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Marcela Goldmacher
Marcelo Badaró Mattos
Paulo Cruz Terra
(Organizadores)

FACES DO TRABALHO:
ESCRAVIZADOS E LIVRES

Editora da Universidade Federal Fluminense


Niterói, 2010
Copyright © 2009 by Marcela Goldmacher, Marcelo Badaró Mattos, Paulo
Cruz Terra (organizadores)
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G618
Goldmacher, Marcela; Mattos, Marcelo Badaró; Terra, Paulo Cruz.
(Organizadores)
Faces do trabalho: escravizados e livres./ Marcela Goldmacher, Marcelo
Badaró Mattos, Paulo Cruz Terra (Organizadores).
– Niterói : EdUFF, 2010.
204 p. : il. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004).
Inclui bibliografias
ISBN 978-85-228-0540-2
1. História 2. Escravidão I. Título II. Série
CDD 909.04

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Tania de Vasconcellos
SUMÁRIO
Capa
Projeto e-books
Folha de Rosto
Créditos
Introdução
Recuando no tempo e avançando na análise: Novas questões para
os estudos sobre a formação da classe trabalhadora no Brasil
Experiências comuns e luta pela liberdade
Organizações
Outras lutas: as primeiras greves
Valor da liberdade e consciência de classe
Referências
Ratoneiro, formigueiros e atravessadores: trabalho e experiências
sociais de libertos em Porto Alegre nas primeiras décadas do século
XIX
Trabalho e bens de libertos
Ratoneiros ou quitandeiros?
Conclusão
Referências
Hierarquização e segmentação: carregadores, cocheiros e
carroceiros no Rio de Janeiro (1824-1870)
Trabalhadores livres e escravizados
Perfil dos trabalhadores
Hierarquização e segmentação do setor de transporte
Conclusão
Referências
Escravizados moralmente lutam contra a escravidão de fato: os
trabalhadores livres e a luta pela abolição no Rio de Janeiro nos
fins do século XIX
I
II
III
IV
V
VI
Referências
Pretos, brancos, amarelos e vermelhos: conflitos e solidariedades
no porto do Rio de Janeiro
Um conflito étnico?
Conflitos e solidariedades
Amarelos e Vermelhos: uma verdadeira classe operária?
Negros e Brancos na formação da classe trabalhadora carioca
Referências
As associações operárias e a “Greve Geral” de 1903
As associações operárias e a greve
Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos
Congresso União dos Operários em Pedreiras
Associação de Classe União dos Chapeleiros
Liga dos Artistas Alfaiates
União dos Operários Estivadores
Um balanço
Referências
Internacionalismo, raça e nacionalidade na propaganda anarquista
durante o processo de formação da classe operária no Brasil
Divulgação de notícias internacionais e o internacionalismo da
classe trabalhadora
Ações de solidariedade internacional
Etnocentrismo e darwinismo social na formação da classe
operária do Brasil
A África na imprensa anarquista brasileira
Raças e Revolução Social
Conclusão
Referências
INTRODUÇÃO
“Por acaso viemos ao mundo para sermos piores que escravos, para produzir só para o
patrão? Não!”1
A pergunta e a resposta acima, publicadas no jornal da Confederação
Operária Brasileira, no início do século XX, traziam embutidas uma
analogia que não era nova. Marx já havia afirmado que “O sistema de
trabalho assalariado é um sistema de escravidão”, numa metáfora que seria
empregada por muitos outros militantes da causa da emancipação social.
Porém, no Brasil, depois de quase quatro séculos de vigência do
escravismo, e apenas duas décadas depois da Abolição, aquela frase era
mais do que uma metáfora empregada por retórica. Para a classe
trabalhadora que então se formava, a escravidão era uma lembrança muito
próxima. Para alguns, uma memória inscrita na carne, pois que haviam sido
escravizados. Por isso, não apenas para estudar o trabalho no século XIX,
mas também para compreender o processo de formação da classe
trabalhadora assalariada, não nos basta entender a trajetória daqueles
trabalhadores comumente chamados de “livres”.
Os capítulos deste livro têm em comum a intenção de apresentar as
diferentes faces do trabalho ao longo do século XIX e primeiras décadas do
século XX. Não só a face do trabalhado “livre” e branco, mas também
aquela negra, escravizada e “liberta”. Dessa forma, os textos se inserem no
esforço recente da historiografia brasileira de aproximar os estudos sobre os
mundos da escravidão daqueles sobre os mundos do trabalho, estes últimos
antes percebidos como quase que exclusividade das pesquisas sobre o
“movimento operário”.
O primeiro texto, “Recuando no tempo e avançando na análise: novas
questões para os estudos sobre a formação da classe trabalhadora no
Brasil”, de Marcelo Badaró Mattos, é uma síntese dos resultados de uma
pesquisa mais ampla sobre a formação da classe trabalhadora carioca,
apresentando em sua narrativa as referências a boa parte desse debate
historiográfico recente que procurou romper o muro de 1888, que separava
estudos sobre escravidão das pesquisas sobre história social do trabalho.
No segundo capítulo do livro, Gabriel Aladrén investe, em sua
discussão, num tema que nas últimas duas décadas tornou-se já clássico,
justamente por sua característica de complexificar as definições de
fronteiras entre a escravidão e a liberdade: os libertos. Sua contribuição é
bastante original, por abordar uma região menos conhecida sob este ponto
de vista – o Rio Grande do Sul –, mas também e principalmente por não
recusar o desafio de retirar conclusões analíticas de seu estudo empírico,
posicionando-se no interior do campo específico de debate historiográfico,
para mostrar que vivendo entre o mundo dos “livres” – entendido como o
dos brancos – e o dos escravizados – seus “irmãos” de origem africana –, os
libertos foram percebidos como perigosos pelos senhores, e o foram com
razão, pois muitas vezes organizaram e lideraram formas várias de
resistência à escravidão.
No texto “Segmentação e hierarquização: carregadores, cocheiros e
carroceiros no Rio de Janeiro (1824-1870)”, Paulo Terra buscou analisar
como trabalhadores livres, libertos e escravizados conviviam no setor de
transporte ao longo do século XIX. Ele procurou traçar um perfil desses
trabalhadores, indicando, por exemplo, as nacionalidades, e “nações”. Além
disso, avaliou de que forma se dava a participação deles no transporte e
quais as relações de conflitos e solidariedades construídas. Sua análise
explica que, devido às constantes disputas pelo mercado de trabalho,
acirradas na segunda metade do século XIX, ocorreu a segmentação e
hierarquização do setor, tendo os trabalhadores livres reservado para si o
transporte com veículos, constituindo-se a maioria entre os condutores de
carros, e os libertos e escravizados, permanecido como carregadores.
O capítulo “Escravizados moralmente lutam contra a escravidão de fato:
os trabalhadores livres e a luta pela Abolição no Rio de Janeiro nos fins do
XIX”, de Rafael Maul, trata da participação de trabalhadores assalariados
no processo de Abolição da escravatura no Brasil, tomando como base a
experiência da cidade do Rio de Janeiro. Dessa forma, ao focar a atuação de
um segmento que costuma ser visto apenas de maneira periférica, o autor
lança um novo ângulo de abordagem da análise das forças atuantes e dos
desdobramentos do Abolicionismo no meio urbano carioca. O que se
buscou, além de entender a proximidade do escravizado com o mundo do
trabalho livre, foi compreender o papel dos trabalhadores assalariados, e
suas organizações, no processo de luta contra a escravidão, com todas as
suas contradições e conflitos.
Em “Pretos, brancos, amarelos e vermelhos: conflitos e solidariedades
no porto do Rio de Janeiro”, Érika Bastos Arantes analisa as relações de
trabalho no porto do Rio de Janeiro com o objetivo de repensar o ano de
1888 como marco do início do movimento operário no Brasil. Procura,
além disso, investigar o papel das relações étnicas na formação da classe
operária no Rio de Janeiro, estabelecendo um diálogo entre a história do
trabalho e a história da escravidão no Brasil.
No texto “Associações Operárias e a ‘Greve Geral’ de 1903”, o tema da
análise de Marcela Goldmacher concentra-se no histórico de diversas
associações operárias e a participação destas em uma greve de
trabalhadores têxteis no Rio de Janeiro em agosto de 1903. Esta greve
durante seu desenvolvimento teve a adesão de diversas outras categorias,
vindo a ser denominada pelos trabalhadores envolvidos “greve geral”. As
associações analisadas tiveram ativa participação na greve, defendendo os
interesses trabalhistas de seus associados, apesar de nem todas terem sido
fundadas com fins sindicais e pressupostos combativos.
No capítulo final, Tiago Bernardon analisa os discursos anarquistas a
respeito de classe, raça e internacionalismo, ao longo das primeiras décadas
do século XX. Os esforços e as dificuldades daqueles militantes para
criarem uma identidade unitária para uma classe trabalhadora composta por
diferentes nacionalidades e marcada pela ainda recente presença da
escravidão são abordados no artigo, que se constrói a partir de farta
referência na imprensa operária do período.
Este livro é fruto de trabalho coletivo. Seus autores são vinculados de
variadas formas ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense. É filho das pesquisas realizadas nessa
instituição, mas não foi pensado como simples coletânea de artigos com
preocupações afins. A proximidade dos textos decorre de alguns anos de
debate comum, em especial de matéria teórico-conceitual, no Grupo de
Pesquisa Mundos do Trabalho – UFF. Assim, esperamos que a combinação
dos seus capítulos corresponda a uma complementaridade de análises que
compartilham problemas, referências teóricas e objetivos comuns. Por isso
mesmo, o conjunto dos autores agradece aos demais participantes do
Grupo, em especial pelos debates entabulados durante o Seminário Faces do
Trabalho (Niterói, maio de 2008), em que os textos aqui reunidos foram
apresentados e submetidos à discussão.
Esperando que o intercâmbio exercitado pelos pesquisadores que
assinam estes textos se amplie em direção ao potencial público de leitores,
apresentamos esta face do nosso trabalho.
Niterói, março de 2009
Os organizadores

A Voz do Trabalhador, n. 19, Rio de Janeiro, 30/10/1909, p. 3.


RECUANDO NO TEMPO E AVANÇANDO NA
ANÁLISE:
NOVAS QUESTÕES PARA OS ESTUDOS
SOBRE A FORMAÇÃO DA CLASSE
TRABALHADORA NO BRASIL
Marcelo Badaró Mattos
Entre as recentes contribuições da historiografia social do trabalho no
Brasil, encontra-se um conjunto de pesquisas construídas na convergência
entre estudos sobre a escravidão urbana na segunda metade do século XIX e
análises sobre os primeiros momentos do movimento operário. Através
delas é possível superar a barreira cronológica de 1888, fazendo recuar no
tempo as pesquisas sobre a formação da classe, para fazer avançar suas
análises em direção a questões antes negligenciadas. De forma a melhor
apresentar tais contribuições, optei por comentá-las aqui não como um
balanço bibliográfico tradicional, mas sim na forma de uma síntese sobre a
temática, a partir de referências a análises e fontes trabalhadas por diversos
pesquisadores, aí incluídas minhas próprias pesquisas.
Começo resumindo uma história. Uma história de trabalhadores em
padarias, entre 1876 e 1912, contada por um líder da categoria, João de
Mattos, num manuscrito localizado entre os papéis apreendidos pela polícia
política carioca nos anos 1930.2 No manuscrito, João de Mattos registra
suas memórias sobre as lutas dos empregados em padarias, desde a época
da escravidão até o momento das mobilizações sindicais.
Ela começa em Santos, em 1876, quando trabalhava em padarias da
cidade e organizou um “levante”, que ele explica ser como “as mesmas
greves de hoje”. O levante organizado por João de Mattos foi uma
paralisação das padarias da cidade, em meio à qual se deu a fuga dos
trabalhadores escravizados daqueles estabelecimentos. A fuga foi
preparada, com a falsificação de cartas de alforria. João de Mattos foi preso
algum tempo depois, mas por falta de provas logo foi posto em liberdade.
Em Santos existiam 5 padarias. E nós, com os convenientes preparos, e com toda a cautela
conseguimos o 1o Levante geral, devido aos patrões serem muito maus e malvados, com
castigos e mais castigos sem a mínima razão. Às horas combinadas [as padarias] foram
todas abandonadas. Eu já tinha todas cartas precisas, porém falsificadas, para cada, de
liberdade. Seguimos. E, além deles já estarem bem compenetrados, mais fomos no caminho
insinuando-os. E tão bem dispersos foram que não apareceram mais. Passados dois meses
fui preso em São Bernardo e me conduziram para a cidade de Santos. Estive preso uns três
meses e como não apareceu um só que fosse para provar fui posto em liberdade,
condicional de não voltar mais àquela cidade.3
Solto, rumou para a cidade de São Paulo, onde organizou outro
“levante” bem-sucedido, desta vez reunindo 11 ou 12 padarias da cidade,
em 1877. Tal qual o de Santos – com paralisação, fuga, cartas de alforria
falsificadas – tudo deu certo, e os trabalhadores escravizados das padarias
paulistanas fugiram na direção do estado do Rio de Janeiro, acompanhados
de João de Mattos, que em 1878 chegou à cidade do Rio de Janeiro, então
capital do Império do Brasil, onde atuou com os mesmos objetivos.
Com um número muito maior de padarias, para preparar um levante
igual aos de Santos e São Paulo, João de Mattos e seus companheiros
precisaram criar uma organização, o Bloco de Combate dos Empregados
em Padarias. O Bloco tinha sede, estatuto e um lema – Pelo pão e pela
liberdade –, mas precisava funcionar clandestinamente, escondido sob a
fachada de um “curso de dança”. Afinal, como relata João de Mattos, não
podiam “funcionar claramente, era um crime terrível guerrear a propriedade
escrava”.4
O Bloco de Defesa chegou a reunir mais de 100 associados, organizou-
se em quatro comissões, fez alguns levantes parciais e, em 1880, um novo
levante geral, como o chamou João de Mattos. Os trabalhadores
escravizados fugiram em direção a Barra do Piraí, com suas cartas de
alforria forjadas e João de Mattos acabou sendo novamente preso, por conta
de uma delação. Dessa vez, foi defendido pelo propagandista da Abolição e
da República, Saldanha Marinho, conseguindo ser absolvido.
Porém, quando a escravidão foi abolida, em 1888, as lutas de João de
Mattos e dos seus companheiros não foram dadas por terminadas. Afinal,
como ele mesmo nos ensina, “em 1888 nós realizamos a maior vitória da
nossa intransigente luta, ficando o caminho livre para os escravizados de
fato e nós, os escravizados livres, até o presente entremos a lutar.”5 Na nova
fase das lutas dos padeiros, João de Mattos e seus companheiros
organizaram, em 1890, uma associação com o objetivo de reunir recursos
para comprar padarias para os próprios trabalhadores, o que os livraria dos
patrões. Era a Sociedade Cooperativa dos Empregados em Padarias no
Brasil – cujo lema era Trabalhar para nós mesmos –, que reuniu cerca de
400 sócios, mas não deu certo, porque o tesoureiro fugiu com o dinheiro da
entidade.
Os problemas não os levaram a desistir das lutas e, em 1898 (ou 1893,
segundo outras fontes), fundaram a Sociedade Cosmopolita Protetora dos
Empregados em Padarias – com o lema Trabalho, justiça e liberdade: sem
distinção de cor, crença ou nacionalidade – que tinha objetivos de auxílio
mútuo. Esta Sociedade reuniu mais de mil associados, publicou o jornal O
Panificador, organizou uma biblioteca, um centro de educação e acabou
adquirindo finalidades de sindicato. Travou, assim, uma luta pelo descanso
aos domingos e pela jornada de 8 horas de trabalho, recorrendo a abaixo-
assinados encaminhados às autoridades, que nada resolveram, pois, ainda
segundo João de Mattos: “recorrendo a sociedade dirigente nada obtive,
porque a política deles é uma e a dos dirigidos é outra.”6
Depois desses embates, no início do século XX, João de Mattos foi
posto pelos donos de padaria em uma “lista negra”, não conseguindo mais
se empregar neste setor. Os patrões também tentaram dividir o movimento,
criando a Liga Federal dos Empregados em Padarias. No entanto, a lição de
luta de João de Mattos e seus companheiros deixou fortes marcas e, nos
anos seguintes, a Liga foi conquistada por militantes combativos, que
unificaram a organização da categoria, filiaram mais de 4 mil trabalhadores
e realizaram, em 1912, a primeira greve geral dos trabalhadores em padarias
na cidade do Rio de Janeiro.
Por que o relato de João de Mattos e da trajetória de luta dos padeiros é
importante para entendermos a formação da classe trabalhadora no Brasil?
Seguindo as definições clássicas de Marx e Engels,7 e as iluminações de
historiadores sociais contemporâneos, como E. P. Thompson,8 nós
lembramos que o processo de formação de classe só pode ser compreendido
a partir das condições objetivas que opõem, nas relações sociais de
produção, os produtores diretos àqueles que, detendo os meios de produção,
exploram os que nada possuem. No capitalismo, tal oposição objetiva entre
os interesses dos proprietários e os dos despossuídos ganha novos
contornos, pois os que vendem sua força de trabalho em troca de um salário
adquirem, na experiência comum da exploração a que estão submetidos, a
consciência da identidade entre seus interesses, que se opõem aos interesses
de seus exploradores, e no bojo deste conflito (a luta de classes) constroem
sua consciência de classe. Os valores, discursos e referências culturais que
articulam tal consciência, entretanto, não surgem do nada. Desenvolvem-se
a partir da experiência da exploração e das lutas de classe anteriores. Ou
seja, numa sociedade como a brasileira, marcada por quase quatro séculos
de escravidão, não seria possível pensar o surgimento de uma classe
trabalhadora assalariada sem levar em conta as lutas de classe – e os valores
e referências – que se desenrolaram entre os trabalhadores escravizados e
seus senhores, particularmente no período final da vigência da escravidão,
quando a luta pela liberdade envolveu contingentes cada vez mais
significativos de pessoas.

Experiências comuns e luta pela liberdade


Por isso a história de João de Mattos é tão significativa. Nela se revelam
os elos entre os períodos anterior e posterior a 1888, no processo de
formação da classe trabalhadora. Afinal, até meados dos anos 1850, o
trabalho escravo dominava não apenas o cenário dos grandes latifúndios
monocultores, voltados para a agricultura de exportação, como também as
principais cidades do país. Assim, o Rio de Janeiro possuía, em 1849, uma
população total de 266.466 pessoas, sendo 155.854 livres (muitas das quais
libertas, ou seja, ex-escravizadas) e 110.602 escravizadas. Com o fim oficial
e a repressão ao tráfico negreiro, em 1850, este número decaiu nas décadas
seguintes. Mas, em 1872, os trabalhadores escravizados ainda
representavam quase 20% da população da capital do Império, somando
48.939 entre os 274.972 habitantes da cidade. Em Salvador, a população
total da cidade era estimada em 66 mil pessoas em 1835, sendo 42%
escravizadas.
Nestes centros urbanos, os trabalhadores escravizados estavam inseridos
nas mais diversas atividades. Muitos eram alugados pelos seus senhores e
um outro tanto era constituído por escravos ao ganho. Nessas condições,
trabalhadores escravizados e livres conviviam lado a lado, nas ruas, nas
moradias e nos locais de trabalho das maiores cidades brasileiras. Não
poderia ser estranho, portanto, que, compartilhando espaços de trabalho,
circulação, moradia e lazer esses trabalhadores – escravizados ou livres –
também compartilhassem valores, hábitos, vocabulário, experiências
inclusive de organização e de luta, ainda que as diferenças entre sua
condição jurídica criassem distâncias significativas.
Por isso, tratando do principal embate de classes daquela época – a luta
contra a escravidão –, quando João de Mattos afirma que os abolicionistas
iniciaram sua campanha pública em 1879, mas os empregados em padarias
foram os “primitivos lutadores antiescravistas”, pois desde 1876 já
“guerreavam a escravidão de fato”, podemos entender, com ele, que os
abolicionistas do parlamento e das campanhas na imprensa foram os
“figurantes” de uma luta pela liberdade que teve como protagonistas os
próprios trabalhadores escravizados, mas apoiados por trabalhadores livres
que se opunham à escravidão.
Em São Paulo, a rede de apoio aos caifazes (os abolicionistas tidos
como radicais, pois apoiavam a fuga em massa dos trabalhadores
escravizados) incluía os ferroviários, cocheiros, charuteiros e tipógrafos.
Rede de solidariedade que chegava a envolver organizações de operários
imigrantes, como o Círculo Operário Italiano, que promoveu espetáculos
em 1881 com o objetivo de angariar fundos para comprar a liberdade de
escravos. Em depoimento à imprensa, décadas depois, um antigo cocheiro
da Estação Ferroviária da Luz assim recorda sua atuação em apoio às fugas
de escravizados: “E como todos nós compreendíamos! Um simples piscar
de olho, um gesto, uma contorção e estavam prontos para tudo, prestando o
serviço desejado com o maior disfarce e limpeza!”.9
Jornais abolicionistas registram o mesmo tipo de envolvimento operário
com a causa da abolição no Ceará, província que impulsionou a retomada
do movimento abolicionista, ainda em 1881. Segundo O Abolicionista,
jornal carioca:
A classe tipográfica da capital reuniu-se e publicou um manifesto aderindo à Sociedade
Cearense Libertadora, resolvendo negar absolutamente os seus serviços aos jornais que se
declararam adversos ao movimento abolicionista da província e do país, fazendo
publicações de qualquer gênero naquele sentido.10
No Rio de Janeiro, envolvimentos semelhantes seriam encontrados em
vários grupos operários organizados. Como no caso dos operários do
Arsenal de Marinha, registrado pelo mesmo jornal:
Os mestres e operários das oficinas de fundição e ferreiros do arsenal de marinha
resolveram abrir entre si uma contribuição mensal em favor da abolição do elemento servil.
Cada um deles dará a quantia que puder dispor, sendo o total entregue todos os meses à
diretoria da Sociedade Emancipadora, para a devida aplicação. Eis aí um procedimento
digno de imitação, e que muito abona a classe artística que teve a iniciativa, digna de
louvor.11
Nos primeiros anos da década de 1880, os tipógrafos do Rio de Janeiro
fundaram o Clube Abolicionista Gutemberg, que se encarregou de comprar
alforrias e instituiu uma escola noturna e gratuita.12 O empenho dos
tipógrafos na causa abolicionista já era visível havia alguns anos, como o
demonstra a conferência de Vicente de Souza – agitador republicano, anos
depois uma das principais lideranças socialistas cariocas – patrocinada pela
Associação Tipográfica Fluminense, em 1879. A conferência aconteceu em
23 de março daquele ano, no Teatro São Luiz, tendo como título “O Império
e a escravidão, o parlamento e a pena de morte”. Seu objeto específico era a
denúncia do caráter retrógrado da proposta do deputado Martin Francisco,
que, sob o pretexto de evitar crimes de escravos que ele atribuía a uma
opção consciente destes pela pena de galés (trabalho forçado), propunha a
adoção da pena de morte para assassinatos conduzidos por escravos.
Embora definindo os africanos como “brutais como a selvageria do
hipopótamo, selvagens como a brutalidade de suas guerras”, Vicente de
Souza atribuía os crimes praticados por escravos ao fato de não lhes ser
aberto o caminho do recurso à lei, sob um argumento de defesa do direito
de propriedade dos senhores, que se pautava numa conquista, num roubo da
própria humanidade dos cativos.13
Em depoimento de André Rebouças, percebe-se que os setores operários
estavam presentes de forma ativa na fase final da luta contra a escravidão,
apoiando as fugas em massa e a formação dos “quilombos abolicionistas”.
Casas e locais de trabalho haviam sido utilizados como refúgio de
trabalhadores escravizados que escapavam ao controle senhorial:
Nas casas das famílias abolicionistas, nos escritórios comerciais, nas redações dos jornais,
nos hotéis, nas padarias, nas grandes fábricas, nos quartéis, nas tipografias, por toda a parte
em que houvesse alguma alma abolicionista, encontrava-se um abrigo seguro para guardar a
pobre gente.14
Ou seja, os trabalhadores assalariados, que compartilhavam espaços de
trabalho e de vida urbana com os escravizados, atuaram coletiva e
organizadamente pela sua libertação, demonstrando que este tipo de
solidariedade na luta pela liberdade era parte do arsenal de valores da nova
classe em formação.
Organizações
E se trabalhadores escravizados e livres compartilharam experiências de
trabalho e de vida, além de valores, o fizeram numa troca de experiências
que incluiu o compartilhamento de modelos e formas associativas, além de
padrões de mobilização e luta. No que diz respeito às formas associativas,
aos trabalhadores escravizados era proibida a associação coletiva, restando
a clandestinidade a organizações que buscavam libertá-los, como o Bloco
de Combate, lembrado por João de Mattos. Havia, entretanto, uma exceção,
pois lhes era permitido pertencer a Irmandades, sociedades católicas que
reuniam devotos de um santo padroeiro e que possuíam, além do objetivo
de culto a este padroeiro, funções de apoio aos membros (“irmãos”), como
o auxílio em caso de morte, para que a família custeasse o funeral. Para os
escravos e libertos (ex-escravos) existiam irmandades específicas, como as
de N. Sra. do Rosário, as de São Benedito, as de São Elesbão e Sta.
Efigênia, entre outras. Mas também havia irmandades organizadas por
grupos de trabalhadores livres, como aquelas associadas a determinados
ofícios especializados, que reuniam os artesãos (aqui chamados geralmente
de artistas) de uma mesma profissão, sob a proteção de um santo padroeiro
associado àquele ofício. Era o caso das irmandades de São Jorge, que
reuniam os ferreiros, funileiros, latoeiros etc.; ou as de São Pedro, dos
pedreiros; as de Santo Elói, dos ourives, entre outras. Embora as
irmandades negras não tivessem sido criadas com objetivos de luta pela
liberdade – pelo contrário, foram instituídas pela Igreja para tentar
converter os africanos e seus descendentes ao catolicismo, que justificou
por séculos a escravidão –, acabaram em alguns momentos adquirindo o
papel de espaço de aglutinação de abolicionistas (em São Paulo, os caifazes
se reuniam e imprimiam seu jornal na Irmandade do Rosário).
Ao longo do século XIX os trabalhadores livres experimentaram outro
tipo de associativismo que foi vedado aos escravizados. Trata-se da
experiência com as associações de ajuda mútua – as mutuais – fundadas
sem referência religiosa, com o objetivo de reunir em uma caixa comum as
contribuições dos associados para auxiliá-los em momentos de doença,
invalidez, morte, entre outros. Muitas mutuais tiveram um caráter
profissional, reunindo trabalhadores do mesmo oficio, da mesma empresa
ou de várias profissões aglutinadas. Entre as mutuais profissionais, algumas
chegaram a ir além dos limites de seus estatutos, como a Associação
Tipográfica Fluminense que, em 1858, apoiou uma greve dos tipógrafos do
Rio de Janeiro (que será comentada adiante).
Entre as que aglutinavam vários ofícios, uma experiência interessante,
também ocorrida no Rio de Janeiro, mas que gerou frutos de nomes
semelhantes em muitas outras cidades, foi a da Sociedade Beneficente Liga
Operária, fundada em 1871. Além de denominar-se operária, a Liga se
propunha, segundo seus estatutos, a reunir “todos os operários e artistas
nacionais e estrangeiros” e apresentava entre os seus fins representar os
interesses dos associados, só que de forma bem ampla, pois afirmava
procurar “por todos os meios ao seu alcance, melhorar a sorte de todas as
classes operárias”.15
Os trabalhadores escravizados e os libertos nas cidades absorviam tais
experiências, pois há registros de algumas tentativas de criação de mutuais
de trabalhadores negros, como a Sociedade Beneficente da Nação Conga,
criada antes de 1861, ou a Associação Beneficente Socorro Mútuo dos
Homens de Cor, de 1874. No mesmo ano de 1874 o Conselho de Estado
(principal instância administrativa do Império) examinou o pedido de
registro de uma Sociedade de Beneficência da Nação Conga “Amigos da
Consciência”. Seus estatutos, como os das outras duas, eram muito
semelhantes aos de qualquer mutual – prevendo auxílios para sócios
doentes, viúvas, etc. –, mas com a diferença de definir que para ser sócio o
candidato devia pertencer “à Nação Conga ou a qualquer outra, porém
africana”.16
Os membros do conselho rejeitaram todos esses pedidos, alegando
falhas técnicas nos processos, inabilitação dos responsáveis, ou o fato de
que a Nação Conga não era uma nação, como as europeias, e sim uma
“horda de bárbaros”. Mas, o principal motivo, explícito no caso desta
última sociedade, era o fato de que “intitulando-se da Nação Conga admite
sócios de outras procedências africanas, e sem declarar que livres, pode
julgar-se com direito a admitir escravos, o que não é permitido pelas leis”.17
Filiando inclusive escravos, tais associações podiam incluir em seus
estatutos formas de utilizar o caixa da entidade para comprar a liberdade de
seus sócios, ou podiam mesmo possuir objetivos não escritos nos estatutos
de “apoiar por todos os meios” a causa da Abolição, razão pela qual os
conselheiros de Estado, não satisfeitos em apenas proibir seu
funcionamento, ainda recomendaram a repressão, pois determinaram ao
governo imperial “tomar conhecimento reservado, por meio da Polícia, dos
indivíduos que as promovem e das circunstâncias que lhes dão causa”.18
Mesmo sendo proibidas, a existência dessas associações, ou das
tentativas de criá-las demonstra a disposição de libertos e mesmo
escravizados em se apropriarem de formas de organização e solidariedade
coletivas de trabalhadores ditos livres, que aos olhos dos homens de Estado
não lhes eram adequadas.19
E esta experiência associativa de escravizados e ex-escravos se desdobra
para além da Abolição. Um exemplo está na organização dos trabalhadores
do porto no Rio de Janeiro. Na vigência da escravidão, o conjunto de
variados trabalhos típicos do porto, como carregadores, estivadores,
arrumadores, era dominantemente ocupado por trabalhadores escravizados.
Entre as características comuns a esse conjunto estavam o “trabalho avulso”
– ou seja, recebe-se por dia de trabalho e não há garantia de ser contratado
todos os dias – e o fato de que a maioria das tarefas era executada por
turmas de vários trabalhadores, normalmente coordenadas por um capataz,
encarregado, ou “capitão”. Diante da dureza do trabalho, da insegurança em
relação à contratação diária e do exercício coletivo das tarefas, criou-se no
setor uma forte solidariedade entre os escravos que desempenhavam tais
tarefas, sendo comuns os relatos de que em grupos eles economizavam
recursos para comprar, um a um, a liberdade de seus parceiros de trabalho.20
No início do século XX, quando começaram a surgir os primeiros
sindicatos dos trabalhadores do porto, como a União dos Operários
Estivadores, ou a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiches
de Café, percebe-se que as continuidades em relação ao período da
escravidão ainda eram visíveis. Entre os trabalhadores de trapiches (os
armazéns da época) de café, por exemplo, seu sindicato, fundado em 1905,
possuía um quadro social quase exclusivamente composto por trabalhadores
negros e seus primeiros presidentes foram todos negros. Através de várias
mobilizações e greves, os portuários do Rio conquistaram, ainda no início
do século, o direito de organizarem, através dos sindicatos, a contratação
das turmas de trabalhadores, garantindo um monopólio do trabalho no setor
para os sindicalizados, e criando regras que buscavam distribuir de forma
mais uniforme os dias de labuta pelo conjunto dos trabalhadores. Como
explica o jornal Correio da Manhã, em matéria publicada no dia
14/10/1906, após as conquistas de uma greve comandada pela Sociedade de
Resistência:
Presentemente, e em razão da greve (ainda não de todo terminada) obtêm os carregadores
salários relativamente elevados, gozando de regalias que nunca tiveram. [...] Em cada
trapiche ou casa de café coloca a Sociedade em “representante do trabalho”, reconhecido
pelo industrial que emprega “a tropa” e respeitado pelos companheiros que a compõem.
Para manter a boa ordem e necessária disciplina existem muitos fiscais, que são também
carregadores, usando uma chapa especial que é o distintivo da sua categoria.21
Ou seja, os ex-escravos e seus descendentes que exerciam o trabalho
portuário na segunda metade do século XIX não apenas continuaram no
setor, como se organizaram sindicalmente sobre a base das formas de
solidariedade existentes, havia muito tempo, para garantir seu monopólio
sobre esses empregos irregulares no interior do instável mercado de
trabalho da cidade.
E não era uma experiência isolada. Em Pelotas e Rio Grande, as cidades
gaúchas em que a presença escrava fora mais ampla, pelas atividades do
porto e da charqueada, as primeiras organizações operárias tiveram, entre
seus fundadores e organizadores, muitas vezes, lideranças negras, que
também organizavam jornais, clubes e outra formas associativas de ex-
escravos e seus descendentes, em condições de forte presença do
preconceito racial. Como reconhecia o líder anarquista Cecílio Villar, que
por lá esteve em 1914 e relatou a um jornal operário sua experiência,
afirmando que os militantes deviam:
reagir denodadamente contra os preconceitos profundos, vestígios da escravidão que
dividem os trabalhadores. Como tem acontecido em outras partes, os trabalhadores daí
chegam à compreensão de que as nacionalidades, as cores, as raças não devem ser
empecilhos à sua função, com congraçamento de todas as suas energias no combate ao
regime que a todos traz escravizados.22
Lembremos o lema da Sociedade Cosmopolita Protetora dos
Empregados em Padarias: Trabalho, justiça e liberdade: sem distinção de
cor, crença ou nacionalidade. Por isso, quando o relato de João de Mattos
traça a trajetória das organizações coletivas de padeiros, do Bloco de Defesa
– com fins de luta contra a escravidão – à Cosmopolita e à Liga Federal dos
Empregados em Padarias – que passam a atuar com objetivos sindicais,
podemos não estar lendo uma história “típica”, mas percebemos um campo
de possibilidades associativas, que atravessa as lutas contra a escravidão e
finca raízes importantes para a formação das organizações sindicais
propriamente ditas.
Outras lutas: as primeiras greves
Passando ao tema das ações coletivas, boa parte dos textos, de memórias
ou de análises que localizam a primeira greve no Brasil, citam a greve dos
compositores tipográficos dos três jornais diários que circulavam na capital
do Império (a Corte), em 1858, como sendo a pioneira. Após meses
reivindicando aos donos dos três principais jornais da Corte um reajuste em
seus salários, numa conjuntura de alta dos preços, os compositores (os
tipógrafos que compunham artesanalmente os jornais) resolveram recorrer à
paralisação do trabalho a partir de 9 de janeiro de 1858. O mais interessante
da greve é que dela há registros relativamente amplos, porque os grevistas,
apoiados pela Imperial Associação Tipográfica Fluminense, fundaram o
Jornal dos Tipógrafos, de circulação diária, que nas semanas seguintes
apresentou os argumentos dos trabalhadores. Nas páginas do jornal,
encontramos um grupo profissional relativamente pequeno (o maior dos
diários, o Jornal do Commércio, empregava cerca de 32 tipógrafos), que se
apresentava como constituído por “artistas”, artesãos especializados,
empobrecidos pela ganância dos proprietários das folhas diárias que se
negavam a pagar-lhes um salário digno. Além disso, a greve chama a
atenção pelo papel ativo da associação dos tipógrafos, cujo objetivo
principal era o auxílio mútuo, mas que assumiu função de representação dos
interesses de seus filiados, intercedendo junto às autoridades e financiando
a compra do maquinário para a impressão do jornal dos grevistas.
No Jornal dos Tipógrafos podemos encontrar, portanto, manifestações
preliminares de uma identidade de classe em construção, mesmo havendo
afirmações claras de especificidade, ao se definirem como “artistas”, que se
“coligaram” por constituírem uma “classe mal retribuída nos seus serviços”.
Porém, também se afirma que “operários de diversas classes” encontravam-
se em situação semelhante à dos tipógrafos e se reconheciam em seus atos.23
Examinando o movimento dos tipógrafos de 1858 – suas características
de representação de um setor de trabalhadores livres e assalariados, que se
associaram e lutaram coletivamente, sob o argumento de defender sua
dignidade como artistas, mas enfrentando o que conscientemente
consideravam ser seus inimigos de classe, os patrões – poderíamos dizer
que estamos diante de um episódio do processo de formação da classe
trabalhadora, apresentando semelhanças evidentes com os casos clássicos,
como o inglês. Mas, para o caso das maiores cidades brasileiras na segunda
metade do século XIX, e do Rio de Janeiro em particular, como já ficou
claro nas páginas anteriores, deter-se apenas nessa face do trabalho livre
para pensar o processo de formação da classe pode gerar uma grande
limitação da análise.
Se a greve dos tipógrafos foi ou não a primeira greve de trabalhadores
livres ou assalariados no Brasil, é difícil comprovar. Porém, chama a
atenção que alguns dos mesmos memorialistas que a definem como a
primeira greve brasileira tenham comentado outro episódio, ocorrido no ano
anterior. Trata-se da paralisação do trabalho por parte de trabalhadores
escravizados do estabelecimento da Ponta da Areia, de propriedade de
Mauá, assim noticiada pelo jornal A Pátria, de Niterói, em 26/11/1857:
Ontem, das onze para o meio-dia, segundo nos informam, os escravos do estabelecimento
da Ponta da Areia levantaram-se e recusaram-se a continuar no trabalho, sem que fossem
soltos três dos seus parceiros, que haviam sido presos por desobediência às ordens do
mesmo estabelecimento. Felizmente o levantamento não ganhou terreno, pois o Exmo. Sr.
Dr. Paranaguá [o Chefe de Polícia da Província], apenas teve a notícia, dirigiu-se ao local e
fez conduzir à casa de detenção, presos, os trinta e tantos amotinados.
Sabe-se que o estabelecimento da Ponta da Areia, constituído de
fundição e estaleiro organizados em muitas oficinas, era o maior
empreendimento privado do gênero na época, contando com cerca de 600
operários, sendo aproximadamente um quarto deles escravizados. Sabemos
também que muitos outros arsenais e fábricas de então empregavam grande
quantidade de escravizados. Ou seja, além de compartilharem espaços e
experiências de trabalho, escravizados e livres acabavam por compartilhar
formas de luta.
Aliás, naquele ano de 1857, em Salvador, os carregadores urbanos, em
sua maioria escravizados que trabalhavam ao ganho, interromperam o
trabalho para protestar contra uma nova legislação da cidade que os
obrigava a pagar uma taxa e usar uma plaqueta de identificação. O peso de
tal paralisação na cidade era evidente, pois como relatou no ano seguinte o
viajante alemão Robert Aré-Lallement: “Tudo o que corre, grita, trabalha,
tudo que transporta e carrega é negro”.24 Organizados coletivamente para o
trabalho, nos “cantos” em que se reuniam à espera da contratação,
mostraram durante a paralisação uma forte capacidade de articulação e
resistência que acabou por gerar uma revisão da legislação, atendendo, ao
menos parcialmente, suas reivindicações.
Mesmo as greves, portanto, instrumento típico de reivindicação dos
trabalhadores assalariados, foram em alguns momentos utilizadas como
forma de luta pelos trabalhadores escravizados das cidades, apresentando
demandas específicas, porém demonstrando que os intercâmbios de
experiências entre os que viviam e trabalhavam nos mesmos espaços
poderiam ter dimensões mais amplas do que o esperado pelos senhores e
patrões.
Valor da liberdade e consciência de classe
Nas páginas anteriores, espero ter demonstrado que a história do
processo de formação da classe trabalhadora no Brasil começa ainda
durante a vigência da escravidão e não apenas a partir de 1888, com a
chegada em massa dos imigrantes europeus, que – a partir de uma
generalização do que se viu em São Paulo – são identificados muitas vezes
como classe operária no Brasil, e associados aos primeiros sindicatos, às
greves e às propostas de transformação social. Isto porém não significa
dizer que a classe trabalhadora estava formada no Brasil antes da virada do
século XIX para o XX.
O que se identificou aqui é que a partir do compartilhamento de
experiências de trabalho e vida em algumas cidades brasileiras com forte
presença da escravidão, ao longo do século XIX, trabalhadores escravizados
e livres partilharam formas de organização e de luta, gerando valores e
expectativas comuns, que acabariam tendo uma importância central para
momentos posteriores do processo de formação da classe. E se a luta pela
liberdade era o elemento central da luta de classes sob a vigência da
escravidão, cujo protagonismo foi desempenhado pelos próprios
escravizados para a conquista da liberdade, bem como o apoio de outros
segmentos sociais à causa, particularmente dos trabalhadores livres em
algumas de suas primeiras organizações, os valores forjados nesta luta
passaram a fazer parte do arsenal compartilhado pelos trabalhadores nas
décadas seguintes, servindo mesmo de parâmetro para a avaliação das
experiências e lutas subsequentes.
Por isso, no relato de João de Mattos que abriu essa discussão, ao
referir-se aos trabalhadores escravizados (ele não fala em escravos, pois não
nasceram assim, foram escravizados por outros), ele os chama de
“escravizados de fato”, contrastando-os não com “trabalhadores livres”,
mas com os “escravizados livres”, porque para ele a luta pela liberdade não
estava completa, já os trabalhadores assalariados possuíam, em suas
palavras, apenas “o direito de escolher entre este ou aquele senhor”.25
No início do século XX esse tipo de raciocínio estará presente muitas
vezes nos discursos das lideranças operárias, em seu esforço para mobilizar,
organizar e conscientizar os trabalhadores. Como se percebe na análise de
um outro trabalhador de padarias, publicada em 1908 no jornal A Voz do
Trabalhador: “A lei de 88 que aboliu a escravidão no Brasil parece que só
não atingiu os operários padeiros, mais escravos do que foram os daquela
raça, porque de todos os gananciosos e exploradores sobressaem os donos
de padaria”.26 Argumento que se mantinha, alguns anos depois, nas palavras
de um outro trabalhador:
É fato que acabou a escravatura em 13 de maio de 1888, e diz ainda o adajo popular que
“contra os fatos não há argumentos”; porém, eu digo que há. Há porque se bem que a
escravatura acabou, não acabou no pensamento dos nossos algozes, que são estes para quem
nós derramamos até a última gota de suor e que não nos sabem recompensar, e nunca
saberão, se a isso não os obrigarmos por nossas próprias mãos. A essa classe de gente nós
denominamos, na nossa linguagem operária – burgueses.27
Dessa forma, é difícil não perceber que nas décadas seguintes, quando o
número e a diversidade – imigrantes estrangeiros, antigos artistas, ex-
escravos, migrantes das áreas rurais – dos trabalhadores urbanos se ampliar,
as experiências comuns a escravizados e livres na segunda metade do
século XIX terão deixado marcas bastante significativas sobre o processo
de formação da classe trabalhadora.
Referências
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século XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária”.
Cadernos do AEL, nos. 11/12. Campinas, 2000.
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Letras, 2003.
CRUZ, Maria Cecília Velasco e. “Tradições negras na formação de um
sindicato: sociedade de resistência dos trabalhadores em trapiche e café, Rio
de Janeiro, 1905-1930.” Afro-Ásia, no. 24. Salvador, 2000.
DUARTE, Leila. Pão e liberdade: uma história de escravos e livres na
virada do século XIX. Rio de Janeiro, Aperj/Faperj/Mauad, 2002.
KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São
Paulo, Companhia das Letras, 2000.
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Brasil. 2a. ed.. São Paulo, Alfa-Omega, 1977.
LOBO, Eulália M. L. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao
capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro, IBMEC, 1976. (2 vols.)
LONER, Beatriz Ana. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio
Grande (1888-1930). Pelotas, Unitrabalho/EdUFPel, 2001.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). 5ª ed.,
São Paulo, Hucitec, 1986,
MARX, Karl. O 18 de brumário de Louis Bonaparte. Obras Escolhidas,
vol. 1. Moscou, Progresso; Lisboa, Avante, 1982.
MATTOS, Marcelo B. (org.). Trabalhadores em greve, polícia em guarda.
Rio de Janeiro, Faperj/Bom Texto, 2005.
QUINTÃO, Antonia Aparecida. Irmandades negras: outro espaço de luta e
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REIS, João José. “A greve negra de 1857 na Bahia”. Revista USP. No 18.
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SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma
investigação de história cultural. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
THOMPSON, E. P.. “Folclore, antropologia e história social”. In: As
peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, EdUnicamp, 2003.
THOMPSON, E. P.. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de
Janeiro, Paz e terra, 3 vols, 1987-1988.
VITORINO, Artur José Renda. Máquinas e operários: mudança técnica e
sindicalismo gráfico (São Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912). São Paulo,
Annablume/Faperj, 2000.

O manuscrito possui por título “Historico de 1876 a 1912” e apresenta-se como cópia fiel de
apontamentos velhos consultados em 24/09/1934. A julgar pelo período compreendido no
“Historico”, os tais primeiros apontamentos devem ter sido escritos por seu autor a pedido dos
militantes do sindicato da categoria (a Liga Federal dos Empregados em Padaria) para subsidiar o
relatório por eles apresentado ao Segundo Congresso Operário Brasileiro, em 1912. Várias das
informações fornecidas pelo “Historico” coincidem com as do relatório (embora haja algumas
diferenças de datas e outros dados fornecidos por João de Mattos conferem com os publicados no
jornal O panificador, publicado a partir de 1899 pela Sociedade Cosmopolita dos Empregados em
Padarias. O manuscrito foi publicado em fac simile em DUARTE, 2002.
DUARTE, 2002, p. 64-65.
DUARTE, 2002, p. 67.
DUARTE, 2002, p. 70.
DUARTE, 2002, p. 77.
MARX & ENGELS, 1986; MARX, 1982.
THOMPSON, 1987-1988; THOMPSON, 2003.
QUINTÃO, 2002, p. 82.
O Abolicionista, nº 14, Rio de Janeiro, 01/12/1881, ano II, p. 5.
O Abolicionista, nº 12, Rio de Janeiro, 28/09/1881, ano II, p. 7.
Sobre a trajetória dos tipógrafos do Rio e de São Paulo na segunda metade do século XIX ver
VITORINO, 2000.
Conferência realizada no Teatro S. Luis em benefício da Associação Tipográfica Fluminense, em 23
de março de 1879, por Vicente de Souza. Rio de Janeiro: Tipografia de Molarinho e Montalverde,
1879, p. 15 e 28. Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro, microfilmes, P1.
Apud, SILVA, 2003, p. 97.
Estatutos da Sociedade Beneficente denominada Liga Operária. Rio de Janeiro: Tipografia da
Reforma, 1872, p. 3.
Arquivo Nacional, Conselho de Estado, Sociedade de Beneficência da Nação Conga “Amiga da
Consciência” (24 de Setembro de 1874), fl. 9.
Idem, fl 2v.
Idem, fl 2 v.
Mais informações sobre essas experiências podem ser encontradas em CHALHOUB, 2003.
KARASH, 2000, p. 394.
Apud, CRUZ, 2000, p. 252.
LONER, 2001, p. 275.
Jornal dos Tipógrafos, Rio de Janeiro, 14/01/1858, p.1.
Apud REIS, 1988, p. 8, que se constitui no estudo mais detalhado daquele movimento.
DUARTE, 2002, p. 71.
A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 15/07/1908, p. 2.
A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 01/07/1913, p. 2.
RATONEIROS, FORMIGUEIROS E
ATRAVESSADORES:
TRABALHO E EXPERIÊNCIAS SOCIAIS DE
LIBERTOS EM PORTO ALEGRE NAS
PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX
Gabriel Aladrén
Há um esforço, relativamente recente na historiografia brasileira em
associar os campos de estudo sobre o trabalho escravo e o trabalho livre.
Esse esforço resulta de um diagnóstico: as pesquisas que analisam o período
inicial da formação da classe operária não contemplam, de modo geral, as
continuidades entre as características do trabalho e dos sistemas produtivos,
as formas de organização e, sobretudo, as tradições políticas e culturais dos
trabalhadores brasileiros no período escravista e após a Abolição.
Com efeito, são cada vez mais abrangentes os estudos que procuram
associar perspectivas teóricas, questões e métodos da historiografia da
escravidão com a classe operária, conformando um campo que costuma ser
denominado de história social do trabalho.
Antonio Luigi Negro, refletindo a partir da historiografia sobre a classe
operária, sugeriu que uma análise acerca do período formativo da classe
trabalhadora no Brasil deve necessariamente contemplar as últimas décadas
da vigência da escravidão, momento em que foram elaboradas algumas das
tradições culturais e políticas dos trabalhadores.28
Silvia Hunold Lara criticou as teses que concebem uma oposição
irreconciliável entre o mundo da escravidão e o da liberdade, formuladas a
partir dos conceitos de substituição e transição do trabalho escravo para o
livre. Lara observou que essa historiografia tem como premissa a ideia de
que os escravos (e, por extensão, os ex-escravos) não seriam sujeitos
políticos legítimos. A história do trabalho no Brasil e, sobretudo, da ação
política dos trabalhadores, teria início apenas com o fim da escravidão. A
autora sugeriu que o desenvolvimento da historiografia da escravidão
durante as décadas de 1980 e 1990 teria um papel fundamental na
renovação das análises sobre o período de formação da classe operária
brasileira.29
Alguns estudos sobre as relações raciais no Brasil também contribuíram
para o redimensionamento das noções de substituição e transição do
trabalho escravo para o livre. Sem desconsiderar a Abolição como um
marco histórico importante, Hebe Mattos estudou os escravos articulando
suas expectativas em relação ao trabalho e às relações raciais com os
projetos e trajetórias de libertos após a emancipação. A autora concluiu que
os ex-escravos conseguiram renegociar condições de trabalhos nas
fazendas, a partir de suas próprias expectativas, forjadas ainda nos tempos
do cativeiro, acerca do modo como deveriam vivenciar sua liberdade e
usufruir seus espaços de autonomia.30
George Andrews estudou as relações raciais em São Paulo no pós-
Abolição e chegou a algumas conclusões semelhantes, tanto para o meio
rural quanto para o urbano. Observou que os libertos tinham um poder de
barganha e podiam negociar com seus empregadores, ainda que sofressem a
pressão da disputa no mercado de trabalho com os imigrantes europeus.
Segundo Andrews, as expectativas dos ex-escravos acerca das condições de
trabalho baseavam-se em suas vivências no cativeiro.31
Há trabalhos que notaram semelhanças entre as experiências e formas de
atuação política de trabalhadores escravizados e livres. João José Reis, ao
pesquisar a organização dos escravos em cantos32 na cidade de Salvador,
percebeu uma complexa interação entre identidade étnica e de classe. Se,
por um lado, identidades étnicas e raciais eram motivo de tensão entre os
ganhadores, por outro, sua condição de classe (derivada de sua ocupação no
trabalho ao ganho) unificava escravos e livres de diversos grupos étnicos e
raciais. Essa identidade classista manifestou-se em uma greve que esses
trabalhadores organizaram no ano de 1857, em protesto contra a
regulamentação que a Câmara Municipal de Salvador pretendia impingir às
suas atividades. Segundo Reis, ao longo da segunda metade do século XIX,
progressivamente a identidade de classe superou as distinções étnicas e
raciais, tornando-se predominante entre os trabalhadores urbanos às
vésperas da Abolição.33
Marcelo Badaró Mattos, ao estudar a formação da classe trabalhadora no
Rio de Janeiro, compartilha da premissa de que devem ser estudadas as
relações e convergências entre as experiências de trabalhadores escravos e
livres:
[...] trabalhamos com a hipótese de que no processo de formação da classe trabalhadora, na
cidade do Rio de Janeiro, no período que vai de meados do século XIX às primeiras
décadas do século XX, a presença da escravidão, as lutas dos escravos pela liberdade e as
formas pelas quais as classes dominantes locais buscaram controlar seus escravos e
conduzir um processo de desescravização sem maiores abalos em sua dominação, foram
fatores decisivos para a conformação do perfil da nova classe de trabalhadores
assalariados.34
O trabalho do autor tem como referência teórica a obra de E. P.
Thompson, cuja influência na historiografia da escravidão e da classe
operária no Brasil é notória. Por outro lado, pode-se dizer que parte dessa
renovação historiográfica também reflete uma reatualização das discussões
acerca do caráter moderno das experiências de escravos nas Américas. No
campo dos estudos culturais, Paul Gilroy assevera que o estudo da diáspora
africana é indissociável de uma concepção mais ampla que pressupõe a
expansão da modernidade e do capitalismo no Mundo Atlântico. Gilroy
sugere que as tradições e a cultura política elaborada pelos negros no Novo
Mundo podem ser entendidas como uma contracultura da modernidade.
Enfim, o aspecto que cabe ressaltar é que as ações políticas e culturais dos
escravos eram parte da história da modernidade e de sua criação no Mundo
Atlântico.35
Gilroy tem como uma de suas influências o historiador C. L. R. James,
que escreveu uma brilhante obra sobre a revolução dos escravos no Haiti. A
principal linha de força da obra de James tem como pressuposto a tese de
que as experiências dos escravos nas plantations da colônia francesa – e,
por extensão, em todas as regiões onde foi instituída a escravidão moderna
– eram condicionadas por uma forma de organização do trabalho que se
aproximava das condições de trabalho da classe trabalhadora no regime
industrial:
Os escravos trabalhavam na terra e, como camponeses revolucionários de qualquer lugar,
desejavam o extermínio de seus opressores. Mas, trabalhando e vivendo juntos em grupos
de centenas nos enormes engenhos de açúcar que cobriam a Planície do Norte, eles estavam
mais próximos de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de trabalhadores
naquela época, e o levante foi, por essa razão, um movimento de massas inteiramente
preparado e organizado.36
C. L. R. James constatava a modernidade das experiências escravas no
Novo Mundo e, preocupado com os rumos dos movimentos de
trabalhadores naquele momento de expansão do nazismo e do fascismo –
seu livro foi publicado em 1938 –, afirmava a necessidade de integrar aos
programas da esquerda tradições, problemas e objetivos específicos dos
movimentos negros na luta contra a opressão racial.
*****
Neste trabalho, abordo uma conjuntura algo distante da existente em
cidades como o Rio de Janeiro ou Salvador da segunda metade do século
XIX, onde uma grande concentração de escravos e negros livres, associada
a condições bem desenvolvidas e diversificadas de trabalho urbano e,
inclusive, no caso carioca, a um incipiente sistema fabril, ensejou uma
associação mais direta entre as experiências de escravos e operários. Nem
ao menos posso considerar a região estudada como um local em que se
tenham desenvolvido plantations nas quais trabalhavam e viviam grupos
numerosos de escravos, tal como descrito por James em relação ao Haiti.
A região de Porto Alegre, nas primeiras décadas do século XIX, era
marcada por um forte caráter rural e, mais que isso, povoada por unidades
produtivas cuja mão de obra era constituída de pequenas e médias
escravarias e trabalhadores vinculados a formas diversas de trabalho
“livre”. Se essa estrutura socioeconômica não permitiu o surgimento de
uma cultura política enraizada em experiências semelhantes às existentes no
Haiti (pensando no mundo rural) ou em Salvador e Rio de Janeiro
(pensando no mundo urbano), justamente a diversidade das formas de
trabalho e, sobretudo, da condição dos trabalhadores, propicia vislumbrar
um desenvolvimento específico da experiência negra no Mundo Atlântico.
A especificidade dessa experiência, em Porto Alegre, pode ser mais bem
compreendida a partir de dois eixos temáticos que condicionavam as
possibilidades de ação dos trabalhadores: as atividades econômicas e as
políticas de domínio senhorial. Para compreendê-los, estudei um tipo
específico de trabalhador, o liberto. Pretos e pardos, ex-escravos ou
nascidos livres, podem ser considerados como um grupo social privilegiado
para analisar a diversidade de experiências vivenciadas por trabalhadores
livres em uma sociedade escravista, bem como para observar as alternativas
e soluções por eles encontradas para construir redes de solidariedade e
formas de proteção a sua existência e a seus espaços de autonomia.
A historiografia brasileira, durante largo espaço de tempo, negligenciou
a análise dos chamados grupos intermediários na sociedade brasileira
colonial e imperial. Os debates em torno de sua natureza e dinâmica que,
internamente, fundavam-se no conflito entre senhor e escravo, acabaram
por excluir os libertos e livres pobres dessas reflexões. A visão polarizada
das hierarquias e relações sociais no Brasil escravista tinha como imagem
clássica a oposição entre os senhores – frequentemente representados como
um senhor de engenho ou um grande cafeicultor – e a enorme massa de
escravos que trabalhavam no eito.
Essa interpretação aparece em Caio Prado Júnior que, ao observar o
amplo predomínio do trabalho servil na colônia, sustentou que esse modelo
constituía um óbice para a valorização do trabalho entre as camadas livres,
restringindo sobremaneira as possibilidades de inserção econômica e social
daqueles que não eram nem senhores, nem escravos:
Entre estas duas categorias nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização
comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e
inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação
alguma [...]. Compõe-se sobretudo de pretos e mulatos forros ou fugidos da escravidão;
índios destacados de seu habitat, mas ainda mal ajustados na nova sociedade em que os
englobaram; mestiços de todos os matizes e categorias, que, não sendo escravos e não
podendo ser senhores, se vêem repelidos de qualquer situação estável, ou pelo preconceito
ou pela falta de posições disponíveis.37
Segundo Caio Prado, essa “subcategoria colonial” seria composta de
três partes: aqueles que habitavam os vastos e longínquos sertões, apartados
da civilização e do contato com as vilas coloniais; aqueles que habitavam as
cidades e, sobretudo, os campos e constituíam a clientela de poderosos
senhores, os agregados; e os “desocupados permanentes”, vadios, que
circulam pelas cidades e pelo campo, vivendo principalmente de crimes e
atividades completamente irregulares.38
Em que pesem as novas contribuições da historiografia a propósito do
trabalho livre na sociedade escravista, muitas delas tendo como ponto de
partida a crítica mais ou menos contundente do modelo elaborado por Caio
Prado Júnior,39 alguns pontos desse modelo ainda têm validade. Por mais
que o historiador tenha carregado nas tintas ao falar da inexpressividade do
trabalho livre, é inegável que a estrutura da sociedade escravista, sobretudo
nas regiões orientadas para a exportação, colocava alguns óbices à
valorização dos trabalhadores livres, em especial os ex-escravos.
Este trabalho está dividido em duas partes: na primeira, faço uma
análise das possibilidades de inserção econômica existentes para os libertos
no Rio Grande do Sul, enfocando de forma específica a região de Porto
Alegre; na segunda, recupero as experiências de um grupo particular de
trabalhadores libertos, que viviam em trânsito entre o mundo rural e o
urbano, os quitandeiros e pombeiros.

Trabalho e bens de libertos


Com o propósito de analisar a inserção econômica de libertos no Rio
Grande de São Pedro, utilizei um conjunto de 26 inventários post-mortem
de forros, de modo a identificar as ocupações dos libertos inventariados,
bem como a composição de seu patrimônio, em especial bens de raiz e
cativos.
Os inventários são fontes excepcionais para o estudo do patrimônio e
das atividades econômicas em dada sociedade. No entanto, é preciso
destacar que o inventário é uma fonte socialmente determinada, pois
implica a observação de um extrato economicamente privilegiado de um
grupo social.40 Aqueles libertos que morreram sem deixar bens ou sem ter
constituído um patrimônio significativo não estarão presentes nas páginas
que seguem. Portanto, as conclusões a que chego nessa parte devem ser
tomadas como indicações dos limites colocados à ascensão econômica dos
forros na região estudada.
Isso não significa que os únicos libertos que adquiriram bens e
construíram um patrimônio significativo sejam esses 26 inventariados.
Sheila de Castro Faria observa que, conforme a legislação portuguesa,
quando morriam os proprietários que haviam feito testamento e não tinham
herdeiros necessários (filhos, pais, irmãos e parentes até o quarto grau de
consanguinidade), não era obrigatória a abertura de inventário. Isso explica
a exiguidade de inventários de forros encontrados por ela, em sua pesquisa
no Rio de Janeiro e em São João Del Rei e também os escassos 26
encontrados por mim em Porto Alegre. Na medida em que os libertos
nascidos na África normalmente não tinham pais ou outros parentes
residentes no Brasil, sendo muitas vezes casados e não tendo filhos, não era
necessário proceder à realização do inventário quando eles deixavam
testamentos.41
Outra questão a ser considerada é o fato de que, nessa fonte, não era
obrigatória a indicação da cor ou condição social do falecido. A tendência é
que fossem designados como pretos ou pardos forros os inventariados cuja
experiência e proximidade com o cativeiro fosse recente. Os descendentes
de libertos, nascidos livres, talvez não tivessem sua cor declarada.
Portanto, é provável que muitos libertos sul-rio-grandenses que
amealharam bens não tenham deixado inventários. De qualquer modo, os
casos analisados estão entre aqueles que obtiveram uma ascensão
econômica significativa, o que, certamente, não era a realidade da maioria
dos forros da região de Porto Alegre.
O quadro que se segue procura distinguir os diferentes tipos de
ocupações e atividades econômicas dos libertos inventariados. Cabe, porém,
uma advertência: a definição das ocupações pretende apenas indicar aquele
tipo de atividade econômica preponderante para cada liberto, que
provavelmente indicava seu status “ocupacional” perante a sociedade e
constituía-se em seu principal meio de sobrevivência.
Além da ocupação indicada, certamente o liberto realizava outros tipos
de atividade com o fim de auferir mais renda. Em uma sociedade tão
pequena como a de Porto Alegre e arredores, no primeiro terço do século
XIX, os libertos dificilmente trabalhariam em apenas um tipo de atividade.
Mesmo aqueles que tinham ocupações especializadas deveriam realizar
diversos serviços e, em uma região de escravarias pequenas e com modesta
atividade urbana, a especialização do trabalho não deveria ser a regra.
Quadro 1
Ocupações dos libertos
Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão (1800-1835)
Ocupação Quantidade de libertos
Lavrador 9
Lavrador e criador 3
Lavrador com ofício 3
Alfaiate 1
Costureira 1
Sapateiro 1
Pedreiro 1
Comércio ambulante 2
Vive de esmolas 1
Não identificado 4
Total 26
Fonte: 26 inventários post-mortem de libertos de Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão (1800-
1835). Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). 1a Vara de Família, 1a e 2a Cível
e Crime de Porto Alegre.
É necessário explicitar a metodologia empregada para definir ocupações
a partir de inventários. Esta fonte não indica expressamente a atividade
econômica do inventariado, de modo que a inferi através de alguns indícios.
À medida que irei explicando o método utilizado, também descreverei, para
melhor compreensão, alguns casos que me parecem relevantes.
Os lavradores foram assim definidos quando constavam, entre seus
bens, instrumentos e equipamentos agrícolas (enxadas, foices, foices de
trigo, forno de cobre, moinho para fazer farinha, carro de boi etc.), colheitas
e lavouras (alqueires de trigo ou mandioca, farinha, cercados de lavouras) e
propriedades rurais (chácaras, sítios, retalhos de campos). Os instrumentos
e equipamentos agrícolas foram arrolados entre os bens de todos os libertos
definidos como lavradores, muitas vezes complementados com as
propriedades rurais e mais raramente com colheitas e lavouras.
João Antônio da Rocha,42 preto forro, era um lavrador, casado com a
também preta forra Maria Thereza e tinha dois filhos, Francisco, de dez
anos, e João, de cinco. Deixou entre seus bens um campo com uma casa de
capim em Viamão, que tinha 72 pés de laranjeiras. Ele cultivava e
beneficiava a mandioca, como demonstra a existência de enxadas, roda de
ralar mandioca, prensa de mão, forno de cobre e moinho de mão. Entre seus
bens está relacionado também um arado, que talvez indique o cultivo de
trigo, pois o cultivo da mandioca não exigia esse tipo de instrumento.43
Provavelmente João beneficiava a mandioca colhida, a transformava em
farinha, e assim comercializava em Viamão, ou até mesmo em Porto
Alegre. Como não possuía nenhum escravo e seus filhos ainda eram
pequenos, quem trabalhava nas roças era o próprio casal.
Alguns desses lavradores também possuíam animais de criação (reses)
que, mesmo em pequeno número, denotam a realização de atividade
pecuária junto com a agricultura. Este é o caso dos libertos definidos como
“lavrador e criador”. Antonio Pedro,44 morador dos “arrabaldes” de Porto
Alegre, possuía um pedaço de terra com uma casa de pau a pique, onde
plantava e beneficiava mandioca, com o auxílio de um escravo. Além disso,
possuía três cavalos, com os apetrechos de montaria – lombilho, coxonilho
– e um pequeno rebanho de nove reses. Era casado com Maria da Luz, preta
forra. Apesar de não ter filhos, era proprietário de um escravo de 18 anos
avaliado em 200$000 réis.45 Portanto, para manter o pequeno rebanho e
realizar as tarefas agrícolas, certamente contava com a mão de obra da
esposa e do escravo.
Outros lavradores tinham deixado entre seus bens instrumentos para a
realização de um ofício, indicando que, além da prática da agricultura, o
inventariado também tinha uma ocupação especializada. É o que indica a
rubrica “lavrador com ofício”. Antônio Muniz,46 casado com Rita de Souza,
preta forra, morador “fora dos portões” de Porto Alegre, é um exemplo:
plantava trigo – foram arrolados entre seus bens duas foices de trigo, dois
arados, 34 alqueires de trigo colhido, um carro e três bois mansos – e era
também carpinteiro – possuía uma enxó de carpinteiro da ribeira.
Quando constavam apenas instrumentos para a prática de ofícios (banca
de sapateiro, tesouras, tecidos, formas, colher de pedreiro etc.) defini alguns
libertos como sapateiros, alfaiates, costureiras ou pedreiros. Antonio
Velozo,47 preto forro, natural da Costa da Mina, batizado na cidade do Rio
de Janeiro,48 era solteiro e não tinha filhos. Morava na Aldeia dos Anjos e
tinha, entre seus bens, três tesouras de alfaiate, um ferro de alfaiate e alguns
tecidos.
Os que viviam do comércio também não possuíam bens que indicassem
atividade econômica, apenas tabuleiros, o que sugere que praticavam o
comércio a retalho. Essa suposição se reforça pelo fato de que os dois
libertos assim definidos eram mulheres, que frequentemente dominavam o
comércio ambulante nos séculos XVIII e XIX.49
Há o caso de um liberto que vivia de esmolas, pois foi assim
expressamente indicado por sua esposa, que pediu um atestado de pobreza
com o intuito de que não se procedesse ao inventário.50
Entre os quatro inventariados cuja ocupação não foi identificada, dois
possuíam escravos com ocupações declaradas. É possível que eles fossem
alugados ou empregados “ao ganho”. Mais provável é que os forros
oferecessem seus serviços e trabalhassem junto com seus cativos. Joaquim
Pereira da Rosa,51 crioulo natural do Rio de Janeiro, era casado com Maria
Antonia da Conceição, preta forra de nação Conga. Morava na rua
Formosa, em Porto Alegre, e foi inventariado em 1821, tendo entre seus
bens dois escravos. Um deles, chamado Bartolomeu, de nação Haussá, era
“cabouqueiro”. A atividade de “caboucar” consistia em abrir buracos para
colocação de alicerces para construção de casas, ou outros tipos de prédios,
tanto urbanos como rurais. É bastante provável que Joaquim Pereira da
Rosa, junto com Bartolomeu, trabalhasse nas construções da vila de Porto
Alegre, ou mesmo na instalação de moinhos e outras benfeitorias no
entorno rural da cidade.
Segundo Russell-Wood, a agricultura e o comércio eram os dois campos
em que os pretos e pardos, forros ou livres poderiam viver regularmente e
eventualmente obter certa prosperidade econômica. No comércio, apesar de
competirem diretamente com os brancos, existiam mais possibilidades de se
acumular alguma riqueza. Entretanto, o máximo a que podiam aspirar era a
posição de dono de mercearia ou taberna. E, para poucos que atingiam essas
posições, havia centenas que viviam como intermediários na venda de
alimentos ou como negras de tabuleiro, ocupações em tudo semelhantes às
realizadas por escravos.52 É provável que, na região de Porto Alegre, as
possibilidades de inserção econômica no comércio, especialmente como
proprietários de pequenos estabelecimentos comerciais, fossem ainda mais
restritas. A parca urbanização e a concorrência com os homens brancos
deve ter dificultado, muito mais do que em Minas Gerais – privilegiada no
estudo de Russell-Wood –, a inserção econômica dos ex-escravos.
Desse modo, a agricultura tornou-se a possibilidade mais tangível de
inserção econômica para os pretos e pardos forros na região de Porto
Alegre. Os forros inventariados, em sua maior parte, podem ser definidos
como lavradores, embora alguns também praticassem a pecuária em
pequena escala ou exercessem alguma ocupação especializada. Segundo
Russell-Wood, a prática da agricultura dificilmente garantia aos libertos
algum grau de ascensão econômica. Com dificuldades para comprar
escravos e lavrando culturas pouco lucrativas (como a mandioca),
precisavam contar, sobretudo, com a mão de obra familiar.53
Como já foi dito, as ocupações listadas no Quadro 1 eram,
provavelmente, as mais importantes dos libertos inventariados, mas não
deviam ser as únicas. Assim como os escravos, muitos forros trabalhavam e
realizavam serviços manuais de todo o tipo, onde quer que pudessem ter
algum retorno. Certamente, havia muitos libertos entre os negros descritos
pelo botânico Saint-Hilaire quando de sua passagem por Porto Alegre, em
1820: “A Rua da Praia, que é a única comercial, é extremamente
movimentada. Nela se encontram numerosas pessoas a pé e a cavalo,
marinheiros e muitos negros carregando volumes diversos”.54
O Quadro 2 apresenta a posse de bens de raiz entre os forros. É possível
perceber, a partir da análise de suas propriedades, que alguns libertos
passaram a ser proprietários de imóveis urbanos e situações rurais.
Quadro 2
Posse de bens de raiz entre os libertos
Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão (1800-1835)
Tipo Quantidade de libertos
Nenhuma 07
Propriedades rurais 13
Imóveis urbanos 06
Total 26
Fonte: 26 inventários post-mortem de libertos de Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão (1800-
1835). Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). 1a Vara de Família, 1o e 2o Cível
e Crime de Porto Alegre.
No entanto, o fato de que sete libertos não possuíam nenhum bem de
raiz demonstra que a constituição de um patrimônio significativo não era
algo fácil de conquistar. Deve-se lembrar que esses forros inventariados
deveriam estar entre os mais bem aquinhoados de todos os que viviam na
região de Porto Alegre. Mesmo aqueles que se tornaram proprietários de
bens de raiz não tinham posses muito valiosas, com exceção de alguns
imóveis urbanos.
Joaquim Pereira da Rosa55 era proprietário de um desses imóveis
valorizados. Deixou entre seus bens casas de morada cobertas de telha,
forradas e assoalhadas, na Rua Formosa em Porto Alegre. Casas com esse
tipo de acabamento eram raras, mesmo entre os livres.
Entre os proprietários rurais, aparecem “chácaras”, “sítios”, “retalhos de
campos” e “pedaços de terra”. Tais denominações são típicas de pequenas
unidades produtivas, cuja atividade predominante é a agricultura. Em
nenhum momento aparece a denominação “estância”, que indicaria uma
unidade com grande extensão de terra e produção orientada, embora não
exclusivamente para a pecuária.56
Luiza Maria,57 por exemplo, deixou entre seus bens um sítio com uma
casa de capim, sem nenhuma benfeitoria. João Félix Correia58 possuía uma
chácara com uma “casinha velha de pau a pique”. Situação melhor era
vivida por Maria Thereza Marques,59 proprietária de uma chácara com casa
e cozinha cobertas de telha, com arvoredos e um terreno de lavouras e ainda
um pequeno terreno que servia de potreiro. Não por acaso, ela era
proprietária de um escravo, Pedro, de 18 anos, em plena idade produtiva e,
portanto, valorizado. Para melhor visualizar a posse de cativos entre os
forros, elaborei o seguinte quadro:
Quadro 3
Posse de escravos entre os libertos
Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão (1800-1835)
Tmanho da escravaria Quantidade de libertos
0 16
1 05
2 03
3 01
4 01
Total 26
Fonte: 26 inventários post-mortem de libertos de Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão (1800-
1835). Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). 1a Vara de Família, 1a e 2a Cível
e Crime de Porto Alegre.
O dado que se destaca, em primeiro lugar, é a ausência de escravos entre
os bens de 16 libertos, a maioria dos inventariados. Pedro Gonçalves,60
lavrador e criador, possuía quatro escravos, sendo o maior proprietário
escravista entre os forros pesquisados. Era também o possuidor do maior
rebanho, composto de 44 reses, 10 terneiros, 18 éguas e cinco cavalos
mansos.
Este caso, no entanto, era uma exceção. A maior parte dos proprietários
possuía um ou dois cativos. E a maioria dos libertos não possuía nenhum.
Essa pobreza material contrasta com situações encontradas em outras
regiões do Brasil escravista. Maria Inês Côrtes de Oliveira, cuja pesquisa
enfoca Salvador entre 1790 e 1850, demonstrou que 77,65% dos libertos
possuíam cativos.61 Ida Lewkowicz, estudando os forros em Mariana, nas
Minas Gerais, entre 1730 e 1800, verificou que 79,3% possuíam escravos.62
Sheila de Castro Faria observou que cerca de 80% dos testadores libertos no
Rio de Janeiro, ao longo do século XVIII, eram proprietários de escravos.63
Note-se, entretanto, que os resultados acima foram verificados em
cidades, áreas tipicamente urbanas, como o Rio de Janeiro, Salvador e
Mariana. Igualmente, as fontes utilizadas foram testamentos de forros.
Conforme já indiquei anteriormente, possivelmente os testamentos são
fontes que revelam com maior amplitude o grau de acumulação de bens
entre os libertos.
É interessante, portanto, comparar os dados que obtive com os de outras
regiões predominantemente rurais do Brasil. Francisco Vidal Luna e
Herbert Klein analisaram as ocupações e a posse de bens e escravos por
parte de pretos e pardos livres e forros em municípios paulistas e mineiros,
nas primeiras décadas do século XIX. Essas regiões voltavam-se
predominantemente para a produção agrícola e artesanal. Alguns
municípios contavam com a maioria da população branca (tal qual a região
de Porto Alegre) e, em outros, a maioria era negra ou mulata. Luna e Klein
concluíram, através da análise de listas nominativas e mapas de população,
que os pretos e pardos podiam ser encontrados em todas as ocupações
exercidas pelos brancos, exceto no nível da elite. Entretanto, quando se
observa a posse de escravos, percebe-se uma diferença significativa entre os
brancos e os negros. Nos municípios paulistas, apesar de os assim
chamados “livres de cor” constituírem 30% dos chefes de domicílio,
compunham apenas 6% dos proprietários de escravos, possuindo somente
4% dos escravos.64
Os autores explicam essa larga desvantagem dos pretos e pardos livres
em relação aos brancos, sobretudo, por fatores econômicos. Os “livres de
cor” carregavam da escravidão um legado econômico negativo, pois
iniciavam sua vida como libertos com níveis de poupança muito baixos,
tanto mais quando empregavam o que conseguiam acumular em árduos
anos de trabalho na compra de sua alforria. Por outro lado, havia uma
diferença significativa entre os pardos e pretos, sendo os primeiros mais
bem aquinhoados em termos de posse de escravos, o que é explicado pelos
autores como um indício da discriminação racial.65
Entretanto, Luna e Klein não consideraram alguns fatores importantes
para a análise da riqueza e das posses de libertos e seus descendentes. Em
primeiro lugar, justamente o fato de que nem todos os “livres de cor” eram
forros e necessariamente iniciavam sua vida com o handicap econômico da
escravidão. Em segundo, que as designações de cor entre os livres (pretos e
pardos) não podem ser analisadas de forma isolada dos padrões de riqueza.
Se os pardos são mais bem aquinhoados que os pretos, isso não significa
necessariamente uma relação de causa e efeito, isto é, têm mais posses
porque são pardos. A relação é mais complexa: os mais bem aquinhoados
tendem a ser designados como pardos, mesmo que sua ascendência seja
predominantemente africana ou crioula.
Não deve se supor, contudo, que não existia discriminação racial na
sociedade escravista brasileira. As hierarquias fundadas em demarcadores
raciais, materializadas nas distinções por cores, eram princípios básicos que
estabeleciam distinções, status e lugares sociais específicos para os homens
livres. A própria vinculação entre condição econômica/social e as
designações de cor demonstra a necessidade de criar, expressar e reiterar
estratificações hierárquicas a partir de critérios raciais. Se a cor da pele não
era um dado positivo em si, ela não deixava de ser um fator que definia a
qualidade das pessoas. Tal como foi observado por Russell-Wood, aos
mulatos livres ou forros estavam abertas maiores possibilidades de
integração social que aos negros de mesma condição jurídica.66
Resumindo as conclusões a que cheguei até aqui, pode-se dizer que os
forros da região de Porto Alegre dificilmente conseguiam acumular o
capital necessário para adquirir escravos, mas não deixavam de fazê-lo
quando podiam. As possibilidades de acumulação monetária, para os
libertos rio-grandenses, eram restritas. Não estavam em uma economia
mineradora, como a de Minas Gerais, que oferecia uma série de brechas
para os escravos e forros obterem rendimentos. Tampouco em uma
sociedade urbanizada, como Salvador ou Rio de Janeiro, em que as
atividades tipicamente urbanas, como o comércio e os ofícios,
possibilitavam o enriquecimento de alguns libertos.
Não que esses forros fossem pobres; afinal, possuir um ou dois escravos
já era uma distinção econômica efetiva. Igualmente, somente o fato de ter
sido aberto um inventário post-mortem demonstra que esses libertos não
eram destituídos de recursos. Mas não será demais enfatizar que os
inventariados constituíam a elite econômica no interior de seu grupo social.
Para estudar as experiências e formas de trabalho daqueles libertos que não
possuíam escravos nem trabalhavam em ofícios especializados, é necessário
recorrer a outras fontes, o que faço na segunda parte deste trabalho.
Ratoneiros ou quitandeiros?
Caetano Ferreira Gomes, crioulo forro natural do Rio de Janeiro, foi
detido em fevereiro de 1825 em Porto Alegre, pelo comandante da polícia
daquela cidade. Era solteiro e tinha “para mais de quarenta anos” de idade.
Primeiramente foi acusado de ser receptador de furtos, por ter supostamente
guardado em seu poder uma porção de louça roubada da Alfândega pelo
soldado Joaquim Francisco de Andrade. A denúncia feita pelo comandante
da polícia já incluía outras duas acusações: a de ratoneiro,67 pois Caetano
teria furtado alguns couros em uma charqueada na Freguesia Nova alguns
anos antes; e a de atravessador, por supostamente negociar um ou mais
produtos protegidos por monopólio e contratos, tais como “pão, trigo,
farinha, vinho, azeite, carnes, madeiras, açúcar”. As testemunhas foram
arroladas e seus depoimentos registrados. Caetano foi mantido durante um
ano na prisão, até seu caso ser remetido à Junta da Justiça para o
julgamento. Designou-se um defensor para o réu, que alegou a
improcedência da denúncia, a ausência de provas e erros graves nos
procedimentos jurídicos. No dia 7 de março de 1826 a Junta da Justiça
publicou o acórdão que absolvia o réu de todas as acusações, por falta de
provas, incumbindo-o, no entanto, de pagar as custas.68
O liberto José Antônio, preto natural da costa da África, conhecido
como “Castelhano”, foi denunciado como “ladrão formigueiro”,69 tendo
sido preso no dia 30 de dezembro de 1824. Também o acusaram de não ter
ocupação certa e de “admitir pretos em sua casa fazendo barulhos e má
vizinhança”. Era solteiro e “de idade para mais de quarenta e cinco anos”.
Seu processo foi remetido à Junta da Justiça para ser julgado mais de um
ano após sua detenção. O defensor de José Antônio, nomeado pela Junta,
alegou que o réu estava preso irregularmente há mais de 14 meses, sem
provas e com falhas no processo judicial. O acórdão de 14 de março de
1826 absolveu o “Preto Castelhano”, pois “acusado de ladrão formigueiro o
que não se provando nos autos, somente que não tem ocupação certa e
admitir pretos em sua casa fazendo barulhos e má vizinhança”. Embora
absolvido, ficava obrigado a pagar as custas do processo.70
Antonio Angria, vulgo “Guerrilha”, era um preto forro de Angola e foi
preso pelo comandante da ronda da polícia da cidade de Porto Alegre no dia
20 de janeiro de 1825. Era solteiro e tinha mais de 30 anos. Acusado de ter
furtado quatro mil réis do pardo José dos Santos, foi pronunciado por ser
“ladrão ratoneiro”. Após ter seu processo julgado na Junta da Justiça, foi
absolvido no dia dois de março de 1826, com a seguinte sentença:
Mostra-se com o sumário apenso que o réu fora preso [...] a título de ter roubado quatro mil
réis e procedendo-se o Sumário de Polícia ficou o dito réu pronunciado por ser vadio não se
provando contudo roubo e estando bastantemente castigado com o tempo de prisão que tem
sofrido para mais de um ano; portanto, mandam que seja solto e que se lhe dê baixa na
culpa e pague as custas.71
O leitor já deve ter percebido a semelhança entre os casos descritos
acima. Os acusados eram todos pretos forros, solteiros, de idade entre 30 e
50 anos. Caetano era crioulo, natural do Rio de Janeiro. José Antônio
“Castelhano” era natural do Cabo da Boa Esperança. Antônio Angria era de
nação Angola, mas foi identificado, à semelhança de José Antônio, como
“preto espanhol”.
Antônio Angria fora escravo de um “homem rico” em Montevidéu.
Quando estourou a guerra naquela região, nos primeiros anos da década de
1810, aproveitou para fugir para a Campanha, empregando-se como
soldado de José Artigas. Em 1817, fora capturado pelo exército lusitano na
batalha de Catalán, tendo sido remetido para Porto Alegre, onde se
conservou “em galés no serviço público” e foi solto com os demais
prisioneiros como liberto. É possível que o “Castelhano” José Antônio
tenha vivenciado uma história semelhante.72
O fato é que os três libertos estavam, em meados da década de 1820,
vivendo de comprar e vender gêneros alimentícios e outros produtos na
cidade de Porto Alegre e nas freguesias próximas. Eles eram quintandeiros
ou pombeiros.73 Essa ocupação exigia que eles soubessem navegar em
pequenas canoas pelos rios e lagos que circundavam a cidade de Porto
Alegre, carregando mercadorias de um local a outro. Realizavam essa
atividade quer por sua própria iniciativa, quer a serviço de terceiros,
“alugados”.
Ao ser questionado acerca de sua ocupação, o forro José Antônio
descreveu com pormenores suas atividades. Disse que vivia de “comprar e
vender na praia desta cidade74 gêneros comestíveis”. Ele fazia parte de um
circuito comercial muito interessante. Perguntado sobre que tipos de
gêneros comprava e vendia, disse que: “rachava lenha75 para vender, e com
o seu produto, ia às charqueadas comprar costelas, e as vinha vender na
praia desta cidade, e que disto é que vivia”. Ele ia regularmente ao Caminho
Novo76 rachar lenha com seus companheiros, “Antonio Cabra, Francisco
[ilegível], Pedro Mojo, Joaquim Junona, Mathias Vasquez, Pedro [ilegível],
todos forros”. Em seus depoimentos, algumas testemunhas confirmaram
que o “preto castelhano” tinha “uma canoa em que anda com outros
navegando no rio a compra de quitandas”.
Caetano Ferreira Gomes disse que “vivia de quitandar, comprando e
vendendo galinhas e frangos pela praia”. Quando preso, o crioulo forro
tinha aproximadamente 40 anos, “e tinha vivido de andar embarcado e que
há dois anos ficara em terra vivendo de andar comprando quitandas por
fora, e comprando galinhas e frangos pela praia, e os que lhe vender, para
revender ao povo”.
Antônio Angria falou que “vivia sem ofício e de andar alugado para
cima e para baixo”. Nunca estivera morando na casa de alguém em
definitivo, mas “vivia disperso com um ou outro a quem se alugava”.
Quando “não tinha quem o alugasse andava pelas ruas vendo algum carreto
e de noite se recolhia em uma casa na quitanda aonde existem outros pretos
pombeiros de frente da quitanda, forros e cativos”. Perguntado se conhecia
o pardo José dos Santos, vítima do roubo que Angria teria cometido, este
respondeu:
[...] que não sabia o nome do roubado e somente o conhecia de vista ser um pardo moço que
ignora se é cativo ou forro que anda descalço e vem à quitanda em canoa a vender algumas
cousas e que na noite antecedente da sua prisão dormiu na porta da parte de fora da casa em
que também dormiu mas que não o roubara.
Quando fora preso, Antônio Angria estava de posse de uma certa
quantia em dinheiro, o que foi um dos motivos para a suspeita de que ele
teria cometido o roubo. O preto forro justificou-se dizendo que “[a quantia]
procedera da venda de uma porção de carne miúda que trouxera da
charqueada do Tenente Leão”. Como fora acusado, além de “ladrão
ratoneiro”, de vadio, bêbado e de falta de domicílio, seu advogado declarou:
[...] ele era acostumado a empregar-se no serviço de remeiro de navegação ligeira desta
cidade para os portos do interior, e que sendo este um serviço pesado, e de risco de vida,
não podia ser contemplado vadio naquelas vagas em que se não empregava; porque nestas
mesmas ocasiões procurava trabalhar em terra para quem o queria alugar.
As informações extraídas desses três processos criminais demonstram
alguns aspectos das vivências e experiências de libertos empregados ao
ganho, sobretudo na ocupação de quitandeiros, pombeiros e remeiros. Um
dos primeiros aspectos, que salta aos olhos, é a ausência de uma
especialização do trabalho mais desenvolvida. Tal qual pode ser observado
na descrição feita por José Antônio, esses forros ocupavam-se em diversos
“setores” da cadeia produtiva: cortavam lenha para comercializar e com o
produto dessa venda adquiriam “costelas” e “carne miúda” nas charqueadas
e fazendas, as quais eram vendidas na cidade de Porto Alegre. A outra face
dessa ausência de especialização era o vínculo que esses libertos
estabeleciam com terceiros: podiam alugar-se para quem requeresse seus
serviços, como fazia Angria, ou podiam estabelecer uma relação estável
com alguém. Esse parece ter sido o caso de José Antônio que, segundo seu
advogado, “sempre foi pacífico, a servir não só ao Coronel Joaquim em
levar a sua casa carne fresca do açougue como também serviu ao Sargento
Mor Marçal José da Fonseca”. Além disso, esses libertos realizavam outras
atividades por conta própria, sobretudo no âmbito do pequeno comércio.
Outro aspecto que pode ser observado é o caráter coletivo de parte do
trabalho realizado. Nos três processos podem ser encontradas informações
que demonstram a articulação de redes sociais orientadas para as (e
construídas a partir das) atividades econômicas desenvolvidas pelos
libertos. José Antônio rachava lenha com seus companheiros; Antônio
Angria, quando não estava embarcado, juntava-se com outros pretos
pombeiros, escravos e forros, em uma casa na frente da quitanda, com o
propósito de arranjar trabalho; testemunhas disseram que Caetano Ferreira
Gomes andava pela praia a “quitandar” junto com outros pretos.
Não disponho de muitos dados acerca das pessoas que compunham
essas redes. No entanto, podem-se sugerir algumas conclusões a partir das
informações disponíveis. Nota-se que havia certa diversidade étnica e racial
entre esses trabalhadores. No que se refere à naturalidade, havia aqueles que
nasceram no Brasil (como Caetano) e na África (como Angria e José
Antônio). Africanos de diferentes grupos étnicos compunham essas redes:
Angria era angolano e José Antônio era natural do Cabo da Boa Esperança
(embora ambos fossem reconhecidos como “castelhanos” ou “espanhóis”,
em razão de seu passado como escravos no outro lado da fronteira); além
deles, entre os “companheiros” de José Antônio talvez pudessem ser
encontrados africanos de diversas procedências. Infelizmente, os
sobrenomes de alguns deles (que poderiam designar sua identidade étnica)
estão ilegíveis no processo criminal. Os que se podem ler, como Pedro
Mojo e Joaquim Junona, são sugestivos.
A cor desses trabalhadores já é um aspecto mais controverso. Embora
entre os companheiros que rachavam lenha no Caminho Novo estivesse um
cabra e o pombeiro que teve seus quatro mil réis supostamente furtados por
Angria fosse um pardo, todos os outros cuja cor foi em algum momento
referenciada eram pretos. Parece-me evidente que não havia brancos entre
esses trabalhadores e, mesmo cabras, pardos ou mulatos deviam ser
incomuns.77 A condição jurídica também os aproximava, afinal eram quase
todos libertos, embora Angria tenha afirmado que na quitanda em que
eventualmente dormia havia outros pretos pombeiros, “forros e cativos”.
Outro ponto importante refere-se às vivências desses libertos. Para além
das relações estabelecidas no ambiente de trabalho, muitos deles
desfrutavam de momentos de lazer e até moravam juntos. Caetano Ferreira
residia no Beco Quebra-Costas,78 em “um quartinho unido a outro em que
moram outros pretos forros”.79
José Antônio, além de admitir pretos em sua casa que faziam
“barulhos”, residia no Alto do Senhor dos Passos,80 junto com outro preto
“a quem também chamam castelhano”.81 A testemunha Inácio José
Fagundes disse que era vizinho de “José Antônio castelhano” e “que ele
vive em umas casas pequenas unidas a outras que são como baiúcas
receptáculos de escravos fugidos, jogos e outros procedimentos iguais”. No
auto de perguntas judiciais feitas ao réu, José Antônio foi inquirido sobre o
que ele e seus companheiros faziam nos domingos e dias santos. O preto
forro respondeu que “ia à missa, e que depois ia pelos matos cortar lenha
para o gasto de sua casa, e quanto aos seus companheiros ignora o que eles
faziam nesses dias”. Foi-lhe perguntado em que lugar ele e seus
companheiros jogavam, e se era de dia ou de noite, tendo José Antônio
respondido que não jogava.
Antônio Angria disse que morava com quem o alugasse e, quando não
tinha quem o fizesse, dormia na quitanda com outros pretos. Entretanto, a
testemunha Joaquim Ferreira Alfama afirmou que sabia por “ver que tendo
um quartinho alugado ao pé do Couto dava asilo às escravas cativas donde
ele testemunha tirou uma de Luis Caetano morador no distrito da Capela há
dois meses para mais [...]”.82
Pode-se perceber que, para além da convivência na labuta diária e da
articulação de redes sociais vinculadas ao trabalho, os pretos forros
pombeiros, quitandeiros e remeiros construíam redes de sociabilidade que
incluíam a moradia e o lazer. Essas redes baseavam-se, acima de tudo, no
trabalho em comum, mas eram reforçadas e, talvez, limitadas por
vinculações raciais e de condição jurídica: a maior parte dos integrantes era
de pretos forros.
Deve-se atentar para a complexa relação dialética que condicionava o
processo identitário de formação dessas redes. Se, por um lado, a
identificação e a solidariedade eram facilitadas pelo fato de que os
quitandeiros eram quase todos pretos libertos, por outro, essa
homogeneidade expressava um aspecto fundamental do controle social na
sociedade escravista rio-grandense. A classe senhorial e as autoridades
estatais tinham como um dos pilares de sua política de domínio o
acirramento das divisões entre os dominados. Incentivavam a rivalidade
entre africanos e crioulos, pretos e pardos, escravos e libertos.
Em Porto Alegre, a partir da análise desses processos criminais, pude
identificar alguns objetivos que pautavam a repressão e o controle social
sobre os libertos: 1) assegurar que os forros exercessem algum ofício ou
trabalhassem de forma permanente para algum senhor (isto é, assegurar que
eles tivessem um amo ou patrono); 2) impedir o contato e as relações entre
forros e cativos; 3) coibir os “ajuntamentos” de pretos forros, restringindo
os momentos de lazer e convivência; 4) no caso específico dos quitandeiros,
garantir que as restrições sobre os produtos comercializados fossem
respeitadas. Esses quatro pontos já foram vistos, mas quero aprofundar a
análise dos dois primeiros.
Nos processos criminais analisados, os réus foram acusados por furto ou
por receptação de objeto roubado. Logo foi adicionada uma nova acusação
para os três forros: a de que eram vadios e não tinham ocupação e moradia
certas. Quando inquiridos ou mediante seus advogados, procuraram se
defender afirmando que trabalhavam para alguém respeitável (como José
Antônio, que servia ao coronel Joaquim e ao sargento mor Marçal), que se
alugavam (como Antônio Angria) ou possuíam meios para prover seu
sustento (como Caetano Ferreira). Exigia-se dos forros uma ocupação certa,
preferencialmente um ofício ou a vinculação a um amo. Na ótica da classe
senhorial, esse seria um requisito fundamental para poder viver em
liberdade. O preto forro José de Araújo sabia disso, e solicitou ao juiz
vintenário da freguesia de Santa Ana, termo de Porto Alegre, um atestado
de “boa conduta”:
Atesto que o suplicante José Antônio de Araújo o conheço nesta freguesia há mais de dois
anos em sua liberdade usando de seu ofício de sapateiro sem contradição de pessoa alguma
e antes já o tinha visto na Capital de Porto Alegre e nesta freguesia até o presente se tem
portado com muita dignidade, verdadeiro e muito pacífico, é o que posso atestar.83
Veja-se que, para viver em liberdade, ele deveria se portar com
dignidade, ser verdadeiro e muito pacífico, bem como ter meios para o seu
sustento, no caso, o ofício de sapateiro. Há ainda outro caso revelador.
Raimundo Pais de Oliveira, preto forro, apresentou-se ao juiz de paz da
freguesia de Nossa Senhora dos Anjos “todo ensanguentado”, no dia 26 de
outubro de 1834. Segundo ele, o ferimento teria sido feito por Diogo dos
Reis, um irlandês, que foi pronunciado. No libelo acusatório escrito pelo
advogado de Raimundo fica evidente a relação entre o exercício da
liberdade, a necessidade de manter um trabalho e o respeito às hierarquias:
P.q. o Autor na condição de preto liberto respeita aos que lhe são superiores pelo seu Estado
social; que não é desordeiro; que é submisso às Leis e às Autoridades Constituídas, e enfim
que trata de trabalhar a fim de adquirir meios com os quais possa subsistir e afastando deste
modo de si a ociosidade.84
Essa relação se baseava em uma concepção de sociedade de Antigo
Regime. Como os libertos não estavam submetidos ao domínio de um
senhor (ao contrário dos escravos), eles deveriam estar vinculados às
relações hierárquicas que ordenavam o conjunto da sociedade, sendo
respeitosos e estando subordinados àqueles “que lhe são superiores pelo seu
Estado social” e trabalhando para adquirir os meios de subsistência e afastar
a ociosidade.85
Outro aspecto fundamental do controle social sobre os libertos era
impedir que eles se relacionassem e estabelecessem contatos com escravos.
Caetano Ferreira Gomes já havia sido preso em outra ocasião, “e que a
razão fora por ter comprado [couros] a um mulato no distrito da Freguesia
Nova cuidando ser o dito mulato forro, e conduzindo-os para esta cidade; e
vendendo-os apareceu o dono dos couros mostrando serem-lhes roubados, e
que o mulato era cativo”.86 O “Castelhano” José Antônio teve o cuidado de
dizer que todos os seus companheiros eram forros. Perguntado se conhecia
algum escravo ou escrava na casa do Coronel Joaquim (de quem Caetano
supostamente teria furtado algumas galinhas), disse que conhecia apenas o
preto Antônio. Foi-lhe inquirido se “costumava falar com o dito preto e se
demorava-se na casa dele”. Caetano respondeu que não, “e só sim aquele
tempo que era preciso para entregar a carne do açougue, e que se retirava”.
Por que as autoridades temiam os contatos entre forros e cativos? Em
primeiro lugar, em razão de estas relações permitirem o estabelecimento de
uma rede de economia informal. Os escravos que cometiam roubos nas
propriedades de seus senhores (como, por exemplo, de couros, carne e
galinhas) precisavam de contatos que pudessem comercializar os artigos
roubados. Nada mais adequado que um preto forro pombeiro que poderia,
protegido por sua própria atividade, circular entre as fazendas recolhendo os
produtos dos roubos e, posteriormente, vendendo-os na praia da cidade de
Porto Alegre.
Em segundo lugar, e mais grave, era o perigo de que essas relações
evoluíssem para uma aliança entre forros e cativos, que articulassem fugas e
formação de quilombos e mocambos nas proximidades das fazendas.87 Em
1818 o preto forro Francisco Xavier, natural da Costa da Guiné, foi
pronunciado por ter acoitado uma preta de nome Joana, escrava de José
Bernardino de Sena. Não por acaso, Francisco Xavier vivia:
[...] do seu serviço pessoal de andar embarcado em canoas, e fazendo plantações; e tanto se
prova, que sendo natural da Guiné, e sendo escravo, adquiriu o valor para sua liberdade; e
nem por que deixe de ter algum outro ofício, além das suas agências, e serviço pessoal, se
pode considerar vadio, e sem domicílio para ser punido conforme a Lei.88
O preto forro Vicente Ferreira da Nação Mina também foi pronunciado
por roubo e outros delitos, tendo sido preso no ano de 1818. Ele fora
apanhado na Praia da Fazenda de Pedras Brancas89 em:
[...] uma canoa com uma preta chamada Joaquina que diz ser escrava de um Batista
morador desta Vila [Porto Alegre], com arma de fogo, pólvora e bala, uma espada, um
machado, duas enxadas, uma panela de ferro, como preparados para irem a algum
quilombo; cujo preto é acostumado a fazer roubos pelas charqueadas, bem como o fez na
charqueada de Manoel José da Silveira Casado, onde foi apreendido, roubando couros, e
charques de que lhe resultou ter sido preso; sendo em outra ocasião apanhado nesta Vila em
uma canoa carregada de couros furtados na Charqueada do Capitão [ilegível] Borges
Bitencourt do Canto; outrossim que o mesmo preto Vicente era sócio e condutor dos pretos
calhambolas que assassinaram a uns pescadores na Ponta Grossa, por se haver apanhado
[...] em casa de uma preta forra com quem andava concubinado, uma vela pertencente à
canoa em que iam aqueles pescadores quando foram assassinados [...]; sendo mais sabido
em Juízo que quando os pretos assassinos dos pescadores fugiam da cadeia, ou do hospital,
ele preto Vicente foi quem os auxiliou, e os conduziu em um bote furtado a José Basílio
[...], cujo bote foi depois achado na roça daquela preta forra, concubina do dito preto. Mais
que morando o dito preto em casa da dita preta forra ali se acoitam muitos negros
calhambolas.90
Vicente Ferreira ficou preso durante mais de sete anos. Uma parte do
processo foi extraviada, de modo que não é possível saber se o preto forro
foi condenado.
Os proprietários de escravos da região de Porto Alegre estavam
preocupados com os quilombos e ajuntamentos de negros fugidos situados
nos matos das ilhas do Guaíba. Em carta dirigida ao Governador do Rio
Grande de São Pedro, o capitão comandante do distrito de Pedras Brancas
Vicente Ferreira Leitão mostrava-se alarmado com a situação. Um
fazendeiro da região, o reverendo Antônio Ferreira Leitão (certamente um
parente próximo, talvez irmão, do capitão comandante) tivera um de seus
cativos assassinado por negros fugidos “que se tinham refugiado nos matos
desta costa”. Disse o capitão comandante que tomou as providências
necessárias, mas:
[...] como neste lugar não há Capitão do Mato, nem soldados suficientes, torna-se urgente
que Vossa Excelência ordene que o Capitão do Mato mais próximo a este lugar auxiliado da
gente necessária passe a bater os ditos matos para assim ver se descobre o pensado
quilombo.91
Além desses casos há outros forros acusados de terem auxiliado ou
acoitado escravos fugidos.92 O grande temor da classe senhorial e das
autoridades estatais era de que os forros, sobretudo aqueles que por conta de
seu trabalho tinham facilidades para estabelecer contatos com escravos e
circular pelas vias fluviais que ligavam Porto Alegre ao seu entorno rural,
auxiliassem quilombolas e negros fugidos, quer acoitando-os, quer
comerciando com eles, quer seduzindo-os para a fuga.

Conclusão
O controle social sobre os libertos era empreendido tanto pela classe
senhorial – a partir do exercício de um domínio pessoalizado, sobretudo
quando o ex-escravo estava vinculado a uma relação subordinada com um
amo – quanto por autoridades estatais, no âmbito da polícia e da justiça.
Visando restringir os significados da liberdade exercida – a partir do
controle da movimentação espacial, das relações de solidariedade e das
atividades econômicas – autoridades e senhores de escravos envidavam
esforços, muitas vezes em conjunto, com o objetivo de manter os libertos
em uma posição subordinada na hierarquia social.
Em meados da década de 1820, em Porto Alegre, talvez o principal alvo
da repressão policial e judiciária fossem os libertos quitandeiros, pombeiros
e remeiros. Articulando redes de solidariedade cuja base era a experiência
comum no trabalho, associada a identidades de cunho étnico e racial, esses
pretos forros tornaram-se um problema para a classe senhorial e autoridades
estatais. Vivendo em trânsito entre o ambiente rural e o urbano e
sustentando-se da compra e venda de gêneros alimentícios e outras
mercadorias, estavam em uma posição privilegiada para articular relações
subversivas entre o mundo da escravidão e o da liberdade. Longe de
reforçarem os mecanismos que sustentavam o sistema escravista, os pretos
quitandeiros eram vistos como um incômodo e, eventualmente, uma ameaça
ao bom governo dos escravos e à reiteração das hierarquias sociais.

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o passado escravista brasileiro, mas descreve a sociedade escravista igualmente polarizada pela
relação entre senhor e escravo é a de FREYRE, 1989.
PRADO JÚNIOR, 2000, p. 290-291. Para o autor, a existência dessa massa de pessoas que viviam
mais ou menos à margem da ordem social tinha duas causas principais: a predominância do trabalho
escravo e o sistema econômico da produção colonial. A primeira desvalorizava o trabalho e restringia
as oportunidades de inserção econômica dos homens livres; a segunda obstava o desenvolvimento e a
lucratividade de pequenas e médias propriedades, não voltadas para a agroexportação.
Os trabalhos de Stuart Schwartz, por exemplo, demonstram o vigor e a importância dos setores não
escravos na economia brasileira, sobretudo no meio rural. Ver SCHWARTZ, 1988; SCHWARTZ,
2001.
Daumard, 1985. Ver também a apreciação de Garavaglia sobre os limites e possibilidades de
utilização dessa fonte: Garavaglia, 1993.
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Vara de Família de Porto Alegre, Maço 32, no 796.
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Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Antonio Pedro, 1825. 1a Vara de
Família de Porto Alegre, maço 35, no 858.
O nome do escravo estava ilegível.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Antônio Muniz, 1814. 1a Vara de
Família de Porto Alegre, maço 23, no 507.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Antonio Velozo, 1806. 2a Cível e
Crime de Porto Alegre, maço 03, no 63.
Mariza Soares constatou que na Costa da Mina os escravos não eram batizados nos portos de
embarque, sendo feito seu batismo nas cidades onde eram desembarcados, como era o caso do Rio de
Janeiro. Ver SOARES, 2000, p. 111.
FIGUEIREDO, 1993; FARIA, 2001. Em ambas as obras, os autores observam que as “negras de
tabuleiro” dominavam o comércio ambulante, tanto no período colonial quanto ao longo do século
XIX. Entretanto, na segunda parte deste trabalho, serão analisados homens libertos que também
praticavam o comércio ambulante, realizando tanto a compra e a venda de produtos quanto o seu
transporte pelas vias fluviais que ligavam a vila de Porto Alegre a outras regiões no entorno. Com as
informações de que disponho, não é possível avaliar a participação relativa de homens e mulheres
forros nessas atividades, nem ao menos definir, com precisão, se havia algum tipo de diferenciação
no tipo de comércio praticado e nos produtos transacionados por homens e mulheres. Apesar disso,
pode-se afirmar com certeza que tanto mulheres quanto homens “quitandavam” na praia da vila de
Porto Alegre, local em que eram negociados esses produtos.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de João Machado de Borba, 1819. 1a
Vara de Família de Porto Alegre, maço 27, no 657. A viúva pediu um atestado de pobreza e
conseguiu, com o parecer do vigário de Viamão, Bartolomeu Lopes de Azevedo. O vigário diz que a
viúva vivia de esmolas de alguns fiéis e que inclusive precisou delas para sepultar o marido.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Joaquim Pereira da Rosa, 1821. 1a
Vara de Família de Porto Alegre, maço 30, no 736.
Russell-Wood, 2005, p. 89-90.
Id. Ibid., p. 95-98.
Saint-Hilaire, 1999, p. 41.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Joaquim Pereira da Rosa, 1821. 1a
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Osório, 2007, p. 103-179.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Luiza Maria, 1814. 1a Vara de
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Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de João Félix Correia, 1820. 1a Vara de
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Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Maria Thereza Marques, 1823. 1a
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Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Pedro Gonçalves, 1819. 1a Vara de
Família de Porto Alegre, maço 27, no 675.
OLIVEIRA, 1988, p. 41.
LEWKOWICZ, 1988/1989, p. 108.
FARIA, 2001, p. 309.
LUNA e KLEIN, 2005, p. 197-222. Ver também: KLEIN e PAIVA, 1997.
LUNA e KLEIN, 2005, p. 209-210.
Russell-Wood, 2005, p. 86.
Ratoneiro é o “ladrão de coisas de pouco valor”. Ver SILVA, 1813.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Processos Sumários. Porto Alegre,
Cartório do Júri, maço 08, no 204.
“Ladrão formigueiro. Ladrão de pouquidades. Aquele que, à imitação da formiga, furta aos poucos”.
Ver BLUTEAU, s.d.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Processos Sumários. Porto Alegre,
Cartório do Júri, maço 08, no 205.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Processos Sumários. Porto Alegre,
Cartório do Júri, maço 08, no 207.
Para uma análise acerca das experiências de escravos e libertos durante as campanhas contra Artigas
e a Guerra da Cisplatina, ver: ALADRÉN, 2008. Em especial o capítulo 4, “Experiências de
liberdade em tempos de guerra”, p. 138-168.
Pombeiro é uma espécie de mascate, ocupado em percorrer pequenas vilas e municípios do interior
comprando e vendendo mercadorias. Designa também o vendedor ambulante de pombos e galinhas e,
no Nordeste do Brasil, o revendedor de peixe. Ver FERREIRA, 1975. Possivelmente essas acepções
derivam da definição dada por Bluteau: “Em Angola os portugueses chamam pombeiros aos seus
escravos crioulos, a quem ensinaram a ler, escrever, e contar, os quais vão tratar com os negros, e
comprá-los.” Ver BLUTEAU, s.d.
A “praia” da cidade de Porto Alegre é a Rua dos Andradas, popularmente chamada até os dias de
hoje de “Rua da Praia”. Era a principal zona comercial da cidade, onde ficavam as lojas dos
negociantes, as quitandas e os mercadores ambulantes. Nesta rua, em frente ao cais, encontrava-se a
“Praça da Quitanda”, hoje chamada de Praça da Alfândega. Nesse entorno agrupavam-se os
comerciantes, sobretudo os quitandeiros. Ver FRANCO, 2006. Verbetes “Praça da Alfàndega”, pp.
21-24 e “Rua dos Andradas”, pp. 29-31.
Por “lenha” entenda-se galhos ou troncos de árvores cortadas cujo fim é prover os fornos e lareiras
das casas. Não se deve confundir com “madeira”, que designa “tábuas, pranchas, barrotes, vigas,
traves, que por serem matéria para diversas obras de carpintaria, são chamadas madeira”. Ver os
verbetes “lenha” e “madeira” em: BLUTEAU, s.d. O corte e a comercialização da “lenha” não
estavam sujeitos à regulamentação, ao contrário da “madeira”, cuja produção e acomercialização
estavam protegidas por monopólios e contratos.
Caminho Novo era o topônimo que indicava, até o último quartel do século XIX, a atual Rua
Voluntários da Pátria. O caminho fora aberto pelo governador Paulo José da Silva Gama em 1806,
margeando o Rio Guaíba até a Várzea do Gravataí, para facilitar o acesso à vila de Porto Alegre.
Escassamente urbanizada até o final da Guerra dos Farrapos a região do Caminho Novo era povoada
por chácaras e matos, onde certamente José Antônio e seus companheiros iam rachar lenha. Sobre o
Caminho Novo ver: FRANCO, 2006. Verbete “Rua Voluntários da Pátria”, p. 429-431.
Note-se que os designativos de cor não identificavam unicamente a cor da pele. As cores eram
categorias que expressavam uma posição na hierarquia social e baseavam-se em uma complexa e
ainda pouco conhecida interação entre cor da pele, riqueza, condição jurídica e posição social. Ainda
assim, o significado preciso de cada designativo dependia do contexto específico em que se operava a
nomeação. Para algumas discussões sobre as hierarquias de cor no Brasil colonial e imperial, ver:
Russell-Wood, 2005; MATTOS, 1995; MATTOS, 2004; LARA, 2007. Para uma análise das
hierarquias raciais e significados dos designativos de cor no Rio Grande do Sul, ver: ALADRÉN,
2008. Em especial o capítulo 3, “A liberdade sob os signos da cor”, pp. 106-137.
Atual Rua Caldas Júnior, que atravessa a Rua da Praia e fica próxima ao cais e à Praça da Quitanda.
Segundo afirmaram várias testemunhas no processo.
Atual Rua Senhor dos Passos. Essa rua localiza-se onde em fins do século XVIII situava-se a chácara
de Antônio Pereira do Couto. Açoriano, estabeleceu-se em Porto Alegre em 1786 com um estaleiro, e
vivia “de fazer embarcações”. Morreu em 1819. Ver FRANCO, 2006. Verbetes “Antônio Pereira do
Couto” e “Rua Senhor dos Passos”. É provável que José Antônio, junto com os outros pretos que
viviam na Senhor dos Passos (também chamada, na época, de Beco do Couto), tivesse sido
empregado de Antônio Pereira Couto, quer construindo embarcações, quer no serviço de remeiros.
Segundo o depoimento de Vitoriano Francisco Lopes.
Esse depoimento é muito interessante, pois sugere que Angria fazia parte de uma rede comercial de
venda de escravos. É possível que alguns proprietários de regiões próximas de Porto Alegre (como é
o caso de Capela de Viamão) deixassem seus escravos com o preto forro, que residia no centro da
cidade, para serem oferecidos e vendidos. Note-se, portanto, a ambiguidade da posição de Angria e
de outros pretos pombeiros: podiam participar como intermediários na venda de escravos, mas
também eram acusados de acoitar escravos fugidos. Essa situação é ambígua, mas não
necessariamente contraditória. Sabe-se que muitos escravos faziam esforços para serem vendidos e
eventualmente logravam obter algum grau de interferência na sua própria comercialização, sobretudo
quando eram crioulos ou africanos ladinos, já conhecedores dos códigos e regras da sociedade em
que viviam como cativos. Portanto, há uma possibilidade de que Angria desse asilo a escravos que
fugiam de seus senhores para serem vendidos e não para conquistarem a liberdade. Essas fugas foram
cunhadas de “reivindicatórias” por João José Reis, pois não pretendiam um rompimento radical com
o sistema escravista e tinham como objetivo uma negociação. Ver REIS, 2005, pp. 62-78. Ver
também, a respeito da intervenção de escravos nas transações de compra e venda em que eram
objetos: LARA, 1988, pp. 159-163; CHALHOUB, 1990, pp. 43-53; MATTOS, 1995, pp. 169-190.
Localizei o caso de um escravo que encaminhou uma petição ao governador da capitania do Rio
Grande solicitando sua venda. Manoel crioulo era escravo do Alferes Brás Linhares, do distrito de
Rio Pardo e alegou que “sofreu as maiores tiranias que jamais se tem visto”, de modo que foi
“obrigado” a fugir. Ele pede então para ser vendido e inclusive indica dois possíveis compradores,
interessados em suas habilidades como oficial de sapateiro. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
Fundo Requerimentos. Porto Alegre, 21 de janeiro de 1813.
Petição e despacho do preto forro José Antônio de Araújo. Arquivo Público do Rio Grande do Sul.
Livro de Registros Diversos do 2o Tabelionato de Porto Alegre, no 11, fls. 59v.-60, 14/3/1820.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Processos Sumários. Porto Alegre,
Cartório do Júri, maço 17, no 449.
Nesse sentido, é importante a obra de Silvia Lara, que analisa as propostas encaminhadas pelo conde
de Resende, vice-rei do Estado do Brasil, ao secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Luís
de Souza Coutinho, datadas do ano de 1796. O conde de Resende preocupava-se sobremaneira com a
“imensa quantidade de mulatos e pretos forros” que viviam na cidade do Rio de Janeiro sem
ocupação e entregues ao ócio e à criminalidade. Ele propunha que essa “classe de gente” fosse
empregada na agricultura, nas fábricas ou no serviço público. Ver LARA, 2007.
Resposta de Caetano Ferreira Gomes no Auto de perguntas feitas ao réu.
Articulações entre libertos e escravos fugidos já foram percebidas em estudos sobre quilombos em
diversas regiões do Brasil. Ver GOMES, 2005.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Processos Sumários. Porto Alegre,
Cartório do Júri, maço 02, no 55. Além de pronunciado por acoitar a escrava fugida, seu processo
seguiu o padrão dos anteriormente analisados: foi acusado também de ser vadio, não ter domicílio
certo e viver de roubos. Na sentença foi condenado a dois anos de galés e a pagar a multa de dez mil
réis para a despesa da Junta da Justiça, pois, embora as evidências de que teria acoitado a escrava
fossem insuficientes para provar sua culpa nesse delito, “o réu não deu prova de boa vida e costumes
por pessoas de fé”.
Atual cidade de Guaíba, situada na região metropolitana de Porto Alegre. A ligação da capital com
Pedras Brancas fazia-se, na época, por meio de canoas e embarcações, atravessando-se o Rio Guaíba.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Processos Sumários. Porto Alegre,
Cartório do Júri, maço 08, no 206.
Carta do sr. capitão comandante do distrito de Pedras Brancas, Vicente Ferreira Leitão, dirigida ao
governador conde da Figueira, datada de 25/11/1818. A carta está apensa aos autos do processo cujo
réu era o preto forro Vicente Ferreira.
O pardo forro Manoel Antônio Meireles foi acusado de ter ajudado três escravos a fugirem, no ano de
1824 (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processos Sumários. Porto Alegre, Cartório
do Júri, maço 07, no 178). Em 1819, o pardo forro Manoel de Jesus encaminhou uma petição ao
governador do Rio Grande de São Pedro solicitando sua libertação da Cadeia da Justiça, onde se
achava preso há cinco meses, acusado de ter acoitado uma escrava fugida (“Lançamento de uma
Petição e Atestação pertencente a Manoel de Jesus pardo forro”. Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul. Livro de Registros Diversos do 2o Tabelionato de Porto Alegre, no 11, fls. 9-10,
1/7/1819).
HIERARQUIZAÇÃO E SEGMENTAÇÃO:
CARREGADORES, COCHEIROS E
CARROCEIROS NO RIO DE JANEIRO
(1824-1870)93
Paulo Cruz Terra
“Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro”.94
O trecho acima foi escrito pelo viajante Ave-Lallemant, que esteve na
Bahia em 1858. Apesar de se referir a Salvador, ele se assemelha às
descrições feitas por outros viajantes sobre a cidade do Rio de Janeiro no
período, no sentido de apontar os negros como os principais responsáveis
pelo transporte de mercadorias e pessoas.
Thomas Ewbank, por exemplo, que esteve no Brasil entre 1845 e 1846,
afirmou que: “Toda a parte comercial do Rio de Janeiro é singularmente
bem adaptada para ferrovias e, se o povo decidir não continuar a utilizar os
negros como bestas de carga, seria de seu interesse possuí-la”.95 A
comparação dos negros com os animais de carga foi feita ainda em outro
momento de seu texto: “Aqui não temos carros puxados por quadrúpedes
para o transporte de mercadorias. Os escravos são os animais de tração
assim como de carga”.96
Os estudos que analisaram os carregadores negros no Rio de Janeiro
tiveram os livros de viagens como principal fonte.97 Assim como a
documentação que utilizaram, os autores acabaram cristalizando a imagem
de que o setor de transporte na cidade no século XIX, principalmente na
primeira metade, era realizado pelos carregadores negros. Mesmo Luiz
Carlos Soares, que cotejou as informações dos viajantes com dados de
outras fontes, continuou a apontar que, na segunda metade do século, o
transporte de cargas era caracterizado pela forte presença dos escravos ao
ganho.98
Por sua vez, Ana da Silva Moura foi a única autora que tratou dos
cocheiros e carroceiros e afirmou que eles teriam substituído os
carregadores negros a partir de 1850, sem enfrentarem nenhuma
concorrência significativa. Se antes o transporte de cargas era feito por
cativos, a partir desse período ele passou a ser monopolizado pela mão de
obra livre, primeiramente constituída por imigrantes portugueses e depois
pelos trabalhadores nacionais.99
Embora tenham tratado do mesmo tema, o transporte de cargas na
cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, Soares e
Moura apresentaram visões distintas.100 Para o primeiro, os escravos ao
ganho seriam a maioria entre os trabalhadores no transporte de carga.
Enquanto Moura propôs que eles foram substituídos pelos cocheiros e
carroceiros, que representavam uma mão de obra livre.
Apesar de questionar a afirmação de Moura de que a introdução dos
cocheiros tenha se dado sem nenhum conflito, a indicação de trabalhadores
livres, e entre eles muitos imigrantes brancos, fez com que eu refletisse
sobre a caracterização do setor de transporte como formado exclusivamente
por carregadores negros. Tendo em vista que a frase de Ave-Lallemant,
citada anteriormente, sintetiza essa caracterização, resolvi problematizá-la.
Afinal de contas, “tudo que transporta e carrega é negro”?
O objetivo deste artigo é verificar se era possível encontrar
trabalhadores livres, libertos e escravizados convivendo no setor de
transporte ao longo do século XIX. Procurei traçar um perfil desses
trabalhadores, além de analisar de que forma se dava a participação deles
nesse setor.
Trabalhadores livres e escravizados
“Quem compra um escravo forte e saudável pode logo ganhar sua pataca por dia, para isso
basta mandá-lo aos armazéns do porto”.101
O trecho acima foi escrito por Leithold, que esteve no Rio de Janeiro em
1819, e fez referência aos carregadores que trabalhavam na região do porto
como sendo escravizados ao ganho. Diversos outros relatos de viajantes
afirmaram justamente que grande parte desses carregadores trabalhava ao
ganho pelas ruas do Rio de Janeiro no século XIX. Thomas Ewbank, que
esteve no Brasil entre 1845 e 1846, expôs que os escravos ao ganho eram
aqueles: “que trabalham para os seus senhores, e que entregam, todas as
noites, de volta para casa, determinada importância, guardando para si
apenas as sobras, se as houver; outras vezes, nos maus dias, repõem a
diferença do ganho”.102
A historiografia, por sua vez, analisou a escravidão ao ganho como uma
relação de trabalho própria do meio urbano. E abordou, de maneira geral,
que esse tipo de trabalho teria permitido ao cativo da cidade não só uma
liberdade maior de movimento, como também um maior acesso à compra
de alforria, se comparado com o escravizado que vivia no campo.103
O mercado de trabalho ao ganho, no entanto, assim como o mercado de
trabalho urbano em geral, não era formado só por escravizados. A
participação dos trabalhadores livres estava prevista, por exemplo, na
postura municipal que obrigava os que desejassem trabalhar ao ganho a
retirar uma licença junto à Câmara:
Art. 5º: Ninguém poderá ter escravos ao ganho sem tirar licença da Câmara Municipal,
recebendo com a licença uma chapa de metal numerada, a qual deverá andar sempre com o
ganhador em lugar visível. O que for encontrado a ganhar sem a chapa, sofrerá oito dias de
Calabouço, sendo escravo, e sendo livre oito dias de cadeia. Quando o ganhador for pessoa
livre, deverá apresentar fiador que se responsabilize por ele, a fim de poder conseguir a
licença e a chapa, a qual será restituída quando por qualquer motivo cesse o exercício de
ganhador. O ganhador que for encontrado com chapa falsa ou sem licença, será condenado
com oito dias de prisão e 30$000 de multa, além das penas em que incorrer pelo Código.104
Enquanto os escravos tinham as licenças pedidas por seus senhores, os
libertos e livres deveriam apresentar um fiador, cuja exigência era de que
fosse proprietário e pudesse se responsabilizar pelos abusos cometidos
pelos que pretendiam trabalhar ao ganho. No dia quatro de fevereiro de
1867, por exemplo, o português Antônio Gaspar Gomes requisitou licença
para “andar ao ganho”, tendo como fiador o negociante Manoel José Alves
da Silva.105
A participação dos trabalhadores livres pode ter sido maior do que a
demonstrada na documentação das licenças para ganhadores. Através da
análise de licenças para carros e carroças pedidas por seus proprietários,
encontrei repetidamente a expressão de que trabalhavam “a frete”, como
também “ao ganho”. As duas expressões aparecem aqui como sinônimas, e
indicam que se cobrava por um determinado serviço de transporte de
mercadorias e pessoas realizado. Em 22 de maio de 1847, por exemplo, o
português José Antonio de Oliveira, morador na Rua da Babilônia no 3,
pediu licença para trazer uma carroça de entulho ao ganho.106 Isso indica a
possibilidade da existência de pessoas que trabalhavam ao ganho sem que
tivessem de tirar licença específica para isso.
É claro que o trabalho ao ganho significou um aspecto específico dentro
da escravidão urbana, que alterava substancialmente a relação senhor-
escravizado. Porém, o ganho representava também uma forma de trabalho
em que se pagava/recebia por determinados serviços prestados, entre os
quais o transporte de uma mercadoria, o que permite verificar que havia
muitos trabalhadores livres envolvidos.
Como forma de buscar os trabalhadores envolvidos no setor de
transporte, procurei fazer uma análise mais matizada do mercado de
trabalho ao ganho na cidade do Rio de Janeiro no século XIX, utilizando
para isso o cotejamento de diferentes fontes. Entre elas estão as licenças
para os escravos ao ganho. Pesquisei as referentes à primeira metade do
século XIX e, com relação ao período de 1851 a 1870, utilizei os dados
apresentados por Luiz Carlos Soares.
Uma grande diferença está entre as 169 licenças pedidas por 158
requerentes que analisei referentes à primeira metade do século XIX, e os
1627 requerentes relativos ao período de 1851 a 1870, identificados pela
pesquisa realizada por Soares. Ele explicou que, no caso da primeira metade
do século XIX, grande parte da documentação se perdeu ou foi consumida
pelo tempo. Isto pode se confirmar pelo fato de eu ter encontrado 26
pedidos de renovação, além de 14 pedidos de novas chapas, por motivos de
perda e extravio, dos quais não localizei as primeiras licenças. Dos 16
escravizados listados no relatório do Fiscal da Freguesia de Santa Rita, de
30 de junho de 1830, por exemplo, não achei também nenhuma das
respectivas licenças. Esses são apenas alguns exemplos que podem mostrar
que parte da documentação relativa a esse período foi realmente perdida.
A discrepância de números, no entanto, é muito grande para ser
explicada apenas pela perda da documentação. Poderia se pensar, então, que
o número de escravizados ao ganho teria aumentado na segunda metade do
século. Porém, a quantidade de cativos decaiu vertiginosamente nesse
período na Corte. Se em 1849 eles computavam 41,5% da população total,
em 1872 eles passaram a representar somente 17,8% dos habitantes do
município.107
Mary Karasch apontou diversas razões para essa diminuição na
população escrava. Uma delas foi a alta taxa de mortalidade nos anos
iniciais da década de 1850. A outra foi que o aumento dos preços dos
escravizados, devido ao fim do tráfico negreiro e à demanda de braços nas
fazendas de café, teria levado muitos senhores a alugar ou vender seus
negros para as áreas rurais.108 A partir desses dados fica difícil considerar
que o número de licenças tenha aumentado na segunda metade do século
XIX em virtude do crescimento de negros ao ganho nas ruas da cidade.
Uma outra hipótese plausível para explicar essa diferença seria a de que
a fiscalização e, consequentemente, a obrigatoriedade da licença, teriam se
tornado maiores no decorrer da segunda metade do século XIX.109 A maior
incidência de licenças ocorreu no ano de 1847, foram 63. Foi nesse mesmo
ano que pude perceber uma maior padronização em seu texto, além de
terem sido expedidas de forma mais rápida. Essa uniformidade pode ter
sido alcançada justamente com o aumento da demanda. Marilene Rosa
Nogueira da Silva, que pesquisou as licenças relativas ao período de 1820 a
1886, mostrou que o maior aumento ocorreu entre 1860, que tinha cerca de
300 licenças, e 1870, quando houve pico no número de pedidos, com cerca
de 1.300. Em 1880, elas caíram somente para 100.110 Embora a autora não
tenha analisado esses dados, talvez essa seja uma amostra não de um maior
número de negros ao ganho pelas ruas, mas de uma maior fiscalização e
punição por parte do Estado na segunda metade do XIX.
De qualquer forma, creio que o número de licenças encontradas não
correspondeu exatamente ao número efetivo de cativos a andar ao ganho
pelas ruas da cidade na primeira metade do século XIX, seja porque parte
da documentação se perdeu, seja também porque possivelmente muitos
saíam ao ganho sem as devidas licenças. Foram 169 pedidos para 199
trabalhadores, e esse é um número irrisório se pensarmos na população
negra do Rio de Janeiro no período. Em 1849, por exemplo, a população
escrava chegou ao seu auge com 110.602 pessoas no município, enquanto
para este mesmo ano têm-se apenas 25 licenças. O número certamente foi
muito maior até mesmo porque os negros ao ganho já tinham um papel
marcante no funcionamento da cidade na primeira metade do século.
Os livres e forros que requereram licenças para sair ao ganho pelas ruas
da cidade contabilizaram 63, todos referentes ao período entre 1850 e 1870.
Mais uma vez o número parece ser muito diminuto se comparado com a
população livre da cidade no período.111 As razões para essa discrepância
podem ser as mesmas já citadas anteriormente, como perda da
documentação e, principalmente, o fato de que muitos saíam ao ganho sem
a devida licença.
Nas licenças pedidas por proprietários de veículos têm-se, em relação ao
período de 1837 a 1850, 378 registros, e 330 proprietários diferentes. Já
para o período de 1851 a 1870, foram 1.718 registros, e 1.528 proprietários
diferentes. A outra documentação é relativa à Casa de Detenção do Rio de
Janeiro e os livros desta instituição possibilitam verificar a origem dos
detidos (nacionalidade e naturalidade de brasileiros e estrangeiros), as
idades, as ocupações, locais e motivos da prisão. Eles possuem ainda uma
ficha antropométrica, na qual eram anotadas a cor, altura, cor dos olhos
etc.112 Foram encontrados 194 trabalhadores relacionados ao transporte nos
livros referentes ao período entre 1860 e 1870. Desses, 123 eram livres, 51
escravos e 20 forros.
Os trabalhadores ao ganho, também conhecidos como ganhadores,
desenvolviam as mais diversas funções possíveis no meio urbano. Eles
podiam ser vendedores ambulantes, barqueiros e desempenhar atividades
em ofícios industriais, e, até mesmo, a mendicância e a prostituição
constituíram modalidades de ganho.113 A documentação permite verificar
que algumas ocupações, que exigiam um grau maior de especialização,
eram exclusivas dos livres, como corretores e guarda livros. As vendas de
produtos, no entanto, eram exercidas tanto por livres quanto por cativos.
Enquanto isso, outras atividades estavam ligadas apenas aos escravizados,
como as de serventes de obras e ganhos com cesto. Nesta, os escravos
exerciam a função de carregadores responsáveis pelo transporte de cargas
leves, pacotes e até mesmo móveis. Eles “transportavam, com cestos à
cabeça, os mais diferentes tipos de objetos e não deixavam de colocar em
suas cabeças uma rodilha (pano de algodão grosseiro enrolado) que servia
como almofada para atenuar o peso da carga levada no cesto”.114
A grande maioria dos trabalhadores, no entanto, foi identificada apenas
como “ganhador” ou “andar ao ganho”, que era uma denominação utilizada
para todas as funções exercidas ao ganho e que não tinham especialização.
Luiz Carlos Soares afirmou que entre os cativos que não tiveram as suas
atividades mencionadas, nas licenças que pesquisou, pode-se imaginar que
eles foram empregados em grande parte como carregadores. Isso porque
esta atividade não exigia nenhuma especialização, apenas o dispêndio de
força física, e os senhores não declaravam suas ocupações, até mesmo
porque não era um procedimento obrigatório.115 Contudo, é preciso ter em
mente que não havia uma separação muito rígida nas atividades por eles
exercidas, sendo que um cativo podia trabalhar na casa do seu senhor, e
também transportar algum tipo de mercadoria ou vender alguma coisa.116
Apesar de ser tida como uma das principais ocupações dos ganhadores
no Rio de Janeiro do século XIX, o carregamento não era discriminado na
documentação analisada. Uma saída encontrada para tentar computar o
número de carregadores foi adotar a hipótese de Soares e considerar que
boa parte daqueles identificados somente como ganhadores era, na verdade,
de carregadores.
No que diz respeito aos cocheiros e carroceiros, nas licenças para
proprietários de carros, apenas dois indicaram os condutores de seus
veículos. O brasileiro Nicalo Antonio Cosme dos Reis pediu licença, em 23
de fevereiro de 1853, para um carro de boi que era conduzido por seus
escravizados crioulos Athanazio e Theotonio.117 Já o brasileiro Joaquim da
Fonçeca Guimarães requisitou licença, em seis de março de 1961, para dois
carros de boi conduzidos pelos portugueses Manoel Antonio Tavares e
Antonio Teixeira.118
Se em apenas dois casos foram indicados os condutores dos veículos, o
que fez, então, que eu supusesse que os proprietários dos carros fossem
também os condutores dos mesmos? Alguns exemplos da documentação
comprovam essa hipótese, como um requerimento assinado por homens que
se proclamaram proprietários e condutores de pipas d’água, enviado à
Câmara em 23 de abril de 1866.119 O português Henrique dos Santos pediu
recompensa por ter comparecido com sua carroça de pipa d’água num
incêndio.120 Ana Maria da Silva Moura, por sua vez, propôs que os
carroceiros trabalhavam a frete e por conta própria, além de serem
proprietários de sua ferramenta de trabalho, que era sua única fonte de
rendimento.121
Como forma de computar os possíveis proprietários que poderiam ser
condutores eu selecionei somente os homens que possuíam veículos a
frete.122 As razões para isso consistem, em primeiro lugar, no fato de que
possuir carros particulares era um sinal de status, sendo mais comum,
portanto, que eles não conduzissem seus próprios veículos e utilizassem
seus escravos para isso; e, em segundo, porque não há qualquer indício de
que as mulheres conduzissem os veículos, embora pudessem possuí-los.123
A eles foram somados aqueles que eram identificados como cocheiros e
carroceiros nos livros da Casa de Detenção.
Tabela 1 - Trabalhadores do setor de transporte no
Rio de Janeiro (1824-1870)
Período Escravizados % Libertos % Livres %
1824-1850 152 33,1 3 0,7 304 66,2
1851-1870 2766 68,6 36 1,0 1229 30,4
Fonte: AGCRJ - Códices 66.1.44 a 6.1.47, 39.1.30, 57.1.17, 57.4.10, 57.4.13, 57.4.4, 57.4.15,
57.4.18, 57.4.20; Luiz Carlos Soares. “Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX”.
Revista Brasileira de História, 16 (Mar/ ago.1998). Marco Zero/ ANPUH. p.116. APERJ, Casa de
Detenção, 01, 03 a 07.
Os dados da Tabela 1 possibilitam repensar vários aspectos dos estudos
que trataram dos trabalhadores no setor de transporte no Rio de Janeiro do
século XIX. Ao contrário do que afirmou Moura, por exemplo, o sistema
carroçável não surgiu a partir de 1850. Se for levado em conta que os
cocheiros e carroceiros representavam a totalidade dos trabalhadores livres
presentes nas fontes referentes à primeira metade do século, eles eram
inclusive a maioria da mão de obra do transporte presente na Tabela 1.
A mesma autora expôs ainda que os carroceiros não sofriam, a partir de
1850, nenhuma concorrência significativa por parte de escravizados ou
outros grupos de estrangeiros, pois os considerou como sendo
majoritariamente mão de obra livre nacional. Porém, os carroceiros foram
descritos realizando as mesmas funções dos carregadores, transportando
mudanças, carregamentos de materiais de construções, fretes de café. Não
se deve, portanto, considerar que em um primeiro momento havia
carregadores e depois eles seriam subitamente substituídos pelos cocheiros
e carroceiros. A Tabela acima mostra justamente que em nenhum momento
esses trabalhadores apareceram sozinhos, sendo que, na segunda metade do
século, os carregadores escravos ao ganho representavam inclusive a
maioria do setor.
Sendo assim, o transporte de mercadorias e pessoas pelas ruas da cidade
não era monopólio dos escravizados ao ganho, principalmente na primeira
metade do século XIX, como propuseram os estudos que trataram da
escravidão urbana, nem monopólio dos trabalhadores livres na segunda
metade, como afirmou Moura. Trabalhadores livres, libertos e escravizados
dividiram o mesmo setor ao longo de todo o século. O importante, portanto,
foi verificar quem eram os diferentes trabalhadores envolvidos e de que
forma se dava a participação deles.

Perfil dos trabalhadores


Tendo em vista que o Rio de Janeiro no século XIX era uma cidade
escravista, havia uma primeira diferenciação entre os trabalhadores
escravos e os livres. A Tabela 1 apresenta a participação dos trabalhadores
escravizados, libertos e livres no setor de transporte, segundo a
documentação pesquisada. No período de 1824 a 1850 eram 152
escravizados, três libertos e 304 livres. Chama a atenção justamente o
grande número de livres. Eles representavam 66,2% do total de
trabalhadores, superando, assim, os escravizados (33,1%) e os libertos
(0,7%). No período entre 1851-1870, os trabalhadores livres deixaram de
ser maioria, embora ainda possuíssem um percentual considerável (30,4%).
Os escravizados, no entanto, tornaram-se a maior parte (68,6%) e os
libertos mantiveram um padrão (1,0%).
Os dados demográficos demonstram que a população total do Rio
cresceu pouco entre os censos de 1849 e 1872: de 266.466 para 274.972
habitantes. A maior mudança, no entanto, deu-se em relação à população
escrava. Se em 1849 havia 110.602 cativos na Corte (41,5% da população
total), em 1872 foram computados 48.939, representando apenas 17,8% dos
habitantes do município.124
Comparando os dados demográficos com os da Tabela 1, vê-se que na
primeira metade do século XIX, quando o número de cativos do Rio de
Janeiro chega a seu auge, os percentuais de escravos encontrados entre a
população total desta cidade (41,5%) e entre os trabalhadores do setor de
transporte (33,1%) não representaram uma mudança muito gritante. Porém,
ocorreu uma inversão em relação à segunda metade do século. Enquanto a
população cativa da Corte regrediu vertiginosamente, passando a
representar somente 17,8% dos habitantes, os escravizados tornaram-se
maioria entre os trabalhadores do setor de transporte (68,6%).
Essa mudança provavelmente não ocorreu por uma maior entrada de
cativos nesse setor, e sim por limitações das fontes. Como visto
anteriormente, a documentação encontrada em relação à primeira metade do
século XIX era muito reduzida. Tendo em vista a dimensão alcançada pela
população cativa no final desse período, chegando o Rio de Janeiro a ser a
cidade com maior número de escravos nas Américas por volta de 1850, a
proporção de escravos ao ganho empregados no transporte deve ter sido
muito maior.
Um outro ponto a ser notado sobre o perfil dos trabalhadores do setor de
transporte – sejam os carregadores, sejam os cocheiros ou carroceiros – foi
que este era um universo essencialmente masculino. Não encontrei qualquer
evidência da participação feminina, e as mulheres apareceram apenas como
proprietárias de escravizados que trabalhavam ao ganho como carregadores,
ou proprietárias de veículos.125
Em uma cidade como o Rio, em que a competição entre nacionais e
imigrantes, além das disputas entre escravos e livres, tornou-se cada vez
mais acirrada no decorrer da segunda metade do século XIX, uma
característica importante a ser analisada foi a nacionalidade, e também as
“nações” dos trabalhadores.
As principais divisões dos escravizados no Rio, no século XIX, de
acordo com Karasch, estavam no lugar de nascimento, África ou Brasil. Em
relação à primeira metade do século XIX, foi possível verificar que, entre
os ganhadores, 3,8% eram crioulos, isto é, nascidos no Brasil; 86,5% eram
africanos e 9,7% não tiveram a nacionalidade declarada. O percentual de
africanos é maior, portanto, do que o presente no Censo de 1849, já que
33,1% eram brasileiros e 66,9% eram africanos, levando-se em conta
somente a população negra.126
Os africanos continuaram sendo maioria entre os escravos ao ganho na
segunda metade do século XIX, 76,53% contra 15,97% brasileiros e 5,5%
não tiveram suas origens especificadas.127 E entre os libertos presentes na
documentação a distribuição foi praticamente a mesma. Sendo que os
africanos perfizeram 77%, os brasileiros, 17% e os sem-identificação, 6%.
Os únicos libertos que Soares mencionou foram os que colocaram seus
cativos ao ganho. É interessante perceber que os oito eram africanos, sete
de nação Mina (cinco homens e duas mulheres) e um de nação Mina-nagô
(homem).128 Esses dados vão ao encontro das pesquisas sobre alforrias no
Rio de Janeiro, que demonstraram justamente que os africanos eram
maioria entre os alforriados.
Sheila Siqueira de Castro Faria expôs que, em relação à primeira metade
do século XIX, os africanos eram maioria (46%), enquanto os crioulos
perfaziam 42% dos alforriados. Uma das razões encontradas para o
aumento da proporção dos africanos entre os que se alforriavam,
comparando-se com os dados do século XVIII, pode ser a maior entrada de
escravizados nos portos do Rio de Janeiro. Segundo Faria, foi possível
conjecturar que havia, por parte dos senhores, uma predisposição maior
para libertar seus cativos devido à facilidade de acesso à mão de obra
trazida pelo tráfico, mas ela crê que “também houve maior pressão, por
parte dos cativos, para conseguir a liberdade, justamente tomando a ampla
oferta da época”.129
Entre os escravizados encontram-se alguns identificados, por exemplo,
como João Benguela ou José Mina.130 “Benguela” e “mina” são termos de
identificação genéricos, criados no contexto do tráfico atlântico, que
poderiam denotar portos de exportação, vastas regiões geográficas, o estado
ao qual estavam subjugados antes da travessia transatlântica, a língua que
falavam ou, ainda, grupos étnicos particulares.131 Segundo Mariza de
Carvalho Soares, as nações redefiniam as fronteiras entre os grupos étnicos
através da formação de unidades mais inclusivas, as quais ela denominou de
“grupos de procedência”. Quando instalados no Novo Mundo, os cativos se
agrupavam em torno das ditas nações. E, se essas eram inicialmente uma
identidade atribuída, acabavam sendo incorporadas pelos grupos e
“servindo, de forma alternativa ou combinada, como ponto de partida para o
reforço de antigas fronteiras étnicas ou para o estabelecimento de novas
configurações identitárias”.132 Por mais que esses termos sejam imprecisos,
eles apontam para as principais regiões exportadoras de escravizados da
África.
Na primeira metade do século XIX, os dados da Tabela 2 apontam o
Centro-Oeste Africano (52,7%) e a África Oriental (19,4%) como terra
natal provável da maioria dos africanos envolvidos no ganho no Rio, os da
África Ocidental somavam apenas 9,2%. Com relação à segunda metade
daquele século, 44,4% dos cativos eram provenientes do Centro-Oeste
Africano, 23,5%, da África Ocidental, 13%, da África Oriental, enquanto
19,1% dos africanos eram de nações desconhecidas.133 Apesar das
diferenças entre os percentuais relativos à África Ocidental e Oriental, os
dados apontam o Centro-Oeste como principal região de onde vinham os
escravos que trabalhavam ao ganho na cidade do Rio de Janeiro no século
XIX.
Os dados das licenças se assemelham com os encontrados para a cidade.
Karasch apontou que antes de 1811, 96,2% dos escravos do Rio vieram do
Centro-Oeste Africano. Embora o número tenha diminuído após isso, nunca
caiu para menos de 66%. Em nenhum período os escravos provenientes da
África Ocidental chegaram perto de 1/4 do tráfico para o Rio, pois menos
de 2% eram importados diretamente dessa região. A porcentagem mais alta
(6% a 7%) de africanos ocidentais na cidade reflete o tráfico entre a Bahia e
o Rio, principalmente depois de 1835. A importância crescente da África
Oriental na cidade reflete-se na porcentagem de escravos vindos dessa
região, entre 16,8% e 26,4% dependendo do período.134
Tabela 2. Procedência dos negros nos pedidos
de licença para ganhadores (1824-1850)
Procedência No de negros %
África Ocidental
Calabar 1 0,6
Mina 12 8
Nagô 1 0,6
Total (África Ocidental) 14 9,2
Centro-Oeste Africano
Congo Norte
Congo 19 12,2
Cabinda 19 12,2
Manjolo 6 3,8
Total (Congo Norte) 44 28,2
Angola-Norte
Angola 7 4,5
Cabundé 1 0,6
Cassange 3 2
Rebola/ Rebolo 5 3,2
Total (Angola-Norte) 16 10,3
Angola Meridional
Benguela 18 11,6
Ganguela 1 0,6
Total (Angola Meridional) 19 12,2
Não identificados (Centro-Oeste)* 3 2
Total (Centro-Oeste Africano) 82 52,7
África Oriental
Moçambique 30 19,4
Total (África Oriental) 30 19,4
Crioulos 6 3,8
Total (Crioulos) 6 3,8
Não identificados** 8 5,2
Não identificados*** 15 9,7
Total (Geral) 155 100,0
As regiões da África acima seguem a classificação feita por KARASCH, 2000, pp. 481-495.
*Encontrei nas licenças negros provenientes de lugares que Karasch aponta como sendo do Centro-
Oeste africano, embora a localização exata não tenha sido identificada.
**Número referente aos negros que tiveram a procedência revelada, mas que não encontrei na lista
de Karasch.
***Número referente aos negros que não tiveram a procedência identificada nas licenças que
pesquisei.
David Eltis e David Richardson, em um estudo sobre o tráfico atlântico,
afirmaram que metade dos escravos saídos do Centro-Oeste Africano veio
para a região Sul do Brasil, cujo principal porto era o do Rio de Janeiro.
Nessa região, segundo estes autores, oito em cada dez escravizados eram
provenientes do Centro-Oeste Africano.135 Manolo Garcia Florentino
também afirmou que a maior fonte dos escravizados que vinham para o Rio
era a região de Congo-Angola. Ele calculou que 81% dos navios negreiros
aportados na cidade, entre 1790 e 1830, vieram dessa região.136
Apesar de não constituírem a maioria entre os africanos alforriados, no
período de 1790 a 1864, os minas representaram a maior parte dos libertos
entre os trabalhadores do transporte.137 Segundo Sheila Faria, os minas, no
Rio de Janeiro, criaram uma organização, baseada na tradição, muito
poderosa e que perdurou por décadas. Eles teriam formado uma “elite”,
capaz “de articulações específicas para se libertar do cativeiro, enriquecer e
se tornar visíveis aos olhos da sociedade escravista do Brasil”.138 Existem
indícios de que os minas tenham dominado o carregamento de café e
formado uma caixa de resgate que a cada ano alforriava alguns de seus
membros.139 Não parece ser, portanto, mera coincidência que eles tenham
conseguido ser majoritários entre os alforriados do setor de transporte.
Os escravos e libertos ao ganho, e entre eles uma grande massa de
carregadores, que circulavam pelas ruas da cidade eram em sua maioria
africanos, tanto na primeira quanto na segunda metade do século XIX. O
processo de trabalho dos carregadores foi com certeza de fundamental
importância na construção de laços de solidariedade, assim como no
redesenhar e na reafirmação das identidades étnicas. Essa importância pode
ser evidenciada tanto porque grupos de procedência específicos parecem ter
controlado parcelas do carregamento – como no caso dos minas que
dominavam o transporte de café – quanto porque os viajantes acreditaram
ter visto vários signos africanos relacionados com o trabalho dos
carregadores, como a música, as vestimentas e os objetos.
No entanto, apesar de os africanos serem muitos, o mercado de trabalho
ao ganho carioca e, mais especificamente, o setor de transporte ganhavam
cores diferentes ao longo do século. O português Antonio José Lameira,
morador na Praça da Aclamação no49, apresentou, em 30 de abril de 1846,
um pedido de licença para uma carroça.140 Manoel Ribeiro, também
português, requisitou igual solicitação em primeiro de março de 1847.141
Assim como eles, outros 171 portugueses enviaram pedidos de licença para
seus veículos na primeira metade do século. Dessa forma, os trabalhadores
lusos representaram 56,2% de todos os trabalhadores livres do período no
setor de transporte.
A constatação do grande percentual de lusos, portanto, foi contra os
estudos que afirmaram que a imigração portuguesa no Brasil na primeira
metade do século XIX teria sido de pouca importância ou igual a zero. Por
outro lado, concordou com Gladys Sabina Ribeiro, autora que propôs que
não só a população lusitana na cidade do Rio de Janeiro, nesse período, foi
bem maior do que a estimada, como também constituiu um dos elementos
cruciais do mercado de trabalho.142 Ribeiro estimou que, em 1834, os cinco
mil portugueses representavam 21,51% dos trabalhadores livres adultos da
Corte.143
Apesar de o número de imigrantes portugueses que entraram na cidade
do Rio de Janeiro a partir de 1850 ter aumentado consideravelmente, o
percentual deles decaiu entre os trabalhadores do setor de transporte.144 Eles
passaram a representar 20,1% do total de trabalhadores livres, mas é bem
provável que estivessem em um número muito maior. Entre os
trabalhadores livres da Casa de Detenção identificados como cocheiros e
carroceiros, por exemplo, os lusos perfizeram 75%.
A documentação da Casa de Detenção permite traçar um perfil dos
imigrantes portugueses envolvidos no transporte. As regiões de onde
vinham se assemelham com as encontradas em relação à população lusa na
cidade, sendo a maior parcela originária do Norte (principalmente Porto), e
um contingente considerável dos Açores. O carroceiro Antonio Caetano,
por exemplo, nasceu na Ilha de São Miguel.145 A diferença é que entre os
cocheiros e carroceiros presos não apareceu nenhum vindo de Lisboa,
apesar de eles representarem 26% dos imigrantes.146
Quanto à faixa etária dos cocheiros e carroceiros portugueses, foi
possível verificar que a maior parte tinha entre 20 e 30 anos, apesar de ter
sido encontrado um caso como o do carroceiro Luiz da Costa Oliveira,
preso aos 18 anos.147 Já o cocheiro José Nunes da Silva foi o mais velho
detido, com 48 anos.148 Segundo Ribeiro, os imigrantes portugueses no Rio
de Janeiro, na primeira metade do século XIX, eram em grande parte
“homens, maciçamente vindos do porto ou do Norte de Portugal, solteiros,
com idade entre 10 e 30 anos, vindos ‘a empregar-se’[...]”.149 Entre os
trabalhadores dessa nacionalidade foi possível constatar que a grande
maioria era formada por solteiros. Além disso, é provável que aqueles que
eram muito jovens não tenham sido encontrados entre os cocheiros e
carroceiros porque essa atividade exigia algum grau de especialização.150
Tabela 3 - Nacionalidade dos trabalhadores
livres do setor de transporte
1a Metade do Século XIX 2a Metade do Século XIX
1a Metade do Século XIX 2a Metade do Século XIX
Nacionalidade Número % Número %
Alemão 1 0,3 5 0,4
Americano _ _ 1 0,1
Argentino _ _ 1 0,1
Brasileiro 74 24,3 65 5,3
Espanhol 7 2,4 8 0,6
Francês 1 0,3 3 0,2
Inglês _ _ 1 0,1
Italiano _ _ 3 0,2
Português 171 56,2 247 20,1
Sueco _ _ 1 0,1
Uruguaio _ _ 1 0,1
S/ nacionalidade 50 16,5 893 72,7
Total 304 100 1229 100
Fonte: AGCRJ- Códices 51.1.17; 57.4.10, 57.4.13, 57.4.15, 57.4.17 a 57.4.20. APERJ, Casa de
Detenção, 01, 04 a 07.
Porém, os portugueses não eram os únicos estrangeiros presentes entre
os trabalhadores livres. A Tabela 2 mostra que, depois dos lusos, os
estrangeiros com maior representatividade eram os espanhóis, seguidos
pelos italianos, alemães, franceses, ingleses e suecos. No entanto, além de
europeus envolvidos, foi possível encontrar também americanos, argentinos
e uruguaios.
Os brasileiros correspondiam a 24,3% na primeira metade do século
XIX e 5,3% em sua segunda metade. O percentual diminuiu bastante, mas é
bem provável que grande parte dos brasileiros estivesse incluída entre
aqueles sem-identificação, principalmente no que concerne à segunda
metade do século XIX. Entre os 20 brasileiros identificados como cocheiros
e carroceiros, detidos na Casa de Detenção, dez eram pardos, cinco, pretos,
dois, brancos, um, moreno e dois sem-identificação. Isso indica que os
brasileiros livres presentes não eram necessariamente brancos, pelo
contrário, a maior parte era de pardos.
Os que não tiveram a nacionalidade declarada foram 16,5% na primeira
metade do século XIX e 72,7% em sua segunda metade. Moura notou que a
partir de 1853 o item nacionalidade só era especificado se o requerente
fosse estrangeiro. A conclusão da autora é de que os que não tiveram a
nacionalidade declarada eram brasileiros, sendo assim, a participação da
mão de obra livre nacional teria se tornado predominante na segunda
metade do século.151
No entanto, percebi que a nacionalidade deixou de ser anotada
principalmente a partir de 1862, que não por coincidência foi o ano dos
relatórios dos fiscais de freguesia a que tive acesso, sendo que o dado da
nacionalidade não apareceu em nenhum deles. Analisando os nomes dos
requerentes presentes nos relatórios e que também realizaram pedidos em
outros anos, verifiquei que vários deles eram portugueses, o que faz pensar
que os estrangeiros não necessariamente tiveram uma participação muito
menor na segunda do que na primeira metade do século XIX, mas que o
dado da nacionalidade deixou de ser marcado nas licenças.
Gladys Sabina Ribeiro afirmou, em relação à primeira metade do século
XIX, que a naturalidade dos imigrantes portugueses foi mais preenchida, na
documentação por ela analisada, nos anos de controle mais rígido dessa
imigração.152 Essa informação pode ir ao encontro da hipótese que
apresentei, já que o dado sobre a nacionalidade dos proprietários de carros
deixou de ser anotado com mais frequência – fato que provavelmente estava
ligado a questões de controle dos imigrantes – e não que eles deixaram de
participar no setor de transporte.
A maioria dos trabalhadores no transporte, os africanos e os
portugueses, chegava ao Rio no século XIX em uma faixa etária
semelhante, geralmente menores adolescentes ou jovens adultos.153 É
possível que vários deles tenham sido transportados nos mesmos navios, já
que diversos traficantes de africanos passaram a realizar também o
translado de imigrantes lusos. O açoriano João Severino d’Avillar, por
exemplo, conhecido traficante de escravos, transportava também açorianos
para o Brasil.154
Ao chegarem ao Rio, os cativos africanos e os imigrantes lusos
enfrentavam condições que foram muitas vezes tidas como semelhantes,
principalmente no caso dos portugueses engajados. Em troca das despesas
do transporte marítimo, era cobrado o equivalente ao dobro da tarifa normal
e os engajados só podiam desembarcar no Brasil com autorização dos
representantes do navio ou do capitão. Nos portos brasileiros, por sua vez,
havia um autêntico leilão de homens, muito semelhante aos leilões de
escravos africanos. Os engajadores locais pagavam a passagem e
conduziam os imigrantes aos proprietários que haviam encomendado a mão
de obra e “a quem os engajadores cobravam uma soma igual ao duplo ou
triplo do preço da passagem”.155
Dessa forma, o imigrante contraía uma dívida com seu patrão que o
colocava em situação de dependência e prolongava a impossibilidade de
mudar de trabalho. Era necessário de um ano a um ano e meio para que
conseguisse saldar a dívida e pudesse escolher outro emprego.156 A situação
dos engajados teria sido semelhante a dos indutered servants que
desembarcavam nas Antilhas e na América do Norte no século XVIII.157 No
Brasil, por sua vez, era recorrente a comparação deles com os escravos
africanos.158
Como forma de enfrentar as condições muitas vezes adversas, os
africanos e os portugueses elaboraram estratégias de sobrevivência. Os
imigrantes lusos geralmente encontravam uma rede familiar que lhes
auxiliava com emprego e moradia. Em 1829, por exemplo, 71,4% dos
empregadores dos imigrantes eram seus parentes.159
Era muito comum encontrar grupos de cocheiros e carroceiros
portugueses que habitavam em um mesmo endereço. José Luis Machado e
Antonio Silveira dos Santos, por exemplo, moravam, em 1848, na rua da
Ajuda, no 205, Freguesia de São José.160 No dia 27 de novembro de 1860, os
carroceiros João Jacintho, Francisco Ignacio Morgado, Joaquim Mendes
Godinho, Manoel Botelho e Manoel Pereira foram presos pelo subdelegado
de Santana por serem suspeitos. Apesar de os sobrenomes não indicarem
um grau de parentesco, todos os cinco moravam na rua São Pedro, no 4.161
Esse foi um padrão encontrado também entre os portugueses
identificados como ganhadores. Antonio Bernardo, Antonio Ferreira,
Manoel José da Silva e José de Pinho moravam, em 1867, na rua Fresca, no
9.162 Não foi possível identificar se os endereços indicados eram uma só
residência, ou se se tratava de cortiços ou casa de cômodos. De qualquer
forma, esse dado permite vislumbrar imigrantes que desempenhavam uma
mesma função coabitando num mesmo endereço. Isto possibilitou um
estreitamento dos laços de solidariedade que auxiliavam a superar as
dificuldades do dia a dia.
Os espaços de convivência e solidariedade podem ter sido mais amplos
e podem ter agregado um maior número de pessoas, como no caso da
Sociedade União Beneficente e Protetora dos Cocheiros, em que os
imigrantes portugueses foram tidos como maioria entre os membros163 Esta
associação foi criada em 17 de abril de 1881, e constava no seu estatuto a
função de “socorrer os associados e suas famílias”.164 Assim como outras
associações de cunho mutualista, ela era voltada para o auxílio de seus
associados em caso de doença, invalidez, desemprego etc.165
No caso dos ganhadores lusos ocorreu ainda que vários deles
apresentaram um mesmo fiador. Este possivelmente era uma pessoa da
convivência social dos trabalhadores, a quem eles podiam recorrer e pedir
um favor como a fiança. Manoel José Alves da Silva, por exemplo,
afiançou quatro portugueses, enquanto Ubaldo Alves da Cruz, cinco.166 Não
foi possível identificar se eles eram patrícios dos afiançados, porém ambos
eram negociantes.
Um caso específico de fiança permite vislumbrar como a condição dos
libertos poderia ainda remetê-los às suas relações sob o jugo da escravidão.
Francisco, preto forro de nação Cassange, apresentou José Joaquim
Cândido Pereira. Este declarou que “tendo sido senhor do preto Francisco
de nação Cassange, o qual pretende uma licença [...] e como seja mister
uma fiança de pessoa idônea, e achando-se o mesmo abaixo assinado nas
crenças de a dar”.167
A bibliografia expôs como os libertos muitas vezes mantinham relações
com seus ex-senhores. Sidney Chalhoub, por exemplo, apontou como havia,
por parte dos senhores, uma forte expectativa da continuidade de relações
pessoais anteriores à alforria do escravizado, e como essa libertação estava
ligada, entre outras coisas, à produção de dependentes.168 Karasch citou a
afirmação de Seidler e Freireyss de que a maioria dos homens libertos
continuava com seus antigos senhores, e considerou que a observação
possivelmente estava correta devido à quantidade de alforrias condicionais.
O liberto que continuava mantendo relações de dependência com seu antigo
dono “raramente experimentava uma mudança em suas condições de vida e
segurança pessoal, pois ele lhe servia de protetor”.169
Não foi possível saber se Francisco tinha uma alforria condicional, o
que aumentaria seus laços de dependência com seu antigo senhor. Contudo,
eles mantinham relações pessoais, e se essa, por um lado, produziria um
dependente para o senhor, por outro, garantiria uma certa segurança para o
liberto. Francisco provavelmente exercia a mesma atividade de quando era
cativo. Mas se antes era o seu senhor que pedia a licença, tudo indica que
Francisco, até aquele momento, ainda dependia dele para se responsabilizar
por seus atos.
Os escravos carregadores também construíram suas próprias redes de
solidariedade. Novamente encontramos o padrão de organização em grupos,
só que no caso específico dos carregadores eles estavam atrelados
diretamente ao processo de trabalho. As narrativas dos viajantes permitem
encontrar uma forma coletiva de trabalho estruturada pelos próprios
carregadores. Os membros dos grupos, sempre com um líder escolhido
entre eles, negociavam as tarefas a realizar, decidiam o tamanho da turma
dependendo da quantidade do volume e dos pesos das cargas, e, em alguns
casos, uniam-se para compra da liberdade.170 Veem-se, assim, possibilidades
de existência totalmente diferentes das expostas por Marilene Silva. Em vez
da “divisão do seu grupo pela rivalidade da conquista diária que garantia o
seu sustento”, o trabalho surge como um espaço privilegiado para união e
construção de laços de solidariedade entre os carregadores.171
Hierarquização e segmentação do setor de transporte
A partir da segunda metade do século XIX, o número de imigrantes
portugueses no Rio de Janeiro aumentou consideravelmente, enquanto o de
cativos africanos diminuiu. Segundo Luís Felipe de Alencastro, a entrada
dos primeiros estaria relacionada com o declínio da população cativa na
Corte. Uma das razões para isso foi que “quando o proprietário-rendeiro
possuía um escravo não qualificado empregado na cidade, a concorrência
dos proletários portugueses e a conseqüente queda dos salários o levava a
vender seu escravo aos fazendeiros”.172 Caso o escravo fosse qualificado,
sua venda para a zona rural era menos rentável. Por isso, o proprietário
“tinha todo o interesse em facilitar a venda de seu bem ao único comprador
disposto a pagar esse preço teórico: o próprio escravo”.173
Na segunda metade do século XIX, os portugueses estariam não só
chegando em maior número como também ocupando as funções que antes
eram realizadas pelos cativos. O estatístico Sebastião Ferreira dos Santos
afirmou, em 1860, que atividades como os transportes e outros trabalhos da
capital, que anteriormente empregavam muitos escravos ao ganho, já eram
desenvolvidas em grande parte por trabalhadores livres, em sua maioria
imigrantes portugueses.174 Um ofício de 1849, por sua vez, informou que:
uma grande parte de indivíduo das ilhas (Açores e Madeira) empenhava-se exclusivamente
em recolher águas nas fontes públicas da cidade, com carroças e tonéis puxados por
animais[...] abastecendo assim quase toda a cidade que antes empregava muitos escravos
para esse fim.175
Ao confrontar essas informações com a minha pesquisa, surge uma
questão: se os trabalhadores livres substituíram os escravizados nos serviços
de transporte, na segunda metade do século XIX, por que os cativos
representavam a parcela mais significativa nos dados que encontrei?
Como visto anteriormente, uma das principais ocupações dos escravos
ao ganho na cidade do Rio de Janeiro no século XIX foi a de carregador.
Existem inúmeros relatos sobre a importância desses trabalhadores na
primeira metade daquele século e, ao que tudo indica, eles continuaram a
ser maioria entre os escravos ao ganho em sua segunda metade. Nesse
período, no entanto, foi possível encontrar também trabalhadores livres
como carregadores. O português Antonio Pedro de Mattos, por exemplo,
era carregador de caixa, branco, 23 anos, e foi preso em 20 de dezembro de
1870 por ser considerado vagabundo.176 No entanto, o percentual de livres
(1,1%) nessa função é muito menor do que o de escravizados (98,9%).
No ofício exposto mais acima apareceu a referência aos trabalhadores
livres como condutores de veículos. As fontes que utilizei realmente
indicaram que os livres compunham a maior parcela entre os cocheiros e
carroceiros (95,4%). Contudo, existem evidências de escravizados entre
esses trabalhadores. Nas posturas municipais, editadas em 1853, relativas a
essa ocupação, estava prevista a participação de cativos, já que foi indicado
que quando os infratores fossem escravos seria “substituída a pena de prisão
simples pela de 15 dias com trabalho na Casa de Correção”.177 Além disso,
José d’Assumpção, em requerimento de 13 de fevereiro de 1844, disse ter
“seus escravos e carroças trabalhando no Cais da Imperatriz nos meses de
julho e agosto do ano findo os quais venceram 49$800 réis”.178 Em 11 de
fevereiro de 1833, por sua vez, Manoel José Mendes pretendia “propor a
ensinar escravos tanto seus como alheios a boliar”.179
Luiz Carlos Soares em sua pesquisa com as licenças para escravos ao
ganho encontrou três indivíduos cuja função declarada era a de cocheiros.180
E na documentação da Casa de Detenção, dos 168 cocheiros e carroceiros
identificados, 51 eram escravizados. É interessante que a grande maioria
deles era formada por crioulos (72,5%). A razão para isso parece residir no
fato de os cativos brasileiros serem preferidos para ocuparem ofícios mais
especializados.181 Contudo, quando somados com os números de outras
fontes, os cativos representavam apenas 4,6% dos trabalhadores desse
ofício.
O que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do
século XIX, não foi que os trabalhadores livres tivessem substituído
inteiramente os escravizados no serviço de transporte. Foi possível perceber
uma hierarquização nesse setor, como Ribeiro afirmou ter encontrado de
forma mais geral em relação ao mercado de trabalho carioca na primeira
metade do século. Segundo esta autora, os portugueses teriam reservado
para si as melhores oportunidades, marginalizando os escravizados e
libertos. Dessa forma, apesar de transportarem praticamente as mesmas
cargas, o que os diferenciava e hierarquizava era a forma de conduzi-las.
A dificuldade de se conduzir mercadorias nos ombros ou sobre as
cabeças era com certeza maior do que transportá-las em veículos. Além
disso, a figura do carregadores estava altamente atrelada ao trabalhador
cativo.182 Com o crescimento da cidade, e o aumento das redes de comércio
e transporte de pessoas, observou-se, no decorrer do século XIX, a
introdução de um número cada vez maior de carros. Os trabalhadores livres
parecem ter reservado para si essa parcela do setor do transporte,
representando a maioria dos condutores de veículos, como as carroças. O
transporte manual de cargas e pessoas, por sua vez, estava a cargo
principalmente dos escravizados e libertos, os carregadores.183
Esses diversos trabalhadores tinham que disputar o transporte de
mercadorias e pessoas pelas ruas do Rio de Janeiro no século XIX, fazendo
com que conflitos fossem deflagrados. Segundo Mary Karasch, quando os
comerciantes passaram a utilizar cavalos e carroças no lugar de
carregadores escravos, os cativos protestaram contra a mudança já que isso
significava a perda da posição favorita deles enquanto negros ao ganho. A
mudança também poderia significar a sua venda para a zona rural, o que
diminuiria a oportunidade de comprarem a própria liberdade, além da perda
da certa liberdade de movimento vivenciada na zona urbana.184
As disputas ocorriam não só entre os carregadores e os cocheiros, mas,
às vezes, entre os próprios carregadores. No dia 3/5/1872, por exemplo, o
Jornal do Commercio noticiava:
Há dias os pretos ganhadores da praça das marinhas, que tem por costume carregar para
terra a carne seca trazida de bordo dos navios em canos e lanchas, exigiram aumento de 20
rs. [vinte réis] no preço por que faziam aquele serviço. Não querendo sujeitar-se a tal
exigência, os donos da carne seca resolveram chamar trabalhadores brancos que
incumbiram de fazer aquela descarga. Ontem [02/05/1872], ao meio-dia, quando se fazia a
descarga na praça das Marinhas, os pretos, em numero de 50, armados de cacetes, e um
deles com uma foice, assaltaram os trabalhadores ocupados naquele serviço, que eram cerca
de 12. Travou-se luta renhida, sendo alguns dos trabalhadores atirados ao mar.185
O trecho acima expôs conflitos entre carregadores brancos e negros
motivadas por disputa pelos postos de trabalho, o que confere também um
caráter racial à mesma. Este periódico não identificou se os brancos
contratados eram imigrantes portugueses. Mas, de qualquer forma, ocorreu
uma situação análoga à afirmação de Alencastro, já que a introdução de
trabalhadores brancos fez com que se diminuísse a remuneração dos
serviços antes executados pelos escravos ao ganho.186 Por outro lado,
embora no Jornal do Brasil não haja indicação se os negros presentes eram
cativos ou libertos, o Diário do Rio de Janeiro afirmou que o ocorrido havia
sido uma “parede à moda da Costa da Mina”.187 Se a informação do
periódico estiver correta, os minas continuaram marcando presença no
trabalho portuário na década de 1870. E, além disso, esse conflito revela um
grau elevado de união e organização dos carregadores negros, maioria entre
essa parcela do setor de transporte.
Embora palco de contendas, o serviço de transporte também foi um
espaço de construção de redes de solidariedade. Como visto anteriormente,
foi usual a evidência da formação de grupos que exerciam as mesmas
funções. No caso dos cocheiros e carroceiros a união estava pautada
principalmente na nacionalidade, já que os portugueses foram encontrados
dividindo um mesmo endereço e sendo maioria numa associação criada
pela categoria. Entre os carregadores, por sua vez, ainda que as identidades
étnicas pudessem contar como fator de solidariedade, os grupos eram
essenciais para a organização do trabalho.
É possível que os laços de solidariedade tenham também transposto
diferenças de cor e de ofício. O cocheiro Joaquim Ferreira era branco,
português, morava no Rio Comprido e tinha 19 anos. Em 2 de agosto de
1868, ele foi preso na freguesia de Santana por “opor-se à prisão do preto
Romão”.188 A defesa do preto feita pelo cocheiro branco provavelmente
estava atrelada a uma relação de amizade.
A entrada cada vez maior de imigrantes portugueses na cidade do Rio de
Janeiro, e a diminuição da população cativa fizeram com que ficasse mais
acirrada a disputa no mercado de trabalho ao longo da segunda metade do
século XIX. No setor de transporte de mercadorias e pessoas não foi
diferente. E se existem evidências de que os trabalhadores livres,
principalmente lusos, passaram a ocupar posições que antes eram exercidas
pelos cativos, é de se admirar que os escravizados constituíssem a maioria
entre os trabalhadores do transporte. Embora tenham sido praticamente
excluídos da condução de veículos, enquanto carregadores eles
conseguiram manter uma posição de destaque, ligados principalmente ao
porto.189 Nem que para isso tivessem de se valer de violência.190
Conclusão
Os dados que apresentei permitem verificar que o transporte de
mercadorias e pessoas pelas ruas da cidade não era monopólio dos
escravizados ao ganho na primeira metade do século XIX, como
propuseram os estudos que trataram da escravidão urbana, nem monopólio
dos trabalhadores livres em sua segunda metade, como afirmou Moura.
Trabalhadores livres, libertos e escravizados dividiram o mesmo setor ao
longo de todo aquele século.
No entanto, a participação dos diferentes trabalhadores no setor de
transporte não se deu de forma igual, e foi possível encontrar uma
hierarquização e segmentação. Os trabalhadores livres parecem ter
reservado para si o transporte com veículos. Enquanto isso, o transporte
manual de mercadorias permaneceu sendo comandado por uma maioria de
cativos. Na segunda metade do século, os carregadores negros tiveram no
porto a possibilidade de manterem uma reserva em um mercado de trabalho
que se tornava cada vez mais competitivo com a entrada intensiva de
imigrantes. Segundo Maria Cecília Velasco e Cruz, os negros continuaram
sendo, na segunda metade do século XIX e início do XX, maioria entre a
mão de obra do porto.191

Referências
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Este artigo contém partes da minha dissertação: TERRA, 2007.


AVE-LALLEMANT, 1961.
EWBANK, 1976, p. 73.
Idem, Ibidem, p. 93. A comparação dos escravos com bestas deve ser entendida dentro da intenção
do autor de denunciar os abusos da escravidão. Ele afirmou que do pouco que pode ver, “deduzo o
quanto é horrorosa a situação do escravo”. Sua constatação foi antecedida de uma série de descrições
de instrumentos de tortura dos negros, como máscaras e colares de ferro. O próprio suicídio cometido
por eles foi visto por Ewbank como uma forma de “terminar a vida a suportá-la nos termos em que
lhes é oferecida”. Idem, Ibidem, p. 325.
SILVA, 1998; SOARES, 1998; KARASCH, 2000; CRUZ, 2000; ALGRANTI, 1988.
SOARES, 1998, p. 116.
MOURA, 1988.
0 É preciso ressaltar que o transporte não era o tema central do artigo de Luiz Carlos Soares. Seu
objetivo era analisar os escravos ao ganho na cidade no Rio de Janeiro, e o carregamento seria uma
entre as principais atividades exercidas por eles.
1 EITHOLD, 1966, p. 36.
2 EWBANK, 1976, p. 165.
3 Trabalhos que analisaram os escravos ao ganho: SILVA, 1998; SOARES, 1998; KARASCH, 2000;
CRUZ, 2000; ALGRANTI, 1988.
4 Postura da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1838. Código de Posturas – leis,
editais e resoluções da Intendência Municipal do Distrito Federal – Compilação do ano de 1894 –
abrange o período de 1838;1893. Agradeço imensamente à professora Sheila de Castro Faria, que
pesquisou as posturas anteriormente e me cedeu uma cópia impressa dessas, assim como das licenças
para africanos livres. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ) Códice 39.1.30. A grafia
desta e de todas as outras citações foi atualizada, embora eu mantenha a pontuação e as palavras
escritas com letra maiúscula no original.
5 AGCRJ, Códice 44.1.27.
6 AGCRJ, Códice 57.4.10. Outros exemplos: em 09/04/1853, o fiscal da freguesia da Glória informou
que se achava no depósito da freguesia uma carroça ao ganho. AGCRJ, Códice 57.4.15. Em
29/03/1855, o fiscal da freguesia do Engenho Velho prendeu a carroça de Manoel da Cunha, morador
na rua do Pedregulho, por estar ao ganho sem ter licença da Câmara. AGCRJ, Códice 51.1.17.
7 CHALHOUB, 1990, p. 199.
8 KARASCH, 2000, p. 28.
9 Sidney Chalhoub afirmou que, na segunda metade do século XIX, implantou-se de forma mais
contundente a suspeição generalizada em relação aos negros da cidade. O meio urbano, à medida que
ia crescendo, escondia cada vez mais a condição social do escravo. Tornava-se necessária, então, ao
invés de uma suspeição “pontual e nominal”, uma “suspeição generalizada e contínua que se torna o
cerne da política de domínio dos trabalhadores”. CHALHOUB, 1990, p. 192.
0 SILVA, 1998, p. 154.
1 O número se torna irrisório também quando comparado com o fato de que em 1879 foram feitos 717
pedidos de licença para ganhadores livres. Cf. FARIAS; SOARES; GOMES, 2005, p. 126.
2 A Casa de Detenção foi criada por um decreto de 2 de julho de 1856, e era utilizada principalmente
para detenções de curta duração. Cf. ASSIS, 2006, p. 40.
3 SOARES, 1998, p. 109.
4 Idem, Ibidem, p. 119.
5 Idem, Ibidem, p. 116.
6 Kátia Mattoso afirmou, em relação a Salvador, que “a distinção entre escravos ‘de ganho’ [...] e os
domésticos era tênue, pois os proprietários se serviam deles ou os alugavam segundo as necessidades
do momento”. MATTOSO, 1992, p. 538. Em relação aos ganhadores de Salvador, em 1887, João
José Reis afirmou que “carregar e se empregar em outras atividades não era necessariamente
incompatível, em época da crise ou de prosperidade. Além disso, eu creio que os cantos, embora
pudessem abrigar principalmente carregadores – apenas um quarto dos ganhadores declararam ter
ofício –, também funcionavam como espécie de agência informal de emprego para diversas
ocupações”. REIS, 2000, p. 214.
7 AGCRJ, Códice 57.4.15
8 AGCRJ, Códice 57.4.13
9 AGCRJ, Códice 51.1.17
0 AGCRJ, Códice 51.1.17
1 MOURA, 1988, p. 41.
2 Uma postura de 1853 instituiu que todos os cocheiros deveriam ter uma matrícula na Repartição da
Polícia. Uma forma de poder verificar o número exato de proprietários que conduziam os seus carros
seria, portanto, confrontar as licenças para carros com as matrículas dos condutores. O problema é
que não consegui localizar essas matrículas na documentação da Polícia guardada no Arquivo
Nacional.
3 Sobre a participação das mulheres na condução de veículos, o Jornal do Brasil, em 16/12/1906,
noticiava que as “francesas pediram a Prefeitura de Polícia de Paris autorização para guiar carro de
praça”. Ao que tudo indica, nessa mesma época não havia qualquer sinal que isso ocorresse nas terras
cariocas.
4 CHALHOUB, 1990, p. 199.
5 Numa tabela em que apareceram as ocupações de africanos libertos na Casa de Detenção, entre 1860
e 1900, 100% dos que foram indicados como carregadores eram homens. Cf. FARIAS; SOARES;
GOMES, 2005, p. 190.
6 KARASCH, 2000, p. 112.
7 SOARES, 1998, p. 114-116.
8 Idem, Ibidem, p. 128-129.
9 FARIA, 2004, p. 112.
0 AGCRJ, Códice 6.1.44.
1 ASSUNÇÃO, 2003, p. 161.
2 SOARES, 2002, p. 60. Segundo Paul Lovejoy, a “nação” era uma categoria étnica europeia aplicada
aos africanos. Embora a língua por si só seja imprecisa e somente um indicador de cultura, os termos
presentes nas línguas europeias para caracterizar etnicidade, como nação, eram essencialmente
linguísticos. LOVEJOY, 2003, p. 10.
3 SOARES, 1998, p. 115-116.
4 KARASCH, 2000, p. 50.
5 ELTIS; RICHARDSON, 1995.
6 FLORENTINO, 1995, p. 89.
7 A média entre os africanos alforriados na cidade era de 58,6% de “congo-angolanos”, 26,6% de
“afro-ocidentais” e 14% de “afro-orientais”. Cf. FARIAS; SOARES; GOMES, 2005, p. 118. “Mina”
era uma forma genérica com que os escravizados da África Ocidental eram identificados no Rio entre
os séculos XVIII e XIX.
8 FARIA, 2004, p. 137.
9 Cf. CRUZ, 2000, p. 34.
0 AGCRJ, Códice 57.4.10
1 AGCRJ, Códice 57.1.17
2 RIBEIRO, 2002, p. 148.
3 Idem, Ibidem, p. 180.
4 Luiz Felipe de Alencastro calculou que os portugueses compunham cerca de 10% dos habitantes da
Corte em 1849, e chegaram a 20% do total de habitantes em 1872. ALENCASTRO, 1988, p. 54.
5 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), Casa de Detenção, 05.
6 Segundo Luiz Felipe de Alencastro, 46,1% dos imigrantes eram originários do Norte (Porto e Viana),
26%, de Lisboa e 25,4%, dos Açores. ALENCASTRO, 1988, p.36.
7 APERJ, Casa de Detenção, 05.
8 APERJ, Casa de Detenção, 07.
9 RIBEIRO, 2002, p. 188.
0 Na postura de 1853, observa-se que para que, os trabalhadores fossem matriculados na polícia, eles
deveriam passar por exame de perícia. AGCRJ, Códice 57.4.3.
1 MOURA, 1988, p. 40.
2 RIBEIRO, 2002, p. 192.
3 Idem, Ibidem, p. 202.
4 Cf. ALENCASTRO, 1988, p. 37.
5 PEREIRA, 2002, p. 37.
6 Sobre os engajados, ver: PEREIRA, 2002, pp. 22-43 e ALENCASTRO, 1988, p. 36.
7 ALENCASTRO, 1988, p. 36.
8 Ver: VITORINO, 2002.
9 Cf. RIBEIRO, 2002, p. 198.
0 AGCRJ, Códice 57.4.13
1 APERJ, Casa de Detenção, 4.
2 AGCRJ, Códice 44.1.27.
3 Eduardo Neves Moreira afirmou que essa era uma das associações, criadas no Rio de Janeiro no final
do século XIX e início do século XX, e que buscavam dar apoio e promover a união entre os
portugueses e seus descendentes. MOREIRA, 2006.
4 Estatuto da Sociedade União Beneficente e Protetora dos Cocheiros. Diário Oficial, novembro 1906.
5 Sobre as associações de trabalhadores no Rio de Janeiro no século XIX, ver: BATALHA, 1999.
6 AGCRJ, Códice 44.1.27.
7 AGCRJ, Códice 44.1.27.
8 CHALHOUB, 1988, p. 20.
9 KARASCH, 2000, p. 472.
0 Ver, por exemplo: LUCCOCK, 1942, p. 74; DEBRET, 1978, p. 238.
1 SILVA, 1998, p. 121.
2 ALENCASTRO, 1988, p. 43.
3 Idem, Ibidem, p. 43.
4 Cf. SOARES, 1998, p. 110.
5 Cf. ALENCASTRO, 1988, p. 41.
6 APERJ, Casa de Detenção, 07.
7 AGCRJ, Códice 57.4.3
8 AGCRJ, Códice 6.1.45
9 AGCRJ, Códice 6.1.43.
0 SOARES, 1998, p. 141.
1 Cf. FARIA, 2004, p. 90.
2 Soares afirmou que é possível que os trabalhadores brancos rejeitassem as atividades do transporte de
carga, em que eles seriam facilmente nivelados aos trabalhadores escravos. SOARES, 1998, p. 161.
O que talvez precisasse ficar mais explícito é que era transporte manual de cargas.
3 O Dr. Antonio Corrêa de Sousa Costa expôs, em 1865, que os cativos “entregam-se a um grande
número de profissões e estabelecem deste modo uma triste e desanimadora concorrência com o
trabalho livre. Há entretanto certas profissões em que se encontra um maior numero de escravos;
assim entre os criados, os carregadores de fardos, os cozinheiros, lavadeiros, calceteiros, lavradores,
etc., existe um numero considerável de escravos.” COSTA, 1865, p. 30.
4 KARASCH, 1975, pp. 377-378.
5 Jornal do Commercio, 3/5/1872. Érika Bastos Arantes também analisou o mesmo conflito no artigo
“Pretos, brancos, amarelos e vermelhos. Conflitos e solidariedades no porto do Rio de Janeiro”,
presente nessa mesma coletânea. A autora propôs que mais do que um conflito baseado em questões
étnicas, que opõe pretos e brancos, os pretos ganhadores estariam se opondo principalmente à
contratação de “fura-greves”.
6 No caso da disputa relatada pelo jornal, a contratação dos trabalhadores não diminuiu a féria, mas
representou uma barreira para que os negros conseguissem alcançar o objetivo de sua paralisação,
que era justamente um aumento.
7 Cf. CRUZ, 2000, p. 269.
8 APERJ, Casa de Detenção, 05
9 Érika Bastos Arantes informou que, tendo em vista que a população negra diminuiu cada vez mais,
seria possível concluir que “os brancos tivessem substituído os negros nos diversos ramos do
mercado de trabalho carioca”. No porto, no entanto, isso não teria ocorrido de forma tão intensa e os
negros continuaram tendo uma presença forte naquele espaço. ARANTES, 2000, p. 27. É importante
lembrarmos que o carregamento manual de mercadorias era uma função importante desempenhada
na área do porto. Segundo Ribeyrolles, por volta de 1860, eram os “pretos de ganho” que
trabalhavam como estivadores, fazendo este serviço entre os armazéns e o porto e carregando e
descarregando navios. RIBEYROLLES, 1975, p. 204.
0 Como apontou o conflito entre os carregadores negros e brancos relatado no Jornal do Commercio,
3/5/1872, citado anteriormente.
1 CRUZ, 2000, p. 274.
ESCRAVIZADOS MORALMENTE LUTAM
CONTRA A ESCRAVIDÃO DE FATO: OS
TRABALHADORES LIVRES E A LUTA PELA
ABOLIÇÃO NO RIO DE JANEIRO NOS FINS
DO SÉCULO XIX
Rafael Maul de Carvalho Costa
“Liberdade – essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!”
Cecília Meireles – Trecho de Romanceiro da Inconfidência.
A liberdade como sentimento pode ser inexplicável como na bela poesia
de Cecília Meireles, mas quando voltamos o olhar para uma situação social
concreta, seja o movimento mineiro do século XVIII, os dias atuais, ou os
movimentos pela libertação dos escravizados no século XIX, a liberdade se
define em cada um destes momentos, em cada pessoa e em cada grupo que
luta por ela. Mesmo que essas definições estejam repletas de contradições,
elas refletem a necessidade de transformação vivida por seres humanos
determinados, de acordo com suas experiências de vida.

I
O objetivo deste artigo é abrir uma discussão sobre a participação de
trabalhadores urbanos assalariados no processo de Abolição da Escravatura
no Brasil, tomando como base a experiência da cidade do Rio de Janeiro.
Considerando o processo em questão como um movimento histórico
composto por diversos movimentos sociais, grande parte das vezes inter-
relacionados, o foco da análise está na atuação de um segmento que
costuma ser visto apenas de maneira periférica quando se trata do debate
em torno da Abolição. Os diversos grupos sociais que se articulavam neste
movimento apresentavam interesses e efetuavam ações muitas vezes
contraditórias, evidenciando suas diferenças e marcando as relações
estabelecidas por eles. Em meio às ações organizadas por escravizados192 e
libertos, bem como por setores médios urbanos, o debate parlamentar cada
vez mais pautava a necessidade da Abolição. Crescia na cidade o número de
trabalhadores assalariados – nacionais e estrangeiros – que não estavam
alheios à movimentação que acontecia pelas ruas da Corte imperial. De
fato, veremos como estes trabalhadores – ou, pelo menos, uma parte
organizada deles – estavam relacionados com outro193 s grupos nesse
movimento histórico.
Um movimento que toma corpo a partir da década de 1870, porém, as
origens de sua formação remontam às décadas anteriores e nos ajudam a
compreendê-lo. Dessa forma, as lutas com o objetivo de alcançar a
libertação dos escravizados são anteriores ao marco parlamentar defendido
por Joaquim Nabuco, com o discurso de Jerônimo Sodré,e envolvem
setores sociais não contemplados em sua abordagem do movimento.
Ao discutirmos sobre esses trabalhadores assalariados, devemos levar
em conta também a existência da exploração do trabalho compulsório não
escravo, de outros “livres”. Sabemos da larga utilização deste modo de
exploração nos casos dos africanos livres, dos imigrantes europeus (os
“engajados”) e asiáticos. Marcelo Badaró Mattos chama a atenção para o
fato de que, apesar de ser mais comum no campo, também encontraremos
tais formas de exploração do trabalho na cidade, além do retorno ao espaço
urbano de aqueles que conseguiam cumprir o tempo de trabalho na área
rural.194 Não seria de se espantar se encontrássemos alguma pessoa antes
submetida à escravidão ou a outras formas de trabalho compulsório entre os
assalariados que iremos pesquisar.

II
A segunda metade do século XIX é um período de profundas
transformações na sociedade brasileira, que alteraram a dinâmica da cidade
em questão – com grandes fluxos migratórios, tanto de trabalhadores livres
quanto de escravos, tanto de brasileiros quanto de estrangeiros. Um período
em que o trabalho assalariado vivia em contato constante com o trabalho
compulsório, e estes trabalhadores, sujeitos de maneiras diversas à
exploração, se relacionavam entre si, com seus patrões e com o Estado,
definindo e redefinindo suas identidades e suas formas de ação.
Soares195 nos mostra que os escravos de ganho constituíam uma
importante parcela da mão de obra disponível na cidade, mesmo após o
processo de venda maciça de escravos para a região cafeeira no período
posterior a 1850, com a abolição do tráfico atlântico. A segunda metade do
século XIX realmente assiste a uma grande diminuição do contingente de
mão de obra escravizada na cidade, porém esta diminuição não tira a
importância da presença constante de trabalhadores escravizados que
exerciam as mais diversas atividades, desde o trabalho nas indústrias,
passando pelos ofícios praticados nas ruas, até o trabalho doméstico,
sempre bastante presente. Grande parte dessas atividades era executada por
escravos de ganho, que tinham uma significativa proximidade da
experiência de trabalho com outros trabalhadores urbanos, dadas as suas
características nas relações de trabalho com os senhores e a sua mobilidade
na cidade.
Assim como o peso da experiência da escravidão não se faria sentir
somente pela pessoa escravizada, a proximidade da experiência do trabalho
assalariado também era sentida pelos escravizados que não estavam ao
ganho, mesmo que de uma maneira menos incisiva. Antes de passarmos à
discussão central deste artigo é importante apresentarum panorama do que
entendemos por organizações de trabalhadores no século XIX e suas
relações com o processo de Abolição da Escravatura.
Entre as organizações que lutaram diretamente pela liberdade figuram as
sociedades de emancipação e abolicionistas, as sociedades positivistas –
todas estas legalmente reconhecidas –, e aquelas que tinham uma existência
mais clandestina, como a organização de padeiros, liderada por João de
Matos,196 os quilombos197 e os zungús.198 Quilombos e zungús podem não
ser organizações abolicionistas formais, mas cotidianamente travavam a
luta contra a escravidão, e são assim considerados por se apresentarem
como alternativas de organização para a liberdade dos trabalhadores
escravizados. Se em alguns casos a luta podia não ser exatamente contra a
escravidão em si, sem dúvida era contra a forma como esta se expressava
em seus locais de trabalho específicos. Existiam também organizações que
caminhavam à margem da lei, mas contavam com o apoio de militantes que
permaneciam na frente de luta legal, como é o caso do quilombo
abolicionista do Leblon, estudado por Eduardo Silva.199 Por fim, é
necessário citar a existência de organizações como a Sociedade Beneficente
Socorro Mútuo dos Homens de Cor, criadas nos moldes das associações
mutuais de assalariados, que tinham a pretensão (frustrada) de serem
reconhecidas pelo Conselho de Estado.200
Entre as organizações que não tinham a luta contra a escravidão como
centro de sua existência figuram principalmente as sociedades mutuais de
trabalhadores assalariados, que se expressavam de maneiras diversas ante a
exploração do trabalho escravizado, e com o avançar do século, em vários
casos documentados,201 se posicionavam e agiam mais claramente e
incisivamente a fim de influenciar no processo de Abolição. A partir das
lutas dessas organizações podemos indagar com mais veemência sobre a
experiência de trabalho não só nas ruas, mas também no interior das
fábricas, oficinas e demais locais de trabalho. Sabemos que o
compartilhamento desses espaços por escravizados e não escravizados foi
decrescendo ao longo de toda a segunda metade do século XIX, mas não
devemos supor a partir deste fato que a percepção da experiência comum e
da necessidade da Abolição também decresceu, ao contrário, é possível
supor que os trabalhadores livres destes estabelecimentos (e também os
libertos) agregaram suas experiências ao movimento em prol da Abolição, e
não somente aderiram aos programas de outros grupos sociais.

III
A visualização do compartilhamento de experiências entre trabalhadores
escravizados e livres é fundamental para a compreensão da formação da
classe trabalhadora carioca. É através da experiência da luta de classes que
são forjadas as concepções de liberdade, e a forma como essa ideia é tratada
na prática transforma, dialeticamente, a experiência da ação política desses
seres humanos.
Mesmo que não estejamos tratando aqui da formação da classe, estamos
sim nos debruçando sobre uma experiência de luta de classes, cujos
antagonismos estão inseridos na estrutura de uma sociedade específica em
um período histórico determinado. O antagonismo fundamental por nós
enfocado, liberdade e escravidão, foi, como sabemos, superado, entretanto,
a experiência de luta que possibilitou esta superação não desapareceu de
uma hora para a outra e, portanto, influenciou na sociedade posteriormente,
em suas novas experiências e na configuração das lutas e dos novos
antagonismos. Este processo pode ter aproximado sujeitos não tão próximos
anteriormente, e separado outros que lutavam na mesma trincheira décadas
antes. Os significados de liberdade certamente se transformaram após o fim
desta etapa de luta que nos propomos a analisar.
Assim como tomamos emprestado o conceito de experiência do
historiador inglês E. P. Thompson, entendemos classe enquanto uma
categoria histórica, em convergência com a afirmação do mesmo autor de
que:
[...] as classes não existem como entidades separadas, que olham ao redor, e encontram uma
classe inimiga e começam a lutar. Pelo contrário, as pessoas se encontram em uma
sociedade estruturada em modos determinados (crucialmente, mas não exclusivamente, em
relações de produção), experimentam a exploração (ou a necessidade de manter o poder
sobre os explorados), identificam pontos de interesses antagônicos, começam a lutar por
essas questões e no processo de luta se descobrem como classe, e chegam a conhecer este
descobrimento como consciência de classe. A classe e a consciência de classe são sempre as
últimas, não as primeiras, fases do processo histórico real.202
Devemos procurar saber que espaço na sociedade ocupavam os agentes
organizados na luta contra a escravidão, entre os trabalhadores livres
principalmente, saber que trabalhadores eram esses. Em se tratando de uma
sociedade ainda escravista, em que a classe trabalhadora ainda não se define
claramente, se torna imprescindível a retomada da noção de luta de classes
como antecedente da própria formação da classe. Sendo assim, estamos
certos de que no momento tratado não estamos nos deparando com uma
cultura e com instituições de classe que se colocam de forma “madura”
como antagônicas a outra classe. Entretanto, estamos observando um
momento que vai ser decisivo para a formação da classe, até mesmo no que
diz respeito às posteriores lutas por hegemonia.

IV
A procura dos indícios do compartilhamento de experiências e projetos
entre os trabalhadores do século XIX deve ser articulada nos diversos
espaços ocupados por eles na cidade – locais de trabalho, ruas, e
moradias.203 Ao que me parece, Lobo e Stotz204 tendem a separar a vida
associativa da vida das ruas, como se as determinações estatutárias (que
tinham limites legais) explicitassem as visões que os trabalhadores
organizados em sociedades mutuais tinham do mundo. Entretanto, é
possível imaginar os membros de associações participando dos
ajuntamentos de ruas, das sociedades carnavalescas etc. Afinal, sem dúvida
compartilhavam espaços de sociabilidade comuns. Érika Arantes205 chama a
atenção, por exemplo, para diversos elementos ligados ao trabalho no porto
e às folias portuárias no início do século XX, todos, portanto, trabalhadores
nascidos durante o século XIX. No período de que tratamos, os
trabalhadores em padarias organizavam fugas de escravizados escondidos
sob a fachada de um curso de dança, para burlarem a repressão.206 Para
casos no Rio Grande do Sul (Pelotas e Rio Grande, mais especificamente),
Beatriz Loner nos aponta diversas articulações entre sociedades teatrais,
musicais, carnavalescas e associações de trabalhadores no período logo
posterior à Abolição.207
Os artesãos empurrados para a miséria nivelavam-se à massa dos
chamados “desocupados”, como mulheres que se entregavam à prostituição,
ao furto, os vendedores de diversos produtos nas ruas e os trabalhadores
escravizados de ganho, que também podiam ser empregados nas indústrias,
nos comércios e nos transportes. Estes escravizados conviviam no mesmo
espaço de trabalho com trabalhadores livres, e o preço dos aluguéis
daqueles também parece constituir um importante aspecto na fixação dos
salários dos demais trabalhadores. Como Wissenbach aponta:
Internamente ao grupo escravo, as práticas do ganho e do aluguel equiparavam, em
determinados sentidos, a vida e o trabalho de grande parte dos que se encontravam sob a
experiência citadina, reduzindo distinções. Estendiam-se das funções braçais aos trabalhos
semi-qualificados [...] e envolviam, da mesma forma, os escravos habilitados [...].
Acolhiam numa experiência comum os domésticos, os artesãos, tropeiros e cocheiros,
colocando-os num mesmo espaço social e, especialmente, introduzindo mediações similares
nas relações que mantinham com os senhores.208
Enquanto o número de escravizados decrescia – seja por deslocamento
da mão de obra, mortalidade, ou processos vitoriosos de luta pela liberdade
(fugas e alforrias, entre outros) –, a cidade passava por um processo de
mudança na composição de sua força de trabalho, com a chegada de
migrantes estrangeiros e de outras províncias do país. A partir dos anos
1870, mesmo com o incremento nos transportes que nos aponta Abreu,209 as
freguesias urbanas tenderam a inchar com os trabalhadores – fossem
escravizados, libertos, ou livres, nacionais e estrangeiros – que procuravam
moradias próximas aos locais de trabalho (sem contar com aqueles que
dormiam no próprio estabelecimento de trabalho). Estes locais eram os
famosos cortiços, casas de cômodos, de dormida ou de habitação,
hospedarias, estalagens e zungús.210
O aumento da população moradora de cortiços e o aumento do número
de cortiços ou de quartos alugados acompanham também o aumento da
população da cidade, e da concentração desta população nas freguesias
centrais. A densidade demográfica domiciliar na cidade aumenta de 5,71
pessoas por unidade, em 1870, para 7,21 em 1890. Esses dados gerais, no
entanto, se tornam mais elevados se considerarmos apenas as freguesias da
Cidade Velha e da Cidade Nova. Fazendo uma média da densidade
domiciliar nestas freguesias, encontraremos um aumento de 5,49 pessoas
para 8,40 entre os anos de 1870 e 1890. Isto ocorre dá em um período em
que houve grande aumento no número de domicílios, excetuando-se as
freguesias da Candelária – que foi onde ocorreu o maior aumento de
densidade domiciliar – e do Sacramento, que tiveram seus domicílios
reduzidos. Em todo o Município Neutro o número de domicílios aumentou
de 41.200 para 71.807, ou seja, em 74,3%. Nas freguesias priorizadas aqui
este aumento foi de 47,3%, passando de 29.382 para 43.283. Há de se levar
em conta que este é um período de grande expansão para as freguesias
rurais, mas principalmente para aquelas dos chamados arrabaldes, próximas
às freguesias centrais. Em números absolutos, a região central deixou de
concentrar aproximadamente 71% dos domicílios de 1870, para, em 1890,
concentrar aproximadamente 60%.211
É nesta conjuntura que veremos como os posicionamentos dos
trabalhadores não escravizados e de suas organizações ante o trabalho
escravo eram variados. Entretanto, apesar desta variedade, observa-se um
movimento ao longo de todo o período na direção de uma atitude mais
uniforme em relação à necessidade de abolição.

V
Uma visão inicialmente corrente era que o trabalho escravo era nocivo,
por rebaixar os preços dos salários, e assim a necessidade do fim da
escravidão dar-se-ia mais por uma questão econômica, que por qualquer
tipo de solidariedade entre trabalhadores, ou ideais de sociedade. Batalha
argumenta que esta visão fazia mais sentido em relação à primeira metade
do século XIX, e que seria menos significativa para a segunda
quando, além de um decréscimo da escravidão urbana e dos escravos de ganho, há um
crescimento – particularmente a partir da década de 1870 – das associações mutualistas
operárias, o que leva a crer que o número desses trabalhadores livres estava em progressão
e/ou que elementos de uma identidade coletiva haviam se fortalecido.212
Em 1867 o jornal O Typographo apresentava posicionamentos sobre o
problema do problema do trabalho, fazendo diversas comparações entre os
trabalhadores livres e os escravizados, algumas delas com o sentido de
desqualificar a capacidade destes de exercerem as mesmas funções que os
demais tipógrafos. Perguntava-se, e apresentava-se logo em seguida a
resposta sobre as qualidades necessárias para o exercício desta profissão:
“Dar-se-á estes predicados em todo e qualquer indivíduo? Um africano, por
exemplo, poderia jamais ser um bom tipógrafo? Não julgamos isso fácil,
nem mesmo possível”.213 Nesse momento, portanto, há tipógrafos que
estavam preocupados com a defesa de seus interesses em contraposição aos
africanos, e não na formulação de uma proposta de abolição. No entanto,
confirmando a análise de Batalha, os mesmos tipógrafos, que se
organizavam na Associação Tipográfica Fluminense, mais tarde fundarão o
Club Abolicionista Gutemberg em 1880, e estarão presentes em outras
sociedades que também faziam coro a favor da libertação dos escravos, com
argumentos políticos e humanitários. O Clube Gutemberg, segundo Artur
Vitorino,214 atuou de maneira bastante significativa no movimento
abolicionista, editando o jornal Lincoln, entregando “cartas de liberdade”, e
organizando uma escola noturna e gratuita que contava com alunos de
diversas profissões e nacionalidades. Este clube expressava a força de um
posicionamento que vinha sendo debatido no interior da categoria dos
tipógrafos pelo menos desde a fundação da Tipográfica Fluminense. Ainda
segundo Vitorino:
Apesar de alguns tipógrafos apresentarem publicamente o seu desprezo pelas atividades não
qualificadas dos trabalhadores manuais livres, outros tipógrafos participaram da campanha
abolicionista, visando à valorização da figura do trabalhador na formação social
brasileira.215
Voltando ao final da década de 1860, podemos perceber uma das origens
possíveis da estruturação de uma ideia abolicionista entre os tipógrafos.
Trata-se das comparações das experiências de vida e produção em que eles
se perguntavam sobre o sofrimento de um escravizado de fato, e de um
autodenominado “trabalhador escravizado moralmente”, como na seguinte
passagem, publicada na edição anterior do mesmo jornal:
Quem sofrerá mais: o escravo que sempre se achou sob a influência dessa condição anti-
humana desde o seu nascimento até a idade da reflexão, ou a criatura livre desde que [...]
tendo atravessado os dias da infância na posse de gosos inefáveis, aos quais já se achava
familiarizado, vê-se de súbito peado em suas ações, sofrendo a pressão de um cativeiro
moral que a desmarcada cobiça muitas vezes lhe impõe.
Necessariamente o segundo está colocado num vértice de tormentas mais terrível do que o
primeiro [...].216
As condições de vida e trabalho dos trabalhadores assalariados na
cidade os aproximavam das condições daqueles que eram escravizados. Se
em um momento percebe-se um tom desqualificador não só do trabalho,
mas dos trabalhadores escravizados, é a própria percepção das condições de
vida que aproxima-los-á na luta pela Abolição. Por meio da elaboração da
ideia de trabalhador escravizado moralmente se desenvolve parte da luta
pelas melhores condições de vida, e consequentemente pelo fim da própria
escravidão de fato.
Acredito que exatamente nestas comparações reside uma das origens,
mesmo que contraditórias, tanto da defesa da causa abolicionista entre
aqueles que não eram escravizados, quanto do processo de formação de
uma consciência de classe que pudesse comportar todas essas experiências
de vida e luta na cidade do Rio de Janeiro. Não há dúvidas de que era
preciso lutar contra a escravização, mesmo que em um primeiro momento
fosse contra aquela qualificada como moral, afinal foi para isso que a
categoria dos tipógrafos se organizou e criou seu órgão de imprensa:
A criação do Typographo, devida a uma infinidade de homens que moralmente vivem
escravizados, não tem outro fim além do de demonstrar com toda evidência os fatos de
requintada iniquidade que se repetem incessantemente no recinto do edifício das folhas
diárias.217
E essa linguagem não era mera metáfora, ela se fazia sentir na pele, na
experiência comum que esses trabalhadores viviam em relação àqueles que
estavam de fato escravizados. Talvez para os tipógrafos a aproximação das
condições de trabalho com a escravidão fosse ainda mais dolorosa, uma vez
que, como vimos anteriormente, eram poucos os trabalhadores que
dominavam a leitura e a escrita, habilidade esta que os tipógrafos deveriam
ter.218 É na luta pelos seus interesses que a questão da escravidão se torna
inevitável para todos os trabalhadores do século XIX. Se esta questão não
está explícita em muitos dos estatutos de sociedades, ela é ainda assim
importante, e certamente estava presente na vida dos associados.
Ao que parece, reconheciam também que seus “superiores” não estavam
ao menos habilitados para escrever sobre as desumanidades da escravidão,
uma vez que submetiam seus empregados a situações de igual sofrimento,
questões estas ditas sem meias palavras no mesmo artigo que acabamos de
citar:
Quem estudar com severidade a linguagem dos redatores desses jornais e acompanhá-los
em suas cantilenas diárias, entrará no conhecimento de que apregoam a liberdade
continuando a escravidão: estarão eles por ventura habilitados para escrever sobre ela?219
Em O Typographo número 5 encontraremos uma chamada para que
todos os trabalhadores, que vivem em condições de miséria, se unam contra
o mal comum. Os tipógrafos se mostram como uma das categorias que
tinham, ou poderiam ter, as melhores condições de vida, e se reconheciam
como artistas assim como diversas outras categorias, e como artistas,
portanto, lutariam contra o estado de miséria. Neste artigo, sobre as artes no
Brasil, eles afirmavam:
[...] O carpinteiro, o sapateiro, o alfaiate e outros vivem quase na miséria.
A arte tipográfica, uma das que dispõe de suficientes recursos para colocar-se no grau
elevadíssimo de prosperidade, acha-se imersa no mais profundo pelago de aniquilamento, e
os seus filhos entregues ao estado contristador de desolamento.
[...] O tipógrafo, criado nessa conjuntura, sob a influência de idéias puras, com o fim de
advogar os interesses da arte tipográfica, não abandonará com tudo as demais artes que
com ela sofrem” [grifo meu].
[...] Os tipógrafos são artistas, os artistas formam uma importante fração do povo; reunidos
poderão formar o poder, esse apanagio da inteligência e da riqueza social.220
Já no final da década de 1870, a Imperial Associação Tipográfica
Fluminense contribuía para a campanha abolicionista, promovendo, por
exemplo, uma conferência em 1879, com Vicente de Souza, intitulada “O
Império e a Escravidão; o Parlamento e a Pena de Morte”.221 Vicente de
Souza é um dos personagens que estão presentes em mais de uma das
organizações do período, tendo sido também um dos membros do Corpo
Consultor da União Operária.
Em documento de 30 de janeiro de 1889, a mesma sociedade concede ao
imperador D. Pedro II um brinde em consideração ao “completo
restabelecimento da saúde d’aquele seu augusto protetor”. Uma comissão
de três membros da associação entrega o brinde, que é um “quadro gráfico e
artístico em que se acha transcrita a Lei Áurea de 13 de maio firmada pela
Princesa Imperial a quem o povo em seu justo entusiasmo saudou – Izabel a
Redentora.”222
O Corpo Coletivo União Operária parece ter sido uma sociedade muito
bem articulada, sendo composta (assim como a Liga Operária de 1872223)
por trabalhadores de diversos ofícios, e contribuindo para a formulação de
projetos de montepios para algumas categorias, como uma das maneiras de
realizar o objetivo de tratar dos interesses gerais da classe operária. É assim
que, em 1883, esta organização leva em frente a confecção do projeto de
montepio dos operários do Arsenal de Guerra da Corte.224 A confecção do
montepio do Arsenal de Guerra não é a primeira realizada pelo Corpo
Coletivo, pois, um ano antes, logo que formado, ele tratou de organizar o
“monte de pensões” dos operários do Arsenal de Marinha, existente desde a
década de1870.225 A organização deste “monte de pensões”, que passou a se
chamar formalmente montepio, partiu dos operários do Arsenal de Marinha
que faziam parte do Corpo Coletivo União Operária.
Sobre a relação entre a União Operária e a Liga Operária acho
importante chamar a atenção para as pistas que nos são dadas pela figura do
jornalista Octaviano Hudson. Este participou ativamente da formação do
Corpo Coletivo em 1882, tendo sido convidado para colaborar em seu
jornal, a Gazeta dos Operários, “em [honra dos] importantes serviços
prestados à classe pelo mesmo cavalheiro”.226 Ele era o idealizador da Liga
Operária227 em 1872, e nesse mesmo ano lia uma carta, que suscitava grande
entusiasmo entre os presentes na assembleia da Liga, dirigida ao presidente
da Associação Tipográfica Fluminense, e estampada no periódico Tribuna
Artística.228 O presidente da primeira reunião da Liga deixava expressa a
intenção de se diferenciar de vertentes de pensamento, como o socialismo,
afirmando que era preciso ter uma associação que garantisse “a vida dos
artistas isenta da política e dos atuais fins da internacional”.229
Até aqui já foi possível perceber como o Corpo Coletivo União Operária
se articulava entre os trabalhadores, mas também, ao mesmo tempo, tinha a
sua expressão marcada pela presença de elementos de outras classes e suas
ações voltadas mais para o objetivo de construir uma nação dignificada pelo
“trabalho livre”, do que voltada para o confronto entre trabalhadores e
patrões. Este aspecto talvez fique mais evidente em 1886, quando a União
Operária realizou uma come- moração pelo aniversário da independência do
Império. Nesta comemoração transparece a relação mais íntima da
associação com o Estado Imperial e com os trabalhadores de órgãos
militares, uma vez que estavam presentes membros do Arsenal de Guerra,
do Corpo de Polícia da Corte, do Batalhão de Engenheiros, da Escola
Militar, e do Arsenal de Marinha, todos com suas bandas executando
óperas. Os grandes homenageados nesta ocasião eram, sem causar espanto,
o Imperador, a Imperatriz e a Princesa, aos quais foram dedicadas
saudações e poesias pelo sócio Octaviano Hudson,230 e pelo operário do
Arsenal de Marinha da Corte, Manoel Benevuto de Lima. Naquele ano o
presidente era um senador, Manoel Francisco Correia, e o orador que
proferiu o discurso oficial foi o conselheiro de Estado e senador João Lins
Vieira Cansansão de Sinimbú. Por fim, para afirmar o objetivo de
dignificação do trabalho, uma poesia foi distribuída aos presentes, intitulada
“Deus – Trabalho – Patriotismo”. Um dos importantes membros da União
Operária era o engenheiro negro André Rebouças, que seria um dos
membros da Comissão Executiva da Confederação Abolicionista em 1883.
O comprometimento com a causa abolicionista em fins do século XIX
parecia ser o tom geral destas organizações, até onde pudemos perceber.
Mais um exemplo disto se encontra nas páginas do jornal O Abolicionista
de 28 de setembro de 1881, que relata a decisão de mestres e operários das
oficinas de fundição e de ferreiros do Arsenal de Marinha de fazer uma
contribuição mensal a ser entregue para a “Sociedade Emancipadora.”231 A
presença de Rebouças tanto na União Operária quanto na Confederação
Abolicionista é mais um indício que nos permite afirmar a participação de
trabalhadores assalariados, organizados, no movimento abolicionista,
formando ou incentivando associações com este caráter, e organizando
eventos para discutir o tema. Não que o próprio Rebouças seja um desses
trabalhadores, mas assim como seu nome se evidencia em uma associação,
não me parece plausível que os anônimos desta também não
compartilhassem os interesses da outra, demonstrando a provável
importância das organizações de trabalhadores também no interior de
associações abolicionistas. Se reforça ainda a ideia de uma forte articulação
de setores dos trabalhadores com outros membros da sociedade imperial.
Evaristo de Moraes relata da seguinte maneira a formação da
Confederação Abolicionista em 1883:
Tendo se multiplicado, em três anos, as sociedades abolicionistas, cogitou-se em consagrá-
las numa confederação e para este fim reuniram os representantes de algumas delas, a 10 de
maio de 1883, na redação da Gazeta da Tarde.
... Desde então foi a campanha popular dirigida pela Confederação, que promovia, a bem do
abolicionismo, conferências, quermesses, espetáculos teatrais, concertos. Pleiteava
constantemente as causas dos cativos perante a administração pública e os tribunais.232
Esta mesma confederação, que promovia tantas ações pela Abolição
pelos caminhos legais, era também conhecida por suas ações “extralegais”,
que eram protegidas por uma ampla rede de relações entre abolicionistas
membros dos setores médios e até mesmo dominantes da cidade. Evaristo
de Moraes uma vez mais relata algumas características dessas ações:
Não menos intensa era a sua atividade extralegal, que se manifestava por várias formas:
retirando escravos maltratados das casas dos seus senhores e pondo-os em lugares seguros;
recebendo no Rio os lhe eram enviados do Norte, escapos clandestinamente ao cativeiro;
remetendo para o Norte os que não podiam, por nenhum meio, ficar aqui ocultos. ...)
conheciam-se as autoridades que toleravam esses e outras investidas contra a propriedade
escrava.233
Uma das atividades extralegais da confederação foi a formação de
“quilombos abolicionistas”, uma forma totalmente particular de
comunidade de escravos fugidos, que se inseria no movimento abolicionista
que estava se espraiando pelos setores médios da sociedade. Esta forma de
ação foi estudada pelo historiador Eduardo Silva, ao tratar de um dos
principais quilombos sustentados pela confederação, o quilombo do Leblon,
conhecido por cultivar a flor-símbolo do movimento abolicionista, as
camélias.234
Ao estudar esta “história secreta” do movimento abolicionista, Silva nos
coloca em contato com uma extensa rede de relações entre o “movimento
político abolicionista”, o “movimento social negro”, as fugas em massa e as
formações de quilombos. Essa rede ia além do quilombo centralmente
estudado por ele, sendo composta de diversos outros também apontados
pelo autor, sem sombra de dúvida imprimindo um novo quadro na luta pela
Abolição na Corte. Acredito que podemos, entretanto, avançar em alguns
aspectos apontados por Silva. O primeiro diz respeito à participação de
organizações de trabalhadores assalariados neste movimento, o que
alargaria a rede de relações para além dos comerciantes, capitalistas e
membros do “movimento político abolicionista”, trabalhados pelo autor.
Este aspecto muito nos interessa, e já fica sugerido pela participação de
membros das classes médias urbanas nos tipos de organização (o que
inclusive, apesar de camuflar possíveis conflitos, está em perfeita conjunção
com o discurso da harmonia do “corpo social”). Um segundo aspecto diz
respeito ao discurso de que esses eram quilombos abolicionistas,
historicamente novos, por ter um tipo de liderança que era “uma espécie de
instância de intermediações entre a comunidade de fugitivos e a sociedade
envolvente”.235 Eram evidentemente quilombos articulados a um
movimento abolicionista mais amplo, entretanto, não tinham os outros
quilombos e os chamados zungús o papel de intermediar os fugitivos com a
sociedade envolvente? Não podiam essas intermediações ser realizadas por
determinadas lideranças? Esta não é a discussão a que estamos nos
propondo no momento, entretanto, é importante ser pautada para que
conheçamos e reconheçamos os “movimentos abolicionistas” e as
articulações estabelecidas entre eles. No caso dos zungús, contudo, algumas
palavras ainda devem ser ditas.
As cidades portuárias como o Rio de Janeiro eram centros de
movimentação de produtos e pessoas, com intenso fluxo de trabalhadores
pobres, escravizados ou não, que se fixavam no meio urbano ou transitavam
por ele. Os zungús eram espécies de ocupações urbanas do século XIX em
que se encontravam diversos trabalhadores. Em sua maioria negros, alguns
eram escravizados, que estavam nos zungús por serem postos ao ganho, ou
também por estarem fugidos. Entre os fugidos havia uma rede de relações
que poderia mandar da cidade para o campo – longe do senhor que vivia na
cidade – ou receber aqueles vindos do campo, e acoitá-los enquanto
procuravam outro destino.236
Existiam, entretanto, aquelas organizações que tinham a luta pela
liberdade como sua bandeira principal. Dentre estas é preciso destacar a
Sociedade Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor.237 Aqui não se
trata de uma organização diretamente identificada com o trabalho – apesar
de seus membros terem feito questão de citar seus ofícios no requerimento
encaminhado ao Conselho de Estado –, mas ao que tudo indica encaramos
uma sociedade formada majoritariamente – e provavelmente
exclusivamente – por trabalhadores negros, pobres, livres, libertos e até
escravizados. Em 1873, nove membros da Sociedade dos Homens de Cor
estavam reunidos na freguesia de Santana, já nas proximidades da freguesia
do Espírito Santo, mais especificamente no número seis da Ladeira do
Senado, em Paula Matos, residência de um de seus sócios-instaladores,
Cândido Pedroso. O intuito desta reunião era a aprovação dos estatutos da
sociedade. Cândido Pedroso não era o único que morava na freguesia de
Santana, a mesma em que moravam alguns membros da Sociedade
Beneficente da Nação Conga “Amiga da Consciência”, que buscou registro
na mesma época.238
Entre os quatro membros que assinam como sendo instaladores temos
um artista e três cozinheiros. Carlos Eugênio L. Soares mostra que a
profissão mais disseminada entre os escravos presos era a de cozinheiro, e
não a de escravo ao ganho, apesar de a categoria mais forte entre os
escravos capoeiras ser “a dos artesãos, englobando um anel largo de
profissões, desde sapateiros a pedreiros (56%)”.239 Não se quer dizer com
isso que a Sociedade dos Homens de Cor era de capoeiras, mas esta é mais
uma pista para entendermos as experiências e identidades compartilhadas.
Na definição de seus fins, no artigo 2 do capítulo 1, os estatutos são um
tanto quanto vagos, afirmando que o fim da “Associação é promover tudo
quanto estiver a seu alcance em favor de seus membros”.240 Entretanto, a
Sociedade dos Homens de Cor deixava mais claras as suas concepções e
finalidades em outros artigos dos estatutos. No artigo 7 do capítulo 2,
tratando da admissão dos sócios, os estatutos permitem, no parágrafo 3o que
para ser sócio a pessoa deveria “ser livre, liberto, ou mesmo sujeito, de cor
preta, de um ou outro sexo”.241 Desta maneira a sociedade permitia
estatutariamente – pois extra oficialmente outras organizações certamente o
permitiam – a participação de cativos em seus quadros. Este fato ficava
mais evidente no momento em que a associação explicita os seus
verdadeiros objetivos. Assim, no capítulo 3, que trata dos deveres e direitos
dos sócios, de tratamento médico em caso de moléstias, de auxílio-funeral,
e de auxílio em caso de prisão, como nas demais associações, os estatutos
também anunciam no artigo 14 outro direito: “Os sócios sujeitos ganharão
da vantagem de entrar no sorteio [anual] para a libertação; e uma vez
libertos poderão exercer todos os cargos da Sociedade, para os quais,
enquanto naquela condição, não poderão ser nomeados ou eleitos.”242
E o artigo 44 estabelece que o sorteio seria feito nos aniversários de
instalação da sociedade, libertando “um sócio sujeito do sexo masculino e
outro do sexo feminino”.243 Para que se efetue o sorteio anual a sociedade
estabelece uma contribuição trimestral, além da mensalidade, destinada à
formação de um fundo com este fim exclusivo. Este fundo estava assim
definido pelo artigo 45: “Para recorrer a essas duas despesas, que não
podem ser inferiores a 2:000$000 rs, cada sócio contribuirá, de 3 em 3
meses, com uma jóia de 2$000 rs [...] as quais serão recolhidas a uma caixa
mensal.”244
Essa forma de organização, em que os escravos e negros livres se
cotizavam para propagar “ideias subversivas” nas áreas urbanas e rurais, ou,
como neste caso, para comprar a alforria de algum escravo, pode ser
herança, como nos aponta Costa e Silva, de “procedimentos cooperativos
tipicamente africanos e que tiveram ampla vigência no Brasil, como o esusu
iorubano”.245 A forma como os membros da Sociedade dos Homens de Cor
lutavam pela liberdade está em perfeita confluência com as afirmações de
Costa e Silva, quando nos diz que:
Semanalmente ou uma vez por mês, um grupo recolhia de cada um de seus membros uma
pequenina quantia de dinheiro e, quando essa quantia atingia o montante necessário,
entregava-a a um deles, escolhido por sorteio, para que adquirisse a liberdade. Os escravos
de um mesmo canto de trabalho, de uma mesma etnia ou de uma mesma fazenda podiam
contribuir regularmente para essa espécie de caixa de poupança, que os ia remindo um a
um.246
O Conselho de Estado, ao analisar o requerimento de legalização da
Sociedade, impediu que aquela fosse oficializada, de início com argumentos
comuns a outros pedidos indeferidos, mas logo depois apareceram as
“preocupações de ordem pública”. É claro que a presença de escravos na
associação, admitidos como sócios, é rejeitada em virtude das leis em vigor,
mas os conselheiros também combatem o fato de a associação ser formada
somente por homens de cor, argumentando da seguinte maneira:
Os homens de cor, livres, são no Império cidadãos que não formam classe separada, e
quando escravos não têm direito a associar-se. A Sociedade especial é pois dispensável e
pode trazer os inconvenientes da criação do antagonismo social e político: dispensável, por
que os homens de cor devem ter e de fato tem admissão nas Associações Nacionais, como é
seu direito e muito convém a harmonia e boas relações entre os brasileiros.247
Os conselheiros, que no mesmo dia tinham formulado o parecer sobre a
Associação da Nação Conga “Amiga da Consciência”, chamam a atenção
de que estas seriam as primeiras sociedades especiais deste tipo –
esquecendo-se curiosamente da Associação da Nação Conga que tentara
conseguir registro através do Conselho dez anos antes248 –, e que a
existência destas não seria em nada aconselhável. Com essa preocupação os
conselheiros fizeram a seguinte recomendação ao imperador:
A sabedoria do Governo Imperial decidirá, se convém ou não convém tomar conhecimento
reservado, por meio da Polícia, dos indivíduos que as promovem e das circunstâncias que
lhes dão causa: talvez unicamente esforços para viverem a custa dos incautos que se deixam
enganar.249
Tal conselho continuava com a mesma lógica da política, apontada por
Gomes, de mapeamento da cidade, quando as autoridades tentavam
“esquadrinhar em toda a cidade os focos que davam origem ao medo”.250
Sem dúvida, os negros dessas três associações, escravos ou não, estavam
lutando pela liberdade e pelo que julgavam ser seus direitos.
Não sabemos se continuou a existir clandestinamente, nem qual a
importância de sua extensão entre os trabalhadores cariocas do período, no
entanto ela constitui uma experiência singular e que acumula em si formas
de lutas diversas. O que nos parece inovador no caso da sociedade dos
Homens de Cor não é somente, portanto, o fato de ela ser organizada com
os objetivos citados, nem tampouco ser formada por negros escravizados e
livres que lutavam pelos seus interesses, e sim que eles agora lutavam
também para ter a sua organização reconhecida pelo governo imperial, e
com a estrutura já organizada conforme outras associações mutuais, o que
os aproximavam da experiência organizativa mais comum entre os
trabalhadores assalariados do período.
Existiam, por outro lado, organizações com estatutos racistas. Nenhuma
organização podia legalmente admitir sócios escravizados, e a cláusula que
dizia que todos os sócios tinham de ser de “condição livre” está presente em
todas elas. Entretanto, não existia barreira legal para a organização de
negros não escravizados, e a sociedade que desejasse colocar esse limite
tinha de expor isto em seus estatutos. É o que faz a Sociedade Beneficente
dos Artistas de São Cristóvão.251 Esta postura singular, tomada por uma
organização com 1.020 sócios, demonstra como nenhum outro documento a
que tivemos acesso, a existência do racismo entre os trabalhadores já em
1876. Esse racismo parece ter o objetivo de negar a proximidade com o
sujeito escravizado, já que a restrição era contra negros ou libertos de
qualquer cor. Batalha chama a atenção, no entanto, para o fato de que
associações com essa postura eram exceções, pois, no geral, não constava
discriminação racial nos estatutos.252
É possível perceber o discurso de uma certa unidade sendo elaborado
por organizações de trabalhadores ao longo do período, não sendo raras as
referências à necessidade de um programa comum e as tentativas (algumas
efetivadas) de formar associações com todas as categorias. Essa unidade,
entretanto, não levava sempre em conta os trabalhadores escravizados, e,
além disso, podia ter um caráter de unidade entre as classes (fragmentando
os trabalhadores por seus ofícios profissionais), e não da classe
trabalhadora. Um exemplo desse discurso está presente em um texto,
tratando da criação do Grande Centro Operário, que propunha uma
estrutura organizativa com unidades municipais e paroquiais (o corpo), e
com uma organização central (a cabeça).
Todo coletivo divide-se e subdivide-se em muitas outras classes; que não são mais que os
diversos membros de seu corpo, ligados pelas mesmas precisões, pelos mesmos direitos e
deveres; não há superiores nem inferiores, não há brancos nem negros, não há pequenos
nem grandes, não há nacionais nem estrangeiros, há sim cidadãos trabalhadores que se
devem mútuo respeito.
Pelo lado material, as classes são diversas, por isso que cada uma tem uma missão especial
a cumprir no exercício da vida, e nem se pode prescindir dessa diversidade que é a lei da
harmonia; [...] artistas ou operários, industrial ou mecânico, são todos iguais, na parte
concreta dos direitos hipotéticos ou positivos”.253
Esta unidade, apesar de pregar a igualdade entre brancos e negros, nem
sempre levava em conta o trabalhador escravizado. A unidade entre estes
trabalhadores, entretanto, está presente nas experiências comuns que eles
provavelmente viviam. Ao refletirem sobre suas condições de vida,
explicitam as proximidades de experiências, as mesmas condições de
moradia e de trabalho, reivindicando inclusive o fim de sua própria
escravidão, a escravidão moral. Em textos de protesto contra a importação
de produtos, ou a forma como eram tratados nas oficinas particulares e do
governo, os trabalhadores, já em 1867, diziam:
[...] O que é feito das artes? [...]
Um surdo murmúrio nos responderá...
Correi essas suntuosas ruas do Rio de Janeiro e procurai a casa dos artistas. Não a
encontrareis!
Procurai esses albergues em lugares retidos da cidade: aí o encontrareis rodeado de filhos e
da inconsolável esposa, cobertos de andrajos, implorando ao altíssimo os meios de haver o
pão para mitigar a fome e fazer calar o grito desordenado de seus filhos!254
A necessidade de se construir uma unidade com escravizados está mais
explícita em alguns discursos positivistas, importantes de serem frisados
por estarem presentes em organizações de trabalhadores, marcadamente o
Corpo Coletivo União Operária. As sociedades positivistas nas últimas
décadas do século XIX se afirmavam como as grandes defensoras do
abolicionismo, e voltavam seus discursos para a “inserção do proletariado
escravo”. É nesse espírito que a Sociedade Positivista do Rio de Janeiro
distribui, em 1883, um manifesto em que pregava a necessidade de acabar
com o “mais nefando dos cativeiros, o cativeiro em pleno regime
industrial.”255 O manifesto apresenta discursos de José Bonifácio e Miguel
Lemos, e é este último que vai frisar no projeto a necessidade de
assimilação dos escravizados à pátria como cidadãos livres.
Findo este ponto [abolição decretada], servirá ele de base para os artigos sucessivos do
decreto em que se assentarão os meios de assegurar a sorte dos novos cidadãos, facilitando
a sua livre assimilação à Pátria, à qual foram violentamente anexados por nossos
antepassados, e para cuja constituição têm concorrido com o trabalho e com o sangue.256
Em 1888, no momento de agonia da escravidão, Miguel Lemos e
Teixeira Mendes se apressam para escrever um outro manifesto, com os
objetivos de afirmar os positivistas como os verdadeiros e originais
abolicionistas, de primeira hora – contra os “abolicionistas de última hora”
–, e de pregar mais uma vez “a incorporação do proletariado na sociedade
moderna”.257 Os positivistas brasileiros se consideravam, através do
esclarecimento pela teoria de Augusto Comte, “os primeiros a proclamar a
superioridade afetiva do elemento africano”,258 acreditando que os
escravizados só aceitaram e suportaram a escravidão por serem
afetivamente superiores. E explicam o que consideravam por proletariado, e
como este deveria ser incorporado, agora já sem o jugo da escravidão: “o
proletariado, isto é, o conjunto dos pobres, constitui um dos elementos
normais do organismo coletivo. É fatal que a sociedade se compunha
sempre de ricos ou patrícios, em diminutíssimo número, e de pobres ou
proletários formando a grande massa”.259
É defendida, portanto, a ideia de que cada um tem o seu papel no
funcionamento do corpo social, tendo a mesma dignidade, como
“funcionários públicos”.
Os positivistas, entretanto, não eram os únicos que se reivindicavam
“abolicionistas de primeira hora”. A experiência dos padeiros relatada por
João de Mattos260 mostra uma luta iniciada em Santos, que passou por São
Paulo, e continuou no Rio de Janeiro, e que, antes da Abolição, libertou
diversos trabalhadores escravizados em padaria. Tanto no que diz respeito à
gênese de um movimento abolicionista, quanto sobre a questão de uma
possível unidade entre escravizados e assalariados, a prática dos padeiros é
fundamental para o aprofundamento deste estudo. Por meio desse relato
entramos em contato com um movimento muito importante para a
discussão da relação entre os trabalhadores urbanos, em três das mais
importantes cidades do Sudeste brasileiro.
João de Mattos relata que as ações do movimento dos padeiros de que
ele participou se iniciaram em 1876 com um levante abolicionista na cidade
de Santos. Dois anos depois o mesmo tipo de ação repetir-se-ia em São
Paulo. Com o mesmo intervalo de tempo ele chegaria à Corte em 1880 para
iniciar a sua organização, a qual agiria um ano depois com os mesmos
métodos já experimentados anteriormente; é essa atuação que nos interessa
e que será brevemente relatada agora.
Em 1880 é fundado o Bloco de Combate dos Empregados de Padaria,
com o lema “pelo Pão e pela Liberdade”. Na primeira reunião, realizada no
chafariz do Largo do Paço, na freguesia da Candelária, estiveram presentes
16 pessoas, e foi eleita por aclamação a diretoria do que era, segundo ele, a
única sociedade de classe de combate à escravidão até então. O próprio
João de Mattos era o seu diretor.
Como esta sociedade era obviamente ilegal e, portanto, clandestina, seus
membros encamparam o nome de Curso de Dança, e fizeram a sua segunda
reunião já na primeira sede, na rua da Conceição, no 28, na freguesia do
Sacramento. A freguesia do Sacramento era um dos principais terrenos em
que trabalhadores de diversas categorias se encontravam para se organizar e
lutar por seus objetivos. No que diz respeito às padarias esta era
provavelmente uma das freguesias mais bem supridas, se não era a que
tinha o maior número de estabelecimentos deste tipo.
O número de trabalhadores organizados no bloco de defesa foi
gradualmente crescendo, até que em 1881, no aniversário da sede, com 100
associados, eles realizaram o levante abolicionista. Seguiram todos os
escravizados em fuga por terra em direção a Barra do Piraí onde se
dispersaram. João voltou para a cidade e foi preso em função da delação de
um dos membros que foi pego pela polícia antes e que, segundo João,
vendeu-se por 100$000 que um escravocrata lhe deu.261 Após mais de três
meses preso, ele foi libertado pela ação judicial do famoso advogado
abolicionista Saldanha Marinho, o qual tratava como amigo.
João de Mattos e seus companheiros padeiros, entretanto, não deixaram
de militar após a assinatura da Lei áurea. Segundo o histórico que ele
escreve, 1888 foi o ano em que eles realizaram a maior vitória da sua luta
“ficando o caminho desentravado dos escravizados de fato”.262 A luta
continuou no final do século XIX e durante o início do XX, até pelo menos
o momento em que o documento foi escrito, com a formação de sociedades
de padeiros e a publicação de jornais. Nessa etapa a luta passava a ser, nas
palavras de João de Mattos, contra a escravatura que “era agora geral”,263
continuando os padeiros a trabalhar durante 16 e 18 horas consecutivas, dia
e noite.
Esta não era uma sociedade que procurava oficializar o seu modelo de
organização. No entanto, a forma mascarada que encontrou para funcionar
nos traz mais um exemplo de como os trabalhadores livres e escravizados
podiam esconder atrás de uma roupagem legal as suas atuações em verdade
clandestinas. Segundo João de Mattos, ainda em 1888 os trabalhadores nas
padarias estariam divididos entre 50% livres e 50% escravizados mais ou
menos, mesmo com a grande maioria dos trabalhadores na cidade já sendo
livres. Se em Santos, em 1876, existiam cinco padarias, e na São Paulo de
1877, 11 ou 12, no Rio de Janeiro de 1878 João de Mattos e seus quatro
companheiros padeiros fundadores do Bloco de Combate vão encontrar
uma cidade com 133 padarias. De 1878 até 1880, quando o número de
padarias já havia subido para 169 em toda a cidade, os cinco procuraram
organizar seus companheiros de trabalho da mesma forma que já havia sido
feito em Santos e em São Paulo.
Em sua viagem ao Brasil na primeira metade do século XIX, Debret faz
a prancha de uma padaria da Corte, onde figuram o dono e escravizador em
primeiro plano, e os trabalhadores escravizados trabalhando ao fundo. Por
esta ocasião o viajante francês relata que a indústria do pão, que antes era
pequena, sendo sua produção artigo de luxo, após a coroação do rei e com a
afluência de estrangeiros, principalmente franceses, cresceu enormemente,
passou a ser comércio lucrativo para os capitalistas, e abundante já em
1829.264 Em 1852, 30 anos antes da fundação do bloco de defesa, a
freguesia do Sacramento já tinha o maior número de padarias na cidade,
totalizando 21 entre as 97 que havia espalhadas pelo Rio – 80 delas nas
freguesias da Cidade Velha e da Cidade Nova. Neste ano, as padarias
representavam 25,93% das fábricas existentes na cidade.265 Sem dúvida em
30 anos muita coisa mudou, e os dados de 1852 não podem ser transferidos
para a análise de 1880. Entretanto, tendo em vista que nestes 30 anos o
número de padarias aumentou em 75%,266 acredito que seja possível supor
que o Sacramento continuasse a ser uma importante freguesia neste ramo da
indústria alimentícia. O fato de a primeira sede do bloco estar situada nesta
freguesia já nos dá uma pista da sua importância para esses trabalhadores.
O relato desse padeiro, além de nos permitir ver a dinâmica de um
movimento organizado de trabalhadores livres e escravos tendo como
objetivo primordial a luta pela Abolição, também nos permite saber as
razões que moviam estes trabalhadores. João e seus companheiros
acreditavam naquele momento – já que ao longo de sua narrativa, após a
Abolição eles tomam uma outra consciência do problema – que as
condições de vida dos trabalhadores assalariados só melhorariam com o fim
da escravidão. Para eles o fato de os escravizados não correrem o risco de
serem demitidos trazia grande instabilidade para os livres, impedindo o
caminho para as lutas pelas melhorias econômicas. Esse documento permite
também perceber a proximidade das relações de trabalho e das experiências
vividas por esses trabalhadores, que estavam claramente separados nas suas
condições de escravos ou livres. Segundo João, “Os patrões eram demais
carrascos e abusavam do seu poderio. Os empregados escravizados livres,
as prerrogativas eram as mesmas dos de fato, por qualquer coisa davam
supapos, pontapés, empurrões – pela porta afora. E apelar pra quem!”267
Essa organização, portanto, é um importante exemplo da capacidade e
das possibilidades organizativas de trabalhadores livres e escravizados na
segunda metade do século XIX. Estes padeiros, que trabalhavam em
péssimas condições em horários que varavam a madrugada, iam entregar
seus pães de manhã – ou melhor, os pães dos patrões – e assim
disseminavam suas idéias entre os demais trabalhadores escravizados da
cidade. Esses trabalhadores eram então, nas suas próprias palavras, os
“primitivos abolicionistas”,268 em um movimento que era organizado por
quem mais sabia da necessidade de alcançar este objetivo.

VI
É nessas condições que o conjunto desses trabalhadores vai-se ver
explorado de maneiras semelhantes, se não idênticas, sejam escravizados de
fato ou não, e vão assim procurar lutar contra a escravidão. Esta luta pode
se traduzir de diversas formas, como nas tentativas de organizações negras,
compostas por libertos ou escravizados, ou nas vertentes operárias do
abolicionismo. Todas elas compartilhando experiências até certo ponto
comuns.
Na medida em que a escravidão vai chegando ao final, os trabalhadores
da cidade, que já compartilhavam os mesmos espaços – e condições – de
trabalho e moradia, vão deixando de fato de ser divididos em escravizados e
livres, e entre os escravizados e seus descendentes a divisão étnica vai-se
tornando menor. Aqui se faz necessário o apontamento de um último
debate, tomando-se como referência trabalhos de Sidney Chalhoub e de
João José Reis.
Chalhoub, na tentativa de demonstrar que os cativos não assistiam
passivos aos acontecimentos, enfatiza a ação destes como sendo informada
a partir de “lógicas ou racionalidades próprias, [...] [com] movimentos [...]
sempre firmemente vinculados a experiências e tradições históricas
particulares e originais”.269 Esta concepção leva à conclusão de que os
escravos, por mais que estivessem influenciados pela sociedade em que
viviam, limitavam esta influência apenas à definição de suas estratégias de
luta “quando escolhiam buscar a liberdade dentro do campo de
possibilidades existente na própria instituição da escravidão [...]”.270 Nos
dizeres de Chalhoub se tornam impossíveis as políticas que tivessem, em
1871, a propensão de organizar o mercado de trabalho livre no Brasil a
longo prazo, ou negros com visões de liberdade que levassem em conta a
inclusão na sociedade de classes em formação.271 Não acredito que devamos
pensar as ações dos escravizados como simples tentativas de tornarem
trabalhadores assalariados, mas uma das possibilidades de liberdade
inscritas na sociedade dos fins do século XIX também é a transformação de
trabalhador escravizado para assalariado. A passagem de um regime de
mão-de-obra escravizada para um de mão-de-obra assalariada poderia, e
certamente estava, sendo percebida tanto pelos setores dominantes da
sociedade, quanto por trabalhadores assalariados e escravizados, uma vez
que as suas “aspirações eram válidas nos termos de sua própria
experiência”,272 e as experiências em fins do século XIX possibilitavam este
projeto.
O processo histórico do qual estamos tratando é repleto de contradições,
e uma delas se deve ao fato de que a transformação histórica que se
processa é projetada e defendida por alguns com base não apenas na ideia
de uma nova sociedade, mas sim na inserção em uma “civilização” já
existente, aquela que se vê consolidando no mesmo período na Europa, com
a generalização do trabalho assalariado. Neste ponto algumas disputas
ideológicas se tornam evidentes. A força da ideia do associativismo, do
positivismo, e dos discursos de harmonia nacional, de uma sociedade sem
conflitos, já aparecem claramente durante este processo.
Como nos aponta João José Reis, quando analisa o trabalho de rua em
Salvador, ao final da escravidão os trabalhadores passaram a ter uma
tendência classista, pois a identidade no trabalho comum passava a
predominar, “uma vez que a liberdade ajudou a nivelar, em alguma medida,
trabalhadores que anteriormente se dividiam na rua entre libertos e
escravos”.273
Entretanto, os conflitos de projeto presentes nas disputas pela Abolição
da escravatura no Brasil também traziam os termos pelos quais se gestaria o
Estado brasileiro após a queda do Império. As experiências vivenciadas
pelos trabalhadores neste processo de luta vão contribuir para as posteriores
lutas e organizações que se formarão. Estas lutas se apresentavam enquanto
disputas ideológicas, em sentido duplo, tanto como de inversão da
realidade, quanto “como as formas nas quais os homens tornam-se
conscientes dos conflitos surgidos das condições e das mudanças de
condição na produção econômica”.274
No caso da Corte imperial essas disputas de projeto de sociedade são
mais claramente apreendidas ao analisarmos alguns discursos de Joaquim
Nabuco. Em O Abolicionismo este parlamentar do Império afirma o que
para ele era a opinião dos abolicionistas, portanto daquilo que ele
considerava como adequado ao movimento abolicionista: “[...] os
abolicionistas, que querem conciliar todas as classes, e não indispor umas
contra as outras: que não pedem a emancipação tão somente no interesse do
escravo, mas do próprio senhor, e da sociedade toda [...]”.275
Analisando os discursos de Joaquim Nabuco, dos positivistas e a
composição de algumas das sociedades operárias, percebemos um
movimento de busca de um certo consenso, e até mesmo de preparo de um
consenso para a constituição da sociedade pós-Abolição.
Procuramos aqui, para além de entendermos a proximidade do
escravizado com o mundo do trabalho livre, compreender o papel dos
trabalhadores assalariados e de suas organizações no processo de luta contra
a escravidão, com todas as suas contradições e conflitos. Dessa forma,
propomos um novo ângulo de abordagem na análise das forças atuantes e
dos desdobramentos do abolicionismo no meio urbano no Rio de Janeiro, e
os possíveis reflexos deste processo na formação da classe trabalhadora
carioca.
O processo de Abolição trazia uma tensão fundamental para as futuras
definições de relação de trabalho e classe. Se, por um lado, trabalhadores
escravizados e livres se aproximavam pelo objetivo comum da libertação
dos primeiros e pela experiência de vida de ambos, por outro, uma ligação
com os setores dominantes da sociedade se forjava pelo interesse de a
Abolição ser também comum a muitos desses. Estas questões vão sem
dúvida influenciar o processo posterior de construção da dominação e a
nova dinâmica da luta de classes na sociedade brasileira.
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Annablume/FAPESP, 2000.
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e
sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.
WISSENBACH, Maria Cristina. Cortez Sonhos africanos, vivências
ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Ed.
Hucitec, 1998.

2 Sobre a discussão em torno da utilização do termo escravizado e não escravo, ver: CARBONI;
MAESTRI, 2003.
3 NABUCO, 1999, p. 171.
4 MATTOS, 2004.
5 SOARES, 1988.
6 DUARTE, 2002.
7 Ver por exemplo: AMANTINO, 1998; e GOMES, 2006.
8 SOARES, 1998.
9 SILVA, 2003.
0 Esta organização, assim como as duas da Nação Conga que veremos adiante, também foi estudada
por CHALHOUB, 2003, e no livro coletivo No labirinto das nações; FARIAS; SOARES; GOMES,
2005.
1 Ver MATTOS, 2008, pp. 149 e ss.
2 THOMPSON, 1979, p. 37.
3 Como bem sabemos a própria rua era (e ainda é) um importante local de trabalho; escravos de ganho,
quitandeiras e outros já foram bastante estudados por historiadores e descritos por viajantes. Sobre a
relação entre livres e escravizados nas ruas do Rio, ver, por exemplo: TERRA, 2006.
4 LOBO; STOTZ, 1985.
5 ARANTES, 2004.
6 DUARTE, 2002.
7 LONER, 2001.
8 WISSENBACH, 1998.
9 Em 1870 os bondes e trens começam a atuar sincronicamente, em horários mais adequados às horas
de entrada e saída dos locais de trabalho do centro; em 1878 é criada a Companhia Carris Urbanos, e
em 1886, a Leopoldina. ABREU, 1997, pp. 36, 45, 50 e 53.
0 SILVA, Eduardo, 1997, p. 78; e ver também SOARES, 1998. Sobre o período de 1830-1840:
SOARES; GOMES, 2001.
1 MATTOS, 2008, p. 51.
2 BATALHA, 1999, p. 63.
3 O Typographo – Nº 3 – 13 de Novembro de 1867 – Ano I
4 VITORINO, 2000, p. 100.
5 Idem, Ibidem, p. 99.
6 O Typographo – Nº 2 – 04 de Novembro de 1867 (Ano I)
7 O Typographo – nº 2 – 04 de novembro de 1867 (Ano I).
8 Este fato certamente também influencia na nossa análise sobre os trabalhadores no século XIX, uma
vez que para os tipógrafos provavelmente era mais fácil deixar registros escritos, em comparação
com outras categorias.
9 O Typographo – nº 2 ...
0 O Typographo – Nº 5 – 27 de Novembro de 1867 (Ano I)
1 BATALHA, 1999, p.63.
2 Arquivo Nacional, Casa Imperial, Caixa 18, pacote 5, documento 164.
3 Sobre os Estatutos da Sociedade denominada Liga Operária (1872) AN – Caixa 551/Pacote
1/Documento 8.
4 Projeto de Montepio confeccionado e oferecido aos operários do Arsenal de Guerra da Corte pelo
diretório do Corpo Coletivo União Operária. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1883. BN, I – 206,
2, 2.
5 Montepio dos Operários do Arsenal de Marinha da Corte. Decreto legislativo no 3.274 de 12 de
junho de 1886, Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1887.
6 Aprovação dos Estatutos do Corpo Coletivo União Operária (1882) AN – Caixa 559/ Pacote 2/
Documento 14.
7 Na comissão nomeada na primeira reunião da Liga se faziam representar maquinistas, tipógrafos,
fundidores, músicos (o primeiro 2º secretário), pintores (o vice-presidente), arquitetos (o presidente),
escultores, sapateiros, construtores navais, pedreiros, ferreiros, alfaiates, caldeireiros, polieiros,
funileiros, torneiros, modeladores, serralheiros, fogueteiros pirotécnicos, latoeiros, calafates, e
carpinteiros. Sobre os Estatutos da Sociedade denominada Liga Operária (1872)...
8 Idem,Ibidem.
9 Tribuna Artística – Nº 6 – 25 de Fevereiro de 1872 (Ano I).
0 Programa da sessão Solene do Corpo Coletivo União Operária comemorativa da independência do
Império em 7 de setembro de 1885. Biblioteca Nacional, Obras Raras, loc. 084,05,14 nº1.
1 O Abolicionista – Nº 12 –28 de Setembro de 1881 – Ano II.
2 CARNEIRO, 2005, p. 74. (Trecho de: Morais, Evaristo A Confederação Abolicionista).
3 Idem, Ibidem, p. 75.
4 SILVA, 2003.
5 Idem, Ibidem, p. 11.
6 SOARES, 1998.
7 Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor (24 de Setembro de 1874) – Arquivo
Nacional; 1R; CODES. Caixa 552/ Pacote 2/ Documento 43.
8 Sociedade de Beneficência da Nação Conga “Amiga da Consciência” – 1874 (A.N./ CODES/ 1R/
Caixa 552/ Pacote 2/ Documento 45).
9 SOARES, 1999, p. 115
0 Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor..., fl. 9.
1 Ibidem, fl. 10.
2 Ibidem, fl. 11.
3 Ibidem, fl. 19.
4 Ibidem, fl. 19.
5 SILVA, 2003, p. 159.
6 Idem, Ibidem, p. 159.
7 Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor..., fl. 3.
8 Sociedade Beneficente da Nação Conga – 1862 (A.N./ CODES/ 1R/ Caixa 531/ Pacote 3/
Documento 46).
9 Idem, fl. 3 verso.
0 GOMES, 1998, p. 74.
1 BATALHA, 1999; AN CE, 559/2/14.
2 BATALHA, 1999.
3 Gazeta Operária – Nº 7 – 7 de Fevereiro de 1885 (Ano II).
4 O Typographo – Nº 7 – 14 de Dezembro de 1867 (Ano I).
5 A incorporação do proletariado escravo. Protesto da Sociedade Positivista do Rio de Janeiro contra o
recente projeto de governo. – Distribuição gratuita. Recife; Tipografia Mercantil; 1883. Biblioteca
Nacional, ref.: IV – 201, 4, 15 nº 7. p. 3.
6 Idem, p.13.
7 LEMOS; MENDES, 1888.
8 Idem, Ibidem, p. 10.
9 Idem, Ibidem, p.19.
0 DUARTE, 2002.
1 Idem, Ibidem, p. 69.
2 Idem, Ibidem, p. 70.
3 Idem, Ibidem, p.71.
4 DEBRET, 1989.
5 LOBO, p. 279.
6 Idem, Ibidem, p. 305.
7 DUARTE, 2002, p. 65.
8 Idem, Ibidem, p. 63.
9 CHALHOUB, 1990, p. 252.
0 Idem, Ibidem.
1 Idem, Ibidem, pp. 160 e 80.
2 THOMPSON, 1987, p. 63.
3 REIS, 2000, p. 240.
4 WILLIAMS, 2007, p. 215. Os textos de Marx que Williams cita no verbete ideologia são A ideologia
Alemã (1845-47) e A luta de classes na França (1850), para o primeiro sentido do conceito, e
Contribuição à crítica da filosofia política (1859), sobre a segunda forma.
5 NABUCO, 1988, p. 39.
PRETOS, BRANCOS, AMARELOS E
VERMELHOS: CONFLITOS E
SOLIDARIEDADES NO PORTO DO RIO DE
JANEIRO
Érika Bastos Arantes
Este artigo pretende contribuir com algumas reflexões referentes à
história do trabalho no Brasil. Uma das reflexões diz respeito à discussão
sobre o “marco” estabelecido pela história social do trabalho e que coloca o
ano de 1888 como um divisor de águas: antes a era da escravidão e,
portanto, não era possível falar em “história social do trabalho”, que só teria
sentido no pós-1888, quando finalmente essa história seria possível, pois
identificada com o trabalho livre. Assim, a história do trabalho no Brasil
quase sempre foi a história do trabalhador livre e branco, de preferência
imigrante. É a aceitação da ideia de que escravo por ser escravo não é
trabalhador. Mas será que a história do trabalho pode ser limitada a essa
dicotomia?
A outra reflexão que se coloca diz respeito à formação da classe
operária carioca e às relações étnicas envolvidas na construção das
identidades desses trabalhadores. Por muito tempo, a bibliografia da classe
operária trabalhou com outra dicotomia: a de que a “verdadeira” classe
operária era aquela revolucionária, mais identificada com os imigrantes de
ideias anarquistas e estabelecidos em São Paulo. Do outro lado, estavam os
cariocas e suas divisões étnicas. A presença de negros egressos da
escravidão entre a classe trabalhadora faria com que, no Rio de Janeiro, os
conflitos étnicos a dividissem, dificultando a construção de uma identidade
de classe. Mas também, nesse caso, a mesma pergunta fica no ar: será que a
formação da classe trabalhadora pode ser limitada a essa dicotomia?
O texto busca estabelecer um diálogo entre a história do trabalho e a
história da escravidão no Brasil. Para isso, discutirei parte da bibliografia
sobre esses assuntos, buscando pontos de comunicação entre eles, mas
também utilizarei fontes primárias para tentar dar suporte aos meus
argumentos. Aqui, privilegiarei uma categoria específica de trabalhadores:
os portuários da cidade do Rio de Janeiro. Essa escolha foi feita por
diversos motivos. O primeiro deles por ser esta uma categoria
profundamente identificada com a história da escravidão, como veremos
adiante. No mais, mesmo após o fim do cativeiro, o trabalho portuário
continua sendo identificado ao braço negro, apesar de toda massa de
imigrantes que chega para disputar um lugar no mercado de trabalho.

Um conflito étnico?
Em 13 de maio de 1908, um violento conflito explodiu entre os
trabalhadores do porto do Rio de Janeiro que estavam reunidos na sede da
Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, no centro
da cidade. Após uma eleição que decidira os novos membros da diretoria
daquela sociedade, uma assembleia foi convocada às pressas. Logo no
início da sessão, tomaram a palavra alguns oradores que teceram
comentários que questionavam a legalidade daquela eleição, sendo
constantemente interrompidos por outros sócios que queriam garantir a
validade do pleito. Após muita confusão, apartes, protestos e insultos, a
sede daquela sociedade transformou-se em uma verdadeira praça de guerra,
ficando completamente destruída pelos próprios sócios. O conflito resultou
em um morto, vários feridos e um processo de 109 páginas. A partir dos
depoimentos das testemunhas, consta do processo o resumo dos fatos. O
trecho é longo, mas vale a pena ser transcrito, pois pode oferecer elementos
importantes para nossa análise:
No dia 13 do mês corrente, cerca de 1 hora da tarde, produziu-se um conflito entre os sócios
da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, na sede social, à rua
Marechal Floriano Peixoto n. 20. Foram disparados diversos tiros de revólver, de que
saíram feridos os sócios Antônio Henrique, Manoel Rodrigues, Cândido Francisco Pinto de
Almeida e Antônio Pereira; o primeiro faleceu no dia 15 na Santa Casa de Misericórdia [...],
e os demais receberam ferimentos reputados leves.
Referem as testemunhas que depuseram no inquérito, e os ofendidos que, sancionando a lei
n. 1.637 de 5 de janeiro de 1907, que criou os sindicatos profissionais e sociedades
corporativas, a Sociedade de Resistência resolveu alterar a sua denominação e organizar-se
de acordo com as prescrições do referido decreto, cujo art. 2o , & 2o estabelece que só
podem fazer parte das administrações dos sindicatos, brasileiros natos, ou naturalizados
com mais de cinco anos e residência no País e no gozo de todos os seus direitos civis.
Havendo na diretoria vagos os lugares de Presidente e Tesoureiro, fez-se uma eleição no dia
10 do mês corrente, saindo vitoriosos os nomes de Fernandes Ribeiro e Manoel Dias,
ambos de nacionalidade portuguesa. A sessão de posse foi marcada para o dia 13.
Aberta a sessão, tomou a palavra o sócio brasileiro Rozendo Alfredo dos Santos, e
protestou contra a validade daquelas eleições, que no seu conceito era írrita e nula, não só
pela nacionalidade dos eleitos como ainda porque a eleição não foi anunciada com a devida
antecedência, sendo publicado o anúncio da convocação apenas em um só jornal, no próprio
dia da sessão. Esse discurso, a proporção que se desenvolvia era cortado por violentos
apartes, dados por um grupo composto de Henrique Roseira, Antônio Henrique, Raphael
Munhões e Gumercindo Terra, todos estrangeiros, a exceção do primeiro que, embora
brasileiro, é filho de português.
Em seguida tomou a palavra o sócio Rufino Ferreira da Luz, que desenvolveu o mesmo
tema do orador presente, mas então os apartes já se mostraram mais violentos e
organizados, e em um dado momento, um dos do grupo, Antônio Henrique, bradou: – “o
que se tem de fazer, faz-se já” – e juntando à palavra a ação, sacou de um revólver, e
detonou-o em mira ao orador Rufino Ferreira da Luz. Acompanhando a decisão de Antônio
Henrique, Henrique Roseira, de revólver em punho, abriu um vácuo na multidão dos sócios,
e pôs-se a dar tiros, secundando nessa tarefa pelos seus consócios Raphael Munhões e
Gumercindo Ferro. Antes que a polícia pudesse intervir, Roseira, Munhões e Gumercindo
evadiram-se, sendo Antônio Henrique encontrado gravemente ferido [...].”276
O episódio acima se transformou em “exemplo” ao ser constantemente
mencionado por muitos historiadores como representativo do quanto os
conflitos étnicos e as diferenças de nacionalidade tenderam a dificultar a
solidariedade de classe e limitar a ação operária no porto carioca e no Rio
de Janeiro de uma maneira geral.
Boris Fausto foi um dos autores que defenderam a tese de que as
diferenças étnicas e de nacionalidade não apenas limitaram a ação operária
no Rio de Janeiro, como também teriam praticamente definido a
predominância do sindicalismo reformista, de caráter não revolucionário,
que ele chama de “trabalhismo carioca”. Para o autor, o setor de serviços,
que abrange os ferroviários, marítimos e doqueiros, formava um grupo de
trabalhadores intocados pela ideologia anarquista em fins do século XIX,
principalmente devido à superioridade numérica de trabalhadores nacionais,
especialmente negros. O mesmo não teria acontecido em São Paulo, sempre
considerada como palco dos movimentos revolucionários justamente pela
predominância dos imigrantes com tendências libertárias.277
Sheldon Maram segue a mesma linha de Fausto ao afirmar que os
conflitos internos, por vezes, abortaram tentativas de organização entre os
portuários, acarretando o declínio de vários sindicatos, como a Sociedade
de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, que ele cita como
exemplo. Segundo ele, após a disputa entre nacionais e portugueses, o
sindicato declinou vertiginosamente, vendo o número de associados cair de
4.000 para apenas 200 em um só ano. E ainda aponta que alguns anos
depois a “Resistência” se reergueu sob nova liderança.278
Em uma posição diferente deste autor, Marli Albuquerque, que tratou
especialmente dos trabalhadores do porto, rejeita a tese de que conflitos
étnicos teriam limitado a organização daqueles trabalhadores, afirmando
que a ação política das categorias portuárias era intensa e marcada pela
solidariedade de classe, não tendo qualquer conteúdo racial:
Na pesquisa realizada não foi constatada a ocorrência de disputa entre trabalhadores
motivados pelas diferenças étnicas. A ideia de apatia política dos trabalhadores negros,
motivada pela sua condição de ex-escravo, foi rejeitada, visto que as fontes, sobretudo as
primárias, demonstram que a ação política das categorias, compostas principalmente de
negros (carregadores e estivadores) era intensa e destituída de qualquer conteúdo racial, ao
contrário, propunha a manutenção de laços de solidariedade entre as categorias atuantes do
porto do Rio de Janeiro numa luta essencialmente dirigida aos empregadores”.279
No entanto, há que se considerar que o trabalho de Marli Albuquerque
tende a exagerar na ênfase à harmonia e solidariedade entre os portuários,
descartando os conflitos que certamente ocorriam.
Sidney Chalhoub, em seu livro sobre o cotidiano dos trabalhadores no
Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX, define a situação dos
portuários naqueles tempos afirmando que as diferenças internas à classe
limitaram em algum grau a organização daqueles operários, mas reconhece
que o grupo era forte e bastante consciente de sua situação de classe.
Segundo ele, a enorme competição pelo trabalho traduzia-se em ações
contraditórias, revestindo-se não só de um conteúdo de luta e desagregação,
mas também de solidariedade e de espírito comunitário. Mas, baseando-se
em Maram, o autor também cita o conflito na “Resistência” como o motivo
do vertiginoso declínio do sindicato e afirma que sua revitalização se deu
sob uma liderança diferente daquela anterior. O autor argumenta ainda que
o fato de alguns sócios estrangeiros gritarem “abaixo a plebe” durante a
falação de Rozendo Alfredo dos Santos demonstra o “inequívoco caráter
racial da disputa”.280
Maria Cecília Velasco e Cruz, em sua tese sobre estivadores e
carregadores no Rio de Janeiro da Primeira República, esclarece que a crise
que resultou na desorganização da “Resistência” não pode ser atribuída
àquele conflito. Segundo Cruz, a verdadeira causa da crise institucional do
sindicato fora a perda dos fundos sindicais causada pela falência do Banco
União do Comércio, e o lock-out feito pelo Centro de Comércio de Café
contra a “Resistência”, na mesma época. E diz ainda que antigos sócios
foram elementos estratégicos e até mesmo essenciais à reorganização da
sociedade após a crise, contrariando a afirmação de que ela teria se
reerguido com novos líderes.281 No entanto, a autora fala pouco sobre esse
assunto, não se perguntando se a questão étnica teria gerado o conflito ou
não.
Apesar de não haver consenso, a tendência da historiografia foi associar
diretamente o conflito ao “problema” da diversidade étnica. Da mesma
forma, muitas das interpretações sobre a história mais ampla do movimento
operário carioca, e especialmente no porto, tiveram base nesses
pressupostos e enxergaram não só desmobilização da classe como também
associaram tendências políticas dos sindicatos portuários à composição
étnica de seus trabalhadores. Aqui, pretendo apontar algumas questões e
trazer alguns elementos que possam contribuir com a discussão, buscando
desnaturalizar certas associações diretas que, ao meu ver, simplificam
demasiadamente uma história que é muito mais complexa...
Apesar de alguns autores citarem o episódio ocorrido na sede da
“Resistência”, e de até usarem o processo como fonte para legitimar suas
teses, poucos se detiveram mais detalhadamente nele.282 Alguns dados que
constam das 109 páginas do processo trazem elementos que, apesar de não
“solucionarem” a questão, podem nos fazer pensar sobre o assunto em
outros termos. Voltemos, então, ao processo.
Em depoimentos dos nacionais que ficaram contra a eleição, aparecem
alguns elementos em comum: oito deles283 citam o Decreto no 1.637, de 5 de
janeiro de 1907, que criou os sindicatos profissionais e associações
corporativas. Segundo essas testemunhas, os sócios daquela sociedade –
brasileiros e estrangeiros – haviam decidido em assembleia que a Sociedade
de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café iria guiar-se por tal
decreto e converter-se em sindicato. De acordo com o parágrafo 2o do artigo
2o do decreto só podem ser admitidos para a administração dos sindicatos os
brasileiros natos ou naturalizados com residência no país há mais de 5 anos
e no gozo de seus direitos civis. Não era o caso daqueles estrangeiros: o
presidente eleito José Fernandes Ribeiro e o tesoureiro Manoel Dias eram
portugueses. Mas esse não parecia ser o problema em si: acontece que os
estrangeiros não só não eram naturalizados como também o presidente
estava em dívida com a sociedade, devendo dois meses de mensalidade aos
cofres da associação, o que fazia dele uma pessoa sem as qualidades que se
esperam de um presidente, ao não honrar os compromissos com a
associação que iria presidir.
Mas não era só isso. Os depoimentos chamam a atenção para
irregularidades na eleição. Rozendo Alfredo dos Santos, por exemplo,
contou que a divulgação da eleição “não foi feita com a devida
antecedência, o que só foi feito no dia em que se realizou a eleição e assim
mesmo em um só jornal”.284 Outros sete depoentes confirmaram essa
versão. Segundo Manoel Matheus dos Santos, por conta disso, muitos
sócios não puderam votar porque simplesmente não sabiam que haveria
pleito. O sócio Etelvino José da Silva chega a dizer que nem mesmo sabia
qual era o motivo da assembleia, quanto mais que havia tido eleição.
Por mais que os depoimentos desses sócios devam ser relativizados por
ser este grupo contrário aos eleitos, deve ser considerado o fato de todos
insistirem em alguns fatos: a ilegalidade da eleição, a não divulgação da
mesma e rejeitarem um presidente que não paga suas mensalidades. O
jornal Correio da Manhã, por exemplo, ao noticiar o conflito comentou que
“não era um problema fixado pela associação, lá estava a lei, clara e
precisa, devidamente discutida pelos poderes públicos”.285 Segundo
Evaristo de Moraes, que escrevia uma coluna no mesmo jornal, há muito os
trabalhadores lutavam para que suas associações sindicais fossem
regulamentadas pelos poderes públicos.286 Ora, se o problema daquela
eleição era uma questão legal, o problema da rivalidade étnica já merece ser
relativizado.287
Mas o mais interessante, ainda analisando o processo, foi perceber que
nem todos os brasileiros se mostraram contrários aos estrangeiros. Henrique
Roseira e Raphael Serrato Munhões, que defenderam os portugueses
eleitos, eram brasileiros.288 José Cardoso de Moraes Rego, que presidiu a
eleição, também era brasileiro. Em seu depoimento, ele diz que a
insatisfação dos contrários àquele pleito não tinha razão de ser. Diz que
houve, sim, a convocação dos sócios com a devida antecedência. Mas foi o
único que fez essa afirmação. No entanto, ele não faz menção ao decreto de
1907. Vale mencionar, ainda, que Gumercindo Ferro Louzada, também
defensor dos portugueses, era, na verdade, espanhol.
Podemos perceber, a partir desses detalhes que constam do processo,
que as identificações e associações internas ao grupo são mais complexas e
que a disputa pelo controle do sindicato não opunha simplesmente
brasileiros e portugueses, ou negros e brancos, mas essencialmente grupos
com interesses antagônicos. No mais, mesmo quando os brasileiros se
colocaram prontamente contrários à eleição dos estrangeiros, suas
justificativas para tal oposição se baseavam em questões que iam além da
rivalidade étnica.
Não estou querendo reafirmar a tese de Marli Albuquerque de que a
harmonia e a solidariedade de classe reinavam absolutas sobre aqueles
trabalhadores e que as rivalidades étnicas nunca tiveram vez entre os
portuários. Não é isso. Claro que houve tensões e que em alguns momentos
elas se tornavam mais claras, como é o caso de situações – limite como o
episódio narrado. Nessas situações, diferenças de toda ordem emergem e
são percebidas mais facilmente.
No entanto, não creio que devam ser associadas diretamente à
desmobilização da classe e à limitação da luta operária. Kirk Neville, em
seu artigo do livro Culturas de Classe, nega que a diversidade
automaticamente interdita a solidariedade de classe. Para o autor “nem a
classe trabalhadora nem qualquer outra classe social será jamais um ente
completamente unido e indiferenciado, fixo e congelado no tempo”. Para
ele, “elementos tanto de diversidade e semelhança quanto de divisão e
unidade coexistem entre os trabalhadores”.289
A experiência dos trabalhadores do porto do Rio de Janeiro deve ser
pensada não a partir do velho contraponto integração/desintegração. É
preciso estarmos atentos para a heterogeneidade dessas experiências e para
as contradições presentes no fazer-se da classe,290 sem relacioná-las
diretamente com desmobilização.

Conflitos e solidariedades
As colunas dos jornais no início do século XX costumavam trazer
relatos das brigas entre trabalhadores no porto. Em janeiro de 1906, o
Correio da Manhã narrou um conflito ocorrido na Estação Marítima da
Gamboa:
[...] Logo pela manhã, apresentaram-se na porta daquela Estação, cerca de 300
trabalhadores. Como de praxe, o feitor José Duarte disse precisar de 70 homens, que
escolheu entre os presentes. Isso provocou entre os não escolhidos para o serviço,
murmúrios que dentro de poucos minutos se transformaram em protestos. De repente, do
grupo dos que não tinham sido escolhidos partiu um tiro, cujo projétil foi se alojar nas
costas do feitor José Duarte [...]291
Já no final do século XIX, o Jornal do Brasil denunciava o modo
desorganizado, criminoso e reprovado pelas instituições do país, desprezado até do
cumprimento do dever que têm as autoridades no policiamento sobre os ajuntamentos de
trezentos ou quatrocentos trabalhadores que ali vão mendigar e implorar das entidades
absolutas, os contramestres,292 na escolha de trabalhadores que devem embarcar para o
trabalho da estiva”.293
As frequentes cenas de brigas entre os portuários eram provocadas
principalmente pela competição cotidiana por trabalho. A falta de
estabilidade era responsável pela insegurança que o processo arbitrário de
contratação causava nos trabalhadores, fazendo com que a competição
desenfreada pelo serviço fosse uma das principais características dos portos
de uma maneira geral. Entre os cariocas, ela estava presente no próprio
jargão dos operários, que costumavam chamar o ato de levantar a mão na
“parede” de “fazer fé”, numa referência clara às apostas no jogo do bicho
ou em outros jogos de azar, muito comuns já naquela época. O linguajar
refletia a incerteza vivida diariamente pelos trabalhadores avulsos, que
muitas vezes causavam raiva, frustração e brigas entre os que disputavam
uma vaga no serviço ou entre esses e o responsável pela escolha.294
Brigas causadas pelas incertezas acerca do mercado de trabalho eram
uma característica dos portos de uma maneira geral e muitas vezes
somavam-se à disputa pelo trabalho também as divergências no interior da
classe. No porto de Nova Iorque, por exemplo, as rivalidades entre
irlandeses, negros e italianos fizeram com que os grupos constituíssem
comunidades separadas, cada um em seu quarteirão, além de os
trabalhadores se organizar em diferentes sindicatos. No porto de Londres, o
elevado grau de compartimentação habitacional também era fruto das
fissuras profissionais e étnicas. Em algumas cidades, os armadores
buscaram tirar proveito da situação de conflito, como aconteceu na cidade
de Saint John, no Canadá, onde as hostilidades entre protestantes e católicos
eram exploradas pelos empregadores. O mesmo aconteceu com as
rivalidades entre brancos e negros em New Orleans, cidade onde formaram-
se sindicatos distintos e, em situações de crise, as disputas por emprego
tornavam-se extremamente violentas.295
No Rio de Janeiro, não houve compartimentação da população portuária
em bairros diferentes ou em sindicatos diferenciados por nacionalidade ou
etnia. No entanto, como já foi comentado, a enorme disputa pelo mercado
de trabalho entre nacionais (a maioria negros) e imigrantes (principalmente
portugueses) foi quase sempre referida como elemento desagregador da
classe e desencadeador de cenas de violência entre trabalhadores.
Assim, na manhã de 9 de dezembro de 1909, um estivador
pernambucano chamado Caetano Damásio, de 19 anos, morador do Morro
da Favela, foi parar na delegacia do 3o Distrito Policial, acusado de ter
disparado um tiro no português Manoel Gomes, vulgo “Cabo Verde”, de 25
anos. A cena ocorrera no Cais das Docas Nacionais, em frente ao Trapiche
Silvino e todas as testemunhas arroladas no processo afirmaram mais ou
menos a mesma coisa: que, em uma embarcação encostada à ponte do
Trapiche Silvino, um grupo de homens trabalhava na descarga de farinha e
feijão, quando, dentro da tal embarcação, travou-se luta corporal entre o
brasileiro Caetano Damásio e o português Manoel Gomes, tendo aquele
disparado um tiro contra este, que caiu por terra e foi levado por uma
ambulância. Na enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, o ofendido
prestou seu depoimento:
que às 8 horas mais ou menos desembarcou do navio de guerra ‘Deodoro’, onde trabalhava
como foguista, passando a trabalhar no serviço de descarga de mercadorias na Saúde; que lá
pelas 7 para as 8 horas da manhã [sic] trabalhava na descarga de uma embarcação encostada
em frente do Trapiche Silvino quando foi provocado por um indivíduo que ali chegou
armado de revólver; esse indivíduo empurrou uma [...] sobre o declarante que o advertiu
que [parasse com essa] liberdade e brincadeira, visto não conhecê-lo. Não se conformando
com a advertência, o tal indivíduo atirou contra o depoente vários pontapés, tendo ele
declarante dado-lhe um soco. Para evitar nova agressão, o indivíduo retirou-se do trapiche
onde o mesmo indivíduo em sua perseguição feriu-lhe pelas costas [...].296
Esse caso pode ser entendido como mais um conflito que tem um fundo
étnico, afinal coloca em lados opostos um brasileiro e um português. No
entanto, se dermos uma olhada nas testemunhas arroladas no processo,
vemos que, apesar de brasileiros, os depoentes não se colocam em defesa de
Caetano Damásio e contrários ao português Manoel. O carioca Acácio José
de Oliveira, que também trabalhava nas descargas de sacas no tal trapiche,
por exemplo, diz em seu depoimento que a briga se deu “pelo fato de
Caetano Damásio arrebatar um saco para conduzir, tirando-o das mãos do
declarante que ia entregar a Manoel Gomes”. Ou seja, o brasileiro parece
culpar o conterrâneo Damásio de provocar a briga e absolver o português
Manoel. O depoimento das outras três testemunhas, todos brasileiros vai na
mesma linha.
Mas assim como as brigas “por questões de serviço” ocorriam opondo
brasileiros e imigrantes, também acontecia de o conflito opor trabalhadores
de mesma nacionalidade. Foi o que aconteceu no dia 13 de março de 1902,
quando os estivadores brasileiros Benedito José da Silva e José Teixeira
tiveram “uma questão” à bordo do navio onde ambos trabalhavam e
acabaram se ferindo mutuamente após trocarem socos e pontapés.297
E há também casos como o que aconteceu em 24 de outubro de 1903,
quando o estivador brasileiro Vicente Rodrigues, vulgo “Bexiga”, agrediu
fisicamente, com uma faca, um português e um brasileiro no Trapiche da
Cia do Gás.298
Que havia competição acirrada pelo mercado de trabalho portuário e que
essa competição cotidiana causava descontentamentos que desencadeavam
muitos daqueles conflitos parece incontestável. Já a partir do final do século
XIX levas e mais levas de imigrantes vieram se somar aos inúmeros
brasileiros – especialmente os negros – que disputavam trabalho na estiva e
no carregamento de mercadorias. A forma da contratação transformava o
porto em um local de concorrência diária, o que aumentava a disputa e fazia
com que as brigas fossem mais constantes e, por isso, “visíveis”, daí a fama
de “valentões” e “briguentos”. Essa competição colocava em lados opostos
não apenas nacionais e imigrantes, mas trabalhadores diversos que
brigavam por uma vaga nas turmas de trabalho.
Contudo, como apontou Fernando T. da Silva, essas ações violentas
podem ser encaradas também como expressão de um “universo masculino”
baseado em um sistema de valores que tendia a legitimar o papel do homem
valente, corajoso e agressivo. Um mundo governado por regras informais,
onde imperava a lei do mais forte, e as demonstrações de valentia eram
respeitadas dentro e fora do porto.299 No conflito ocorrido na sede da
“Resistência”, essa ostentação da valentia estava presente o tempo todo.
Segundo depoimentos, palavras de baixo calão eram ouvidas durante a fala
dos oradores e o sócio Antônio Henrique, por exemplo, teria dito “eu sou
homem e brigo”, ao que responderam “pois então, briga-se já”.300
Os trabalhadores do porto carregavam, desde muito cedo, estigmas de
desordeiros e valentões. Segundo um antigo estivador do porto de Santos, a
categoria “era mal vista, tinha má fama”.301 Vários deles eram conhecidos
das autoridades como criminosos famosos e que aterrorizavam a região
contígua ao cais, a chamada zona portuária, formada pelos bairros da
Saúde, Gamboa e Santo Cristo. São inúmeros os casos em que portuários
eram identificados pela polícia como “desordeiros perigosos”, “famosos
vagabundos e desordeiros da Saúde e Gamboa” etc. Alguns desses homens,
conhecidos no cais, nas docas e suas vizinhanças, tinham presença
constante não só nas páginas dos registros policiais, mas também na
imprensa, como o “célebre” Papa-Rancho, como era chamado o “desordeiro
conhecido” Martinho de Souza Oliveira, estivador.302 E também homens
como José Gomes Cardoso, o Cardosinho, que, a julgar pelo número de
prisões e de vezes em que seu nome apareceu nas colunas policiais dos
jornais cariocas, parece ter sido o mais famoso de todos os valentões do
porto. Para João do Rio, “homens da espécie de Cardosinho fazem o sinal
da cruz ao levantar da cama para matar um homem horas depois”.303
A fama de valentão e as passagens pela prisão conferiam autoridade
dentro daquele universo marcado por ritos de masculinidade e valorização
da valentia e da força física, numa oscilação entre a identificação do herói
pelos próprios portuários e do marginal, como eram vistos pelas
autoridades.
As páginas da documentação policial estão cheias de casos de brigas
envolvendo portuários. No entanto, posto como a forma de contratação era
feita – com trabalhadores disputando uma vaga todo santo dia, e às vezes,
mais de uma vez por dia –, talvez seja mais plausível se perguntar como não
havia briga todo dia...
Apesar de todos os conflitos que realmente aconteceram nos portos –
independentemente da cor e das nacionalidades –, a experiência daqueles
homens não pode ser resumida às brigas. Segundo Fernando T. da Silva,
esses são aspectos inerentes à cultura portuária, não significando, no
entanto, que sejam responsáveis pela despolitização e ausência de uma
cultura classista entre aqueles trabalhadores. Se, como outros aspectos da
vida dos portuários, a valentia andava de mãos dadas com a natureza
ocasional do trabalho avulso no cais, junto a esse fenômeno estava também
a luta dos operários para “eliminar os patrões” e controlarem eles mesmos a
mãodeobra. Dessa forma, se por um lado a contratação funcionava como
elemento desagregador, gerador de conflitos internos, por outro, foi
justamente em torno dessa questão que os portuários de diversas cidades do
mundo se uniram, fazendo frente ao poder dos contratadores e
reivindicando o controle do mercado de trabalho por meio dos sindicatos
closed shop.
No Rio de Janeiro, não foi diferente. Desde muito cedo, já nos primeiros
anos do século XX, os trabalhadores portuários se uniram, lutaram e
conseguiram impor a closed shop ao patronato mesmo com toda a
diversidade no interior da classe. Vital nessa luta, sem dúvida, foi a atuação
da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café.
Fundada em março de 1905, “sob os auspícios da União dos Estivadores”304
– outro sindicato de grande expressão no porto carioca, fundado havia dois
anos –, a “Resistência” já nasceu forte, arregimentando os trabalhadores e
impondo sua presença ao patronato.
Tanto a “Resistência” quanto a União Operária dos Estivadores eram
sindicatos formados por uma maioria de trabalhadores negros, tendo o
primeiro o enorme percentual de quase 80% de negros nos primeiros anos
de sua existência.305 Talvez esse seja o motivo de o porto ter sido
considerado o “bastião” daquilo que ficou pejorativamente conhecido como
“sindicalismo amarelo”.

Amarelos e Vermelhos: uma verdadeira classe operária?


Se as disputas entre nacionais e estrangeiros são muitas vezes traduzidas
como principal motivo de desmobilização operária no Rio de Janeiro, a
composição étnica da classe foi constantemente associada à linha reformista
de seus sindicatos, que teve no porto um dos maiores exemplos.
Boris Fausto foi um dos autores que defenderam a tese de que as
diferenças étnicas e de nacionalidade não apenas limitaram a ação operária
no Rio de Janeiro, como também teriam praticamente definido a
predominância do sindicalismo reformista, de caráter não revolucionário,
que ele chama de “trabalhismo carioca”. Para o autor, o setor de serviços,
que abrange os ferroviários, marítimos e doqueiros, formou um grupo de
trabalhadores intocados pela ideologia anarquista em fins do século XX, o
que não teria acontecido em São Paulo, sempre considerada como palco dos
movimentos revolucionários justamente pela superioridade numérica dos
imigrantes:
Do ângulo da classe operária, a existência no Rio de Janeiro dos germes de uma corrente
limitada à defesa de reivindicações mínimas, pela via da colaboração de classes e da
proteção do Estado, explica-se em grande medida [...] pela maior presença de nacionais na
composição da classe, mais receptivos a um tipo de política que se coadunava com as
velhas relações tradicionais e paternalistas [...].306
Fausto afirma que mesmo quando o anarquismo começa a encontrar
campo entre os trabalhadores cariocas, principalmente a partir da década de
1920, isso não acontece entre os portuários, que, segundo ele, teriam
mantido uma tradição de sindicalismo limitado a reivindicações
corporativas. Comparando as ações operárias no Rio de Janeiro e na cidade
portuária de Santos, o autor afirma que os perfis sindicais das cidades
podem ser claramente distinguidos:
As razões da diferença devem ser buscadas no contexto geral das duas cidades e na
composição étnica da classe trabalhadora. Santos se define como centro de lutas frontais,
sob inspiração libertária, abrangendo tanto portuários como outros ramos [...]. Uma classe
operária relativamente homogênea, composta em grande parte de estrangeiros (espanhóis e
portugueses), constitui o núcleo básico dos trabalhadores quando a cidade começa a se
desenvolver. No Rio de Janeiro, estrangeiros – em menor número – vem concorrer no porto
com elementos nacionais aí já instalados. A rivalidade étnica potencia a disputa e favorece a
divisão interna da classe. Por sua vez, as posições tendentes ao paternalismo ou à
conciliação encontram campo na maior incidência do Estado e nas expectativas dos
trabalhadores nacionais. Entre estes, há muitos antigos escravos ou integrantes de uma
geração para a qual a escravidão tem ainda culturalmente um peso considerável.307
Assim, para Boris Fausto, a diferença básica entre a ação operária dos
portuários das duas cidades se dá pela diferença na composição da classe
trabalhadora, que em Santos era formada por uma maioria de imigrantes
com tendências libertárias e no Rio, por nacionais, especialmente negros.
Para alguns autores era isso que diferenciava Santos – a “Barcelona
Brasileira”308 – dos “amarelos”.309
Essas ideias se relacionam intimamente ao fato de a historiografia não
pensar o escravo como “ser político”, daí uma menor “consciência de
classe” quando estes se fizeram trabalhadores livres, e uma forte tendência
a aceitar o paternalismo estatal mais facilmente. No entanto, apesar do
predomínio dos sindicatos reformistas no porto, tomá-lo como decorrência
direta dessas diferenças seria simplificar a análise. Cláudio Batalha critica
essa visão e diz que, tanto no caso do Rio como no de outras cidades em
que as correntes reformistas podem ser constatadas, as evidências
desmentem esses pressupostos “não há qualquer relação que possa ser
estabelecida entre origem étnica e opções sindicais na Primeira República
[...] Tampouco podem ser estabelecidas correlações automáticas entre a
orientação ideológica dos operários e o setor da produção onde estão
empregados.”310
Segundo Cláudio Batalha, os estudos sobre o movimento operário no
Brasil apresentam grandes dificuldades em analisar fenômenos como o
reformismo operário na Primeira República. Isso se explica em grande parte
pelo fato de a maior parte da historiografia trabalhar com antigos
pressupostos de que só há uma única forma verdadeira de consciência de
classe: a revolucionária. Dessa forma, rejeita-se qualquer outra forma de
luta como legítima e desqualifica-se a ação dos operários quando estas não
são motivadas pela ideologia revolucionária.
A imagem de uma classe operária homogênea, revolucionária e
estrangeira que a literatura clássica quis passar como a “verdadeira” classe
operária, generalizando modelos e criando paradigmas, idealiza um
movimento operário e sindical que não condiz com a realidade de muitas
organizações de luta operária. A maioria dos trabalhos tendeu a
desqualificar e diminuir a importância dos sindicatos reformistas, encarados
como frutos de mera manipulação patronal ou estatal e desprovidos de
qualquer projeto próprio. Assim, preocupada em desqualificar o reformismo
como expressão operária, a historiografia recusou-se também a estudá-lo e
compreendê-lo historicamente como uma manifestação legítima de
consciência de classe.
Entre os poucos estudiosos dos sindicatos do porto carioca, Maria
Cecília Velasco Cruz merece destaque. A pesquisa de Cruz se mostra
bastante bem-sucedida, na medida em que investiga a fundo a composição
étnica da categoria, buscando perceber a influência das “tradições” oriundas
da experiência dos escravos de ganho na organização do trabalho e na
formação dos sindicatos portuários no período pós-Abolição.
A autora faz uma crítica à afirmação de Boris Fausto de que, entre os
estrangeiros, a identidade de classe tendeu a superar a identidade nacional,
questionando se esse processo não poderia ter ocorrido entre os nacionais,
mesmo se ex-escravos.311 Ela também rejeita o velho paradigma e, sem
perder a dimensão do conflito, aponta para a solidariedade de classe entre
os portuários. Ainda segundo ela, a atuação dos portuários em diversos
momentos cruciais de reivindicação operária não apresentara a cor
“amarelada” que lhe quiseram atribuir. Ao traçar a história da Sociedade de
Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café e da União Operária dos
Estivadores, a autora ressalta a importância destes sindicatos no movimento
operário carioca, principalmente na conquista de uma das mais importantes
reivindicações dos trabalhadores do porto: a closed shop – sistema de
sindicatos fechados, em que os sindicalizados teriam ampla preferência na
disputa pelo trabalho.
Embora o desejo de autonomia e fechamento do mercado de trabalho em
torno dos sindicatos tenha sido uma luta comum entre os portuários do
mundo inteiro, diversas tentativas nesse sentido não resultaram em
sindicatos closed shop consolidados (exemplos de Londres, Liverpool,
Seattle e Portland). Como apontou Cruz, seria então surpreendente que esse
sistema tenha se estruturado tão fortemente e sobrevivido no Rio de
Janeiro.312 Ao contrário do que afirmou Ingrid Sarti, o Sindicato dos
Estivadores de Santos não foi o “primeiro sindicato que se impunha
independente da Companhia Empregadora, e que se propunha a agenciar a
mão-de-obra”.313 No Rio, os ventos parecem ter soprado a favor dos
sindicatos mais rápido do que na “Barcelona Brasileira” e, apesar dos altos
e baixos constantes,314 os “amarelos” conseguiram se impor ao patronato já
nos primeiros anos do século XX. Em Santos, apesar de a luta se iniciar já
na primeira década do século XX, somente nos anos 1920 ela começa a ter
resultados, consolidando-se na década seguinte.315
Dessa forma, apesar dos conflitos que existiram no porto e apesar de
aqueles sindicatos não terem seguido a ideologia “revolucionária”, eles
conseguiram se impor no porto entre operários e patrões, conseguindo no
início do século XX grandes conquistas para os trabalhadores.
Assim, parece-me que associações imediatas entre a superioridade
numérica de negros e a limitação da luta operária é não somente simplista,
mas também não leva em conta a trajetória anterior de muitos daqueles
homens negros durante a escravidão e as experiências que informaram suas
lutas no pós-abolição.
Negros e Brancos na formação da classe
trabalhadora carioca
Muitos daqueles homens que fundaram importantes sindicatos
portuários na primeira década do século XX, como a União dos Estivadores
e principalmente a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em
Trapiche e Café, eram negros. Se buscarmos conhecer mais de perto os
fundadores da União, veremos que Joaquim Januário Nunes316 era um preto
nascido provavelmente em 1871, ou seja, viveu parte de sua vida em uma
sociedade escravista.317 Veremos também que um dos sócios-fundadores, o
preto João Evangelista Lapier, nascera em 1819! Segundo o estivador Luiz
Gustavo de Almeida, Lapier tinha 84 anos quando participou da fundação
da União, em 1903. Cândido Manoel Rodrigues, que fundou a
“Resistência”, também era um homem negro, este nascido em Macaé, no
estado do Rio de Janeiro, no ano de 1869, antes mesmo da Lei do Ventre
Livre. Uma rápida olhada no Livro de Matrícula em que estão os primeiros
sócios daquela sociedade mostra que ele não era o único nacional a nascer
em tempos de escravidão e muitos deles nasceram antes da Lei do Ventre
Livre. Isso quer dizer que a possibilidade de os nacionais negros – que eram
a maioria – terem sido escravos era grande. Mas mesmo se nasceram livres,
conviveram muitos anos em uma sociedade escravista que os associava a
escravos. Feita a Abolição, esses homens ainda carregavam na cor da pele
as marcas do passado escravista e, para as elites, representavam atraso e
barbárie, lembranças de um tempo que se queria esquecer. No entanto, esses
mesmos homens fundaram sindicatos fortes e atuantes e lutavam dentro
deles a partir de uma perspectiva de classe, ao lado de companheiros de
outras cores e nacionalidades.318
Homens como Cândido Manoel Rodrigues e outros negros, que por
muito tempo foram associados à escravidão – e consequentemente ao
despreparo para o trabalho livre –, souberam, sim, se organizar e lutar pelos
seus interesses de classe. Não se pode mais desconsiderar o valor da
experiência escrava na organização dos trabalhadores livres, até porque já
não é de hoje que a figura do escravo apático e submisso cede lugar àquele
que resistiu à escravidão de várias formas. E se entre essas formas de luta
escrava estavam grandes rebeliões, houve também os pequenos embates
cotidianos, não menos válidos ou importantes para explicar os significados
da experiência de homens e mulheres que vivenciaram o cativeiro e
sonharam com a liberdade.
Se dermos uma olhada em alguns relatos de viajantes, veremos que,
desde a primeira metade do século XIX, os escravos de ganho que
trabalhavam no porto carioca não só dominaram o mercado de
carregamento de café, como também impuseram uma maneira própria de
organização do trabalho, estando longe de representar a figura dos negros
apáticos e submissos que dominou a literatura da escravidão durante muito
tempo. Henry Chamberlain, por exemplo, referiu-se desta maneira aos
negros carregadores que faziam ponto na rua Direita, perto da Alfândega:
[...] Esses homens são geralmente escravos que trabalham para seus senhores [...] Quando o
peso é muito grande para um único homem o volume é suspenso a um desses paus e
carregado por dois indivíduos; com fardos ainda mais pesados, quatro, seis ou até mais
pessoas são chamadas. Um deles, geralmente negocia pelo grupo e age como seu líder ou,
como é chamado, capataz.319
Baseando-se nas histórias dos viajantes, a antropóloga Manuela
Carneiro da Cunha comentou sobre a possibilidade de compra de alforria e
das solidariedades que por vezes se formavam entre grupos de escravos de
ganho, especialmente os carregadores. Em suas palavras:
além da possibilidade de fazer trabalhos extras, de esconder seus ganhos reais, podiam
construir solidariedades eficazes com membros de seu “canto”. Ora, o canto tinha funções
de consórcio, de associação de auxílio mútuo para alforria de seus membros. Os
carregadores de café minas, no Rio de Janeiro, que tinham o monopólio desse ramo, por
exemplo, adiantavam dinheiro para a alforria uns dos outros [...]320
Além de indicarem a forte presença dos ganhadores no sistema
portuário, os relatos sugerem que a organização do serviço era feita de uma
forma muito particular, com os escravos formando grupos que seguiam um
líder ao som de músicas africanas. O trabalho coletivo era estruturado pelos
próprios negros. Eram eles que negociavam as tarefas, decidiam o tamanho
das turmas de acordo com o tamanho do volume a ser carregado, enfim,
eram “sujeitos plenos da ação”.321 Ao se organizarem coletivamente, ao som
de músicas africanas, estabelecendo um ritmo para o trabalho nas ruas da
cidade, os africanos imbuíam o trabalho urbano de elementos de sua
cultura, como também acontecia na cidade de Salvador, conforme apontou
Reis.322
Os relatos informam também que aqueles homens se organizavam na
busca da liberdade. Partes fundamentais nessa luta eram os fortes laços de
solidariedade que os uniam. No entanto, já na segunda metade do século
XIX, é possível encontrar vestígios da organização de escravos ganhadores
do porto carioca com outros fins. No dia 3 de maio de 1872, por exemplo, o
Diário do Rio de Janeiro trazia a seguinte notícia:
Os pretos carregadores também fizeram a sua “parede”, mas à moda da Costa da Mina, isto
é, ao som dos cacetes e de gritarias quase selvagens. A causa foi terem exigido mais 20 réis
pelo carreto de carne-seca aos negociantes do gênero, e terem este deliberado substituí-los
por homens livres. Hontem, depois de 1 hora da tarde, reunira-se mais de 50 na Praça das
Marinhas, quando os trabalhadores brancos estavam fazendo descarga e opuseram-se a que
efetuassem. Travou-se luta [...] os agressores eram sete escravos e um preto liberto [...].323
O que esse episódio indica é que, aqui, os escravos estavam reunidos e
organizados em torno de uma reivindicação típica de trabalhadores livres: o
aumento no valor de seus serviços. Para isso, lançavam mão de uma forma
de luta também típica de operários: a greve.324 Difícil não pensar que,
durante muito tempo, os negros foram excluídos da história do trabalho no
Brasil, como se eles não tivessem uma história também como trabalhadores.
Esse caso, assim como o conflito ocorrido no sindicato, já serviu a
alguns estudos como exemplo de conflitos étnicos no porto carioca.325
Afinal, os pretos querem impedir os brancos de trabalharem. No entanto,
talvez seja possível fazer uma outra leitura: mais do que um conflito
baseado em questões étnicas, que opõe pretos e brancos, não estariam os
pretos ganhadores se opondo principalmente à contratação de “fura-
greves”?326
Histórias de organização dos escravos em torno de questões relativas às
condições de vida e de trabalho, como a descrita acima, sempre foram
vistas como levantes ou rebeliões e nunca entendidas como reivindicações
legítimas de trabalhadores.327 No entanto, elas colocam em questão se é
possível dissociar essas manifestações de luta e a experiência cotidiana dos
escravos do processo mais amplo de formação da classe trabalhadora,328
especialmente em uma cidade como o Rio de Janeiro, onde as trajetórias de
escravos, libertos e livres se cruzavam constantemente no trabalho e fora
dele.
Esse convívio intenso pode ser percebido já no século XIX. Sidney
Chalhoub, em Visões da Liberdade, mostrou como a “cidade negra”
misturava os escravos com o restante da população – onde estavam
brasileiros brancos e imigrantes – nos muitos cortiços da “cidade
esconderijo”.329 E em lugares como esse, como observou Carlos Eugênio L.
Soares, “o compartilhar das agruras da miséria urbana criava laços difíceis
de romper.”330
No início do século XX esses mesmos espaços continuaram a misturar
negros e brancos, nacionais e estrangeiros, que aí compartilhavam das
agruras da vida ao dividirem o mesmo cortiço, o mesmo espaço de trabalho
ou enfrentarem a ação da truculenta polícia republicana, e estabeleciam
laços de solidariedade. Mas era também nesses espaços que emergiam
relações conflituosas que, não raro, terminavam nas dependências das
delegacias da cidade perante o delegado.
Dessa forma, mais do que tentar mostrar uma homogeneidade na
experiência dos trabalhadores do porto (ou qualquer outra categoria), é
preciso, ao contrário, estarmos atentos às contradições que marcaram essas
experiências, dentro e fora do cais. Contradições, ainda assim, de uma
experiência de classe.

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6 AN – Proc. n. 720, maço 883. 1908. p. 52


7 FAUSTO, 1979.
8 MARAM, 1979, p. 31.
9 ALBUQUERQUE, 1983.
0 O autor também menciona o conflito na Resistência. CHALHOUB, 1986, pp. 107-109.
1 CRUZ, 2000. pp. 280-281. Sobre os motivos da crise, a autora baseia-se em fontes manuscritas
localizadas nos arquivos mortos da Sociedade de Resistência e do Centro do Comércio de Café.
2 Maria Cecília Velasco e Cruz publicou um artigo em que discute especificamente o episódio. Cf.:
CRUZ, dez./fev. 2005-2006, pp. 188-209.
3 Os dados que se seguem foram tirados dos depoimentos semelhantes dos seguintes sócios brasileiros:
Rozendo Alfredo dos Santos, Rufino Ferreira da Luz, Philomeno Antônio de Araújo, Manoel
Matheus dos Santos, Cândido Ferreira Pinto de Almeida, Ramiro José da Silva, José Hermes de
Oliveira Costa e Antônio Pereira.
4 AN – Proc. n. 720, maço 883, 1908, p.7.
5 Correio da Manhã, 14/05/1908. p. 2.
6 Correio da Manhã. 007/01/1907. Evaristo de Moraes: “Coluna Operária”. p. 3. Para uma excelente
análise da trajetória de Evaristo de Moraes, especialmente como advogado de associações operárias
como a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, Ver : MENDONÇA, 2004.
Especialmente o Cap. II: “Um advogado no sindicato”.
7 Não cabe aqui discutir os ganhos e as perdas de tal lei para o trabalhador. Maria Cecília Velasco e
Cruz, em artigo citado, discute amplamente essa questão. Cf.: CRUZ, 2005-2006.
8 No resumo do processo, transcrito aqui, consta que apenas um do grupo era brasileiro e, mesmo
assim, filho de português. No entanto, de acordo com o auto de qualificação e com os depoimentos
verifica-se que tanto Henrique Roseira quanto Raphael Serrato Munhões eram brasileiros. Não
sabemos qual deles era filho de português...
9 KIRK, 2004. pp. 52-53
0 Cf. THOMPSON, 1987.
1 Correio da Manhã, 17/01/1906.
2 Segundo Cruz, os “contramestres” ou “contramestres de porão” eram trabalhadores mais experientes
que coordenavam o trabalho da estiva. Estes, por sua vez, seguiam a orientação dos encarregados das
firmas empreiteiras. Mas, no início do século, os contramestres exerciam funções que eram
claramente a dos encarregados. Cf. CRUZ, 1998, p.55.
3 Jornal do Brasil, 20/07/1895.
4 CRUZ, 1998, pp. 228-229.
5 Idem. p. 207.
6 AN – 2a Pretoria do Rio de Janeiro; m.890, Cx. 5156. 1909.
7 AN – 8a Pretoria do Rio de Janeiro; 0R. 2411. 1902.
8 AN – 8a Pretoria do Rio de Janeiro; 0R. 2675. 1903
9 SILVA, 2003. p. 150. Ver também artigo do mesmo autor In: BATALHA, FORTES e SILVA, 2004.
0 Ver depoimento de Arthur Vitor Ribeiro Pereira. AN – Proc. 720, maço 883.
1 Depoimento de Francisco Rodrigues Garcez à Fernando Teixeira da Silva. Cf. SILVA, 2003, p. 151.
2 Correio da Manhã, 27/01/1904. Coluna “Na Polícia e nas Ruas”.
3 “As quatro idéias capitais dos presos” In: RIO, 1997, p. 359.
4 Conforme noticiava o jornal Correio da Manhã, 14/10/1906, p. 3.
5 Cf. ARANTES, 2005. Ver também: CRUZ, 1998.
6 FAUSTO, 1979, p. 52.
7 Idem, pp.126-127.
8 Segundo Fernando Teixeira da Silva, a designação se refere ao predomínio anarquista em Santos nas
primeiras décadas do século XX; A cidade também é chamada de “Moscou Brasileira”, em referência
ao peso dos comunistas nos sindicatos do pós Segunda Guerra Mundial. Ambas fazem parte da
memória construída da cidade e visam apresentá-la como politicamente radical. Cf. SILVA, 2003.
9 É importante lembrar que não apenas os sindicatos portuários foram chamados de “amarelos”. O
apelido foi atribuído ao movimento operário de caráter reformista da cidade como um todo. Cf.
GITAHY, 1992; MARAM, 1979.
0 BATALHA, 1990.
1 CRUZ, 1998, p. 22
2 CRUZ, 2000, p. 254.
3 SARTI, 1981, p. 92.
4 A exemplo de alguns lock-outs feitos pelas companhias no início do século, que desestruturavam os
sindicatos, como ocorreu com a “Resistência” em 1908.
5 SILVA, 2003, p. 31
6 AN - Registro da União dos Operários Estivadores. 1o Ofício de Títulos e Documentos. Livro. A-1
7 Informação tirada de um processo por agressão que este sofreu em 1905, onde consta, que Joaquim
tinha 34 anos.
8 Como é o caso de Miguel Rosso, italiano sócio-fundador da União Operária dos Estivadores. Entre
os primeiros nomes do Livro de Matrícula de Sócios da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores
em Trapiche e Café é possível identificar pessoas de nacionalidades diversas. Entre os imigrantes,
existe uma maioria de portugueses.
9 CHAMBERLAIN, 1822.
0 CUNHA, 1985, p. 34.
1 CRUZ, 2000, p. 260.
2 REIS, 1986, p. 358.
3 “Ataque de Bárbaros”. Diário do Rio de Janeiro, 03/05/1872; a notícia também sai no Jornal do
Commercio, Jornal da Tarde e Diário de Notícias.
4 João José Reis já havia tratado de uma greve de escravos ganhadores, na Bahia do século XIX. REIS,
1993.
5 CRUZ, 2000, p. 268; Ver também: SOARES, 1998.
6 Claro que o fato de os trabalhadores chamados para furar a greve serem brancos provavelmente
provocou um descontentamento ainda maior. Talvez o empregador tenha contratado homens brancos
justamente para acirrar a disputa, usando a questão racial a seu favor. No entanto, por mais que a
disputa racial tenha aparecido durante o conflito, não foi o racismo em si que o iniciou. Ou seja, a
questão étnica aparece de forma secundária e talvez não estivesse presente ali não fosse a lógica
competitiva do mercado de trabalho que opõe trabalhadores.
7 Como na paralisação, ocorrida em 26/11/1857, dos escravos da Ponta da Areia (estabelecimento de
propriedade do Barão de Mauá, composto de fundição e estaleiro). Segundo o jornal A Pátria, os
escravos recusaram-se a trabalhar sem que fossem soltos três de seus companheiros que haviam sido
presos por desobediência às ordens do mesmo estabelecimento. MATTOS, 2008.
8 Sobre o resgate da experiência dos egressos da escravidão e das relações entre escravos, libertos e
livres, ver: LONER, 2001, capítulo 5; VITORINO, 2000; WISSENBACH, 1998; XAVIER, 1996.
9 CHALHOUB, 1990.
0 O autor narra um episódio em que um imigrante se opôs à prisão de um negro. SOARES, 1998, pp.
107-108.
AS ASSOCIAÇÕES OPERÁRIAS E A “GREVE
GERAL”
DE 1903
Marcela Goldmacher
Entre o final do século XIX e início do XX, o Rio de Janeiro figurava
como um dos principais portos mundiais, sendo o terceiro das Américas,
atrás apenas de Nova Iorque e Buenos Aires.331 Após a reforma urbana por
que passava o Rio de Janeiro em 1903, que incluíra melhorias no porto (só
concluídas alguns anos depois), com consequente barateamento das
operações, e a vacinação obrigatória, que quase erradicou a febre amarela
no Rio de Janeiro, tais operações comerciais através da cidade se ampliaram
ainda mais.332
Durante o governo de Campos Salles (1898-1902), já haviam sido
expandidas as áreas destinadas à agricultura, a rede ferroviária foi ampliada
e as suas tarifas reduzidas, melhorando, assim, o abastecimento do Rio de
Janeiro.333 Estes e outros fatores, como a existência de um mercado
consumidor, a proximidade de fontes de matéria-prima e a localização nesta
cidade de importantes bancos e da maior Bolsa de Valores, foram
incentivadores da indústria no Rio de Janeiro. A entrada de capitais
estrangeiros no Brasil de 1903 a 1910, apesar de se direcionar
principalmente aos agricultores, tornou possível ao governo a realização de
obras públicas em especial no Rio de Janeiro, então capital, o que acabou
por beneficiar a indústria.
No ano de 1895, a capital federal possuía 14 fábricas de tecidos, com
mais de 5.435 operários, entre nacionais, estrangeiros, homens, mulheres e
crianças, como consta do relatório do Ministério da Indústria, Viação e
Obras Públicas.334 Este mesmo setor, em 1907, no Rio de Janeiro, segundo
os dados do recenseamento do Ministério da Agricultura, Indústria e
Comércio de 1920, era composto por 22 estabelecimentos fabris, somando
tecidos de algodão, malha, lã, aniagem e rendas. Nesses estabelecimentos,
trabalhavam por volta de 8.117 trabalhadores, sendo estes nacionais e
estrangeiros, homens, mulheres e crianças, e destes, a grande maioria,
86,6%, era de trabalhadores nacionais.335 Para o ano de 1903 o número de
fábricas seria aproximadamente de 19 e o de operários entre 7.500 e
8.000336 (Tabela 1).
Estes números tornam-se significativos quando comparados com os
demais ramos da produção. Se tomarmos para comparação com as
indústrias têxteis, o número de operários empregados nos 34 setores de
produção relatados no Recenseamento de 1920 do Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio, para o ano de 1907, veremos que, do
total de 21.416 operários empregados nos setores de produção, a indústria
têxtil empregava mais de 1/3 do total de operários.
Tabela 1. Número de fábricas e de operários no Rio de Janeiro
Ano Número de Fábricas Número de Operários
1895 14 5.435
1903 ~19* 7.500 a 8.000**
1907 22 8.117
*Dados projetados por regressão exponencial, r² = 0,964; ** Dados projetados por regressão
exponencial, r² = 0,910.
Considerando-se toda a Primeira República, 1903 foi o ano de maior
número de greves no Rio de Janeiro.337 Naquele ano, os trabalhadores em
fábricas de tecidos iniciaram uma greve, que em seu desenvolvimento foi
chamada pelos envolvidos de “greve geral”, com duração de 26 dias.
No dia 11 de agosto de 1903, os trabalhadores das fábricas de tecidos do
Rio de Janeiro, mais especificamente os trabalhadores da seção de
tecelagem da fábrica Cruzeiro, iniciaram uma greve. Aos tecelões da
Cruzeiro se uniram os operários das fábricas de tecidos Aliança, Bonfim,
Carioca, Santa Helena e Confiança Industrial. Em solidariedade aos
trabalhadores em fábricas de tecidos, se declararam em greve os integrantes
da Sociedade dos Artistas Chapeleiros, da Associação de Classe dos
Artistas Sapateiros, Associação de Classe União dos Chapeleiros e Liga dos
Artistas Alfaiates.
Outros trabalhadores que se declararam em greve foram os têxteis da
Bangu, os da fábrica de charutos do Engenho de Dentro, os vidreiros da
fábrica Esberard, os trabalhadores da fábrica de velas Luz Esteárica e os
têxteis da Empresa Industrial Brasileira. Após reunião no Congresso União
dos Operários das Pedreiras, estes também aderiram à greve, assim como os
marceneiros da União de Classe dos Marceneiros. Aderiram também à
greve, em solidariedade aos grevistas, os carpinteiros.338
Um mês após o fim da “greve geral” foi fundada a Federação das
Associações de Classe. Desta organização, em 1905, originou-se a
Federação Operária Regional Brasileira, que no ano seguinte organizou o 1o
Congresso Operário Brasileiro, e se transformou na Federação Operária do
Rio de Janeiro.339
A greve de 1903 foi uma greve relevante não só por ter sido uma greve
que reuniu várias categorias, mas, principalmente, por estas terem sido
representadas por suas associações de classe. Algumas dessas associações,
quando foram fundadas, já possuíam a finalidade de defesa do associado
enquanto trabalhador, outras, no entanto, foram fundadas com fins
educativos ou assistenciais e se voltaram para a defesa do trabalhador em
resposta à pressão sofrida pela realidade dos acontecimentos, o que as fez
ampliar a sua área de atuação para além de suas funções originais de
educação e de assistência mútua. Assim, apesar de terem se unido em torno
de um objetivo comum, estas associações não seguiam uma mesma forma
de organização e nem tinham suas ações orientadas pelos mesmos
princípios.
Os jornais do Rio de Janeiro, tanto os jornais operários como os de
maior circulação, tornaram pública a atuação destas associações durante a
greve como representantes dos trabalhadores. Entre as associações
envolvidas na greve encontramos registro na imprensa das seguintes: a
Sociedade dos Artistas Chapeleiros, a Associação de Classe dos Artistas
Sapateiros, a Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos,
a Associação de Classe União dos Chapeleiros, a Liga dos Artistas
Alfaiates, o Congresso União dos Operários em Pedreiras, o Centro dos
Sapateiros, o Centro Internacional dos Pintores, a União de Classe dos
Marceneiros, a Sociedade Operária do Jardim Botânico e a União das
Classes Operárias.
Dessas associações, analisaremos aqui quatro mais detidamente: a
Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos, a Associação
de Classe União dos Chapeleiros, a Liga dos Artistas Alfaiates e o
Congresso União dos Operários em Pedreiras. Estas associações foram
escolhidas para uma análise mais aprofundada, dentre as tantas citadas
acima, devido à continuidade da sua atividade ao longo dos anos. Estas
associações, que tiveram participação na greve de 1903, continuaram ativas
nos anos seguintes, chegando a participar de Congressos Operários, como o
de 1906, que deu origem à Confederação Operária Brasileira (COB) e o de
1913, organizado pela própria COB.
As fontes utilizadas na pesquisa e elaboração deste capítulo retratam a
continuidade destas associações. Veremos que algumas dessas associações
de classe, ao longo de sua vida mudaram de nome, uniram-se a outras
associações da mesma categoria e, algumas vezes, alteraram suas
referências político-organizativas. As associações tratadas aqui foram
tomadas como uma representação da diversidade associativa da realidade
do período que gira em torno da greve de 1903, algumas vezes, recuando e,
outras, avançando no tempo.
Além dessas quatro associações, será analisada também aqui a União
dos Operários Estivadores. Os operários estivadores ainda não se
encontravam organizados antes da greve de 1903, e, por isso, não foram
representados por sua associação de classe. No entanto, eles se organizaram
durante a greve e a União foi fundada no dia 13 de setembro de 1903,
apenas oito dias após o fim do movimento, continuando ativa nos anos
seguintes da mesma forma que as associações anteriormente citadas.

As associações operárias e a greve


Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos
Sabemos pelos relatos da greve que a Federação dos Operários e
Operárias em Fábricas de Tecidos foi fundada no início do ano de 1903 e
foi a primeira agremiação desta categoria. Segundo o relatório do Sindicato
dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos, apresentado no Segundo
Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1913, esta Federação atuava
seguindo o método da resistência ou do sindicalismo francês.340
Em artigo intitulado “Sindicalismo”, publicado no A Voz do
Trabalhador, Tcherkesoff afirma que o sindicalismo francês originou o
movimento sindicalista internacional, e possui os seguintes pontos básicos:
“1º - Organizar os assalariados para a defesa dos seus interesses morais e
materiais, econômicos e profissionais. 2º - Organizar, fora de todo partido
político todos os trabalhadores conscientes da luta a empenhar para a
supressão do salariato e do patronato”.341
Ainda segundo o autor, estes são os pontos fundamentais do socialismo,
independentemente da escola e partido, e qualquer membro de um partido
socialista, que pode ser democrático-social, anarquista, ou de qualquer outra
vertente pode aceitá-los. Dessa forma, o indivíduo associado ao sindicato
teria total liberdade para, fora do sindicato, ter qualquer concepção política,
inclusive pertencer a partido político, desde que isto não viesse a interferir
na vida sindical. Nas palavras do autor:
[...] o sindicalismo francês reuniu em menos de quinze anos mais de 600 mil associados,
dos quais 400 mil são quotizantes na Confederação Geral do Trabalho. Este enorme
exército sindicalista está organizado sobre as bases da autonomia dos sindicatos e das
federações locais e nacionais.
A mesma autonomia se estende a cada indivíduo associado, o qual, fora do seu sindicato,
tem completa liberdade ou concepção política, podendo pertencer a qualquer partido para as
eleições parlamentares ou municipais; porém, nenhum tem o direito de, na qualidade de
sindicado ou de membro duma administração sindical, tomar parte em partido algum.342
Segundo o relatório histórico do Sindicato dos Trabalhadores em
Fábricas de Tecidos,343 muitos operários das fábricas de tecidos do Rio de
Janeiro a ela se associaram em pouco tempo. Essa associação teria gerado
tal entusiasmo, não só entre os trabalhadores em fábricas de tecidos, mas
também entre os trabalhadores de outras categorias, a ponto de ter sido o
principal suporte da “greve geral” de 1903, que segundo esse relato teria
reunido um total de 40.000 grevistas.
Ainda segundo este relatório a greve obteve uma vitória parcial do ponto
de vista material, uma vez que os operários reivindicavam 8 horas de
trabalho diário e aumento de 40% e obtiveram 9 horas e meia de trabalho e
aumento qualificado como “insignificante”. Porém, em termos morais, a
greve teria sido um fracasso, pois uma grande quantidade de operários foi
demitida, em especial nas fábricas Carioca, Aliança e Confiança.
O autor do relatório, ao certo também motivado por diferenças de
avaliação em relação à direção da época, entende que o denominado
fracasso teria sido motivado principalmente pela “precipitação dos
operários em declarar a greve, pois tendo a Federação poucos meses de
existência, os seus associados não poderiam estar devidamente orientados
para uma ação tão repentina”.344 Esta ação dependeria de grande
solidariedade e de grande experiência, que os trabalhadores não teriam.
Mas não só a precipitação é apontada como causa do fracasso. Este
também teria sido resultado da participação de elementos não operários no
movimento. Segundo o mesmo relatório, um agente especial do corpo de
segurança pública, chamado Francisco Fernandez, ligado ao Ministério da
Justiça, ter-se-ia feito passar por desenhista do Ministério do Interior. Este
elemento teria sido um dos organizadores de um comitê de greve que agiu
com o objetivo de levar ao fracasso do movimento, aconselhando os
proprietários das fábricas a fazerem apitar as máquinas durante três dias e
afixar boletim nas portas dos estabelecimentos afirmando que seriam
demitidos aqueles trabalhadores que não comparecessem ao trabalho dentro
desse prazo.
Ainda segundo o autor do relatório, a derrota da greve deu início à
desestruturação da Federação, que fechou as portas alguns meses depois. Os
trabalhadores em fábricas de tecidos ficaram sem organização formal até
1908, quando foi fundado o Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de
Tecidos, que em pouco tempo chegou a 800 membros.
A avaliação feita no relatório em relação a esses acontecimentos é de
que, se os associados fossem mais “sindicalistas”, isto é, tivessem mais
consciência dos seus direitos, seriam vencedores na luta contra os patrões,
pois as máquinas não se operam por si, precisam do operário para fazê-lo, e
não existem para ficar inativas. Consta também do relatório a advertência
de que não basta pagar ao sindicato para vencer as greves.
É que para que elas sejam vitoriosas, é preciso que cada operário por si mesmo seja soldado
e general ao mesmo tempo; é preciso que quando se declarem em greve, saibam todos como
se hão de conduzir, dispensando os comandantes; é preciso que quando forem presos os
companheiros mais influentes, eles continuem a lutar com a mesma coragem até vencer.345
Como consideração final nesta seção do relatório, seu autor aconselha
que, enquanto durarem as arbitrariedades dos patrões e da polícia, como a
invasão das casas durante a madrugada, não se devem tentar mais
negociações com aqueles. Deve-se fazer uso da sabotagem e de armas de
fogo, da mesma forma que são utilizadas contra os trabalhadores. Desta
forma, esperava que o novo Sindicato dos Operários em Fábricas de
Tecidos consiga melhor representar os seus associados, que, por sua vez,
devem ter mais consciência e união contra a exploração da burguesia.
Congresso União dos Operários em Pedreiras
A greve teve início no dia 11 de agosto de 1903. No dia 20 daquele mês,
os operários em pedreiras, após uma reunião no Congresso União dos
Operários em Pedreiras, aderiram à greve.
O Congresso União dos Operários em Pedreiras foi fundado na cidade
do Rio de Janeiro em 20 de outubro de 1901, como uma sociedade
beneficente, mas assumindo papel reivindicativo em prol dos operários das
pedreiras.346 Como consta de seu estatuto,347 aceitava como sócios
exclusivamente empregados de pedreiras, mas não se restringia apenas aos
trabalhadores do Rio de Janeiro, aceitando também trabalhadores de outras
regiões do Brasil. Foi fundado com o objetivo de promover a melhoria da
situação moral, intelectual e material da categoria como um todo, e não
apenas dos seus associados.
Objetivava também defender os direitos da categoria, estabelecer uma
tabela de preços para todos os trabalhos, com pontualidade de pagamentos,
e a elevação dos salários, por meio de acordo coletivo.348
Em casos individuais a associação tinha o objetivo de resolver os
problemas ocorridos entre patrões e operários sócios, esforçar-se pela
recolocação daqueles que estivessem desempregados e ainda criar uma
caixa de auxílio de socorros e outra de defesa social.
Constava ainda dos fins do Congresso organizar uma biblioteca, criar
aulas de instrução primária e desenho para os sócios e seus filhos,
“promover conferências doutrinais dos princípios sociais”,349 que não
tivessem relação com assuntos políticos ou religiosos e criar um jornal
operário, em defesa dos operários em pedreiras e do Congresso.
Os Estatutos do Congresso previam também a possibilidade de
presentear com título de benemérito ou benfeitor o sócio, ou “qualquer
cidadão”,350 que tivesse prestado serviços ao Congresso, à classe ou à
humanidade. Apesar da possibilidade de “qualquer cidadão” receber este
título, e de terem sido escolhidos como presidente e vice-presidente
honorários o comendador Joaquim Bittencourt da Silva e o dr. Vicente
Libertino de Albuquerque, respectivamente, o art. 30 afirma que para ser
admitido como sócio é preciso ser operário de pedreiras, nos ofícios de
canteiro, encunhador ou ferreiro. O Congresso União dos Operários em
Pedreiras faria parte, nos anos seguintes, da Federação Operária do Rio de
Janeiro e da Confederação Operária Brasileira.
Até a fundação do Congresso não havia regulamentação de horas de
trabalho para esta categoria, o que tornava possível que operários
encunhadores, por exemplo, trabalhassem até 14 horas diárias. Diante desta
situação uma greve foi organizada pelos operários de uma das firmas, que
logo formaram comissões para visitação a outras firmas com o objetivo de
conseguir a adesão dos demais operários. Estes, diante da necessidade de
regulamentação dos horários e da criação de uma associação, aderiram à
greve, tornando-a geral, de toda a categoria dos operários em pedreiras.351
Com essa greve a categoria conseguiu a jornada de 10 horas diárias,
tanto para os trabalhadores por peça quanto para aqueles que trabalhavam
por hora, e organizaram sua associação, o então Congresso União dos
Operários em Pedreiras. Os operários canteiros, reunidos em torno do
Congresso, organizaram tabelas de preços dos serviços, que eram pagos por
peça, sem preço fixo. Estas tabelas foram apresentadas aos patrões em
agosto de 1903, exatamente durante a “greve geral”, e por estes assinadas
em 1º de setembro deste mesmo ano.
Após essas primeiras vitórias, enfraqueceu-se a ação combativa do
Congresso, ao mesmo tempo em que este acumulava em seus cofres o
dinheiro do pagamento da cota dos sócios. O resultado deste
enfraquecimento foi a queda do valor pago pela mão de obra. A alternativa
então pensada para resolver o problema dos baixos salários foi a fundação
de uma cooperativa de produção em dezembro de 1906, mas esta só foi
capaz de auxiliar uma pequena parte dos associados, enquanto a maioria
continuava a receber os mesmos baixos salários.
Segundo avaliação dos autores do relatório do Sindicato União dos
Operários em Pedreiras, os resultados da Cooperativa foram nulos e esta foi
dissolvida após consumir todo o dinheiro que o Congresso possuía. “Caiu a
cooperativa e com ela o Congresso União dos Operários em Pedreiras”.352
Com o fim da Cooperativa e do Congresso, os operários em pedreiras
decidiram seguir as resoluções do Primeiro Congresso Operário, do qual
haviam participado, e formar um sindicato. O Sindicato dos Operários em
Pedreiras foi efetivamente fundado em 1909. O Sindicato teve ativa
participação em greves da categoria, com imposição de tabelas de preço de
mãodeobra e de horários de trabalho e, após um período de um ano em que
permaneceu fechado por falta de sócios, (1911) o Sindicato foi reaberto em
12 de junho de 1912. “E prosseguiu o Sindicato na sua obra de
reivindicações, saindo sempre vitorioso das lutas sustentadas. Esforçando-
se por que o maior número dos operários das pedreiras a ele se filiasse,
chegou ao fim desse ano de 1912, a contar 2.000 sócios”.353
Associação de Classe União dos Chapeleiros
Uma semana após o início da greve, uma comissão da Associação de
Classe União dos Chapeleiros foi à Federação dos Operários e Operárias em
Fábricas de Tecidos declarando-se solidária aos trabalhadores em tecidos e
constituindo-se em greve.
A Associação de Classe União dos Chapeleiros, em junho de 1905,
uniu-se ao Club Protetor dos Chapeleiros formando uma nova associação, a
Associação de Classe Protetora dos Chapeleiros. Esta nova associação se
afirmava “essencialmente de classe”.354 Para filiar-se a esta era preciso ser
operário ou operária de qualquer ramo de fabricação de chapéus, com no
mínimo 16 anos de idade e “não ter nódoa que o infame”.355
A Associação possuía funções de auxílio mútuo e de resistência, o que
podemos perceber logo no início do estatuto, em que se declaram quais são
seus fins. Os fins da Associação de Classe Protetora dos Chapeleiros eram
“concorrer para o melhoramento da Classe dos Operários Chapeleiros”,356
estabelecer relações com as corporações do mesmo gênero e filiar-se às
mesmas, organizar uma “cooperativa de chapéus”357 e uma “cooperativa de
comestíveis”358 nas quais seriam empregados os associados que estivessem
desempregados e organizar uma biblioteca.
Mais especificamente em relação à função de resistência, a Associação
se propunha a mediar as questões entre patrões e operários até que se
chegasse a uma solução e desenvolveria propaganda para a conquista das 8
horas de trabalho diárias. Consta nos estatutos que seria criada uma
“comissão de trabalho”,359 que procuraria trabalho para os associados que
estivessem desempregados e deveria estar informada sobre as condições de
trabalho nas fábricas e propor ao diretório da Associação medidas para
melhorar as condições de higiene, o tempo de trabalho e os salários. A
Associação de Classe Protetora dos Chapeleiros ainda orientava os
associados que fizessem o possível para que as vagas nas fábricas só fossem
preenchidas por operários associados, garantindo respaldo aos que fossem
demitidos por defenderem os interesses da Associação.
Liga dos Artistas Alfaiates
No dia 18 de agosto, uma semana após o início da greve, uma comissão
da Liga dos Artistas Alfaiates declarou-se em greve indo à sede da
Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos. No entanto,
no dia 21 do mesmo mês, outra comissão da Liga foi ao gabinete do chefe
de polícia para pedir a sua intervenção frente aos patrões para que estes
atendessem ao seu pedido de aumento dos salários e redução a oito horas de
trabalho. O chefe de polícia se recusou a servir de intermediário, uma vez
que a greve já havia sido declarada e ele só poderia fazê-lo caso tivesse sido
contactado como “interventor pacífico”360 antes da declaração de greve.
Diante desta recusa do chefe de polícia, a Liga declarou que se manteria em
greve até que tivesse conseguido as conquistas pretendidas.
A Liga dos Artistas Alfaiates foi fundada em novembro de 1901.
Aceitava como associados somente os trabalhadores, excluindo-se os
patrões. Possuía a função de reunir os alfaiates e orientá-los para a ação em
defesa de seus interesses sem a intervenção de elementos estranhos à
categoria e de elementos políticos.
A Liga fornecia aos seus associados “aulas de corte”, nas quais se
ensinava a cortar qualquer peça de roupa, o que não era possível aprender
nas oficinas e publicava o jornal O Alfaiate, na cidade do Rio de Janeiro,
como seu órgão oficial.361
A Liga mantinha ativa relação com as demais associações operárias. Sua
sede abrigou a fundação de associações que posteriormente conseguiram
suas próprias sedes e juntamente com outras associações fundou, em 1903,
a Federação das Classes Operárias. As memórias da entidade de classe dos
alfaiates confirmam a importância de sua participação na Federação, pois lá
se registra que, após a sua fundação, a Federação recebeu a visita de uma
delegação da Federación Obrera Argentina, que foi recepcionada em uma
seção especial na Liga, em que foi formulado um pacto de solidariedade
com todo o operariado universal.362
A Liga dos Artistas Alfaiates participou do Primeiro Congresso
Operário, apresentando delegados e temas a serem discutidos. Logo após o
Congresso, a Liga começou a por em prática o que aquele recomendava,
seguindo a primeira das resoluções sobre orientação que:
[...] aconselha o proletariado a organizar-se em sociedades de resistência econômica,
agrupamento essencial e, sem abandonar a defesa, pela ação direta, dos rudimentares
direitos políticos de que necessitam as organizações econômicas, a por fora do Sindicato a
luta política especial de um partido e as rivalidades que resultariam da adoção, pela
associação de resistência, de uma doutrina política ou religiosa, ou de um programa
eleitoral.363
Assim, no dia 1o de junho de 1906, passou a denominar-se Sindicato dos
Artistas Alfaiates. Segundo consta do relatório da União dos Alfaiates
apresentado ao Segundo Congresso Operário, a Liga dos Artistas Alfaiates
desde a sua fundação já havia dispensado “o presidencialismo, a
beneficência, a política, as discussões religiosas, os princípios patrióticos e
tantos e tantos outros prejuízos sociais”.364 Dessa forma, restou apenas
simplificar os seus princípios da forma como exigia a orientação
sindicalista. O sindicato passou a ser dirigido por assembleias soberanas,
que teriam suas deliberações executadas por uma comissão composta por
sete membros.
O então Sindicato dos Artistas Alfaiates, no entanto, em 22 de abril de
1907, após um período de queda no interesse de seus associados, foi
dissolvido, e todos os seus pertences, como documentos, biblioteca e
mobiliário, foram guardados na sede da União dos Operários Estivadores e
Associação de Classe de Resistência dos Cocheiros, Carroceiros e Classes
Anexas. Os alfaiates só voltaram a se organizar em maio de 1909, fundando
a União dos Alfaiates, nas bases do sindicalismo,365 formada inicialmente
por 250 sócios.
Como se afirma no relatório da União dos Alfaiates, esta associação,
assim como suas antecessoras, seguiu sempre os princípios de
solidariedade, acompanhando os movimentos dos operários de outras
categorias (“companheiros de outras classes”), não só do Rio de Janeiro,
como de outras cidades e países e apoiando-os, desde que seu sofrimento e
sua revolta tenham sido causados pela desigualdade social. A União, o
Sindicato e a Liga dos Artistas Alfaiates também estiveram sempre ligados
às federações como a FORJ e a COB.
Apesar de a União afirmar que seus princípios eram os do sindicalismo,
como aconselhava o Primeiro Congresso Operário, esta, assim como fazia
anteriormente a Liga, fornecia “Curso de Corte”. Segundo a União, esse
curso foi um dos motivos pelos quais a associação pôde continuar a existir,
pois atraía sócios que procuravam vantagens imediatas sem quebrar os
princípios de sua existência.366
União dos Operários Estivadores
Os operários estivadores aderiram à greve no dia 25 de agosto, quando
os têxteis, que a haviam iniciado, já começavam a se retirar. Reuniram-se
no cais dos Mineiros, onde usualmente embarcavam e nomearam uma
comissão para organizar as bases de suas reclamações, esta comissão ficou
reunida na sede da Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de
Tecidos.
Diante da manutenção da greve dos trabalhadores da estiva, o chefe de
polícia, Cardoso de Castro, pediu aos trabalhadores que voltassem ao
serviço e ele seria o intermediário nas negociações por melhores condições
de trabalho. Os estivadores aceitaram a proposta e voltaram ao trabalho no
dia 5 de setembro.
A União dos Operários Estivadores foi fundada em 13 de setembro de
1903, na cidade do Rio de Janeiro, poucos dias após o fim da “greve geral”
de 1903. Apesar de ainda não estarem organizados em torno de uma
associação, isto não os impediu de atuar de forma unificada como categoria,
identificando-se como pertencentes à classe operária do Rio de Janeiro, que
neste momento apresentava reivindicações comuns.
A União, que aceitava sócios de qualquer nacionalidade, foi fundada
com a finalidade ampla de defender os associados e “trabalhar pelo
levantamento moral, intelectual e material da classe”.367 Para tal, a União
atuaria em duas frentes, na resistência e no auxílio aos trabalhadores
associados.
Com função de resistência defenderia gratuita e obrigatoriamente os
associados em caso de prisão injusta, perseguição ou abusos, atuaria como
mediadora nos conflitos entre patrões e empregados, regulamentaria as
condições de trabalho e tentaria fazer com que seus associados tivessem
preferência nas contratações. Além destas funções, a União pretendia
organizar “um sindicato para o fim de contratar diretamente o serviço de
carga e descarga dos navios”,368 “estreitar os laços de solidariedade operária
em todas as associações congêneres dentro e fora do país”369 e criar um
fundo de defesa para a categoria dos estivadores para por meio dele manter
a “resistência ordeira e pacífica”.370
Além desta função de resistência, a União também possuía a função de
auxílio mútuo. Na reforma dos estatutos de 1905, a União se propunha a
criar aulas de instrução, um jornal de propaganda e uma biblioteca, tão logo
possuísse recursos para tal, além de fornecer auxílio pecuniário aos sócios
quando enfermos e para seu funeral.
No ano de 1910, o estatuto foi novamente reformado. Com esta reforma
a União continua tendo a função de auxílio, porém se percebe um aumento
do número de funções voltadas para a resistência, tais como a intervenção
em questões salariais, de horas de trabalho e de “regalias da classe”,371 a
fundação de uma caixa de resistência para as despesas com greves e a
contratação de um ou mais advogados “para defender perante as
autoridades, patrões, empresas e poderes públicos, os interesses dos sócios e
os da Sociedade”.372
Além das funções de resistência e auxílio, a União, com a reforma do
estatuto em 1910, passa a regulamentar o serviço da estiva. O que fica claro
no Art. 8o, regulamentando a forma como o estivador deve embarcar e fazer
o seu serviço, inclusive prevendo multas e suspensões caso o trabalho não
seja efetuado da forma estabelecida. Esta regulamentação visava também
defender a União, garantindo a sua presença no trabalho da estiva.
São deveres dos sócios relativamente ao serviço:
§ 1o Embarcar com contra-mestres associados, devendo respeitar as ordens dos mesmos,
quer nos embarques, quer durante o trabalho, fazendo o serviço com escrúpulo e
honestidade, não cometendo abusos de que resultem discórdias ou descrédito da sociedade,
não podendo abandonar nem recusar trabalho, desde que este não seja superior às suas
forças.
§ 2o Repartir o serviço sem designação de proa ou popa, nem este ou aquele lado,
trabalhando todos de acordo afim de não haver sacrifício nem prejuízo no andamento do
serviço, bem como cambiar desta para aquela escotilha, de um para outro vapor, dentro das
horas determinadas; excetuando para couro salgado, carvão, mineral, que para tais cargas
deverão ser avisados com antecedência.
§ 3o Prosseguir no trabalho, já começado, mesmo que fique algum dos companheiros
enfermo ou seja vítima de algum desastre, salvo se o acidente se tiver dado por motivo de
imprestabilidade, defeito ou ruína dos aparelhos de bordo”.373
Esta regulamentação do trabalho é ainda reforçada pelo Art. 16 com
multas e suspensões caso o trabalho não seja efetuado da forma
estabelecida. Outras questões passíveis de punição, ainda mais graves, uma
vez que seriam motivos para a eliminação do associado, eram a difamação
da sociedade, a realização de acordo com os patrões contra os interesses e
ordens da sociedade, a traição da sociedade ou de algum companheiro
durante greves, por meio da denúncia às autoridades ou aos patrões e, ainda,
a prática de delitos contra a propriedade, estando ou não em serviço.
Os estatutos, em seu conjunto, visavam à conquista –, e os estivadores
efetivamente conquistaram, do closed shop. O closed shop garantiria para
estes trabalhadores ganhos e exclusividade no trabalho para os associados.
A questão da exclusividade no trabalho adquire uma grande importância na
medida em que se tratava de trabalhadores avulsos. Os trabalhadores
avulsos eram aqueles que não possuíam um vínculo empregatício, não
possuíam um patrão e um emprego formal, mas sim um trabalho que
poderia ser ocasional, o trabalhador poderia conseguir trabalho em um dia,
mas talvez não em outro. Este tipo de trabalho, além de trazer ao
trabalhador a incerteza do serviço no dia seguinte, fazia-o alvo de suspeição
por parte das autoridades, pois caso não conseguisse serviço poderia ser
identificado como vadio. O closed shop, assim, trazia ao trabalhador
maiores chances de trabalho, e o pertencimento ao sindicato, uma forma de
comprovar ser trabalhador e não vadio ou desordeiro. Segundo Maria
Cecília Velasco e Cruz, o closed shop também viria a atender a necessidade
de valorização dos trabalhadores negros que carregavam o peso de serem
vistos pelos patrões, ou contratadores, ainda como escravos ou libertos.374
Outros pontos importantes foram adicionados ao estatuto em 1910, além
dos já citados. Nesta reforma do estatuto torna-se mais claro quem seriam
os possíveis associados. Seriam admitidos como sócios os trabalhadores da
estiva com bom comportamento, maiores de 18 anos e menores de 50, e,
não seriam admitidos aqueles que tivessem “sido condenados por crimes
contra a propriedade ou por embriaguez habitual”375 e os contramestres,
apesar de terem a liberdade de se associar, não poderiam exercer nenhum
cargo na sociedade, consequentemente, não poderiam tomar decisões
relativas aos operários estivadores, o que é mais uma forma de não
aceitação da participação de não operários na luta operária.
Em se tratando da participação no interior da sociedade, a União possuía
uma organização que poderíamos chamar de democrática, uma vez que
qualquer associado poderia pedir a palavra e propor qualquer assunto para
discussão e votação, votar e ser votado, desde que, para ser votado, não
fosse analfabeto ou contramestre, como já comentado acima. Esta forma de
organização difere de algumas outras associações, em que a participação era
mais restrita, e algumas vezes, mais burocrática, uma vez que o associado,
para ter um assunto de seu interesse discutido, deveria propor o mesmo para
ser avaliado e somente posteriormente ser discutido em momento
estabelecido pelos dirigentes da associação, como era o caso, por exemplo,
da Associação de Classe Protetora dos Chapeleiros.
Ainda com relação à complementação do estatuto anterior, a reforma de
1910 incluiu como parte da caixa de resistência a criação de uma
cooperativa de consumo e proibiu discussões políticas e a representação da
associação em manifestações políticas.
Em nova reforma do estatuto da União dos Operários Estivadores,
realizada em 1915, além dos pontos presentes nos estatutos anteriores,
percebemos o objetivo de ampliação espacial da atuação da União “com a
organização da classe da estiva em todos os portos do Brasil”.376
Dois outros pontos diferem do estatuto anterior. Um deles diz respeito
ao objetivo de conquista das 8 horas de trabalho diárias, enquanto nos
estatutos anteriores se tratava apenas da redução de horas sem maior
especificação. O outro ponto diz respeito às condições para que um
trabalhador se associe à União. De 1910 para 1915 foi reduzida em 10 anos
a idade máxima para a associação, e ampliada em quatro anos a idade
mínima. Neste novo estatuto “para ser admitido como sócio é necessário
bom comportamento, perfeita saúde, que seja maior de 21 anos e menor de
40. Trabalhador de preferência marítimo e que não apresente defeitos
físicos que o impossibilite de trabalhar”.377
Um balanço
Pela descrição das associações feita anteriormente vimos que, muitas
vezes, coexistiam no seu interior diferentes funções, tais como resistência,
auxílio mútuo, cooperativismo, dentre outras. Este era o caso do Congresso
União dos Operários em Pedreiras. Declaradamente fundado como uma
sociedade beneficente, o Congresso, entre suas várias funções, oferecia aos
sócios conferências doutrinais dos princípios da sociedade, mas estas
conferências não deveriam ter relação com assuntos políticos ou religiosos.
É preciso ter claro qual o sentido de “político” implícito em tal resolução.
No Primeiro Congresso Operário, realizado no Rio de Janeiro, em 1906,
ficou decidido que as questões políticas e religiosas não deveriam fazer
parte do sindicato. Esta decisão se justificava com base no argumento de
que as divergências de opinião em relação a essas questões dentro do
proletariado só trariam divisões que atrapalhariam a união e a luta. Dessa
forma, o Congresso aconselhava que o proletariado se organizasse em
sociedade de resistência econômica, tópico de opinião comum que não
geraria rivalidades e divergências. No entanto, aconselhava também que a
luta pelos direitos políticos mínimos, que mesmo as organizações
econômicas necessitam, não fosse abandonada, mas que fosse realizada
pelo método da ação direta.378
Ficou também decidido no Congresso que as associações operárias
deveriam adotar o nome de sindicato e que a resistência deveria ser a sua
única função. Os operários das pedreiras, em 1909, após terem participado
do Primeiro Congresso Operário, como Congresso União dos Operários em
Pedreiras, refundaram a associação com o nome de Sindicato dos Operários
em Pedreiras. A Liga dos Artistas Alfaiates, em 1906, também passou a se
denominar Sindicato dos Artistas Alfaiates e o mesmo fez a União dos
Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos, vindo a se chamar Sindicato
dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos. A justificativa para a resolução
do Congresso Operário era a de que a beneficência, o mutualismo ou o
cooperativismo facilitariam as imposições do patronato. Estas funções
secundárias, além de desviarem o foco da função principal de resistência e
apesar de atraírem grande número de associados, atraíam aqueles sem
iniciativa e sem o objetivo de resistir.379
Um terceiro ponto do Congresso que merece destaque é o que diz
respeito à participação, ou não, de não operários no sindicato. Não apenas
os proprietários das fábricas e oficinas, mas até mesmo mestres e
contramestres eram proibidos pelas resoluções de filiar-se ao sindicato. Os
motivos que levam os patrões a não serem aceitos dispensam maiores
explicações, mas, no caso dos mestres e contramestres, estes eram vetados
por serem identificados como os representantes daqueles.
Durante a greve de 1903, a Liga dos Artistas Alfaiates apesar de já ter
abolido no seu interior o presidencialismo, a beneficência, as discussões
políticas e religiosas, após declarar-se em greve recorreu ao chefe de polícia
pedindo a sua intervenção frente aos patrões. Posteriormente, o Primeiro
Congresso determinou que os meios de ação a serem empregados na luta
deveriam ser os da ação direta e deveriam depender unicamente da
atividade das associações, como a greve geral ou parcial, a boicotagem, o
label, a manifestação pública.
Acompanhando as discussões do primeiro e segundo congressos
operários percebemos claramente a opção por um sindicato livre de
qualquer definição política de princípios, dentre elas o socialismo e mesmo
o anarquismo, ainda que muitos dos defensores dessas propostas pudessem
identificar-se como anarquistas e alguns como socialistas. A lógica de tal
princípio se justificava pela tentativa de tirar do sindicato (ou melhor, da
associação operária, uma vez que muitas das associações federadas e/ou
participantes dos congressos não possuíam a denominação de sindicato)
qualquer motivo de divergência e disputa entre o operariado.
Em relação a este ponto especificamente, se o sindicato devia adotar
uma política ou manter-se neutro, os debates do Segundo Congresso
Operário se dão em torno de duas propostas: a adoção do socialismo
anarquista, ou seu sinônimo, o anarquismo e a manutenção da liberdade
individual, sem imposição de uma ou outra doutrina. Esta segunda proposta
é, na realidade, o posicionamento aprovado no Primeiro Congresso
Operário. A discussão em torno da adoção do anarquismo fora proposta
pela Federação Operária de Santos com base na seguinte argumentação:
“Sendo as aspirações das organizações operárias tendentes à transformação
econômica e social, quais devem ser os princípios da nova sociedade: os da
propriedade privada e da autoridade ou os do socialismo anarquista?”.
Depois de feito o debate, a mesma federação sugeriu a seguinte proposta:
“Considerando que a política é a arte de governar os povos e que o governo
é a antítese da liberdade econômica, social e intelectual dos trabalhadores,
este Congresso aconselha a propaganda do anarquismo nas sociedades
operárias, como meio para alcançar a emancipação dos trabalhadores”.380
A proposta da FOLS de que a COB deveria indicar o socialismo
anarquista como princípio para as sociedades operárias não foi aprovada.381
A proposta de Edgard Leuenroth, Astrojildo Pereira, José Romero, Myer
Feldman e Cecílio Vilar era a de que a organização deveria se “manter
inteiramente no terreno da ação direta de pressão e resistência contra o
capitalismo, para a garantia e conquista dos seus direitos econômicos que
ligam estreitamente os trabalhadores, divididos pelas suas opiniões
políticas, religiosas ou sociais”.382
O posicionamento aprovado pelo Segundo Congresso foi o de que as
sociedades operárias deveriam permitir em seu interior a livre discussão de
todas as ideias, o que não implica a renúncia a essas ideias. O objetivo a ser
alcançado por este posicionamento era a abertura do sindicato, ou
associação operária, para o maior número possível de trabalhadores, sem
que motivos de divergência viessem a enfraquecer a luta contra o
capitalismo.
É importante sublinharmos este ponto. A luta em que a Confederação
Operária Brasileira se coloca, apresentada por meio das discussões e
resoluções do Segundo Congresso Operário, é contra o capitalismo. Não é
uma luta por simples melhorias da então situação econômica, nem apenas
contra o patronato, mas sim pela “sua completa emancipação”,383 da forma
como afirmam Edgard Leuenroth, Astrojildo Pereira, José Romero, Myer
Feldman e Cecilio Vilar no momento em que apresentam o referido tema
para discussão no Congresso Operário de 1913.
Vimos pelos exemplos citados neste capítulo que algumas associações
operárias, como era o caso da Associação de Classe União dos Chapeleiros,
União dos Operários Estivadores e o Congresso União dos Operários em
Pedreiras, este filiado à COB e à FORJ, combinavam a resistência com o
mutualismo. O mutualismo passou a ser uma prática condenada pelos
Congressos Operários a partir de sua primeira edição em 1906. Através de
diversos artigos publicados no A Voz do Trabalhador, porta-voz da
Confederação Operária Brasileira, que teve sua fundação decidida no
Primeiro Congresso Operário e que passou a organizar os congressos
posteriores, podemos acompanhar a argumentação da COB contra a prática
do auxílio mútuo dentro do sindicato, que deve ter a função única de
sociedade de resistência.
Em artigo de Neno Vasco, por exemplo, publicado no A Voz do
Trabalhador em março de 1913, este afirma que a prática do auxílio mútuo
é “o reconhecimento da legitimidade e justiça das condições impostas pelo
patrão”.384 Quando, do pouco salário recebido, o trabalhador ainda consegue
a duras penas retirar uma parte, resta a ilusão de que é possível poupar para
o futuro e o trabalhador, assim, não pensa em resistir e resigna-se. Troca a
penosa situação do presente por uma ilusória situação futura. Vasco
argumenta que, para que o trabalhador consiga juntar algum dinheiro para
as caixas de auxílio, ele deverá se privar do que já é considerado o mínimo
e viver em situação ainda pior do que a habitual. Esta prática, no entanto,
argumenta o autor, não teria efeitos apenas na ação da classe operária,
levaria também à redução do consumo e consequentemente à redução da
produção, o que implicaria diminuição dos postos de trabalho aumentando o
número de desempregados.
Argumentava-se, porém, na época, que as caixas de auxílio, entre outras
práticas, seriam válidas para atraírem os trabalhadores para dentro do
sindicato. Contra este argumento, Neno Vasco afirma que os trabalhadores
que viriam motivados pelo auxílio, não vinham providos de consciência de
classe e não estavam interessados na luta e por isso em nada ajudavam o
sindicato de resistência.
Assim como as caixas de auxílios mútuos, a existência de cooperativas
dentro dos sindicatos de resistência também era condenada pelos
Congressos Operários. O Congresso União dos Operários em Pedreiras,
membro da FORJ e da COB, possuía uma cooperativa de produção. Esta
cooperativa foi fundada em 1906 em resposta à queda dos salários dos seus
associados, mas só teve a possibilidade de auxiliar uma parte destes. A
cooperativa consumiu a reserva de dinheiro do congresso e este teve de ser
fechado. A União dos Operários Estivadores possuía uma cooperativa de
consumo e a Associação de Classe União dos Chapeleiros possuía duas
cooperativas, uma de produção e outra de consumo.
Este tipo de cooperativa se diferencia do tipo defendido por Custódio
Alfredo Sarandy Raposo, o sindicalismo cooperativista. Sarandy Raposo
era funcionário do Ministério da Agricultura e foi contra a sua forma de
cooperativismo que os anarquistas se colocaram mais fortemente. Se as
cooperativas de trabalhadores independentes já não eram estimuladas, o
sindicalismo cooperativista era condenado, pois possuía proteção oficial.385
“Os seguidores de Sarandy Raposo defendiam a economia de livre empresa,
considerando o cooperativismo o instrumento de luta pelos interesses dos
trabalhadores, dentro da ordem e com apoio legal”.386
Nem todas as categorias de trabalhadores atuaram da mesma forma.
Algumas categorias ingressaram no movimento grevista de 1903, e
aprofundaram o alarme que este provocava nas autoridades e na população,
também expondo suas demandas, no entanto usando de táticas diversas das
daqueles operários que iniciaram o movimento. Como vimos, este foi o
caso da Liga dos Artistas Alfaiates que, apesar de condenar em seus
estatutos a intervenção de elementos estranhos à categoria em suas lutas,
pediu ao chefe de polícia que fosse o mediador junto aos patrões. Isto que
não significa que a organização dos alfaiates fosse uma entidade
desvinculada dos princípios da resistência sindical. Esta mesma associação
foi uma das fundadoras da Federação das Classes Operárias, filiada à COB
e à FORJ, e nos anos seguintes à greve passou a ter a denominação de
sindicato, conforme resolução do Congresso Operário. Ainda assim, como
vimos, mantinha em sua sede aulas de corte, atividade que se incluía entre
aquelas desaconselhadas pelos congressos operários. Ambiguidades que
apenas reforçam a hipótese de que entre as definições de princípio ou
estatutárias e a prática da ação coletiva havia uma distância que poderia
variar conforme a categoria.
A Associação de Classe União dos Chapeleiros ao mesmo tempo em
que mantinha funções de auxílio mútuo, reforçava a resistência e se
esforçava para que as vagas nas oficinas fossem ocupadas por trabalhadores
associados.
A União dos Operários Estivadores também reunia funções de
resistência e auxílio mútuo. Nos anos seguintes à sua fundação passou a
impor o closed shop, aceitava como membros não só os estivadores, mas
também os contramestres, desde que não assumissem nenhum cargo na
sociedade, e durante a greve aceitou a interferência do chefe de polícia
como mediador. Com forte presença de militantes socialistas em suas lutas
– como Evaristo de Moraes – foi quase sempre classificada como uma
entidade “reformista”, mas não se furtou a participar dos Congressos
Operários de 1906 e 1913, respaldando as definições de um sindicalismo
autônomo e combativo.
O Congresso União dos Operários em Pedreiras, apesar de apresentar
em seu estatuto a possibilidade de fornecer título benemérito a qualquer
pessoa que prestasse serviços ao Congresso, à classe ou à humanidade,
mesmo que não fosse operário, só admitia operários em seu quadro de
sócios, e conseguiu impor uma tabela de preços dos serviços em acordo
coletivo, posteriormente se transformando em Sindicato dos Operários em
Pedreiras.
E, como último exemplo, a Federação dos Operários em Fábricas de
Tecidos não aceitava a participação de não operários nem como membros,
nem como intermediários em negociações, chegando até mesmo a negar
qualquer forma de negociação, e declarava seguir o método da resistência.
Todas essas associações mostram-se muito mais complexas do que
tipologias gerais poderiam definir. Acredito que seria bastante reducionista
defini-las apenas a partir de modelos fechados, em termos de associações de
resistência, ou reformistas ou cooperativistas. Acredito que essa exposição
tenha mostrado uma grande interpenetração de funções e características que
só se perderiam se tentássemos enquadrá-las em alguma categoria estática.
No entanto, pela própria participação na greve fica evidente que todas
assumiam a tarefa da defesa dos interesses das categorias que
representavam e comungavam da perspectiva de que a greve e o
enfrentamento com os patrões eram armas válidas para isso.
É interessante notar que essa greve ocorreu antes do Primeiro Congresso
Operário (1906), que as associações não são designadas como sindicatos, o
que estaria futuramente de acordo com uma das resoluções, mas que foi
posterior, e que algumas das associações mantinham, entre outras, funções
de assistência mútua. Mas, apesar disso, já em 1903 foram capazes de
representar seus associados atuando como sindicatos, formando comissões
para negociar com patrões, ou para pedir o intermédio do chefe de polícia
nessas negociações. Podemos chegar, então, à conclusão de que apesar de
não serem “oficialmente” sindicatos, essas associações se viram chamadas,
ou obrigadas, a assumir essa função nova que respondia a essa nova
realidade.
Não pretendo aqui chegar a uma conclusão totalizante quanto à
“evolução”, ou o primitivismo, ou o papel de vanguarda exercido por uma
ou outra forma de organização. Este estudo mostrou que algumas
associações, apesar de terem sido fundadas com objetivos mutuais, no
momento em que foi preciso, mudaram sua forma de ação, da mesma forma
que alguns sindicatos mantinham em seu interior características de mutuais,
como por exemplo, aulas de corte, no caso do alfaiates. Talvez fosse
interessante lembrarmos de Thompson, quando este afirma que, quando a
realidade não se encaixa em uma categoria, devemos rever a categoria, e
não golpear a realidade para fazê-la se encaixar na categoria.387
Referências
BATALHA, C. H. M. O movimento operário na Primeira República. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
CRUZ, Maria Cecília Velasco e. Tradições Negras na Formação de um
Sindicato: Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café,
Rio de Janeiro, 1905-1930. In: Afro-Ásia, 24, 2000.
GOLDMACHER, Marcela. Movimento Operário: aspirações e lutas. Rio de
Janeiro: 1890-1906. In: MATTOS, Marcelo Badaró (org.). Trabalhadores
em greve, polícia em guarda. Rio de Janeiro: Bom Texto/Faperj, 2004.
GOMES, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. SP: Vértice, 1988.
LOBO, Eulalia Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro (do capital
comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: IBMEC, 1978.
SILVA, Fernando Teixeira da. Operários sem Patrões: os trabalhadores da
cidade de Santos no entreguerras. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2003.
THOMPSON, E .P. Algumas observações sobre classe e “falsa
consciência”. In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2001.
Fontes:
Brasil Operário
Jornal do Brasil
A Voz do Trabalhador
Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos
Relatório do Sindicato dos Operários das Pedreiras do Rio de Janeiro
Estatuto da Associação de Classe Protetora dos Chapeleiros
Estatuto da União dos Operários Estivadores
Relatório da União dos Alfaiates do Rio de Janeiro
Resoluções do Primeiro Congresso Operário Brasileiro
Resoluções do Segundo Congresso Operário Brasileiro

1 LOBO, 1978, p. 448.


2 Idem. p. 450.
3 Idem. p. 452.
4 Idem, p. 476.
5 Idem, p. 577.
6 Por não dispormos de dados oficiais, chegamos a estes números a partir de uma projeção estatística
através de uma regressão exponencial nos dados dos anos anteriormente citados.
7 Ver sobre as greves do período GOLDMACHER, 2004.
8 Jornal do Brasil, de 15/08/1903 a 26/08/1903, edições da manhã e da tarde.
9 BATALHA, 2000, p. 40.
0 Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos apresentado ao Segundo Congresso
Operário Brasileiro. In: A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro, 20/07/1914, p.3.
1 A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro, 01/07/1913, p. 1.
2 Idem.
3 Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos apresentado ao Segundo Congresso
Operário Brasileiro. In: A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro, 20/07/1914, p. 3.
4 Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos. In: A Voz do Trabalhador,
20/07/1914.
5 Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos apresentado ao Segundo Congresso
Operário Brasileiro. In: A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro, 20/07/1914, p. 3.
6 Relatório do Sindicato dos Operários das Pedreiras do Rio de Janeiro, apresentado ao Segundo
Congresso Operário Brasileiro. In: A Voz do Trabalhador. Rio de Janeiro, 5 de julho de 1914.
7 Estatutos do Congresso União dos Operários em Pedreiras. In: Diário Oficial, 9 de fevereiro de 1905.
8 Idem.
9 Idem, Art. 4o.
0 Idem. Art. 5o.
1 Relatório do Sindicato dos Operários das Pedreiras do Rio de Janeiro, op.cit.
2 Idem.
3 Idem, ibidem.
4 Estatuto da Associação de Classe Protetora dos Chapeleiros. In: Diário Oficial, 28 de março de 1908.
Art. 34.
5 Idem.
6 Idem. Art. 1o, item “a”.
7 Idem. Art. 1o, item “c”.
8 Idem. Art. 1o, item “d”.
9 Idem. Art. 20, item “d”.
0 Jornal do Brasil, 22/08/1903, ed. manhã, p. 1.
1 Relatório da União dos Alfaiates do Rio de Janeiro, apresentado ao Segundo Congresso Operário
Brasileiro. In: A Voz do Trabalhador, 01/06/1914, p. 3.
2 Idem.
3 Resoluções do Primeiro Congresso Operário Brasileiro. In: Revista Estudos Sociais, no 16, março de
1963.
4 Relatório da União dos Alfaiates do Rio de Janeiro, apresentado ao Segundo Congresso Operário
Brasileiro. In: A Voz do Trabalhador, 01/06/1914, p. 3.
5 Idem.
6 Idem.
7 Estatuto da União dos Operários Estivadores. In: Diário Oficial, 6 de agosto de 1906. Art 2o, item
“a”. Referente à reforma dos Estatutos de 25 de julho de 1905.
8 Idem. Art 2o, item “e”.
9 Idem. Art 2o, item “f”.
0 Idem. Art 2o, item “g”.
1 Estatuto da União dos Operários Estivadores, 1910. 1o Ofício de Registro de Títulos e Documentos,
Estatutos de Sociedades Civis, código 66, seção de guarda SDJ, vol. 27, documento no 498. Art. 2o,
item “j”.
2 Idem. Art. 65.
3 Idem. Art. 8o.
4 CRUZ, 2000.
5 Idem. Art. 6o.
6 Estatuto da União dos Operários Estivadores. Arquivo Nacional, 1o ofício de registro de títulos e
documentos, Estatutos de sociedades civis, código 66, seção de guarda SDJ, vol. 27. Art. 2o, item “c”.
7 Idem. Art. 3o.
8 As discussões políticas, entendidas no sentido político-partidário ou eleitoral, podiam não estar
presentes dentro das associações aqui estudadas, mas é claro que não deixaram de ser feitas pelo
operariado. É o que atesta a existência de diversos partidos operários.
9 Resoluções do Primeiro Congresso Operário. In: Revista Estudos Sociais, n° 16, março de 1963.
0 “As Resoluções do Segundo Congresso”, In: A Voz do Trabalhador, 01/10/1913. p. 2.
1 Segundo Fernando Teixeira da Silva, a Federação Operária de Santos (FOLS) foi a única federação a
assumir abertamente o programa anarquista. Cf.: SILVA, 2003.
2 “As Resoluções do Segundo Congresso”, In: A Voz do Trabalhador, 01/10/1913. p. 2.
3 Idem.
4 “Sindicalismo Revolucionário” In: A Voz do Trabalhador, 15/03/1913. p. 3
5 GOMES, 1988, p. 116.
6 Idem. p. 117.
7 THOMPSON, 2001.
INTERNACIONALISMO, RAÇA E
NACIONALIDADE NA PROPAGANDA
ANARQUISTA DURANTE O PROCESSO DE
FORMAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA NO
BRASIL
Tiago Bernardon de Oliveira
A existência de divisões identitárias de nacionalidades e de raças no
interior da classe trabalhadora era um problema contra o qual os anarquistas
tiveram de se debater no processo de construção da classe no Brasil.388 De
acordo com seu ideal, os militantes anarquistas se viram obrigados a
combater identidades divisionistas que, se não originadas propriamente no
capitalismo, sofriam ressignificações nas novas relações sociais que
emergiam no Brasil a partir da abolição formal definitiva do trabalho
escravo, do crescimento urbano e do estímulo (mesmo que relativamente
efêmero) à industrialização verificada na virada do século XIX. Era preciso
combater o que dividia e obstaculizava aquilo que anunciavam como o
novo agente político, que daria origem ao novo mundo que estava prestes a
surgir: a classe trabalhadora. Para criá-la, era preciso formar uma identidade
coesa entre trabalhadores, que deveria estar acima de todas as outras formas
de identidade.
O Brasil das primeiras décadas republicanas, pelo menos nos estados do
Sul e no Distrito Federal, vivia sob forte impacto da imigração, sobretudo
de matiz europeu. O grande contingente de imigrantes europeus que
chegavam por aqui somente era superado pelos Estados Unidos e pela
Argentina. Como é natural, inicialmente os recém-chegados procuravam
estabelecer relações de ajuda mútua entre seus conterrâneos. Como
estrangeiros e pobres, também sofreram com a desconfiança dos nascidos
no Brasil. Diferentemente do tratamento dispensado aos estrangeiros ricos,
aos trabalhadores pobres tratava-se de lembrá-los a todo o instante que no
Brasil eram estrangeiros e pertencentes a classes subalternas, o que não lhes
dava direito de serem insolentes e desrespeitar as leis e tradicionais
hierarquias de autoridade pessoal. A imposição destes limites em relação ao
estrangeiro também foi compartilhada e reproduzida por integrantes das
classes populares nascidos no Brasil, que sentiam que, por mais subalterna
que fosse sua posição, poderia ainda ser pior se fossem preteridos aos
estrangeiros. Neste sentido, os versos dirigidos aos imigrantes pobres
italianos, “Carcamano pé-de-chumbo, calcanhar de frigideira, quem te deu a
confiança de casar com brasileira?”,389 são representativos dos preconceitos
classistas com viés racialistas a que foram submetidos os estrangeiros
pobres no Brasil.
Reconhecer que imigrantes europeus foram vítimas de preconceito
racial no Brasil, além do de classe, não significa escamotear o fato de que,
apesar de todos os estigmas, desconfianças e privações a que foram
submetidos, os empregos de sua força de trabalho e os seus valores culturais
foram mais bem recebidos do que os dos trabalhadores nativos,
principalmente os descendentes de escravizados. Antes, significa ressaltar
que as divisões racialistas só se desenvolveram no Brasil, como em outras
partes do mundo, a partir dos conflitos gerados pela estrutura de classes.
No Brasil, portanto, especialmente durante as três primeiras décadas do
século XX, quando chegavam as grandes levas imigratórias e quando eram
sentidas as primeiras mudanças provocadas pela abolição formal da
escravidão, as segmentações identitárias marcadas por concepções
racialistas se manifestavam por dois vieses interligados: brancos X negros;
imigrantes X brasileiros natos. De modo geral, acreditava-se que “brancos”,
estrangeiros ou nascidos no Brasil, eram intelectual e moralmente mais
elevados. Porém, em diversos momentos se reputou aos estrangeiros (ou
mais especificamente, a alguns grupos e indivíduos estrangeiros) a
responsabilidade por distúrbios sociais, ao instigarem os trabalhadores
brasileiros, que teriam uma índole positiva e naturalmente amante da
ordem, a revoltar-se. Entre todos esses mitos, contudo, ao trabalhador negro
sempre coube somente atributos caricaturalmente negativos, como a
ignorância, o primitivismo, a preguiça, a tendência natural ao roubo, ao
alcoolismo, à trapaça e à violência. Na visão da classe dominante, o
máximo de valorização “positiva” que os negros, como nacionais, poderiam
receber era o atributo de “pacatos” quando o objetivo dos discursos era
perseguir os revoltosos anarquistas estrangeiros, ou ainda palavras em tons
paternalistas que estabeleciam vínculos distorcidos entre o presente e o
passado e de sofrimento pelo que passaram seus antepassados durante
tantos séculos.
As difíceis condições de vida, o alto grau de exploração do trabalho, a
grande oferta de mão de obra, a falta de mediações políticas e o desrespeito
a direitos fundamentais contribuíram para que ideias libertárias fossem
disseminadas entre os trabalhadores do país, dentre os quais os imigrantes,
vindos, principalmente, da Itália, Espanha e Portugal.390 Sua condição de
estrangeiros e de principal mão-de-obra empregada nas indústrias,
manufaturas e no trabalho artesanal391 os colocava em evidência nos
movimentos reivindicatórios. Com objetivo de legitimar a repressão e
desmobilização das classes populares, agentes conservadores da ordem
construíram um factóide durante a Primeira República que vinculava ação
reivindicatória e agitação subversiva profissional de estrangeiros.392 Embora
essa vinculação direta e artificial fosse exagerada e combatida pelos
próprios anarquistas,393 isso de certa forma contribuiu para dificultar o
estabelecimento de laços de solidariedade de classe.
Para superar essas dificuldades, no que tange especificamente ao
movimento anarquista, os libertários, em seu esforço contra-hegemônico,
acabaram por ter de também jogar com os elementos do arcabouço
linguístico-hegemônico. Ao combater os mitos que a classe dominante e o
Estado criavam para dissimular a luta de classe e desestimular a
organização dos trabalhadores, os anarquistas do Brasil acabariam por
reproduzir signos da ideologia dominante, ainda que a eles conferissem
novos significados.
Era preciso fazer emergir a classe em meio a uma massa de
trabalhadores formada por imigrantes europeus e trabalhadores brasileiros,
que viveram, até 1888, como livres ou cativos, a experiência da escravidão.
A heterogeneidade de nacionalidades que aqui aportavam em meio ao
processo de abolição do trabalho escravo assumiu, desde os anúncios da
política imigrantista, contornos racialistas. As noções de nacionalidade e
raça,394 geralmente tomadas como se fossem uma coisa só, também
estiveram presentes na propaganda contra-hegemônica dos libertários, que
partilhavam alguns de seus aspectos, mesmo quando fosse para combatê-
las.
Através da análise das fontes da propaganda anarquista produzidas no
Rio de Janeiro e em São Paulo entre os anos de 1908 e 1920, este texto tem
por objetivo apresentar concepções de internacionalismo e raça, de
libertários que se esforçavam por construir uma solidariedade de classe no
Brasil.

Divulgação de notícias internacionais e o internacionalismo


da classe trabalhadora
Tal como outras correntes políticas ligadas ao movimento operário e
como sucedia entre os anarquistas de todo o mundo, as imprensas
anarquista e sindicalista sob influência libertária no Brasil ocuparam-se de
divulgar, com especial destaque, notícias vindas do exterior. Eram notícias
sobre o movimento operário e sobre ações governamentais que, aos olhos
dos anarquistas, produziam efeitos sobre a classe operária de seus países.
A origem dos escritos que compunham a seção das notícias
internacionais podia ser variada: escritos vindos de militantes que se
encontravam no exterior, reprodução, parcial ou integral, comentada ou não,
de notícias divulgadas na grande imprensa, nos telégrafos ou na imprensa
operária e anarquista do exterior, ou ainda textos produzidos por militantes
no Brasil a partir da leitura de jornais estrangeiros.
De modo geral, a divulgação de notícias vindas do exterior, mesmo
quando se limitava a breves notas de telégrafo, cumpria uma função
estratégica na propaganda anarquista. Através do que se passava no mundo
todo, informava-se que todo ele estava submetido à lógica da produção e do
mercado capitalista; que a sociedade estava dividida em classes; que as
classes possuíam interesses antagônicos; que o Estado garantia a
exploração; que a identidade de classe estava acima das outras formas de
identidade; que havia necessidade da coesão dos trabalhadores e da ação
coletiva; que era preciso que os trabalhadores adquirissem consciência de
sua função revolucionária.
No constante exercício contra-hegemônico, era comum aludir-se a
imagens que no senso comum eram atribuídas a um determinado país e
subvertê-las. Durante as duas primeiras décadas do século XX é possível
perceber que se recorria a uma espécie de adjetivação para se referir a
determinados países, mais presentes no noticiário internacional da imprensa
libertária. Em comum a todas essas imagens, a denunciada violência do
Estado a serviço dos interesses da classe dominante. Porém, se atribuíam
características específicas a cada um dos Estados. Desta maneira, a
Argentina, ao contrário de ser o país “civilizado” da América do Sul, era
onde se encontrava um governo e uma polícia bárbaros e cruéis.395 Quando
se falava dos Estados Unidos, o termo a ser subvertido era a
“democracia”,396 inexistente dada a impossibilidade dos trabalhadores se
manifestarem livremente sem sofrer as consequências da repressão e das
artimanhas de uma polícia secreta que usava, em conluio com a Justiça, da
violência e incriminava falsamente algum trabalhador para sacrificá-lo
como responsável por alguma morte. À Inglaterra cabia a denúncia de
hipócrita por se fazer parecer como centro difusor de civilização, fundado
sob o regime da lei e da igualdade, mas que, na realidade, utilizava-se de
todos os meios para alavancar os lucros, seja através da cooptação política
das tradeunions,397 seja por meio da extrema violência para civilizar os ditos
selvagens.398 O Estado russo czarista era o grande império da violência
déspota. A Alemanha era o país militarista, cujos trabalhadores foram
vendidos pelos social-democratas ao Kaiser.399 Na França depositavam-se as
maiores esperanças, tanto pela sua trajetória revolucionária, como pela
agitação sindicalista da C.G.T.,400 ao mesmo tempo que se denunciava a
reação contrarrevolucionária chefiada por Clemenceau.401 Portugal, que nas
duas primeiras décadas vivia sob as idas e vindas entre monarquia e
república, era um exemplo de como as disputas políticas em nada
beneficiavam os trabalhadores.402 A Itália era um dos países sobre os quais
mais se noticiavam avanços (quando se tratava de ações coletivas tidas
como espontâneas ou lideradas pelos anarquistas)403 e retrocessos do
movimento operário (ocasionada pela repressão ou pelos descaminhos dos
socialistas).404 Mas o Estado italiano não recebeu propriamente nenhuma
caracterização específica, nem mesmo quanto ao seu catolicismo, talvez
pelo enfraquecimento político do Vaticano ante ao recente processo de
unificação. Ao contrário, para a propaganda anarquista no Brasil, o maior
exemplo da íntima cumplicidade entre Estado e religião se encontrava na
Espanha, e sua “monarquia jesuítica” que dominava os trabalhadores e
punia com violência os que ousassem questionar sua autoridade.405
Como foi dito, esta espécie de tipologia não se restringia apenas a
adjetivar, por si só, esses Estados. Ela cumpria também uma função de
propaganda contra-hegemônica importante, uma vez que desmistificava a
boa imagem que estes países gozavam junto à classe dominante brasileira e
se fazia difundir pelo senso comum de serem países em estágio avançado de
civilização a serem imitados pelo próprio Brasil. O objetivo era denunciar
que, por trás das práticas e valores que se apresentavam como positivos,
escondiam-se práticas de violência extrema contra os trabalhadores, o que,
portanto, em vez de serem imitados, deveriam ser evitados e combatidos.
Diante dos adjetivos utilizados pelos anarquistas, que negavam o caráter
civilizado desses países, o que caberia imitar? A barbárie argentina? A
hipocrisia inglesa? O jesuitismo espanhol? A plutocracia estado-unidense?
O militarismo alemão?
Esses elementos, aliás, embora mais característicos em alguns países do
que em outros, estavam presentes em todo o mundo capitalista, inclusive e
principalmente no próprio Brasil. Além de procurarem demonstrar que o
mundo capitalista era muito menos civilizado do que se dizia ser, os
anarquistas brasileiros tomavam a Rússia czarista, tão desprezada pelo
“mundo civilizado” e onde se praticavam os mais intensos atos repressivos
contra os trabalhadores, como o exemplo supremo de absolutismo e
barbárie estatal. Na realidade, os outros países, incluindo-se o Brasil,
estavam muito mais próximos do despotismo “atrasado” que lá vigorava do
que fazia crer a autoimagem de “civilizados” que construíam. Assim,
quando não faziam uso de acusações asperamente diretas em repúdio à
violência e perseguição do Estado aos trabalhadores, os anarquistas
frequentemente procuravam destruir a autoimagem positivada que a classe
dominante e o Estado faziam de si próprios por meio de ironias e deboches.
Como num espelho, o tratamento dado às notícias sobre eventos
relacionados à luta de classes no exterior dizia respeito à luta de classes no
Brasil. Elas conclamavam a coesão da classe operária em todos os níveis,
que extrapolassem os limites do local do trabalho, dos interesses de um
único setor ou das fronteiras administrativas.
Deste modo, por exemplo, quando publicaram uma série de artigos
sobre a greve dos mineiros da Inglaterra, de 1912, que teve repercussão
entre os mineiros da Alemanha e da França e entre outras categorias de
trabalho, os anarquistas do Brasil vibravam com o que se passava por lá.
Segundo sua leitura, o corporativismo das trade-unions e a mediação do
Partido Trabalhista tinham entrado em colapso diante dos feitos atingidos
unicamente pela ação direta pregada pelo sindicalismo revolucionário.406 O
que se passava no exterior era, portanto, a reafirmação dos princípios
defendidos no Iº Congresso Operário Brasileiro.
O crescimento do militarismo na Alemanha, por sua vez, e as ameaças
de eclosão de uma guerra na Europa eram atribuídos à politicagem a que
havia se submetido o Partido Social-Democrata Alemão, que manipulava a
estrutura sindical germânica para fins contrários aos interesses dos
operários, no Brasil se os operários se deixassem ludibriar pelas promessas
de chefes políticos e seus capatazes.407
A publicação de notícias internacionais, então, fazia parte de uma nova
“pedagogia” revolucionária que deveria ensinar a ver a realidade para além
dos aparentes vernizes divisionistas do patriotismo, das divisões raciais e do
militarismo, que dissimulavam a luta de classes e não permitiam que os
trabalhadores vissem a si próprios como integrantes de uma história
comum, em movimento, em todo o mundo. Desta maneira, divulgar
acontecimentos contemporâneos do exterior deveria cumprir uma função
muito maior do que meramente informativa, que era fazer o trabalhador
tomar parte ativa de um movimento universal que era essencialmente seu:
A convulsão em que se debate, no momento, o proletariado universal, toma um caráter
iniludível de luta decisiva. A agitação crescente das classes trabalhadoras preocupa a
atenção do mundo, alarmando profundamente os usurpadores da riqueza comum, os quais
já não sabem e não podem ocultar a apreensão que o movimento reivindicador lhes causa.
Ainda agora, a formidável greve dos mineiros ingleses empolga completamente a opinião
mundial, abalando, numa colossal demonstração de força, toda a engrenagem capitalista. O
governo britânico não procurou, sequer, disfarçar o terror desse abalo: foi o primeiro –
embora a isso levado pelas circunstâncias – a envidar todos os esforços para que se
chegasse a um acordo “amigável”. E, como último recurso, depois de ver fracassadas as
negociações, fabrica às pressas uma lei especial para o caso, lei essa que – “legalmente” –
vem dar ganho de causa aos grevistas.
Por outro lado, cá na América, estamos assistindo a esse grande movimento no México, de
orientação francamente expropriadora e libertária.
E na França, na Alemanha, na Espanha, em Portugal, como nos Estados Unidos e na
Argentina, há todo um fervilhar contínuo e progressivo, e de cuja significação
revolucionária ninguém de boa fé poderá duvidar. A época caracteriza perfeitamente as
vésperas duma grande revolução.
Ora, o trabalhador do Brasil não pode conservar-se indiferente a esse estado de coisas.
Efetivamente, sente-se a necessidade de agir.408
Claro está que a divulgação dessas notícias, além de cumprir uma
função importante na construção da identidade de classe e na divulgação
das estratégias e valores anarquistas, também pode ser interpretada, por si
só, como solidariedade moral, mas os libertários do Brasil tinham
consciência de que só isso não bastava. Era preciso estabelecer vínculos
estreitos com o movimento internacional de trabalhadores para inserir os
movimentos anarquistas e sindicalistas brasileiros em uma rede de
solidariedade internacional.
E, de fato, os anarquistas trataram de procurar executar atos em
solidariedade internacional. Mas obter o respaldo do conjunto dos
trabalhadores não era uma tarefa fácil e, por isso, as iniciativas concretas
não são muitas. Entre as fontes consultadas, restritas às publicações do
centro do país (Rio de Janeiro e São Paulo), foram encontradas práticas de
solidariedade voltadas para os seguintes países: Argentina, Portugal,
Espanha, Itália e Estados Unidos. Exortações vagas à solidariedade
internacional e denúncias contra os abusos praticados pelos aparelhos
repressivos de Estado ou ameaças estrangeiras tiveram uma considerável
recorrência e acompanhamento pelos anarquistas em relação à Inglaterra,
França, Alemanha, Rússia e Hungria, sendo que estes dois últimos
passaram a ganhar especial atenção quando da situação revolucionária pela
qual passaram após o término da I Guerra Mundial. Por fim, existe uma
série de registros isolados ou pouco frequentes de notícias de situações de
diversos países, tais como Chile, Paraguai, Cuba, Panamá, Noruega,
Bósnia, África do Sul, Holanda, Suíça. Quanto ao Uruguai é escassa a
publicação de notícias sobre greves e outras formas de mobilização
operária, mas há indícios de uma constante correspondência entre militantes
brasileiros e uruguaios, parte dela sobre a necessidade da integração
operária sul-americana, muito por conta da proximidade geográfica e da
circulação de militantes entre o Brasil e os países do Prata.409
Porém, uma série de dificuldades se colocava para tais realizações.
Como fazer o proletariado urbano brasileiro agir em solidariedade ao
proletariado de outros países, se a estrutura econômica e de poder já
dificultava a coesão dos trabalhadores do Brasil na luta dos seus próprios
interesses imediatos?
Para que o proletariado brasileiro agisse de acordo com o movimento
universal, as notícias deveriam produzir a sensação de que todos os
trabalhadores do mundo, todos os que viviam sob o jugo de qualquer forma
de opressão eram companheiros de sofrimento e deveriam,
necessariamente, solidarizar-se para promover uma ação
revolucionariamente redentora de toda a humanidade.
Portanto, como exercício permanente desta “pedagogia”, os anarquistas
passaram a fomentar ações práticas de solidariedade internacional que
rompessem os limites do discurso. Manifestar solidariedade internacional e
divulgar as ações da solidariedade de trabalhadores de outros países
serviam de estímulo e lição aos trabalhadores do Brasil quanto à
necessidade de serem solidários entre si, ao mesmo tempo em que alertava
para os limites da ação coletiva de cunho corporativo e imediatista.

Ações de solidariedade internacional


Em um contexto periférico da economia mundial, cuja base econômica
era eminentemente agrária, assentada no latifúndio e na monocultura de
exportação, os militantes anarquistas enfrentaram enormes dificuldades
para difundir seu ideal entre os trabalhadores do Brasil e para fazer os
movimentos sindical e anarquista de todo o mundo (ou mais
especificamente do Hemisfério Norte-Ocidental) reconhecerem os esforços
empreendidos neste país.
As tentativas de criação de vínculos mais estreitos por parte da
militância brasileira se deram com o movimento anarquista sindicalista
argentino. Em uma das suas primeiras iniciativas, quando começou a
funcionar de fato, dois anos depois de sua fundação, a Confederação
Operária Brasileira (COB) dirigiu uma circular a diversos agrupamentos da
Argentina e de “diversas repúblicas americanas” para que se preparassem
mobilizações antimilitaristas para o dia 1o de dezembro de 1908.410
Segundo rumores que circulavam naqueles anos, ocasionados pela
compra de encouraçados de guerra pela Marinha brasileira, estaria para
eclodir, a qualquer momento, um conflito entre o Brasil e a Argentina, que
se alastraria por outros países da América.411 A proposta de combate da
COB era de que fosse declarada uma “greve geral em todos os ofícios e
profissões manuais e intelectuais, públicos ou privados, não somente nos
países beligerantes como também nas outras nações do continente”. A
circular teria sido bem recebida e acatada por associações dos países do
Prata, como a Federación Regional Obrera Argentina (FORA), a Unión
General de los Trabajadores da Argentina (UGTA), a Federación Obrera del
Uruguay (FOU) e pelo jornal portenho antimilitarista Luz al Soldado, que
enviaram comunicações à entidade brasileira.
No entanto, não há registro na imprensa operária brasileira de que
manifestações tenham ocorrido fora do território brasileiro, a não ser uma
moção de apoio enviada de Buenos Aires pela UGTA. No Brasil, os
organizadores avaliaram que a manifestação atingiu um sucesso relativo.
Apesar da adesão de 12 sindicatos do Rio de Janeiro, não há indícios de que
os trabalhadores tenham paralisado suas atividades de trabalho durante
aquele 1o de dezembro. De acordo com os organizadores, compareceram ao
apelo 5.000 pessoas, um número não desprezível de participantes em atos
públicos políticos no Brasil daqueles anos. A posição oficial da COB foi de
que, apesar da “indiferença da imprensa e do povo em geral”412 e da falta de
recursos pecuniários, para uma primeira iniciativa, o ato era uma
demonstração de que o futuro da mobilização operária era promissor, e
atestava o “triunfo” da Confederação.
Esse evento, como experiência inicial, revela alguns elementos
interessantes para se pensar a mobilização operária e a propaganda
anarquista naqueles anos. Primeiramente, no que diz respeito às
dificuldades de mobilização da classe trabalhadora. Se, por um lado, havia
manifestações populares espontâneas, contrárias ao sorteio militar que
selecionaria os que deveriam servir às forças armadas, que eram recebidas
com ânimo pelos sindicalistas,413 a guerra não era uma preocupação latente,
uma vez que não se apresentava como um problema concreto para os
trabalhadores do Brasil. Mesmo os trabalhadores sendo os mais diretamente
atingidos caso eclodisse uma guerra,414 este problema não dizia respeito à
promoção de melhorias imediatas, como aumento salarial ou redução da
jornada de trabalho.
Para os anarquistas sindicalistas, era preciso atuar em duas frentes
simultaneamente para poder fazer da luta sindical um instrumento
revolucionário. A luta através dos sindicatos, política e religiosamente
neutros, precisava vir acompanhada da solidariedade internacional. Desta
maneira, esperava-se fazer um trabalho de educação revolucionária que
rompesse tanto com as amarras do corporativismo sindical, como com os
valores dominantes que se difundiam pelo proletariado, tais como o esboço
de um sentimento nacional nascente. Enquanto, por exemplo, alguns
grupos, como a Liga Nacionalista, promoviam campanhas pela valorização
do sentimento de nacionalidade, que passava pela valorização de
instituições como as forças armadas, os libertários, para contraporem e
estabelecerem uma consciência revolucionária, se debatiam pela
valorização das práticas internacionalistas, procurando estabelecer laços de
solidariedade exatamente com trabalhadores de países que eram vistos pelos
nacionalistas como potenciais inimigos naturais.
O antimilitarismo seria alvo de novas manifestações, com campanhas
que poderiam abranger um maior público nos anos próximos à guerra.
Desde 1913, a COB tratou de fazer novos apelos dentro e fora do país para
ações conjuntas contra a guerra que se anunciava na Europa. Além do
combate ao militarismo ser um elemento fundamental do ideário anarquista,
era também uma oportunidade de se propagar uma campanha com um
potencial apelo popular que poderia atingir proporções consideráveis. Ainda
que não se tenham encontrado indícios da exploração de algum senso
patriótico dos trabalhadores imigrantes, é de se considerar que uma
campanha antimilitarista pudesse sensibilizá-los para o fato de a guerra
produzir efeitos desastrosos em seus países de origem. De todo modo, em
seu material de propaganda responsabilizava-se sempre o capitalismo e a
burguesia ávida por lucros pelo conflito. Denunciando o “imperialismo
yankee” sobre o continente americano, anunciavam a submissão do governo
brasileiro às pressões dos Estados Unidos para que entrasse na conflagração
contra a Alemanha. No entanto, essas campanhas lhes valeram a acusação
de serem germanófilos, o que os obrigou, por diversas vezes, a esclarecer
que combatiam a guerra em si (fruto do capitalismo e de seu caráter
expansionista) e os princípios de nacionalidade que separavam e
vitimizavam os trabalhadores de todo o mundo (incluindo-se os alemães).415
Em sua defesa, declararam que aceitariam pegar em armas em defesa de
uma pátria dos trabalhadores, se ela existisse, não as pátrias de burgueses,
clérigos e militares que estavam em conflito:
Não podemos levantar-nos em defesa de uma pátria que não temos. Mas no dia em que,
num recanto qualquer do globo, aqui ou além, existir uma pátria que seja de todos, e de
todos as riquezas lá existentes, uma pátria regida pela solidariedade e pela justiça, onde não
seja possível a coexistência dos que trabalham e morrem à míngua e dos que se locupletam
sem nada fazer, nesse dia e nesse lugar do globo nós, os anarquistas, teremos também a
nossa pátria pela qual saberemos lutar e saberemos morrer. E se a fortuna quiser que esse
ponto da terra, esse rincão precioso seja o Brasil, será nesse dia o Brasil a nossa pátria e por
ele ardentemente nos bateremos.416
Mas a campanha contra a guerra não se reduziu apenas a ações entre os
brasileiros, e os anarquistas tentaram realizar no Brasil uma série de
iniciativas para uma ação conjunta antimilitarista de organizações de todo o
mundo. Diante dos impedimentos gerados pelo conflito e das pressões
internacionais que resultaram na não realização do Congresso Anarquista de
Londres e do Congresso Internacional pela Paz, de Ferrol, na Espanha,
programados, respectivamente, para agosto de 1914 e abril de 1915, os
libertários brasileiros lançaram uma convocatória para um Congresso
Anarquista Sul-Americano,417 e, através da COB,418 de um Congresso
Internacional da Paz. Ambos os Congressos se realizaram no Rio de Janeiro
em outubro de 1915, recebendo a resposta de associações de diversos países
e contando com a presença de representantes da Argentina, Uruguai e
Portugal.419 Neles se debateram novamente a necessidade de serem
estabelecidas estratégias comuns, entre as quais a criação de uma
Confederação Operária Sul-Americana, que não se concretizaria.
Antes disso, desde 1908, pelo menos, os militantes do Brasil e dos
países do Prata sentiam uma necessidade premente de que se
estabelecessem relações efetivas de solidariedade e de ação,420 a fim de
estimular a revolução e se contrapôr à arregimentação de “krumiros”421
(fura-greves) e às relações existentes entre as polícias dos países vizinhos.422
Além de estabelecer estratégias únicas de ação nas mobilizações operárias,
a criação de associações comuns poderia também facilitar o envio de
delegados únicos a eventos no Hemisfério Norte, o que, por sua vez,
poderia gerar novas formas de integração da militância desses países na
militância internacional.423 Mas, na maioria dos casos, as intenções foram
frustradas pela repressão que se abateu em alguns dos países envolvidos, ou
por outros fatores operacionais, como momentos de baixa mobilização ou
dificuldades de obter recursos pecuniários.
Porém, se a tão esperada Confederação Operária Sul-Americana não se
efetuou, por outro lado, concretizaram-se uma série de atividades de
solidariedade, pelo menos por parte do Brasil em relação à Argentina, como
aponta a análise da documentação brasileira produzida no centro do país.
Manifestações de protesto, tais como comícios e moções de
solidariedade aos militantes e de desagravo às autoridades argentinas, foram
frequentes durante o período, principalmente entre os anos de 1911 e 1914,
quando uma onda de reação repressiva do governo argentino perseguiu
militantes, empastelou La Protesta e fechou a FORA Realizaram-se
comícios de protesto, subscrições para arrecadar fundos e ainda campanhas
para evitar a ida de imigrantes europeus que pretendiam se dirigir
Argentina.424 Já indícios de realização de atividades comuns ou de
solidariedade, como greves além-fronteiras e boicotes a empresas dos
países vizinhos, não foram encontrados.425
Mas, mesmo com as dificuldades, os militantes brasileiros não se
limitaram a tentar estabelecer laços de solidariedade apenas com os
trabalhadores dos países vizinhos do sul. Os movimentos operários da
Europa e dos Estados Unidos receberam o apoio dos anarquistas do Brasil.
Entre os casos de manifestações de solidariedade encabeçadas pelos
anarquistas do Brasil, encontram-se os atos de solidariedade contra a prisão
dos militantes da Industrial Workers of the World (IWW), Ettor e
Giovannitti, nos Estados Unidos. Fizeram-se moções de protesto e repúdio
encaminhadas ao presidente estadunidense e ao seu embaixador no Brasil.426
Os dois, acusados de assassinar uma operária durante um conflito entre
grevistas e a polícia, receberam atencioso acompanhamento da imprensa
anarquista, sendo um importante antecedente para as manifestações a favor
de Sacco e Vanzetti, que também tiveram grande repercussão no Brasil nos
anos 1920.
Há ainda moções encaminhadas aos governos da Espanha, de Portugal e
da Itália, contra as arbitrariedades cometidas contra o movimento operário
desses países. Além disso, organizaram-se listas de subscrição para
arrecadar fundos para o pagamento dos custos da defesa de militantes,
como foi na ocasião da prisão de Malatesta na Inglaterra, quando 20
pessoas e grupos contribuíram num montante de 140$200 réis.427 Com a
militância desses países peninsulares, principalmente Portugal,
estabeleceram-se estreitas relações devido à circulação de militantes
originários dali que emigraram para o Brasil.
E houve momentos em que se impôs a necessidade de receber a
solidariedade dos trabalhadores de outros países. No final de 1912, foi
revista a lei de expulsão de estrangeiros. A partir de então, tornavam-se
mais duras as regras para permanência dos estrangeiros no Brasil e mais
fáceis os procedimentos para expulsá-los. Os anarquistas e sindicalistas
trataram de promover uma intensa campanha na Europa contra a imigração
para o Brasil, a fim de fazer pressão pela revogação da lei. Um
representante da Confederação Operária Brasileira tratou de percorrer
Portugal e Espanha a denunciar os abusos do Estado brasileiro, e, ao que
tudo indica, obteve entusiástico apoio dos companheiros militantes desses e
de outros países, como a França e a Itália, que iniciaram campanha de
difamação da imagem do Brasil como país livre e bem receptivo à
imigração.428
É importante notar que, mesmo nos escritos em língua estrangeira
destinados à determinada comunidade de emigrados, não se exortava à
solidariedade dos trabalhadores de outros países com apelos patrióticos ou
nacionalistas. Por exemplo, nunca houve um único apelo dirigido aos
espanhóis para solidarizarem-se contra os abusos que seus conterrâneos
sofriam na mão da “monarquia jesuítica”, nem aos portugueses diante da
reação monárquica ou republicana, nem aos italianos pelas prisões
arbitrárias seja na Itália, na Argentina ou nos Estados Unidos. Ao contrário,
os jornais libertários condenavam os outros jornais destinados às colônias
imigrantes por fazerem isso, pois sempre se frisou a necessidade de se
superarem as fronteiras e os preconceitos gerados pelas noções de nação e
de raça. E por isso, na imprensa libertária, em todos os casos, sem exceção,
o apelo era dirigido à classe trabalhadora, sem se dirigir a nenhuma
nacionalidade específica contra os abusos praticados pela classe dominante
e pelo Estado, seja qual fosse o país.
Etnocentrismo e darwinismo social na formação da classe
operária do Brasil
Observe-se que quase todas as manifestações de solidariedade relatadas
até aqui se reportavam à solidariedade com países cuja cultura dominante
era de matriz eurocêntrica (mesmo nos casos dos Estados Unidos e da
Argentina). E, como cultura imperialista, entendia que o controle da
natureza através do desenvolvimento de maquinários industriais, das
ciências e das artes de moldes europeus eram superiores aos tradicionais
métodos de outras culturas, dividindo, assim, o mundo entre “civilizados” e
“bárbaros a serem civilizados”. Como se sabe, a justificativa para a
hierarquização de culturas e de grau de desenvolvimento tecnológico
possuía um forte viés racialista.
Esta nova cosmogonia imperialista construiu seu respaldo sob um
cientificismo que naturalizava a história das sociedades humanas,
projetando-a a partir das descobertas de Darwin sobre as transformações
das espécies animais e vegetais sofridas ao longo do tempo. Era a ciência
moderna, expressão máxima da capacidade racional do homem, e, portanto,
prova de sua superioridade sobre as demais espécies, a explicar também as
diferenças biológicas e culturais entre seres humanos, e a hierarquização
social entre indivíduos, classes, raças e nações.429 A seleção natural não
poupava as espécies que não desenvolviam habilidades para superar os
obstáculos impostos implacavelmente pela natureza. O mundo tornava-se o
habitat dos considerados mais aptos e fortes. O estágio de desenvolvimento
tecnológico alcançado após a Revolução Industrial era o ápice deste
processo, e, ao contrário das outras espécies animais, as outras “raças” de
seres humanos, cultural e biologicamente inferiores, poderiam ser salvas da
extinção, desde que fossem submetidas a um processo civilizatório dirigido
por aqueles que haviam desenvolvido as mais aprimoradas capacidades
intelectuais, como demonstrava sua complexa tecnologia em constante e
acelerada mutação progressiva.
Esta ideologia racialista, tal qual em outros países da América Latina,
teve forte impacto também no Brasil, desde pelo menos a década de 1870, e
serviu como justificativa legitimadora para a política de imigração
subsidiada no processo de transição definitiva do trabalho escravizado para
o dito trabalho livre, especialmente nas áreas de produção para exportação
de café, o que aumentou consideravelmente o contigente de reserva de
trabalhadores, permitindo que a acumulação de capital se mantivesse por
demais concentrada. Argumentava-se que a população brasileira seria
beneficiada através da miscigenação com o elemento branco dos europeus
que aportariam por aqui.430 Segundo este ponto de vista, através da genética
e da transmissão de tradições que valorizavam o trabalho ao invés do ócio,
a população brasileira, composta por forte presença de elementos de “raças
primitivas” acostumadas ao ócio e a “superstições tolas”, passaria por um
processo de “elevação moral”, que integraria, enfim, o Brasil ao ritmo do
progresso e da civilização, fim natural de toda a humanidade.
Com variações mais ou menos importantes, o cientificismo e o
darwinismo social em voga no mundo dito civilizado tiveram ressonância
na classe dominante brasileira neste período de incertezas gerado pelas
mudanças cruciais em torno do emprego da mão-de-obra e da substituição
do regime político. Positivistas, liberais e conservadores procuravam
suporte na ciência para manter subalternas as massas de trabalhadores que
antes eram controladas pela violência do chicote e pela reificação do
homem. Este cientificismo racialista procurava justificar a conservação das
hierarquias sociais e políticas agora sem as carapuças dos títulos
nobiliárquicos e dos títulos de propriedade de gente. Ao mesmo tempo em
que se branquearia a população, tornando-a mais apta para cumprir o
natural destino humano de civilizar-se, conservar-se-ia a hierarquia baseada
na propriedade como prêmio legítimo dos mais fortes.
É importante assinalar que essa ideologia imperialista desenvolveu-se
em um período conturbado de definição de fronteiras políticas e acabou por
servir também de justificativa de identidades nacionais e luta por
independências políticas e formação de Estados-Nação. Os Estados-Nação
nada mais seriam do que expressões políticas que garantiam a existência de
comunidades formadas por seres humanos que não apenas compartilhavam
tradições culturais, mas que também possuíam uma ancestralidade genética
comum. Daí as noções de “raça” e “nacionalidade” ou “pátria” serem
tomadas frequentemente como sinônimos.
Diante deste quadro ideológico, os anarquistas, em seu material de
propaganda, debatiam-se por denunciar que as clivagens de raça/origem
nacional entre os trabalhadores serviam apenas para mantê-los desunidos e
explorados. Como foi visto até aqui, fez-se grande esforço para produzir a
sensação de que a classe trabalhadora era internacional, e era urgente e
necessário que se estabelecessem laços de solidariedade supranacionais
para combater o capitalismo e o mal comum. Isto seria de suma importância
não apenas para criar laços entre os movimentos operário e anarquista
brasileiros, mas para estabelecer a coesão entre os trabalhadores de diversas
origens nacionais/raciais que existiam no Brasil, ou seja, criar a própria
identidade de classe no Brasil. Mas o discurso e os esforços para criar a
identidade internacionalista podem escamotear a percepção dos conflitos
raciais, entre negros e brancos, numa sociedade diversificada e racista como
a brasileira.
Passemos agora a observar mais de perto a percepção que os anarquistas
tinham da existência da linha da cor que dividia a população brasileira entre
negros e brancos.
Á
A África na imprensa anarquista brasileira
Durante a expansão colonialista das potências imperialistas, de todos os
territórios, à África cabia a reputação de ser a mais primitiva e selvagem
das regiões de todo o mundo. Era, enfim, o maior símbolo do “atraso” a ser
resgatado pela civilização, e, conseqüentemente, o maior símbolo de
anticivilização.
Os anarquistas, por sua vez, condenavam veementemente a expansão
imperialista. Diferentemente das formas de solidariedade que tentavam
estabelecer com o proletariado da Europa, dos Estados Unidos e da
América do Sul, os militantes anarquistas tinham óbvias dificuldades em
estabelecer laços de solidariedade concreta com o que se passava nas
regiões colonizadas. Em diversas oportunidades, em meio a textos de
caráter variado (doutrinários, noticiosos, literários etc.) formulavam-se a
denúncias de acontecimentos recentes que se passaram na África, na Ásia e
no Oriente Médio, relacionadas aos abusos militares das potências
europeias. Mas, dadas as dificuldades de acesso à informação, seu caráter
era fragmentado e genérico, via de regra intermediado pelas notas da
imprensa internacional, em total contraste com o maior detalhismo que
compunha as notícias internacionais referentes ao Hemisfério Norte-
Ocidental.
Ainda assim, em alguns casos se encontrava alguma notícia específica
em torno de acontecimentos dessas regiões. Por exemplo, encontrou-se um
artigo de 1921 tratando especificamente do Oriente Médio, escrito na
cidade paulista de Rio Preto ao jornal A Plebe431 por M. Hidaib,
provavelmente um sírio-líbanês ou descendente dos muitos que aqui
chegaram na virada do século XIX. O texto baseava-se na reprodução de
um manifesto do recém-fundado Partido Operário Comunista da Palestina
publicado no jornal Al-Afcar e destinado à comunidade síria em São Paulo.
Neste texto se conclamava a união dos trabalhadores de todas as religiões
contra o capitalismo e se relatavam os conflitos verificados entre
comunistas e nacionalistas na primeira comemoração do 1o de Maio na
cidade de Jaffa. O otimismo de que um movimento revolucionário nascia no
Oriente Médio para contribuir com o grande levante universal tornou-se a
tônica do artigo:
Estes acontecimentos desenrolados na Palestina enchem-nos de esperanças, porquanto por
eles percebemos que os povos do oriente vão marchando para a conquista da sociedade
futura.
Tanto na Palestina, como na Síria, tanto na Mesopotâmia, como na Arábia, já se não
contentam com a independência nacional, cheios que estão das embusteirices filantrópicas
do papa, por isso que já viram claramente que de nada lhes valem as ligas das nações e os
discursos bestialógicos de Lloyd George.
Estão convencidos de que tão somente o povo, por si só, é que pode conquistar o bem-estar
geral.
E o povo da Palestina, pela primeira vez, comemora o 1° de Maio e canta A Internacional.
Pela primeira vez o povo da Palestina se encontra unido, coeso e forte, lutando pela
redenção da humanidade.432
Das poucas notas à África, baseadas em notícias e telegramas
publicados na grande imprensa, existem algumas sobre um movimento
grevista de trabalhadores hindus empregados na construção de estradas de
ferro na África do Sul.433 Fora isso, como foi dito, tudo o que os anarquistas
tinham eram referências genéricas sobre as barbáries cometidas contra as
populações indígenas africanas e asiáticas, na violenta partilha colonialista.
As notas sobre África e Ásia assumiam então um caráter de denúncias
contra o capitalismo e a hipocrisia do que seriam os falsos valores de
civilização que eles carregavam. Diante das dificuldades de informações, de
comunicação e de atuação para com as populações africanas e asiáticas
submetidas ao controle imperialista, pode-se pensar que a forma de
solidariedade encontrada foi a inversão do discurso civilizatório dos
europeus. Contudo, a construção de um discurso contra-hegemônico se deu
a partir dos elementos hegemônicos.
A edição especial de uma página de A Plebe, datada de 15 de setembro
de 1917, trazia como manchete principal “No Reino da Senegambia”. Por
ter tido sua sede invadida e seu equipamento empastelado pela polícia de
São Paulo, a folha só pôde ser impressa graças à solidariedade dos redatores
do periódico O Combate. Para denunciar a abusiva perseguição revanchista
da polícia paulista aos militantes e operários por causa da greve de julho, os
redatores valeram-se de ironia agressiva e procuraram desconstruir a ideia
de que o Brasil era um país civilizado, como afirmava o discurso oficial. A
ação da polícia brasileira era a ação da polícia de um país selvagem,
primitivo, violento, de métodos rudimentares. Um país de “escuros” e de
“escuras leis”, como a Libéria e a Senegambia:
Engana-se quem supuser que este suplemento d’A PLEBE está sendo escrito em S. Paulo,
capital do Estado do mesmo nome, República dos Estados Unidos do Brasil. Engana-se
redondamente, deploravelmente. Não. A PLEBE está sendo escrita na Senegambia, vasta
região de pretos no continente preto. Não poderíamos escrever este suplemento em São
Paulo, nem noutra qualquer cidade brasileira, porque S. Paulo é um rico e poderoso centro
de civilização e o Brasil inteiro um país de nobres e antigas tradições de liberalismo. Só na
Senegambia era possível escrevermos o suplemento do nosso jornal, porque só neste país
escuro de escuras leis, poderiam ocorrer os fatos que acabam de se produzir e que
determinam a publicação d’A PLEBE suplemento e não d’A PLEBE jornal. A PLEBE
jornal não existe desde ontem. Não existe porque a polícia da Senegambia invadiu a
tipografia onde era impressa, substituindo dali todos os originais.
Eis porque afirmamos que o nosso suplemento não é escrito em São Paulo, nem em nenhum
outro ponto do Brasil. Esta república não é a da Libéria, não é uma república de negros, de
selvagens de tanga e de usos e leis rudimentares. É um vasto país de muitos milhões de
habitantes, seres civilizados, generosos e livres, com uma constituição liberal, com um
corpo de leis escritas, com tribunais, com parlamentos.
Todas estas instituições traduzem a civilização dos séculos, representam um estádio na
evolução, uma fase na vida social dos homens. Por isto o Brasil se chama um povo culto,
por isto ele reclama essa prerrogativa, por isto ele se equipara às demais nações que o são.
Numa coisa, porém, o Brasil não é o que são os outros países, e esta coisa é a polícia. A
polícia não é, nunca foi brasileira, a polícia é da Senegambia, usa os processos
senegambeses e são senegambeses os seus funcionários. [...]434
Cerca de um mês antes, as críticas à polícia paulista, R. F. (que poderia
ser, provavelmente, ou Rodolfo Felipe, ou Roberto Feijó), tomou a forma
do deboche e da ironia. E para xingar os policiais brasileiros de clowns,
comparou-os às polícias de três “consideráveis países”:
De fato, a polícia do Brasil, entre as polícias do mundo, é, talvez, a mais irresistivelmente
picaresca.
Picaresca nos tipos, picaresca nos processos, picaresca nas ideias . Não conhecemos o
instituto policial na Libéria (república de pretos na costa africana), nem do Haiti, nem do
Sião, mas acreditamos que a polícia destes consideráveis países se pareça, em muitos
pontos, com a polícia do Brasil.435
A ideia de que a polícia brasileira agiria como se fosse uma polícia de
“sinegambeses”, haitianos, sioneses e liberianos não implica dizer, contudo,
que os anarquistas fossem propriamente racistas. Textos como este tinham
por objetivo atingir diretamente os mais prezados valores da classe
dominante brasileira e de suas instituições, para mostrar como eles não
eram naturais tampouco os mais elevados. A classe dominante brasileira
“reclama a prerrogativa” de poder se “equiparar às demais nações”
civilizadas, mas, na verdade, o orgulho de suas instituições não
correspondia à barbárie de seus atos. Neste sentido, a argumentação
anarquista citada, apesar da retórica agressiva e aparentemente racista, tinha
por função denunciar a falta de liberdades fundamentais que garantiam o
mínimo de civilidade. Ao contrário, a civilização burguesa era mais
selvagem, mais hipócrita e mais contraditória quando contrastada com as
culturas oprimidas ditas inferiores. Neste embate, a moral dos “civilizados”
era inferior à dos “selvagens”, pois estes, apesar dos limites das
superstições, não eram arrogantes nem hipócritas, mas sim muito mais
sinceros e puros, como demonstra a reprodução comum de textos e
comentários como o abaixo, de um bispo da Índia:
Veio a guerra e fez-nos retroceder, não já anos, mas dezenas de anos. Grandes são os
prejuízos morais causados pela guerra. A conversão dos pagãos efetuava-se geralmente em
virtude de atos de caridade praticados por eles. Quando, por exemplo, em tempo de peste
viam os pagãos, que só os missionários católicos deles cuidavam, ao passo que toda a gente
os abandonava, então, perante essa conduta dos missionários, abraçavam a religião católica.
Agora vêem na guerra o contrário do amor: vêem como as potências européias, esses povos
civilizados, se aniquilam mutuamente e inventam continuamente novos e cruéis artefatos de
guerra. Isto deve forçosamente impressionar os pagãos. Quando, depois da guerra,
retomarmos a tarefa, os missionários, certamente ouviremos: começai por reformar-vos a
vós próprios, cristãos; nós, pagãos, somos melhores do que vós sois.
DOERING, bispo de Poona (Índia).436
Percebe-se que o recurso retórico a imagens negativas do senso comum
sobre os países “selvagens” tinha por única função atingir o orgulho da
classe dominante brasileira de dizer-se pertencente à raça branca, e para
denunciar os abusos do capitalismo global que, ao contrário de civilizar,
fundava-se na violência extremada para a subjugação de outros povos.
De outra parte, mesmo com as denúncias contra o imperialismo e sua
ideologia racialista, outras fontes nos levam a questionar como o negro era
visto pela militância anarquista brasileira.
Raças e Revolução Social
A eclosão da Revolução Mexicana chamou a atenção de todo o mundo,
especialmente dos libertários, suscitando questões acerca da composição
racial e do potencial revolucionário das massas. Entre 1911-1913, os
anarquistas do Brasil acompanhavam e divulgavam as sequências de
eventos que se desenrolavam no México, prestando solidariedade contra as
perseguições sofridas pelos revolucionários, como na ocasião da prisão de
Figueroa, Rivera e dos irmãos Magón, redatores de Regeneración, e das
ameaças de intervenção dos Estados Unidos.437
A Revolução Mexicana despertou, além de admiração, certa surpresa
nos militantes libertários do Brasil e do mundo. Isso porque a revolução que
acreditavam ser expropriadora, ao contrário do que se esperava, não ocorria
em um país industrializado e não era encabeçada por um grupo de uma
“guarda avançada”,438 como acreditavam serem os próprios anarquistas, mas
por “primitivos, estes seres rudes, incultos”.439 De toda forma, os libertários
do Brasil tinham a convicção, compartilhada por militantes de outras partes
do mundo, de que se tratava de uma “Revolução Comunista Anarquista”440
orquestrada pelos indígenas.
Em um texto traduzido por Paulo Jurema, de autoria do anarquista
francês Aristides Pratelle, originalmente publicado no semanário parisiense
Les Temps Nouveaux, como resposta ao ceticismo dos redatores de El
Socialista, procurava-se apresentar as causas e origens da Revolução
Mexicana, considerada pelo autor como o “prólogo da revolução social
internacional que se anuncia”. Para tanto, o autor utilizou-se daquilo que
chamou de “psicologia étnica”. Reportando-se à história de resistência dos
toltecas e astecas ao domínio espanhol mesmo depois da conquista,
buscavam-se fundamentos na antropologia física (“o anglo facial do Asteca
avizinha-se muito ao do Europeu”) e social. Parte das causas e origens da
revolução no México estava, então, no instinto de liberdade da população
mexicana, da qual grande parte era formada por índios puro-sangue,
herdeiros de uma tradição comunitarista de apoio mútuo. E isto era tão ou
mais importante do que a iniciação na filosofia anarquista, como se passava
com os militantes civilizados.441
A solidariedade dos militantes anarquistas brasileiros à Revolução
Mexicana foi impulsionada não apenas por ser um levante popular, e como
tal digno de solidariedade, mas também pela convicção de que se tratava de
um movimento expropriador conduzido por indígenas, que construía uma
sociedade comunista-anarquista. O fato de parte de esta convicção se basear
em argumentos de ordem racialista, ainda que seja na reprodução de um
único artigo, nos instiga a pensar como os anarquistas percebiam a
heterogeneidade racial do Brasil em relação ao seu projeto revolucionário.
A partir de 1912, quando, já havia dois anos, se acompanhava os
avanços da Revolução Mexicana, foi formulada uma enquete no jornal A
Guerra Social, do Rio de Janeiro, para que os militantes pudessem dar sua
opinião acerca de diversos assuntos relacionados à prática e desafios a
serem enfrentados pelos mesmos. Uma das quatro questões dizia respeito
diretamente às “causas da apatia que se nota, no momento atual, no seio das
classes trabalhadoras do Brasil” para poder discutir como fazer para o
trabalhador brasileiro sair da “indiferença” em que se encontrava ante a
efervescente agitação social que os anarquistas julgavam haver naquele
momento na França, Alemanha, Espanha, Portugal, Argentina, Estados
Unidos e México. Alguns, como Edgard Leuenroth, se recusaram a admitir
que o movimento operário brasileiro era ou estava apático, contra-
argumentando que a mobilização, pouco a pouco, estava crescendo. Mas,
entre os que aceitavam falar em apatia, pelo menos sete dos 13 militantes
que responderam à enquete, se referiram de algum modo às divisões étnicas
ou raciais no Brasil como um dos fatores que dificultavam a organização da
ação coletiva. Entre dois extremos havia os que acreditavam que as divisões
de raça e de classe eram entraves devido à adesão dos trabalhadores a essas
identidades, como no caso de Ernesto Ferrari, de São Paulo, que atribuía ao
“nacionalismo de cada um”, ao apego à “bandeira de raça”, o obstáculo que
não permitia ao trabalhador ver que deveria “defender exclusivamente a
bandeira da Internacional”.442 Em outro extremo, havia os que julgavam
haver marcas de caráter dos trabalhadores do Brasil, como, por exemplo,
José Rodrigues, do Rio de Janeiro, que considerava a maior parte dos
imigrantes que se dirigiam ao Brasil como pertencentes à “massa mais
ignorante e retrógrada de toda a Europa”. O argumento mais recorrente,
entretanto, era: os trabalhadores nascidos no Brasil ainda estariam
arraigados à experiência da escravidão, acostumados ao conformismo e às
benesses de benfeitores, não tinham muitas tradições de luta, menos ainda
de luta coletiva; os imigrantes europeus só pensam em enriquecer e voltar
para seus países de origem, mesmo entre os que tinham participado das
fileiras de luta na Europa. Para piorar, a integração entre os nascidos no
Brasil e os imigrantes não era completa.
Havia no Brasil, portanto, na visão de vários entre os entrevistados, uma
divisão entre duas ordens de trabalhadores com características diferentes e
comuns: de um lado, os trabalhadores nacionais, de outro, os imigrantes. A
intersecção destes dois seria o desinteresse completo pela ação coletiva.
Chama à atenção a visão de que os trabalhadores brasileiros nativos
eram, por terem experimentado a escravidão, os mais propícios ao
conformismo. Fora os que tinham uma trajetória de luta em seus países de
origem, mas logo a abandonavam no Brasil, os imigrantes que vieram para
cá eram os “mais ignorantes e retrógrados”, ao contrário dos que na Europa
ficaram ou se dirigiam aos Estados Unidos e Argentina, onde participavam
ativamente da mobilização social. É interessante notar que, apesar de todos
se encontrarem apáticos no Brasil, os entrevistados, de forma geral, fizeram
a distinção entre imigrantes e nativos, sendo que a impressão que se tem da
leitura é que destes pouco se esperava, dada a condição de escravos a que
estavam submetidos por muito tempo, enquanto daqueles esperava-se um
potencial que, por azar do destino ou por abandono da luta, não se
concretizou no Brasil. De todo o modo, a questão da origem nacional, à
qual se associava a questão racial (portanto, não à cor da pele), parecia ser
um forte entrave na constituição da classe trabalhadora.
Nas imprensas anarquista e sindicalista dirigidas por libertários de São
Paulo, Santos e Rio de Janeiro foram encontradas, até este momento,
poucos artigos que tratavam direta e especificamente do 13 de Maio, apesar
da relativa proximidade temporal de um fato que transformaria em
definitivo, pelo menos formalmente, o caráter do trabalho no Brasil.
Seria relativamente fácil de compreender a menor atenção dispensada ao
13 de Maio do que ao 1o de Maio e, em muito menor medida, ao 13 de
outubro, data da execução do pedagogo anarquista Francisco Ferrer y
Guardia na masmorra de Montjuich, na Espanha, no ano de 1909. Enquanto
a data da Abolição da Escravidão havia sido formalmente proclamada pela
princesa brasileira, nas outras duas datas rememoravam-se militantes
mortos por terem lutado pela liberdade de todos os trabalhadores do mundo
e da própria humanidade.
A força da imagem do martírio e a ideia de que muito ainda deveria ser
feito, de certa forma, ofuscaram as remissões ao 13 de Maio, ao contrário
do que se passou por exemplo com a Comuna de Paris. Pelo menos, do
material analisado, não se encontrou nenhuma referência a um ato
simbólico em comemoração à Abolição da Escravidão, ao contrário, por
exemplo, das homenagens aos grandiosos feitos (vencidos pela reação) nas
ruas parisienses. Em 18 de março de 1920, por exemplo, ocorreu no salão
do Centro Republicano Português, em sessão organizada pela Federação
Operária de São Paulo, uma “boa noitada de propaganda” em que se
professou que “seu sacrifício heróico será dentro em breve recompensado
pela vitória da causa do holocausto da qual sucumbiram aos milhares”.443
Para efeitos de propaganda, essas datas teriam apelo simbólico talvez
mais direto do que a rememoração do 13 de Maio. Ao contrário desta data,
os significados do 1o de Maio, do 18 de Março e do 13 de Outubro não
podiam ser apropriados pela classe dominante, pelo menos até aquele
momento. Eram datas de feitos de protagonistas trabalhadores lutando em
classe para toda a classe trabalhadora universal. A própria tarefa de
divulgação dessas datas no Brasil foi obra dos trabalhadores militantes
contra a vontade do Estado, que, por diversas vezes, teria impedido
manifestações públicas em sua comemoração.
O 13 de Maio, por sua vez, ocorrido no Brasil antes do anarquismo ter
chegado e se difundido no Brasil, desde 1888 adquiriu um caráter simbólico
que conferia à generosidade da princesa a responsabilidade do “canetaço”
que alforriou tanta gente da condição de mercadoria e propriedade. Dessa
maneira, para fins de propaganda, os anarquistas se viram obrigados a
subverter o seu simbolismo tal qual se apresentava hegemonicamente, que
livrava da classe dominante do presente o peso da culpa dos seus
antepassados.
No processo de subversão dos símbolos (ou, a seu ver, restituição da
verdade histórica), travaram uma disputa simbólica em duas frentes: em
torno da autoria da Abolição da Escravidão; e sobre os seus limites. Eram
duas questões fundamentais na difusão de uma nova mentalidade que
pudesse servir à ação e aos propósitos da luta de classes através dos
métodos libertários.
Deste modo, por exemplo, através de uma anedota, Helto Mortiço
descreve a reação de um ouvinte ao discurso de um orador que “desfazia-se
em elogios à magnanimidade da princesa” em praça pública. Para espanto
de toda a platéia, que inicialmente o chamou de bêbado, atribuiu a abolição
da escravidão à ação direta dos “cocheiros e mais alguém como eles”:
As sinhás chegavam à estação acompanhadas das suas mucamas e moleques; enquanto um
cocheiro a distraía no trato do aluguel do carro, outro raptava-lhe os escravos e dava-lhes
fuga.
Isto chegou a fazer-se em larga escala em todas as estações ferroviárias mais importantes.
Entretanto, iam-se pondo em prática outros meios não menos eficazes do que esse, sendo
tais atos denominados pela Imprensa de então – “roubos de escravos”, e os seus autores
“ladrões de escravos” e “Caifazes”.
O tal decreto da abolição não fez mais do que reconhecer os fatos consumados e em via de
consumação.444
Como texto de propaganda, o militante tratou de inverter completamente
a autoria da Abolição, passando-a da princesa para simples e anônimos
cocheiros que, sorrateiramente, criaram um sistema de fuga de escravos que
se disseminou a tal ponto que não havia alternativa ao Estado que não
reconhecer sua derrota. Tal como no passado, era preciso que os
trabalhadores agissem, e começassem, mesmo que fossem inicialmente
poucos a promover, através da ação direta, “as expropriações em massa” a
fim de extinguir definitivamente “o cativeiro dos pretos e dos brancos”, que
permanecia existindo, apesar do decreto imperial.
A transferência da ação protagonista da princesa para os trabalhadores
escravizados esteve presente em outros textos que trataram especificamente
da Abolição do 13 de Maio, especialmente na virada da década de 1910,
quando a figura de Zumbi dos Palmares, o “admirável Spartacus negro da
História”,445 parece, enfim, ter sido descoberta. A primeira referência ao
mártir que encontrei diz respeito a um Grupo Comunista Brasileiro
Zumbi,446 fundado em 1919. Uma outra possibilidade de enfoque sobre a
propaganda havia surgido? Neste sentido, em 13 de maio de 1921, já em
meio às tensões e o início da definição de posições dos militantes ante a
Revolução Russa, o jornal Voz do Povo,447 órgão da Federação dos
Trabalhadores do Rio de Janeiro, lançaria uma edição cujo conteúdo
exaltava a resistência secular de heróis, como o quilombola e outros
anônimos, pela libertação dos negros escravizados e exortava os
trabalhadores a fazerem o mesmo para o fim de toda forma de escravidão.
Em maio de 1920, em um texto assinado por Isabel Silva,448 no
hebdomadário A Obra, cuja capa trazia o desenho de um negro de costas,
olhando para a frente em direção a um ponto luminoso, com os braços
abertos e os grilhões partidos, repetia-se novamente o argumento de que a
decretação da Abolição não fora mais do que o inevitável reconhecimento
de que a resistência dos escravizados havia tornado a conservação da
escravidão impossível. Nesse texto, fazia-se um apanhado histórico da
trajetória de resistência dos escravizados, desde Palmares, e das artimanhas
da classe dominante e suas leis em conduzir um processo de abolição que
não pusesse em risco a sua posição social nem o regime de propriedade
privada.
Ou seja, ao contrário do mito que se difundiu, “a grande verdade é que,
o feito grandioso da extinção da escravidão no Brasil, foi meramente obra
dos revolucionários, para o que concorreu unicamente a ação direta dos
interessados”. Porém, a ação direta dos oprimidos, para ser revolucionária,
precisa contar também com o apoio de ideias:
Em face do horror que essas crueldades inspiravam aos corações bem formados, aventou-se
a ideia do abolicionismo. A princípio chamava-se-lhe simplesmente emancipação porque
receava-se a reação dos senhores donos de escravos, que tinham a seu dispor tribunais e
parlamentos. Contudo, a sublime ideia foi tomando vulto.
Em 1831, votava-se uma lei, proibindo o tráfico de africanos. Em 1871, votava-se outra lei
declarando livres os filhos de mulher escrava.
Então, a malvadez escravagista chegou ao auge: as inocentes criancinhas que nasciam
protegidas pela lei do ventre livre, morriam à míngua por falta de cuidados maternos, as
mães, por imposição dos algozes, existiam só para o eito e não para cuidar dos filhos.
Foi então que os precursores do abolicionismo resolveram intensificar a campanha para pôr
termo à escravidão.
O maior vulto da nobre causa foi Luiz Gama, o Espártaco baiano. Morreu ele sem poder ver
a conclusão de sua obra.
Substituiu-o na estacada, Antonio Bento de Sousa e Castro, que foi um digno sucessor.
Durante algum tempo a ação abolicionista desenvolveu-se dentro do foro, indenizando-se a
carta de alforria. Mas a ativa propaganda dos abolicionistas, entre os quais Rui Barbosa e
José do Patrocínio, deslocou a peleja libertadora, da esfera restrita dos tribunais para a das
agitações revolucionárias. A onda avassaladora avolumava-se e avançava, atraindo novos e
numerosos contingentes para as fileiras revolucionárias.
São dignos de menção os relevantes serviços prestados pela imprensa defensora da
liberdade dos escravos.449
Deste modo, Isabel Silva reconheceu que o movimento abolicionista
deveu muito de sua força e formulação de suas ideias a homens que não
compactuavam com ideias socialistas, muito menos anarquistas. Nem por
isso deixaria de atribuir-lhes, um pouco à moda da história dos grandes
homens, como era usual fazer naquela época o reconhecimento de sua
colaboração àquela causa. No entanto, pelo menos os editores da revista não
deixaram passar desapercebido que a adesão a um movimento legítimo do
passado não tornava Rui Barbosa um companheiro e defensor dos
trabalhadores no presente, como tentava fazer acreditar a sua propaganda
eleitoral para a presidência da República naqueles anos.450
Como anarquista, escolhia-se a ação direta como o único meio para
atingir fins revolucionários. Mas a ação deveria vir acompanhada também
de ideias, de reflexão, para que o curso dos esforços não desviasse de seu
caminho rumo à Revolução. O movimento abolicionista foi um movimento
de ação direta e parcialmente libertador. Parcialmente porque, apesar de a
ação direta ter posto fim ao regime de escravidão negra, a obra não foi
completa, no sentido de que não colocou fim ao regime de propriedade
privada que mantém escravos não apenas essa “raça infeliz”, mas todos os
trabalhadores, negros e brancos, através do salariato. A ação direta
orientada por ideias sinceras, mas não propriamente revolucionárias, logrou
a conquista fundamental da Abolição da Escravatura, porém de modo
limitado. Entretanto, mais do que lamentar o fato de o abolicionismo não ter
completado a revolução, a mensagem final era de esperança de que a luta
dos mártires do passado deveria ser continuada pelos escravos do presente,
apesar de todas as dificuldades impostas pela reação, tal como sucedeu com
os primeiros abolicionistas:
Como naqueles tempos, os arautos da liberdade sofrem toda a sorte de afrontas, de torturas
e de vexames. Mas, como naqueles tempos, a onda revolucionária se avoluma e avança, e a
justiça há de vencer.
Neste Maio, para nós de fulgurantes esperanças, das colunas da nossa “Obra”, para a
redenção dos escravos modernos, reinvocamos num preito de gratidão os mártires de
Chicago, e saudamos num preito de homenagem os mártires negros do Brasil.
Salve, Maio de grandiosas recordações!
Glória, glória, aos mártires da Liberdade!451
De outra parte, neste mesmo texto de Isabel Silva, notam-se alguns
elementos que serão constantes em toda a propaganda libertária do Brasil,
quando tratava, direta ou indiretamente, do tema da escravidão negra.
Apesar de o argumento central do texto ser a demonstração de um vínculo
de continuidade entre a dinâmica das lutas dos escravos pela liberdade e as
lutas dos trabalhadores livres “de todas as raças” na atualidade, há, por
diversas ocasiões, o uso de expressões que parecem demarcar uma
diferença não apenas entre a condição de trabalhadores escravizados e
livres (diferença, aliás, praticamente mínima no regime de “escravidão
hodierna, [...] salariata, que se quer abolir”), mas também entre “negros” e
“brancos”. E isso se verifica mesmo nas passagens que têm por objetivo
combater o racismo. Esta distinção está presente, por exemplo, quando a
autora diz que “ao recordar esses ominosos tempos, o rubor queima-nos as
faces” por sentimento de culpa pelos maus tratos a que eram submetidos os
escravos, “aquela infeliz gente, em tudo igual a nós, diferindo só na cor”.
Possivelmente, Isabel (Cerruti) Silva, pelos padrões raciais da época no
Brasil, era vista e sentia-se como “branca” para poder pôr-se em igualdade,
biológica e moralmente, com os “negros” apesar da cor. Poderíamos
considerar apenas um breve rasgo de percepção individual desta militante a
respeito da linha da cor. Mas a existência de outros fragmentos de teor
semelhante espalhados na imprensa anarquista nos leva a crer que outros
anarquistas compartilhavam a mesma autoimagem. João Crispim,452 por
exemplo, um dos mais ativos militantes anarquistas de Santos, condenou o
racismo e a aura de legitimação, primeiro, religiosa, e depois, cientificista,
que essa ideologia recebeu, nos seguintes termos:
Para encontrar argumentos que satisfizessem o desejo de justificar este princípio, e, ainda, a
bárbara escravatura, há pouco nominalmente abolida, estudou-se o homem de cor e
observou-se e propagou-se que tem muito pronunciados os caracteres de bestialidade, tanto
sob o ponto de vista físico como intelectual.
A sua conformação craniana, cuja fronte é, como a do símio, pouco elevada, os pômulos
salientes e as mandíbulas formidáveis, o nariz achatado, são caracteres próprios do tipo que
vive em vida vegetativa, que não tem outras funções que as da nutrição.
Para justificar a caça e a escravidão dos negros, os cientistas definiam-nos como bestas
ferozes, às quais era preciso não domar, mas amansar.
Os padres diziam que os negros não tinham alma e, portanto, não era pecado tratá-los como
aos outros animais.453
A essência do texto de Crispim, assim como o de Isabel Silva e todas as
outras referências sobre o 13 de Maio e a escravidão negra no Brasil,
condena as barbáries cometidas contra os negros no passado e contra todos
os trabalhadores, “negros, brancos, amarelos ou cobriços”, no presente,
suscitando, como única solução possível e necessária, a união de todos em
torno da ação direta da classe trabalhadora. Mesmo assim, ainda que para
esses militantes ninguém devesse sofrer discriminação por causa da cor da
pele, o fato é que a sua visão, ainda que combativamente contra-
hegemônica, estava permeada pelos preconceitos dominantes, entre eles o
racialismo. De outra forma, e se não se considerasse branco, dificilmente
Crispim repetiria que a formação craniana dos negros se assemelhava à dos
“símios”, com características próprias de quem tinha uma “vida vegetativa”.
Além de utilizar argumentos cientificistas quanto às características
físicas dos negros para criticar o cientificismo, defendeu a igualdade de
capacidade intelectual entre as raças, mesclando fatores históricos e uma
certa dose de preconceito de quem analisa as diferenças de fora e de cima:
Mas o certo é que nunca se procurou educar essa raça para saber se realmente era suscetível
de uma evolução e aperfeiçoamento mais rápido, como o é a raça branca.
Não se procurou educá-la porque havia muito em que ocupar os cativos, submetidos a
trabalhos prolongados e extenuantes, que poucos senhores seriam capazes de realizar, e
porque a instrução ou a educação seria um sério perigo para essa instituição pseudo-
científica e divina.
No entanto, os escravos tinham rasgos de inteligência e compreendiam bem a tremenda
injustiça do regime a que eram submetidos. Tal é assim que se mantiveram em constante
rebeldia, castigada com a morte, e infinidade de revoltas se produziram, sendo presos e
massacrados pela milícia do império, vale dizer, do Estado científico e da divina
Providência.454
É possível depreender do trecho acima que a “raça branca”, em vez de
ter estigmatizado o negro, deveria ter utilizado os métodos à disposição,
desenvolvidos devido ao estágio evolutivo atingido, para educar a “raça
negra” e “saber se realmente [ela] era suscetível de uma evolução e
aperfeiçoamento mais rápido [...]”, como seria o caso verificado entre os
brancos. Contudo, mesmo sem terem sido educados (pelos brancos), “os
escravos” (negros) “tinham rasgos de inteligência”, como provavam seus
atos de rebeldia e suas rebeliões. Ainda assim, note-se bem, eram apenas
“rasgos”.
Era compreensível, segundo Crispim, a existência da linha da cor na
população brasileira não apenas por causa da visão preconceituosa dos
brancos em relação à raça negra, mas também dos negros em relação aos
brancos. Afinal, haveria motivos históricos para que os negros
desconfiassem dos brancos: a “injustiça [da escravidão], que não escapava
às luzes da sua [dos negros escravizados] consciência é a causa do ódio que
mantiveram e mantêm contra a raça branca. Para eles a raça branca é a raça
dos escravistas”.455
No entanto, apesar de existente, e até do legítimo sentimento de
desconfiança dos negros, deveriam ser empregados todos os esforços para
que a linha da cor fosse superada e se pudesse pôr fim à escravidão comum
do presente, que, retoricamente, subjugava-os “com mais perigo para sua
vida e a sua liberdade, do que nos tristes tempos do seu [do negro] especial
cativeiro”.456
Creio que os elementos analisados na propaganda libertária permitem
afirmar que diversos anarquistas no país (ou, mais particularmente, em São
Paulo, a tomar pelos exemplos aqui citados) viam-se como brancos, e,
apesar do discurso em defesa de “todas as raças” e de que o elemento
revolucionário da classe trabalhadora deveria ser formado por todas elas,
tinham por público prioritário a atingir os trabalhadores brancos. Era nos
trabalhadores brancos, sobretudo os estrangeiros, que esses militantes
depositavam a fé de poder arregimentar com mais facilidade forças para a
cotidiana batalha revolucionária, para libertar todas as raças do jugo da
escravidão capitalista. Seria entre eles que se encontrariam os principais
agentes a divulgar o ideário anarquista.
Em um artigo de A Plebe, lê-se a seguinte legenda logo abaixo de uma
ilustração (a mesma da capa de A Obra, acima citada): “Quando brilhará
para a multidão oprimida dos escravos brancos, o sol de um 13 de maio de
fato?”.457 Seria muito exagero querer ver nesta passagem a afirmação de que
a liberdade havia já chegado aos negros, faltava agora somente aos brancos,
uma vez que os alforriados em 13 de Maio tornaram-se juridicamente tão
livres quanto os brancos. Contudo, creio ser legítimo pensar que a ideia de
“nova escravatura branca” é mais uma indicação de que os esforços dos
militantes estavam voltados prioritariamente para arregimentar a simpatia
dos trabalhadores brancos, e, entre estes, especialmente os imigrantes:
Como as condições econômicas, as formas da propriedade não mudaram, também não
mudou, a não ser no apelativo e na cor da pele, o escravo antigo. Na essência, tudo ficou
como estava.
Não quer isso dizer que o escravo se fez proletário, valendo este, no fundo, o mesmo que
aquele.
Não. Surge-nos, a cada passo, o escravo, do mesmo modo, com as mesmas formas, as
mesmas servidões. Temos, literalmente, a escravatura pessoal. D’antes havia a empresa
privada, o negreiro, que se encarregava de ir comprar ou caçar o negro, em regra pela
astúcia, e o vendia depois aqui ao agricultor. Hoje, o empresário desse negócio é o Estado.
Este não compra o escravo, mas paga-lhe a passagem: não caçam o negro a laço ou
mostrando-lhe barretes e miçanga, mas engana-o com falsas promessas de bem-estar.
O escravo chama-se colono e é branco, e o Estado não é “negreiro”, mas agente de
imigração, representante dos fazendeiros. Temos aqui um exemplo típico de “governo de
classe”.
Mas, pondo o pé em terra brasileira, o colono não é livre? Perdão, deve ir para a
“Hospedaria dos Imigrantes” [...] E ali a liberdade de dispor da sua própria pessoa é bem
mesquinha: se for preciso, a mesma polícia lho fará sentir.
Mas, na fazenda, o colono é pago, e é livre: pode mudar de patrão, sair... Devagar. Fugir,
ainda às vezes lhe é possível, de noite, por causa dos capangas. Não faltam na fazenda os
aparelhos de escravidão: o administrador, o capanga, o chicote, o tronco, a tortura, a
seqüestração das pessoas, o direito de pernada, o calote, e a multa ou a cantina obrigatória,
que fazem voltar para o bolso do senhor ou do feitor o salário que porventura foi dado.
[...]458
Enfim, a escravidão continuava, agora com os navios chegando com
escravos “brancos” da Europa, em vez da África. E equiparar a condição do
trabalhador assalariado à condição de escravizado cumpria duas funções de
propaganda: de denúncia do capitalismo, que, apesar da aparência, pouco
ou nada teria de avanços para o trabalhador; e de coesão da classe
trabalhadora, também entre brancos e negros, pois todos estavam
submetidos à mesma condição aviltante anterior a 1888. Porém, seguindo
os argumentos desses artigos publicados na imprensa anarquista paulista
sobre o potencial revolucionário da classe acreditava-se que seria entre os
brancos que se encontravam os que pudessem assumir a função de uma
vanguarda revolucionária. Afinal, apesar de terem sido os brancos os
escravizadores do passado e do presente, existia “a atenuante de que é da
mesma raça que sai maior contingente de rebeldes e de revolucionários”,459
como se deduzia ao constatar que as mais importantes e avançadas lutas dos
trabalhadores ocorriam nos países de população “branca”.

Conclusão
O internacionalismo propagado pelos anarquistas constitui um dos mais
importantes e fundamentais aspectos de diversas correntes operárias que se
pretendem revolucionárias. Dentre estas, o anarquismo, por não aceitar
negociar com o Estado, talvez seja uma das correntes mais intransigentes no
combate dos sentimentos nacionais, uma vez que eles ofuscariam a
percepção do internacionalismo do capital e das relações de poder, ao
mesmo tempo em que impediriam que os trabalhadores identificassem seus
interesses comuns através das artificiais fronteiras nacionais.
Diante de um contexto marcado pelo fortalecimento dos Estados
nacionais em disputa por monopólios de mercado, a construção hegemônica
do discurso nacionalista foi um entrave difícil de ser transposto pelos
anarquistas de todo o mundo. Por outro lado, para os anarquistas do Brasil,
havia ainda o problema de existirem múltiplos sentimentos nacionais em
um mesmo território, o que, por preconceitos de raça vigentes dificultava
por vezes o estabelecimento de laços de solidariedade mútua. Pelo menos à
diversidade de nacionalidades os anarquistas atribuíram algumas das
dificuldades de sua propaganda no Brasil.
Apesar de todo o discurso internacionalista, de combate às divergências
provocadas por sentimentos nacionais e pelo racismo, os militantes
anarquistas viviam neste mundo, e, como tal, sofriam as influências da
visão de mundo hegemônica. De certa forma, as teorias racialistas poderiam
ser incorporadas na sua percepção ao avaliarem os movimentos
revolucionários do exterior. Dos “civilizados” esperava-se a condução de
um processo revolucionário que pusesse fim à sociedade industrial
capitalista. Contudo, na avaliação de movimentos de rebeliões populares de
grandes proporções como a que ocorreu no México, embora também se
tenha recorrido a argumentos racialistas, a raça não parecia ser entrave para
a revolta.
Mas, apesar das análises sobre o México, muitos anarquistas no Brasil
não pareciam acreditar no potencial instintivo dos negros, que ainda sofriam
os efeitos da subjugação escravocrata. Pode ser encarada como uma
desculpa, ou um recurso retórico para justificar a baixa penetração do seu
ideário entre os trabalhadores brasileiro, o que, de certa forma, seria o
mesmo que reconhecer os limites não de sua propaganda, mas de sua
convicção política. De todo o modo, se não havia “instinto”, havia mais um
motivo para intensificar a propaganda, uma vez que, apesar das
dificuldades, mantinham a certeza da revolução.
No entanto, cabe ressaltar que o uso de argumentos racialistas para
avaliar os limites de sua propaganda e perceber a organização social não
fazia dos militantes anarquistas racistas. Ao contrário, deve-se, antes,
reconhecer que, a partir dos seus esforços na construção de laços de
solidariedade internacional e de sua batalha para a unificação do conjunto
da classe, acima das diferenças de cor, constituíram uma pedagogia pela
qual se procurou enfrentar e superar essas divisões sociais, junto com a
superação do capitalismo pela classe trabalhadora.

Referências
ALVES, Paulo. A verdade da repressão: práticas penas e outras estratégias
na ordem republicana (1890-1920). São Paulo: Editora Arte & Ciência,
1997.
CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil (1877-1944). São Paulo:
2.ed., Difel, 1984, p. 333-334; Grupo Comunista Brasileiro ‘Zumbi’.
Spártacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 23, 3 jan. 1920, p. 3.
HAHNER, June Edith. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil –
1870-1920. Brasília: Editora da UnB, 1993, pp. 298-301.
HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo Sérgio. Alargando a história da classe
operária: organização, lutas e controle. Remate de Males, Campinas,
Unicamp, n. 5, 1985, p. 100.
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital (1848-1875). São Paulo: 5.ed., Paz e
Terra, 1997, p. 349-382.
MACHADO, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. São
Paulo: Martin Claret, 2002 (texto original de 1927).
MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário
brasileiro, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 13-27.
NAXARA, Márcia R. C. Estrangeiro em sua própria terra: representações
do brasileiro (1870-1920). São Paulo: Annablume; Fapesp, 1998.
RODRIGUES, Edgar. Os companheiros. Florianópolis: Insular, 1999.
SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no
pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

8 Os primeiros capítulos desta obra coletiva trazem um apanhado do debate historiográfico a respeito
da diversidade da classe trabalhadora brasileira em seu processo de formação, razão pela qual não
iremos retomá-lo aqui, concentrando-nos na análise das fontes primárias.
9 MACHADO, 2002, p.18.
0 Contudo, como fazem notar HALL e PINHEIRO, 1985, p. 100, as condições de vida e trabalho que
os imigrantes, em seu conjunto, encontraram no Brasil foram mais fundamentais do que uma prévia
experiência política. A maioria dos imigrantes provinha de áreas rurais em seus países de origem sem
terem desenvolvido atividades sindicais ou qualquer intimidade com doutrinas socialistas.
1 MARAM, 1979, p. 13-27, indica os altos índices de emprego de mão de obra estrangeira nas
atividades urbanas de São Paulo e, em menor número, no Rio de Janeiro.
2 Sobre as práticas repressivas e o mito do agitador estrangeiro, ver ALVES, 1997.
3 Os anarquistas brasileiros. Ao povo. Spártacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 9, 27 set. 1919, p. 1-2.
4 O emprego do termo “raça” neste texto é mantido por ser aqui um objeto de estudo, um importante
elemento constitutivo da ideologia dominante no Brasil e no mundo no período estudado. Afinal, em
uma sociedade onde há racismo, há necessariamente a ideia de raça.
5 P. ex.: ESPIRIDIÃO, Antonio. Mais uma vez, Viva a República Argentina! A Guerra Social –
Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 22, 1 maio 1912, p. 2; Aos homens livres de todo o
mundo. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 11, 3 fev. 1912, p. 4; n. 13,
17 fev. 1912, p. 4; n. 14, 28 fev. 1912, p. 4; n. 15, 06 mar. 1912, p. 4; n. 16, 13 mar. 1912, p. 4; n. 18,
27 mar. 1912, p. 4; n. 19, 3 abr. 1912, p. 4; n. 20, 10 abr. 1912, p. 4; n. 21, 24 abr. 1912, p. 4.
6 P. ex.: SCALARINI. Na terra de Wilson – Feroz perseguição aos elementos avançados – Na famosa
democracia são praticadas indescritíveis crueldades. A Plebe, São Paulo, ano II, n. 7, 5 abr. 1919, p.
3; V. Na democracia de Wilson – O reverso da medalha – Processos inquisitoriais. A Plebe, São
Paulo, ano II, n. 9, 19 abr. 1919, p. 3.
7 P. ex.: PORTO, Amaro. Era nova. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n.
23, 14 ago. 1912, p. 1; Movimento Internacional – A Inglaterra revolucionária. A Guerra Social –
Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 14, 28 fev. 1912, p 3; VASCO, Neno. Sindicalismo
revolucionário. A Voz do Trabalhador, ano VI, n. 25, 15 fev. 1913, p. 2; Crônica Internacional. A
Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 27, 14 set. 1912, p. 3.
8 P. ex.: Crônica internacional. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 26,
4 set. 1912, p. 3.
9 P. ex: A. de P. Contra-revolução alemã – Os magnos histriões. A Plebe, São Paulo, ano IV, n. 57, 20
mar. 1920, p. 1.
0 P. ex: Contra a guerra. A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira, Rio de
Janeiro, ano VI, n. 23, 15 jan. 1913, p. 1; VASCO, Neno. Sindicalismo..., op. cit.
1 P. ex: CADETE, Andrade. Ecos do 1° de Maio. A Plebe, São Paulo, ano II, n. 14, 24 maio 1919, p. 3.
2 P. ex: O banditismo republicano em Portugal. A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação
Operária Brasileira, Rio de Janeiro, ano, n., 15 jul. 1913, p. 2; O terror em Portugal. A Voz do
Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira, Rio de Janeiro, ano, n., 1 ago. 1913, p. 2
3 P.ex: A Itália em convulsão – Começou a luta decisiva entre o proletariado e a burguesia. A Plebe,
São Paulo, ano II, n. 9, 19 abr. 1919, p. 4.
4 P. Ex: H. G. [Herme Gildo]. A Itália em convulsão social. A Plebe, São Paulo, ano V, n. 115, 30 abr.
1921, p. 1.
5 P. ex: O momento internacional. A Plebe, São Paulo, ano V, n. 119, 28 maio 1921, p. 3.
6 Por exemplo: Movimento Internacional – A Inglaterra revolucionária. A Guerra Social – Periódico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 14, 28 fev. 1912, p 3; JUREMA, Paulo. Inglaterra: Imponente
afirmação de força do operariado inglês – Solidários, os operários franceses e alemães entram na luta.
– Cuidado com os políticos. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 17, 20
mar. 1912, p. 2.
7 Por exemplo: TORRESÃO, Basílio. Pela desordem! A Plebe, São Paulo, ano I, n. 1, 9 jun. 1917, p. 2;
A. de P. Contra-revolução alemã..., op. cit.
8 O momento operário – O que se tem feito, o que se faz e o que há a fazer – Uma ‘enquête’ da
‘Guerra’. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 19, 3 abr. 1912, p 1.
9 P. ex.: SUAREZ, J. M. Para a Federação Anarquista. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de
Janeiro, ano II, n. 27, 14 set. 1912, p. 1.
0 Pela paz dos povos – Guerra à guerra! – Projeto da Confederação – Ao proletariado brasileiro. A Voz
do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, 1 jul. 1908,
p. 1.
1 Na verdade, os rumores de eventuais guerras não passavam de especulações nos argumentos
utilizados pelos que defendiam a modernização das forças armadas brasileiras.
2 Pela paz dos povos – Guerra à guerra! – A manifestação do dia 1° de Dezembro – 5.000
manifestantes – O triunfo da Confederação. A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação
Operária Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 7, 6 dez. 1908, p. 1. A manifestação contou ainda com
algum apoio de outros grupos e indivíduos não ligados diretamente ao movimento operário (tais
como o Apostolado Positivista do Rio de Janeiro, o Centro Republicano Conservador de Niterói, a
Loja Maçônica Fratellanza Universale de São Paulo), Sobre a indiferença da imprensa, da recusa de
outros antimilitaristas em tomar parte na manifestação da COB, ver ainda a nota IVAN. Ecos. A Voz
do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 7, 6 dez.
1908, p. 1.
3 Por exemplo, a invasão de escritórios e a destruição de documentos, praticadas por mulheres para
evitar o sorteio militar de seus filhos e maridos no interior do estado da Bahia e outras manifestações
pelo país. “Bravo! Bravo! Reação contra o sorteio. A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação
Operária Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 5, 22 nov. 1908, p. 1; O Sorteio Militar. Mulheres
revoltadas – Assassinatos – Cidade abandonada – Suicídios – Famílias que emigram – Ataques às
juntas – Comíncios – Protestos, etc. etc. Não Matarás! – Órgão da Liga Antimilitarista Brasileira. Rio
de janeiro, ano I, n. 3, dez. 1908, p. 3-4; A morte do sorteio. Não matarás.., op. cit., p. 3; JAGUNÇO.
No caminho da vitória. Não Matarás..., op. cit. p. 1-2.
4 Além dos efeitos da Guerra recaírem com maior ferocidade sobre as classes trabalhadoras, a
modernização das forças armadas brasileiras previa o serviço militar obrigatório. Os submetidos ao
sorteio militar, no entanto, seriam quase que exclusivamente provenientes das classes trabalhadoras,
uma vez que os filhos dos setores médios e altos podiam ser dispensados desta obrigatoriedade se
comprovassem terem tido algum vínculo com clubes de tiros. Sobre o caráter classista do serviço
militar obrigatório no início do século XX, ver HAHNER, 1993, pp. 298-301.
5 A Aliança Anarquista ao Povo. – A intervenção do Brasil na guerra. A Plebe, São Paulo, ano I, n. 3,
23 jun. 1917, p. 4.
6 Idem, ibidem.
7 Congresso Anarquista Sul-Americano. A Vida – Publicação mensal anarquista. Rio de Janeiro, ano I,
n. 7, 31 maio 1915, p. 97 e 111.
8 VIEYTES, Antonio; PEREIRA, Atrojildo. Pela Paz! Aos socialistas, sindicalistas, anarquistas e
organizações operárias de todo o mundo. Na Barricada – Jornal de combate e de crítica social. Rio
de Janeiro, ano I, n. 12, 26 ago. 1915, p. 3; Idem, A Luz, New Bedford, ano II, n. 33, 18 set. 1915, p.
1-2.
9 Para relatos sobre os dois congressos, ver a sequência de notícias publicadas no jornal carioca Na
Barricada, a partir do seu número 19, de 14 de outubro de 1915.
0 O Congresso Operário Sul-Americano. A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária
Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 4, 15 ago. 1908, p. 1.
1 Por exemplo: Argentina. A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira, Rio de
Janeiro, ano I, n. 9, 17 abr. 1909, p. 3; Crônica operária – Uma greve. A Guerra Social – Periódico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 30, 5 out. 1912, p. 3.
2 REINOSO, E. Cães que visitam o Brasil. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro,
ano I, n. 17, 20 mar. 1912, p 1.
3 Uma ‘enquête’ da ‘G.S.’ – O Momento Operário – O que se tem feito, o que se faz e o que há a fazer.
A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 26, 4 set. 1912, p. 1-2.
4 Aos homens livres de todo o mundo..., op. cit.
5 Pelo menos para este período das duas primeiras décadas do século XX e envolvendo o movimento
operário do centro do Brasil. Já para outros períodos e outras regiões, principalmente no sul, sim. Ver,
por exemplo, Boicote à Firma Padilla. O Syndicalista, Porto Alegre, ano VI, n. 1, 1 Fev. 1924, p. 5.
6 O caso Ettor-Giovannitti – Comícios para domingo. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de
Janeiro, ano II, n. 23, 14 ago. 1912, p. 2; MYER. Crônica Internacional. A Guerra Social – Periódico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 23, 14 ago. 1912, p. 3; O caso Ettor-Giovannitti – Abaixo a
pena de morte! Os protestos – O comício na Federação Operária – Manifesto dos ‘Jovens
Libertários’. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 24, 21 ago. 1912, p.
2; O caso Ettor-Giovannitti – Contra a pena de morte! – A agitação em S. Paulo e em Santos. A
Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 25, 28 ago. 1912, p. 1-2; O caso
Ettor-Giovannitti – Ecos da agitação. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II,
n. 26, 4 set. 1912, p. 2; Crônica operária. A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária
Brasileira, Rio de Janeiro, ano VI, n. 23, 15 jan. 1913, p. 1.
7 Subscrição pró-Malatesta. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 29, 28
set. 1912, p. 3.
8 Ver a série intitulada No país da liberdade... Em torno de uma monstruosidade, publicada nas
seguintes edições de A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira, Rio de
Janeiro, ano I, n. 8, 13 jan. 1909, p. 4; ano VI, n. 22, 1 jan. 1913, p. 1; n. 23, 15 jan. 1913, p. 1; n. 24,
2 fev. 1913, p. 1; n. 25, 15 fev. 1913, p. 1-2; n. 26, 1 mar. 1913, p. 1; n. 27, 15 mar. 1913, p. 3; n. 28,
1 abr. 1913, p. 2; n. 31, 15 maio 1913, p. 3; n. 32, 1 jun. 1913, p. 2.
9 HOBSBAWM, 1997, p. 349-382.
0 Entre os muitos trabalhos que tratam da ideologia da imigração/miscigenação, destacam-se:
SKIDMORE, 1976; SCHWARCZ, 1993; NAXARA, 1998.
1 HIDAIB, M. O comunismo na Palestina. A Plebe, São Paulo, ano V, n. 124, 30 jul. 1921, p. 3.
2 Idem, ibidem.
3 Pela África do Sul. A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira, Rio de
Janeiro, ano VI, n. 35, 15 jul. 1913, p. 3; Movimento Internacional – União Sul Africana. A Voz do
Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira, Rio de Janeiro, ano VI, n. 44, 1 dez.
1913, p. 3 (na nota seguinte “Índia”, relata-se sobre os protestos realizados na Índia em solidariedade
aos sul-africanos)
4 No Reino da Senegambia – A Constituição republicana é uma burla: está em cena a heróica polícia
de S. Paulo. Numerosas prisões de operários – Assalto à tipografia onde se imprime A Plebe e às
Ligas operárias – Subtração dos originais – A prisão do nosso diretor Edgard Leuenroth – O Centro
Libertário é violentamente assaltado e todos os móveis e arquivo removidos para a Polícia Central –
Espancamentos – Outras proezas. O intuito da polícia e do governo. A Plebe, São Paulo, ano I,
suplemento, 15 set. 1917.
5 R. F. Comentários de um plebeu. A Plebe, São Paulo, ano I, n. 9, 11 ago. 1917, p. 1. Apesar de não
dar maiores detalhes, o Sião citado provavelmente não deve ter relação com o Monte Sião e seu
templo salomônico, mas ao asiático Reino de Sião, que, em 1939, passaria a se chamar Tailândia.
6 A Obra – Semanário de Cultura Popular, São Paulo, ano I, n. 7, 23 jun. 1920, p. [8]. Sobre o
confronto moral de culturas, tendo a religião como mote, ver também o texto literário, sob forma de
diálogo entre um missionário e um “preto” em: DESHUMBERT, M. Em um país longínquo. A Plebe,
São Paulo, ano I, n. 10, 18 ago. 1917, p. 4.
7 Entre outras iniciativas, ver, por exemplo, o relato de Primitivo Raimundo Soares (Florentino de
Carvalho) sobre o comício contra a repressão na Argentina e em apoio à Revolução Mexicana,
realizado em 3 de março de 1912 na cidade de Santos em: De Santos – Grande protesto contra a
tirania do governo argentino e pró-revolução social no México – Greve das classes da construção
civil – Operários feridos – Lock-out – Atitude do Centro Espanhol. A Guerra Social – Periódico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 16, 13 mar. 1912, p 3; e arrecadação de fundos em Piracicaba
para o jornal Regeneración: Revolução mexicana. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de
Janeiro, ano II, n. 30, 5 out. 1912, p. 4.
8 Aos anarquistas no Brasil. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 18, 27
mar. 1912, p 3.
9 A Revolução Mexicana – Escritores afirmam, como nós, que a Revolução Mexicana constitui o mais
belo movimento expropriador conhecido até aqui. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de
Janeiro, ano I, n. 21, 24 abr. 1912, p. 1.
0 JUREMA, Paulo. A revolução mexicana. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro,
ano II, n. 25, 28 ago. 1912, p. 2.
1 Causas e origens da Revolução Mexicana – O instinto da raça. A Guerra Social – Periódico
Anarquista, Rio de Janeiro, ano II, n. 28, 21 set. 1912, p. 2.
2 Uma “enquête” da “Guerra” – O Momento Operário – O que se tem feito, o que se faz e o que há a
fazer. A Guerra Social – Periódico Anarquista, Rio de Janeiro, ano I, n. 22, 1 maio 1912, p. 2.
3 18 de Março – A comemoração da Comuna. A Plebe, São Paulo, ano IV, n. 57, 20 mar. 1920, p. 2.
4 MORTIÇO, Helto. Comentários: O 13 de Maio e a Ação Direta. A Rebelião – Semanário de
propaganda socialista-anarquista – Escrito por trabalhadores e para trabalhadores, São Paulo, ano I,
n. 3, 17 maio 1914, p. 1.
5 Grupo Comunista Brasileiro ‘Zumbi’ (1919) apud CARONE, 1984, p. 333-334; Grupo Comunista
Brasileiro ‘Zumbi’. Spártacus. Rio de Janeiro, ano I, n. 23, 3 jan. 1920, p. 3.
6 Este Partido de 1919, de caráter anarquista, não deve ser confundido com o PCB marxista fundado
em 1922. Em meio ao entusiasmo gerado pela Revolução Russa, sua criação foi uma tentativa de
melhor articulação da ação e da propaganda revolucionária de grupos anarquistas do país, sem
dedicar-se à estratégia eleitoral, repelida pelos militantes.
7 Voz do Povo – Órgão da Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro e do Proletariado em geral.
Rio de Janeiro, edição especial, 13 maio 1921.
8 De acordo com RODRIGUES, 1999, a ativa militante Isabel Cerruti utilizava os pseudônimos de
Isabel Silva, Ruti e Isa em seus escritos políticos. Ainda que o autor não tenha certeza, indica que é
provável que ela tenha nascido na Itália, ou, se não, seja filha de italianos. Dada essa informação,
continuaremos a nos referir à autora como Isabel Silva, nome com que ela assina os textos aqui
citados.
9 SILVA, Isabel. Treze de Maio – A Abolição. A Obra – Semanário de Cultura Popular, São Paulo, ano
I, n. 2, 13 maio 1920, p. [4].
0 A propósito da participação de Rui Barbosa no movimento abolicionista, lê-se, ao final do texto, uma
breve nota da redação com a seguinte ressalva: “É de estranhar que o Dr. Rui Barbosa, grande vulto
da campanha abolicionista, seja, hoje, um dos principais defensores da escravatura vigente.”. Ibidem,
idem.
1 Idem, ibidem.
2 João Crispim militava na Federação Operária Local de Santos (FOLS), associação que esteve à frente
de diversas iniciativas do movimento operário dessa cidade portuária. Em junho de 1913, a
associação declarou-se abertamente anarquista, atitude que, neste mesmo ano no II Congresso
Operário Brasileiro, recebeu críticas de outros militantes anarquistas que defendiam a neutralidade
política e religiosa nos sindicatos. Sobre isso há um interessante debate entre Crispim e Neno Vasco
no jornal da C.O.B., A Voz do Trabalhador, que precedeu o evento.
3 CRISPIM, João. 13 de Maio. A Rebelião – Semanário de propaganda socialista-anarquista – Escrito
por trabalhadores e para trabalhadores, São Paulo, ano I, n. 2, 9 maio 1914, p. 1.
4 Idem, ibidem.
5 Idem, ibidem.
6 Idem, ibidem.
7 13 de Maio. A Plebe, São Paulo, ano V, n. 117, 14 maio 1921, p. 1-2.
8 Idem, ibidem.
9 CRISPIM, João. 13 de Maio..., op. cit.
Os autores
Érika Bastos Arantes é mestra em História pela Unicamp e doutoranda no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense.
Gabriel Aladrén é mestre e doutorando em História na UFF e atualmente
atua como professor substituto de História da América no Departamento de
História da UFRJ.
Marcela Goldmacher é doutora em História pela UFF. Sua tese de
doutorado abordou a greve geral de 1903 na cidade do Rio de Janeiro.
Marcelo Badaró Mattos é professor titular de História do Brasil da UFF.
Paulo Cruz Terra é doutorando em História na UFF e prepara uma tese
sobre os trabalhadores em transporte na cidade do Rio de Janeiro no início
do século XX.
Rafael Maul de Carvalho Costa é mestre e doutorando em História na
UFF.
Tiago Bernardon de Oliveira é mestre em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, doutor em História na UFF e professor da
Universidade Estadual da Paraíba.

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