível descrever as ecologias reticulares
transorgânicas como condição habitativa. São, estas últimas, a expressão da
segunda interpretação, proposta aqui com o objetivo de interpretar as formas
transorgânicas e conectivas das infoecologias contemporâneas. O signi cado
expresso pela etimologia dos termos latinos conditio conditionis e condizio
condizionis é plural e contraditório.
O termo “condição”, em sua primeira etimologia conditio conditionis, traduz
o signi cado de “norma obrigatória”, “vinculativa”. Já o termo condizio
condizionis remete ao signi cado oposto de “possibilidade”, “abertura”. Tal
construção linguístico-interpretativa oferece-nos, em sua contraditoriedade e
em seu signi cado “oximoroso”, a possibilidade de superar a perspectiva
ontológica, evitando, assim, a forma de descrição de nidora que estabelece
essências, princípios absolutos e realidades imutáveis.
Consequentemente a tais considerações, a dimensão ecológico-conectiva
aportada pelas últimas gerações de redes digitais (Internet of things, sistemas
informativos territoriais) não se apresenta como uma arquitetura comunicativa
externa ou como uma simples estrutura para a transferência de informações,
mas como uma condição habitativa, ou seja, como uma forma comunicativa
do habitar [26] que é, ao mesmo tempo, articuladora e expressão de ecologias
informativas transorgânicas.
A ideia de uma infoecologia transorgânica conduz-nos à superação da
concepção da existência de uma ecologia “natural” e externa, composta de
entidades diversas que interagem estabelecendo relações sociais entre si.
Ao contrário, os a-dinamismos das conexões infoecológicas das redes digitais
devem ser considerados tais, uma vez que surgem em seguida ao processo de
digitalização, que permitem a conexão somente após a alteração das substâncias
de indivíduos, dispositivos de conexão, dados, biodiversidades etc. As
infoecologias, portanto, aproximam-se mais das possibilidades habitativas
contraditórias, narráveis com o duplo signi cado, de possibilidade e de norma,
da expressão latina “condição”.
Tal perspectiva revela-nos a dimensão comunicativa de um habitar reticular
que se propõe como uma categoria distante tanto da perspectiva “logo” ou
antropocêntrica, como daquela “objeto” ou tecnocêntrica (Internet of things),
tornando-se, assim, a expressão de uma condição reticular que conecta seus
diversos membros, não os agregando, mas os alterando.
Essa condição exclui a possibilidade de pensar em uma arquitetura reticular
não somente como algo externo e do mesmo modo, mas nem exclui também a
perspectiva de uma visão holística e panóptica. Tais ecologias transorgânicas
não possuem essência nem forma material e estrutural. O esclarecimento desse
primeiro aspecto nos impulsiona na direção da necessidade de um
deslocamento epistêmico, cuja breve antecipação pode ajudar a compreender a
qualidade das transformações em ato em nossa condição habitativa e em nossas
interações conectivas, portadoras, por sua vez, de uma complexidade, como
dito, não mais só social.
Evitando estender-me sobre esse tema, [27] limito-me a assinalar apenas
alguns signi cados da passagem de uma lógica de complexidade sistêmica,
baseada em estruturas, para aquela de uma complexidade reticular
transorgânica, causada pelo advento das novas formas de conexão digitais e
informativas. Um primeiro interlocutor nesse campo é, sem dúvida, E. Morin,
que, diversamente do biólogo austríaco L. V. Bertalanffy, autor do famoso livro
A Teoria Geral dos Sistemas (1968), propõe um método que não se funda mais
na separação de aparelhos distintos entre si, mas, ao contrário, em suas
interdependências, com o claro objetivo de inverter a tendência à simpli cação
dos fenômenos por meio da instauração de “um método que revele e não
oculte as conexões, as articulações, as a nidades, as implicações, as
sobreposições, as interdependências, as complexidades”. [28]
Distanciando-se das distinções e das de nições absolutas originadas pelo
método cartesiano, E. Morin propõe estabelecer um novo paradigma
epistêmico que recuse tornar-se uma totalidade, na medida em que, como
totalidade, esse se apresentaria como sistema simpli cado e, assim, como uma
forma de redução da complexidade. Ao contrário, deve optar por apresentar-se
como um não sistema e uma não totalidade, ou seja, como um instrumento de
interpretação aberto e conceitual: “A verdadeira totalidade é sempre quebrada,
rachada, incompleta. […] A totalidade não é verdadeira”. [29]
Um dos aspectos mais interessantes dessa abordagem reside na atenção que E.
Morin depositou nas interconexões que caracterizam e constituem um sistema
aberto, o qual é por ele de nido como “uma unidade organizada de inter-
relações globais entre elementos, ações e indivíduos”. [30]
A ênfase está aqui colocada justamente na abertura dos vários elementos que
compõem não um todo, mas uma conexão de dinâmicas, exíveis e sujeitas a
mudanças inerentes a um processo organizacional, aberto e, assim, distinto,
segundo Morin, de um sistema complexo. Características essas que resultam
incompreensíveis e invisíveis se analisadas no contexto da lógica mecanicista do
método da ciência tradicional, baseado na separação e análise de objetos
separados e examinados, na maior parte dos casos, fora de cada ligação e de
suas inter-relações. Analisando a distinção entre “causalidade retroativa”,
“endocausalidade”, “exocausalidade” e “causalidade nal”, E. Morin prossegue
em sua explicação de nindo, posteriormente, as formas de causalidade
complexa. Se a causalidade clássica era linear, mecânica e determinista, lha da
concepção de universo do século XVII, a causalidade complexa, ao contrário,
apresenta-se como uma causalidade não linear, mas relacional, em que causa e
efeito não são mais ligados por uma relação de dependência e subordinação.
Nessa nova dimensão: “A causa perdeu seu poder total, e o efeito, sua total
dependência. São relativos um ao outro transformando-se um no outro”. [31]
Mas é possível entrever também nesse modelo de complexidade um limite,
reconhecido em parte pelo próprio E. Morin, limite que residiria não só na
consciência de que nenhuma interpretação teórica, ainda que articulada, seja
capaz de representar por inteiro tal tipo de complexidade, mas na não
completa superação da contraposição entre as partes que a constituem. Esse
limite aparece em toda a sua dimensão, observando-se as interconexões
presentes nos sistemas vivos e nas representações da estrutura da matéria na
física subatômica. Será mesmo no interior do primeiro contexto, aquele
relativo aos estudos dos sistemas vivos, que começará a tomar forma uma
lógica interpretativa da complexidade que passará a descrever os fenômenos por
meio de estruturas em rede: Assim como a noção de entidade física
independente se tornaria problemática na física subatômica, o mesmo se
passaria com a noção de organismo independente na biologia. Os organismos
vivos, enquanto sistemas abertos, permanecem vivos e funcionais por meio de
transições intensas com seu ambiente, composto, por sua vez, de organismos.
Assim, toda a biosfera – nosso sistema planetário – apresenta-se como um
tecido dinâmico e altamente integrado de formas de vida e de formas não
vivas. Ainda que tal tecido apresente muitos níveis, existem transações e
interdependências entre todos eles. […] A maior parte dos organismos não são
apenas agregados em ecossistemas, mas são, eles próprios, ecossistemas
complexos, a partir do momento em que contêm um número de corpos
menores que possuem uma notável autonomia, mas que, ao mesmo tempo,
integram-se harmoniosamente. [32]
Essa perspectiva é baseada na constatação de algumas tendências comuns na
maior parte dos organismos: em primeiro lugar, a adaptação ao ambiente, que
aumenta a sua capacidade de transformação e de autotranscendência e, ao
mesmo tempo, a tendência oposta e complementar relativa à sua capacidade de
transformar seu próprio ambiente modi cando o hábitat, contribuindo, assim,
junto aos outros organismos, para a criação de grandes ecossistemas capazes de
hospedar as interações de grande número de espécies: Onde quer que
observemos sistemas vivos – organismos e partes de organismos –, podemos ver
que seus próprios componentes são dispostos em forma de rede. Cada vez que
observamos a vida, observamos redes. […] A primeira e mais evidente
propriedade de uma rede é a sua não linearidade – a rede estende-se em todas
as direções. Assim, as relações-padrão de redes são relações não lineares. [33]
Outra interpretação possível das complexidades abertas das arquiteturas
reticulares é aquela que pensa as dimensões reticulares como arquiteturas
cognitivas. Segundo a análise dos biólogos chilenos H. Maturana e F. Varela, a
faculdade cognitiva não é uma realidade externa e não pode ser considerada
somente como o resultado de um processo cerebral completamente interno,
mas se constitui por meio de um processo de organização circular. A resposta
aos estímulos ambientais de um organismo vivo – que, alterando-se em
consequência de tais interações, muda seu comportamento, criando, assim, um
sistema de respostas ao ambiente – é de nida por Maturana e Varela como
sistema de aprendizagem.
A natureza cognitiva da rede, a anomicidade de sua forma, a não linearidade,
a tendência a abandonar seu nível de equilíbrio, sua estrutura reticular e
interativa e sua não externalidade tornam-na uma arquitetura, ao mesmo
tempo, interna e externa a nós, isto é, um sistema conectivo, do qual fazemos
parte como participantes e membros, e não só como observadores externos e
independentes: O projeto dos sistemas vivos como redes oferece uma nova
perspectiva sobre a natureza das hierarquias da natureza. Dado que os sistemas
vivos, em todos os níveis são redes, visualizamos as redes da vida como sistemas
vivos (redes) que interagem em modo de rede com outros sistemas (redes). Por
exemplo, podemos esquematicamente descrever um ecossistema como uma
rede com alguns nós. Cada nó representa um organismo, o que signi ca que
cada nó, quando ampliado, parece ele mesmo uma rede. Em outras palavras, a
rede da vida é feita de redes no interior de redes. Em todas as escalas, e sob
estrito controle, os nós da rede funcionam como redes menores. Nós tendemos
a ordenar esses sistemas inserindo os menores naqueles maiores, como um
sistema hierárquico, à maneira de uma pirâmide. Mas essa é uma projeção
humana. Na natureza não existe “superior” ou “inferior” e não há hierarquia.
Há somente redes ninhi cadas dentro de outras redes. […] A ecologia é
reticular… Entender os ecossistemas, em outros termos, signi ca compreender
as redes. [34]
O desenvolvimento de uma abordagem ecoinformativa do estudo das redes
marca a introdução de outro tipo de complexidade, que compreende tanto as
componentes bióticas como as abióticas, considerando, assim, um conjunto
amplo de elementos, como o movimento e transformação da energia e da
matéria por meio da atividade dos organismos vivos. Essas últimas concepções
enfatizam a amplitude dinâmica e mutante de um ecossistema a uma extensão
de rede “atópica” – que agrega em simbiose com as tecnologias de
comunicação, o ambiente, os seres vivos e as coisas – em uma arquitetura
reticular informativa. [35] Desse ponto de vista, cada arquitetura reticular
apresenta-se como um novo tipo de complexidade que tem, em sua qualidade
conectiva, sua principal especi cidade. A forma rede, nessa perspectiva, mais
que uma realidade midiática, apresenta-se como uma condição habitativa que
rma uma importante transformação na relação entre indivíduo e ambiente,
entre interior e exterior, abrindo, assim, possibilidades para uma dimensão
ecológica transorgânica.
A descoberta do DNA e do RNA contribuiu para a difusão, a partir do
conceito de código genético, de uma nova percepção informativa da ecologia,
no interior da qual as concepções opositivas – que separavam interior de
exterior e orgânico de inorgânico – foram substituídas pelas arquiteturas
informativas de redes de redes, organizadas por meio de tricas informativas
contínuas, responsáveis pelo advento das diversidades genéticas. Surge, assim, a
possibilidade de pensar em uma nova forma ecológica, a qual, superando a
visão ocidental antropocêntrica e sistêmica, comece a pensar a natureza e o
mundo como o conjunto de relações comunicativas articuladas a partir dos
uxos informativos de redes de redes.
No interior dessa outra percepção ecológica, os media, assim como a técnica
e as tecnologias informativas, não somente contribuem para a construção da
imagem do ambiente, mas devem ser considerados como partes integrantes
dele e, portanto, componentes, de modo absoluto, das infoecologias: “A
sensibilidade ecológica, a teoria de Gaia, tudo isso teve início após o advento
dos satélites e da visão da terra desde a perspectiva lunar, a qual deu a todos
uma ideia unitária da terra e de sua fragilidade”. [36]
A ideia de uma infoecologia e de uma natureza comunicante foi
recentemente abordada também por J. D. Peters em seu livro e Marvelous
Clouds, no qual defende a concepção de uma dimensão midiática dos
fenômenos naturais: A tradicional ideia de media está falida: todo o ambiente
deve ser considerado media: a água, o fogo, o céu, a terra e os outros elementos
– sublimes, perigosos e maravilhosos. Os media são, ao mesmo tempo,
elementos naturais e produções humanas. A importância e a urgência da
loso a dos media está em compreender esse seu sentido amplo. [37]
Perceber a ecologia não mais como ambiente, mas como um conjunto de
redes comunicantes que produzem diversidade por meio de dinâmicas
conectivas, de ne um novo tipo de interação e uma nova forma do habitar que
não podem mais ser descritos a partir das categorias de uxos comunicativos
que partem de um centro em direção ao exterior, ou seja, na direção de
entidades separadas e dispostas no entorno (ambire). Ao contrário, a
comunicação em rede, própria de tal realidade ecológica, permite a
constituição de circuitos e interações que manifestam conexões e ligações nem
internas nem externas, nas quais cada elemento e cada substância são imersos,
de modo indissociável, em uma dimensão que os envolve e, ao mesmo tempo,
os constitui.
Nessa perspectiva, nas infoarquiteturas reticulares, a prática comunicativa
não é mais uma propriedade do sujeito, que, por meio da técnica, cria
conteúdos, mas assume a dimensão de uma interação habitativa e interativa
que, conectando as diversas substâncias, altera a sua constituição originária.
Externa e interna, ao mesmo tempo, tal tipo de interação ecoinformativa,
realizada a partir das formas de comunicação em rede, propõe, além da
superação do antropocentrismo, a concepção de outro conceito de ambiente.
Na língua portuguesa, o termo “meio ambiente” indica, por uma parte, a
concepção utilitarista e externa do território e, por outra, numa interpretação
livre, a sua indissociável relação entre a dimensão informativa e os
instrumentos de percepção e interação atuantes.
O acesso a uma incalculável quantidade de dados, a conexão dos objetos, da
biodiversidade, das diversas dinâmicas sociais e o uxo in nito de conteúdos
contribuem não só para a criação de uma hiperinternet ecológica, mas para a
construção de um tipo de comunicação conectiva que se apresenta não mais
apenas como um conjunto de dados ou como o resultado de performances
tecnológicas, mas como um ambiente interativo, um hábitat mutante, produto
de redes não só relacionais. Tal hábitat, por meio da conexão, estipula
interações e dinâmicas capazes de alterar a condição habitativa e as
especi cidades das diferentes entidades e substâncias conectadas.
Tais ecologias comunicativas que aparecem sob a forma de redes ecológicas
digitais manifestam-nos nova forma comunicativa, que nos obriga a produzir
outra ideia de comunicação, não mais redutível apenas aos media, aos
conteúdos veiculados ou aos seus signi cados sociais e políticos, mas que
compreenda ampla gama de interações que, estendendo-se além das dimensões
do social antropomór co e das dimensões urbana e societária, inclua toda a
biosfera e as formas de conexão que se desenvolvem em seu interior, nas suas
diversas dimensões: geológicas, vegetais, orgânicas, técnicas, espirituais etc.

8.3 A INFOMATÉRIA: DO ANTROPOCENO AOS SISTEMAS


OPERATIVOS ECOLÓGICOS
Entre as formas de conexão produzidas pela banda larga há aquela que
permite, por meio do uso de sensores, ondas de rádio (RFID), atuadores e
smart codes e em qualquer objeto ou em qualquer superfície, a transmissão e
recepção de informações provenientes por estes na web. Esse tipo de conexão
sugeriu a elaboração da expressão Internet of things, “uma infraestrutura de rede
global baseada em protocolos de comunicação nos quais coisas físicas e virtuais
passam a ter identidades, atributos físicos e personalidades virtuais, utilizando
interfaces inteligentes e integradas a redes telemáticas”. [38]
Ao revermos algumas de nições, [39] deparamo-nos com uma interpretação
que destaca sua inovação e seu poder de transformação. No texto Internet of
things: a survey, de L. Atzori, A. Iera e G. Morabito (2010), de ne-se tal tipo
de conexão como um novo paradigma: Um novo paradigma que está
rapidamente ganhando espaço no cenário das telecomunicações sem- m
modernas. A ideia básica desse conceito é a presença penetrante, em nosso
entorno, de uma variedade de coisas e objetos – tais como Radio-Frequency
IDenti cation (RFID), tags, sensores, atuadores, telefones móveis etc., que,
por meio de esquemas de endereçamento particulares, são capazes de interagir
entre si e cooperar com os vizinhos para alcançar objetivos comuns. [40]
O que põe em comum as diversas de nições de Internet das coisas é um erro
conceitual que tem origem em uma ideia de comunicação analógica, que
ignora as propriedades conectivas e a dimensão ecológica da comunicação em
rede. A expressão “Internet das coisas”, cunhada pela primeira vez em 1999 por
Kevin Ashton, pesquisador do MIT, induz-nos a pensar que a conexão ocorra
entre objetos e coisas de vários gêneros e inanimados, que, graças à instalação
de sensores, começam a receber e a emitir informações na rede, criando, assim,
formas de interação capazes de estabelecer relações e de desenvolver uma
participação social dos objetos.
Os semáforos nos cruzamentos das estradas, conectados à web, podem
transmitir informações sobre a viabilidade que, reunidas a outros sensores
especialmente instalados em diferentes áreas da cidade, podem fornecer
informações úteis em tempo real para melhorar a circulação do tráfego,
in uenciando, assim, as decisões dos cidadãos sobre como se dirigirem para o
trabalho, sobre por quais estradas seguirem ou sobre qual meio escolherem
para chegar mais rápido a seus destinos. Do mesmo modo, a divulgação, em
tempo real, das vendas de determinado produto no mundo pode indicar
transformações nos gostos e preferências dos consumidores, orientando a
produção e otimizando custos e impactos, além de contribuir, ao mesmo
tempo, para a redução dos riscos e, em última análise, para o bem-estar da
economia.
De fato, ainda que a conexão permita aos objetos constituir interações
inteligentes – ou seja, receber e elaborar informações e saber responder
elaborando conteúdos independentemente da intervenção humana,
conseguindo mesmo trocar dados entre si –, é sempre interessante lembrar a
complexidade e propriedade reticular da ecologia construída pelas diversas
formas de conexão e pelos diversos circuitos que colocam em rede os objetos,
sensores, dispositivos, dados e humanos. Em outras palavras, é próprio de uma
lógica analógica (do grego, ανα λύω: proceder escolhendo e separando) pensar
em redes separadas, a das coisas, a dos humanos, a dos dados etc. Ao contrário,
pela lógica conectiva, cada substância é conectada a uma rede complexa que,
como visto, altera a sua condição originária, inserindo-a em uma ecologia
informatizada. O mesmo vale para as coisas e as superfícies conectadas por
meio dos códigos RFID, que, uma vez efetivada a conexão e a capacidade
comunicativa, assumem uma nova identidade, transformando-se em algo
diverso de um objeto inanimado, mesmo que ainda mantenham a forma e as
dimensões originais.
Nossos smartphones, os objetos e as superfícies conectadas às redes exprimem
de fato um novo tipo de materialidade estendida e ilimitada, uma infomatéria
que, embora não perca o aspecto e as formas próprias, assume outras
dimensões e propriedades, passando a habitar outro espaço, o das redes
infoecológicas conectadas via web. Desse ponto de vista, podemos considerar a
digitalização como um processo qualitativo que abre uma nova fase, não
somente no processo comunicativo, mas no próprio estatuto ecológico, pois,
como visto, envolve também a biosfera e os territórios. [41]
A digitalização con gura-se, em suas últimas formas, como um processo de
trans guração de tudo aquilo que existe em uma sequência de códigos binários
01010101, inicialmente desenvolvidos como um processo de digitalização de
dados (textos, imagens, vídeo, sons etc.), que em seguida se transformaria em
um processo total que modi caria cada entidade para uma sequência de
códigos denominados bits, capazes de viajar na velocidade da luz e que
constituem “os menores elementos atômicos do DNA da informação”. [42] De
tal processo resultam transformações qualitativas que se apresentam como uma
ruptura paradigmática com relação aos processos comunicativos analógicos. [43]
Pensar o processo de digitalização signi ca, assim, partir da constatação de uma
alteração do estado de natureza da biosfera, do globo terrestre e do universo até
agora por nós conhecidos; signi ca considerar a passagem de uma matéria
como coisa ou objeto a uma materialidade informativa e informatizada.
O processo de digitalização não envolve, portanto, apenas o conjunto das
relações sociais, nem a in nita quantidade de uxos informativos (Big Data),
mas um processo de transformação da matéria, das superfícies e dos
ecossistemas em informações circulantes, disponíveis e manipuláveis. Nessa
perspectiva, o processo de digitalização não pode ser entendido apenas como
um fenômeno social. E não pode ser assim compreendido, em sua qualidade,
por meio da linguagem das ciências, que observam e descrevem os fenômenos
que ocorrem em sociedade. O processo de digitalização é o advento de um
novo estado de natureza, uma transformação ecológica que sucede aquele já
advindo com o alfabeto e que permitiu nominar, identi car e classi car a
realidade circundante ao homem, tornando inteligível a natureza, a paisagem e
as diversas entidades em seu entorno. Ao contrário desta última, o processo de
digitalização, sobretudo em sua última fase, permitiu, por meio das alterações
há pouco descritas, não somente a conexão, mas a possibilidade de interações
de todas as coisas no interior das ecologias digitais. Os uxos informativos, de
fato, começaram a permitir um novo tipo de comunicação, que oferece não
somente a palavra humana, mas a possibilidade de emissão de dados a todas as
entidades.
Se a escrita nomina e identi ca, criando uma ecologia sujeitocêntrica que
opõe o humano ao mundo, traduzindo este último em palavras e textos
escritos, o processo de digitalização parece propor o advento de uma interação
que ocorre não somente no nível da linguagem alfabética, mas na sinergia dos
dados e das informações emitidos nas redes ecológicas interativas. A
temperatura da água do oceano, a espessura das geleiras, as mudanças
climáticas, em geral, são fenômenos que não somente acompanhamos a partir
de monitoramento digital com instrumentos e tecnologias midiáticas, mas que
exprimem informações de entidades não humanas e em uma linguagem
própria que pode ser, evidentemente, como sublinhado por B. Latour,
ampli cada ou traduzida por porta-vozes humanos, [44] mas que pode se
expressar e tornar-se visível somente após e por meio do processo de
digitalização. Tais informações tornam-se imagens e dados que não exprimem
uma linguagem alfabética, mas algorítmica, alfanumérica, visual etc.
Desse modo, o surgimento de uma nova ecologia informatizada que conecta
e permite a interação das diversas entidades (humanas, minerais, animais,
vegetais etc.) está relacionado ao advento de um novo tipo de linguagem que
reúne diversas linguagens (dados alfanuméricos, algoritmos, imagens, textos
etc.) os quais deslocam o habitar para além da dimensão antropomór ca da
natureza e da ecologia alfabética. As redes ecológicas digitais produzem a
passagem das ecologias alfabéticas às dimensões transorgânicas dos sistemas
operativos ecológicos. A ideia da rede como um sistema operativo social foi
aprofundada por B. Wellman e L. Rainie, que, em seu texto Networked: e
new social operating system, mostram o caráter relacional das dimensões
conectivas da nova esfera social criada pelas redes sociais: A evidência mostra
que nenhuma dessas tecnologias é um sistema fechado, capaz de isolar as
pessoas. As tecnologias hoje estão mais integradas à vida social do que as
tecnologias precedentes. As pessoas não são ligadas a gadgets, mas são ligadas
umas às outras. […] A partir do momento em que incorporam as tecnologias,
as pessoas mudam a forma de comunicar-se entre si. Tornam-se sempre mais
conectadas (networked) como indivíduos, mais do que como integrantes de
grupos. [45]
Na perspectiva dos dois autores americanos, as redes digitais seriam
responsáveis pela instauração de um sistema operativo social, com um social
ativo em redes de indivíduos. A tal concepção, ainda muito social e, portanto,
limitada a uma dimensão ainda antropomór ca e sujeitocêntrica, é necessário
optar por uma perspectiva ecológica. As novas formas de conexão que
produzem redes ecológicas conectam biodiversidades, coisas e superfície de
todo tipo, produzem um novo tipo de ecologia comunicativa e interagente que
supera a dimensão social e urbana, expandindo nosso “comum” no nível da
biosfera. A concepção dos sistemas operativos sociais deve ser, assim,
substituída por aquela dos sistemas operativos ecológicos. As ecologias dos
suruí, que defendem seu ambiente, ou as ecologias criadas pelas arquiteturas de
consumidores, como os do www.zolle.it, são ecologias atópicas que se formam
após as conexões em redes digitais e que são habitáveis somente a partir da
interação com dispositivos e arquiteturas digitais, tais como os sistemas
informativos geográ cos.
A emergência de tal nova forma de ecologia leva-nos a recusar por inteiro a
teoria do antropoceno, expressão da cultura humanocêntrica que atribui à ação
humana um poder decisivo no interior da ecologia, seja em sua potencialidade
destrutiva, seja em sua capacidade criadora.
O termo antropoceno foi cunhado pelo químico holandês e estudioso da
atmosfera Paul Crutzen, durante um congresso sobre a biosfera na Cidade do
México, no ano 2000. Referindo-se ao impacto das atividades humanas em
nível climático e geofísico, com tal expressão, Crutzen queria indicar o
momento-chave, que principiaria com a época industrial, no qual se
transformaria a esfera de ação do homem sobre o ambiente, alterando suas
condições: de agente biológico, o homem passaria a agente geológico: Não
houve um só momento na história da humanidade em que os seres humanos
não tenham sido agentes biológicos. Mas nos tornamos agentes geológicos,
historicamente e coletivamente, ou seja, na medida em que contamos com
tecnologia em quantidade e escala su cientes para poder gerar impacto sobre
nosso planeta […] Nossa interferência não foi sempre grande assim […] Os
seres humanos começaram a ter tal in uência somente a partir da segunda
metade do século XX. Os seres humanos tornaram-se agentes geológicos muito
recentemente na história humana. Nesse sentido, podemos dizer que só muito
recentemente a distinção entre história humana e natural começou a entrar em
colapso. [46]
A tal visão, ainda ligada a uma tradição de pensamento antropocêntrica, que
contempla o humano como artí ce principal dos processos de transformação
planetários e das dinâmicas de transformação do planeta, opõe-se D. Haraway,
que propõe repensar a dimensão da ação do humano contemplando-a não mais
como única e solitária, atribuindo as causas das mudanças climáticas a
dinâmicas mais complexas: Não há dúvidas de que os processos antrópicos
tiveram efeitos planetários, em inter-intra-ação com outros processos e
espécies, desde quando nos reconhecemos como espécie (há algumas dezenas
de milhares de anos) e começamos a investir em uma agricultura em larga
escala (alguns milhares de anos atrás) […] a propagação das plantas por
dispersão de sementes, milhões de anos antes da agricultura humana,
representou grande transformação para o planeta, assim como muitos outros
fenômenos […] mas acredito que a relevância de nominar com os termos
antropoceno, plantationoceno ou capitaloceno tem a ver com a escala, a
relação taxa-velocidade, a sincronicidade e a complexidade. […] Nenhuma
espécie, nem mesmo a nossa – essa espécie tão arrogante que nge ser
constituída de bons indivíduos segundo os scripts ocidentais modernos – age
sozinha; os conjuntos de espécies orgânicas e de atores abióticos são produtores
de história, tanto evolucionária como também de outros tipos. [47]
A percepção das múltiplas e reticulares condições habitativas e ecológicas
impulsiona a lósofa americana a polemizar, ainda que de maneira cordial,
com o uso do termo antropoceno, propondo a busca de outro termo capaz de
contemplar a complexidade dos fenômenos envolvidos nas amplas e diversas
alterações que se referem à biosfera: Trata-se de algo mais do que as mudanças
climáticas, trata-se de enorme quantidade de produtos químicos tóxicos, de
minerais, do desaparecimento de lagos e rios, seja no nível da superfície ou do
subsolo, de simpli cações de ecossistemas, de grandes genocídios de pessoas e
de outros seres etc. […] A recursividade pode ser terrível.
A partir de tais considerações, D. Haraway propõe um termo que seja capaz
de descrever as dinâmicas de forças, os poderes sin-chtonicos por ela de nidos
como Chthuluceno: “De no tudo isso com o termo Chthuluceno, passado,
presente e aquilo que está por vir. Tais tempos-espaços reais e possíveis […]
representam os diversos poderes tentaculares de toda a terra e todas as coisas”.
[48]

A crítica à ideia do antropoceno, a concepção dos sistemas operativos


ecológicos e a infomatéria impõem-nos uma re exão sobre a qualidade da ação
dos humanos, não somente no que toca à sua capacidade de transformar e
alterar as esferas biológicas e geológicas, mas à própria noção de ação. Nos
contextos digitais das arquiteturas informativas de redes ecológicas, como se
deve descrever a ação? Nas ecologias transorgânicas da Gaia informatizada, no
interior da qual habitamos informativamente toda a biosfera e em que
interagem nossas metrópoles, as orestas pluviais, os ursos polares, o clima e as
algas marinhas, há ainda sentido ao se falar em “ação”? É possível pensar ainda
em um agir próprio do agente humano?
Que signi cado tem o agir nas infoecologias?
Capítulo 9
O FIM DA AÇÃO SOCIAL: O NET-ATIVISMO E AS
DIMENSÕES NÃO AGREGADORAS DO COMUM
DIGITAL

9.1 Era uma vez o ator social: as ecologias


transorgânicas e a impossibilidade da ação
A ideia de uma impossibilidade da ação tem origens antigas e ilustres no
âmbito do pensamento ocidental. Na mitologia grega, encontramos dois
famosos exemplos que exprimem a singular ideia da não ação. O primeiro é o
mito de Sísifo, lho do rei Éolo e da rainha Enarete, do reino de É ra, que
seria considerado o mais esperto e engenhoso dos homens. Depois de ações
imorais que ofenderam os deuses, Sísifo teria sido condenado por eles a passar
a eternidade no inferno carregando uma enorme pedra até o cume de uma
montanha, de onde sempre caía, voltando ao ponto de partida. A. Camus, em
1942, inspirado pela história, escreveu uma obra na qual propunha uma leitura
do mito como metáfora da condição e da história humana.
Sem dúvida, a condição de um agir cíclico e de uma ação intransitiva, como
aquela imposta a Sísifo, consegue ainda hoje provocar a re exão sobre o
sentido e o signi cado da ação. De um lado, a dimensão cíclica do agir
humano, que, em muitos âmbitos, parece repetir-se e repropor continuamente
as mesmas escolhas e as mesmas ações em épocas diversas; de outro, o sacrifício
de um construir e de um fazer que, mais que se manifestarem como soluções e
criatividade, assumiriam, muitas vezes, o signi cado histórico de um pesado
fardo, capaz de transformar o homo faber em um escravo de seu agir. O
processo de industrialização, a lógica do consumo e aquela da competição
assemelham-se às dinâmicas de um agir sisí co, ou seja, um agir sem m nem
princípio, do qual não é possível escapar. Uma ação, dessa forma, que, em sua
ilimitada continuidade, não encontra um m e não alcança jamais o objetivo,
tornando-se, assim, impossível seu cumprimento e sua realização. A repetição
contínua tolhe da ação o seu ser, transformando-a em uma não atividade e em
uma não realização.
Um segundo exemplo clássico da impossibilidade da ação nos é oferecido por
outro mito grego, o de Tântalo, também condenado pelos deuses por suas
ações a passar a eternidade atormentado pelas sensações de fome e sede, imerso
até o pescoço em um poço de água doce e contornado por frutos e alimentos,
mas impossibilitado de alcançá-los. Todas as vezes que Tântalo se aproximava
dos frutos, os ramos retraíam-se e o vento os deslocava para longe do alcance
de suas mãos. Da mesma forma, todas as vezes que se inclinava para beber a
água que o circundava, essa se retraía. À diferença de Sísifo, Tântalo encontra-
se impossibilitado de agir, mostrando um tipo de ação que, em vez de se repetir
sempre desde o início, exprime-se na impossibilidade de sua realização e em
seu não cumprimento. Ao contrário de Sísifo, cujo movimento e cuja ação
nunca terminam, enquanto sujeitas a um contínuo reinício, a Tântalo é
proibida sua ação e sua realização. Em todos esses dois casos, a ação não se
realiza e o movimento não consegue produzir o efeito desejado.
Uma primeira re exão losó ca na tradição ocidental sobre a impossibilidade
da ação deve ser atribuída a Zenão de Eleia, discípulo de Parmênides, que
viveria entre os séculos VI e V a.C., sendo um dos grandes elaboradores da
refutação e do pensamento dialético. Tendo aderido ao debate sobre o
pensamento de seu mestre, dirige uma crítica aos adversários que pretendiam
refutar a ideia do ser absoluto a partir da evidência de existência do
movimento, demonstrada pela possibilidade de um corpo deslocar-se de um
ponto e de um lugar ao outro. Em resposta a tais críticas, Zenão apresenta a
teoria da impossibilidade do movimento. Alguns dos famosos paradoxos que
foram proferidos por Aristóteles em seu tratado sobre a Física relacionam-se
também ao movimento.
No primeiro paradoxo, Zenão sustenta que um corpo em movimento em
direção a um ponto, para alcançar sua meta, seria obrigado a percorrer antes a
metade do percurso e, antes ainda, a metade dessa, e, antes ainda, a metade da
metade, da metade, até o in nito, não chegando jamais, assim, ao zero, e não
conseguindo, assim, nunca, preencher a distância que o separa da metade. O
segundo paradoxo, conhecido como o paradoxo de Aquiles e a tartaruga,
descreve a impossibilidade de o famoso herói – denominado “pé veloz”, devido
a sua extraordinária velocidade na corrida –, alcançar a tartaruga, pelo mesmo
princípio do movimento e das metades das metades, raciocínio que remete
também ao terceiro paradoxo da echa, que não chegaria nunca a cumprir o
seu objetivo.
Na época contemporânea, o signi cado dos limites da ação assume novas
interpretações. Entre outras, identi camos quatro delas que mais se destacam,
ainda que corramos o risco de sermos super ciais. Em primeiro lugar, a
iminente ameaça do apocalipse, provocada por mudanças climáticas e
alterações provocadas na biosfera pela sociedade do consumo e do irracional
impacto ambiental de nosso modelo de desenvolvimento, que poderia
provocar, em poucas gerações, o m do agir humano, após a consequente
extinção da espécie humana. Um mundo sem humanos e, consequentemente,
sem sua própria ação.
Além desse primeiro apocalíptico aspecto, a própria crise ecológica
contribuiu para a difusão de outro signi cado de crise da ação, expressa pela
consciência dos limites do desenvolvimento, que, durante a época industrial e
por todo o século XIX, marcou o agir do homem, criando um instinto
prometeico que o levou a produzir, a expandir a sua ação, modi cando
equilíbrios e queimando recursos. A humanidade, depois da expansão
industrial, encontra-se, hoje, diante da consciência da recursividade de sua
ação. A ação industrial que produzira, além do incremento global do consumo,
as emissões de CO2 geradas pela expansão da produção e pela combustão dos
hidrocarbonetos, transformou-se em enfermidades e aumento da temperatura,
em alterações climáticas, em derretimento das calotas polares e, em última
instância, numa ameaça global, demonstrando, assim, os limites da liberdade
do agir.
Do mesmo modo, a ação para a expansão do desenvolvimento e dos lucros
ligados à criação de gado, ou ao cultivo de monoculturas, que têm levado ao
desmatamento das orestas nos países tropicais, traduziu-se na redução das
chuvas, estiagens, deserti cação e incremento da temperatura.
Problematizando, assim, o signi cado não somente de um tipo de
desenvolvimento, mas do próprio agir do homem na biosfera e, em outras
palavras, o m da concepção da ação transitiva, ou seja, uma ideia de uma
ação, de um sujeito dirigido em direção ao exterior. A teoria de Gaia e a
difusão da ideia do antropoceno têm fortemente contribuído para difundir
outra ideia de ação, não mais humanocêntrica nem transitiva, pois no interior
da biosfera e de Gaia não existe externalidade e cada movimento, assim como
proposto pelas geometrias elípticas de Riemann, tem uma trajetória curva e
circular.
Um terceiro signi cado, relacionado aos limites da ação, é-nos fornecido
pelos estudos da física quântica sobre as interações das partículas subatômicas –
prótons, nêutrons, quarks e glúons, que nos mostram a dimensão não centrada
nem previsível das interações entre essas substâncias. Ao contrário do sugerido
por Newton e Laplace, tais partículas não devem ser pensadas como
minúsculos seixos que se movem no espaço traçando trajetórias precisas, mas
sim como realidades intermitentes e conectivas, cujo movimento não provém
de seu próprio agir, mas da complexidade de suas interações ecológicas com
outras parcelas que lhe determinam a presença e a posição.
En m, em um mundo singularmente análogo, o quarto signi cado da crise
da ação em nossa contemporaneidade é encontrado na complexidade conectiva
das interações nas redes digitais transorgânicas. Nelas, as últimas gerações de
conexões começaram a promover interações entre as diversas entidades que
compõem a biosfera, colocando em rede coisas (Internet of things), dados (Big
Data) e circuitos neuronais arti ciais, criando um particular tipo de ecologia
informativa. Nesta, a ação transforma-se em um trânsito [1] informativo, que,
ao conectar, não agrega as diversas substâncias, mas altera sua própria condição
originária, criando um tipo original de alteração a-dinâmica. Todas essas
considerações e premissas nos levam a pensar, junto à crise do agir, a
inoportunidade da dimensão social da ação que descreveu suas formas e
dinâmicas num interior do fazer do autor de um contexto dado.

9.2 “FECHANDO O ZÍPER” DA BARRACA: POR QUE AS CIÊNCIAS


SOCIAIS E A TEORIA ATOR-REDE NÃO TÊM NADA A DIZER
SOBRE AS REDES DIGITAIS?
Nos últimos anos, em seguida ao desenvolvimento das comunicações digitais
que levou ao protagonismo social dos dados (Big Data), dos objetos (Internet of
things) e de outras formas de inteligência não humanas (Teoria de Gaia,
inteligência arti cial etc.), surgiu a necessidade de superar a perspectiva
antropocêntrica da ecologia da ação, assim como proposta pela tradição
sociológica; [2] embora nessa, obviamente, encontrem-se algumas exceções (por
brevidade, citamos aqui os casos das obras de H. Spencer e G. Tarde, que
tentam construir pontes entre as ciências biológicas, a teoria darwinista e as
ciências sociais).
Mesmo com a ideia, em K. Marx, de formação de um modo de produção
que previa combinações de variáveis independentes não humanas (matérias-
primas, nível tecnológico e relações de trabalho), em linhas gerais, a noção de
sociedade, na sociologia, não consegue se afastar do sentido comum e acaba
pensando a sociedade como um conjunto de indivíduos, pessoas humanas,
reunidos por contrato gerado pelos próprios con itos de interesses ou pelas
diversas posições no interior do modo de produção. A perpetuação da ideia
iluminista de sociedade é em tal direção emblemática. Os citoyens reunidos nas
praças revolucionárias, todos iguais, falando o mesmo idioma, que se dedicam
à gestão de seu convívio, são hoje a forma mais evidente da crise do imaginário
sociológico.
Nessa direção, a proposta da Teoria Ator-Rede (TAR) de pensar a ampliação
da con guração do social a partir da inclusão de actantes de várias naturezas –
os quais se associam por meio do desenvolvimento de agregações, cuja natureza
é incerta e emergente – é, com certeza, uma contribuição e um aspecto
importante no interior da limitada tradição sociológica. A indagação que
Latour faz da sociologia é legítima: “Quando falamos do social, quantos
somos...?”; “quem somos...?”. Mas, da mesma maneira, a resposta que Latour
oferece à sua própria pergunta está longe de satisfazer à necessidade urgente de
repensar as dimensões ecológicas das interações (pois não são apenas sociais) e
conectivas de nossa época. A resposta que Latour oferece, ao menos na TAR, é
a substituição da ideia de sociedade por um conjunto de coletivos surgidos
pelas associações entre actantes humanos e não humanos, que se agregam de
forma incerta e emergente, obrigando o cartógrafo a seguir os rastros dos
diversos agregados-redes.
Cabe aqui uma pergunta, dessa vez direcionada ao próprio Latour: Onde
ocorrem essas agregações? Em quais localidades? Qual é o espaço e a ecologia
desse novo social associativo? Qual é o local da ação dos coletivos? Perante tais
questões, não há uma resposta precisa de Latour; ou melhor, há mais de uma.
Em Politiques de la Nature, por exemplo, Latour exprime a ideia, pouco fértil a
meu ver, de um “parlamento das coisas”, que parece continuar sendo pouco
viável para pensar o lugar do acontecimento das agregações, pois tal
parlamento, em lugar de ser o espaço das associações, seria mais as
consequências dessas, algo próximo à ideia de esfera pública habermasiana –
embora uma esfera pública ampliada aos não humanos –, mas que acontece
pela troca de proposições, pela mediação de porta-vozes. Mais recentemente,
sem dúvida, Latour optaria por responder às hipotéticas questões,
anteriormente citadas, que a localidade de tais agregações seria a ecologia de
Gaia, ou seja, os diversos coletivos e os diversos atores-redes que se agregariam
no interior da biosfera; portanto, nas diversas respostas possíveis por ele
oferecidas, essas agregações aconteceriam, em sua visão, num espaço físico real,
sempre num “aqui e agora”.
Entramos num ponto interessante. Pois, se as associações acontecem diante
do cartógrafo, que se limita a seguir os rastros dos diversos actantes, isto é,
numa geogra a concreta, alcançável por meio da observação, permanece por
inteiro a ideia sociológica e positivista – galileana e newtoniana – da
frontalidade do espaço e do poder absoluto no desenvolvimento do
conhecimento, do método unitário, ou seja, da própria observação. Nessa
perspectiva, a TAR deveria ser entendida como a verdadeira herdeira do
método cientí co tradicional e o seu âmbito como o espaço da aplicação
coerente do método cientí co na “nova ciência social”. Dessa maneira,
contrariamente, portanto, à sociologia, sempre conceitualmente orientada, a
TAR, uma vez baseada na incerteza e não na elaboração conceitual a priori,
tornar-se-ia ainda mais cientí ca do que a velha sociologia e, paradoxalmente,
ainda mais objetiva, pois mais próxima das dimensões incertas que marcam a
observação nas atividades laboratoriais das “ciências exatas”. Nessa leitura, a
ciência associativa de Latour seria a legítima realizadora da utopia do
conhecimento social cientí co porque conseguiria observar (desvelar) e mapear
o real, na sua dimensão mais autêntica, aquela que a quer ligada à incerteza do
seu próprio dinamismo contínuo.
Em seu famoso diário de campo – relato de sua etnogra a nas ilhas do
Pací co ocidental –, Malinowski escreveu que, de manhã, quando abria o zíper
de sua barraca, aparecia, diante dele, o cenário da sociedade dos moradores da
ilha, que representavam diante dele o seu próprio social, como nas imagens em
movimento de um lme. Era su ciente, para o antropólogo, depois de ter se
deslocado até o local remoto, abrir o zíper de sua barraca e observar os
acontecimentos que se desenvolviam diante de seus olhos, anotando tudo
elmente em seu diário de campo. O social, para as ciências sociais, sempre
esteve ao alcance do olho, acontecendo numa localidade especí ca,
determinada e observável, permitindo ao pesquisador o seu desvelamento com
técnicas de observação e a pesquisa de campo. Residem aqui, provavelmente,
alguns dos maiores limites do método e do conhecimento próprios das ciências
sociais e um dos motivos da recusa dessas disciplinas em levar a sério as redes
digitais.
A essa constatação objetiva, que delimita o social em um seu hic et nunc
geográ co, deve-se inevitavelmente contrapor a constatação de que hoje os
índios de Malinowski estão on-line e realizam seu próprio social, também além
de seu território físico, [3] longe do alcance da observação do etnógrafo e,
sobretudo, numa esfera de relações não mais completamente visível. [4] Mas
não são apenas os índios e o social humanos que estão on-line, como também
as relações sociais, o capital, as árvores, os oceanos, os bichos da mata e tudo o
que está parado ou se mexe; tudo emigrou para o on-line. Consequentemente a
tal êxodo, as ciências sociais perderam o chão. Uma vez que as interações
sociais não mais acontecem apenas num “aqui e agora”, não acompanhar tal
deslocamento digital signi ca, hoje, perder o próprio social e a própria ecologia
e, metaforicamente, voltar a fechar, irremediavelmente, o zíper da barraca de
Malinowski.
Na mesma obra de Latour, o novo social continua acontecendo apenas num
hic et nunc, numa localidade determinada, concreta e objetiva. Embora ele não
seja previsível, nem reconduzível à esfera interpretativa dos conceitos
operativos sociológicos, a emergência associativa do novo social, segundo a
TAR, desenvolve-se num tempo e num espaço determinados, o espaço
conceitual das controvérsias e, sobretudo, numa realidade observável. A
situação se complica e o zíper fecha-se ainda mais, até fechar por inteiro a
barraca, inviabilizando, consequentemente, o alcance do social, se atribuímos
ao processo de digitalização não apenas o poder de deslocar on-line as relações,
o espaço, a natureza, a biosfera e Gaia inteira, mas aquele qualitativamente
maior de algoritmizar a “realidade”, isto é, o poder de ativar as dimensões de
processamentos ecológicos capazes de desenvolver um princípio informativo e
conectivo a toda a biosfera e à própria Gaia.
O resultado é a superação tanto da velha ideia de ciberespaço como da
concepção urbana e arquitetônica do social (E. Goffman, Escola de Chicago),
da ideia antropomór ca do mesmo (J. Habermas) ou da noção associativa
emergente (M. Callon, B. Latour etc.), pois não apenas o dinamismo social (B.
Wellman) adquire formato digital, mas a própria arquitetura ecológica passa a
se modi car, alternando a sua forma, em uma nova ecologia informativa
continuamente destorcida e remodelada pelas conexões digitais. A
digitalização, assim, nessa outra perspectiva, não deve ser enxergada como uma
rede a mais, mas deve ser aproximada a um processo de transubstanciação, que,
ao transformar as coisas e as relações em código binário, altera todo o estatuto
da natureza da própria substância, tornando-a outro de si e, sobretudo, capaz,
nesse novo estado, de alterar sua própria dimensão material e originária. [5] O
processo de digitalização, elevando a substância a uma dimensão informativa,
gera uma forma formante que, além de permitir a conexão entre fenômenos e
aspectos não próximos na realidade material, permite o processamento deles,
elevando a ecologia a uma dimensão algorítmica, nem mais imagem, nem mais
material.
De volta à barraca: o zíper está agora completamente fechado; o cientista
social, isolado em seu espaço de lona, incapaz de alcançar o social para além
dela, curva-se sobre seus livros e elabora teorias e interpretações sobre um
mundo que não existe mais. Cabe, aqui, perguntar-se o porquê desse autismo e
dessa escolha que isolam o conhecimento social na placenta, segura e separada
da própria episteme tradicional. Por quê?

9.3 POR QUE AS REDES DIGITAIS NÃO SÃO RESULTADOS DE


AÇÕES DE ACTANTES?
Em diversas ocasiões, o próprio Latour fez questão de separar as redes digitais
das redes estudadas pela TAR. Foi sempre sincero ao a rmar seu absoluto
desconhecimento sobre o assunto, delegando a seus colaboradores a
possibilidade de utilizar as cartogra as para representar as redes digitais. O
papel que as redes digitais podem desenvolver, na perspectiva de Latour, é
unicamente aquele de tornar visível, com mais e ciência, as dimensões
complexas e reticulares da realidade concreta, que se agregam, segundo sua
visão, no mundo e num social físicos.
Tal simpli cação resulta incompreensível perante a profundidade e a
complexidade do pensamento desenvolvido pelo próprio Latour sobre a
ciência. Seus textos sobre o caráter agregativo da ciência e sobre o humanismo
cientí co constituem, no interior dos estudos sobre as práticas e o processo de
conhecimento, um passo importante e uma contribuição, sem dúvida,
profunda. É conhecida a precisão e a originalidade que o diferenciam, ao
revelarem, em diversos textos, a importância dos instrumentos técnicos e dos
objetos na coprodução do conhecimento cientí co, nas práticas laboratoriais,
assim como a sua capacidade de descrever o não total domínio do cientista
observador nas dinâmicas das descobertas cientí cas.
Registrando tais habilidades, resulta espontânea mais uma pergunta: Por que
ignorar a importância do papel dos computadores (não somente por suas
capacidades de cálculo, mas por toda ampla contribuição desenvolvida por
estes) no interior da ciência contemporânea? E, mais ainda: Por que negar a
dimensão qualitativa da própria digitalização como o advento de uma nova
materialidade que, em lugar de externa e concreta, apresenta-se como
conectiva?
Voltamos ao “por que”... É necessário re etir sobre esse “por que”, resultado,
com certeza, não de uma super cialidade interpretativa, mas provavelmente de
uma opção epistêmica bem precisa. Pois, se a conexão e as redes con guram-se
como uma transubstanciação e a expressão de um novo tipo de matéria, não
mais apenas objeto nem apenas objetiva, mas conectiva enquanto
informatizada, tornar-se-ia necessário o abandono da ciência galileana e do
próprio método unitário. A ideia de ciência seria completamente abalada, pois
não somente o princípio da ecologia dialética da observação (como já o
princípio de indeterminação de Heisenberg fez), mas a própria ideia de
conhecimento, deveriam ser repensados. As ciências sociais, lhas históricas do
positivismo e portadoras de uma ideia cientí ca do mundo, deveriam
consequentemente, então, entregar as armas e abrir-se ao desconhecido.
A via escolhida pela TAR é um atalho que, ao mesmo tempo em que se
preocupa em criticar o caráter positivista da sociologia, anunciando a nova
ciência das associações – superando o determinismo conceitual sociológico –,
propõe uma forma observadora e ecologicamente frontal de conhecimento,
anunciada triunfalmente em Reagregando o social, como “a nova sociologia”.
Latour consegue, assim, seu troféu e seu triunfo, conseguindo onde a
sociologia não pode. A morte da sociologia proposta por Latour aparece, então,
em sua totalidade parcial. Mas os mortos, como sabemos, ressuscitam sempre,
em média, depois de três dias...
A ideia instrumental da comunicação, que delega às redes digitais apenas o
papel de tornar visíveis as multiplicidades das redes sociais [6] revela, mais que
uma re exão metodológica, a capacidade isolante do material da barraca, que
protege bem do frio, do vento, da chuva, dos animais, dos perigos e das
intempéries do mundo afora. O novo social das redes digitais, obviamente, não
pode ser limitado apenas à visibilização das relações de Paris, pois acrescentam
um dinamismo próprio que acaba transformando o espaço urbano ou
metropolitano em paisagens pós-urbanas, alterando não apenas a estrutura física
e arquitetônica da cidade, mas o próprio signi cado de habitar.
A partir dessa perspectiva, a ideia de “actante”, entendida como “tudo o que
deixa rastro”, evidencia a velha ambição positivista que marca a sociologia e
todo o saber cientí co/tradicional que segue rastros, pegadas, buscando apenas
o que é documentável e visível. Herdeira do método unitário, as ciências
sociais, por todo o século XX, se preocuparam em “aperfeiçoar” suas técnicas
de observação, introduzindo a etnogra a (a antropologia antes e a Escola de
Chicago depois), os questionários, as análises estatísticas, as entrevistas em
profundidade, os focus groups, as histórias de vida, os dados demográ cos etc.,
além de todas as diversas técnicas de pesquisa que a sociologia dos séculos XX e
XXI passou a produzir. Weber, Marx, Spencer, Tarde, Simmel não usavam
questionário algum, nem técnicas de mensuração, e talvez por isso
conseguiram criar pensamentos que ainda hoje nos orientam na interpretação
das ecologias de interação. A opção de limitar-se a seguir os rastros dos actantes
no âmbito das controvérsias, atividade essa facilitada pelas cartogra as digitais
e pelos mapas de redes, in uencia a observação, orientando que ela busque o
social (não o velho abstrato e conceitualmente orientado, mas o novo e o
emergente associativo) a partir de seu acontecimento e de seu devir agregativo,
revelando o limite funcional da estratégia do caçador obcecado pela busca da
sua presa.
O ponto que desejo levantar aqui é que, no âmbito das redes digitais e da
ecologia algorítmica, a ação não ocorre, mas é apenas a expressão de uma
condição já dada pelo “não acontecimento” devido ao processo de
informatização e que revela, consequentemente, que, nas redes digitais
conectivas, a dimensão associativa e agregadora não pode ser considerada como
a origem e o processo de formação das redes. Entende-se aqui por processo de
digitalização não um acontecimento, isto é, um devir ou uma interação que
acontecem em um espaço e um tempo, mas uma alteração qualitativa do
estatuto da natureza e da condição habitativa. As redes digitais devem,
portanto, considerar-se, antes de tudo, como uma condição habitativa, mas
que, como a consequência de interação entre membros diversos, tal princípio
encontra-se explicado já em Paisagens pós-urbanas e tem sua origem na “não
ontologia” de M. Heidegger, na Ecologia da mente, de G. Bateson, e na ecologia
dos sentidos, proposta por W. Benjamin, em A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica e Passagens.
Nessa última obra, Benjamin descreve a alteração que o uso de metais na
construção provoca na forma de construir casas e na ideia de habitar, e na
própria forma de visualizar o ambiente e o espaço, como escrito por ele ao
comentar a respeito do uso do vidro para a construção do Grand Palais. [7]
Aqui a interação comunicativa com o vidro não é o resultado de um
movimento, mas produz uma alteração da ecologia e do estatuto da natureza,
exatamente como o cinema ou a máquina fotográ ca provocavam, para o
autor, uma alteração não apenas da percepção, mas da própria natureza: “A
câmera que fala à máquina fotográ ca é distinta daquela que fala ao olho”. [8]
A centralidade da necessidade do registro, do rastro e da documentação
produz na TAR a perda do sentido da conexão e a redução dela a um conjunto
de associações que podem ocorrer, enquanto visíveis e identi cáveis, apenas em
um social “dado”. Para falar do concreto e da matéria, pareceu-me sempre mais
oportuno e mais útil (leia-se “fértil”) olhar o que a biologia ou a física quântica
têm a dizer a respeito de “rede” e “conexão”, pois ambas trabalham já há muito
tempo com a digitalização da matéria, da biodiversidade e do próprio meio
ambiente. É surpreendente notar como, segundo o estudo sobre a propagação
de energia que permitiu a descoberta do efeito fotoelétrico – o qual descreve
que algumas substâncias, ao receberem luz, geram uma leve corrente elétrica (a
mesma de que dispomos ao utilizar as células fotoelétricas para abrir uma porta
quando nos aproximamos dela) –, seja possível pensar um particular tipo de
alteração sem movimento. De fato, trata-se de um repasse de energia, não de
um movimento, mas de uma alteração do estatuto da natureza da matéria que
a torna condutora. Da mesma maneira, a ideia da natureza do elétron, assim
como elaborada por Heisenberg, não permite que o pensemos como uma
partícula que se movimenta em uma direção ou em outra. Ao contrário, em
diversos estudos da física quântica, o elétron parece não existir em espaço e
lugar algum, mas aparece apenas de repente somente em determinadas
condições, passando assim a existir brevemente para, logo em seguida,
desaparecer novamente. Uma matéria piscante que não deixa rastro, pois não é,
ou é só de repente.
As descobertas e estudos de Heisenberg são emblemáticos e representam uma
importante contribuição a respeito dos estudos das redes conectivas não
relacionais. Em lugar de descrever a posição e a velocidade do elétron, pois tais
descrições não seriam possíveis, o cientista passa a escrever tabelas de números,
códigos de algo que não pode ser visto, escritura do invisível, desenhos da terra
do nunca, “mapas sobre os quais se desenhavam desembarques em países e
terras não situados nem no tempo nem no espaço”. [9]
Nessa perspectiva, a própria ideia de actante, que se associa e interage em
uma estrutura de rede, resulta ser uma simpli cação que reduz a rede, além de
algo físico e material, apenas ao que é dela visível e ao que se desloca nela. O
ato conectivo se apresenta, ao contrário, como um não movimento e uma não
ontologia. Um não movimento, pois a conexão não é uma ação em direção ao
externo, nem o resultado de um movimento, mas como algo que altera a
ecologia da própria interação e a própria forma comunicativa do habitar
oriunda da alteração da matéria.
Se a TAR lê apenas a ação que é documentada e visível nos movimentos dos
actantes, reduzindo a rede ao visível, a atopia relata conexões que já existem,
pois em uma rede digital é a infoecologia a oferecer a possibilidade da
interação. Se as redes não digitais da TAR formam-se, em seguida, de
associações de actantes, as redes digitais atópicas são a expressão de um
comum, sem movimento, não agregador, nem comunitário, que não pode ser
construído, pois já o é. Não somente a atopia não exprime uma ideia de rede
apenas local, física e material, incluindo também os elementos digitais e
aqueles não materiais, mas inclui com força nessa a presença (seria melhor
dizer a “ausência-presente”) da dimensão não visível e não traçável (presente-
ausente) das redes digitais conectivas.
É nessa perspectiva que as re exões sobre a ideia de bem comum, [10] que
têm proporcionado nos últimos anos ao pensamento social e losó co uma
perspectiva desa adora e com o objetivo de traduzir a crise ecológica
contemporânea em forma política, não consegue centrar o alvo. Não se trata
apenas de uma alteração interpretativa ou ideológico-representativa, mas de
algo qualitativamente mais profundo que interessa, ao mesmo tempo, a
diversos âmbitos e não apenas ao contexto da razão, da interpretação e do
pensamento. Não somente a forma rede, como nova arquitetura da
complexidade, toma posse das dinâmicas das mudanças, mas,
consequentemente, propõe-se como método procedural de leitura que liga
cada mudança a outras, numa forma não ordenada nem linear.
Exemplo disso é o particular tipo de transformações provocadas pela difusão
de tecnologias de conexão que proporcionaram a inclusão digital da
biodiversidade e a criação de uma Internet composta por redes de dados (Big
Data) e uxos informativos de todos os tipos (humanos, inorgânicos, animais,
vegetais etc.). Esse novo tipo de conectividade, entre todas as diversidades bio e
inorgânicas, é a expressão de um novo tipo de Internet ecológica, que não é
apenas a junção das distintas redes, a humana (redes sociais digitais), a das
coisas (Internet of things), a dos dados (Web semântica, Big Data) e a das
biodiversidades (GIS, geolocalização etc.), mas também a criação de uma
econetwork de rede de redes que interliga e conecta tudo.
Que tipo de comum é esse que não nos torna mais próximos enquanto
cidadãos humanos e racionais, mas como co-habitantes da biosfera e
conectados a todos os outros seres viventes, plantas, animais, águas? Que tipo
de comum é esse que nos conecta, não somente ao que chamamos de meio
ambiente e que habitamos, mas também à esfera geológica e aos minerais como
proposto pela teoria de Gaia, [11] aos dispositivos, às redes tecnológicas e aos
dados? Que ligação é essa que exprime um tipo de comum não agregador nem
associativo?
Capítulo 10

αιον [1] – O ATO CONECTIVO: AS INTERAÇÕES


TRANSORGÂNICAS NAS REDES DIGITAIS

αιον-0 - Da ação ao ato conectivo

N
ossa contemporaneidade é marcada por uma profunda cisão entre as
palavras e as coisas, entre os vocábulos que usamos e as experiências
que vivemos. Temos sempre a sensação de que existem realidades e
formas do habitar para as quais não temos uma linguagem apropriada, que não
sabemos dizer e que, por preguiça ou hábito, continuamos a indicar por meio
de palavras e conceitos antigos e inapropriados, com seu desastroso efeito de
separar-nos de nosso contexto e de distanciar-nos de nosso mundo, privando-
nos, assim, da experiência. [2]
Podemos expressar tal condição como o advento de uma linguagem sem
mundo, linguagem que, não se referindo mais a nossas realidades, nem mais
conseguindo indicar nosso agir, restringe-lhes o acesso e a compreensão.
Enquanto nossos pais e avós habitavam um mundo para eles compreensível, ao
menos em parte, e com um sentido reconhecível que conseguiam dizer e
discutir a partir da linguagem, nossa geração, por outro lado, não mais pode
exprimir e compreender a complexidade da própria experiência e da própria
ecologia habitativa, manifestando uma condição que se assemelha àquela dos
lósofos afásicos, os quais, conscientes da impropriedade e da imprecisão da
linguagem e da distância intransponível entre as palavras e o mundo,
privavam-se de seu uso, refutando todos os tipos de comunicação.
Se tal cisão entre experiência e palavra remete a boa parte da linguagem das
ciências sociais (público/privado, local/global, sujeito-ator, identidade, gênero
etc.) e resulta evidente mesmo no âmbito das ciências e da teoria da
comunicação (mídia/público, conteúdo/instrumento, transmissor/receptor
etc.), ela nos aparece com maior clareza no âmbito da experiência de nosso
agir. Esse último, de fato, após as últimas formas de conexão [3] que se
desenvolveram nas redes digitais, apresenta-se a nós mais do que como o
resultado de uma ação de um sujeito-ator ou de um conjunto de actantes, mas
como a consequência de um novo tipo de interação no interior de um novo
hábitat, material e informativo ao mesmo tempo, formado pela complexidade
de interações que surgem após o processo de digitalização, a partir das sinergias
entre circuitos informativos, bancos de dados, dispositivos de conectividade,
pessoas, territórios e biodiversidades etc. e que se dão no interior de
infoecologias sem dimensões, atópicas, que se estendem das arquiteturas
moleculares até as ecologias da biosfera e das interestelares de nossa galáxia.
Surgida do âmbito do social, dos espaços físicos, públicos ou privados das
arquiteturas urbanas, a ação ocorre no interior de arquiteturas híbridas e
ecologias transorgânicas cuja complexidade, atópica e aorística, apresenta-se
como estranha à nossa compreensão e difícil de exprimir por meio de nossa
linguagem, herdada pelas tradições epistêmicas ocidentais.
Podemos continuar a indicar com a mesma palavra “ação” tanto nosso
caminhar, percorrendo a distância que separa nossa casa e o parque, como
nossa interação, que, a partir de circuitos informativos complexos, permite-nos
levar um robô até Marte, dando-nos a possibilidade de conhecer a composição
de sua atmosfera e de seu solo, mensurando seus componentes?
Como exprimir as não distâncias que nos conectam aos sistemas operativos
geográ cos que, monitorando e processando os dados de nosso impacto
ambiental, conectam-nos às infogeogra as da biosfera, mostrando-nos a
dependência de nosso agir em relação a tudo aquilo que nos circunda e nos
habita?
Que linguagem utilizar para descrever as ecologias das interações que se
produzem no interior das complexas arquiteturas informativas digitais que
conectam as coisas, os dados, as biodiversidades, fazendo de nosso habitar uma
condição não mais só geográ ca e espacial e de nosso agir um agir informativo?
Como dizer as ecologias do agir, que se dão nas formas de protesto que
nascem on-line, ocupam os espaços públicos e continuam conectadas à rede,
experimentando uma interação híbrida cuja arquitetura conecta, de forma
fértil e indissociável, informação e ação, localidade, signi cados e participação?
Que localidade e que tipo de ecologia da ação surge nas ruas conectadas e
ampliadas mediante formas de comunicação móveis (wireless, wi- ) e
aplicativos de games urbanos como Pokemon Go?
Onde ocorrem as interações aorísticas das experiências sensoriais das formas
de sensualidade em rede que conectam os sentidos e nosso sentir a arquiteturas
informativas e a ecologias virtuais proporcionando percepções nem externas
nem internas, nem apenas humanas ou apenas técnicas, nem exclusivamente
reais ou exclusivamente arti ciais? Quem são seus artí ces e como descrever
tais a-dinamismos?
O ponto de partida é, como já visto, o questionamento da palavra “ação”,
suspendendo seu signi cado comum de movimento no espaço e no tempo,
abrindo-se, consequentemente, a uma perspectiva inédita e capaz de descrever
suas plurais morfologias, nem internas nem externas, próprias das ecologias
conectivas. Em consequência dessa primeira suspensão do signi cado do agir,
que questiona sua compreensão dinâmica, deve-se proceder ao anulamento
mesmo de seu signi cado social, o qual descreve a ação como o conjunto de
interações que ocorrem no interior das ecologias sociais, sejam essas urbanas,
estatais e nacionais, entre indivíduos, atores sociais, grupos, classes,
instituições, interesses econômicos, políticos etc.
A não adequação do termo “ação” para ns de compreensão da complexidade
conectiva das interações transorgânicas leva-nos a substituí-lo por “ato”. A
etimologia do termo “ato” nos conduz a sua matriz grega αιον, que, na
Antiguidade, era empregada para indicar um evento imprevisível e irrepetível.
Frequentemente utilizado no contexto das representações teatrais, o aion
indicava o momento imprevisível no qual ocorria algo de intenso. Uma batida,
um gesto ou uma pausa que, naquele preciso momento, tinha o poder de
transformar a atmosfera e alterar seu contexto, conseguindo imobilizar o
público e raptá-lo por um instante, transportá-lo para o interior da cena,
transformando-o, momentaneamente, de espectador externo para componente
e parte da ecologia da cena. Um ato ecológico, assim, que não se referia apenas
ao ator, mas que conseguia conectar todos os elementos: o público, os objetos
na cena, a paisagem do entorno, o texto, alterando tudo e transferindo cada
participante para uma nova ecologia e outra dimensão.
Um ator criador que não era programável, nem era possível plani car. Um
momento transformador que mudava o contexto e a situação, rede nindo suas
características e signi cados. Um “αιον” inexplicável, impermanente e não
de nível de forma clara. Algo, portanto, de muito diverso de uma ação, uma
vez que não era realizado por um sujeito-ator e não plani cado de uma forma
estratégica e, assim, não submetido a uma lógica causal e a uma temporalidade
diacrônica.
A ideia do aion como um evento não inscritível no interior de uma
temporalidade composta por frações de tempo é analisada por G. Deleuze,
que, inspirado pela interpretação de tempo dos estoicos, contrapõe a
temporalidade do aion à de chronos. Se esta última se apresenta como a
sequência de passado, presente e futuro, ou seja, como um continuum de
temporalidades subdivisíveis e somáveis, o aion, ao contrário, apresenta-se
como um tempo não de nível, um instante feito por “eventos” sem passado,
nem presente, nem futuro: Na medida mesma em que o presente mede a
efetuação temporal do acontecimento, isto é, sua encarnação na profundidade
dos corpos agentes, sua incorporação em um estado de coisas, na mesma
medida o acontecimento por si mesmo e na sua impassibilidade, sua
impenetrabilidade, não tem presente, mas recua e avança em dois sentidos ao
mesmo tempo: perpétuo objeto de uma dupla questão: O que é que vai se
passar? O que é que acabou de se passar? [4]
Na interpretação deleuziana da perspectiva estoica, o aion se apresenta como
um evento puro que pretende emancipar-se da forma diacrônica do tempo e
do presentismo, que entende o presente como algo compreendido entre
passado e futuro; já o aion, pelo contrário, exprimiria sempre algo que está
ocorrendo: [5] “O acontecimento é que nunca alguém morre, mas sempre acaba
de morrer ou vai morrer, no presente vazio do Aion, eternidade”. [6]
Como é oportunamente observado por Eli Borges Júnior: “Essa é a potência
paradoxal do Aion, instante capaz de desdobrar um acontecimento num
in nito de partes, e portanto de possibilidades, incertas, imprevistas. Não há
como prever o in nito”. [7]
Identi camos aqui uma primeira interpretação do aion e do ato como evento
inovador e imprevisto, não por acaso identi cado por Platão como “átopon”:
Em primeiro lugar, toda a linha do Aion é percorrida pelo Instante, que não
para de se deslocar sobre ela e faz falta sempre em seu próprio lugar. Platão diz
muito bem que o instante é atopon, atópico. Ele é a instância paradoxal ou o
ponto aleatório, o não-senso de superfície e a quase-causa, puro momento de
abstração cujo papel é, primeiro, dividir e subdividir todo presente nos dois
sentidos ao mesmo tempo, em passado-futuro, sobre a linha do Aion. [8]
Enquanto centrada na temporalidade do ser e em seu devir, a loso a
heideggeriana apresenta-se, também, como uma loso a do devir do ser,
embora não no sentido de um movimento ou um agir próprios. Em uma
perspectiva diversa daquela de Deleuze, podemos encontrar, por sua vez, em
Heidegger, elementos para interpretar o ato e, assim, a dimensão de uma
interação conectiva, segundo signi cados não alinhados à ideia de ação.
Recorda-se, em primeiro lugar, que, ao contrário do que é sustentado por
alguns de seus críticos, [9] a obra de M. Heidegger não tem como objetivo o
desenvolvimento de uma metafísica do ser, ou seja, a construção de uma
interpretação abstrata e teórica. Ao contrário, é justamente a partir da crítica e
do total desacordo com tal nalidade, própria da tradição losó ca ocidental,
que o lósofo alemão pretendia proceder na construção de uma linguagem não
metafísica e, portanto, não somente abstrata e atemporal. Em outros termos, é
necessário recordar que a loso a de Heidegger não constrói uma arquitetura
sólida de abstrações teóricas, como muitos preferem acreditar, mas, como é
sustentado por G. Vattimo e E. Levinas, opta por usar a linguagem como um
caminho e como lugar de pesquisa.
A linguagem torna-se, assim, no interior da loso a não metafísica – no
sentido da tradição ocidental – de Heidegger, não o instrumento de criação de
conceitos abstratos e meta-históricos, mas a gramática e a sintaxe que indicam
o caminho, entendido não como verdade, mas como processo de desvelamento
(αλεθήία): A isso se deve agregar a extrema fragmentariedade da formulação do
pensamento heideggeriano, que, depois da introdução à metafísica, última
obra de certa amplitude e organicidade […] exprime-se em geral pela forma de
ensaio; forma que não é casual, mas manifesta o caráter constitutivamente de
“tentativa” de tal pensamento, que, desejando superar a metafísica, não pode,
antes de tudo, aceitar a sua terminologia, a gramática, a sintaxe, a sua própria
lógica. A aguda consciência da problemática dos próprios instrumentos com os
quais o pensamento se formula (recorde-se a a rmação de Heidegger segundo a
qual Ser e tempo é interrompido pela perda da linguagem) torna impossível a
clareza e a organicidade de elaboração […] Essa fragmentariedade não exclui,
antes supõe, como sua justi cação profunda, um o condutor unitário do
pensamento heideggeriano; o pensamento se faz tentativa. [10]
Dada essa importante premissa, é possível compreender como a passagem do
homem para o ser, própria da virada heideggeriana, constitui um elemento
central para a interpretação da proposta re exiva do lósofo alemão,
contemplando, mesmo, a substituição da ideia do ser pela de “objeto”
representado por um sujeito pensante e pela implementação de um ser-aí que
contemple, assim, também o eu pensante no interior do ser, entendido não
mais como entidade abstrata e externa.
Tal opção comporta, além da superação da metafísica, “um novo modo de
exercitar o próprio pensamento”, [11] uma vez que não se trata de substituir
uma ideia do ser por outra, nem de elaborar conceitos, interpretações e uma
nova noção do mesmo, entendido como objeto, mas de “ser-com” e “ser-aí”. É
nessa linha que se pode pensar, em Heidegger, a passagem da ação ao ato e a
substituição da ideia de uma ação interpretativa, realizada por um ente em
direção ao exterior e a um objeto, ou a uma alteridade, com aquela de um
dasein e de um ser-aí-com. É justamente durante os vários esclarecimentos
referentes à relação entre ser e homem que Heidegger recorre ao uso dos
termos ereignen (acontecer) e Ereignis (evento).
Ao tratar de tal assunto, seja no texto Carta sobre o humanismo ou na
conferência Sobre a essência da verdade, Heidegger toma distância tanto do
subjetivismo quanto do objetivismo, considerados ambos produções e
abordagens metafísicas, substituindo-os pelo “projeto de sentido do ser”: Nesse
projeto do sentido do ser, o pensamento, enquanto posição do problema do
ser, não é mais primeiramente atividade de que o homem disponha a seu
arbítrio: a metafísica não é um erro deste ou daquele pensador, ou de todos,
mas é, antes de tudo, um modo de determinar-se do próprio ser, o qual ocorre,
certamente, na atividade do homem e, de qualquer modo, por sua obra. [12]
Tal perspectiva tolhe ao homem tanto o papel de espectador da história do
ser como o de autor e narrador desta. Em vez de pôr em contraposição o
homem e o ser, Heidegger descreve um singular tipo de interação pela qual um
é parte do outro: se é o ser a pensar o homem enquanto parte de sua realidade,
segundo a ecologia da quadratura (Geviert), por outra, o ser devém e é somente
enquanto há o “ser-aí”, ou seja, enquanto existe o ente.
O ser, assim, é sempre um acontecer (ereignen) ou, também, um fazer
acontecer e um instituir que acontece e institui somente enquanto evento. De
essência estável e imutável própria da metafísica ocidental, o ser em Heidegger
torna-se movimento, devir e evento. Em Heidegger, o evento é uma condição
contraditória que exprime a particular dependência entre homem e ser: “O
homem é apropriado ao ser, o ser, por sua vez, é entregue ao homem”. [13] É tal
contraditória interdependência, feita de apropriações e expropriações, que
constitui o evento, que se apresenta, então, não como uma essência, mas como
um advento: “O mundo do Ereignis é o mundo do m da metafísica: quando
o ser não deixa mais pensar como simples presença, mas pode aparecer como
evento”. [14]
Uma primeira interpretação do evento em Heidegger, assim, aparece-nos
como um tipo de relação não social, nem relacional, em que o ser não está
relacionado simplesmente ao homem – enquanto esse tem necessidade do
primeiro para acontecer – e em que o homem pode acontecer a si mesmo
somente ao abrir-se e doar-se ao ser. Em outros termos, o evento descreve uma
condição na qual o homem não é jamais em si mesmo, pois não é jamais em si
mesmo sem o ser, mas, da mesma forma, o ser não pode ser sem o homem:
Dizemos muito pouco do ser em si mesmo quando, ao dizer o ser, deixamos de
fora seu ser presente ao homem, desprezando, assim, que este último entre, ele
próprio, a constituir o ser. Mesmo do homem dizemos sempre muito pouco
quando, dizendo o ser (não o ser do homem), consideramos o homem por si
mesmo e somente em um segundo momento o colocamos em relação com o
ser. [15]
Encontramos, portanto, o primeiro signi cado de uma relação que podemos,
livremente, utilizando a linguagem contemporânea, de nir como um evento
conectivo.
No ensaio sobre Hölderlin e a essência da poesia, Heidegger descreve o
evento nos termos de uma criação e operação da verdade, interpretando-a não
como uma produção e uma descoberta do ente, mas como um acontecimento
poetado: “A verdade como iluminação e ocultação do ente acontece enquanto é
gadichtet, poetada”. [16]
Comentando tal verso, Vattimo nos explica o signi cado do acontecer da
verdade como uma não ação e como um ato de criação:
A obra enquanto operação da verdade, isto é, como abertura do ente na sua
totalidade e fundação de um mundo, não provém do ente, mas do nada do
ente; é novidade radical, isto é, criação. Criar, inventar, conceber são alguns
dos significados do verbo alemão dichten, do qual também provém Dichtung,
poesia, e, portanto, antes de tudo, criação, instituição do novo. [17]

Resulta disso, assim, a concepção que descreve a linguagem como a sede do


acontecer do ser, identi cando, portanto, o evento com a linguagem, a poesia e
a criação e não, dessa forma, com uma ação ou um movimento, revelando sua
dimensão comunicativo-conectiva.
αιον-1 - A TRANSUBSTANCIAÇÃO: O SANGUE DIGITAL E A
SUBSTÂNCIA CONECTIVA
O sangue, substância biológica interna ao organismo, composto por células,
fragmentos de células (hemácias, plaquetas e leucócitos) e plasma, por sua
matriz extracelular e sua função, é considerado um tecido conectivo uido.
Além de seu poder informativo, durante a sua constante passagem pelos vasos
capilares, é caracterizado pela alteração contínua da sua composição, devido à
troca com o líquido intersticial, embora mantendo, todavia, sua composição
básica. O sangue, então, apresenta-se como uma substância conectiva e, assim,
como uma substância sem essência própria, mas com uma rede composta por
outras substâncias cuja composição assume, por meio da conexão,
continuamente, formas diversas.
Mas como pensar a condição dessa substância conectiva quando essa se
digitaliza? Ou seja, quando a sua dimensão conectiva entra nas redes digitais e
assume, por meio da digitalização, a-dimensões aorísticas?
Na noite de 20 de junho de 2009, a estudante de loso a Neda Salehi Agha-
Soltan fora assassinada por milícias armadas do governo iraniano enquanto se
manifestava contrariamente aos resultados das eleições daquele ano, que
haviam con rmado a vitória do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Um vídeo
amador, realizado por um manifestante com seu celular, que havia gravado os
últimos momentos de vida de Neda, seria postado nas redes, alcançando, em
poucos dias, uma enorme quantidade de acessos que geraram uma intensa
comoção mundial e uma enorme quantidade de movimentos de protesto, os
quais levaram ao isolamento mundial o governo iraniano. As dramáticas
imagens que mostravam o sangue da jovem vítima sobre o asfalto tornaram-se,
desde então, símbolo da luta de resistência não só no Irã, mas em muitas outras
partes do mundo, despertando a sensibilidade e a indignação das populações
dos outros países árabes do Oriente Médio e do Norte da África. Neda torna-se
o símbolo inspirador de muitas revoltas e uma imagem da necessidade de
mudança que, em pouco tempo, incendiaria a quase totalidade dos países
árabes.
Na noite de uma quinta-feira, 13 de junho de 2013, no Brasil, durante as
manifestações espontâneas ocorridas em São Paulo contra o aumento da tarifa
do bilhete de transporte público, e contra o uso do dinheiro público para a
construção de estádios a serem utilizados durante a Copa do Mundo de
Futebol de 2014, a polícia deu início a uma maciça repressão, ferindo
duramente numerosos manifestantes. As imagens das postagens e do sangue
espalhado nas calçadas e ruas da cidade foram gravadas pelos manifestantes
com seus celulares e postadas em rede, disseminando-se pelo mundo. Os
grandes meios de comunicação de massa, tendo acompanhado as manifestações
nos dias anteriores e criticado as formas de atuação e as razões dos protestos,
mudaram de forma radical a sua narrativa, difundindo as mesmas imagens
postadas pelos manifestantes em rede e criticando a repressão da polícia. Nos
dias posteriores, as ruas brasileiras se encheram de um número ainda maior de
manifestantes.
O sangue digital havia conseguido alterar a ação repressiva das armas dos
policiais, modi cando-a no seu contrário e transformando-a de ação de
dissuasão, anti-insurreição, em uma potente operação agregadora de
manifestantes e de formas de protesto antigoverno. Além dos possíveis
signi cados sociais e políticos, é apropriado re etir sobre a natureza desse
sangue, que, sem negar sua dimensão biológica e orgânica, assume, ao mesmo
tempo, uma inédita dimensão informativa que transforma a substância
originária em uma potente matéria informativa e conectiva. Uma infomatéria
complexa, substância viva que, a partir das conexões possibilitadas pelos
circuitos informativos inorgânicos, torna-se comunicante de outro modo,
adquirindo uma forma transespecí ca e uma nova identidade.
De substância interna, espalhada pelo asfalto, uma vez lmada e publicada
on-line, derrama e transborda nos bits informativos, tornando-se código
informativo e chegando a difundir-se em cada região do planeta. Mais do que
uma expansão comunicativa, a aquisição do estado informativo transforma a
sua natureza originária e deve ser entendida como uma alteração da própria
substância, que se torna conectiva e comunicante em uma esfera diversa
daquela orgânica. A função comunicativa desenvolvida pelo sangue no interior
do corpo humano torna-se uma forma comunicativa global e planetária,
alterando qualitativamente sua natureza física. O sangue, substância material,
espalhado sobre a terra e imediatamente evaporado ou lavado e retirado do
solo e da vista, uma vez conectado às redes digitais e transformado em bits,
assume nova vida, continuando a existir, a expandir-se e a comunicar,
mantendo, assim, uma vida ativa própria.
A natureza imaterial do sangue não se põe, portanto, como a negação da sua
dimensão orgânica e material, tampouco como expressão de um formato de
simulacro (J. Baudrillard) ou virtual (P. Virilio), mas como algo diverso, como
uma substância atípica, mas não completamente outra, que, ainda que em
estreita relação com sua versão orgânica e material originária, altera
profundamente a sua dimensão e função comunicativa anterior.
A não natureza e a pluri-identidade do sangue digital nos convidam a superar
as simpli cações dicotômicas e existencialistas, que, partindo de postulados
que de nem, a priori, a existência opositiva entre real e virtual, matéria e
informação etc., chegam facilmente a conclusões tanto de nitivas quanto
previsíveis e, em última instância, facilmente compreensíveis.
Refutando a ideia da dialética, que funda boa parte de seu discurso
explicativo nas essências ontológicas opositivas da tradição do pensamento
ocidental, as ecologias transorgânicas formadas e habitadas pelo sangue digital
convidam-nos para uma abertura aos signi cados conectivos próprios das
formas comunicativas atópicas do habitar, não mais somente sociais, nem
apenas orgânicas ou inorgânicas. A forma do sangue digital é complexa e
requer uma análise aprofundada, ainda mais porque tal interpretação pode ser
aplicada a todos os tipos de substâncias e a todos os tipos de superfícies
conectadas pelas últimas gerações de arquiteturas de redes digitais. Das orestas
tropicais às calotas polares, passando pelas águas dos oceanos, os bancos de
dados e as diversas redes que conectam todos os tipos de superfície, tornando
aquilo que era isolado e distante algo próximo e interativo, alterando-lhe assim,
o status e a função ainda que mantendo, ao mesmo tempo, sua forma
originária.
A digitalização assume, assim, as formas oximorosas de uma trans‐
especi cidade informativa e qualitativa que transforma a substância originária
em algo diverso, acessível e informativamente manipulável, mas, todavia, sem
fazer desaparecer sua forma original. As orestas, os ursos polares etc.,
continuam a ser como tais, embora, uma vez conectados às redes digitais,
tornam-se também algo diverso, interagindo e transformando, assim, sua única
e originária identidade.
Trata-se, portanto, de uma particular forma de transformação sem uma
alteração visível da substância que não parece produzir-se materialmente, mas
que aparece como resultado de um processo informativo-conectivo. Traços dos
a-dinamismos das transformações das substâncias não provocadas por acidente,
por uma ação ou um fenômeno físico, mas por um processo informativo-
conectivo, podem ser encontradas em algumas importantes tradições do
conhecimento não cientí co e da espiritualidade. A primeira delas representa
os alquimistas, segundo os quais a puri cação seria o resultado das múltiplas
interações informativas entre matéria e psyché: Segundo os alquimistas, a
interação múltipla e diversi cada de tais processos, centrados
fundamentalmente sobre a diferenciação entre matéria e psyché, teria
conduzido à puri cação, com a emergência de uma nova substância pura, que,
no entanto, parece não surgir naturalmente. […] E é justamente o fato de que
tal nova substância pura não parece surgir naturalmente que sugere a Jung a
ideia de que a alquimia seja interpretada em uma chave simbólica, e não como
uma esotérica pseudociência já desacreditada, então, metáfora de uma
transformação psíquica tanto intrapessoal como interpessoal. [18]
A segunda tradição, seguramente mais próxima das dimensões transorgânicas
do sangue digital, é aquela relativa à concepção teológica do rito católico da
Eucaristia, conhecida como transubstanciação. Tal fenômeno indica a
transformação da hóstia e do vinho em corpo e sangue de Cristo, o que ocorre
durante o ritual da missa, [19] seguido pela oração eucarística: Na doutrina
católica, na Eucaristia, devem ser considerados como elementos caracterizantes
a presença real, o sacramento e o sacrifício. A via, como se costuma dizer na
teologia, para a presença real é a transubstanciação, isto é, Jesus Cristo se faz
presente realmente, verdadeiramente e substancialmente na Eucaristia pela
transubstanciação assim como de nida pelo Concílio de Trento. O conceito de
total conversão de uma substância em outra, sem um lento processo
transformativo físico-químico, mas somente por força de poucas e precisas
palavras contidas na particular fórmula pronunciada pelo sacerdote durante a
consagração litúrgica da Eucaristia, com, ademais, o fato de que tal conversão
deixa intactas as propriedades acidentais da primeira substância sem dar lugar
às propriedades acidentais da nova substância, as quais, embora estando aí,
permanecem como substância, e, en m, o fato de que a substância primeira
seja pão e vinho, enquanto a outra, o corpo, o sangue, a alma e a divindade de
Jesus Cristo, constituem, no complexo, um dos mais altos mistérios da
doutrina eclesiástica, sendo tal propósito denominado como o mistério da fé
por antonomásia. [20]
O fenômeno da transubstanciação pode ser livremente utilizado para
interpretar a “a-natureza” aorística do sangue digital, que, como na perspectiva
da transubstanciação, transforma-se após o processo de digitalização e sua
disseminação em rede, em uma substância diversa, ainda que mantendo a sua
forma originária: Para a teologia católica, portanto, na Eucaristia não há mais
substância de pão e de vinho, nem se pode dizer que se anula, mas só que se
converte, segundo um processo ainda desconhecido pela ciência, no corpo e no
sangue de Jesus Cristo. Por isso, onde há o corpo e o sangue de Jesus Cristo há
também a sua alma e sua divindade; há a presença real de Cristo propriamente
em virtude dessa conversio totalis, cujo signi cado, indo além daquele
insu ciente assumido pelos termos transformação ou transmutação, requereu-
lhe uma coniato ad hoc, isto é, o signi cado de transubstanciação, que, de
qualquer maneira, pode resumi-los. Assim, Jesus Cristo está plenamente
contido em ambas as espécies, em cada uma delas, em cada fragmento delas e
em todas as espécies consagradas. Uma característica peculiar da
transubstanciação é, portanto, envolver a transformação de uma substância não
acompanhada de qualquer mudança de acidentes das espécies eucarísticas, o
que não implica uma irrealidade do processo de conversão para
transubstanciação (milagre eucarístico) somente enquanto há uma
transformação de substância, mas não de acidentes. [21]
À luz de tais re exões, podemos identi car as interações propostas pelas
práticas alquimistas e aquelas da interpretação católica da transubstanciação
como os antecedentes das formas comunicativas conectivas que caracterizamos
como um processo ligado às particulares formas de interações transorgânicas.
Essas advêm no contexto das ecologias reticulares digitais e, portanto, como
uma condição habitativa atópica, ou seja, ligada às particulares formas
comunicativas instauradas pelas últimas gerações de conexão. Nessas formas,
de modo semelhante aos dois antecedentes brevemente apresentados, a
dimensão conectiva e reticular produz mudanças e alterações sem ação.

αιον-2 - A-DINAMISMOS CONECTIVOS


O deslocamento do agir para fora do âmbito do social e de sua dimensão
dinâmico-subjetiva, além de sua suspensão no interior das interações
conectivas transorgânicas, próprias das redes digitais, levou-nos a superar a
ideia agregadora do social e a substituí-la pela forma das arquiteturas e
condições habitativas transorgânicas, ou seja, produzidas pelo processo de
digitalização, entendido como a conexão e a alteração das substâncias. A
superação da perspectiva social da ação nos leva a pensar as formas de um agir
informativo, e não dinâmico, que não é plenamente compreensível nem
mesmo por meio do epíteto “actante”, pois, nos contextos transorgânicos das
redes conectivas, cada parte, mais do que ser conduzida pela ação de outros (B.
Latour), sofre uma alteração de seu estado originário e uma transformação de
sua substância. Uma contribuição em tal direção nos é oferecida por alguns
conceitos utilizados por Heidegger, expressos, como já visto, pelos termos ser-
com (mitsein), ser-aí-com (mitdasein) e co-mundo (mitwelt).
No contexto do pensamento do lósofo alemão, os termos estão em estreita
relação com o habitar e indicam a forma relacional e não autocentrada do ser.
O ser em Heidegger é somente enquanto habita, enquanto relação ecológica e
enquanto quadruplicidade (terra, céu, divinos e mortais): “Sobre o
fundamento desse ser no mundo ‘com’, o mundo é já sempre aquele que
compartilho com os outros. O mundo do ser-aí é co-mundo. O ser-aí é um
ser-com com os outros. O ser in se intramundano dos outros é um ser-aí-com”.
[22]

Na loso a linguística de Heidegger, tudo aquilo que existe coexiste, ou seja,


habita sob o céu, sobre a terra, próximo aos divinos e aos mortais. A essência
do ser, própria da ontologia metafísica da loso a ocidental, que buscava a sua
plenitude em si mesma, é desestabilizada por Heidegger e substituída por um
ser-com (mitsein) e, então, por um devir relacional, mas não social: Ou a
existência é “com”, coexistência, ou não existe. O com não é algo que se agrega
pelo exterior no ser da existência. É precisamente aquilo que o faz ser aquele
ser que é. Por isso, em Heidegger, está completamente ausente qualquer
possibilidade de um ego ou de um ipse que não seja já desde sempre um nós.
[…] A existência, em suma, só pode ser declinada na primeira pessoa do plural:
nós somos. Atenção não no sentido da intersubjetividade – e menos ainda
naquele da intencionalidade, segundo o qual um dado subjetivo remete a um
outro transcendente ao primeiro. Heidegger deixa de nitivamente para trás o
tradicional problema da passagem da imanência do eu à transcendência do
outro […] Desse ângulo de visão, a posição de Heidegger é incompatível com
todas as loso as da alteridade. [23]
A distância do pensamento de Heidegger não se dá apenas em relação à
subjetividade e a todas as loso as do eu, mas também, portanto, às loso as
da interobjetividade na medida em que o outro, entendido tanto como
entidade ou como pessoa, não pode ser aproximado ou agregado, pois “o eu” e
“o outro” são sempre um ser-com e um co-mundo.
Desse original ponto de vista, é superada também a dimensão agregadora do
social e a perspectiva agregadora entre as diversas entidades. É no habitar que
precede o social que se é e se devém. Enquanto co-mundo entre um eu e um
outro, não pode haver pontes ou caminhos a percorrer, pois o ser não pode ser
mais do que um “ser-com” e um contrário do indivíduo: O outro não pode ser
aproximado, absorvido, incorporado pelo um – ou vice-versa – porque é já
com o um, visto que não há um sem o outro. Nesse sentido, não se pode
sequer dizer um nós que não seja sempre um nós-outros. Isso signi ca, para
Heidegger, partir não do eu, e do não eu, mas do com que nós somos juntos
aos outros, não como pontos que em certo momento se agregam, nem no
modo de um conjunto subdividido, mas naquele de ser desde sempre os uns-
com-os outros e os uns-dos outros. [24]
Tal perspectiva de Heidegger assemelha-se àquela das interações nas redes
digitais transorgânicas e pode nos ajudar a pensar a dimensão conectiva e,
portanto, a-dinâmica do ser-rede. Nas arquiteturas conectivas dos sistemas
informativos geográ cos e dos games interativos e geolocalizados, nas formas de
net-ativismo, a ação, enquanto nem interna nem externa, não só não é
transitiva, em direção ao exterior ou a uma alteridade, mas se torna uma forma
e uma condição do habitar e, então, um ser-com, um co-mundo e não mais
um agir.
O co-mundo e o ser-com das redes digitais transorgânicas não se apresentam,
portanto, como um social agregador e dinâmico, mas como uma ecologia
conectiva que exprime um interagir que já somos.

αιον-3 - POKEMON GO: A INFOAÇÃO


A difusão em escala mundial do Pokemon Go nos coloca diante de um
fenômeno crescente que remete mais do que à dimensão social das redes e das
tecnologias digitais, à alteração da condição habitativa e à profunda vocação
ecológica das formas comunicativas. Da escrita ao cinema e às formas de
comunicação em massa, difundidas por meio da e com a eletricidade, as
arquiteturas comunicativas, além de alterarem as formas e os modos de
interação, contribuíram para a transformação de nossa condição habitativa,
alterando nossa percepção do espaço e modi cando nossa interação com o
ambiente. Das esferas públicas nacionais aos eventos midiáticos globais, as
formas técnicas do comunicar modi caram nossas ecologias, transferindo-se
das arquiteturas materiais e dos espaços físicos, feitos de tijolos e pedras, para as
metaterritorialidades e metageogra as não mais somente materiais. Nossos
espaços urbanos e nossas geogra as físicas começaram, assim, a tornar-se algo
diverso, expandindo-se a uma dimensão informativa que alterava sua essência
originária. As redes de os elétricos ou telefônicos, que, atravessando os muros,
entravam em todos os edifícios, transformaram as cidades em metrópoles
globais, alterando, entre outras questões, a experiência social vivida em seu
interior, as relações, a economia e suas próprias dimensões.
O processo de digitalização segue, portanto, essa tradição, mesmo que
assuma características e dimensões qualitativamente diversas, como
demonstrado pelo último game Pokemon Go, realizado, para os sistemas
operacionais móveis do iOS, da Niantic, com a colaboração da Nintendo. O
jogo interativo que se dá por meio de uma arquitetura de realidade aumentada,
geolocalizada com GPS, permite ao usuário conectado a seu dispositivo
portátil caçar os pokemons, identi cando a sua presença em ruas das cidades a
partir da visualização e da localização deles na tela de seu smartphone ou tablet.
Nem real nem virtual, o Pokemon Go nos mostra as in nitas declinações de
um habitar híbrido e atópico (do grego ατοπος: lugar atípico, lugar fora de
lugar, lugar inde nido) que exprime a condição de uma ecologia conectiva
que, por meio das arquiteturas digitais, torna possível a experimentação de
uma interação infomaterial, composta pela sinergia de espaços físicos, corpos,
informações, dados, territórios etc.
No habitar realizado pela ecologia do Pokemon Go, assistimos à alteração da
ecologia frontal, própria da cultura do habitar ocidental na qual o território era
algo externo, material e separado do indivíduo, e a sua substituição por um
hábitat emergente e informativo, no qual o espaço se torna habitável e a
interação possível somente por meio da conexão a dispositivos e uxos
informativos.
Tais ecologias conectivas e transorgânicas – que, por meio dos processos de
digitalização de última geração, conseguem conectar as diversas superfícies no
interior da biosfera (Internet of things, geo-media etc.) –, descrevem uma
condição habitativa complexa, no interior da qual é possível pensar a ação
como um deslocamento no espaço de um sujeito ou de um actante (B.
Latour). De fato, o processo de digitalização, alterando o estatuto da matéria a
uma dimensão informativa, instaura um a-dinamismo interativo que
transforma o agir do sujeito-ator, ou de uma quase entidade ativa, em um uxo
informativo resultado de uma ecologia de interações complexas no interior da
qual não é a ação ou o construir que desenvolvem o habitar, mas é o habitar
mesmo, criado pelo processo de digitalização, que propõe condições habitativas
especí cas de interação. Em outros termos, não são as redes de interações
agregadoras que formam um social, mas são essas a consequência e o resultado
do processo de digitalização já ocorrido, cuja não natureza supera as dimensões
sociais.
Podemos encontrar, ainda que em um contexto diverso, uma analogia entre a
relação processo de digitalização – interação e o aspecto da cultura teológica
cristã que identi ca a relação de dependência da vida comunitária com respeito
à criação. Na primeira carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo estabelece a
origem e o lugar especí co de pertencimento da comunidade não na ética
comunitária ou na igreja (ecclesia), mas na comunhão com Cristo (Koinonia),
ou seja, em uma dimensão e perspectiva que faz coincidir o início da dimensão
comunitária com a própria criação. [25] Seguindo a perspectiva de Paulo,
Agostinho de Hipona sublinhará a qualidade não voluntarística da dimensão
comunitária. Essa não seria o resultado de uma agregação vitalística ou de um
querer ser, mas apenas a consequência da advinda criação e da comum
condição mortal: Poder-se-ia dizer que Agostinho altera em uma chave ainda
mais irredutivelmente antinômica a mensagem paulina. Não somente, de fato,
a dialectio proximi é pensada a partir da essência criatural – isto é, nita,
heterônoma, não subjetiva – da criatura. Aquilo que nos liga em uma mesma
comunidade de destino, em um destino comum, é o nosso ser morituri. [26]
O deslocamento da ideia cristã de comunidade empregada por Paulo e
Agostinho, desde o social, a ética, a criação e a origem comum, indica um o
que pode ser útil para identi car os processos não mais apenas sociais e
agregadores das condições habitativas conectivas que produzem infoações não
só subjetivas nem sociodinâmicas. Com efeito, como na koinomia cristã, as
interações e as ações dos diversos membros no interior das ecologias
informativas e emergentes do game Pokemon Go não são produzidas somente
pelos actantes a partir de seu próprio agir, mas sim realizam e se desenvolvem
em consequência das especí cas condições propostas pela arquitetura
informativa e pela forma comunicativa habitativa por esta criada. A
complexidade das infoações produzidas pelas condições habitativas atópicas,
como aquelas expressas pelo Pokemon Go, convidam-nos a superar as ecologias
sociais e as dinâmicas agregadoras da ação entre sujeitos e “sócios”, abrindo-nos
às perspectivas não geométricas de um agir informatizado, nem sujeito nem
tecnocêntrico.
A ecologia da interação no interior do Pokemon Go é complexa e advém em
um habitar não completamente arti cial, nem completamente inatural, que
estimula um a-movimento informativo “aorístico” (do grego, ᾰ̓όρῐστος,
“ilimitado”), diferente da ação, que não se realiza apenas no espaço físico, nas
ruas ou nas praças de uma cidade, mas em uma ecologia mais complexa,
híbrida e complexa, composta por mais entidades e substâncias conectadas.
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Coleção Comunicação

• Caminhos cruzados da comunicação (Os): política, economia e cultura, José Marques de Melo •
Comunicação e cultura das minorias, Raquel Paiva; Alexandre Barbalho (orgs.)
• Comunicação e democracia: problemas & perspectivas, Wilson Gomes; Rousiley Celi Moreira Maia
• Comunicação e identidade: quem você pensa que é?, Luís Mauro Sá Martino
• Comunicação e sociedade do espetáculo, Valdir José de Castro; Cláudio Novaes Coelho
• Comunicação mediações interações, Lucrécia D´Alessio Ferrara
• Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação, Lucia Santaella
• Comunicação verbal – Educação vocal: o teatro – fonte e apoio, Terezinha Nackéd Zaratin
• Corpo e comunicação: sintoma da cultura, Lucia Santaella
• Cultura, comunicação e espetáculo, Cláudio Novaes Pinto Coelho; Valdir José de Castro
• Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, Lucia Santaella
• Dromocracia cibercultural (A): lógica da vida humana na civilização mediática avançada, Eugênio
Trivinho
• É preciso salvar a comunicação, Dominique Wolton
• Ecologia pluralista da comunicação (A): conectividade, mobilidade e ubiquidade, Lucia Santaella
• Escavador de silêncios (O): formas de construir e de desconstruir sentidos na comunicação, Ciro
Marcondes Filho
• Ética e comunicação organizacional, Clóvis de Barros Filho (org.)
• Explorador de abismos (O): Vilém Flusser e o pós-humanismo, Erick Felinto; Lucia Santaella
• Futuro da internet (O): em direção a uma ciberdemocracia, André Lemos; Pierre Lévy
• História do jornalismo: itinerário crítico, mosaico contextual, José Marques de Melo
• História do pensamento comunicacional: cenários e personagens, José Marques de Melo
• Linguagens líquidas na era da mobilidade, Lucia Santaella
• Mídia e cultura popular: história, taxionomia e metodologia da Folkcomunicação, José Marques de
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• Mídia e poder simbólico: um ensaio sobre comunicação e campo religioso, Luís Mauro Sá Martino
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• Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo, Lucia Santaella
• Net-ativismo: da ação social para o ato conectivo, Massimo Di Felice
• Pensamento comunicacional brasileiro: o legado das ciências humanas – vol. I – História e
sociedade, José Marques de Melo; Guilherme Moreira Fernandes
• Pensamento comunicacional brasileiro: o legado das ciências humanas – vol. II – Cultura e poder,
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consumo, José Marques de Melo; Guilherme Moreira Fernandes
• Princípio da razão durante (O): comunicação para os antigos, a fenomenologia e o bergsonismo –
Tomo I – Nova teoria da comunicação III, Ciro Marcondes Filho
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metapórica – Tomo V – Nova teoria da comunicação III, Ciro Marcondes Filho • Produção social da
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comunicação entre inovação e enraizamento social, Bernard Miège • Temas e dilemas do pós-
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NOTAS

PARA ALÉM DAS FORMAS SOCIAIS DA PARTICIPAÇÃO


[1] Pensemos no imenso trabalho dos jesuítas ao divulgar o conhecimento
tipográfico e os sistemas universitários de ensino no mundo.
[2] Sobre isso ver a crítica a tal dicotomia elaborada por B. Latour na obra Nous
n’avons jamais eté modernes (LATOUR, 1991).
[3] Em tal direção seguem os estudos de J. Meyrowitz, os quais, negando a
perspectiva de Erving Goffman – que limitava a situação social às suas dimensões
físicas e arquitetônicas, aprisionando assim o social na antinomia público-privado –,
propõem uma leitura informativa da mesma.
[4] LATOUR, B. Reassembling the social: an Introduction to Actor-Network-Theory.
New York: Oxford University, 2005.
[5] BOBBIO, N. Il futuro della democrazia. Torino: Einaudi, 1994.
[6] Dentro dessa tradição, podemos contemplar as obras de M. McLuhan, G.
Vattimo, M. Castells, Amartya Sem, A. Abruzzese e P. Lévy.
[7] O papiro, leve e fácil de transportar, permitirá a fácil circulação de informações
dentro de extensos territórios, facilitando a ampliação dos impérios egípcio e
romano; a argila e o pergaminho, ao contrário, menos duráveis e transportáveis,
promovem a restrição do acesso às informações e formas regionais de poder, como
durante a época medieval.
[8] Analisei as dinâmicas e formas comunicativas do habitar em meu livro Paisagens
pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (DI
FELICE, 2009).
[9] A expressão “morfologia social” foi elaborada por É. Durkheim em A divisão
social do trabalho e As regras do método sociológico, e refere-se aos elementos
naturais e estruturais que compõem a realidade social. Segundo Gallino, a
morfologia social dedica-se ao “estudo da distribuição territorial dos fenômenos
sociais a partir das formas de assentamento da população, e em geral da
configuração e localização espacial de coletividades, grupos, atividades econômicas,
políticas e culturais, processos sociais […] de determinada sociedade, voltado a lançar
luz sobre a topografia específica dos fenômenos observados e suas variações na
relação com as características do ambiente natural e artificial (rural e urbano) e com a
composição, o volume e a densidade da população da área” (GALLINO, 1988).
[10] Faz-se referência aqui à ideia desenvolvida por Heidegger sobre o habitar e por
mim reelaborada no livro Paisagens pós-urbanas (2009).
[11] HAECKEL, E. Generelle Morphologie der Organismen. Allgemeine Grundzüge
der organischen Formen-Wissenschaft, mechanisch begründet durch die von Charles
Darwin reformierte Descendenz-Theorie. Varsóvia: De Gruyter, 2011.
[12] STRASSOLDO, R. Ecologia. Roma: Istituto della Enciclopedia Italiana fondata da
Giovanni Treccani, 2014.
[13] O conceito de atopia (do grego, ατοπος: lugar indecifrável, algo fora do lugar,
lugar indizível) foi por mim tratado em livro anterior: “atopia não como um não-
lugar, nem como uma metaterritorialidade, mas como uma outra ecologia,
construída a partir da interação fértil de tecnologias informativas, territorialidades e
vidas que se transformam por conta do fluxo de arquiteturas informativas distribuídas
por peles sem natureza”. Em: Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e
as formas comunicativas do habitar (2009).
[14] MEYROWITZ, J. No sense of place. New York: MIT Press, 1984, p. 60.
[15] Idem, p. 61.
[16] Idem, p. 65.
[17] No texto A arte e o Espaço, Heidegger relaciona o fazer espaço ao habitar,
definindo-o como aquilo que “confere a localidade que prepara, ao longo do tempo,
um habitar […] no fazer espaço fala-se e esconde-se, ao mesmo tempo, um
acontecimento” (HEIDEGGER, 1979).
[18] PERNIOLA, M. L’estetica del novecento. Bologna: Il Mulino, 1997.
[19] PERNIOLA, op. cit., 1997.
[20] PERNIOLA, op. cit., 1997.
[21] Faz-se referência aqui à ideia desenvolvida por Perniola e presente em diversos
de seus textos, Transiti, Del sentire e Del sentire cattolico.
[22] PERNIOLA, op. cit., 1997.
[23] PERNIOLA, op. cit., 1997.
[24] O conceito de “formas comunicativas do habitar” foi por mim tratado no livro
Paisagens pós-urbanas (2009).
[25] GALLINO, op. cit., 1988.

AS TRÊS ECOLOGIAS DA INTERAÇÃO


[1] Faz-se referência aqui aos significados da forma analisados no capítulo
precedente.
[2] Ver conteúdo da obra Paisagens pós-urbanas (2009).
[3] BATESON, G., 1976; 1984.
[4] WIENER, N. The human use of human beings: Cybernetics and society. Boston:
Houghton Mifflin, 1954.
[5] O termo “agenciamento” faz referência à teoria expressa no âmbito
antropológico: “Agenciamento é a soma ou o crescimento das dimensões numa
multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que aumenta suas
conexões” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F.; in MARCONDES, C., 2009).
[6] Provavelmente tal dissolução comece com a própria voz, ou seja, com a aquisição
da linguagem artificial humana.
[7] Ver a respeito os estudos da Escola de Toronto (M. McLuhan, H. Innis etc.) até as
obras sobre comunicação digital de P. Lévy, L. Manovich, D. De Kerckhove, A.
Abruzzese, J. Bragança de Miranda, entre outros.
[8] FLUSSER, V. O mundo codificado. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
[9] BENJAMIN, W. L’opera d´arte nell´epoca della sua reproducibilità tecnica. Turim:
Einaudi, 1966.
[10] BENJAMIN, op. cit., 1966.
[11] MCLUHAN, M. Gli strumenti del comunicare. Milano: Il Saggiatore, 1967.
[12] MEYROVITZ, J. Oltre il senso del luogo. Bologna: Baskerville, 1993.
[13] “A ecologia é a ciência da interação entre espécies diversas no interior de
determinado espaço; as espécies às quais nos referimos aqui são as espécies de
comunicação, próximas ou distantes, fugazes ou registradas, táteis ou auditivas,
pessoais ou anônimas que reagem efetivamente uma sobre a outra dentro de um
espaço delimitado, seja esse as vinte e quatro horas de um dia, seja o espaço social
do planeta” (MOLES, in MORAGAS, M., 1986).
[14] FLUSSER, 2007, op. cit.
[15] ROMANO, V. Ecología de la comunicación. In: http://www.google.it/url?
url=http://dialnet
unirioja.es/descarga/articulo/233077.pdf&rct=j&frm=1&q=&esrc=s&sa=U&ved=0ahU
KEwi4ksqMx9zKAhXHqB4KHTm2BjEQFggWMAA&usg=AFQjCNHrb_pjsM80sY6KYD
qKrsnCqy7_-A. Acesso em: 10 maio de 2016.
[16] Para Romano, “a comunicação ecológica não apenas transmite sinais e
informações, mas também estabelece necessariamente relações e cria comunidades.
Compreende o aspecto sígnico, informativo, relacional e ambiental da comunicação
humana”. In: http://www.google.it/url?
url=http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/233077.pdf&rct=j&frm=1&q=&esrc=s&
sa=U&ved=0ahUKEwi4ksqMx9zKAhXHqB4KHTm2BjEQFggWMAA&usg=AFQjCNHrb
_pjsM80sY6KYDqKrsnCqy7_-A. Acesso em: 10 de maio de 2016.
[17] PETERS, J. D. The marvelous clouds. Chicago: The University of Chicago Press,
2014.
[18] ABRUZZESE, A. Lo splendore della Tv. Origini e destino del linguaggio
audiovisivo. Genova: Costa & Nolan, 2000.
[19] O estudo, com o título As relações entre tecnologia e inovação nas teorias das
mídias: fundamentos teórico-metodológicos para o estudo das mídias digitais, foi
realizado como pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo sob minha orientação e por meio de uma bolsa de estudos da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), durante período
compreendido entre 2012 e 2014.
[20] DI FELICE, M.; TORRES, J. C.; YANAZE, L. Redes digitais e sustentabilidade. São
Paulo: Annablume, 2012.
[21] VATTIMO, G. “Introduzione a Heidegger”. In: HEIDEGGER, 1979.
[22] HEIDEGGER, op. cit., 1979.
[23] HEIDEGGER, M. “Costruire, abitare, pensare”. In: Saggi e discorsi. Milano:
Mursia, 1977.
[24] PETERS, J. D. Parlare al vento. Roma: Meltemi, 2005.
[25] Preferimos o termo “arquitetura da informação” a “media”, uma vez que, ao
contrário desse último, indica o conjunto de relações entre mais elementos
comunicantes, e não apenas um instrumento de difusão de informação.
[26] Como sublinhado por M. McLuhan, “os efeitos das tecnologias comunicativas
não ocorrem apenas no nível das opiniões e conceitos: manifestam-se nas relações
entre os sentidos e nas estruturas da percepção” (MCLUHAN, 1967).
[27] BENJAMIN, op. cit., 1966.
[28] BALDINI, M. Storia della comunicazione. Roma: Tascabili Economici Newton,
1995.
[29] A primeira dessas transformações comunicativas surge com a invenção da
escrita no século V a.C., principiada no Oriente Médio e continuada com a invenção
do alfabeto fonético, que marca a passagem da cultura e da sociedade oral para a
cultura e a sociedade da escrita. A segunda, que teve lugar na Europa em meados do
século XV, provocada pela invenção dos caracteres móveis e da impressão de
Gutenberg, proporcionará a difusão da mídia livro e da leitura de massa, até aquele
momento circunscritas a grupos privilegiados. Já a terceira grande transformação
comunicativa no Ocidente, advinda durante a Revolução Industrial nos séculos XIX e
XX, foi caracterizada pelo advento da era da eletricidade e dos media de massa. Em
cada uma dessas transformações comunicativas, a introdução de um novo meio de
comunicação determinou a possibilidade de alcançar um público cada vez maior, em
um período de tempo e a um custo cada vez menores.
[30] Para aprofundar a questão, consultar o livro Paisagens pós-urbanas (2009).
[31] O advento de um novo media e de uma nova tecnologia da inteligência (P. Lévy)
jamais provocou na história o desaparecimento dos meios de comunicação
anteriores, mas o seu reposicionamento e sua tradução em uma nova vida e
funcionalidade. Nessa linha, o cinema não matou o teatro, assim como a televisão
não fez desaparecer a grande tela do cinema, ou os livros digitais não provocaram a
superação do velho formato do livro em papel.
[32] DI FELICE, M., 2009.
[33] Permito-me citar aqui meus livros Redes digitais e sustentabilidade (2012) e A
Vida em Rede (2014).
[34] Perniola refere-se ao conceito do “já vivido” como uma precisa categoria do
sentir. Ver a respeito em Del sentire (1992).

AS ECOLOGIAS COMUNICATIVAS SOCIAIS


[1] VERNANT, J. P. L’uomo greco. Roma-Bari: Laterza, 1997.
[2] Carta de Paulo aos Tessalonicenses.
[3] PLATÃO. Leis. Lisboa: Edições 70, 2004.
[4] PLATÃO, op. cit., 2004.
[5] TOCQUEVILLE, A. La democrazia in America. Milano: BUR Biblioteca Univ. Rizzoli,
1999.
[6] ORTEGA Y GASSET, J. La rebelión de las massas. Madrid: S.L.U. Espasa Libros,
2005.
[7] Ver a respeito o ótimo livro de SWINGEWOOD, A., 1977.
[8] HABERMAS, J. Teoria do Agir Comunicativo. Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes,
2012.
[9] HABERMAS, 2006, op. cit.
[10] BURKE, P.; BRIGGS, A. Uma história social da mídia. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
[11] GROSSI, G. L’opinione pubblica. Roma-Bari: Laterza, 2004.
[12] GROSSI, 2004, op. cit.
[13] A função social dos media foi amplamente analisada no curso do século XX,
tornando-se um dos motivos recorrentes para a análise e o estudo das ciências
sociais. A análise do papel dos media foi considerada fundamental para interpretar o
significado do advento da nova cultura de massa, sobretudo na sua constituição
como cultura hegemônica e dominante.
São muitos os autores abordados nessa linha de pensamento: de Ortega y Gasset, no
célebre A revolta das massas, passando por T. S. Eliot, em Notes towards a definition
of the culture, até Leavis, com seu Mass civilization and minority culture. Mas serão,
sobretudo, as contribuições da Escola de Frankfurt que irão teorizar sobre o novo
papel da comunicação de massa no contexto da nova fase consumista da sociedade
capitalista e fornecer o fio que, por décadas, condicionará o modo de analisar a
função social dos media. A teoria da indústria cultural, desenvolvida por T. Adorno e
M. Horkheimer, influenciou, durante longo período, os estudos de comunicação e as
análises sobre os significados e suas funções sociais da opinião. Paralelamente a esse
modo de pensar – o qual perdurará até Bourdieu e interpretará a esfera pública como
a emergência de um novo tipo de dominação, reconhecendo na opinião pública as
evidências da alienação cultural e concebendo-a como produto da sociedade
capitalista –, surgirão outros pontos de vista. Na direção oposta, encontramos as
contribuições de A. Gramsci e J. Habermas, ambos propensos a definir a esfera
pública como o lugar de disputa da legitimidade e do poder, atribuindo à opinião
mediatizada o importante papel da construção dialética dos significados sociais.
[14] GROSSI, 2004, op. cit.
[15] HABERMAS, 2006, op. cit.
[16] HABERMAS, 2006, op. cit.
[17] GROSSI, 2004, op. cit.

DEMOCRACIAS ELETRÔNICAS
[1] ABRUZZESE, A., 2000, op. cit.
[2] BENJAMIN, 1966, op. cit.
[3] VATTIMO, G. La società transparente. Milano: Garzanti, 1989.
[4] A análise de Adorno sobre o jazz constitui um exemplo emblemático a respeito
disso. Além dos lucros da indústria fonográfica e sua lógica de produção, o jazz foi,
no contexto racista dos Estados Unidos do início do século passado, o lugar de
encontro entre brancos e afro-americanos, espaço experimental de contaminações
estéticas e musicais e o laboratório da futura democracia americana. Mesmo a
análise musical proposta por Adorno é a expressão de uma concepção eurocêntrica e
limitada aos cânones clássicos da música. Submeter o teorema da indústria cultural a
cada fenômeno da realidade social e cultural aprisionou o pensamento, limitando
definitivamente a abertura a análises mais complexas dos próprios fenômenos
comunicativos e impondo um processo de simplificação que reconduzia cada aspecto
cultural e simbólico apenas a sua dimensão industrial.
[5] BAUDRILLARD, J. Tela Total. Porto Alegre: Sulinas, 2005.
[6] MAFFESOLI, M. La trasfigurazione del politico. Milano: Bevivino, 2009.
[7] MAFFESOLI, op. cit., 2009.
[8] MAFFESOLI, 2009, op. cit.
[9] De Adorno a Ortega y Gasset foram poucos os autores que questionaram tal
abordagem. Exceção representada pela Escola de Toronto e pela interpretação do
modelo semiótico textual de U. Eco.
[10] VATTIMO, op. cit., 1989.
[11] VATTIMO, op. cit., 1989.
[12] GROSSI, op. cit., 2004.

DO PÚBLICO PARA AS REDES


[1] SANTAELLA, L. Navegar no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2004.
[2] LÉVY, P. O que é o virtual? São Paulo: 34, 1999.
[3] SANTAELLA, 2004, op. cit.
[4] DE KERCKHOVE, D. La pelle della cultura. Genova: Costa e Nolan, 1995.
[5] CASTELLS, M. L’età dell’informazione: economia, società, cultura. Milano:
Università Bocconi Editore, 2004.
[6] CASTELLS, 2002, op. cit.
[7] LÉVY, P. As tecnologias da inteligência. São Paulo: 34, 1996.
[8] Ver Paisagens pós-urbanas (DI FELICE, 2009).
[9] BOBBIO, N., op. cit., 1984.
[10] PITTERI, D. Democrazia elettronica. Roma: Laterza, 2007.
[11] RODOTÁ, S. Tecnopolitica: la democrazia e le nuove tecnologie della
comunicazione. Roma-Bari: Laterza, 2004.
[12] PITTERI, op. cit., 2007.
[13] PITTERI, op. cit., 2007.
[14] PITTERI, op. cit., 2007.
[15] Tais cinco modelos de e-democracy são descritos por D. Pitteri em Democrazia
elettronica, op. cit., 2007.
[16] PITTERI, op. cit., 2007.
[17] CASTELLS, M. Reti di indignazione e di speranza. Milano: Università Bocconi
Editore, 2012.
[18] CASTELLS, op. cit., 2012.
[19] Ver LATOUR, B., Reassembling the social: An Introduction to Actor-Network
Theory. New York: Oxford University, 2005. Ver também: CALLON, M.; LATOUR, B.
“Don’t throw the baby out with the Bath School! A reply to Collins and Yearley”. In:
PICKERING, A., Science as practice and culture. Chicago: University of Chicago Press,
1992.
[20] LATOUR, op. cit., 2005.
[21] LATOUR, op. cit., 2005.
[22] LATOUR, op. cit., 2005.
[23] SERRES, M. O contrato natural. Lisboa: Piaget, 1994.
[24] GALLINO, op. cit., 1985.
[25] GALLINO, op. cit., 1985.
[26] Faz-se aqui referência ao conceito de “atopia” por mim elaborado no livro
Paisagens pós-urbanas (2009), cujo significado não diz respeito à simples ausência do
lugar como sugeriria uma tradução literária (a-topos), mas, ao contrário, à
transformação no sentido ecológico e reticular da experiência habitativa, por meio da
interação híbrida entre territórios, dispositivos de conexão, bancos de dados e
corpos.
[27] Analisaremos tal assunto adiante.
[28] Observamos aqui, como veremos em seguida, que a própria análise da TAR
(Teoria Ator-Rede), sobretudo na perspectiva de B. Latour, aborda as transformações
das formas e das arquiteturas do social, mas não de suas correspondentes on-line,
dando às interações e às cartografias um significado, inevitavelmente, absoluto e
abstrato.
[29] RAINIE, L.; WELLMAN, B. Networked: il nuovo sistema operativo sociale. Milano:
Guerini, 2012.
[30] RAINIE; WELLMAN, 2012, op. cit.
[31] A crítica à composição meramente humana do social sociológico foi também
levantada por B. Latour em Reassembling the social… (2005).
[32] MEYROWITZ. No sense of place. New York: Oxford University Press, 1987.
[33] ECO, U. Opera aperta. Milano: Bompiani, 1962.
[34] ECO, op. cit., 1962.

ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO NET-ATIVISMO


[1] LÉVY, op. cit., 1996.
[2] CASTELLS, op. cit., 2002.
[3] DI CORINTO, A.; TOZZI, T. Hacktivism: La libertá nelle maglie della rete. Roma:
Manifesto libri, 2002.
[4] CARDON, D.; GRANJON, F. Mediactivistes. Paris: Presses de Sciences-Po, 2010.
[5] CARDON; GRANJON, op. cit., 2010, p. 83.
[6] SREBERNY, A. “Genre, autonomisation et communication: retrospective et
prospective”. Revue Internacionale des Sciences Sociales, 2 (184), 2005, p. 309-327.
[7] SREBERNY, op. cit., 2005,
[8] LEMOS, A. Cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2003.
[9] MCCAUGHEY, M.; AYERS, M. Cyberactivism: On-line Activism in Theory and
Practice. London: Routledge, 2003.
[10] DI CORINTO, op. cit., 2002.
[11] BEY, H. T.A.Z.: The Temporary Autonomous Zone. Brooklyn (NY): Autonomedia,
1985.
[12] BEY, op. cit., 1985.
[13] BEY, op. cit., 1985.
[14] BEY, op. cit., 1985.
[15] BEY, op. cit., 1985.
[16] BEY, op. cit., 1985.
[17] BEY, op. cit., 1985.
[18] BLISSETT, L. Totò, Peppino e la guerra psichica 2.0. Torino: Einaudi, 2000.
[19] BLISSETT, op. cit., 2000.
[20] BLISSETT, op. cit., 2000.
[21] BLISSETT, op. cit., 2000.
[22] BLISSETT, op. cit., 2000.
[23] Tal concepção pensa as novas tecnologias da informação e da comunicação
como a emergência de nova relação equidistante tanto do paradigma tecnocêntrico
quanto do antropocêntrico, em uma dimensão que toma em uma forma não mais
dialética a relação entre a tecnologia e a sociedade, como já mencionado por
Castells: “o dilema do determinismo tecnológico é provavelmente infundado, dado
que a tecnologia é a sociedade; a sociedade não pode ser compreendida ou
representada sem as suas extensões tecnológicas” (CASTELLS, 2004, p. 43).
[24] Naquela ocasião, García León, mexicano histórico, diria que a tentativa do
exército federal de se aproximar dos insurgentes para capturá-los era algo similar a
querer prender o arco-íris.
[25] Comunicado do Subcomandante Marcos do dia 20 de fevereiro de 1994.
[26] DI FELICE, BRIGE, M. Votan Zapata. São Paulo: Xamã, 2008.
[27] Carta do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena de 1º de abril de 1995. In:
DI FELICE, M.; MUÑOZ, C. (orgs.). A revolução invencível: cartas e comunicados do
Subcomandante Marcos e do EZLN. São Paulo: Boitempo, 1998.
[28] Desse ponto de vista, o mesmo conceito tradicional, visto pela antropologia
clássica como algo geograficamente definível e, sobretudo, como algo estático e
delimitado, é colocado em discussão pelas novas formas de interação midiáticas e
pelas novas formas de comunicação que tornam possível a superação do espaço
geográfico e a projeção em espaços múltiplos e contaminados. Elementos esses da
crise das interpretações da velha antropologia, amplamente discutidos e
reformulados pela antropologia hermenêutica de C. Geertz e por um conjunto de
outros antropólogos como J. Clifford, Remato Rosaldo etc.
[29] Comunicado do CCRI de 17 de novembro de 1995.
[30] Expressão do Subcomandante Marcos (DI FELICE; MUÑOZ,1998).
[31] Carta do Subcomandante Marcos aos militantes do EPR, 29 de agosto de 1996.
In: DI FELICE; MUÑOZ, op. cit., 1998.
[32] Alguns resultados de tais pesquisas estão contidos nas seguintes publicações: A
revolução invencível e Votan Zapata.
[33] Ver a respeito a introdução de Di Felice (DI FELICE; MUÑOZ, op. cit., 1998).
[34] A pesquisa, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP), foi por mim coordenada e reuniu ao Atopos (por meio dos
pesquisadores Erick Roza, Eliete da Silva Pereira, Kalyne Vieira) outros três
importantes centros de pesquisa internacionais. Em Portugal, foi dirigida pelo
professor José Bragança de Miranda (Universidade Nova de Lisboa), com participação
do professor Luís Miguel Loureiro (Universidade Lusófona) e da então doutoranda
Marina Magalhães de Morais (Universidade Nova de Lisboa - Atopos Europa); na
Itália, foi coordenada pelos professores Mario Pireddu (Universidade de Roma III -
Atopos Europa) e Alberto Abruzzese (IULM - Milão); e, na França, pelo professor
Michel Maffesoli (Universidade de Paris V e coordenador do Ceaq Sorbonne), com a
participação de Antonio Rafele (FAPESP - Atopos Europa), Stéphane Hugon (Ceaq
Sorbonne) e dos então doutorandos Adriana Ramos (Ceaq Sorbonne - Atopos
Europa), Carlos Eduardo Aguiar (Ceaq Sorbonne - Atopos Europa) e Dayane Melo
(Ceaq Sorbonne - Atopos Europa).
[35] O movimento dos Indignados nasce na Espanha, depois de uma série de
mobilizações nas redes digitais em favor de uma reforma política que compreendia o
fim do financiamento público dos partidos, a proibição das candidaturas de políticos
com antecedentes criminais, a luta contra a desocupação e a corrupção, as quais
culminaram na ocupação da Praça Porta do Sol, em Madri, iniciada em 15 de maio
de 2011. As manifestações se expandiram por toda a Europa, exprimindo a difusão
de uma nova cultura da participação realizada pela base, pelos próprios cidadãos,
sem líder e expressão de uma democracia direta.
[36] Inspirado pelo movimento dos Indignados, na Espanha, e por aqueles ativos nos
levantes da Primavera Árabe, o movimento Occupy Wall Street começou, em 17 de
setembro de 2011, com um protesto público em Nova York, convocado on-line. A
partir daí, ele se difundiria em todos os estados do país, em protesto contra o sistema
bancário e financeiro.
[37] Como anteriormente afirmado.

ECOLOGIAS TRANSORGÂNICAS
[1] Ver a respeito no texto: MORIN, E.; KERN, A. Terre Patrie. Paris: Séuil, 1993.
[2] MORIN; KERN, op. cit., 1993.
[3] MORIN; KERN, op. cit., 1993.
[4] MORIN; KERN, op. cit., 1993.
[5] Ver a respeito: LOVELOCK, J. The Vanishing face of Gaia: a final warning. London:
Penguin Books, 2009.
[6] Gênesis 1,24-31.
[7] De fato, a perspectiva de Gaia é responsável pela alteração de nossa condição
habitativa. Em nossa época, passamos do habitar um planeta para habitar uma
ecologia viva, multidiversa, sem interior nem exterior, mas conectiva e ativa.
[8] MARCHESINI, R. Il tramonto dell’uomo: la prospettiva post umanista. Bari:
Dedalo, 2009.
[9] MARCHESINI, R. Post human. Torino: Bollati Boringhieri, 2002.
[10] GUATTARI, F. Les trois ecologies. Paris: Galilée, 1989.
[11] LATOUR, B. Politiques de la nature. Paris: La Découverte & Syros, 1999.
[12] LATOUR, op. cit., 1999.
[13] LATOUR, op. cit., 1991.
[14] LATOUR, op. cit., 1999.
[15] LATOUR, op. cit., 1999.
[16] LATOUR, op. cit., 1999.
[17] Descrevo acima a arquitetura digital do povo indígena suruí paiter. Mais detalhes
disponíveis em: www.paiter.org. Acesso em: 12 maio de 2016.
[18] DI FELICE, op. cit., 2009.
[19] O termo “transubstanciação” indica o particular processo de alteração de
substância que ocorre no ritual católico da consagração, quando, durante a oração
eucarística e a imposição das mãos do sacerdote, o pão e o vinho, segundo a fé e a
tradição cristã, sofrem uma alteração transubstancial, tornando-se no corpo e no
sangue de Cristo. Tal alteração, no contexto da concepção religiosa, é considerada
não como um evento simbólico, mas como a real alteração das substâncias, que,
mesmo mantendo a forma de origem em espécie, assumem nova identidade e
composição (corpo e sangue de Cristo).
[20] Opto aqui por conservar a tradução de G. Vattimo do conceito de “ser como
evento” de M. Heidegger.
[21] HEIDEGGER, M. La storia dell’essere. Milano: Marinotti, 2012.
[22] DI FELICE, op. cit., 2009.
[23] VATTIMO, G. Introduzione ad Heidegger. Roma-Bari: Laterza, 1971.
[24] GALIMBERTI, U. Invito al pensiero di Martin Heidegger. Milano: Mursia, 1986.
[25] DI FELICE, op. cit., 2009.
[26] Expressão por mim utilizada em Paisagens pós-urbanas (2009).
[27] Ver a respeito no artigo “Redes sociais digitais, epistemologias reticulares e a
crise do antropomorfismo social”, publicado pela Revista USP (DI FELICE, 2011-
2012).
[28] MORIN, E. La natura della natura. Milano: Raffaello Cortina, 2011.
[29] MORIN, op. cit., 2011.
[30] MORIN, op. cit., 2011.
[31] MORIN, op. cit., 2011.
[32] CAPRA, F. The web of life. São Paulo: Cultrix, 1996.
[33] CAPRA, op. cit., 1996.
[34] CAPRA, op. cit., 1996.
[35] DI FELICE; CUTOLO; YANAZE, op. cit., 2012.
[36] DE KERCKHOVE, op. cit., 1995.
[37] PETERS, op. cit., 2014.
[38] Definição do CERP (Cluster of European Reserch Project on the Internet of
Things, 2009). In: Lemos, A. A comunicação das coisas. São Paulo: Annablume,
2014.
[39] Faz-se referência aqui ao importante estudo realizado por Julliana Cutolo
(Atopos ECA/USP), apresentado em 2014 como tese de doutorado sob o título
Ecopoiese: as formas comunicativas do habitar atópico.
[40] ATZORI, L.; IERA, A.; MORABITO, G. “Internet of things: a survey”. In: Computer
Networks, 2010, 54 (15).
[41] Sobre isso, recomenda-se ao leitor a descrição acerca do conceito de “atopia”,
realizada em Paisagens pós-urbanas (DI FELICE, 2009).
[42] SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus,
2007.
[43] Como nos diz Santaella: “Por meio da digitalização, quaisquer fontes de
informação podem ser homogeneizadas em cadeias sequenciais de zero e um. […]
Além da universalização da linguagem, a digitalização possui pelo menos dois outros
métodos: de um lado, a compressão de dados, fenômeno suplementar que permite,
de maneira cada vez menos onerosa, estocar e fazer circular enorme quantidade de
informação; de outro, a independência da informação digital em relação ao meio de
transporte: sua qualidade permanece perfeita, seja ela transmitida por fios de
telefone, ondas de rádio, satélites de televisão, cabos” (SANTAELLA, op. cit., 2007).
[44] Faz-se referência aqui ao significado atribuído aos “porta-vozes” por B. Latour,
em Politiques de la nature (1999).
[45] WELLMAN, B.; RAINIE, L. Networked: The new social operating system.
Cambridge: MIT Press, 2012.
[46] CHAKRABARTY, D. “The climate of history: four theses”. In: Chicago Jornal,
University of Chicago, 2009.
[47] HARAWAY, D. “Antropoceno, capitaloceno, plantationoceno, Chthuloceno,
fazendo parentes”. In: www.clima.com, ano 3, n. 5, 2016.
[48] HARAWAY, op. cit., 2016.

O FIM DA AÇÃO SOCIAL: O NET-ATIVISMO E AS DIMENSÕES NÃO


AGREGADORAS DO COMUM DIGITAL
[1] Refere-se aqui à noção de “trânsito” de Mario Perniola, in: Transiti. Milão:
Castelvecchi, 1985.
[2] Capítulo à parte é a questão da ideia de social na antropologia, que, enquanto
dedicada ao estudo e à catalogação dos povos não ocidentais, encontra concepções
mais complexas da ideia de social.
[3] Fato esse que começa com a eletricidade e, portanto, bem antes da digitalização.
McLuhan falava em aldeia global e J. Meyrowitz expressava o atravessamento
eletrônico da localidade como um novo tipo de situação social não mais
exclusivamente arquitetônico ou presencial.
[4] As técnicas de mapeamento das redes obedecem à logica da traçabilidade, que
reconstrói links e conexões, mas que pouco ou nada dizem a respeito da qualidade
delas. Tal reconstrução dos rastros é o resultado de opções individuais do
pesquisador, como revelado muito bem no curso realizado por T. Venturini e M.
Severo no âmbito de minha disciplina no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da ECA/USP, “Epistemologias reticulares”, ministrada em 2013.
[5] É útil, portanto, não confundir a dimensão digital tanto com a ideia de platônica
de “cópia” quanto com aquela mais complexa de “simulacro”, desenvolvida na
segunda metade do século XX por J. Baudrillard, a qual liga a comunicação a um
“hiper-real”, mais verdadeiro e mais real por não ter referência alguma com a
realidade. A respeito, resulta mais próxima, em meu modo de ver, a ideia de
simulacro desenvolvida por M. Perniola, enquanto tende a superar a distinção da
dialética cópia/original, real/virtual (ver obra Pensando o ritual. São Paulo: Studio,
2001).
[6] LATOUR, B. Paris: invisible city. Disponível em: http://www.bruno-
latour.fr/sites/default/files/downloads/viii_paris-city-gb.pdf. Acesso em: 15 maio 2016.
[7] A pesquisa de Antonio Rafele, anteriormente citada, relata bem esse aspecto.
[8] BENJAMIN, op. cit., 1966.
[9] DI FELICE, M. Cartas desde um navio pirata. In: www.massimodifelice.net. Acesso
em: 16 de maio de 2016.
[10] Faz-se referência aqui a um conjunto heterogêneo de autores que, com
qualidades e abordagem distintas, abordam a ideia de bem comum, entre esses: 1)
HARDT, M.; NEGRI, A. Comune: oltre il privato e il pubblico. Milano: Rizzoli Editore,
2013; 2) AGAMBEN, G. La comunità che viene. Torino: Bollati Boringhieri, 2001; 3)
FELBER, C. L’Economie citoyenne: ou quand l’intérêt général s’invite dans le bilan des
entreprises. Arles (Bouches-du-Rhôn): Actes Sud, 2011.
[11] Faz-se referência aqui à teoria de J. Lovelock, em La Revanche de Gaia (2007).

αιον – O ATO CONECTIVO: AS INTERAÇÕES TRANSORGÂNICAS NAS


REDES DIGITAIS
[1] “αιον” (leia-se “aion”) palavra grega que indica particular tipo de ato criador e
irrepetível.
[2] Ver a respeito a reflexão proposta por M. Perniola sobre o “já sentido”, relatada,
entre outras obras, em Do sentir.
[3] Internet of things, Big Data etc.
[4] DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 65.
[5] Como assinala Borges Júnior: “Os estoicos nos levam a admitir um caminho que
esvazia o ‘agora’, delegando ao passado e ao presente o papel de situá-lo num
tempo ilimitado, sem qualquer dependência direta de uma incorporação material.
[…] O Aiôn faz-se nessa intersecção indefinida entre futuro e passado, nesse
processo do imprevisto, e é justamente daí que os dramaturgos gregos extrairiam a
sua dimensão inovadora, criadora, de instante, sem os vícios de um passado ou as
predeterminações de um futuro”, in: BORGES JÚNIOR, E. Tecnodionysos: tecnologias
digitais e ação em rede na cena contemporânea. Dissertação de mestrado. São Paulo:
ECA/USP, 2014, p. 201.
[6] DELEUZE, 2011, p. 66.
[7] BORGES JÚNIOR, 2014, p. 203.
[8] DELEUZE, 2011, p. 171.
[9] Refiro-me, sobretudo, às críticas que B. Latour dirige ao filósofo alemão,
demonstrando uma interpretação certamente legítima, mas partidária, e, ao meu
modo de ver, abstrata, fora de contexto e desconhecedora do método linguístico que
inspira e guia a obra e o pensamento de Heidegger.
[10] VATTIMO, G. Introduzione al pensiero di Heidegger. Roma: Laterza, 1995.
[11] VATTIMO, op. cit., 1995.
[12] VATTIMO, op. cit., 1995.
[13] HEIDEGGER, M. “Identità e differenza”. In: Sentieri interrotti. Firenze: La Nuova
Italia, 1968.
[14] VATTIMO, op. cit., 1995.
[15] HEIDEGGER, in VATTIMO, op. cit., 1995.
[16] HEIDEGGER, op. cit., 1977.
[17] VATTIMO, op. cit., 1995.
[18] IURATO, G. “Alcune riflessioni storico-critiche di epistemologia teológica”.
Università di Palermo, Itália, 2015. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-
01235248/document. Acesso em: 20 de maio de 2016.
[19] A possibilidade de estudar os fenômenos sociais a partir da interpretação dos
fenômenos de natureza religiosa é prática comum na antropologia e marca toda a
história do pensamento ocidental desde Platão ao Iluminismo. Como observado por
Iurato: “A partir dessa última perspectiva, o fenômeno religioso foi estudado
fenomenologicamente como manifestação do sagrado, o objeto religioso em geral
visto em uma relação opositiva e dialética ao profano da vida secular, fenômeno que,
como fato religioso, explica-se modalmente como hierofania (de “hierós”, sagrado, e
“phaíno”, eu mostro), segundo formas histórica e localmente determinadas, as
quais, todavia, não impedem elementos de ecumenicidade que lhe dão um valor
universal e atemporal, permitindo também, portanto, uma visão e uma possível
interpretação racional. De fato, da múltipla variedade das hierofanias, que, desde os
tempos mais remotos, caracterizaram o corpo doutrinário-moral-ritualístico da
religião de cada povo, de cada lugar e de cada época, pode-se rastrear, como
elemento típico, a transubstanciação [consubstanciação] de um objeto profano em
um objeto sagrado: por exemplo, os hindus veneram uma árvore chamada Avattha, a
qual, aos olhos de tal comunidade religiosa indiana, em determinado período, é uma
hierofania, um objeto sagrado, e não [somente] um mero acidente vegetal” (IURATO,
op. cit., 2015).
[20] IURATO, op. cit., 2015.
[21] IURATO, op. cit., 2015.
[22] HEIDEGGER, M. Essere e Tempo. Torino: Einaudi, 1969.
[23] ESPOSITO, R. Communitas. Torino: Einaudi, 2006.
[24] ESPOSITO, op. cit., 2006.
[25] ESPOSITO, op. cit., 2006.
[26] ESPOSITO, op. cit., 2006.

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