Você está na página 1de 148

Nora Krawczyk

Dirce Zan
(orgs.)

A Reforma do Ensino Médio em São Paulo


A continuidade do
projeto neoliberal

Autores
Ana Beatriz Gasquez Porelli • Anniele Freitas • Cristiane Letícia Nadaletti
Danielle de Sousa Santos • Fernanda Dias da Silva • Josilaine Catia Gonçalves
Juliana Novais • Rodolfo Soares Moimaz • Rogério de Souza Silva
Sérgio Feldemann de Quadros • Sílvia Beltrane Cintra • Sílvia Forato
Tatiana de Oliveira • Tayná Lúcio
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.

Realização:
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© Nora Krawczyk, Dirce Zan e autores
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização da editora.
As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores
e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

R257
A reforma do ensino médio em São Paulo [recurso eletrônico] : a continuidade do
projeto neoliberal / organização Nora Krawczyk , Dirce Zan ; autores Ana Beatriz
Gasquez Porelli... [et al.] . - 1. ed. - Belo Horizonte [MG] : Fino Traço, 2022.
recurso digital
195 p. - ebook
Modo de acesso: world wide web
Apêndice
ISBN 978-85-8054-491-6 (recurso eletrônico)
1. Ensino médio - São Paulo (SP). 2. Reforma do ensino - São Paulo (SP). 3. Educação
e Estado - São Paulo (SP). 4. Livros eletrônicos. I. Krawczyk, Nora. II. Zan, Dirce. III.
Porelli, Ana Beatriz Gasquez.
22-76332 CDD: 373. 98161 CDU: 373.5(815.6)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

Conselho Editorial Coleção EDVCERE


Alfredo Macedo Gomes | UFPE
Álvaro Luiz Moreira Hypolito | UFPEL
Dagmar Elizabeth Estermann Meyer | UFRS
Dalila Andrade Oliveira | UFMG
Diana Gonçalves Vidal | USP
Elizeu Clementino de Souza | UNEB
Luiz Fernandes Dourado | UFG
Wivian Weller | UNB

Fino Traço Editora ltda.


finotracoeditora.com.br
Sumário

Préfacio................................................................................................ 6
Gaudêncio Frigotto

Apresentação........................................................................................ 7
Nora Krawczyk e Dirce Zan

Quando tudo começa ... ou (re)começa: pegadas a caminho da reforma


do Ensino Médio.................................................................................. 11
Josilaine Catia Gonçalves
Nora Krawczyk
Sérgio Feldemann de Quadros
Sílvia Forato

Primeiros passos da Reforma do Ensino Médio em São Paulo: o caso da


rede regular de ensino........................................................................ 46
Anniele Ferreira de Freitas
Dirce Zan
Fernanda Dias da Silva
Rodolfo Soares Moimaz

Centro Paula Souza e a implementação da reforma do Ensino Médio no


Estado de São Paulo........................................................................... 78
Ana Beatriz Gasquez Porelli
Sílvia Beltrane Cintra

Instituto Federal de São Paulo e a reforma neoliberal na educação


profissional: entre contradições e disputas......................................... 105
Cristiane Letícia Nadaletti
Danielle de Sousa Santos
Rogério de Souza Silva
Tatiana de Oliveira

Consenso por filantropia como estratégia de poder neoliberal:


entrevista com Rebecca Tarlau.......................................................... 134
Ana Beatriz Gasquez Porelli
Cristiane Letícia Nadaletti
Juliana Novais
Rodolfo Soares Moimaz
Tatiana de Oliveira
Tayná Lúcio
Préfacio

O livro organizado por Nora Krawczyk e Dirce Zan é parte de um esforço


mais amplo em âmbito nacional da análise da implantação da Reforma do
Ensino Médio no Brasil consolidada pela Lei nº 13415/2017. Lei esta que
nos primeiros meses do golpe de Estado de 2016 inaugurou o conjunto de
contrarreformas que retomam, com maior virulência, o ataque à esfera pública
sob ideário neoliberal da década de 1990. No conjunto do esforço coletivo
para analisar o processo de sua aplicação em âmbito nacional esta publicação
tem um sentido singular por duas razões básicas. Primeiro, por se tratar do
maior Estado da Federação. Segundo, porque o núcleo de formuladores desta
contrarreforma foi o mesmo que orientou as políticas neoliberais na educação
ao longo dos oito anos da gestão do ex Ministro da Educação Paulo Renato de
Souza. Não por acaso a assessora e executora principal daquela gestão, Maria
Helena Guimarães de Castro, tornou-se a Secretaria Executiva do MEC após o
golpe de Estado de 2016. A velocidade das primeiras medidas da contarreforma
se explica, então, porque seu conteúdo básico já estava pronto. Agora, no
contexto de um Estado de exceção, podia ser mais radical e regressivo. E
o foi, pois liquida com o sentido do ensino médio como educação básica e
consubstancia uma traição aos jovens e ao país. Um livro que é um convite
para entender na prática esta traição e para resistir ativamente.

Prof. Gaudêncio Frigotto - Professor Associado da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor titular (aposentado) em Economia
Política da Educação, da Universidade Federal Fluminense e (UFF)
Apresentação

Nora Krawczyk e Dirce Zan

Este livro tem a intenção de socializar os primeiros resultados da pesquisa,


intitulada A Reforma do Ensino Médio em São Paulo, realizada como parte
da pesquisa da Rede Nacional EMpesquisa, coordenada pela professora
Mônica Ribeiro (UFPR), que tem como objetivo acompanhar o processo de
implementação da reforma do Ensino Médio nos diferentes estados do Brasil.
Em São Paulo, a partir de um grupo, constituído por pesquisadores,
professores da educação básica e estudantes de graduação e pós-graduação,
vinculado ao PPGE/Unicamp, se formou o EMpesquisa/SP, coordenado pelas
professoras Nora Krawczyk e Dirce Zan e articulado ao grupo interinstitucional
de mesmo nome, cadastrado no diretório do CNPq, e à Linha de Pesquisa
Ciências Sociais e Educação da FE/Unicamp. 
Começamos nossa pesquisa, quando se esboçava a reforma no estado
de São Paulo, em 2019. O processo de reforma do Ensino Médio no Brasil,
que se iniciou com a Medida Provisória do governo Temer e se consolidou
com a Lei 13415/2017 1, tem produzido diferentes ações do poder público e das
instituições escolares para adequar seus sistemas às novas orientações. Há
tendências comuns entre os estados e outras que demarcam as especificidades
locais, mas, no geral, as ações são baseadas numa racionalidade econômica
e marcadas por um avanço do pensamento conservador e dos interesses do
capital na sua atual fase.
1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm

7
As ações governamentais nos níveis federal e estadual, ao mesmo tempo
em que inauguram novas tensões e disputas por diferentes projetos para a
educação, se mostram alinhadas às orientações neoliberais que têm impactado
a política educacional brasileira desde o final do século XX.
A diferença em relação às reformas anteriores parece estar no fato de que,
desta vez, as escolas sofrerão uma significativa alteração na sua vida escolar,
o que também ecoará na experiência estudantil e na organização do trabalho
docente. Por outro lado, do mesmo modo, as mudanças até agora identificadas
no marco da flexibilização e da desregulamentação, possibilitado pela Lei,
viabilizam refletir sobre a possibilidade de construir uma rede fortemente
diversificada, com a criação de uma realidade virtual para a gestão, através
de plataformas digitais, e com uma significativa padronização pedagógica,
orientada por instituições e fundações privadas, o que poderá resultar no
aprofundamento das desigualdades educacionais e sociais.
Nosso objetivo nesses primeiros anos foi compreender como vem ocorrendo
a reforma no caso de São Paulo, nas suas diferentes redes públicas: rede regular,
Instituto Técnico Federal e rede do Centro Paula Souza, uma autarquia do
governo com tradição na formação técnica e profissional em níveis médio e
superior. Quais princípios têm fundamentado a reforma do Ensino Médio?
Que sujeitos sociais participam da elaboração e da implementação da reforma e
como se está reestruturando a dinâmica estatal? Como professores e estudantes
estão avaliando os movimentos iniciais? Que impactos são possíveis de serem
já percebidos na organização do trabalho pedagógico? Que alterações se estão
produzindo na formação dos jovens e que esperar das reformas curriculares
em curso?
São Paulo foi o primeiro estado a iniciar a reforma de Ensino Médio
com experiências-piloto na rede e também no Centro Paulo Souza. Em 2021,
a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEDUC/SP) começou a
implementar o chamado Novo Ensino Médio em toda a rede paulista com um
currículo simplificado e opções formativas, uma reorganização do trabalho
docente e do tempo escolar, os Programas Novotec e Inova Educação e a
ampliação das escolas de tempo integral.
O Centro Paula Souza, que já tinha iniciado o processo de reforma nas
suas instituições, criando um conjunto de opções curriculares, adequadas

8
à Lei 13415/2017 tem desempenhado um papel fundamental na reforma do
Ensino Médio técnico-profissional na rede estadual, junto à Secretaria de
Desenvolvimento Econômico do estado.
O Instituto Federal (IF) de São Paulo como toda a rede nacional de IF vem
sofrendo enormes pressões, por parte do governo federal, para mudar a matriz
formativa de seus cursos e para tornar-se parceiro do governo de São Paulo
na oferta de cursos de qualificação profissional, através do Novotec Expresso.
O livro A Reforma do Ensino Médio em São Paulo: a continuidade do
projeto neoliberal compõe-se de quatro artigos e uma entrevista.
No primeiro artigo, intitulado “Quando tudo começa ... ou (re)começa:
pegadas a caminho da reforma do Ensino Médio”, se analisa como a reforma
do Ensino Médio foi sendo gestada ao longo de várias décadas. Evidenciam-
se as continuidades, os momentos de suspensão de projetos hegemônicos
e rupturas que figuram na reforma de Ensino Médio atual, bem como os
diversificados espaços não explícitos e tempos de elaboração das políticas.
O segundo artigo, intitulado “Primeiros Passos da Reforma do Ensino
Médio em São Paulo: o caso da rede regular de ensino”, apresenta aspectos
das ações iniciais do governo para implementar a recente reforma. A partir de
levantamento bibliográfico, pesquisa documental e registros obtidos, através
da participação de alguns dos autores em várias das ações de formação do
estado, foi possível observar a intensificação do processo desde o ano de 2020,
que culminou na homologação do currículo do estado. O artigo tem como
objetivo apresentar a consonância de ações, que já estavam em curso na rede
de ensino paulista, com as novas orientações federais para o Ensino Médio.
O terceiro artigo, intitulado “Centro Paula Souza e a implementação
da Reforma do Ensino Médio no Estado de São Paulo”, comenta as ações
iniciais tanto para implementar a reforma do Ensino Médio (2017 - 2021) no
estado de São Paulo, desenvolvidas pelo Centro Paula Souza (CPS), no interior
de sua própria rede de Escolas Estaduais Técnicas (Etec), como para ofertar
o V Itinerário Formativo na rede estadual de ensino regular.
No quarto artigo, intitulado “Instituto Federal de São Paulo e a reforma
neoliberal na educação profissional: entre contradições e disputas”, busca-
se compreender as mudanças ocorridas no âmbito da política educacional
do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) nos últimos anos e a relação

9
dessas transformações com os princípios fundadores da reforma do Ensino
Médio, aprovada em 2017. Para efeito deste estudo, foram investigadas ações
governamentais após 2017 e algumas recentes medidas institucionais que
apontam para a alteração da concepção-referência de educação profissional
aplicada no IFSP.
Por fim, apresentamos a entrevista Consenso por filantropia como
estratégia de poder neoliberal, realizada por integrantes do EMpesquisa/
SP com a pesquisadora Rebecca Tarlau (Stanford/EUA), em dezembro de 2021.
Rebecca publicou no Brasil o artigo “O consenso por filantropia: como uma
fundação privada estabeleceu a BNCC no Brasil”, resultado de uma pesquisa
realizada junto com a pesquisadora Kathryn Moeller, o qual, lido e debatido
no grupo, motivou a realização da entrevista que compõe este livro. Nessa
entrevista, buscamos identificar ações recentes das fundações e das empresas
educacionais nas políticas brasileiras, bem como as relações possíveis entre
essas políticas e o movimento conservador que tem orientado também as
ações atuais dos reformadores norte-americanos.

Boa leitura!!

10
Quando tudo começa ... ou (re)começa: pegadas a
caminho da reforma do Ensino Médio

“A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”.


Darcy Ribeiro.

Josilaine Catia Gonçalves2


Nora Krawczyk3
Sérgio Feldemann de Quadros4
Sílvia Forato5

Introdução
O golpichment jurídico-parlamentar-midiático de 2016 contra a presidente
Dilma Roussef representou o início de um processo político com um recuo
democrático e com a regressão dos direitos sociais no Brasil, promovendo,
assim, desdobramentos infelizes à educação do País. Entre eles, conforme
noticiado pelos meios de comunicação6, a Medida Provisória (MP) n.º 746, de
2016, assinada pelo Presidente Michel Temer para a reforma do Ensino Médio.

2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE-Unicamp. josyllayne@gmail.com


3 Professora Livre-docente no Departamento de Ciências sociais e Educação – DECISE - e
pesquisadora no Grupo de Pesquisas em Políticas, Educação e Sociedade – GPPES, FE-Unicamp.
BP-CNPq. norak@unicamp.br
4 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE-Unicamp. sergiofquadros@
gmail.com
5 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE-Unicamp e Professora de Sociologia
na Rede de Ensino Médio Pública Estadual. silviaforato@prof.educacao.sp.gov.br
6 A proposta de reforma foi amplamente divulgada pelo governo federal, tanto pela televisão
quanto pelo rádio, com o discurso de liberdade de escolha dos jovens. Chama a atenção o fato de
uma proposta de reforma, que não depende de adesão individual, como programas educacionais, ter
tanta divulgação. A propaganda pode ser vista no link: < https://www.youtube.com/watch?v=C-M_
ewoa0iY> Acesso em: 11 out. 2021.

11
O texto da MP não causou surpresa, como veremos mais adiante, já
que retoma o Projeto de Lei n.º 6840, de 2013 (FERRETTI; SILVA, 2017;
KRAWCZYK, 2016), no entanto, apresenta investidura mais agressiva na
direção de um projeto neoliberal, tanto pela sua forte indução à privatização
(QUADROS; KRAWCZYK, 2021a) quanto pela característica da subjetividade
implícita aos dispositivos que dela emanam (QUADROS; KRAWCZYK, 2021b).
Diante da forte oposição de movimentos sociais, de entidades profissionais
e de grupos de pesquisa, houve a formação do Movimento em Defesa do
Ensino Médio com o intuito de intervir para impedir a aprovação do Projeto
de Lei n.º 6840, de 2013, empreendendo, neste sentido, uma série de ações no
Congresso Nacional e no Ministério da Educação. Este projeto, no entanto,
não foi desprezado pelos setores sociais que o promoveram, ressurgindo com
mais força, ainda, no primeiro ano após o golpichment.
O discurso alarmista sobre a situação do Ensino Médio justificou a urgência
de um projeto de reformulação por meio de uma Medida Provisória, assinada
pelo então presidente Michel Temer, dando início à tramitação da reforma,
por meio da Lei n.º 13415, em 2017.
Ao transformar a MP da Reforma do Ensino Médio em Lei, o Executivo e
o Legislativo tomaram decisões relativas a propostas que tinham forte oposição
de vários movimentos sociais e haviam sido objeto de discussão no Congresso,
sem obter consensos (MOTTA; FRIGOTTO, 2017).
O propósito e o alcance da reforma de Ensino Médio em curso no Brasil
só podem ser compreendidos no marco mais amplo de reformas políticas,
laborais e de seguridade social, iniciadas em 2016.
A nova lei, que vai dar origem à reforma de Ensino Médio e que recebeu
o nome fantasia de Novo Ensino Médio, tem como palavra de ordem a
flexibilização, pela qual desregulamenta a estrutura e a organização desta
etapa de educação: o tempo escolar, a organização e o conteúdo curricular,
o oferecimento do serviço educativo (parcerias), a profissão docente e
a responsabilidade da União e dos Estados, entre outros (KRAWCZYK;
FERRETTI, 2017).
Entretanto, constam na lei pontos em aberto, a serem definidos em sua
aplicação pelos Estados, os quais ficam responsáveis por criar seus “modelos”
de Ensino Médio, sua regulamentação e a promoção de condições para
implementá-lo.

12
Diferentemente do que se propunha em reformas anteriores, na atual,
as escolas sofrerão uma expressiva alteração na vida acadêmica e, talvez,
também na experiência estudantil, além de um forte impacto na formação
da subjetividade. Igualmente, as mudanças até agora identificadas no marco
da flexibilização e da desregulamentação possibilitadas pela lei permitem
pensar na viabilidade de construir uma rede fortemente diversificada, com a
criação de uma realidade virtual para a gestão, através de plataformas digitais,
e com uma significativa padronização pedagógica, orientada por instituições
privadas (FERRETTI, 2018; HERNANDEZ, 2019; KRAWCZYK; FERRETTI,
2017; MOLL, 2017; SILVA; SCHEIBE, 2017).
Não são poucos os autores que vêm mostrando os interesses que subjazem
à reforma e o risco à precarização do trabalho docente, o aprofundamento
da desigualdade educacional e a desagregação do Ensino Médio brasileiro.
A lei da reforma se insere em um novo conjunto de valores subjacentes às
políticas educacionais que, como descreve Van Zanten (2021), se caracteriza por
uma prevalência de ideias advindas do mercado, como a Nova Gestão Pública,
a Eficiência e a Gestão Empresarial, observadas em âmbito internacional e
implantadas por meio da pressão de consultores e especialistas de organismos
multilaterais, supranacionais e locais.
Mas, onde tudo começa... ou (re)começa? Que continuidades e rupturas
figuram nessa reforma? É o que tentamos responder neste artigo.
Observar o passado, sem deixar de ver o presente, nos permite uma
compreensão diferente de ambos, ou seja, um discernimento entre rupturas
e momentos de suspensão de projetos hegemônicos, bem como descobrir
diversificados espaços não explícitos e tempos de elaboração das políticas.

A democratização. Uma esperança frustrada


A partir dos anos 1980, começou no Brasil um processo que parecia
evidenciar a reinvenção da educação básica pública brasileira. Alguns de seus
pressupostos correspondiam à intenção de regular espaços para promover
debates, a partir da concepção contrahegemônica de educação. Assim,
organizações de vários movimentos, como as Conferências Nacionais de
Educação, os Programas de Pós-graduação e outras organizações de educadores,
conduziram pesquisas educacionais na perspectiva crítica.

13
Pela primeira vez, se incluía a educação, em todos os seus níveis, em uma
Constituição, a Constituição Federal de 1988, definindo-se a vinculação de
recursos públicos, a valorização dos profissionais da educação, a progressiva
universalização do Ensino Médio gratuito e o estabelecimento de Plano Nacional
de Educação (PNE), com duração plurianual. Assegurava-se, pela primeira vez,
a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o
saber, mas, ao mesmo tempo, se preservava um espaço para a educação religiosa
na escola pública. O entusiasmo pelas conquistas dos setores progressistas era
tal, que a Constituição de 1988 ficou conhecida como a Constituição Cidadã
(BRASIL, 1988).
De fato, à medida que, no Brasil, nesse período, se criavam mecanismos
político-democráticos de regulação da dinâmica capitalista, em âmbito
mundial esses mecanismos “[...] perdiam vigência e tendiam a ser substituídos
pela ideologia neoliberal, pela desregulamentação, pela flexibilização e pela
privatização elementos inerentes à mundialização (globalização) operada, sob
o comando do grande capital” (PAULO NETTO, 1999, p. 77).
Desde então, o texto constitucional tem sofrido várias emendas, permitindo
efetivar reformas políticas nos períodos posteriores, constituindo-se algumas
delas importantes antecedentes de mudanças no papel regulador do Estado e
de sua relação com o setor privado na educação e das condições de trabalho
docente, entre outras. Por outro lado, o texto constitucional já apresentava,
na sua versão original, brechas e ambiguidades que, durante os longos oito
anos de elaboração da LDB, possibilitaram que se retomassem as disputas
entre os setores liberais e conservadores, além de intensos embates políticos
e ideológicos, culminando com sua aprovação em 1996, “[...] porque mais
do que uma lei estava em questão a edificação de um projeto de sociedade,
considerando que, no Brasil, vivenciava-se um período pós-ditatorial, e a
sociedade civil se mobilizava para a redemocratização do País” (BOLLMAN;
AGUIAR, 2016, p. 409).

Os ventos se voltam para um cenário neoliberal


Diverso foi o clima político no Brasil durante a Constituinte na década de
1980 e durante a elaboração da LDB. No entanto, o processo de elaboração da
Constituição tinha criado esperanças que resultaram frustradas pela ofensiva

14
neoconservadora que logrou se tornar politicamente hegemônica a partir de
1990.
Não foi por acaso que o governo de Fernando Henrique Cardoso
definiu a LDB como a Lei do possível, que fortaleceu a tendência de atrelar o
desenvolvimento da educação básica aos recursos financeiros disponíveis nos
esquemas orçamentários convencionais e, assim, ser flexível o suficiente para
se adequar às diferentes situações da educação nacional e aos interesses de
diversas frações burguesas. Vale lembrar que, simultaneamente à construção do
texto, se iniciou a reforma do Estado, sob a direção do ministro Bresser Pereira,
projeto que promoveu as reformas das estruturas educacionais, entre outras.
De fato, o Ensino Médio não tem um lugar particularmente relevante na
LDB, pelo contrário, são poucos os itens que tratam dele e, na maioria dos
casos, junto com o Ensino Fundamental. No entanto, o conceito de educação
básica, definido pela LDB, expressa a necessidade de universalizar o Ensino
Médio, tendo sido parte dos compromissos que o País havia assumido na
Conferência de Jomtiem, em 1990, quando se aprovou a Declaração Mundial de
Educação para todos7. Ao mesmo tempo, o aumento do fluxo escolar no Ensino
Fundamental começou a pressionar a expansão do Ensino Médio. Aliado a
isto, o cenário internacional também exerceu uma forte pressão, promovendo
importantes debates acerca da situação do Ensino Médio brasileiro, alguns
deles em tom bastante alarmista. “Tal discurso, com avaliações extremamente
negativas da qualidade de ensino nas escolas, demonizando a educação pública,
e previsões pessimistas para o futuro do país exigia reformas rápidas e maior
controle do governo nacional” (KRAWCZYK, 2020, p. 8).
O art. 35 da LDB/1996 (BRASIL, 1996) define que o Ensino Médio, com
duração mínima de três anos, tem como finalidades: consolidar e aprofundar
os conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, possibilitando
prosseguimento de estudos; preparação básica para o trabalho; formação
ética, desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico do
educando; compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos
7 A Conferência Mundial de Educação para Todos realizada em março de 1990 reuniu 157
países em Jomtien (Tailândia), a Unesco e a Unicef, com apoio do Banco Mundial e de várias
outras organizações intergovernamentais, regionais e organizações não governamentais (ONG). A
principal conclusão do encontro foi que o acesso universal à educação e o combate ao analfabetismo
deveriam se tornar prioridade internacional nos dez anos seguintes. Disponível em: https://www.
unicef.org/brazil/declaracao-mundial-sobre-educacao-para-todos-conferencia-de-jomtien-1990.
Acesso em: 15 ago. 2021

15
produtivos. Somam-se vários aspectos associados a esse nível de ensino, mas
sem definir claramente a sua identidade. Segundo Saviani (2011), “[...] fica
diluído o pequeno avanço representado pelo esforço em explicitar a exigência
de uma maior articulação entre os estudos teóricos e os processos práticos;
entre fundamentos científicos e as formas de produção que caracterizam o
trabalho na sociedade atual”.
A ideia, originalmente proposta, de uma organização do Ensino Médio com
base na perspectiva da politécnica “[...] foi descaracterizada se transformando no
enunciado da finalidade do ensino médio [...] a compreensão dos fundamentos
científico-tecnológicos dos processos produtivos” (SAVANI, 2011, p. 243). Ao
mesmo tempo, expressões tais como a necessidade de vincular a educação
escolar ao mundo do trabalho e à prática social, ou a integração da educação
profissional com as diferentes formas de educação, o trabalho, a ciência e a
tecnologia, o aproveitamento ou conclusão de estudos e a oferta de cursos
especiais, abertos à comunidade pelas escolas técnicas e profissionais, aparecem,
conforme diz Saviani, como uma carta de intenções, omissa em definições
importantes, tais como instâncias, competências e reponsabilidades, abrindo-
se espaço para o descompromisso do MEC com as escolas técnicas federais e
para a participação do setor privado (SAVIANI, 2011).
Esta indefinição talvez teria se dado para deixar o espaço aberto para
a lei relativa ao ensino profissional e técnico, cujo projeto, de iniciativa do
governo federal, já se encontrava tramitando no Congresso Nacional, isto é,
concomitantemente e de forma independente do que fosse projetado na LDB
(SAVIANI, 2011).
Na LDB, se enunciam também outros aspectos bastante caros ao futuro
do Ensino Médio, mas novamente com o caráter mais indicativo do que
prescritivo, que permitiu que fossem retomadas, em posteriores reformas,
políticas específicas com interpretações distintas. Trazem a marca de uma
flexibilização na forma de organização do tempo, na definição do calendário
escolar e dos critérios de promoção e organização curricular. (BRASIL, 1996,
art. 23 § 2.º).
Apresenta-se uma concepção de qualidade definida, a partir de padrões
mínimos de aprendizagem, possibilidades de diferentes formatos e adoção da
EaD, como complementação didático-pedagógica nos processos de ensino-

16
aprendizagem ou em situações emergenciais (BRASIL, 1996, art. 35 § 4.º e
art.80).
Preveem-se a ampliação para 200 dias letivos, um currículo composto
por uma base comum nacional e uma parte diversificada, que responderá “[...]
às características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e
da clientela” (Art. 26). No entanto, não está definida a finalidade dessa base,
nem a quem cabe a sua, “[...] ainda que pelo disposto no inciso IV do artigo
nono trata-se de uma competência a ser exercida pela União, ou seja, pelo
MEC” (SAVIANI, 2011, p. 240).
A ambiguidade das definições fez com que essa organização curricular e os
pontos de flexibilização configurassem um “esqueleto”, mantido com objetivos
e princípios epistemológicos bastante diferentes nas reformas curriculares
posteriores.
A Lei também se pronuncia em relação à formação dos profissionais para
o exercício no nível médio. Nela se estabelece que deva ser exclusivamente de
nível superior em curso de licenciatura plena, tema que ocupou um espaço
relevante em ambos Planos Nacionais de Educação posteriores.
Em contrapartida, a valorização profissional ficou bastante afetada no
texto da LDB. Na Constituição consta a garantia, em forma de lei, de planos
de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso
exclusivo por provas e títulos, assegurando regime jurídico único para todas
as instituições mantidas pela União. E na LDB, a valorização profissional
ficou reduzida para “valorização do profissional da educação escolar” (art.
3, inciso VII).
Nos oito anos em que ocorreram a negociação do conteúdo e a aprovação
da LDB/1996, várias conciliações e consensos foram necessários. O texto final
aprovado evidenciou uma lei minimalista, na expressão de Luiz Antonio
Cunha, resultado da dificuldade de compatibilizar as posições divergentes
num projeto comum, e aparentemente para viabilizar futuras ações do MEC.
Progressivamente, à medida que aumentou a expansão do Ensino
Médio, propiciou-se a inclusão de novos setores sociais. Com o processo de
democratização, a elaboração da LDB e a progressiva expansão do Ensino
Médio, iniciou-se uma nova etapa nos debates sobre educação no Brasil, com
questões cada vez mais acirradas sobre seus objetivos, sua identidade e sua

17
contribuição social que, muitas vezes, refletiram proposições antagônicas da
relação escola - juventude - trabalho - cidadania.
A conjuntura, na qual entrou em vigor a nova LDB, foi guiada pelo
Consenso de Washington, de 1989, e gerou reformas educativas caracterizadas
por significativas transformações da base material da sociedade e políticas,
inaugurando uma nova relação Estado-sociedade sob a égide do neoliberalismo
e de neotecnicismo (SAVIANI, 2007). As reformas do Estado e outras realizadas
na economia, nas relações de trabalho e na educação, foram reivindicadas pelos
vários organismos internacionais, pelos intelectuais que atuavam nos diversos
institutos de economia e pelo empresariado. Essas reformas refletiram uma
forte influência dos rumos tomados pela política mundial após a ascensão de
Margaret Thatcher, na Inglaterra, que governou entre 1979 e 1990, e de Ronald
Reagan, nos EUA, cujo governo se estendeu de 1981 a 1989 (KRAWCZYK,
2018; SAVIANI, 2007, p. 425).

Anos 1990 no Brasil: o Estado nunca mais será o mesmo


Interessa-nos destacar a profunda reforma do Estado, realizada pelo
governo de Fenando Henrique Cardoso (1995-2003), elaborada sob a égide de
uma forte crítica às funções dos estados nacionais e à lógica de gestão pública do
modelo de desenvolvimento keynesiano8. Igualmente, trata-se de uma reforma
com a qual se instaurou um processo importante de reconfiguração do espaço
público e da dinâmica de produção político-educacional, que se aprofundou
no tempo e que afetou radicalmente o caráter público da educação estatal.
Tomando como referência o mercado, advogou-se por um novo papel do
Estado e criou-se o arcabouço legal para a privatização, com transferência direta
e indireta de serviços, assim como a gestão das instituições públicas passou
a ser influenciada pelo setor privado, ocorrendo, desta maneira, a extensão
da lógica do mercado, exemplificada pela accountability, especialmente para
aquelas áreas que tradicionalmente eram consideradas próprias da esfera
pública e da alçada do Estado, como saúde, previdência social e a educação.
As últimas décadas do século XX foram marcadas pela crise do modelo
fordista-keynesiano, relacionada ao limite da financeirização e ao endividamento

8 Ao interior da crise do Estado de bem-estar social nos países desenvolvidos e da crise do


nacional-desenvolvimentismo nos países do Terceiro Mundo.

18
dos Estados-Nação para a absorção dos excedentes de capital e trabalho,
resultando no regime de acumulação flexível, o qual demandava um processo
de formação de trabalhadores também flexíveis para os efêmeros processos
de trabalho (HARVEY, 2012).
A reforma do aparelho de Estado e as mudanças constitucionais eram
entendidas como necessárias para “[...] permitir que a administração pública se
torne mais eficiente, menos burocratizada e oferecer ao cidadão mais serviços,
com maior qualidade” (BRASIL, 1997b, p. 7). A emenda constitucional 19/1998
pode ser considerada um marco da passagem da administração burocrática
para a administração gerencial no setor público (BRASIL, 1998).
Trata-se de relevante reformulação, propondo uma administração
pública gerencial com “estabilidade flexível” (BRASIL, 1998, art. 6.º, § 1.º)
para os servidores públicos. Reservava ao Estado as funções de coordenação,
regulamentação e avaliação, mas também implicava a incorporação da iniciativa
privada na gestão pública, que foi ainda fortemente estimulada a assumir a
provisão de políticas sociais, atuando, assim, como espaço de transferência de
responsabilidades estatais (PERONI; OLIVEIRA; FERNANDES, 2009, p. 769).
Vinokur (2008), referindo-se às tendências globais, destaca que as
políticas neoliberais não significaram a diminuição do papel do Estado, mas
seu deslocamento em dois sentidos: por um lado, terceirizando suas atribuições,
as organizações não governamentais; e, por outro, estabelecendo um aparato
fundado em uma coerção suave entre demandante e agente, no qual o primeiro
estabelece padrões quantificáveis de resultados e um sistema externo de controle,
e o executor se responsabiliza exclusivamente pelas entregas. Seria justamente
esta a base dos auxílios baseados em resultado, política espelhada exatamente
na relação de organismos multilaterais e Estados-nação na escala mais ampla.
O Banco Mundial teve um forte protagonismo nos programas de ajuste
estrutural na América Latina, através da disseminação de ‘recomendações’
e de constrangimentos econômicos para a obtenção de empréstimos para a
reforma educacional. Esses programas diziam respeito ao compromisso com a
estabilidade macroeconômica, com paulatinos cortes de despesas, privatizações,
quebra de barreiras ao capital internacional, derrubada de tarifas protecionistas,
cobrança de taxas para muitos serviços públicos até então gratuitos, redução
das proteções sociais e flexibilização do trabalho (VIANNA JR. 1998)

19
As marcas deixadas por essa reforma no espaço de gestão da político-
educacional são evidentes, podendo ser observadas, entre outras, na
terceirização de funções da burocracia estatal; no fatiamento da política
educacional num conjunto de programas, nem sempre articulados,
sustentados com diferentes financiamentos externos; e na criação do
modelo de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip),
que abriu a torneira de recursos públicos para entidades privadas e para a
modalidade Parceria Público-Privada de gestão da educação. Foi reestruturado
o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep),
autarquia vinculada ao Ministério da Educação para tais fins que passou a
ser responsável pela implementação de um Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica (Saeb), que teria por parâmetro as competências e as
habilidades definidas no currículo, como veremos a seguir.
Na época, o Ensino Médio não foi prioridade do governo, tampouco
sofreu grandes pressões externas para isso, muito embora tenham ocorrido
várias mudanças normativas num período de importante expansão.
Os organismos internacionais, através de diferentes mecanismos de
influência, estavam focados, no caso da América Latina, na universalização
do Ensino Fundamental. De fato, os índices de evasão neste nível de ensino no
Brasil eram bastante significativos, acabando por redundar em baixa matrícula
no Ensino Médio. Por outro lado, havia um debate em torno da universalização
do Ensino Médio, já prenunciando uma reorganização curricular compatível
com a inserção do País no mercado globalizado.
Em âmbito internacional, havia três tendências para o secundário: (1)
prolongamento da educação geral até o secundário inferior, feito já na LDB/71,
ao incorporar ginasial ao primeiro ciclo; (2) ampliação da escolarização
compulsória até os 18 anos de idade (GOMES, 2000), realizada apenas na
Lei n.º 12796/2013; (3) diversificação e flexibilização curricular do secundário
superior (GOMES, 2000), defendidas pelos reformistas já nessa época, mas
colocadas em prática com essa reforma de maneira conturbada apenas em 2016.
Segundo Guiomar Namo de Melo, conselheira do CNE e responsável
pela relatoria das DCNEM, comparativamente a realidades de outros países,
passou-se a compreender a necessidade de ampliar e de se universalizar o
Ensino Médio no Brasil. Existia, segundo a relatora, uma demanda para se

20
ascender a patamares mais avançados do sistema de ensino, motivada pela
urbanização e pela modernização vividas pelo País, “[...] consequentes do
crescimento econômico bem como de uma crescente valorização da educação
como estratégia de melhoria de vida e de empregabilidade” (CÂMARA DE
EDUCAÇÃO BÁSICA, 1998, p. 8, apud ZAN, 2005, p. 46).

A era das competências e do empreendedorismo


O modelo de competências se origina com as demandas do mundo do
trabalho adentrando o campo escolar, primeiramente por meio da educação
profissional (TANGUY, 1997). Com o tempo, a partir da articulação entre
organismos multilaterais e economistas neoliberais continuadores da Teoria do
Capital Humano, a educação por competência passou a ganhar legitimidade nas
pesquisas de educação que indicam sua relação com crescimento econômico
(QUADROS; KRAWCZYK, 2021b). Atualmente, a OCDE (2014, p. 10) enxerga
as competências como “uma moeda global das economias do século 21” e
recomenda que sejam pautadas nas avaliações.
O modelo de competência, posto pelo mercado de trabalho no contexto
do início do século XXI, incorporado como pedagogia que define de forma
utilitarista o conhecimento, e as novas preocupações na adaptação dos
jovens às condições sociais do mundo de trabalho expressam a busca pela
compatibilidade agora com um mercado exíguo e com a crise de emprego,
também trazendo para o léxico educacional a ideia de uma pedagogia para a
empregabilidade. Assim, as noções de competência e empreendedorismo, no
limiar do século XXI, carregam principalmente atitudes e não conhecimento.
Atitudes imprescindíveis para ter êxito na vida e nos empreendimentos (leiam-
se “negócios”) (DORNELAS, 2014 apud SILVA; CÁRIA, 2015).
A organização curricular respondeu, em linhas gerais, às diretrizes da
LDB: uma base comum e uma parte diversificada que devia ocupar 20% da
carga horária, flexibilizando o currículo às necessidades locais. Tratou-se
de um momento de fortes críticas à organização disciplinar do currículo e,
principalmente, à ênfase no ensino de conteúdos, o que justificou a organização
do currículo em três áreas9 superando, segundo seus formuladores, a organização

9 Integra também o currículo um conjunto de Temas Contemporâneos que devem atravessar todas
as áreas e, por isso foram denominados temas transversais: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias;

21
por disciplinas estanques e definindo as competências a serem adquiridas
(FERRETTI; SILVA, 2017).
Os reformadores neoliberais articulam a defesa da pedagogia das
competências com a crítica ao “enciclopedismo” e outras premissas, como
aprender a aprender, aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e
aprender a ser, apresentadas pela Comissão Internacional sobre Educação da
Unesco como eixos estruturais da educação contemporânea (DELORS, 1996;
LAVAL, 2004; ZAN, 2005). Esses discursos foram amplamente disseminados
pelo empresariado brasileiro para legitimar a reforma em questão (QUADROS;
KRAWCZYK, 2021b). Desde anos anteriores, a OCDE (2014) já vinha sugerindo
a avaliação contínua da população, medindo competências antecipadas e
determinadas pelo mercado de trabalho.
Os PCNEM apontam para um currículo, articulado pelas competências,
apresentadas, associadas a esquemas mentais e, portanto, próximas do enfoque
cognitivo-construtivista, de aspectos comportamentais, e que “[...] precisam
ser traduzidas num saber-fazer fragmentado passível de ser mensurado nos
processos de avaliação centralizada” (ZAN, 2005, p. 104).
No ano de 2012, o termo “competência não cognitivo” apareceu no
relatório anual da Fundação Ayrton Senna, defendendo a importância de
serem desenvolvidas na educação, principalmente em relação ao Ensino Médio,
questões atreladas aos fatores subjetivos atrelados a sentimentos e a necessidade
de sua avaliação (IAS, 2012, p. 4). O IAS participou do projeto internacional
de pesquisas da OCDE “Educação e Progresso Social” e, juntos, realizaram no
Brasil um estudo inédito sobre o tema, em que se avaliou o desenvolvimento
das habilidades não cognitivas em um projeto piloto em escolas estaduais e
municipais do Rio de Janeiro (IAS, 2012, p. 20).
As competências socioemocionais, também nomeadas como habilidades
socioemocionais, se difundem em conjunto com as competências cognitivas,
com uma noção de personalidade que descarta as complexas relações entre
emoção e cognição, contrariando o campo mais abrangente das ciências,
desde a neurologia até a sociologia, e reduzindo a traços possíveis de serem
analisados e medidos de forma distinta (SMOLKA et al., 2015).

Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e suas Tecnologias.

22
Pelo fato de as competências socioemocionais ocultarem as reais relações
entre capital e trabalho – por meio de consensos sobre a sociedade burguesa
neoliberal – produzem uma ‘captura’ da subjetividade, originada pelas demandas
das novas organizações gerenciais do trabalho (ALVES; MOREIRA; PUZIOL,
2009; SILVA, 2009) e exigem do estudante e do trabalhador assalariado uma
mobilização pessoal e uma implicação subjetiva que extrapola as funções
tradicionais da profissão e os obriga a buscar permanentemente performance
e resultados (LAVAL et al., 2012).
O léxico oriundo do mundo empresarial, que começa a se disseminar
na educação, não se restringe à noção de competência, mas se complementa
com as noções de empregabilidade e empreendedorismo, que passam a ser
os novos valores sociais e de formação para o mundo do trabalho a serem
cultivados na escola, que, neste estágio do capitalismo, carrega um crescente
processo de desemprego estrutural (ALVES; MOREIRA; PUZIOL, 2009;
LOPEZ-RUIZ, 2007).
Essas formulações foram uma tendência global, bastante promovida pelos
organismos internacionais Unesco, ONU, OCDE que, por meio de fóruns,
publicações e empréstimos, conseguiram impor seu modelo de formação de
crianças e jovens. Modelo sustentado no relatório que Jacques Delors elaborou
para a Unesco em 1996, em que foram definidos os pilares da educação para o
século XXI, sendo que, em 2004, a Unesco anunciou um quinto pilar, ou seja,
aprender a empreender, no Projeto Regional de Educação para a América Latina
e o Caribe Prelac10 , importante manifestação em prol do empreendedorismo
na educação e de uma educação a serviço do capital (UNESCO, 2004 apud
COAN, 2013).
É possível constatar que, a partir da década de 1990, tenha
passado a haver uma tendência muito forte à propagação do ensino do
empreendedorismo na educação básica brasileira, primeiro, se mantendo
como atividade complementar nas escolas oferecidas por fundações
privadas, até adquirir o status de componente curricular.

10 O Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe - Prelac é uma declaração
de consenso entre os ministros da Educação sobre a situação e a projeção da educação na região,
com o slogan “Educação para todos”. Foi aprovado em novembro de 2002, em Havana, Cuba
(UNESCO, 2004).

23
Educação e trabalho – o calcanhar de Aquiles do Ensino Médio
brasileiro
A educação técnica não escapou da reforma, nem poderia fazê-lo, já que
é um dos temas de maior conflito na história da educação brasileira. Em 1997,
pelo Decreto n.º 2208, passou por mudanças estruturais: foi reformulado o status
do ensino profissionalizante técnico na organização do sistema educacional,
fragmentando-se essas duas modalidades.
Reservou-se o caráter propedêutico para o Ensino Médio regular, vindo
o ensino técnico, com habilitação profissional, a ser independente11 com
uma organização própria, destinada aos alunos matriculados ou egressos.
Essa reforma foi interpretada como resultado de um movimento das forças
conservadoras da sociedade, que pretendiam restringir a formação profissional
de nível técnico ao atendimento imediato do mercado (ZIBAS, 2007). Além
disso, facilitou o oferecimento do ensino técnico nas instituições privadas
por meio de parcerias, em concordância com o PNE de 2001-2010, que logo
legitimou a gestão da formação técnica compartilhada com o setor privado12.
Complementando essa opção formativa, o PNE da época, retomando o já
assumido na LDB, também previa a possibilidade de cursos de curta duração
voltados à adaptação do trabalhador às oportunidades do mercado laboral,
associados à promoção de níveis crescentes de escolarização regular (BRASIL,
2001a) por meio da ampliação da rede de instituições de educação profissional
em parceria entre os sistemas federal, estadual, municipal e iniciativa privada
(BRASIL, 2001b; MELO; MOURA, 2017).
A educação técnica, portanto, ao ser mais vulnerável às demandas do
mercado de trabalho e dos interesses do capital, pode ser expressa, de acordo
com o bordão de origem mitológica como Calcanhar de Aquiles.

Extensão do tempo escolar


A expansão do Ensino Médio de tempo integral era uma das metas do
PNE/2001 que se limitou a definir um mínimo de sete horas diárias, segundo

11 Podia ser oferecido de duas maneiras: concomitante ao Ensino Médio – mas com matrículas
separadas – ou subsequente ao Ensino Médio.
12 Parceria com o setor privado para elaboração de um sistema integrado de informações; na
definição e na revisão permanente dos cursos de educação profissional, entre outros.

24
as condições específicas das unidades escolares, flexibilizando, assim, a
possibilidades de jornadas escolares.
De fato, criaram-se diferentes formatos de jornadas13, mas a escola de tempo
integral começou a ter um impulso importante a partir da criação do Programa
de Desenvolvimentos dos Centros de Ensino Experimental (Procento) em
2002. Esse programa envolvia a gestão tanto das secretarias da educação quanto
das escolas, no início, e os Centros Experimentais, posteriormente chamados
“Escolas da Escolha”. Iniciava-se nas escolas de Pernambuco, difundida como
experiência de escola charter, o modelo exitoso pela forte participação do setor
privado na gestão na secretaria de educação e nas escolas (DIAS; GUEDES,
2010). A partir desse momento, e através de consultorias do ICE, espalhava-se
pelo País, com diferentes nomes, o modelo Pernambuco de educação integral.
O ICE se apresentava como um instituto empresarial, com vasta experiência
em gestão empresarial, tendo como referência a administração desenvolvida
pelo grupo Odebrecht14 e o Programa de organização de gerenciamento escolar
diferenciado, chamado de Tecnologia Empresarial Aplicada à Educação. O
fator diferencial das Escolas da Escolha refere-se à gestão para resultados, o
mesmo modelo amplamente defendido pelo empresariado e inserido no ideário
da pedagogia neoliberal, como exemplo do Programa Jovem de Futuro, do
Instituto Unibanco (QUADROS, 2020).
Além disso, com regras claras de funcionamento e supervisão, contava
com professores capacitados e periodicamente avaliados, com possibilidades
de remoção e remunerados por desempenho e uma infraestrutura escolar
completa, entre outros diferenciais. Além desses instrumentos, são focos
principais do Planejamento Operacional do Procentro a elaboração do Projeto
de Vida e o respectivo plano de carreira de cada aluno e as competências
socioemocionais (KRAWCZYK, 2014: MAGALHAES, 2008).
Em 2016, iniciava-se a política de fomento à implantação de Escolas de
Ensino Médio em Tempo Integral, promovida pelo MEC, que, em 2017, se
completaria com a implantação simultânea de Escola da Escolha nos estados do
Acre, Amapá, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte,
13 Assim, a partir dos anos 2000, pode se observar a presença de escolas de Ensino Médio de
tempo integral, com jornada de sete ou oito horas diárias; escolas de Ensino Médio semi-integral,
com dois dias de jornada de sete horas e escolas de Ensino Médio integral, com jornada de nove
horas e trinta minutos de horas diárias (das 7h30 às 17h).
14 Tecnologia Empresarial Socioeducacional - TEO - para recursos humanos.

25
Rondônia, Tocantins e Sergipe, além de dar continuidade ao desenvolvimento
dos programas de Escola Integral de Ensino Médio em outros estados, como
no caso de São Paulo (PEI) (BRASIL, 2004).

Projetos emancipatórios e neoliberais: a busca pela convivência de


parentes distantes
Vários programas financiados pelo BM durante a década de 1990 foram
desativados pelo PT no governo federal. Todavia, as fundações empresariais
– sobretudo Todos Pela Educação, Instituto Unibanco, Instituto Ayrton
Senna e Fundação Lemann – procuraram manter vivas essas perspectivas,
principalmente aquelas com foco em testes e responsabilização. A Fundação
Lemann chegou a chamar como assessor o ex-ministro de educação Paulo
Renato Souza. O projeto mais importante da fundação era o Programa Gestão
para o Sucesso Escolar, que treinou 586 diretores de escolas, beneficiando 366
mil alunos em 207 municípios de três estados (São Paulo, Ceará e Tocantins).
Com um poder econômico crescente e uma agenda para transformar
a educação pública brasileira, a Fundação Lemann começou a buscar uma
nova iniciativa de política pública “baseada em evidências”, que poderia ter
um impacto nacional e de longo alcance. A Base Nacional Comum Curricular
logo se tornou o mais importante projeto filantrópico da Fundação Lemann.
O projeto era elaborar um documento que fosse mais prático do que aquele
apresentado pela SEB/MEC e que especificasse o conteúdo que os educadores
deveriam ensinar (TARLAU; MOELLER, 2020).
Esse projeto foi desenvolvido durante vários anos pela Fundação nos
corredores do executivo e legislativo, com produção de conhecimento baseado
em evidências, tendo como referência o Commom core dos EUA, e com o
apoio do poder da mídia.
Os governos que se seguiram a partir de 2003 caracterizaram uma relação
de convivência contraditória de projetos de vertentes distintas. Diferentes
interesses foram se articulando de forma tensa e, às vezes, contraditória,
envolvendo múltiplas mediações.
No clima de um forte questionamento às reformas realizadas durante a
gestão de FHC, retomava-se o debate em torno do Ensino Médio técnico, iniciado
na década de 1980, em consonância com o processo de redemocratização e que

26
teve um espaço importante nos embates durante a elaboração da LDB/1996,
deixando em aberto a efetivação da reforma de separação do Ensino Médio
propedêutico e profissional, realizada logo depois.
A estagnação do processo de expansão do Ensino Médio, após 2004, e os
altos indicadores de evasão e baixo rendimento eram, sem dúvida, também
uma preocupação importante.
Aproveitando as brechas deixadas pela LDB e o tratamento vago da relação
da educação profissional com o processo produtivo e com o desenvolvimento
científico-tecnológico, surgia a proposta de superar a dicotomia entre instrução
profissional e instrução geral pela modalidade do Ensino Médio Integrado à
Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Desta forma, estaria se rompendo
com a histórica dualidade entre formação propedêutica e profissionalizante,
que parecia ter-se aprofundado nos anos anteriores.
Sem dúvida, a proposta de um Ensino Médio Integrado foi o carro chefe da
política educacional profissional do governo federal na época, que contou com
os dispositivos legais necessários para sua implementação, muito fortalecida pela
política de expansão da Rede Federal de Educação profissional/técnica, ainda
que tenha se mantido a possibilidade de formação profissional subsequente,
resultado de demandas do empresariado nos anos 1990 (ZIBAS, 2007).
Se, por um lado, houve a ampliação da educação profissional e técnica
com a criação da rede de institutos federais; por outro, o empresariado teve
bastante espaço na formação dos jovens de Ensino Médio, com destaque para
a integração do Projeto Jovem de Futuro, do Instituto Unibanco, em 2010,
recebendo financiamento do Estado por meio do PDDE e das secretarias de
educação, ao integrar o Programa Ensino Médio Inovador.
O Ensino Médio regular também sofria mudanças que espelhavam
a preocupação pela formação humana integral e um projeto educativo
emancipatório pela integração entre educação e as dimensões do trabalho, da
ciência, da tecnologia e da cultura como base da proposta e do desenvolvimento
curricular centrado no conhecimento (BRASIL, 2012; SIMÕES; SILVA, 2013).
Essa proposta representava um forte enfrentamento às diretrizes atreladas às
demandas do mercado, que as escolas tinham recebido na gestão governamental
anterior.

27
A formação humana integral, fundamento da reformulação do Ensino
Médio entre 2009-2011, considerava os educandos nas suas múltiplas dimensões,
defendendo-se a autonomia intelectual e moral dos sujeitos, como elemento
basilar na configuração de sentido. Uma formação que ultrapassasse o acesso
a conhecimentos científicos e possibilitasse uma reflexão crítica, baseada na
relação entre teoria e prática, que permitiria o conhecimento de uma dada
realidade e nela intervir (SILVA, COLONTONIO, 2014). O consenso na época
dessa nova proposta de formação se expressou no PNE 2014 e suas metas.
A organização curricular por áreas de conhecimento foi mantida, mas com
uma forte diferença conceitual e foi retirada a expressão “e suas tecnologias”
de cada uma das áreas. Passou a ter uma forte preocupação pela recuperação
dos saberes disciplinares como pilares dessa organização, que deveriam estar
articulados com as dimensões ciência, trabalho, linguagens, tecnologia, cultura
e esporte.
Incluíram-se, entre os componentes obrigatórios aos já definidos pela
LDB, a Língua espanhola de oferta obrigatória pelas unidades escolares,
embora facultativa para o estudante (BRASIL, 2005), e um conjunto de temas
transversais15. Além do estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena,
estabelecidos pela de Lei n.º 11645 de 2008 e presente na LDB no Artigo 26-A.
Na época, paralelamente, o Instituto Ayrton Senna, seguindo a tendência
de formação por competências, iniciada na década de 1990, estava trabalhando
na divulgação do ensino e da avaliação de competências socioemocionais
como pivô da educação para o século XXI na educação básica16.

Retomada de responsabilidades e atribuições pelo Estado


Durante a primeira gestão de governo do PT, procurou-se também reverter
algumas das reformas realizadas no aparelho estatal e na administração pública,
tendo como referência o modelo de estados de bem-estar social. Buscou-se
recuperar a estrutura burocrática do Estado, abrindo novamente concursos
públicos para as diferentes instâncias do executivo.
15 Educação Alimentar e Nutricional, Educação Ambiental, Educação para o Trânsito e Educação
em Direitos Humanos.
16 Disponível em: https://institutoayrtonsenna.org.br/content/dam/institutoayrtonsenna/radar/
estante-educador/compet%c3%8ancias-socioemocionais_material-de-discuss%c3%83o_ias_v2.pdf.
Acesso em: 5 set. 2020

28
No caso da educação, o MEC chamou para si a responsabilidade de
atuar de forma mais incisiva na indução de mudanças na educação básica17,
ampliando seu espectro de atuação para além da avaliação e apresentando
um arranjo institucional, resultado de uma revisão das responsabilidades da
União, de uma visão sistêmica da política educacional em oposição à visão
fragmentária que havia vigorado durante o governo anterior.
Isso não impediu a ampliação das relações do MEC com o terceiro setor,
como se evidenciou no Plano de Desenvolvimento Educacional PDE (2008–
2011), encabeçado por um Plano de Metas “Compromisso Todos pela Educação”,
num claro alinhamento com o Todos Pela Educação (MARTINS, 2016).
Dentre as inúmeras ações, constava o intento de criar uma alternativa à
avaliação centralizada e de grande escala, criadas a partir de 1990. Chamada
de Ideb, combinava os resultados de desempenho escolar em português e
matemática, obtidos na Prova Brasil, com os resultados de rendimento escolar
(fluxo apurado pelo censo escolar), o que tornaria a avaliação externa mais
equitativa.
A maioria das ações do governo estava atrelada aos resultados do Ideb em
cada estado e/ou município. Pretendia-se apoiar estratégias institucionais ações
e metas em escolas com mais baixo desempenho. No entanto, foi, de fato, um
desdobramento desse conjunto de avaliações, isto é, mais um instrumento de
responsabilização das escolas pelos resultados educacionais (accountability),
estimulando, tal como evidenciado em diferentes pesquisas, a concorrência
entre as escolas, e a disputas das famílias por vaga nas escolas consideradas
hierarquicamente melhores (COSTA; KOSLINSKI, 2011).
Esse alinhamento com as posições do terceiro setor aparecia claramente
na promoção de várias formas de tecnologias educativas, principalmente de
gestão educacional, idealizadas por organizações privadas como estratégias de

17 Nesse sentido a principal iniciativa de indução por parte da SEB/ MEC a mudanças
no Ensino Médio foi a assinatura do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio,
instituído pela Portaria n.º 1140, de 22 de novembro de 2013, que “... representa a articulação e a
coordenação de ações e estratégias entre a União e os governos estaduais e distrital na formulação
e implantação de políticas para elevar o padrão de qualidade do Ensino Médio brasileiro, em suas
diferentes modalidades, orientado pela perspectiva de inclusão de todos que a ele tem direito”,
e o Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI), ao qual as escolas públicas que queriam aderir
tinham que apresentar à SEB um projeto de mudança do currículo escolar e de ampliação da carga
horária , elaborado de acordo com as diretrizes curriculares nacionais do programa. O MEC se
responsabilizava pelo apoio técnico e financeiro para sua implementação.

29
melhoria dos Ideb das escolas. Por exemplo, como parte do PDE, foi publicado
em 2009, e atualizado dois anos mais tarde, um Guia de Tecnologias pré-
qualificadas pelo MEC para auxiliar os gestores educacionais na melhoria
da educação nas suas redes de ensino e nas escolas públicas brasileiras, em
reconhecimento da necessidade de cooperação de diferentes setores da
sociedade, para que, em 2022, o Ideb alcançasse a meta de 6,018.
Faz parte desse Guia o Projeto Jovem de Futuro, desenvolvido pelo Instituto
Unibanco desde 2007, em parceria com Secretarias Estaduais de Educação,
disponibilizando para as escolas uma metodologia e os materiais de suporte
para a gestão escolar, aumentando ano a ano sua participação na política
pública do Ensino Médio (BRASIL, 2010).

O setor financeiro em ação: estratégias para educação financeira e


previdenciária
Vamos encontrar, na época, o início de outras frentes de intervenção do
sector privado, com claros interesses das instituições do setor financeiro de
incrementar seus serviços, como é o caso da promoção de educação financeira
nas escolas, sendo criada , em 2010, a Estratégia Nacional de Educação
Financeira Enef para promover ações de educação financeira, securitária,
previdenciária e fiscal no Brasil (BRASIL, 2021).
Tal estratégia busca, em concordância com as recomendações da OCDE19:
“[...] promover a educação financeira e previdenciária e contribuir para o
fortalecimento da cidadania, a eficiência e solidez do sistema financeiro nacional
e a tomada de decisões conscientes por parte dos consumidores” (BRASIL, 2021).
Pesquisa, realizada, em 2008, pela Fundação Getúlio Vargas FGV (NERI,
2008), mostrava a migração de um contingente importante de pessoas da

18 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/guia-de-tecnologias.


19 A OCDE criou uma Rede Internacional de Educação Financeira (INFE). Segundo ela, a
educação financeira é “o processo mediante o qual os indivíduos e as sociedades melhoram a sua
compreensão em relação aos conceitos e produtos financeiros, de maneira que, com informação,
formação e orientação, possam desenvolver os valores e as competências necessários para se
tornarem mais conscientes das oportunidades e riscos neles envolvidos e, então, poderem fazer
escolhas bem informadas, saber onde procurar ajuda e adotar outras ações que melhorem o seu
bem-estar. Assim, podem contribuir de modo mais consistente para a formação de indivíduos e
sociedades responsáveis, comprometidos com o futuro” (Plano Diretor da Estratégia Nacional de
Educação Financeira, ENEF, 2010)”.

30
classe D para classe C, uma forte redução da pobreza e um aumento da classe
média em condições de poupar e/ou de consumir, o que colocava o cidadão
em contato com novas situações e operações financeiras, pouco familiares para
muitas pessoas. Com base nesses argumentos, o governo federal justificava
tal empreendimento (BRASIL, 2021a.
Junto com a Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef )
(BRASIL,2021 b), instituiu-se o Comitê Nacional de Educação Financeira
(Conef), formado por representante do MEC e por instituições públicas de
regulação das atividades do setor financeiro20, para definir planos, programas,
ações e coordenar a execução da Enef (BRASIL, 2010). Foi criada também
a Associação de Educação Financeira do Brasil AEF , Oscip encarregada de
executar a Estratégia Nacional de Educação Financeira nas escolas fundamentais
e medias, com participação de instituições ligadas ao mercado financeiro.
Dentre suas atribuições, constavam ainda a produção de material didático
gratuito para as escolas, o desenvolvimento de tecnologias educacionais e a
organização de cursos de pós-graduação, em parceria com as secretarias de
educação, para professores da rede pública.
O projeto-piloto de Educação Financeira, realizado entre 2008 e 2010
na rede pública de Ensino Médio dos estados do Ceará, Minas Gerais, Rio de
Janeiro, São Paulo, Tocantins e do Distrito Federal foi avaliado positivamente
pelo Banco Mundial. “A experiência de se informar sobre finanças produziu
mudanças significativas na vida dos jovens estudantes e de suas famílias”, e
rendeu ao Brasil referência sobre essa modalidade de ensino no relatório The
impact of high school financial education – experimental evidence from Brasil,
do Banco Mundial21.

20 O Conef é composto pelas seguintes instituições: Banco Central do Brasil (BCB), Comissão de
Valores Mobiliários (CVM), Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc),
Superintendência de Seguros Privados (Susep), Ministério da Fazenda (MF), Ministério da Educação
(MEC), Ministério da Previdência Social (MPS), e Ministério da Justiça (MJ), além de quatro
representantes da sociedade civil. Para o período 2011-2014, foram escolhidas para representar a
sociedade civil no Conef as seguintes instituições: Associação Brasileira das Entidades dos Mercados
Financeiro e de Capitais (Anbima), Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros (BM&FBovespa),
Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde
Suplementar e Capitalização (CNSeg) e Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
21 Disponível em: https://documents.worldbank.org/pt/publication/documents-reports/
documentdetail/753501468015879809/the-impact-of-high-school-financial-education-experimental-
evidence-from-brazil. Acesso em: 16 ago. 2020.

31
Com pequenas mudanças, a Estratégia Nacional de Educação Financeira
continua existindo até a data de publicação deste artigo, através do Decreto
n.º 10393, de 9 de junho de 2020 que institui a Nova Estratégia de Educação
Financeira. O Decreto deixa explicita a autorização para divulgar “[...] ações
de educação financeira, securitária, previdenciária e fiscal propostas por
seus membros, por outros órgãos e entidades públicas ou por instituições
privadas” (BRASIL, 2020), ainda que no GAP “[...] a participação de atores
não-governamentais foi intensa” (BRASIL, 2013b, p. 7).
Foi o caso, por exemplo, da elaboração de material didático pelo Instituto
Unibanco, para o ensino de educação financeira nas escolas de Ensino Médio,
publicado em 2013 pelo MEC e pelo Conef. São três livros,22 e cada um deles
tem o livro do aluno e o caderno do aluno de educação financeira.
Em 2009, um levantamento preliminar de iniciativas de educação
financeira no País identificou 64 iniciativas. Em 2013, o 1.º Mapeamento
Nacional detectou 803 ações em diferentes regiões brasileiras e, em 2018,
o resultado mostrou um crescimento de 72% das iniciativas de educação
financeira em relação a 2013, entre escolas do Ensino Médio e universidades,
públicas e privadas, associações, cooperativas e órgãos da iniciativa privada.
Quase 90% das iniciativas mapeadas estão em instituições públicas, das quais
78% em escolas públicas. Na época do levantamento, na maioria dos casos, a
educação financeira era incluída de forma transversal nos currículos, às vezes
como conteúdo obrigatório e outras não. Hoje ela é incluída como disciplina
letiva em vários estados, entre eles, São Paulo.23
Por sua parte, o MEC está exercendo uma forte pressão, através do
Programa Federal “Educação Financeira nas Escolas”, que pretende fornecer
cursos gratuitos para professores da rede pública sobre educação financeira, com
o objetivo de capacitar, em três anos, 500 000 professores da educação básica.24
Esse projeto é resultado da parceria entre o Ministério da Educação, a Comissão
de Valores Mobiliários (CVM), uma autarquia vinculada ao Ministério da
22 Livro 1: Você Aqui e Agora; Livro 2: Você Seu Futuro Fazendo Acontecer e Livro 3: Você Eu,
Nós No Mundo.
23 Mapeamento de iniciativas de Educação financeira, abril/2018. Disponível em:
mapeamento/#:~:text=2%C2%BA%20Mapeamento%20Nacional%20das%20Iniciativas,do%20
Brasil%20%E2%80%93%20AEF%2D.Acesso em: 18 de set. 2021.
24 Disponível em< https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/mec-lanca-programa-educacao-
financeira-nas-escolas >. Acesso em: 03 set. 2021.

32
Economia, que ter por propósito normalizar e fiscalizar o mercado de valores
mobiliários no Brasil e o Sebrae (MEC- Educação financeira nas Escolas).
Além disso, outros grupos, como a associação sem fins lucrativos Abrapp, que
representa as entidades fechadas de previdência complementar e a Associação
Brasileira de Entidades do Mercado Financeiro Ambima (MEC- Educação
financeira nas Escolas), contribuem divulgando o conteúdo do projeto, por
meio da produção de vídeos e do material textual para formação.

Projeto de Lei n.º 6840-A/2013: um primeiro esboço da Reforma do


Ensino Médio
Nenhum dos dois modelos curriculares que antecederam à Lei n.º
13415/2017 (BRASIL, 2017), após a LDB/1996, criaram raízes no sistema
educativo brasileiro, salvo naqueles estados com empatia ideológica com a
gestão federal, como o caso de São Paulo durante a gestão de FHC, sendo
bastante díspares as mudanças nas redes estaduais de Ensino Médio.
Também vale destacar um conjunto importante de Institutos Federais que,
com um apoio financeiro e técnico importante do MEC durante a gestão do PT
e com condições adequadas de trabalho docente, avançou significativamente na
implementação da modalidade Ensino Médio integrado à educação profissional.
Em contrapartida, vários projetos empresariais empreendidos nos estados
e/ou no MEC sobreviveram às diferentes gestões, com forte presença nos
estados. Alguns motivos podem elucidar essa situação: os tempos políticos não
correspondem aos tempos de mudança nas escolas; a ausência de avaliações que
vislumbrassem suas consequências, virtudes e problemas, e a implementação
de reformas de cima para baixo, sem a participação nem consenso do “chão da
escola”, entre outros. Por outro lado, produziram uma influência importante
no currículo as avaliações em grande escala, passando a escola a se pensar
em função delas.
Iniciou-se, em 2012, a elaboração de um novo projeto de reforma para o
Ensino Médio, dessa vez no âmbito do Congresso Nacional, por iniciativa do
deputado Reginaldo Lopes (PT-MG). Formou-se, então, uma Comissão Especial
na Câmara de Deputados, destinada a promover estudos e proposições, para
reformular o Ensino Médio, resultando no PL n.º 6840-A/2013 (BRASIL, 2013a),
que, como anteriormente mencionamos, nunca foi votado em plenário. Esse

33
Projeto de Lei pode ser considerado o início do conflito em torno de uma nova
reforma. O argumento constante do requerimento de abertura dessa comissão
foi o mesmo que dera origem à reforma curricular dos anos 2000, ou seja, o
Ensino Médio não respondia às expectativas dos jovens, principalmente no
que se referia à sua inserção na vida profissional25.
A Comissão realizou seu trabalho paralelamente, desconsiderando o
Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio Proemi , assinado pela
União e pelos governos estaduais e distrital, que daria sustentação à reforma
curricular de 2012. Embora pareça incoerente, tudo indica que se apontava
para a possibilidade de elaborar uma nova reforma, em desconformidade,
principalmente do setor empresarial, com os propósitos, estratégias e resultados
dos programas que a SEB/MEC estava implementando no Ensino Médio,
além do acúmulo de “conquistas” ao longo dos 20 anos seguintes à queda da
ditadura, tanto no âmbito legislativo, quanto na ação política desses setores.
O PL propunha uma série de propostas que alteravam substancialmente a
estrutura e a organização do Ensino Médio, assim como seu conteúdo, tais
como: reformulação da jornada escolar e organização curricular, condições de
acesso ao ensino noturno e formação docente (SILVA; KRAWCZYK, 2016).
De maneira quase instantânea, vimos surgir o Movimento Nacional
em Defesa do Ensino Médio que, representando quase todas as entidades
profissionais de educação, entravou um forte embate durante as audiências
públicas, com presença majoritária do setor empresarial, conseguindo, em
conversas com o Presidente da Comissão, que se elaborasse um substitutivo,
que acabou ficando engavetado durante anos26. Com pequenas mudanças, as
propostas originais deste PL foram retomadas, posteriormente, na Medida
Provisória, assinada pelo governo Temer27.
O Consed, sob a coordenação do Prof. Rossieli Soares da Silva, então
Secretário Estadual de Educação do Amazonas e Secretaria de Educação
Básica, Ministro da Educação do governo Temer, dando prosseguimento à
sua tarefa de participação ativa no Projeto de Lei de 2013 de reformulação do

25 Requerimento de n.º 4337/2012, dirigido ao Presidente da Câmara dos Deputados.


26 A recuperação desse processo e o conteúdo do PL original e seu substitutivo podem ser
encontrados em Silva e Kravczyk, 2016.
27 Medida Provisória. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-
provisorias/-/mpv/126992. Acesso em: 20 ago. 2020.

34
Ensino Médio, organizou um GT, em 2015, com representantes das secretarias
de educação dos estados e com consultoria técnica e apoio financeiro do Itaú
BBA, do Instituto Itaú e do Instituto Natura28 (BUENO, 2021). O resultado
do GT foi uma Carta de Princípios sobre o Ensino Médio brasileiro, um
posicionamento sobre a Base Nacional Comum e proposições em relação
ao Projeto de Lei (PL) 6840/2013, apresentado ao MEC em março de 2016,
poucos meses antes de que o governo Temer anunciasse a Medida Provisória29.
Ressaltamos excerto da entrevista ao Prof. Rossieli Soares da Silva (2017)30:
A Carta de Princípios sobre o Ensino Médio Brasileiro, fruto de todas
as discussões do GT do Consed, trouxe aprimoramentos com base na
experiência de gestão dos secretários estaduais de educação, como no
caso da obrigatoriedade da Língua Inglesa enquanto língua estrangeira; a
inclusão da ênfase em formação técnica e profissional juntamente com as
áreas de conhecimento Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas
Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas
e Sociais Aplicadas - e concomitante ao Ensino Médio; além da exclusão do
quarto ano para o ensino médio noturno.

Bem conhecemos o final desta história, qual seja, a promulgação da Lei


n.º 13415, de 16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017), pivô das reformas de
Ensino Médio em curso nos estados brasileiros.

Considerações finais
Em 2017, foi promulgada a lei que deu origem à reforma do Ensino Médio,
cujas versões estaduais estão, desde 2019, em processo de elaboração. Ao longo
do texto, buscamos rastrear o processo que culminou na lei, dando origem a
uma reforma sistemática, que procura atender às demandas do setor empresarial
e às necessidades desta etapa do capitalismo (QUADROS, 2020; QUADROS;
KRAWCZYK, 2021b). Ou seja, seguimos as pegadas deixadas por essa política,

28 Disponível em: http://www.consed.org.br/media/meeting/591b64f82d6ee.pdf/ https://issuu.


com/consed/docs/ebook_ensinom__dio_final. Acesso em: 13 set. 2021.
29 Disponível em: http://www.consed.org.br/reuniao/audiencias-no-mec-e-cne-para-apresentacao-
da-proposta-para-o-novo-ensino-medio-brasileiro-e-posicionamento-sobre-a-base-nacional-
comum-curricular-bncc. Acesso em: 13 set. 2021.
30 Disponível em: file:///C:/Users/User.DESKTOP-G804SO5/Downloads/420-Texto%20do%20
artigo-800-2-10-20200702%20(2).pdf. Acesso em: 13 set. 2021.

35
desde a promulgação da Constituição de 1988, passando pela década de 1990 e
anos 2000, observando as discussões, as políticas e os caminhos, que grupos
empresariais foram, pouco a pouco, produzindo, o que hoje conforma o Novo
Ensino Médio. Dessa forma, percebemos que o fenômeno estudado não resulta
apenas da apresentação legal da proposta, mas sim, da junção de vários outros
fatores, que constroem a política educacional em si.
Em vista disso, se fez fundamental compreender os diferentes momentos e
atores envolvidos, rastreando, como propõem Dale e Gandin (2014), parte dos
processos que culminaram na Reforma do Ensino Médio. Evidentemente que
o artigo não poderia abarcar tudo que a antecedeu, então, selecionamos alguns
marcos geradores das mudanças, ocorridas nas políticas públicas educacionais,
avaliadas por nós como pegadas, até chegar na Reforma do Ensino Médio, as
quais, em um espaço de tempo relativamente longo, denotam a elaboração
e a consolidação dela como uma política pública, que altera toda a estrutura
do segmento escolar em questão, desde o cotidiano dos alunos, até a vida
funcional dos profissionais da educação.
A própria dinâmica da construção de políticas públicas faz com que se
evidencie a importância da metodologia de rastreamento do processo
da Reforma do Ensino Médio, para não atribuí-la, erroneamente, como
exclusividade da crise política vivida com a ascensão do governo Michel Temer.
Contudo, é evidente a importância do golpe de 2016 para a consolidação de um
projeto educativo autoritário, já que, houve a instituição da Medida Provisória
que, depois de um período muito curto, se transformou em lei.
A longa elaboração da LDB/96 mostra claramente que o Brasil estava
vivenciando processos semelhantes aos de outros países latino-americanos,
uma transição política, consubstanciada na substituição do autoritarismo por
um regime democrático; uma transição econômica apenas se iniciando, a qual
deveria possibilitar uma nova relação entre Estado e mercado (ALMEIDA,
1996); e o avanço das pautas neoliberais nas diferentes esferas – social, política,
econômica e educativa.
A necessidade de elaborar consensos entre projetos educacionais
antagônicos fez surgir, em diferentes ocasiões, textos normativos ambíguos,
o que resultou em fácil manipulação para atender a diversos interesses.

36
Nessa direção, é importante lembrarmos a reforma de Estado, realizada
pelo governo FHC, momento substancial para as mudanças na área educacional,
vinculadas ao processo de subordinação à lógica econômica e às demandas
do mercado de trabalho, embora não tenha sido o único.
Os movimentos dos reformadores empresariais foram costurando,
paulatinamente, caminhos para chegar ao interior do aparelho estatal –
executivo e legislativo – federal e estadual, e às escolas, por meio de trabalhos
experimentais, enquanto esperavam as condições propícias para implementar
a reforma. Sob orientação e apoio do BM, da OCDE e da Unesco, o governo
brasileiro reformulou a agenda educacional que afetou todo o Ensino Médio.
Cabe aqui destacar, também, o protagonismo de institutos e fundações privadas
no debate acerca do desenvolvimento e da formulação das políticas públicas
educacionais no país.
Nesse contexto, a Fundação Lemann foi líder na constituição do Movimento
pela Base. Outras instituições, que compõem o Todos Pela Educação, com
destaque para o Instituto Unibanco, foram protagonistas na defesa do projeto
de reforma, influenciando tanto na orientação pela aprovação quanto nas
publicações sobre Ensino Médio, que serviram de base para o projeto de
reforma (QUADROS, 2020).
Desde que a lei foi aprovada, o Banco Mundial tem sido um parceiro
importante na implementação da Reforma, seja condicionando programas
e empréstimos a metas previamente definidas, que visam ao fortalecimento
das secretarias estaduais, seja apoiando a expansão Ensino Médio de
tempo integral, tendo como referência o modelo criado pelo Instituto de
Corresponsabilidade pela Educação (ICE). Por sua vez, o Instituto Ayrton
Senna foca na implementação das competências socioemocionais nos currículos
escolares de diversos estados, além de divulgar o ensino e a capacitação de
professores. Já o Instituto Unibanco acumulou experiência com o projeto
Jovem de Futuro, exercendo influência significativa na gestão escolar, além
de ter investido em educação técnico- profissional e financeira.
A pedagogia neoliberal, difundida pelos organismos multilaterais com
sua pletora de dispositivos e léxicos advindos do meio empresarial, em que se
destacam a pedagogia das competências, os projetos de vida, protagonismo
juvenil, accountability, embora tenham atravessado os governos de diversas

37
matizes, ganham maior materialidade na escola de Ensino Médio, a partir da
Reforma (QUADROS, 2020; QUADROS; KRAWCZYK, 2021b).
A formação geral básica, a parte diversificada e a relação trabalho-
educação são temas caros ao debate internacional acerca do Ensino Médio. Se
olharmos retrospectivamente para as “pegadas” da Reforma do Ensino Médio,
veremos como, silenciosamente, foi se esvaziando um projeto emancipador de
formação de um contingente de juventude, que estava chegando pela primeira
vez a essa etapa de ensino, fortemente defendido por setores progressistas e
movimentos sociais. A Reforma em curso é preocupante, pois fortalece os
mitos da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, em que oculta, legitima e
aprofunda a desigualdade social.
A explosão do capital e seu afã na busca de meios por absorção de capital
e aumento da produtividade com a reestruturação produtiva (HARVEY,
2012) produziram uma ‘captura da subjetividade’ em diversas esferas da vida,
sobretudo nos espaços de reprodução da classe trabalhadora (ALVES, 2011, p.
29), na qual a escola tem papel cada vez mais fundamental. A reforma do Ensino
Médio, nesse sentido, foi resultado de disputas entre projetos educacionais,
dentre os quais venceu o projeto do empresariado juntamente com o golpe
parlamentar/empresarial, ocorrido em 2016.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, M. H. T. Pragmatismo por necessidade: os rumos da Reforma
Econômica no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 39, n. 2, 1996.
ALVES, G. Trabalho e Capital: o espírito do toyotismo na era do capitalismo
manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.
ALVES, G.; MOREIRA, J; PUZIOL, J. Educação profissional e ideologia das
competências: elementos para uma crítica da nova pedagogia empresarial sob a
mundialização do capital. Educere & Educare, v. 4, n. 8, p. 45-59, jul./dez. 2009.
BCB. Banco Central do Brasil. Caderno de Educação Financeira. Gestão de
Finanças Pessoais. Brasília, 2013. Disponível em: <https://bit.ly/1YSQVoi>.
Acesso em: 12 ago. 2020.

38
BRASIL [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Lei n.º 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p.
27 833, 23 dez. 1996.
BRASIL. Coordenação de Estudos Legislativos. Decreto n.º 2208, de 17 de
abril de 1997. Regulamenta o §2.º do art. 36 e os artigos 39 a 42 da Lei 9394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 7760, 18 abr. 1997a.
BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. A Reforma
do aparelho do estado e as mudanças constitucionais: síntese & respostas a
dúvidas mais comuns. Brasília: Cadernos MARE, 1997b.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Emenda Constitucional n.º 19, de 04 de junho de 1998. Modifica
o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública,
servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio
de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências. Diário
do Senado Federal, Brasília, p. 9837, 5 jun.1998. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc19.htm. Acesso em:
12 set. 2021.
BRASIL. Lei n.º 10172, de 9 janeiro de 2001. Institui o Plano Nacional de
Educação e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 2001a.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.
htm. Acesso em: 18 set. 2021.
BRASIL. Plano Nacional da Educação 2001-2010. Parte 7.3: Educação Tecnologia
e formação profissional, Objetivos e metas. Brasília: Senado Federal, Unesco,
2001b.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n.º 5154, de 23 de julho de 2004.
Regulamenta o § 2.º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei n.º 9394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 18,
26 jul. 2004.

39
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Lei n.º 11161, de 5 de agosto de 2005.Dispõe sobre o ensino da língua
espanhola. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 1, 08 ago. 2005.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Lei n.º 11645, de 10 março de 2008. Altera a Lei n.º 9394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela Lei n.º 10639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p.
1, 11 mar. 2008.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Decreto n.º 7397, de 22 de dezembro de 2010. Revogado pelo Decreto
n.º 10393, de 2020. Institui a Estratégia Nacional de Educação Financeira -
ENEF, dispõe sobre a sua gestão e dá outras providências. Diário Oficial da
União, Brasília, 2010.
BRASIL. Resolução n.º 2, de 30 de janeiro, 2012. MEC/CNE, Brasília, 2012.
Disponível em:http://www.uel.br/projetos/pactoensinomedio/pages/arquivos/
CADERNOS/web_caderno_3.pdf. Acesso em :10 out. 2021.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 6840A,
de 2013. Diário Oficial da Câmara, Brasília, 2013a. Disponível
em: h t t p s : / / w w w. c a m a r a . l e g . b r / p r o p o s i c o e s We b / p r o p _
mostrarintegra;jsessionid=B44C4005776EE41477D661B720463355.proposic
oesWeb2?codteor=1295592&filename=Avulso+-PL+6840/2013. Acesso em:
4 ago. 2021.
BRASIL Ministério da Educação. Pacto Nacional pelo fortalecimento do
Ensino Médio. MEC/SEB. Curitiba: UFPR, 2013b.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Geral. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Lei n.º 13 415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis n. º 9394, de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
e 11494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-
Lei n.º 5452, de 1.º de maio de 1943, e o Decreto-Lei n.º 236, de 28 de fevereiro

40
de 1967; revoga a Lei n.º 11 161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de
Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 17 fev. 2017.
BRASIL. Decreto n.º 10393, de 9 junho de 2020.Institui a nova Estratégia
Nacional de Educação Financeira - ENEF e o Fórum Brasileiro de Educação
Financeira - FBEF. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Ed. 110, Seção 1, p.
2, 10 jun. 2020.
BRASIL Ministério da Educação. Programa de Educação Financeira nas Escolas,
2021a. Disponível em: http://www.edufinanceiranaescola.gov.br. Acesso em:
10 out. 2021.
BRASIL Ministério da Educação. Educação Financeira na Escola, Midiateca,
2021b. Disponível em: < http://www.edufinanceiranaescola.gov.br/midiateca/>
Acesso em: 10 out. 2021.
BOLLMAN, M.G.; AGUIAR, L. LDB projetos em disputa: da tramitação à
aprovação em 1996. Retrato da Escola, CNTE, Brasília, v. 10, n.19, p. 407-428,
jul./dez 2016.
BUENO, A. L. A Reforma do ensino médio: do projeto de Lei n. 6.840/2013 à
Lei n. 13.415/2017. Mestrado (Dissertação) - Programa de Pós- Graduação em
Educação, UFP, Curitiba, 2021.
COAN, M. Educação para o empreendedorismo como estratégia para formar
um trabalhador de novo tipo. Revista Labor, v. 1, n. 9, p. 1-18, 2013.
COSTA, M. da; KOSLINSKI, C. Quase- mercado oculto: disputa por escolas
“comuns” no Rio de Janeiro. Cadernos de pesquisa, São Paulo, v.41, n.142, p.
246–266, jan./abr. 2011.
DALE, R.; GANDIN, L. A. Estado, globalização, justiça social, e educação.
Reflexões contemporâneas de Roger Dale. Currículo sem Fronteiras, v.14, n.2,
p. 5-16, maio/ago. 2014.
DELORS, J. (Org). Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO
da comissão internacional sobre educação para o século XXI. Ed. Cortez/MEC/
UNESCO, SP/DF,1996.
DIAS, M. C. N.; GUEDES, P. M. Modelo de Escola Charter: a experiência de
Pernambuco. São Paulo: Fundação Itaú Social e Instituto Fernand Braudel

41
de economia mundial, 2010. (Coleção Excelência em Gestão Educacional).
Disponível em: https://www.itausocial.org.br/wp-content/uploads/2018/05/09-
escola-charter-artigo_1510163083.pdf. Acesso em: 15 mar. 2020.
FERRETTI, C. J. A reforma do ensino médio e sua questionável concepção de
qualidade da educação. Estudos avançados, USP, v. 32, p. 25-42, maio/ago. 2018.
FERRETTI, C. J.; SILVA, M. R.. Reforma do ensino médio no contexto da
medida provisória n. 746/2016: Estado, currículo e disputas por hegemonia.
Educação & sociedade, (Impresso), v. 38, p. 385-404, abr./jun.2017.
GOMES, C. A. O ensino médio no Brasil: ou a história do patinho feio recontada.
Brasília, DF: Universa, 2000.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo, SP: Loyola, 2012.
HERNANDES, P. A Reforma do Ensino Médio e a produção de desigualdades
na educação escolar. Revista Educação, Centro de Educação da UFSM, v. 44,
n.p., 2019.
INSTITUTO AYRTON SENNA (IAS). Relatório de Resultados 2012. São
Paulo: IAS, 2012b. Disponível em: https://institutoayrtonsenna.org.br/content/
dam/institutoayrtonsenna/documentos/relat%C3%B3rios-anuais/Relatorio-
Institucional-2012.pdf. Acesso em: 18 ago. 2021.
KRAWCZYK, N. Ensino médio: empresários dão as cartas na escola pública.
Educ. Soc., Campinas, v. 35, n. 126, p. 21-41, jan./mar. 2014.
KRAWCZYK, N. Brasil-Estados Unidos. A trama de relações ocultas na
destruição da escola pública. In: KRAWCZYK, N. (Org.). Escola pública:
tempos difíceis, mas não impossíveis. Campinas: FE Unicamp editora; MG:
Navegando editora, p. 59-72, 2018.
KRAWCZYK, N.  EUA – Brasil: uma cooperação deletéria na educação.
Da cartilha  neoliberal ao fundamentalismo religioso.  Jornal de Políticas
Educacionais, v. 14, n. 54, dez. 2020.
KRAWCZYK, N; FERRETTI, C. J. Flexibilizar para quê? Meias verdades da
“reforma”. Retrato de escola, CNTE, Brasília, v.11, n. 20, p. 33-44, 2017.
LAVAL, C. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino
público. Londrina, PR: Planta, 2004.
LAVAL, C. et al. La nouvelle école capitaliste. Paris: La Découverte, 2012.

42
LÓPEZ-RUIZ, O. Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo:
capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro,
RJ: Azougue, 2007.
MAGALHÃES, M. A juventude brasileira ganha uma nova escola de Ensino
Médio: Pernambuco cria, experimenta e aprova. São Paulo: Albatroz: Loqüi,
2008. Disponível em: https://icebrasil.azurewebsites.net/wp-content/
uploads/2020/04/Livro-a-juventude.pdf . Acesso em: 14 mar. 2019.
MARTINS, E. M. Todos Pela Educação? Como os empresários estão determinando
a política educacional brasileira. 1. ed., Rio de Janeiro: Lamparina, 2016.
MELO, T. G. S.; MOURA, D. H. PNE (2001-2010), PNE (2014-2024): orientações
para a Educação Profissional no Brasil. HOLOS, [S.l.], v. 3, p. 3-15, set. 2017.
MOLL, J. Reformar para retardar: a lógica da mudança no EM. Retrato de
escola, CNTE, Brasília, v.11, n.20, p. 61-74, jan./jun. 2017.
MOTTA, V. C.; FRIGOTTO, G. Por que a urgência da Reforma do Ensino
Médio? Medida Provisória nº 746/2016 (Lei nº 13.415/2017). Educação e
Sociedade, Campinas, v. 38, n. 139, p. 355-372, abr./jun. 2017.
NERI, M. (Coord.). A nova classe média. Rio de Janeiro: FGV/IBRE, CPS,
ago. 2008.
OCDE. Melhores competências, melhores empregos, melhores condições de
vida: Uma. abordagem estratégica das políticas de competências. Publicações
da OCDE. São Paulo, SP: Fundação Santillana, 2014. Brasil, 2000. p. 11.
PAULO NETTO, J. FHC e a política social. In: LESBAUPIN, I. (Org.). O
desmonte da nação: Balanço do Governo FHC. Petrópolis: Vozes, 1999. p.75-89.
PERONI, V. M. V.; OLIVEIRA, R. T. C. de; FERNANDES, M. D. E. Estado e
Terceiro Setor: as novas regulações entre o público e o privado na gestão da
educação brasileira. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n.108, p. 716-778,
out. 2009.
QUADROS, S. F. A influência do empresariado na reforma do ensino médio. 2020.
160f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em
Educação, Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas, SP, 2020. Disponível
em: < http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/342506> Acesso
em: 16 jan. 2020

43
QUADROS, S. F.; KRAWCZYK, N. O capital vai ao ensino médio: uma análise
da reforma no processo de circulação do capital. Revista HistedBR online, v.
21, p. 1-21, 2021a.
QUADROS, S. F.; KRAWCZYK, N. Educando pelas métricas do mercado:
as propostas do empresariado para a juventude da classe trabalhadora e a
reforma do ensino médio. PrePrints Scielo, 2021b. Disponível em: < https://
doi.org/10.1590/SciELOPreprints.2239> Acesso em: 6 set 2021.
SAVIANI. D. Histórias das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores
Associados, 2007.
SAVIANI. D. A nova lei da educação LDB trajetórias, limites e perspectivas. 12.
ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011.
SILVA, M. M. da. A formação de competências socioemocionais como estratégia
para captura da subjetividade da classe trabalhadora. Tese (Doutorado em
Educação Escolar) - Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar,
Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista - UNESP,
Araraquara, 2018.
SILVA, F.; CÁRIA, N. A inserção do empreendedorismo na educação básica.
In: EDUCERE, PUCPR, Anais [...]. 2015.
SILVA, M. R.; COLONTONIO, E. M. As diretrizes curriculares nacionais para
o ensino médio e as posições sobre trabalho, ciência, tecnologia e cultura:
reflexões necessárias. Revista Brasileira de Educação, v. 19, n. 58, p. 611, 627,
jul./set. 2014.
SILVA, M. R.; KRAWCZYK, N. Quem é e o que propõe o Projeto de Lei da
reforma do Ensino Médio. In: AZEVEDO, J.; Clóvis de;REIS, J.T. (Orgs.).
Ensino Médio: políticas e práticas. Porto Alegre: Editora Universitária Metodista
IPA, 2016.
SILVA, M. R; SCHEIBE, L. Reforma do ensino médio: pragmatismo e lógica
mercantil. Retrato de escola, CNTE, v.11, n.20, p. 11-17, 2017.
SILVA, R. S. A reforma do ensino médio. B. Téc. [entrevista concedida a]
Francisco Aparecido Cordão. Senac, Rio de Janeiro, v. 43, n. 1, p. 274-282,
jan./abr. 2017.

44
SIMÕES, C. A.; SILVA, M. R. Formação de professores do ensino médio. Caderno
3: O currículo do ensino médio, seus sujeitos e o desafio da formação humana
integral. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica, Curitiba:
Setor de Educação da UFPR, 2013.
SMOLKA, A.; LAPLANE, A.; FRIZMAN DE MAGIOLINO, L.; DAINEZ,
D. O problema da avaliação das habilidades socioemocionais como política
pública: explicitando controvérsias e argumentos. Educ.Soc., v. 36, n. 130, p.
219-242, jan./mar. 2015.
TANGUY, L. Racionalização pedagógica e legitimação política. In: ROPÉ, F.;
TANGUY, L. (Org.). Saberes e competências: o uso de tais noções na escola e
na empresa. Campinas, SP: Papirus, p. 55-80, 1997.
TARLAU, R.; MOELLER, K. O consenso por filantropia. Como uma fundação
privada estabeleceu a BNCC no Brasil. Currículo sem Fronteiras, v. 20, n. 2,
p. 553-603, maio/ago. 2020.
UNESCO. PRELAC. Uma trajetória para a educação para todos. Revista
PRELAC, Santiado do Chile, ano 1, n.0, ago. 2004. Disponível em: http://
unesdoc.unesco.org/images /0013/001372/137293por.pdf. Acesso em: 28 dez.
2016
VAN ZANTEN, A. Les politiques d’éducation. Paris: Humensis, 2021.
VIANNA Jr. A. (Org). A estratégia dos Bancos Multilaterais para o Brasil:
análise crítica e documentos inéditos. Rede Brasil, Brasilia, 1998.
VINOKUR, A. Engaging with Steven J. Klees’. A quarter century of neoliberal
thinking in education: misleading analyses and failed policies. Globalisation,
Societies and education, v. 6, n. 4, p. 363-365, 2008.
ZAN, D. D. P. Currículo em tempos plurais: uma experiência no ensino médio.
Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação,
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP,
Campinas, Brasil, 2005.
ZIBAS, D. Uma visão geral do ensino técnico no Brasil: a legislação, as críticas,
os impasses e os avanços. Difusão de Idéias, Fundação Carlos Chagas, São
Paulo, SP, p. 1-12, jan. 2007.

45
Primeiros passos da Reforma do Ensino Médio em São
Paulo: o caso da rede regular de ensino

Anniele Ferreira de Freitas31


Dirce Zan32
Fernanda Dias da Silva33
Rodolfo Soares Moimaz34

Introdução
O presente artigo tem como objetivo apresentar aspectos das ações iniciais
do governo do estado de São Paulo para a implementação da reforma do Ensino
Médio. Embora as políticas diretamente relacionadas à reforma tenham se
concretizado em 2020, uma série de medidas da Secretaria da Educação do
Estado (SEDUC) estava em desenvolvimento quase uma década antes, isto é, já
apontavam para os rumos que a reforma tomaria no estado após a homologação
da Lei federal 13415/2017. Nesse sentido, partimos da hipótese de que a atual
política federal para esse nível de ensino já vinha sendo experimentada no
31 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia no Instituto de Geociências –
Unicamp. anniesfreitas@gmail.com
32 Professora Doutora no Departamento de Ciências sociais e Educação (Decise) e pesquisadora
do grupo de pesquisa GPPES na Faculdade de Educação /Unicamp. dircezan@unicamp.br
33 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp e professora da
Rede Estadual de Educação do Estado de São Paulo. Fernanda_diascs@yahoo.com.br
34 Doutorando no Departamento de Pós-Graduação em Sociologia, IFCH- Unicamp. moimaz@
gmail.com

46
estado de São Paulo há alguns anos. Este artigo foi construído a partir de
levantamento bibliográfico, da análise de documentos oficiais do estado e
de registros de Diário de Campo colhidos pelos autores que, além de serem
pesquisadores do campo da educação, também atuam na rede pública do
estado em diferentes funções.
Entendemos que a Reforma que hoje se implementa no estado resulta
de ações que há muito buscavam a transformação desse nível educacional.
Esse processo foi marcado por movimentos distintos e, muitas vezes,
contraditórios. Para uns, uma oportunidade de consolidar o alinhamento
da educação às diretrizes do mercado, tendo como suporte o discurso do
corte dos gastos públicos e da necessária redução da atuação do Estado. Para
outros, a possibilidade de atualizar o currículo da Educação Básica, que estaria
defasado e desinteressante para os jovens estudantes.
Considerando os documentos oficiais, tomamos como marco inicial da
reforma no estado a publicação no Diário Oficial de São Paulo, em 29/01/2020
(SÃO PAULO [Estado], 2020), de normas para regulamentar a implementação
da reforma. São normas que apontam para a necessidade de preparar a rede
estadual para se efetivar a reforma prevista na Lei federal e ações que estão
focadas em mudanças curriculares, na organização da gestão escolar e na
formação continuada dos professores.
Neste artigo, pretendemos também registrar algumas das manifestações e
reações dos professores durante o processo de reforma em curso. Dessa forma,
esperamos contribuir para compreendermos a atual reforma como parte de
um processo que já estava em curso e a complexidade de sua implementação
em uma rede tão grande e diversificada.
De certo modo, é possível afirmar que a reforma do ensino médio em São
Paulo se inicia antes mesmo da promulgação da Lei federal. Ações tomadas pelo
governo de São Paulo anteriores a 2017 têm contribuído para a agilidade na
efetivação da reforma no estado. Desde o Programa Educação - Compromisso
de São Paulo (PECSP)35, elaborado pela Secretaria Estadual de Educação do
estado, na gestão do governador Geraldo Alckmin, algumas modificações na
organização da rede já estavam postas e, ao nosso ver, estão em sintonia com
os princípios da Lei 13415/17. O projeto estadual foi elaborado com participação

35 Criado pelo Decreto n.º 57571/2011, de 02 de dezembro de 2011 (SÃO PAULO [Estado], 2011).

47
ativa de agentes do setor privado, no que se refere tanto à consultoria, quanto à
redação final deste e de outros documentos recentes de políticas educacionais36.
Uma das ações presentes no PECSP era a proposta de reorganização das salas
de aula em toda a rede estadual. O plano de reorganização tinha como objetivo
fechar 94 escolas e organizar outras 754 unidades escolares com a oferta de um
único segmento, ou seja, escolas apenas de Ensino Fundamental ou de Ensino
Médio. Essa proposta de reorganização era apresentada sob a justificativa de que
a faixa etária dos alunos vinha mudando ao longo dos últimos anos, levando a
uma significativa redução no número de matrículas em determinadas séries,
especialmente no Ensino Médio. Dessa forma, defendia-se que escolas menores,
e de ciclo único, poderiam apresentar melhores resultados. Essa defesa vinha
pautada pelos dados obtidos nos exames em larga escala e divulgados pela
secretaria, numa ação de monitoramento da qualidade da educação. Esses dados
partiam de uma análise fragmentada, em que se apontava que estudantes de
escolas de segmento único tendiam a obter melhores resultados nos exames.
Essas ações contribuíram para reduzir o corpo docente, ampliar a
municipalização do ensino fundamental e preparar a rede para implementação
de parcerias público-privadas na gestão das escolas de tempo integral –
conforme apontado no Plano Estadual de Educação PL 1083/2015 (PIOLLI;
PEREIRA; MESKO, 2016). Tais ações contrariavam as demandas de entidades
como o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo
(APEOESP) e as pautas estudantis, que explodiram em um movimento de
ocupações secundaristas até então inédito. É necessário destacar que, entre 13
de março e 12 de junho de 2015, o magistério da rede pública estadual esteve
em greve na luta por reajuste salarial, pelo acesso de docentes temporários
ao Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (IAMSPE)
e reivindicando o aprimoramento das formas de contratação da categoria
(CRUZ, 2015).
Sobre o movimento das ocupações, protagonizado pela juventude, estavam
em pauta princípios e demandas desses sujeitos para a instituição escolar e para
36 Tarlau & Moeller (2019) apresentam um estudo etnográfico sobre a atuação da Fundação
Lemann, através do grupo Movimento pela Base Nacional Comum, na articulação da construção e
elaboração da BNCC desde 2013 até sua redação final para o Ensino Médio. Quadros (2020) discute
a participação de grupos empresariais associados ao Todos Pela Educação, uma associação sem fins
lucrativos, que participaram da elaboração da reforma do Ensino Médio, através de parlamentares
que representavam os interesses da Think Tank.

48
a sociedade (CORSINO; ZAN, 2017, 2020; COSTA; GROPPO, 2018; SOARES,
2019). O Movimento Estudantil Secundarista ganhou as mídias e passou a
despertar o interesse de diferentes segmentos sociais e também dos movimentos
partidários e sindicais mais tradicionais. Aos poucos a atenção do País se voltou
diretamente para os grupos juvenis que ocupavam as escolas e reivindicavam um
espaço para o diálogo e a atuação na tomada de decisões sobre a educação a eles
destinada. Em São Paulo, foram 213 escolas que permaneceram ocupadas por
praticamente 60 dias no ano de 2015. Esse movimento mobilizou o Ministério
e a Defensoria Pública do estado, tanto para garantir a proteção do patrimônio,
como também para assegurar a integridade dos estudantes, na sua maioria,
menores de idade. O Movimento se caracterizou por descentralizar a tomada de
decisões e por ter envolvido escolas em todo o estado e mais tarde também no
território nacional. Foi uma experiência que se pautou pela horizontalidade das
assembleias, por práticas de autogestão, pelo cuidado e manutenção do espaço
escolar e pela amplitude das atividades que os grupos desenvolveram durante
o período de ocupação. As atividades incluíam desde cozinhar, limpar, cuidar
da segurança do espaço e dos alunos, até promover aulas com temas livres e
definir estratégias para divulgar o cotidiano das ocupações nas mídias sociais
– como forma de disputar a narrativa, uma vez que a grande mídia veiculava
o evento de forma negativa e buscava construir uma postura de reprovação a
ele por parte da sociedade (MEDEIROS; JANUÁRIO; MELO, 2019).
O processo de ocupação das escolas suscitou discussões não previstas
nas pautas da Secretaria de Educação e expôs a falta de diálogo também no
interior das escolas, tanto dos alunos com professores e gestores, quanto
dos próprios professores com gestores das escolas. As pautas do movimento
abriram discussões sobre as práticas curriculares descoladas da realidade, que
inviabilizam, muitas vezes, problemas concretos de nossa sociedade tais como
racismo, LGBTfobia e machismo. Algumas das ocupações expuseram também o
mau uso de recursos existentes nas escolas, como laboratórios, salas de leitura,
pátios, quadras esportivas e, em casos mais pontuais, problemas na prestação
de contas de recursos financeiros. O movimento revelou paisagens escolares
que a sociedade pouco conhecia ou questionava. Em uma pesquisa etnográfica
em uma das escolas ocupadas, Corsino e Zan (2017, p. 38) apontam que

49
os questionamentos destes/as jovens remetem a uma escola precária,
mecanizada e colonizada nas relações estabelecidas, em sua arquitetura e
na relação com os saberes. As ocupações realizadas pelos/as jovens estudantes
desta escola é indicativo de que, para além de questionar a reorganização
anunciada pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, eles/as estão
reivindicando a descolonização de um espaço e de uma relação entre os/as
estudantes e os/as atores/as da escola. Nesse espaço, nem mesmo a arquitetura
tem proporcionado um diálogo e uma relação democrática em que todos/as
possam intervir e contribuir para a sua formação.

Sob os auspícios de uma pretensa qualidade da educação, o que se


notou com as ocupações foi que as políticas educacionais em curso pouco
consideravam outras demandas dos sujeitos escolares que não fossem o
rendimento dos critérios de avaliação (PISA; SARESP37) ou os recursos
financeiros implementados através da Nova Gestão Pública (NGP). Nesse
sentido, Girotto e Campos (2020, p. 8), ao estudarem as mudanças no uso do
território na cidade de São Paulo mediante a reorganização da rede estadual em
2015, apontam que “tal modelo, assenta-se na defesa da gestão técnica da política,
pautada no discurso do especialista competente e na pouca preocupação
com a participação popular na elaboração, implementação e avaliação das
políticas propostas”.
O estudo também complementa que a noção de direito ao território
é posta de lado com as interfaces projetadas pela NGP, uma vez que “esse
padrão tem buscado nortear não apenas a política educacional, mas se estende
a outras políticas públicas, construindo assim, uma tentativa de difundir a
lógica empresarial e tecnicista como fundamentos da ação do Estado no
Neoliberalismo” (GIROTTO; CAMPOS, 2020, p. 8). Os atos de repulsa à
reorganização das salas de aula e ao fechamento das escolas dos estudantes
secundaristas expõem desigualdades escolares e desigualdades socioespaciais.
As ações do estado de São Paulo naquele momento, ao nosso ver, se constituíram
em um terreno preparado para as mudanças indicadas para o Ensino Médio
na Lei Federal de 2017.

37 “O Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) é aplicado pela
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo com a finalidade de produzir um diagnóstico da
situação da escolaridade básica paulista, visando orientar os gestores do ensino no monitoramento
das políticas voltadas para a melhoria da qualidade educacional.” Disponível em: https://www.
educacao.sp.gov.br/saresp

50
Sendo assim, neste texto o leitor encontrará as diretrizes da Secretaria de
Educação de São Paulo a partir das normativas, os programas e as estratégias
de atuação dentro do panorama da reforma do Ensino Médio no estado
de São Paulo entre os anos de 2019 e 2020. Entendemos que registrar esse
momento é importante não somente para explicitar a construção do projeto
em São Paulo, uma vez que o estado claramente se colocou como pioneiro
na reforma curricular, considerando a escala nacional, mas também para
contribuir com a interpretação e a análise dos dados coletados. Estudar as
decisões políticas oficiais do estado de São Paulo no período delimitado nos
possibilita compreender como outros estados poderão colocar em ação a
reforma e os riscos que estão postos para as escolas no que se refere a retrocessos
em processos de gestão e escolarização.

A reforma do Ensino Médio e o Currículo – a centralidade da BNCC


Para nós, a reforma do Ensino Médio é uma das maiores políticas em
curso no estado de São Paulo neste momento. Ela incide, de forma particular,
no currículo desse nível de ensino e nos coloca diante de inúmeros debates
sobre aspectos fundamentais da educação pública. Saber a quem interessa e
considerar quem sofrerá as consequências e quais mecanismos serão acionados
para a implementação e a atuação da política são elementos fundamentais
para compreendermos o processo de reformulação curricular em curso nas
escolas secundárias.
A reforma do Ensino Médio expressa na Lei 13415/2017 (BRASIL, 2017)
se deu junto com a homologação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) (BRASIL, 2018a). Com a definição dos componentes curriculares
para o Ensino Médio, o texto da Reforma ressaltou seu principal objetivo:
ser a estrutura de implementação e atuação da Base. Não bastava apenas
que os componentes curriculares fossem reorganizados de acordo com as
“necessidades de aprendizagem” dos jovens – era imperativo que as escolas
oferecessem os percursos formativos de acordo com os parâmetros da política
curricular em curso.
A forte articulação para que a política curricular de reestruturação do
Ensino Médio fosse produzida e finalizada teve como protagonistas agentes
dos setores privados, políticos conservadores e moderados, além de intelectuais

51
especialistas que vêm ocupando cargos importantes no Conselho Nacional
de Educação (CNE) e no Ministério da Educação (MEC)38. Alguns deles
atravessaram diferentes governos federais, participando de secretarias e
conselhos, de acordo com a orientação política do MEC. Em suma, a reforma
do Ensino Médio não esteve orientada para as demandas de alunos, professores
e famílias quanto às necessidades educativas dos jovens, mas, sim, aos interesses
estratégicos de empresários do setor educacional que visam a um capital ainda
mais valorizado.
Apple (2006), ao analisar o processo de reforma curricular em curso nos
EUA desde os anos de 1990, considera que a defesa de um currículo oficial único
está em consonância com os interesses ideológicos de grupos hegemônicos e
opera articuladamente com interesses culturais e econômicos de diferenciação
e estratificação escolar. Assim, em sua obra, Apple (2006) convida professores
e outros interessados em educação a compreenderem o papel do currículo
como instrumento de poder para além do texto normativo, mas também a
observarem, nas práticas das salas de aula e do chão da escola, como a educação
está vinculada à reprodução das classes sociais e o que significam sua forma
e conteúdo em diferentes épocas e culturas.
Reconhecer processos hegemônicos, então, tem sido o legado deste autor
que nos auxilia a interpretar alguns aspectos da reforma em curso no estado
de São Paulo. Os argumentos trazidos por Apple (2013) sobre a política oficial
do conhecimento retomam alguns de seus debates anteriores, uma vez que
vivemos atualmente o acirramento de uma sociedade neoconservadora sob
a égide do neoliberalismo.
O currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos,
que de algum modo aparece nos textos nas salas de aula de uma nação.
Ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de
alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento
legítimo. É o produto das tensões, conflitos e concessões culturais,
políticas, econômicas que organizam e desorganizam um povo. (APPLE,
2013, p. 71, grifo do autor)
38 A partir dos trabalhos de Peroni, Caetano e Lima (2017) e de Tarlau e Moeller (2019), destacam-
se nomes como Fundação Lemann, Instituto Unibanco (Pedro Moreira Salles), Ricardo Henriques
(ex-Ministro da Educação e ex-Secretário municipal e estadual de Educação do Rio de Janeiro),
Pedro Malan (ex-Ministro da Fazenda dos governos Fernando Henrique Cardoso, do PSDB) etc.

52
Apesar de a BNCC ser o documento curricular normativo, a própria
reforma pode ser vista como uma política do conhecimento oficial, porque
sua proposta reorganiza os conteúdos, as áreas do conhecimento, o processo
de aprendizagem e impacta o trabalho docente de acordo com processos e
dinâmicas particulares das redes de educação básica. Logo, ela funciona como
um mecanismo de seleção do conhecimento a partir das orientações da Base.
Silva (2018) ressalta que o documento da BNCC recupera discursos
empoeirados e exaustivamente discutidos no campo da educação. A
“necessidade” e a urgência de reconstruir o Ensino Médio retomam as noções
de competências apresentadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais durante
a década de 1990, conforme aponta a autora:
[...] em virtude de sua proximidade com a ideia de competição e de
competitividade (SILVA, 2008). Esse discurso, agora revigorado, é
retomado em meio às mesmas justificativas, de que é necessário adequar
a escola a supostas e generalizáveis mudanças do “mundo do trabalho”,
associadas de modo mecânico e imediato a inovações de caráter tecnológico
e organizacional. (SILVA, 2018, p.11, grifo nosso)

A autora destaca ainda que as noções de competências e habilidades


remetem à competição via mercado e sujeitam os indivíduos a uma formação
voltada para o controle instrumental, ignorando o caráter histórico-cultural
da formação humana, os processos de diferenciação e autonomia. Na tentativa
de padronizar processos educativos, as competências “[...] visam o controle
das experiências dos indivíduos e das experiências das escolas”, por meio de
avaliações tanto da aprendizagem quanto do desempenho dos professores
(SILVA, 2018, p.11).
As discussões em torno das competências e das áreas de conhecimento,
em detrimento das disciplinas curriculares, anunciam o objetivo de “quebrar
a centralidade das disciplinas no processo de ensino-aprendizagem” (BRASIL,
2018b, p.39). As disciplinas são tidas como atrasadas, descoladas da realidade
juvenil e em quantidade excessiva. Para Lopes (2019, p.63), a proposta de
flexibilização e integração curricular tratada na reforma e na BNCC não
cumpre seu objetivo, “[...] pelo contrário, tende a ser restritiva de possibilidades
de integração curricular por tentar controlar o projeto de vida dos jovens
estudantes por meio de metas fixadas a priori”. Na compreensão da autora, se as

53
comunidades disciplinares não receberem apoio durante a implementação da
reforma e na construção dos currículos das redes, considerando suas condições
de trabalho e suas identificações docentes, esta nova arquitetura do Ensino
Médio não alcançará a integração curricular anunciada no documento.
Além disso, a reforma também é pautada por planos de avaliação e
padronização da aprendizagem, sob a alegação de equiparar a qualidade da
educação brasileira a outros países, “o discurso a respeito da baixa performance
de alunos em sistemas de avaliação de larga escala é recorrentemente utilizado
para justificar a necessidade de reformas educacionais” (CORTI, 2019, p.5). É
importante destacar que a Lei 13415/17 aumentou o tempo de permanência dos
alunos na escola, indicando a organização em período integral como prioritária
para esse nível de ensino. Ao estipular que estados e municípios serão os
responsáveis pela organização e implementação dos itinerários formativos, em
consonância com a BNCC, o texto da Lei não define a forma como deverão
fazê-lo. Em nossa interpretação, fica evidente que as próprias redes deverão
organizar-se a partir de suas estruturas materiais e profissionais já existentes,
ficando a cargo da União somente as transferências de recursos, via Fundo
Nacional do Desenvolvimento da Educação – FNDE.
Apple (2013, p. 88) afirma que um currículo nacional fomenta a prática de
“criação de um procedimento que pode supostamente dar aos consumidores
escolas com ‘selos de qualidade’ para que as ‘forças de livre mercado’ possam
operar em sua máxima abrangência”. Os resultados podem ser catastróficos,
agravando ainda mais as desigualdades sociais dentre as escolas.
A reforma em curso no estado de São Paulo mostra que a realização
dessas políticas é mais complexa do que afirmam os discursos que as embasam.
A política curricular, ao alcançar os contextos da prática escolar – desde
secretarias estaduais até o cotidiano das salas de aula –, é ressignificada de
acordo com seus processos hegemônicos, resistências e condições materiais
particulares. Ball, Maguire e Braun (2016) denominam este fenômeno de “a
política em atuação”.
Atuar na política significa compreendê-la a partir de um movimento
dinâmico, para além do normativo. Assim, ela é um processo diverso, contestado
e traduzido conforme a atuação dos interessados envolvidos, ao invés da
implementação direta e incontestada. Num processo coletivo e colaborativo,

54
a escola é parte das diferentes trajetórias e argumentos que tensionam a ação
do curso da política.

O caso de São Paulo: primeiros passos da Reforma


De acordo com Sanfelice (2010), embora se tenha convencionado dizer
que a vida partidária dos políticos brasileiros não se define exatamente por
uma forte identidade ideológica entre eles e os programas dos partidos aos
quais pertencem, os últimos governantes do executivo paulista tiveram e
continuam tendo uma inspiração ideológica razoavelmente comum. Apesar
de algumas nuances administrativas, o estado de São Paulo conseguiu manter,
desde 1995, coerência ideológica e sequência gerencial, sobretudo no campo
da educação, com destaque para a implementação das políticas neoliberais,
especialmente aquelas orientadas pelos organismos internacionais a partir
da década de 1990.
Como exemplo desse alinhamento podemos citar a Proposta Curricular
implementada em 2008 como parte do programa “São Paulo Faz Escola”
(SPFE). É interessante observar que, embora o documento curricular nacional
que vigorava naquele momento fossem as Orientações Curriculares Nacionais
(OCN) de 2006, a Proposta Curricular do estado estava ancorada, em sua maior
parte, nos documentos federais da década de 1990: as Diretrizes Curriculares
Nacionais – DCN – e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Outro
exemplo pode ser percebido quando a proposta paulista toma como referência
habilidades do Enem que já haviam sido reformuladas, conforme expresso
no texto introdutório do documento curricular de 2008: “Este Currículo
adota como competências para aprender aquelas que foram formuladas no
referencial teórico do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem, 1998)” (SÃO
PAULO [Estado], 2012, p.18). Em 2012, a Proposta Curricular passou a ser
designada Currículo Oficial do Estado de São Paulo, sem que houvesse qualquer
alteração no texto de referência ou nos materiais de apoio. Apenas em 2019
a Secretaria de Educação reorganizou seu documento curricular, desta vez
para se adequar à BNCC.
Com as mudanças nas políticas educacionais do Ministério da Educação,
geradas a partir do impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016,
aprofundou-se o alinhamento entre a política do Ministério da Educação e a

55
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEE/SP). Nomes relacionados
à SEE/SP ao longo das últimas décadas voltaram a ocupar cargos no MEC,
e as competências e habilidades, as teorias pedagógicas que marcaram os
documentos curriculares nacionais dos anos 1990 e o Currículo Oficial de São
Paulo se fazem presentes na BNCC. Alguns aspectos da reforma do Ensino
Médio, em especial o apontamento para a reorganização desse nível de ensino
a partir de itinerários formativos, já eram cogitados como alternativa para
a rede estadual paulista desde 2012. Quando a SEE divulgou o programa de
“Reorganização do Ensino Fundamental e do Ensino Médio”, cuja terceira
parte trazia a proposta de uma mudança na matriz curricular da última etapa
da Educação Básica, já estava ali presente a proposta de diversificação desse
nível de ensino a partir das grandes áreas do conhecimento. Sob a justificativa
de que o Ensino Médio não atenderia às particularidades e expectativas da
faixa etária, a SEE elaborou um conjunto de ações com vistas a “promover a
melhoria das condições das escolas públicas estaduais que oferecem esse ensino”
(SÃO PAULO [Estado], 2012), dentre elas, a revisão da matriz curricular do
Ensino Médio. Essa nova matriz ofereceria, conforme o documento orientador,
[...] melhores condições para a realização de um trabalho pedagógico
diferenciado, mais atrativo, significativo e dinâmico, centrado nos
seguintes eixos estruturadores – Identidade, Diversidade e Autonomia,
Interdisciplinaridade e Contextualização, propiciando, assim, a superação
de práticas curriculares fragmentadas. (SÃO PAULO [Estado], 2012, p.61)

A Figura 1 traz um dos três modelos de matriz curricular para o Ensino


Médio público paulista no período diurno. Nesse modelo, com ênfase em
“Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias”, haveria uma diminuição
de aulas de Língua Portuguesa (uma na 1.ª série e duas na 2.ª e 3.ª série) e
Matemática (uma na 1.ª e 3.ª série e duas na 2.ª série) e o aumento de aulas de
Biologia (uma na 3.ª série), Física (uma na 1.ª e uma na 3.ª série) e Química (uma
aula a mais na 2.ª série e outra na 3.ª série). A mudança na matriz curricular
proposta nessa ocasião foi mais sutil, apenas com algumas alterações na carga
horária de disciplinas que não interferiam na estrutura e na organização do
Ensino Médio.

56
Figura 1: Modelo de Matriz Curricular: Formação Básica com Ênfase em Ciências da Natureza,
Matemática e suas Tecnologias – Período Diurno. Fonte: São Paulo (2012, p. 65).

De acordo com o documento, essa mudança traria uma distribuição


mais equitativa da carga horária entre as áreas na 1.ª e na 2.ª séries e uma
concentração da carga horária por área na 3.ª série do Ensino Médio (EM),
possibilitando ao aluno optar por uma área que atendesse aos seus interesses
e necessidades (SÃO PAULO [Estado], 2012). Essa proposta de alteração e
flexibilização da matriz curricular não chegou a ser efetivada. No entanto,
chama a nossa atenção o fato de que parte das justificativas que fundamentavam
esta proposta paulista esteja presente nos documentos federais referentes à
Reforma do Ensino Médio, tanto na MP 746 como na Lei 13415/2017.

57
Além disso, outra forte sintonia entre o que já vinha ocorrendo na política
curricular do Ensino Médio paulista e as atuais orientações federais está na
centralidade de competências socioemocionais, que se consolidam desde a
parceria firmada entre o estado de São Paulo e o Instituto Ayrton Senna (IAS) a
partir de 1994. Segundo Gomide (2019, p. 298), desde esse momento o Instituto
tem assumido o pioneirismo nas parcerias com a educação formal. Através
de sua fundadora, Viviane Senna, ele tem atuado como “agente econômico
de importante influência no campo educacional; sobretudo no que se refere
à aprendizagem, gestão, educação de jovens e tecnologias sociais; porém a
partir dos conceitos de eficiência e eficácia, importados do campo empresarial”.
Dentre as competências socioemocionais presentes nos diferentes materiais
do IAS, ganha grande destaque e visibilidade o estímulo ao desenvolvimento
da resiliência. Krawczyk e Zan (2021) apontam para a possibilidade de que
investir na aquisição dessas competências, em especial no caso da resiliência,
esteja em sintonia com um projeto maior – e que está em curso pelo menos
desde os anos de 1990 – de reeducar os sujeitos para maior adequação à atual
forma de organização do mercado de trabalho.
Em 2018, o empresário João Dória foi eleito governador de São Paulo, sendo
o sétimo mandato seguido do PSDB no estado. Desde então, o advogado Rossieli
Soares, ex-ministro da educação do governo Temer, assumiu a Secretaria
da Educação. Importante ressaltar que, antes de ser nomeado Ministro da
Educação, Rossieli Soares foi secretário de Educação Básica do Ministério
(2016-2018), tendo forte atuação no processo de produção da atual reforma
do Ensino Médio (MP 746/2016 e Lei 13415/2017) e nos debates da BNCC para
esse nível de ensino (GOMIDE, 2019).
É possível afirmar que a escolha de Rossieli para a Secretaria de Educação
está alinhada às políticas neoliberais em curso no governo federal, uma vez que
ele será o secretário responsável por conduzir a Reforma do Ensino Médio em
São Paulo. Quando assumiu o comando da Secretaria de Educação do Estado
(SEDUC), o Secretário havia acabado de homologar a BNCC do Ensino Médio
(14/12/2018) como Ministro da Educação. No caminho de implementação da
Reforma que tem sido conhecida como o “Novo Ensino Médio” no estado, uma
ação de destaque da Secretaria de Educação de São Paulo foi a Resolução de
14/01/2020 (SÃO PAULO [Estado], 2020b) que homologou a Deliberação CEE

58
175/2019. O texto “dispõe sobre Orientações para fins de implementação da Lei
13.415/2017, especificamente no que se refere ao Ensino Médio no Sistema de
Ensino do Estado de São Paulo”. A Resolução reitera a adequação do currículo
à BNCC, em especial no que se refere às competências nos âmbitos cognitivo,
cultural e socioemocional, combinando formação geral e parte diversificada,
constituída pelos itinerários formativos:
Artigo 4.º - O currículo deverá ser organizado de modo a atender a formação
geral básica, tendo como referência a Base Nacional Comum Curricular
combinada com uma Parte Diversificada (PD), constituída esta pelos itinerários
formativos, nos termos da Lei 13.415/2017, que alterou e acrescentou artigos
à LDB.

A Deliberação CEE 175/2019 ressalta que “a combinação da BNCC com os


Itinerários Formativos deve resultar em renovação e inovação, a ser viabilizada
pela perspectiva de maior abertura, ou flexibilidade, não de modo automatizado
ou para o simples cumprimento de cargas horárias”. Esses documentos deixam
claro que em São Paulo há uma forte sintonia entre o que já se vinha desenhando
para esse nível de ensino na rede estadual paulista e as atuais orientações
federais. Embora em 2019 a Secretaria não tenha apontado especificamente
a direção que a Reforma do Ensino Médio teria no estado, algumas ações
permitem vislumbrar movimentos da SEDUC rumo à adequação da rede à
BNCC e à Lei 13415/2017: o Plano Estratégico para o Século XXI e a incorporação
de programas já existentes na rede, como os Programas Novotec e Inova
Educação, na atual política para toda a rede de Ensino Médio (SÃO PAULO
[Estado], 2019c). A seguir nos atentaremos a essas ações mais recentes.

O Plano Estratégico (2019-2022) para o Século XXI e a


Reforma do Ensino Médio
Em 03 de julho de 2019 a Secretaria de Educação do Estado (SEDUC)
apresentou o “Plano Estratégico 2019-2022 para o Século XXI”. Nesse documento,
a principal meta da SEDUC é que, até 2022, São Paulo seja líder no ranking
produzido pelo Índice de Desenvolvimento da Educação no Brasil (IDEB),
ressaltando que “uma educação para o século XXI pressupõe desenvolver não
somente habilidades cognitivas, mas também habilidades socioemocionais,

59
conforme previsto na Base Nacional Comum Curricular” (SÃO PAULO
[Estado], 2019b, p.18). A preocupação com os indicadores nacionais demonstra
uma mudança no enfoque da secretaria, uma vez que até então o foco das
metas estava nas avaliações e nos indicadores estaduais, o SARESP e o IDESP.
O Plano se organiza em três seções. Na primeira, é feita uma caracterização,
a partir da apresentação de dados, sobre a rede pública estadual paulista e seus
desafios – trazendo tópicos sobre como atingir metas em avaliações externas;
aprimorar a gestão de pessoas e da rede de ensino que, de acordo com o Plano,
passa por “modernizar, informatizar e sistematizar as atividades operacionais
de suporte, como alimentação escolar, transporte escolar, limpeza, manutenção
e obras” (SÃO PAULO [Estado], 2019b, p. 13), ‘racionalizar’ gastos públicos etc.
Na segunda seção do documento, são expostos os valores, a missão, as
estratégias escolhidas, as prioridades e as metas do Plano. Dentre as prioridades
são elencados diversos projetos: a Gestão da Aprendizagem; os programas
Educa São Paulo, Inova Educação, Educação em Tempo Integral; e o regime de
colaboração entre redes estadual e municipal. O Inova Educação foi lançado
antes do Plano, mas foi incorporado a ele, como também ocorreu com o
Novotec.
Por fim, na terceira parte, são destacados os modelos de gestão e governança
do projeto, dividido em metas trimestrais e anuais, com monitoramento
das ações em curso, através de uma plataforma centralizada, o Sistema de
Monitoramento do Governo do Estado de São Paulo39. O processo de gestão
que dá sustentação a esta proposta é assim definido:
Semanalmente, serão realizadas reuniões dos líderes de projeto com suas
equipes, assim como dos líderes de projetos com os coordenadores da
secretaria e destes com o secretário da pasta, secretário executivo e chefe
de gabinete para apresentação do andamento das ações e deliberações
necessárias. Mensalmente, será realizada reunião com o Conselho de Gestão
e, bimestralmente, com o Conselho Estadual de Educação para discussão do
andamento dos projetos prioritários. Por fim, trimestralmente, será realizada
reunião com o Governador para apresentação do andamento dos projetos e
do atingimento das metas trimestrais. (SÃO PAULO [Estado], 2019b, p. 37)

39 Disponível em: www.monitoramento.sp.gov.br

60
A seguir, nos centraremos no projeto “Educa São Paulo”, por entendermos
que ele, para além de expressar um ponto de diálogo entre as formulações da
SEDUC e as diretrizes educacionais nacionais, foi implementado com o objetivo
de criar espaços de transmissão das diretrizes e novos projetos da Secretaria para
as regiões. O Educa São Paulo aparece como projeto destinado especificamente
ao Ensino Médio, e “abarca três frentes articuladas: i) a integração com as
aspirações dos jovens; ii) a integração com a educação profissional, por meio
do NovoTec; iii) a integração com o ensino superior” (SÃO PAULO, 2019a,
p. 24). Assim, de acordo com o documento, seria possível oferecer conteúdo
que desse sentido às trajetórias dos jovens. Nessa direção, é feita mais uma
referência à BNCC e à Lei 13415/2017:
A flexibilização curricular busca aproximar o Ensino Médio da realidade dos
estudantes, fazendo com que essa etapa os prepare melhor para o mundo do
trabalho e para a construção e a realização de seus projetos de vida. O novo
modelo permitirá que o estudante escolha a(s) área(s) de conhecimento
para aprofundar seus estudos, estimulando o protagonismo e a autonomia.
Os itinerários formativos são um dos caminhos para ressignificar a etapa,
aumentando sua atratividade, de forma a reduzir as taxas de abandono e evasão.

A secretaria implementará um novo modelo pedagógico para o Ensino


Médio que, construído de forma participativa, garanta a todos os estudantes a
possibilidade de escolha por um percurso formativo aprofundado, aliando uma
formação geral básica com diferentes possibilidades de itinerários formativos,
associados aos anseios e aos projetos de vida dos estudantes. (SÃO PAULO
[Estado], 2019b 2019, p.24, grifos nossos)

Dessa forma, o documento enfatiza que o programa disponibilizará


cursos extraclasse de até 200 horas nas universidades, públicas ou privadas,
e estarão em consonância com a BNCC e com os interesses da comunidade
escolar. Porém, ainda que o “Educa São Paulo” tenha, de fato, apresentado
atividades conjuntas com universidades paulistas40, o foco dado para essa
medida, ao longo de sua implementação, acabou se mostrando distinto do
inicialmente afirmado. Isto porque o projeto previa a realização de encontros

40 Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/retrospectiva-educasp-leva-alunos-da-rede-


estadual-vivenciarem-graduacao/. Acesso em: 05 dez. 2019.

61
regionais (Seminários “Educa São Paulo”) para apresentação das propostas e
garantia de seu caráter “democrático”. No entanto, ao longo de 2019 e 2020,
esses seminários serviram como instrumento de capitalização e legitimação
de outras políticas educacionais – como veio a ser confirmado no documento
final do Currículo Paulista do Ensino Médio41.
Em agosto de 2019 as Diretorias de Ensino foram orientadas a realizar os
encontros regionais denominados “Educa São Paulo”, de forma centralizada
pelas Diretorias de Ensino ou descentralizados nas escolas, que deveriam
contar com grupos em que se reunissem separadamente alunos e professores42.
Cabe assinalar que, no momento de realização desses seminários, tanto
professores como estudantes tinham poucas informações que possibilitassem
uma discussão fundamentada sobre a reforma do Ensino Médio e sobre os
itinerários formativos. Também não havia, naquele momento, nitidez sobre
o que seriam as disciplinas eletivas. Mesmo assim, esses seminários foram
utilizados como argumentos de legitimação das mudanças na estrutura da
educação básica em São Paulo.
No dia 10 de março de 2020, representantes das Diretorias de Ensino
foram convocados pela primeira vez pela SEDUC para tratar especificamente
do tema da reforma do Ensino Médio e Curricular a partir da BNCC e da
Lei 13415/2017. A partir da apresentação de diversos dados – inclusive dos
“resultados” provenientes dos seminários – a Secretaria informou que seria
iniciada uma consulta pública sobre o Currículo Paulista do Ensino Médio
(CPEM). Após a Consulta, finalizada em abril de 2020, o documento foi revisto
e encaminhado para a aprovação do Conselho Estadual de Educação (CEE),
e sua versão definitiva foi votada em agosto de 2020, em plena pandemia e
logo após a suspensão de atividades presenciais na rede estadual de ensino.

41 D i sp on ível em : ht t ps://w w w.yout ub e .c om /w atch? v=vEQYjl- CK z I& ab _


channel=DIRETORIADEENSINODEREGISTRO. Acesso em: 12 set. 2019.
42 Os registros da pesquisa de campo mostram que as perguntas encaminhadas para orientar a
discussão com os estudantes foram: “Você gostaria de poder se aprofundar em algum componente
curricular? Se sim, qual(is)?”,​“Você gostaria de ter oportunidade de fazer cursos técnicos? Se sim,
qual(is)?”,​“Quais eletivas você gostaria de cursar?”,​“Quais pontos de melhoria na sua escola você
gostaria de discutir hoje?”​. Na mesma direção, os professores foram perguntados: “Você já teve
experiência de aprofundamento curricular com seus estudantes? Se sim, contar como foi” “Quais
habilidades você julga fundamental um aluno do Ensino Médio desenvolver?”,​“Quais pontos de
melhoria na sua escola você gostaria de discutir hoje?”.

62
O Currículo Paulista para o Ensino Médio (CPEM) (SÃO PAULO [Estado],
2020a) foi aprovado pelo CEE com um total de 3150 horas e manteve os
componentes curriculares que compunham o currículo anterior, enquadrando-
os como parte da Formação Geral Básica, disponibilizada para todas/os
estudantes e ocupando 1800 horas do Ensino Médio. As outras 1350 horas
são destinadas aos Itinerários Formativos, organizados a partir das 4 áreas de
conhecimento presentes na formação geral (Linguagens, Matemática, Ciências
Humanas e Ciências da Natureza) e de possíveis combinações entre as áreas,
compondo 6 Itinerários integrados (Linguagens e Matemática; Linguagens e
Ciências da Natureza; Linguagens e Ciências Humanas; Matemática e Ciências
Humanas; Matemática e Ciências da Natureza; Ciências Humanas e Ciências
da Natureza). Além das 11 possibilidades de itinerários formativos a partir das
áreas de conhecimento e de combinações entre elas, também será oferecido,
para algumas escolas, o Itinerário Técnico e Profissional. Os 3 componentes
curriculares do Inova (Eletivas, Tecnologia e Projeto de vida) integram a carga
horária dos Itinerários Formativos.
Importante ressaltar o compromisso com o desenvolvimento de
competências e habilidades que está expresso no atual documento curricular
do estado. São compreendidas no mesmo sentido do que está presente na
BNCC, ou seja, a capacidade que o estudante deve adquirir de mobilizar
conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver “demandas
complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo
do trabalho” (BRASIL, 2018, apud SÃO PAULO [Estado], 2020a, p. 30). Em
especial, a forte presença das habilidades socioemocionais, compreendidas,
de certo modo, como a aquisição, por parte dos jovens estudantes, do manejo
das emoções, da aprendizagem necessária para lidar e reorientar as emoções,
de modo a fortalecer o indivíduo e o desenvolvimento da empatia pelo outro
(SILVA, 2018).
O texto introdutório do Currículo do Ensino Médio aponta a ampla
participação de estudantes e professores no processo de elaboração do
documento:
Visando garantir a qualidade e as especificidades do território, a Secretaria da
Educação, junto às Diretorias de Ensino, realizou 1.607 seminários regionais,
ao longo do ano de 2019, para debater as propostas de flexibilização curricular

63
para o Ensino Médio. No total, 142.076 estudantes e 18.739 profissionais da
educação participaram desses debates que trouxeram insumos para a versão
preliminar do currículo. Os seminários contaram com a participação de
estudantes do 8º e 9º anos do Ensino Fundamental e das três séries do Ensino
Médio, das redes municipais, privada e estadual.

Além disso, foi aplicado um questionário, com a participação de 165.252


estudantes da rede estadual, para o mapeamento dos seus anseios a fim de
subsidiar a construção do currículo. (SÃO PAULO [Estado], 2020a, p.19)

Porém, a participação dos docentes, dos estudantes ou da sociedade


era através de perguntas gerais, como no caso dos seminários (ver nota 9)
ou das perguntas sobre a pertinência ou não do currículo, clareza ou não de
uma habilidade previamente elaborada. Os questionários disponibilizados
aos professores na Secretaria Escolar Digital continham questões pontuais
sobre o texto curricular já elaborado, ou seja, a participação incentivada pela
SEDUC se restringia à emissão de opiniões a partir da interpretação do texto.
Nesse sentido, por exemplo, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do
Estado de São Paulo (Apeoesp) publicou materiais nos quais denunciava que as
mudanças curriculares implementadas pelo governo privilegiam a participação
de agentes ligados ao setor privado, e, ao mesmo tempo, impossibilitam a
construção de propostas oriundas de movimentos sociais que tragam posições
contrárias ao modelo defendido pela Secretaria, elaborado em consonância
com os parceiros do setor privado que têm atuado nas políticas educacionais
do estado (APEOESP, 2019).
Nesse sentido, podem-se perceber exemplos nos quais conceitos como
“democracia” ou “gestão democrática” são utilizados pela SEDUC de modo
instrumental, elaborando projetos educacionais organizados em conjunto
e em acordo com os interesses do setor privado, mas apresentados como se
fossem síntese da vontade coletiva, do bem comum, expressando o interesse
da comunidade escolar. Portanto, são necessários estudos que analisem
profundamente esses documentos e seu método de elaboração, de modo a
evitar a naturalização de interesses particulares apresentados como consenso
social.

64
O Novotec e suas variações
Em 19 de janeiro de 2019, poucos dias depois da mudança na direção
da pasta da educação, foi publicada a Resolução SE n. 2, de 18/01/2019, que
dispõe sobre a organização de cursos do Ensino Médio articulados à Educação
Profissional de Nível Técnico (SÃO PAULO [Estado], 2019a). O programa
Novotec tem foco na oferta de cursos profissionalizantes voltados aos estudantes
de Ensino Médio das escolas estaduais paulistas. Esses cursos seriam oferecidos
em unidades escolares da rede estadual de ensino em parceria com o Centro
de Educação Tecnológica Paula Souza (CPS)43. Nesse programa, o aluno teria
duas matrículas simultâneas: uma na escola da rede estadual e outra no CPS44.
O programa prevê o oferecimento de cursos de formação profissional pelo
Centro Paula Souza em quatro modalidades, com diferentes cargas horárias:
Novotec Integrado, Novotec Expresso, Novotec Virtual e Novotec Móvel. A
justificativa para o programa seria a alta taxa de desemprego entre os jovens
de 18 a 24 anos registrada no estado, o que, segundo o discurso da secretaria,
se explicaria pelo baixo acesso desses jovens a cursos profissionalizantes.
O Novotec Integrado oferece o curso técnico integrado às aulas do Ensino
Médio de forma concomitante. Ao longo dos três anos do Ensino Médio as
aulas previstas na matriz curricular – lecionadas pelos professores da escola
estadual – diminuem, e a carga horária das disciplinas vinculadas ao curso
técnico, lecionadas por professores do Centro Paula Souza, é ampliada. Como
descrito no artigo 2.º da Resolução SE 2, de 18/01/2019, “as matrizes curriculares,
objeto do Anexo II, integrante da presente resolução, foram organizadas
com vistas a assegurar ao aluno os mínimos curriculares necessários à sua
formação geral”.
As 3 modalidades seguintes começaram a ser ofertadas ainda em 2019,
através de cursos de qualificação profissional para os estudantes do Ensino
Médio: o Novotec Expresso oferece cursos presenciais semestrais de 120 horas

43 O Centro Paula Souza (CPS) é uma autarquia do Governo do Estado de São Paulo, vinculada
à Secretaria de Desenvolvimento Econômico. A instituição administra 223 Escolas Técnicas (Etec)
e 73 Faculdades de Tecnologia (Fatec) estaduais, com mais de 300 mil alunos em cursos técnicos
de nível médio e superior tecnológicos. O ingresso nas Etec se dá por meio de processo seletivo.
44 Maiores detalhes sobre esse programa serão tratados no artigo “O Centro Paula Souza e suas
relações com a implementação da reforma do ensino médio no estado de São Paulo”, que compõe
esta publicação.

65
e duração de um semestre, cursados de forma concomitante ao Ensino Médio.
O Novotec Virtual utiliza a plataforma da Universidade Virtual do Estado de
São Paulo (Univesp) para a oferta das modalidades semipresencial e totalmente
online, funcionando em módulos de 100 horas cada e com o acompanhamento
de tutores. Por fim, o Novotec Móvel oferecerá cursos profissionalizantes
rápidos, de 80 a 100 horas, realizados em até um mês, através de unidades
móveis (carretas que circulam pelo Estado).
Quando a Secretaria lançou o programa em 2019, estabeleceu como
meta alcançar 400 mil matrículas por ano nos cursos do Novotec até 2022.
No momento de seu lançamento, a ênfase na formação profissional não se
relacionava diretamente à Reforma do Ensino Médio. No entanto, no ano
seguinte o Novotec passou a ser apresentado como um dos itinerários a serem
ofertados pela SEDUC, como o itinerário técnico e profissional (no caso do
Novotec integrado) ou como parte da carga horária nos demais itinerários45.
Para Piolli e Sala (2019, p.189),
a opção do governo paulista de começar a Reforma do Ensino Médio pelo
itinerário profissionalizante denota o tipo de educação tecnicista que ele
busca implementar. Na falta de maiores informações do que seriam os outros
itinerários formativos, o governo optou por iniciar sua reforma pelo itinerário
que tem maior demanda e aceitação por parte da população em geral.

Através do Novotec buscava-se delegar parte da formação da educação


básica para o Centro Paula Souza (CPS) e demais parcerias, inclusive
a instituições privadas. Os autores supracitados avaliam que o programa
teria também um grande impacto nas unidades do CPS, levando ao risco
de reduzir a instituição a uma mera auxiliar na implementação do itinerário
profissionalizante na reforma da rede estadual, colocando em risco a história
e a tradição da formação técnica qualificada que o Centro oferece.

O Programa Inova
Em 06 de maio de 2019 o governador João Dória e o Secretário de Educação
do Estado, Rossieli Soares, apresentaram outro programa que teve grande
impacto na rede estadual e na Reforma do Ensino Médio em São Paulo: o

45 Disponível em: http://www.novotec.sp.gov.br/

66
Inova Educação. Com o discurso de ampliar as experiências das escolas do
Programa de Ensino Integral46 (PEI) o governo estabeleceu que, a partir de
2020, todos os estudantes da rede estadual matriculados do 6.º ao 9.º ano
do Ensino Fundamental e no Ensino Médio cursariam mais três disciplinas
assim distribuídas: Eletivas com duas aulas semanais, Projeto de Vida47 com
duas aulas semanais e Tecnologia com uma aula semanal. Eletivas e Projeto
de Vida são disciplinas que fazem parte da matriz curricular das escolas do
PEI criadas em 2012.
No site do Inova Educação48, esse programa é assim descrito:
O Programa traz inovações para que as atividades educativas sejam mais
alinhadas às vocações, desejos e realidades de cada um. Novidades essenciais
para promover o desenvolvimento intelectual, emocional, social e cultural dos
estudantes; reduzir a evasão escolar; melhorar o clima nas escolas; fortalecer
a ação dos professores e criar novos vínculos com os alunos.

Nas aulas de Tecnologia, segundo o site, os estudantes irão “aprender na


prática a usar e criar tecnologias para desenvolver seus próprios projetos”.
Em Projeto de Vida, teriam “atividades e oficinas que apoiam o estudante
no planejamento na escola e no seu futuro” e, como disciplinas Eletivas, os
“estudantes escolhem, a cada semestre, as aulas para cursar, a partir do ofertado
pela escola” e elaborado pelos professores.
Para incluir 3 novas disciplinas com 5 aulas semanais na matriz curricular,
houve o aumento de 15 minutos no horário total do período diurno (tanto
de manhã como de tarde) e uma diminuição de 5 minutos de cada aula das
disciplinas que já existiam. Desta forma, os estudantes passaram a ter 7 aulas
de 45 minutos por período, ao invés de 6 aulas de 50 minutos, e o tempo de
permanência na escola se estendeu por mais 15 minutos diários. De 30 aulas
semanais passaram a ter 36 aulas. As aulas do período noturno já eram de 45
minutos e não foram alteradas.

46 O Programa de Ensino Integral foi lançado em São Paulo em 2012, como uma das ações do
Programa Educação - Compromisso de São Paulo.
47 O componente curricular de Projeto de Vida é um dos principais eixos desta reforma educacional,
cujo debate será aprofundado em outro capítulo desta publicação.
48 Disponível em: https://inova.educacao.sp.gov.br/

67
Quadro 1 – Exemplo de matriz curricular da 1.ª Série do Ensino Médio
antes e depois do Inova Educação
Matriz Curricular da 1.ª Matriz Curricular da 1.ª
Série do EM (2019) Série do EM (2020)
Aulas Semanais de Disciplina Aulas Semanais Disciplina
50 minutos de 45 minutos
2 aulas Arte 2 aulas Arte
2 aulas Biologia 2 aulas Biologia
2 aulas Educação Física 2 aulas Educação Física
2 aulas Filosofia 2 aulas Filosofia
2 aulas Física 2 aulas Física
2 aulas Geografia 2 aulas Geografia
2 aulas História 2 aulas História
2 aulas Inglês 2 aulas Inglês
5 aulas Língua Portuguesa 5 aulas Língua
Portuguesa
5 aulas Matemática 5 aulas Matemática
2 aulas Química 2 aulas Química
2 aulas Sociologia 2 aulas Sociologia
*********** *********** 1 aula Tecnologia
*********** *********** 2 aulas Eletiva
*********** *********** 2 aulas Projeto de Vida
30 aulas semanais 12 disciplinas 35 aulas semanais 15 disciplinas
Elaborado própria

Se a justificativa para o Inova Educação é ampliar as experiências das


escolas do Programa de Ensino Integral (PEI) para as escolas regulares, a
efetivação desse discurso se mostra incerta, considerando que não há indícios
de que o governo investirá na estrutura física e tecnológica das escolas ou
cederá algum tipo de compensação financeira a docentes – de modo a
possibilitar dedicação integral desses profissionais a uma única Unidade –,
como propagandeado no caso das escolas PEI. Além disso, cinco aulas semanais
a mais em cada turma significam importante demanda de professores, já em

68
déficit na rede estadual. Caso não haja a realização de novos concursos ou a
contratação emergencial de novos docentes, a proposta poderá implicar na
pulverização dos professores entre disciplinas escolares das diferentes áreas
do conhecimento e, nem sempre, relacionadas à sua graduação. Outro ponto
sensível é a infraestrutura precária da maioria das escolas, inclusive no que
diz respeito às ferramentas tecnológicas.
Como afirma Gomide (2019), o Programa Inova Educação é uma política
de governo desenvolvida em parceria com o Instituto Ayrton Senna, que
está presente na elaboração da política para o ensino integral em São Paulo
(PEI) e também na BNCC. Nesse sentido, o Inova incorpora o discurso das
competências socioemocionais, que busca adaptar a formação da juventude
da classe trabalhadora para o mercado de trabalho, trazendo a adaptabilidade
em seu fundamento (KRAWCZYK; ZAN, 2021; PIOLLI; SALA, 2019).
Para que os professores pudessem assumir aulas dos componentes
curriculares do Inova eles deveriam realizar um curso online de 30 horas,
referente a cada um deles. Essa formação básica seria seguida por um curso
de aprofundamento, com mais 30 horas, perfazendo um total de 60 horas por
componente do Inova. Esses cursos de preparação dos professores seriam
oferecidos pela Escola de Formação dos Professores da Educação Paulo Renato
de Souza (EFAPE)49. Se, no momento de lançamento do Inova, existia uma
forte participação do IAS na secretaria, com a presença constante de Viviane
Sena em diversos eventos promovidos pela SEE/SP e nos cursos voltados
para os professores, foi possível observar um alinhamento também com o
Instituto Porvir.
Em 2020 as disciplinas do Inova passaram a fazer parte da matriz curricular
das escolas, e uma das principais previsões de quem tem acompanhado esse
processo a partir das escolas se realizou: não havia professores habilitados
através dos cursos, em número suficiente para que essas aulas fossem atribuídas.
Os diretores de escola e os professores estavam diante da difícil escolha entre
privilegiar as disciplinas da formação básica ou as disciplinas do Inova, no
momento de atribuição das aulas.
49 A Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação do Estado de São
Paulo “Paulo Renato Costa Souza” (EFAPE), da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
(SEE-SP), foi criada em 2009, para oferecer cursos de formação continuada aos funcionários da
SEE-SP, combinando ensino a distância, por meio do sistema de videoconferências da Rede do
Saber. Disponível em: https://efape.educacao.sp.gov.br/

69
Nesse mesmo ano as Eletivas foram as disciplinas com menor adesão
dos professores no momento de atribuição de aulas, especialmente entre os
efetivos50. Importante observar que, enquanto Tecnologia e Projeto de Vida
contam com Cadernos de Atividades e oficinas elaborados pela Secretaria,
as Eletivas são disciplinas semestrais, elaboradas pelos próprios professores,
que devem organizar a ementa e o planejamento do curso que irão oferecer,
a partir dos interesses dos alunos, especialmente aqueles indicados em seus
“projetos de vida”. A orientação inicial para as disciplinas eletivas era que
fossem ofertadas para todas as turmas do Ensino Médio da escola no mesmo
horário, a fim de possibilitar a reenturmação51 entre estudantes de diferentes
séries, como ocorre nas escolas PEI. O aluno escolhe a Eletiva que quer cursar
naquele semestre a partir de um “Feirão de Eletivas”, de um “cardápio” das
disciplinas oferecido pela escola. Dessa forma, quanto maior o número de
salas de aula, maior a quantidade necessária de docentes responsáveis por
esse componente curricular, uma vez que essas aulas deveriam ser ministradas
concomitantemente – o que demonstra as dificuldades operacionais do projeto.
Como nem todos os professores completaram suas jornadas com aulas do
Programa Inova Educação, as deliberações a respeito da atribuição da carga
horária dessas disciplinas foram flexibilizadas, e professores que não tinham
realizado o curso de formação específica mencionado anteriormente puderam
ter aulas atribuídas para Projeto de Vida, Tecnologia e Eletiva, desde que
assumissem o compromisso de se inscreverem em uma nova edição do curso.
Mesmo assim, em maio de 2020, era possível observar centenas de aulas do
Inova ainda não atribuídas por falta de professores. Os dados das Diretorias
de Ensino da região de Campinas, consultados em 03/05/2020, dão conta
de que nesse período 13 aulas estavam ainda sem atribuição na Diretoria de
Ensino de Americana, 92 na Diretoria de Ensino de Sumaré e 14 na Diretoria
de Ensino Campinas – Leste.

50 Dados obtidos em consulta aos sites das Diretorias de Ensino Campinas Leste, Campinas
Oeste, Americana, Sumaré, realizada em 03 de maio de 2020.
51 Estratégia do sistema para matricular alunos nas disciplinas eletivas em turmas mistas, com
estudantes de diferentes anos do ciclo escolar, ao mesmo tempo em que estão matriculados em
sua turma tradicional.

70
Reflexões finais
Este artigo teve como objetivo apresentar mudanças que já estavam em
curso no estado de São Paulo e que se intensificaram, ao mesmo tempo em
que também foram redefinidas nos dois últimos anos, em consonância com
a BNCC e com a Reforma do Ensino Médio no âmbito federal.
No sentido de demonstrar as ferramentas utilizadas pela Secretaria de
Educação do estado de São Paulo para preparar a rede pública para essas
reformas – seja a partir da reorganização do currículo, seja através da preparação
das/os trabalhadoras/es –, foram destacados o Plano Estratégico para o Século
XXI focando, em especial, o “Educa São Paulo” e os programas Novotec e Inova.
Tanto o Novotec como o Inova Educação são programas que, segundo
a Secretaria de Estado, surgem como forma de responder às demandas
apresentadas por estudantes, professores e gestores nas várias enquetes já
realizadas e em encontros entre profissionais da rede e a SEDUC. Importante
ressaltar que as consultas às quais a Secretaria se refere, foram realizadas
de modo aligeirado e sem o fornecimento de informações suficientes para
os participantes (APEOESP, 2019), contribuindo para chancelar as políticas
adotadas. A partir desse levantamento de opiniões, a secretaria passou a
divulgá-las como sendo as necessidades elencadas pela própria rede.
Como exemplo, o programa Inova Educação, lançado em 06 de maio de 2019
foi anunciado como uma resposta às demandas explicitadas em uma consulta
pública realizada através de um questionário online enviado às Diretorias
de Ensino no dia 29 de abril daquele ano, que deveria ser encaminhado às
escolas para que fossem respondidos por estudantes e professores até 03 de
maio (Figura 2).

71
Figura 2: Fragmento do Boletim Semanal encaminhado aos gestores e professores pela SEDUC
para divulgar a consulta sobre a implementação da reforma. Enviado em 29 de abril de 2019.

Nesse sentido, é possível observar o movimento iniciado pelo governo


do estado em 2019 e a intensificação das ações desde 2020, com alterações
constantes, que têm gerado em professores, estudantes e gestores muitas dúvidas
e angústias. Isto quer dizer que, ainda que seja possível realizar reflexões como as
propostas neste texto, há diversos tópicos que merecem maior aprofundamento,
a partir, inclusive, das consequências que a implementação deste projeto
incidirá nas escolas.
Podemos também dizer que, diferentemente do que afirmam os setores
propositores dessas medidas, elas não são consensuais; ao contrário, carregam,
desde sua elaboração, questionamentos e contradições que se radicalizarão,
ao esbarrarem na realidade concreta das escolas.

72
As escolas, como afirma Apple (1995), são lugares de expressão das
diferentes lutas sociais, de concentração e explosão de contradições. Se, por
um lado, as políticas educacionais são elaboradas com base nas exigências do
capital, por outro, no cotidiano escolar, há uma enorme diversidade de sujeitos
sociais que lutam de diversas formas, em defesa de seus direitos e interesses.
As escolas, portanto, não são somente espaço de reprodução e, tampouco, as
políticas curriculares são implementadas sem a expressão das resistências e
da atuação da ressignificação de seus sentidos.

Referências bibliográficas
APEOESP. Inova Educação é imposto pelo velho método autoritário. Apeoesp
Urgente, n. 28, 2019. Online. Disponível em: http://www.apeoesp.org.br/
publicacoes/apeoesp-urgente/n-28-inova-educacao-e-imposto-pelo-velho-
metodo-autoritario/. Acesso em: 03 abr. 2021.
APPLE, M. W. Trabalho docente e textos: economia política das relações de
classe e de gênero em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
APPLE, M. W. Ideologia e currículo. 3. ed. Porto Alegre, RS: ARTMED, 2006.
APPLE, M. W. A política do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um
currículo nacional? In: SILVA, T. T. da; MOREIRA, A. F. B. Currículo, cultura
e sociedade. 2. ed. rev. São Paulo (SP): Cortez, 2013.
BALL, S. J.; MAGUIRE, M.; BRAUN, A. Como as escolas fazem as políticas:
atuação em escolas secundárias. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016.
BRASIL. Casa Civil. Lei 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/l9394.htm Acesso em: 19 out. 2020.
BRASIL. Projeto de Lei 6840 de 2013-A. Altera a Lei nº 9394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para instituir
a jornada em tempo integral no ensino médio, dispor sobre a organização
dos currículos do ensino médio em áreas do conhecimento e dá outras
providências, tendo parecer da Comissão Especial, pela constitucionalidade,
juridicidade e técnica legislativa; pela adequação financeira e orçamentária;
e, no mérito, pela aprovação deste, com substitutivo; pela rejeição do

73
de nº 7082/14, apensado, e pela inconstitucionalidade do de n° 7058/14,
apensado. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra;jsessionid=07B2A00572F05272A556376633D02316.pro
posicoesWeb2?codteor=1480913&filename=Avulso+-PL+6840/2013 Acesso
em: 21 out. 2020.
BRASIL. Medida Provisória 746, de 22 de setembro de 2016. Institui a Política
de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral,
altera a Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, e a Lei nº 11494 de 20 de junho 2007, que
regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2016/
medidaprovisoria-746-22-setembro-2016-783654-publicacaooriginal-151123-
pe.html Acesso em: 18 out. 2020.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 13415/2017, de 16
de fevereiro de 2017. Altera as Leis n º 9394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11494, de 20 de junho
2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis
do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5452, de 1º de maio de 1943, e
o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei nº 11161, de 5 de
agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas
de Ensino Médio em Tempo Integral. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Lei/l13415.htm Acesso em: 18 out. 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,
DF: MEC, 2018a.
BRASIL. Ministério da Educação. Guia de implementação da Base Nacional
Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018b.
CORSINO, L.; ZAN, D. D. P. A ocupação como processo de descolonização
da escola: notas sobre uma pesquisa etnográfica. Educação Temática Digital,
Campinas, SP. v.19, n.1, p.26-48, jan./mar. 2017.

74
CORSINO, L.; ZAN, D. D. P. Juventude negra, Ensino Médio e democracia: a
luta pela escola. Educar em Revista. Dossiê Educação, Democracia e Diferença,
Curitiba, v. 36, 2020.
CORTI, A. P. Política e significantes vazios: uma análise da Reforma do Ensino
Médio de 2017. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 35, 2019.
COSTA, A.; GROPPO, L. A. (org.) O movimento de ocupações estudantis no
Brasil. São Carlos: Pedro & João, 2018.
CRUZ, E. P. Greve dos professores de SP é considerada a maior da história. UOL
(Online). Brasília, 12 jun. 2015. Educação. Disponível em: <https://educacao.
uol.com.br/noticias/2015/06/12/greve-dos-professores-de-sp-e-considerada-
a-maior-da-historia.htm>. Acesso em: 10 maio 2021.
GIROTTO, E.; CAMPOS, L. Mudança no uso do território e reorganização
da rede estadual de educação na cidade de São Paulo: estudo de caso na área
da operação urbana Vila Sônia. Geografia Ensino e Pesquisa, Santa Maria, v.
24, n. 2, p.1-26, 2020.
GOMIDE, D. C. A política educacional para o Ensino Médio da Secretaria da
Educação do estado de São Paulo e o alinhamento com o projeto neoliberal através
de ciclos progressivos de adequação (1995-2018). Tese (Doutorado) – Programa de
Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 2019.
HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.
KRAWCZYK, N.; ZAN, D. Resiliência ou resistência: um dilema social pós-
pandemia. Políticas Educativas. Dossiê: Universidad, formación, políticas y
prácticas, Florianópolis, v. 15, n. 1, 2021.
LOPES, A. C. Itinerários formativos na BNCC do Ensino Médio: identificações
docentes e projetos de vida juvenis. Retratos da Escola, Brasília, v. 13, n. 25,
p. 59-75, 2019.
MEDEIROS, J.; JANUÁRIO, A.; MELO, R. Ocupar e resistir: movimentos
de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019.
PERONI, V.; CAETANO, M. R.; LIMA, P. Reformas educacionais hoje: As
implicações para a democracia. Retratos da Escola, Brasília, v. 11, n. 21, p. 415-

75
432, jul./dez. 2017. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>. Acesso em:
20 mar. 2020.
PIOLLI, E.; PEREIRA, L.; MESKO, A. S. R. A proposta de reorganização
escolar do governo paulista. Crítica Educativa, Sorocaba/SP, v. 2, n.1, p. 21-35,
jan./jun. 2016.
PIOLLI, E.; SALA, M. O Novotec e a implementação da Reforma do Ensino
Médio na rede estadual paulista (Novotec and the implementation of the High
School Reform in São Paulo state network). Crítica Educativa, Sorocaba, v.
5, n. 1, p. 183-198, 2019.
QUADROS, S. A influência do empresariado na reforma do Ensino Médio.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade
de Educação, Unicamp, Campinas, 2020.
SANFELICE, José Luís. A política educacional do estado de São Paulo:
apontamentos. Nuances: Estudos sobre Educação, Presidente Prudente, v. 17,
n. 18, 2010.
SÃO PAULO (Estado). Decreto nº 57571/2011, de dezembro de 2001. Estabelece
a composição para o Conselho Consultivo do Programa Compromisso de São
Paulo. São Paulo: Secretaria da Educação, 2001.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Currículo do Estado de São
Paulo: Ciências Humanas e suas tecnologias. Coordenação geral: M. I. Fini.
Coordenação de área: P. Miceli, São Paulo: SEE, 2010.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Gestão da
Educação Básica. Reorganização do ensino fundamental e do Ensino Médio.
São Paulo: SE, 2012.
SÃO PAULO (Estado). Resolução SE 2, de 18 de janeiro de 2019. Dispõe sobre
a organização curricular de cursos do Ensino Médio articulados à Educação
Profissional de Nível Técnico, a serem oferecidos em unidades escolares da rede
estadual de ensino, em parceria com o Centro de Educação Tecnológica Paula
Souza e dá providências correlatas. São Paulo: Secretaria de Educação, 2019a.
SÃO PAULO (Estado). Plano Estratégico 2019 - 2022. São Paulo Educação para
o Século XXI. São Paulo: Secretaria da Educação, 2019b.

76
SÃO PAULO [Estado]). Secretaria da Educação. Educação de SP lança
planejamento estratégico até 2022. Portal do Governo. Quinta-feira, 4 de
julho de 2019. 2019c. Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/
educacao-de-sp-lanca-planejamento-estrategico-ate-2022/.
SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista – etapa Ensino Médio. Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo, 2020a.
SÃO PAULO (Estado). Resolução, de 14 de janeiro de 2020. Homologando,
com fundamento no artigo 9º da Lei 10403, de 6-7-1971, Deliberação CEE
175/2019, que “Dispõe sobre Orientações para fins de implementação da Lei
13415/2017, especificamente no que se refere ao Ensino Médio no Sistema de
Ensino do Estado de São Paulo”. São Paulo; Secretaria de Educação, 2020b.
SILVA, M. R. A BNCC da reforma do Ensino Médio: o resgate de um empoeirado
discurso. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, 2018.
SOARES, A. P. As ocupações secundaristas de 2015: viver entre iguais no
mundo das desigualdades. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo - USP, 2019.
TARLAU, R.; MOELLER, K. O consenso por filantropia. Como uma fundação
privada criada a BNCC no Brasil. Currículo sem Fronteiras, v. 20, n. 2, p. 553-
603, 2020. Disponível em: http://curriculosemfronteiras.org/vol20iss2articles/
tarlau-moeller.pdf Acesso em: 20 dez. 2020.

77
Centro Paula Souza e a implementação da reforma do
Ensino Médio no Estado de São Paulo

Ana Beatriz Gasquez Porelli52


Sílvia Beltrane Cintra53

Introdução
Em contexto de desmonte de políticas públicas, perda de direitos e
fragilidade das instituições democráticas, foi sancionada a Lei n.º 13415/2017,
que instaura a reforma do Ensino Médio. Logo após o golpe institucional
contra a presidenta Dilma Rousseff, como uma das primeiras medidas do
governo federal de Michel Temer, em setembro de 2016, a reforma do Ensino
Médio foi apresentada por meio de medida provisória (MP n.º 746/2016),
retomando proposições antes debatidas54 e que, por sofrer rejeição de vários
movimentos sociais e não ter havido consenso, não foram aprovadas pelo
Congresso (KRAWCZYK; ZAN, 2018). Em fevereiro do ano seguinte, mesmo
sob contestação, sobretudo dos jovens estudantes que ocuparam inúmeras
escolas em todo o País e denunciaram o autoritarismo da reforma, com
pouquíssimas modificações o texto da MP foi convertido na Lei n.º 13415/2017,

52 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp. Bolsa Capes.


ana_porelli@hotmail.com
53 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp e Coordenadora de
Projetos Pedagógicos do Centro Paula Souza. sbeltrane@gmail.com
54 Debates que resultaram no Projeto de Lei 6840/13.

78
estabelecendo alterações em artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) e instituindo mudanças estruturais significativas para o Ensino
Médio de todo o Brasil.
A Lei n.º 13415/2017 (BRASIL, 2017a) estabelece que as redes de ensino
brasileiras adequem seus currículos até 2022, permitindo que os sistemas de
ensino organizem seus cursos dentro do arranjo curricular que melhor lhes
convier, obviamente dentro dos parâmetros estabelecidos pela lei, conforme
detalharemos mais adiante. Nesse contexto, é importante pontuarmos que
a reforma do Ensino Médio vem acompanhada de outras reformas, entre
elas, a reforma da Educação Profissional de nível médio, que juntas passam a
formar um único processo. Não obstante, as principais resoluções do Conselho
Nacional de Educação, sobre esse nível de ensino, ocorreram no sentido de
primeiro atualizar as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(Resolução CNE/CB n.º 3/2018) e, em seguida, definir as Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica (Resolução
CNE/CP n.º 1/2021). Assim, como também houve outras readequações nos
documentos curriculares, como a aprovação da BNCC (2018) e das Diretrizes
Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica
(DCNEPT, 2021) (PIOLLI; SALA, 2021).
As novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação
Profissional e Tecnológica (DCNEPT), homologadas em janeiro de 2021,
segundo a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC) do
Ministério da Educação (MEC), revisam as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Tecnológica (EPT) e tem a finalidade de atender às mudanças a
serem implementadas na educação brasileira, além, evidentemente, de substituir
as diretrizes para educação profissional, homologadas em 201255. Todavia, as
mudanças elencadas pela SETEC/MEC são, primordialmente, para atender
às modificações na LDB em função da reforma do Ensino Médio (Lei n.º 13
415/2017), na qual o currículo passou a ser estruturado em itinerários formativos,
sendo o V Itinerário, denominado “Formação Técnica e Profissional”.

55 Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/educacao-e-pesquisa/2021/01/novas-diretrizes-


aproximam-educacao-profissional-e-tecnologica-ao-mundo-de-trabalho. Acesso em: 21 maio 2021.

79
O presente trabalho, desenvolvido no âmbito do grupo EMpesquisa –
São Paulo56, pretende descrever tanto as ações iniciais de implementação da
reforma do Ensino Médio (2017 - 2021) no estado de São Paulo, desenvolvidas
pelo Centro Paula Souza (CPS), no interior de sua própria rede de Escolas
Estaduais Técnicas (Etec), como aquelas para ofertar do V Itinerário Formativo
na rede estadual de ensino regular.
Quando se trata de discutir a educação pública no estado de São Paulo, é
fundamental compreender a atuação da maior instituição de ensino público
profissional da América Latina, o Centro Estadual de Educação Tecnológica
Paula Souza – Ceeteps57, mais conhecido como Centro Paula Souza (CPS), uma
autarquia estadual, a qual possui 223 escolas técnicas (Etec) e 73 faculdades
de tecnologia (Fatec), que atendem a 291 mil alunos, distribuídos em 300
municípios paulistas e está vinculada à Secretaria de Desenvolvimento
Econômico. Além das inúmeras escolas e milhares de alunos matriculados, o
CPS ganha visibilidade por seu ensino, considerado de qualidade e excelência58.
Nos últimos anos, como mostraremos neste trabalho, o CPS tem
desempenhado papel fundamental na elaboração de modelos curriculares para
sua rede e ainda para a rede estadual de ensino regular, tendo em vista a reforma
do Ensino Médio. Desse modo, trabalhamos com a hipótese de que, para
compreender a implementação desta reforma no estado de SP, é imprescindível
atentar ao que tem sido proposto e elaborado pelo CPS. Para tanto, realizamos
uma análise documental de decretos, resoluções e leis referentes à reforma
do Ensino Médio no estado de São Paulo, no período de 2017 a 2021, que

56 O EMpesquisa - SP é parte integrante do Grupo Interinstitucional Ensino Médio em Pesquisa


(EMpesquisa), que atualmente tem sob sua responsabilidade a produção de um banco de dados
nacional que reúne estatísticas e documentos referentes às reformas de Ensino Médio nos diferentes
estados. No estado de São Paulo, reúne docentes de diferentes instituições de São Paulo e alunos
de pós-graduação que formam o Grupo EMpesquisa - São Paulo, coordenado pelas professoras
Dirce Zan e Nora Krawczyk.
57 Em 1973, passou a se chamar Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza – Ceeteps
e tornou-se mantenedor da Faculdade de Tecnologia de São Paulo e da Faculdade de Tecnologia
de Sorocaba. Em 1976, o Ceeteps foi associado à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho – Unesp (Lei 952/1976). Até o ano 2000, o Ceeteps mantinha 9 Fatecs, atualmente somam
73 unidades de Ensino Superior Tecnológico. Além disso, em 2002, o Centro Paula Souza criou a
unidade de pós-graduação, pesquisa e extensão.
58 Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/09/15/ideb-das-100-melhores-
escolas-publicas-de-sp-e-maior-do-que-o-das-particulares-92-sao-tecnicas-de-aplicacao-e-federais.
ghtml. Acesso em: 21 maio 2021.

80
nos permitisse uma exposição dos primeiros passos empreendidos pelo CPS
para o processo de implantação da Lei n.º 13415/2017 no estado de São Paulo.
Assim, o objetivo central do artigo é descrever como o CPS vem
desempenhando seu papel na implementação da Lei n.º 13415/2017nas escolas
técnicas de sua rede e na rede estadual regular paulista, bem como discutir
como a reforma do Ensino Médio poderá redefinir aspectos internos do Ensino
Médio profissional, ofertado nas Etec, e ainda impactar a educação de nível
médio do estado de São Paulo.
Desse modo, este trabalho organiza-se em três partes. A primeira parte
busca situar quais eram as propostas recentes de Ensino Médio, ofertadas pelo
CPS, anterior à Lei n.º 13415/2017. A segunda elucida e descreve os movimentos
da reforma no interior da rede, como se deu o início da implantação dos novos
modelos curriculares com base na reforma do Ensino Médio e como, nos
anos seguintes, até o primeiro semestre de 2021, se estruturaram as mudanças
que deverão consolidar a adequação dos currículos à lei até 202359. Por fim,
descrevemos a participação do CPS no Novotec, proposta que pretende ofertar
formação profissional a toda a rede pública de Ensino Médio do estado de SP.

Ensino Médio técnico no CPS antes da lei de reforma do Ensino


Médio
A fundação do CPS, segundo Denardi (2002), associa-se ao contexto
de estruturações do Ensino Superior, realizadas pelo governo militar, por
meio da chamada Lei da Reforma Universitária, n.º 5540, de 1968, e da
introdução do Ensino Médio profissionalizante compulsório, pela Lei n.º
5692, de 1971. À época, o modelo educacional da instituição foi formulado à
luz da teoria do capital humano60, tornando-se um elemento importante da
59 De acordo com o Planejamento da Seduc/SP, disponível no link https://www.youtube.com/
watch?v=Jz678RI4h_w&t=5478s, em 2021, será realizada a implantação do Novo Ensino Médio
na 1.ª Série; em 2022, nas 1.ª e 2ª séries; e, em 2023, a implementação se completa com todos os
estudantes da 3.ª série.
60 A Teoria do Capital Humano, de Theodore W. Schultz (1902-1998), surgiu da preocupação
em explicar os ganhos de produtividade gerados pelo “fator humano” na produção. Ela postulava
que o trabalho humano, quando qualificado por meio da educação, era um dos mais importantes
meios para ampliar a produtividade econômica e, portanto, as taxas de lucro do capital. Aplicada
ao campo educacional, a ideia de capital humano gerou toda uma concepção tecnicista sobre o
ensino e sobre a organização da educação. Sob a predominância desta visão tecnicista, passou-se
a disseminar a ideia de que a educação é o pressuposto do desenvolvimento econômico, bem como

81
política desenvolvimentista do governo do estado de São Paulo, visto que o
aluno concluía o curso em dois anos e estava apto a entrar no mercado de
trabalho como um profissional especializado. Sendo assim, as exigências do
desenvolvimento econômico, com vista a impulsionar o sistema produtivo,
eram atendidas, a partir da expansão da escolarização, somada à qualificação
da força de trabalho.
Passados 45 anos de sua fundação, em publicação comemorativa61, a
instituição permanece sendo apresentada como tendo a missão de “oferecer
ensino para a qualificação de pessoas em constante sintonia com as
transformações dos setores de produção”, reforçando seu modelo inicial,
formulado à luz do capital humano, moldando-se às atualizações dos interesses
dos setores de produção, bem como das políticas de governos vigentes. Não
obstante, a oferta do ensino técnico de nível médio pelo CPS teve início nos
anos 1980 e, desde então, passou por inúmeras reformas e pode ser considerado
o nível de ensino protagonista nas significativas e ambiciosas expansões físicas
da rede.
A maior expansão de unidades de ensino do CPS aconteceu no governo de
José Serra (2007-2010). Nas palavras do então governador, em artigo publicado
na Revista do Centro Paula Souza, em 2008, “[...] para ampliar o acesso da
população às Etecs, o governo do Estado realiza o maior investimento da
história da instituição, que prevê também uma enorme expansão do Ensino
Médio” (SERRA, 2008, p. 9). Na mesma publicação, Serra ainda destacou o
excelente desempenho dos estudantes do Ensino Médio das Etec no Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem), e seus resultados favoráveis nos melhores
vestibulares do País. Ele concluiu, afirmando que a meta consistia em aumentar
em mais de 100% o número de matrículas nas Etec de 77 mil para 177 mil ,
além de criar 51 mil vagas adicionais no Ensino Médio, oferecidas pelo CPS
(CEETEPS, 2008).
Tal expansão está diretamente associada às mudanças legais, ocorridas a
partir de 2005, por conta da implementação do Decreto Federal n.º 5154/2004
(BRASIL, 2004) , o qual regulamentou a educação profissional no Brasil e

do desenvolvimento do indivíduo, que, ao educar-se, estaria “valorizando” a si próprio, na mesma


lógica em que se valoriza o capital (HISTEDBR, 2006).
61 Publicação Institucional, disponível em: http://www.portal.cps.sp.gov.br/publicacoes/livro-
45-anos/livro_45anos_cps.pdf. Acesso em: 21 maio 2021.

82
permitiu a integração do ensino técnico ao médio, suscitando o debate da nova
integração do Ensino Médio ao Ensino Técnico. Na prática, o então presidente
Luiz Inácio Lula da Silva revogou a Lei n.º 2208/97, que estabelecia uma cisão
entre Ensino Médio e Ensino Técnico, e, através do decreto supracitado,
promoveu a integração de ambos, além de outras possibilidades de formação
profissional, como a concomitante e a subsequente. A respeito desse movimento
na educação brasileira, Lodi e Krawczyk (2008) apresentaram a integração do
Ensino Médio e ensino profissional como um desafio, tendo em vista que esta é
uma significava ruptura com a histórica dualidade entre formação propedêutica
e ensino profissionalizante. A integração proposta no governo Lula retomava
o princípio da politecnia, superando, assim, a dicotomia mediante a junção
de seus objetivos.
A proposta de reunir teoria e prática fez surgir no CPS o Ensino Técnico
Integrado ao Ensino Médio (Etim). Até então, a matrícula do Ensino Médio era
separada da do Ensino Técnico, de modo que o aluno prestava o vestibulinho
para entrar na Etec e tinha duas matrículas: uma para o Ensino Médio e outra
para o Ensino Técnico. Com a integração, a matrícula passou a ser única e o
Técnico não mais no contraturno do Ensino Médio.
A partir dessas mudanças, o CPS passou a contar com a possibilidade de
oferecer o Ensino Técnico Integrado ao Médio (Etim) nas Etec, com sua carga
horária distribuída entre os períodos matutino e vespertino, funcionando
durante oito horas diárias e com os componentes curriculares da Base Nacional
Comum e da Base Tecnológica, sendo oferecidos dentro do mesmo currículo,
além de permanecer com a oferta do Ensino Médio e do Ensino Técnico
Modular concomitante e ou subsequente, nos períodos vespertino e noturno.
A adesão das escolas à modalidade Etim começou de forma tímida, vindo a
se efetivar somente em 2010 após um aporte financeiro do governo do estado
de São Paulo.
Em publicação na Revista do Centro Paula Souza, a diretora superintendente,
professora Laura Laganá, celebrou o fato de a instituição ter alcançado o número
de 138 Etec em 2007, atribuindo as conquistas ao trabalho em parceria com os
municípios para atingir a meta de 100 mil novas matrículas nas Etec até 2010.
Para tanto, houve um aumento de 45% no orçamento da instituição para 2008
que, segundo ela, contribuiu para superar o grande desafio, posto ao governo
paulista naquele momento (LAGANÁ, 2008, p.2).

83
O crescimento da quantidade de vagas no Ensino Médio dentro do CPS
passou a ser evidenciado, a partir de 2008, saltando de 7961 vagas (em 2007)
para 13 288 (em 2008). Por sua vez, em 2012, houve um declínio nessa tendência,
quando foram oferecidas 2294 vagas a menos que em 2011. Isso se deu por
conta do início da efetivação da integralização dos cursos técnicos ao Ensino
Médio nas Etec.
Onze anos mais tarde, em 2019, o número de matrículas no Ensino Médio
alcançou 84 543, o que corresponde a aproximadamente 6% das matrículas do
Ensino Médio e suas modalidades no estado de São Paulo. O CPS, somando
suas modalidades de nível médio, inclusive os cursos modulares, reúne cerca
de 15% dos estudantes do estado.
De 2010 a 2020, a oferta de ensino integrado foi sendo ampliada nas Etec.
Atualmente, o Ceeteps conta com 223 Etec, distribuídas em 164 municípios. A
oferta da modalidade de Ensino Médio tem sido progressivamente reduzida,
enquanto a do Ensino Técnico Integrado foi ampliada, conforme Tabela 1 e
Gráfico 1.
Tabela 1. Distribuição de matrículas do Ensino Médio (EM) e Ensino
Técnico Integrado ao Médio (ETIM) (2010–2021)
Ano 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
49 54 54 50 42 33 26 21 17 16 13 10
EM
649 239 454 021 293 832 583 090 989 526 501 373
18 30 41 51 58 63 68 84 55
ETIM 2826 3547 9729
594 766 612 576 059 493 017 032 475

Fonte: Elaboração própria com base nos dados BD Cetec. Disponível em: http://www.cpscetec.
com.br/bdcetec/

84
Gráfico 1. Comparação da distribuição de matrículas do Ensino Médio (EM)
e Ensino Técnico Integrado ao Médio (Etim) no período de 2010 a 2021

Fonte: Elaboração própria com base nos dados BD Cetec. Disponível em: http://www.cpscetec.
com.br/bdcetec/

O Gráfico 1 mostra um intenso crescimento da modalidade Etim, que, em


2010, correspondia a 5,24% das matrículas do CPS, já, em 2020, esse número
passou a corresponder a 86,15% das matrículas efetuadas. Contudo, em 2021, pela
primeira vez houve um decréscimo no total de matriculados, em consequência
da introdução dos cursos já adequados à reforma do Ensino Médio, ampliados
exponencialmente. No mesmo ano, houve um forte incentivo por parte do CPS,
por meio de reuniões e formações que estimulavam a oferta do Ensino Médio
Integrado ao Técnico em turno único, denominado MTec, sob a justificativa
de que o Etim seria descontinuado em virtude da reforma do Ensino Médio.
Essa premissa fez com que o MTec de 2020 a 2021 crescesse 35,25%.
Assim, em um primeiro momento, nos parece que o desafio posto à rede
para implementar a Lei n.º 13415/2017 (BRASIL, 2017a) estaria em como,
possivelmente, seriam oferecidos os cursos técnicos integrados ao Ensino
Médio em consonância com a carga horária da BNCC. Todavia, a elaboração
de novos cursos e em diversos formatos, conforme estabelecido pela lei da
reforma, não se configurou um empecilho ao CPS, por mais que a proposta

85
do Etim decorrente do decreto n.º 5154 /2004 (BRASIL, 2004) tenha levado
em torno de cinco anos62 para efetivar sua implementação, a rede tem se
mostrado bastante empenhada e adiantada em fazer vigorar a atual lei da
reforma nas Etec.

O “Novo Ensino Médio” no CPS


Tradicionalmente, o CPS segue como forte aliado do governo paulista
em seu caráter tanto propositivo como executivo , no que diz respeito à
implementação da política pública de Educação Profissional e Tecnológica no
Estado de São Paulo (SACILOTTO, 2016). Ao longo dos últimos anos, a rede
vem desenvolvendo uma dinâmica de elaboração e avaliação de cursos para
oferecer, o que seus agentes costumam chamar de amplo “cardápio institucional”,
composto por cursos com vida média variada (ARAÚJO; LIMA, 2018).
O “cardápio” divide-se entre os cursos perenes, aqueles normalmente
situados em áreas mais tradicionais e com alta procura pelos estudantes, e
os cursos que podem ser descontinuados com rapidez. Esses últimos são
elaborados, vinculados às demandas imediatas do setor produtivo e regidos
pela fluidez do mercado, o que, em curto prazo, pode torná-los suscetíveis a
permanecerem ou não no catálogo de cursos (ARAÚJO; LIMA, 2018). Esses
cursos estão associados a uma prática que parece engendrar na instituição, o
que podemos chamar de cultura de programas-piloto, em que são elaborados
e testados cursos e certificações que não necessariamente farão sentido existir
em longo prazo.
Essas sucessivas estruturações e reestruturações de cursos e testagens de
modelo são viabilizadas pelo Grupo de Formulações e Análises Curriculares
(GFAC), um grupo formado em 2008, integrado por professores do Centro
Paula Souza, com a finalidade de elaborar e analisar os currículos escolares
e atualizá-los continuamente. Demai (2019) explica que o GFAC considera
que a cada três ou quatro anos, após a oferta e a conclusão de uma ou duas
turmas-piloto, já é possível ter subsídios suficientes para analisar a “eficácia do
planejamento curricular” e decidir sobre a reelaboração ou não do currículo.
62 De acordo com Sacilotto (2016), apesar de o Decreto Federal n.º 5154/2004 ter retomado a
possibilidade de oferta do Ensino Técnico Integrado ao Ensino Médio, a partir do ano letivo de
2005, o Ensino Técnico Integrado ao Ensino Médio (ETIM) teve suas primeiras experiências de
implantação somente a partir de 2010.

86
A cultura de programas-piloto estrutura e é estruturada pelo entendimento
de catálogo de cursos comparável a um “cardápio”, favorecendo a naturalização
da diversificação curricular e a oferta de variadas opções de cursos e certificações
flexíveis que se atualizam, de acordo com a ordem do dia ditada pelo mercado.
Esse modus operandi, que permeia a elaboração e a execução das propostas
curriculares da rede, ainda que anterior à lei da reforma, é amplamente
contemplada por ela.
Quando a lei da reforma do Ensino Médio (n.º 13415/2017) entrou em
vigor, o CPS prontamente se empenhou em planejar 12 currículos adequados
ao denominado “Novo Ensino Médio” para serem implementados no ano
seguinte. Dos 13 eixos tecnológicos63, que tematizam os cursos ofertados, 5
deles passaram a compor o rol de opções curriculares adequadas à reforma do
Ensino Médio. O tipo de ensino dos currículos elaborados, tanto na habilitação
quanto na qualificação profissional, é integrado, porém, a carga horária não
corresponde ao que seria um ensino integral. Os cursos são oferecidos no
período matutino ou vespertino, com cargas horárias variadas, assim como
suas certificações o são.
Assim, em 2018, já estavam prontas as propostas de currículos com
modalidades de cursos com carga horária de 1733 horas (quando sem o
componente curricular de Espanhol), e 1800 horas (quando com o componente
curricular de Espanhol), em acordo com a BNCC, que prevê o teto de 1800 horas
para os componentes do Ensino Médio, e esses começaram a ser oferecidos
como programa-piloto em 33 Etec (relacionadas na Tabela 2).
Tabela 2. Etec com oferecimento de programa-piloto para a implementação
da reforma do Ensino Médio e municípios de localização
Etec Município
Etec de Ilha Solteira Ilha Solteira
Etec Professor Idio Zucchi Bebedouro
Etec Rodrigues de Abreu Bauru

63 Os eixos tecnológicos são predefinidos, buscando se relacionar com as diversas áreas/setores


da economia. Sendo eles: Ambiente e Saúde; Controle e Processos Industriais; Desenvolvimento
Educacional e Social; Gestão e Negócios; Informação e Comunicação; Infraestrutura; Produção
Alimentícia; Produção Cultural e Design; Produção Industrial; Recursos Naturais; Segurança
do Trabalho; Turismo, Hospitalidade e Lazer; Educação Básica. Os cinco eixos que ofertaram
cursos adequados à Lei da Reforma foram: Ambiente e Saúde; Gestão e Negócios; Informação e
Comunicação; Produção Industrial; Turismo, Hospitalidade e Lazer.

87
Etec Município
Etec Paulino Botelho São Carlos
Etec Professor José Ignácio Azevedo Filho Ituverava
Etec Prof. Alcídio de Souza Prado Orlândia
Etec Pedro Badran São Joaquim da Barra
Etec de Apiaí Apiaí
Etec Dr. Celso Charuri Capão Bonito
Etec Pedro D’Arcádia Neto Assis
Etec Aristóteles Ferreira Santos
Etec Dona Escolástica Rosa Santos
Etec Gino Rezaghi Cajamar
Etec de Carapicuíba Carapicuiba
Etec Ferraz de Vasconcelos Ferraz de Vasconcelos
Etec de Ribeirão Pires Ribeirão Pires
Etec Rio Grande da Serra Rio Grande da Serra
Etec Abdias do Nascimento São Paulo
Etec Cepam USP São Paulo
Etec Gildo Marçal Bezerra Brandão São Paulo
Etec Parque Belém São Paulo
Etec Professor Adhemar Batista Heméritas São Paulo
Etec Profa. Dra. Doroti Quiomi Kanashiro São Paulo
Toyohara
Etec Santa Ifigênia São Paulo
Etec Takashi Morita São Paulo
Etec de Monte Mor Monte Mor
Etec Cel. Fernando Febeliano da Costa Piracicaba
Etec Dep. Ary de Camargo Pedroso Piracicaba
Etec Alcides Cestari Monte Alto
Etec Elias Nechar Catanduva
Etec Philadelpho Gouvêa Netto São José do Rio Preto
Etec Darcy Pereira de Moraes Itapetininga
Etec Martinho Di Ciero Itu

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Grupo de Formulação e Análises Curriculares
(Gfac) - http://cpscetec.com.br/gfac/

88
Portanto, desde 2018, a composição dos catálogos de currículos de parte
significativa das Etec passou a ser formada tanto por cursos das modalidades
ainda anteriores à reforma quanto pelos adequados à lei em vigor. Sendo,
portanto, possível encontrar oito opções de modalidades de cursos ofertados
nas escolas do CPS, além do Etim e do Ensino Médio propedêutico. Ao longo
desses quatro anos (2018 - 2021), por se tratarem de cursos-piloto conforme
a própria instituição os considera por diversas vezes houve mudanças na
estrutura dos currículos e, inclusive, nas nomenclaturas utilizadas.
A seguir, a Tabela 3 apresenta as siglas e os nomes adotados para identificar
as modalidades de cursos de Ensino Médio técnico, e a tabela 4 mostra as
modalidades do eixo Ensino Médio com Itinerário Formativo, todos adequados
à reforma do Ensino Médio.
Tabela 3. Siglas e nomes atribuídos aos cursos de Ensino Médio técnico,
elaborados em adequação à Lei da reforma do Ensino Médio
Modalidades Siglas
Ensino Médio com Habilitação Profissional MTec
Ensino Médio com Qualificação Profissional MQTec
Ensino Médio técnico e profissional em período integral MQTec-PI
Ensino Médio integrado ao Ensino Técnico - Noturno MTec-N
Ensino Médio com Habilitação Profissional MTec-AMS
Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Grupo de Formulação e Análises Curriculares
(Gfac). Disponível em:- http://cpscetec.com.br/gfac/

Tabela 4. Oferta do eixo Ensino Médio com Itinerário Formativo


Modalidade Curso
Ciência Biológicas Agrárias e da Saúde
Novo Ensino Médio – Itinerários
Ciências Exatas e Engenharias
Formativos (Vocacionado)
Ciências Humanas e Sociais
Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Grupo de Formulação e Análises Curriculares
(Gfac). Disponível em: http://cpscetec.com.br/gfac/

Elaborados os currículos, o objetivo inicial com os cursos-piloto, era de que,


até o final de 2020, o Etim fosse substituído pelo Ensino Médio com Habilitação

89
Profissional (MTec) e pelo Ensino Médio com Qualificação Profissional
(MQTec), em virtude da redução da carga horária da BNCC, imposta pela
reforma do Ensino Médio; e o Ensino Médio propedêutico, substituído pelo
Ensino Médio com Itinerário Formativo. Sendo assim, notamos, entre 2018
e 2021, o movimento crescente dos matriculados nas modalidades MTec/
MQTec que representam os cursos-piloto adequados à reforma e o declínio da
oferta de matrículas no Ensino Médio e Etim, respectivamente apresentados
na Tabela 5 e no Gráfico 2.
Tabela 5. Distribuição de matrículas do MTec/MQTec, Ensino Médio (EM)
e Ensino Técnico Integrado ao Médio (Etim) (2018–2021)
Modalidade 2018 2019 2020 2021
MTec/MQtec 1645 5318 19 692 33 496
EM 17 989 16 526 13 501 10 373
ETIM 63 493 68 017 84 032 55 475
Fonte: Elaboração própria com base nos dados BD Cetec. Disponível em: http://www.cpscetec.
com.br/bdcetec/

Gráfico 2. Distribuição de matrículas do MTec/MQTec, Ensino Médio


(EM) e Ensino Técnico Integrado ao Médio (Etim) (2018–2021)

Fonte: Elaboração própria com base nos dados BD Cetec. Disponível em: http://www.cpscetec.
com.br/bdcetec/

90
Observamos que o CPS dispõe de um cardápio de cursos-piloto, para que,
gradualmente, dentro do prazo estabelecido pela lei, toda a oferta de matrículas
esteja concentrada em cursos adequados à lei da reforma. A diversidade
de cursos é uma tônica na lei da reforma, sob a égide de flexibilização e
protagonismo juvenil. Para exemplificar a diversidade de modalidades de
Ensino Médio técnico oferecidas no “cardápio institucional” do CPS nesse
processo de adequação à lei da reforma do Ensino Médio, optamos, para
fins de comparação, reunir na Tabela 6 os cursos do Eixo de Informação e
Comunicação, da área de Informática, visto que estes estão sendo oferecidos
em todas as modalidades.
Tabela 6. Oferta do eixo Informação e Comunicação Informática em
diversas modalidades de Ensino Médio, adequados à reforma do Ensino
Médio
HORAS
MODALIDADE CURSO
BNCC+Form. Prof.
Ensino Médio com Habilitação
Desenvolvimento de
Profissional de Técnico em 1733+1200
Sistemas - MTec
Informática
Desenvolvimento
Ensino Médio com Habilitação
de Sistemas - MTec-
Profissional de Técnico em 1733/1200
Articulação Médio
Informática
Superior
Administrador de
Ensino Médio com Qualificação
Banco de Dados 1733+600
Profissional de Informática
- MQTec
Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Grupo de Formulação e Análises Curriculares
(Gfac). Disponível em: http://cpscetec.com.br/gfac/

Percebemos que são disponibilizados três tipos de formações, sendo


que, para ter ingresso a qualquer dos cursos escolhidos, o estudante necessita
passar por prova eliminatória de conhecimentos do Ensino Fundamental,
denominada vestibulinho. Duas delas são de Habilitação Profissional de Técnico,
isto é, a cada ano concluído o estudante recebe uma certificação intermediária,
e ao final do 3.º ano recebe o diploma de Técnico na área cursada. Já no
Ensino Médio com Qualificação Profissional, o estudante não tem direito
às certificações intermediárias, apenas ao concluir o 3.º ano, quando lhe é
atribuído um Certificado de Qualificação Profissional.

91
As modalidades de Ensino Médio com Habilitação Profissional e
Qualificação Profissional (MTec e MQTec) tiveram suas primeiras turmas
no primeiro semestre de 2018, com 1645 alunos matriculados, 42 turmas
distribuídas em 33 Etec que optaram por receber os cursos de: administração,
cozinha, hospedagem, logística, nutrição e dietética, programação de jogos
digitais, química, recursos humanos, serviços jurídicos e serviços públicos.
Nos cursos dessas modalidades, estão previstas as disciplinas que contemplam
a BNCC e ainda aquelas com ênfase na habilitação profissional escolhida pelo
estudante na inscrição do vestibulinho. Os cursos são integrados e acontecem
na Etec em um único turno (manhã ou tarde), o estágio não é obrigatório,
podendo ser as horas de estágio contempladas no Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC). Ao concluir o curso, o estudante recebe um diploma de
técnico, se cursado o MTec; ou uma certificação de qualificação profissional,
caso tenha cursado o MQTec.
Além desses, também tem sido oferecido o Ensino Médio com Articulação
Médio Superior (AMS) Ensino Médio com Habilitação Profissional MTec-
AMS64. O Ensino Médio com Habilitação Profissional – Articulação Médio
Superior (MAS) – é um projeto que prevê a sequência de estudos no Ensino
Superior tecnológico, por isso a denominação “articulação médio superior”.
Na prática, o estudante inicia seus estudos na Etec e, caso queira, pode dar
sequência ao Ensino Superior tecnológico na Fatec que estabeleceu a parceria
curricular com a Etec de origem do estudante, sem precisar de vestibular. O
projeto-piloto que teve início no primeiro semestre de 2019, com 120 alunos
matriculados em 3 Etec65, passou a contar em 2020, com 1263 matrículas em
23 Etec, número que se manteve em 2021.
A ampliação dessa modalidade tem como principal obstáculo a necessidade
de que sejam estabelecidas parcerias com empresas que possam oferecer 200
horas de mentoria para os estudantes ao longo dos 3 anos do Ensino Médio.
A oferta de mentoria pressupõe que a empresa parceira disponha de uma
coordenação para desempenhar o papel de mentor, o qual se responsabiliza
pelo desenvolvimento do curso na empresa e, juntamente com o coordenador

64 Conforme Art. 36 das Diretrizes, define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Profissional Técnica de Nível Médio - Resolução 06/2012, que foi ratificada no Art. 6 da Resolução
01/2021 (BRASIL, 2021).
65 Etec Jorge Street; Etec Zona Leste; Etec Polivalente de Americana.

92
do curso na Etec, acompanha os estudantes em participação de workshops e
atividades realizadas na empresa. De acordo com a Deliberação 67, emitida pelo
Centro Paula Souza, em 17 de dezembro de 2020: o programa AMS pressupõe
a elaboração do Projeto Pedagógico Articulado com, no mínimo, 3000 horas
do Ensino Médio com Habilitação Profissional Técnica (1800 BNCC+1200
Itinerário da Formação Técnica e Profissional), 200 horas de atividades de
contextualização profissional a serem realizadas pelas empresas parceiras e a
carga horária prevista no Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia
(CNCST) do Curso Superior de Tecnologia articulado. Na Etec Polivalente,
em Americana, por exemplo, a parceria para o curso de Ensino Médio com
Habilitação Profissional de Técnico em Desenvolvimento de Sistemas foi
estabelecida com a empresa de Informática IBM, e a continuidade no Ensino
Superior será na Fatec de Americana, no curso de Análise e Desenvolvimento
de Sistemas. Nesse caso, a IBM se responsabiliza pela mentoria profissional
que envolve atividades pedagógicas relacionadas a esse curso, oferece palestras
e cursos aos estudantes, bem como elabora relatórios etc.
Em julho de 202166, a instituição anunciou que está elaborando um currículo
de Ensino Médio técnico e profissional em período integral (MTec-PI), de
modo que os cursos da modalidade Etim poderão migrar automaticamente para
essa nova modalidade, a partir do 1.º ano do curso67. O CPS também anunciou
que, a partir de 2022, as Etec poderão ofertar o Ensino Médio integrado ao
ensino técnico, no período noturno, denominado MTec-N, este com 20% da
carga horária a distância.
O anúncio da oferta da modalidade MTec-PI, bem como a possibilidade
de as Etec migrarem automaticamente da modalidade Etim para o MTec-PI,
já no vestibulinho de 2022, surpreendeu a comunidade escolar, tendo em
vista que a preparação das unidades escolares até então era no sentido de
substituir as turmas de período integral (Etim), por turmas de ensino em um
único turno, em virtude da reforma do Ensino Médio, sobretudo, por turmas
de MTec. Apesar do memorando apontar para uma complementação de 600
horas de projetos de aprofundamento, o que torna a carga horária de período

66 Conforme Memorando 382/2021 - Cetec/Gfac.


67 O MTec PI está estruturado em 1800 horas de BNCC+600 horas de Projetos de Aprofundamento
+ 1200 horas de formação técnica e profissional.

93
integral, efetivamente não estão definidas quais áreas de conhecimento irão
compor tais projetos.
Outra novidade apresentada no mesmo documento foi a oferta da
modalidade Ensino Médio técnico e profissional em período noturno,
denominado MTec-N. Historicamente, cursos com Ensino Médio noturno
foram raramente ofertados nas Etec dentro da Educação de Jovens e Adultos
(EJA). A proposta do MTec-N, apresentada em julho de 2021, tem como base
a reforma do Ensino Médio e os regulamentos68 que legitimam a oferta de
20% da educação básica com o ensino a distância (EaD), no caso do ensino
noturno, esse percentual pode chegar até 30%.
Seguindo a tradição de ser “instrumento e o recurso institucional da
implementação da política pública de Educação Profissional e Tecnológica
no Estado de São Paulo” (SACILOTTO, 2016, p.25), bem como a cultura de
programas-piloto, o CPS já tem implantado desde o 2.º semestre de 2019 o
curso concomitante ou subsequente de técnico em administração, no período
noturno, com 20% de EaD. A experiência que teve início na Etec de Guarulhos
se expandiu em 2020 e 2021 para outras Etec, de modo que legitimou o currículo
do Ensino Médio com parte da carga horária a distância, viabilizado no MTec-N
a partir de 2022.
O Ensino Médio com Itinerário Formativo – em Linguagens, Ciências
Humanas e Sociais; Ciência Exatas e Engenharias – teve início em 2019, com
115 estudantes matriculados em 3 Etec, localizadas em Cafelândia, São Paulo e
Fernandópolis. Dois currículos foram implementados para atender aos eixos
formativos de Matemática e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias,
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. As Etec Professora Helcy Moreira
Martins Aguiar (Cafelândia, SP) e Albert Einstein (São Paulo, SP) ofereceram
turmas de Ensino Médio com eixo formativo em Linguagens, Ciências Humanas
e Sociais. A Etec Professor Armando José Farinazzo (Fenandópolis, SP) ofertou o
Ensino Médio com eixo formativo em Ciências Exatas e Engenharias. Em 2020,
além dos dois itinerários formativos já oferecidos, a Etec Professor Massuyuki
Kawano, de Tupã, SP, passou a disponibilizar o Ensino Médio com ênfase em

68 § 11 do art. 36 da LDBEN n.° 9394/1996 (BRASIL, 1996); DCNEM 2018 - Resolução CNE 03,
de 21 de novembro de 2018 (BRASIL, 2018); Decreto 9204/17 (BRASIL 2017b); Resolução CNE/CP
01 de 05 de janeiro de 2021 (BRASIL, 2021).

94
Ciências Biológicas, Agrárias e da Saúde, sendo assim, essa modalidade de
ensino atualmente conta com 660 estudantes matriculados em 10 Etec.
Para cursar o Ensino Médio com Itinerário Formativo, na inscrição do
vestibulinho, o aluno opta por um dos itinerários formativos oferecidos pela
Etec que pretende estudar. Contudo, nem todas as Etec oferecem o Ensino
Médio com Itinerário Formativo propedêutico. No currículo desta modalidade,
é previsto que durante os três anos o estudante curse todas as disciplinas da
BNCC mais as do itinerário formativo escolhido na inscrição. Ainda não está
prevista a mudança de itinerário, o que se sabe pelo Manual do Candidato
(Vestibulinho) é que não é permitida a mudança de itinerário e, ao concluir a
etapa, será atribuído ao estudante o diploma de conclusão do Ensino Médio.
De acordo com dados de matrículas no ano de 2020, mesmo em contexto
pandêmico e as aulas sendo continuadas através do ensino remoto, a reforma não
cessou, e chegamos em 2021, ou seja, um ano antes do prazo para implantação
da reforma do Ensino Médio nas redes/sistemas de ensino de todo o País, com o
CPS tendo implementada a lei em 152 Etec, abrangendo 39 cursos, distribuídos
em 11 eixos tecnológicos e atendendo 32 579 estudantes, o que corresponde a
34,57% de todos os estudantes que cursam o Ensino Médio integrado nas Etec.
Esse cardápio de opções de cursos inicialmente formulado pelo e para o
Centro Paula Souza – com variações que apresentaremos a seguir –, passou a
compor o planejamento da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE),
para implantar o V Itinerário Formativo da reforma do Ensino Médio, por
meio do Programa Novotec.

CPS nos movimentos da reforma do Ensino Médio para fora de sua


rede: o Novotec
Em 1.º março de 2019, o governo de São Paulo anunciou a criação de um
novo programa de formação profissional no estado, denominado Novotec.
De acordo com publicação no site69 do governo paulista, o programa pretende
qualificar, profissionalmente, até 2022, 180 mil jovens. Não obstante, o governador
João Dória, anunciou que “O objetivo [do programa] é levar essa educação de
excelência do CPS para a rede estadual de ensino em larga escala, através da

69 Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/governo-de-sp-lanca-programa-


de-ensino-tecnico-profissionalizante-novotec/ . Acesso em: 21 maio 2021.

95
oferta de cursos técnicos integrados ao Ensino Médio da rede regular” (SÃO
PAULO, 2019b, s/p.). Desde então, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico
(SDE), por meio de sua coordenadoria do Ensino Técnico, Tecnológico e
Profissionalizante, no papel de idealizador e coordenador do programa Novotec,
conta com o CPS para efetuar a execução pedagógica do Novotec.
No anúncio do programa, ficou bastante evidente a valorização do ensino
das Etec como modelo de sucesso e a tentativa de usá-lo para propagandear a
reforma do Ensino Médio nas escolas da rede de ensino regular. A qualificação
profissional dos jovens é apontada como solução para a evasão escolar e a
falta de identificação dos jovens com a escola, mas, principalmente, como a
resolução da problemática do desemprego entre eles. Contudo, ocultam-se
o momento de reestruturação econômica e a profundidade dos problemas
anteriores citados, substitui-se a crise do emprego pelas ideologias da resiliência
e do empreendedorismo. A reforma do Ensino Médio, portanto, “é moralmente
justificada como a tábua de salvação para uma geração de jovens que, sem
grandes perspectivas na vida, precisa de uma escola mais simples e atraente,
voltada para a vida prática e para o aumento da produtividade no trabalho”
(GOULART; CASSIO, 2021, p. 14, grifo dos autores).
O programa Novotec abarca todas as modalidades de formação profissional
de nível médio oferecidas na rede estadual de ensino, além de cursos livres
de qualificação profissional e de curta duração. A partir de seu lançamento,
os cursos MTec e MQTec, aos quais nos referimos neste trabalho, passaram a
ser denominados Novotec, pelo fato de integrarem a plataforma educacional
do estado de São Paulo, e, principalmente pelo CPS ser o maior parceiro do
governo dentro dessa política governamental (SÃO PAULO, 2019b, s/p.).
Em 2020, a Resolução da Seduc n.º 09, de 20 de janeiro de 2020, artigos 2
e 3 (SÃO PAULO, 2020b), tornou público o oferecimento de cursos de Ensino
Médio, destinados aos estudantes concluintes do 9.º ano do Fundamental em
parceria com o CPS, ofertados nas escolas estaduais de Ensino Médio regular.
Sua organização curricular, conforme proposta na resolução supracitada, prevê
que sejam realizadas duas matrículas distintas, uma na escola de Ensino Médio
regular e outra na Etec parceira. Do mesmo modo, o ensino divide-se entre
os professores, cabendo aos docentes da Etec ministrar o conteúdo relativo ao
ensino profissionalizante, enquanto os docentes da escola estadual ministram
os conteúdos correspondentes à BNCC.

96
A dinâmica de atuação do professor, que originalmente atua nas Etec com o
Ensino Técnico e passará a atuar ainda nas escolas estaduais, sofrerá mudanças
significativas com essa transição de espaço de trabalho. Isso porque o plano
de curso do CPS para as Etec é elaborado para promover a integração dos
componentes curriculares do Ensino Técnico com os componentes curriculares
da BNCC, à luz dos recursos didáticos disponibilizados nas escolas técnicas.
Nesse sentido, continuamente, nas Etec, é discutido o planejamento coletivo,
envolvendo professores atuantes em todas as áreas do conhecimento, em
virtude de estarem na mesma escola. Diante disso, nos indagamos sobre os
possíveis desafios que serão enfrentados por esses profissionais, uma vez
que, com a parceria, é inviável que o professor do técnico conheça, de modo
aprofundado, o material relativo aos componentes da BNCC, utilizado pela
rede estadual de ensino, e tampouco participa dos planejamentos que ocorrem
semanalmente nas escolas estaduais, e, então, realizar a integração do técnico
ao Ensino Médio. Quão falaciosa pode ser a promessa de que esse programa
possa levar o ensino ofertado nas Etec para demais escolas estaduais, ainda
que com os mesmos professores.
Logo em seu primeiro ano de implementação (2020), o programa alcançou
aproximadamente 4500 estudantes matriculados e, atualmente, em 2021, passou
a contar com mais de 16 000 matrículas (BD Cetec). O número de matrículas
triplicou no ano de 2021, em função de uma intensa campanha por parte
da SDE, para que as Etec firmassem parcerias com as escolas estaduais. No
entanto, mesmo diante do aumento de matrículas, não houve a ampliação da
estrutura do CPS, sequer novas contratações de professores e funcionários, a
qual já se encontrava em déficit nos últimos anos70.
A falta de ampliação da estrutura, somada à insuficiência de professores,
inviabiliza o atendimento integral do programa pelo CPS. De tal modo, no
início de 2021, outros parceiros privados71 foram contratados, via licitação,

70 De acordo com o Relatório Anual do Governo do Estado de São Paulo, divulgado pela Secretaria
da Fazenda, em https://portal.fazenda.sp.gov.br/, em dezembro de 2019, o número de funcionários
ativos no Centro Paula Souza era 19 361 servidores. Em dezembro de 2020, era de 18 553. No último
Relatório de Gestão do Centro Paula Souza 2012-2016, o número de funcionários contabilizados
em 2016 era de 20 021 servidores.
71 Conforme Parecer CEE 45/2021, que autorizou a contratação via licitação pública de
fornecedores privados para ministrar os componentes do Programa Novotec Integrado nas escolas
da Rede Estadual de Educação. Em reunião disponibilizada no link https://www.youtube.com/

97
para atender à projeção de aproximadamente 300 000 alunos matriculados
até 2023 (BARROS, 2021). Mesmo assim, o CPS permanece como gestor
pedagógico e assume, também, o papel de parecerista para a aprovação dos
planos de cursos utilizados por instituições privadas parceiras do programa72.
Com a Resolução da Seduc n.87, de 20 de novembro de2020 (SÃO Paulo,
2020c), a partir de 2021, surgiram mudanças nas estruturas curriculares,
vinculando a educação técnica profissional aos itinerários formativos. O
chamado Novotec Integrado – primeiramente idealizado para ser um programa
de formação profissional, com vistas a cumprir a meta 11 do Plano Estadual
de Educação73 – passou por alterações, a fim de atender aos parâmetros do V
Itinerário Formativo – Formação Técnica e Profissional, previstos na reforma do
Ensino Médio. Além disso, no segundo trimestre do mesmo ano, os cursos de
qualificação profissional do Novotec Expresso – que surgiram com a finalidade
de oferecer cursos com até 120 horas distribuídas em um único semestre
nas Fatec, Etec ou nas Escolas Estaduais, com o foco, em geral, nos eixos de
negócios e de tecnologia da informação – compuseram, também, os itinerários
propedêuticos do Novo Ensino Médio, como Unidades Curriculares (UC)
dentro da carga horária do Itinerário Formativo (IF). Portanto, o Programa
Novotec, que inicialmente faria parte da reforma do Ensino Médio em São
Paulo, por meio do Novotec Integrado, passou a vigorar, do mesmo modo, em
alguns dos itinerários propedêuticos, denominados itinerários com cursos de
qualificação profissional – Novotec Expresso, além do Itinerário com cursos
de habilitações técnicas, Novotec Integrado – V Itinerário Formativo.
Sendo assim, a atuação do CPS na Seduc, como gestor pedagógico do
programa Novotec, consolidou-se, a partir de 2021, quando o Novotec Integrado
assumiu o V Itinerário Formativo, e o Novotec Expresso passou a fazer parte
do arranjo curricular dos Itinerários Propedêuticos, sendo oferecido como
cursos semestrais de qualificação profissional.

watch?v=y9Zg30xIrVw&t=2520s, o subsecretário de educação do estado de São Paulo, Daniel


Barros, apresentou três desses parceiros privados: Senac, Essa e Sequencial.
72 Parecer Conselho Estadual de Educação CEE 45/2021.
73 A meta 11 do Plano Estadual de Educação tem como finalidade: “Ampliar em 50% (cinquenta
por cento) as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade
da oferta e, pelo menos, 50% (cinquenta por cento) da expansão no segmento público”.

98
Esse modo de levar a educação profissional a uma larga escala de
estudantes, ora como um curso técnico estruturado, ora como qualificação
profissional, estabelecendo não só caminhos distintos, mas hierarquicamente
desiguais, acarreta na naturalização da dualidade escolar sobreposta a uma
outra dualidade, que resulta na dualidade da dualidade (PIOLLI; SALA,
2021). Para Piolli e Sala (2021), essa organização da formação profissional,
que se consolida a partir da lei da reforma, articulada às DCNEM (2018),
marca o caráter excludente dos itinerários. O próprio itinerário de formação
técnica e profissional também apresenta diferentes arranjos curriculares que
formam um subsistema de distinções, o que possibilita a oferta do itinerário de
formação técnica e profissional com diferentes arranjos curriculares. Com isso,
observamos o risco iminente da precarização do tempo escolar e da organização
dos conteúdos curriculares do Ensino Médio e da formação profissional, bem
como a estratificação da formação das juventudes trabalhadoras.

Considerações finais
Compreender a atuação do CPS na implementação da Lei n.º
13415/2017(BRASIL, 2017a) é imprescindível para entender a implantação da
reforma do Ensino Médio no estado de SP. Os movimentos da reforma no
interior da rede são percebidos desde o ano em que foi apresentada a lei e,
rapidamente, foram implantados novos modelos curriculares por meio de
cursos-piloto, de modo a efetivar a adequação dos currículos à lei até 2023.
O protagonismo do CPS também se faz presente nos movimentos da reforma
para fora de sua rede, por meio de sua participação no Novotec, com a oferta
da formação profissional a toda a rede pública de Ensino Médio do estado de
SP através do V Itinerário Formativo.
A implantação de cursos com matrizes curriculares adequadas à Lei n.º
13415/17, no CPS, se efetivou desde 2018, e com isso se iniciou o movimento de
substituição e adequação do Etim e do Ensino Médio propedêutico. Mesmo
em contexto pandêmico, a reforma não cessou e chega em 2021, um ano antes
do prazo para implementação da reforma do Ensino Médio, com 34,57% dos
matriculados no Ensino Médio integrado das Etec, estudando em cursos que
seguem os parâmetros estabelecidos pela reforma. Os cursos compõem um
amplo “cardápio” que segue aprofundando a lógica, já consolidada na instituição,

99
de testagem e diversificação de currículos em consonância aos interesses do
setor produtivo. Com a reforma, também estão sendo fortalecidas e incentivadas
as parcerias com empresas privadas e ainda introduzida a modalidade de EaD
no Ensino Médio. Tais aspectos suscitam a possível redefinição de questões
inerentes ao Ensino Médio profissional ofertado nas Etec que asseguravam o
ensino de qualidade da rede.
Para as escolas da Rede Estadual de Ensino, foi expandido o modelo de
curso das Etec por meio da parceria entre a SDE e Seduc. Nessa configuração,
o CPS, além de parceiro, se torna gestor pedagógico, e a estrutura do Novotec
viabiliza a implantação do V Itinerário Formativo do Novo Ensino Médio no
estado de São Paulo. Contudo, claramente não se trata de cursos compatíveis
com os oferecidos nas Etec, sobretudo quanto ao investimento e ao planejamento
coletivo dos cursos que os fazem ser de fato integrados ao Ensino Médio.
Assim, conforme já havia sido alertado por Krawczyk e Ferretti (2017),
ao analisarem a proposta da Lei, a implementação da reforma no estado de
SP nas Etec e nas escolas estaduais da rede regular de ensino , em curto prazo,
tende a desfigurar o caráter democrático do Ensino Médio e a precarizar o
tempo escolar, a organização dos conteúdos curriculares e a profissão docente,
colocando em risco a formação das juventudes trabalhadoras, uma vez que
ela está sendo submetida a currículos aligeirados e entregues à adequação da
lógica do mercado.

Referências bibliográficas
ARAÚJO, L. D. C. M. N. D.; LIMA, M. H. D. C (Org.). Formação técnico-
profissional: um olhar sobre o ensino técnico no Brasil. 1 ed. São Paulo: Meta
Livros, 2018. 107 p. Disponível em: https://observatorioept.org.br/conteudos/
formacao-tecnico-profissional-um-olhar-sobre-o-ensino-tecnico-no-brasil.
Acesso em: 15 jun. 2021.
BANCO DE DADOS DA CETEC. Centro Paula Souza (CPS). Disponível em:
http:// www.cpscetec.com.br/bdcetec/index.php. Acesso em: 21 maio 2021.
BARROS, D. Novotec Expresso 2021.2. Etec e Fatec, jun. 2021. Apresentação
em Power Point. Disponível em: ttps://www.youtube.com/watch?v=2tvq3YvD

100
44&list=PLvZoIWyS5ck4pt3OwiOoYQEpQWRdcO4VV&index=1&t=1505s.
Acesso em: 28 jun. 2021.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Lei n.º 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1,
p. 27 833, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Leis/L9394.htm>. Acesso em: 21 maio 2021.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n.º 5154, de 23 de julho de 2004.
Regulamenta o § 2.º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei n.º 9394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 18,
26 jul. 2004.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão Especial destinada a promover
estudos e proposições para a reformulação do Ensino Medio – CEENSI. Projeto
de lei n.º 6840 de 2013. Altera a Lei n.º 9394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para instituir a jornada
em tempo integral no ensino médio, dispor sobre a organização dos currículos
do ensino médio em áreas do conhecimento e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 2013. Disponível em: <http://www.camara.gov.
br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1200428> Acesso em: 21
maio 2021.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Geral. Subchefia para Assuntos
Jurídico. Lei n.º 13415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis n. º 9394, de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
e 11 494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-
Lei n.º 5452, de 1.º de maio de 1943, e o Decreto-Lei n.º 236, de 28 de fevereiro
de 1967; revoga a Lei n.º 11 161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de
Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 17 fev. 2017a.
BRASIL. Presidência da República, Secretaria Geral, Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Decreto n.º 9204, de 23 de novembro de 2017. Decreto federal que

101
institui o Programa de Inovação Educação Conectada e dá outras providências.
Diário Oficial de União, Brasília, DF, n. 224, Seção 1, p. 3, 22 nov. 2017b.
BRASIL. Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação
Câmara de Educação Básica. Resolução n.º 03/2018. Atualiza as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, Ed. 224, Seção 1, p. 21, 22 nov. 2018. Disponível em: http://portal.mec.
gov.br/conaes-comissaonacional-de-avaliacao-da-educacao-superior/323-
secretarias-112877938/orgaosvinculados-82187207/59321-resolucoes-ceb-2018.
Acesso em: 21 maio 2021.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação.
Resolução n.º 1, de 05 jan. 2021. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, Ed. 3, Seção 1, p.19, 06 jan. 2021. Disponível em: https://www.in.gov.
br/en/web/dou/-/resolucao-cne/cp-n-1-de-5-de-janeiro-de-2021-297767578.
Acesso em: 21 maio 2021.
CENTRO PAULA SOUZA. Deliberação 67. Diário Oficial Poder Executivo,
Seção, v. 131, p. 82, p. 37, 1 maio 2020.
DEMAI, F. M. Currículo escolar em laboratório: a educação profissional e
tecnológica. 1. ed. São Paulo: Centro Paula Souza, p. 19-123, 2019.
DENARDI, C. B. Reforma curricular e o ensino de história nas escolas do Centro
Paula Souza. 2002. 168 p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.
GOULART, D.; CÁSSIO, F. Direito à Educação. A farsa do ensino médio self-
service. Le monde diplomatique. Brasil, 12 de agosto de 2021. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/a-farsa-do-ensino-medio-self-service/. Acesso
em: 15 ago. 2021.
HISTEDBR. Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação
no Brasil”. Verbete Teoria do Capital Humano. Campinas: FE Unicamp, 2006.
Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando. Acesso em: 21
maio 2021.
KRAWCZYK, N.; ZAN, D.. A disputa cultural: o pensamento conservador no
ensino médio brasileiro. In: KRAWCZYK, N.; LOMBARDI, J. C. (Orgs.). O
golpe de 2016 e a educação no Brasil. Uberlândia: Navegando Publicações, 2018.

102
Disponível em: Ogolpede2016eaeducaçãonoBrasil_book-3.pdf (marxismo21.
org). Acesso em: 21 maio 2021.
LAGANÁ, L. Editorial. Revista do Centro Paula Souza, ano 2, n. 7, p. 2, set. 2008.
LODI, L; KRAWCZYK, N. R. O Ensino Médio e a Educação Profissional
Técnica de Nível Médio: desafios curriculares. In: IV Colóquio Luso-Brasileiro
Sobre Questões Curriculares, 4., Florianópolis, 2008, Universidade Federal de
Santa Catarina, v. 1.
PIOLLI, E.; SALA, M. A Reforma do Ensino Médio e a Educação Profissional:
da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) às Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio e para a Educação Profissional. Revista Exitus, v. 11, p. e020138,
2021.
SACILOTTO, J. V. A educação profissional na agenda de políticas públicas de
educação no Estado de São Paulo e a expansão do Centro Estadual de Educação
Tecnológica Paula Souza. 2016. 312 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016.
SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Governo do Estado de São Paulo. São
Paulo lança programa de ensino técnico profissionalizante Novotec, 01 mar.
2019a. Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/sp-lanca-programa-
de-ensino-tecnico-profissionalizante/. Acesso em: 21 maio 2021.
SÃO PAULO. Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Resolução
SE 74, de 27 dez.2019. Dispõe sobre a organização curricular de cursos do
Ensino Médio articulados à Educação Profissional de Nível Técnico, a serem
oferecidos em unidades escolares da rede estadual de ensino, em parceria
com o Centro Paula Souza - CPS e dá providências correlatas, Diário Oficial
do Estado, São Paulo, 30 dez. 2019b.
SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Decreto n.º 65
176, 09 jan. 2020. Dispõe sobre o Programa de Qualificação Profissional e
Habilitação Técnica NOVOTEC e dá providências correlatas. Diário Oficial
do Estado, São Paulo, p. 1, 10 jan. 2020a.
SÃO PAULO. Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Resolução SE
09, de 20 jan.2020. Altera a Resolução SE 71, de 22-11-2018, que dispõe sobre o
processo anual de atribuição de classes e aulas ao pessoal docente do Quadro
do Magistério. Diário Oficial do Estado, São Paulo, 21 jan. 2020b.

103
SÃO PAULO. Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Resolução
SE 87, de 20 nov.2020. Dispõe sobre a organização curricular de cursos do
Ensino Médio articulados à Educação Profissional de Nível Técnico, a serem
oferecidos em unidades escolares da rede estadual de ensino, em parceria
com o Centro Paula Souza - CPS e dá providências correlatas, Diário Oficial
do Estado, São Paulo, 21 nov. 2020c.
SÃO PAULO. Parecer CEE 45/2021. Diário Oficial do Estado, São Paulo, Seção
1, p. 30-31, 04 mar. 2021.
SERRA, J. Mãos à obra na expansão do ensino público profissional: subtítulo
do artigo. Revista do Centro Paula Souza. São Paulo, v. 2, n. 6, p. 8-10, jun.
2008. Disponível em: https://www.cps.sp.gov.br/wp-content/uploads/
sites/1/2020/06/06-revista-centro-paula-souza-2008-junho.pdf. Acesso em:
20 jan. 2021.

104
Instituto Federal de São Paulo e a reforma neoliberal
na educação profissional: entre contradições e disputas

Cristiane Letícia Nadaletti74


Danielle de Sousa Santos75
Rogério de Souza Silva76
Tatiana de Oliveira 77

Introdução
No Brasil, a palavra “reforma” já fora concebida como aquela capaz de
expressar a noção de avanço nas questões sociais, uma vez que no campo
político a noção histórica de “reformas de base” ancorou-se no anseio pela
ampliação de uma sociedade socialmente mais justa ou mesmo politicamente
mais democrática (OLIVEIRA, 2001). Com o neoliberalismo, o conceito de
“reforma” assumiu seu revés e passou a exprimir o retrocesso nas políticas
sociais, materializado em um movimento de eliminação de direitos adquiridos
e de desconstrução dos processos democráticos.
Em meio ao atual ciclo de desenvolvimento capitalista no Brasil, a
aprovação da reforma do ensino médio, Lei 13 415/2017 (BRASIL, 2017a),
e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) compõe um conjunto de

74 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp. Pedagoga, IFSP.


cnadaletti@hotmail.com
75 Doutora em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp e
coordenadora dos cursos de ensino médio integrado e EJA, IFSP. danielle.s.santos@gmail.com
76 Doutor em Sociologia, IFCH- Unicamp e professor de Sociologia, IFSP. rogeriosrq@gmail.com
77 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp e professora de
Sociologia, IFSP. alvesolliveira@yahoo.com.br

105
medidas adotadas pelo governo Michel Temer (2016-2018) para aprofundar
a aplicação das políticas neoliberais na educação. Trata-se, a nosso ver, de
um governo que assumiu mediante um “golpe parlamentar” para garantir
o aprofundamento da flexibilização dos direitos sociais e ao mesmo tempo
assegurar os desdobramentos da aprovação da Emenda Constitucional de
número 241, que congelou a ampliação dos gastos públicos com políticas
sociais para além da inflação.
Nesse sentido, a reforma do Ensino Médio e as demais reformas neoliberais
deste início de século expõem a articulação-chave entre dois conceitos que
integram a ideologia que as justifica: modernização e flexibilização. Modernizar,
nesta acepção, para atualizar o arcabouço jurídico brasileiro, adequando-o às
demandas do mercado, ao mesmo tempo em que se submete a esfera pública
à lógica empresarial por maior produtividade (GENTILI; SILVA, 1994). Para
tanto, o mecanismo principal seria flexibilizar, por exemplo, as leis trabalhistas
e aquelas que estruturam os currículos e a concepção de ensino médio no País.
Como afirmam Krawczyk e Ferreti (2017), a ênfase passa a ser a noção
de “flexibilização”. Historicamente, a ideia passou a ser utilizada em oposição
a uma estrutura estatal de proteção do trabalho e de proteção social – como
verificamos na recente reforma trabalhista. Os autores chamam a atenção
para a capacidade “tentadora” do termo, “porque remete, na fantasia das
pessoas, à autonomia, livre escolha, espaço de criatividade e inovação”, quando
“flexibilização pode ser também desregulamentação, precarização, instabilidade
da proteção contra a concentração da riqueza material e de conhecimento,
permitindo a exacerbação dos processos de exclusão e desigualdade social”
(KRAWCZYK; FERRETI, 2017, p. 36-37). Dessa forma, modernizar e flexibilizar
tornam-se, neste discurso ideológico, aspectos “positivos” que camuflam
um itinerário político de esvaziamento do real significado dessas mudanças
estruturais.
É sabido que, apesar das intenções dos propositores da reforma, cada
instituição escolar constrói uma forma particular para sua apropriação e
implementação. Assim, para além da aparência externalizada pelo discurso
ideológico, o presente trabalho analisa as estratégias de disputas e a pressão
para que as instituições educacionais, em especial o Instituto Federal de São
Paulo (IFSP), adotem a reforma do ensino médio e a consequente lógica

106
neoliberal na educação. Dito isto, buscaremos fazer uma reflexão sobre as
contradições na implementação da reforma no IFSP, desde a publicação da
MP n.º 746/2016, convertida na Lei n.º 13415, de 2017, até as repercussões das
novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Profissional e
Tecnológica (BRASIL, 2021a).
Não obstante, as medidas em curso não impedem que ações de resistência
ou mesmo interpretações da lei sejam propostas no IFSP por seus gestores
e educadores. Desse modo, nosso intuito é também reconhecer ações de
resistência que surgem no processo de implementação da política educacional,
demonstrando os conflitos que emergem da realidade.
A partir de uma análise documental (BARDIN, 1997; SHIROMA;
CAMPOS; GARCIA, 2005), bem como dos discursos associados à defesa dessas
iniciativas (MINAYO, 1994) e do acompanhamento das ações do Ministério
da Educação (MEC) e da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
(SETEC) que interferem diretamente na atuação da RFEPCT, de forma geral, e
no IFSP, em particular, destacamos neste artigo dois processos que chamaremos
de movimentos de adaptação do IFSP à Reforma do Ensino Médio.
O primeiro relaciona-se com as disputas em torno das mudanças na
matriz formativa dos cursos do IFSP, com destaque para os mecanismos
de implementação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para
a Educação Profissional e Tecnológica (BRASIL, 2021a), as discussões no
âmbito da construção dos Currículos de Referência (CRs)78 e a tentativa de
fomento da parceria entre o IFSP e o Governo do estado de São Paulo, para
a oferta de cursos de qualificação profissional através do programa “Novotec
Expresso”. E o segundo movimento diz respeito às ações para a oferta de
educação profissional, alinhadas às demandas de mercado impulsionadas
pelo programa “Novos Caminhos”. Devido ao espaço e ao escopo do artigo,
analisaremos, principalmente, as ações que interferem diretamente nos cursos
técnicos de nível médio na forma integrada, perpassando as diferentes tentativas,

78 Os Currículos de Referência do IFSP aprovados em 2021 podem ser consultados através do


link: https://www.ifsp.edu.br/auditoria/66-colegiados/conselho-superior/1981-resolucao-2021.
Exemplos: Curso Técnico Integrado ao Ensino Médio de Eletrônica - https://drive.ifsp.edu.br/
s/3v3qx88nT884rd9#pdfviewer; Curso Técnico em Eletrônica Concomitante/Subsequente - https://
drive.ifsp.edu.br/s/y2NKjLke82NMdDS#pdfviewer. Acesso em: 06 jun. 2021.

107
por parte do governo federal, de modificar a autonomia científico-pedagógica,
administrativa e pedagógica dos Institutos Federais.

A Rede Federal de Educação Profissional Científica e Tecnológica e


as disputas em torno de sua matriz formativa
A criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia
expressa a luta da classe trabalhadora contra os retrocessos das políticas públicas
de educação profissional desenvolvidas nos últimos anos no Brasil. Os Institutos
Federais foram criados em 2008, por meio da Lei n.º 11892, de 29/12/2008
(BRASIL, 2008)79, com natureza jurídica de autarquia, detentores de autonomia
administrativa, patrimonial, financeira, didático-pedagógica e disciplinar. São
instituições de educação superior, básica e profissional, pluricurriculares e
multicampi, especializadas na oferta de educação profissional e tecnológica
em diferentes níveis e modalidades.
No que tange à oferta dos cursos, a lei estabelece que no mínimo 50%
das vagas ofertadas pelos IFs sejam destinadas à educação profissional técnica
de nível médio, prioritariamente na forma integrada, 20% no mínimo para
cursos de licenciatura e 30% para cursos de bacharelados, tecnologia e pós-
graduação (lato sensu e stricto sensu). A prioridade da modalidade na forma
integrada expressa uma tentativa de superar, através da ampliação do acesso
a uma educação pautada pela formação humana integral e voltada para os
jovens da classe trabalhadora, a histórica dualidade que marca o ensino
médio no Brasil e separa trabalho formal e trabalho intelectual. Ou seja, uma
experiência formativa capaz de colaborar com a superação das desigualdades
educacionais que caracterizam grande parte da trajetória da nossa sociedade
e, ao mesmo tempo, vincula-se ao desenvolvimento socioeconômico local,
regional e nacional, com vistas a proporcionar uma educação emancipadora
(BRASIL, 2007; BRASIL, 2008).
Ainda que se constitua em uma rede, cada Instituto Federal (IF) apresenta
singularidades que estão relacionadas à região e ao contexto socioeconômico
e cultural no qual está inserido, aos eixos tecnológicos implementados e,
79 A Lei nº 11 892/08 criou a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica a
partir da transformação das Escolas Técnicas Federais em Institutos Federais. Além dos 38 Institutos
Federais a rede é composta por 02 Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET), 25 escolas
vinculadas às Universidades, o Colégio Pedro II (RJ) e uma Universidade Tecnológica (PR).

108
consequentemente, às características do corpo docente de cada unidade.
Outro importante fator que interfere na particularidade de cada IF é o fato
de ter sido, ou não, constituído a partir da transformação de instituições que
integravam a rede naquele momento, como é o caso do IFSP, que se originou
da Escola de Aprendizes Artífices criada pelo Decreto n.º 7 566, de 23/9/1909,
da Escola Técnica Federal de São Paulo e dos Centros Federais de Educação
Tecnológica. Antes dessa nova experiência de EPT federal, o estado de São Paulo
possuía 03 campi. Atualmente o IFSP é o maior instituto do Brasil, composto
por 37 unidades distribuídas no território paulista, com 801 cursos, 62 660
estudantes matriculados, 3004 professores e 1880 técnico-administrativos. A
Educação Básica contabiliza 22 259 matrículas, distribuídas em 226 cursos,
sendo 100 desses ofertados na forma integrada ao ensino médio, nos quais se
encontram 10 896 estudantes matriculados.80
O fato de o IFSP se constituir a partir de uma escola quase centenária
se mostra importante para compreendermos, entre outras questões, que os
fundamentos político-pedagógicos que orientam a proposta de integração entre
formação geral e profissional, pautada na concepção da formação politécnica
(BRASIL, 2007), confrontam-se não apenas com o desconhecimento, mas
também com o enfrentamento e a negação dessa proposta por uma parte
da sua comunidade (FERRETTI, 2018), − o que se desdobra atualmente em
embates e disputas em torno da reforma do ensino médio.81
Como previsto na Lei n.º 13415 de 2017, a atual reforma do Ensino Médio
modifica substancialmente a oferta da última etapa da educação básica no Brasil,
flexibilizando a formação dos estudantes por meio da escolha de um dos cinco
itinerários formativos na parte final deste nível de ensino: Ciências da Natureza,
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Linguagens, Matemática e Formação
Técnica. A proposta do Ministério da Educação (MEC) atinge diretamente a
experiência do Ensino Médio Integrado (EMI), pois, entre outras questões, a
oferta do quinto itinerário, isto é, da formação técnica e profissional, opõe-se

80 Dados: Plataforma Nilo Peçanha. Disponível em: http://plataformanilopecanha.mec.gov.br/.


Acesso em: 22 maio 2021.
81 Os embates que culminaram na aprovação do Decreto nº. 5154/2004 são resultantes da correlação
de forças existentes no período em torno da disputa pelo projeto de educação dos trabalhadores
no Brasil. O que observamos atualmente é que esta disputa se recoloca em termos de política
educacional, mas também de como ela será assimilada no IFSP. Sobre o Decreto n.º 5154/2004,
ver: Frigotto, Ramos e Ciavatta (2005).

109
radicalmente à concepção de formação integrada ofertada na RFEPCT, uma
vez que fragmenta e reduz a formação dos estudantes. Ademais, não indica
a necessidade de um projeto pedagógico unificado, dando a possibilidade
de parcerias com outras instituições e com o setor privado (BRASIL, 2017a).
Nesse cenário, ainda que com contradições e divergências, os dois
Seminários Nacionais do Ensino Médio Integrado, organizados em 2017 e
2018 pelo Fórum de Dirigentes de Ensino (FDE), colegiado que compõe o
Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional,
Científica e Tecnológica (CONIF), ratificaram a defesa e a manutenção dos
cursos de EMI em sua concepção e princípios. Entre as proposições dos
seminários destaca-se a Minuta das Diretrizes Curriculares do Ensino Médio
Integrado para a Rede Federal encaminhada ao CONIF para apreciação e
posterior discussão em toda a rede federal.
No âmbito do IFSP, o posicionamento do CONIF foi de suma importância
para consolidar as ações que desde 2015 ambicionavam fortalecer a oferta do
EMI, que em síntese foram materializadas na expansão de oferta dos cursos
e na aprovação da Resolução IFSP n.º 163/2017, “que institui Diretrizes para
os Cursos Técnicos de Nível Médio na forma integrada ao Ensino Médio do
IFSP” (BRASIL, 2017b). Além de expressar os princípios, os fundamentos e
as concepções do EMI, o documento define questões relevantes, como, por
exemplo, a organização curricular por meio de disciplina e não na forma
de áreas de conhecimento; e a garantia da oferta de todos os componentes
curriculares que integram a formação geral em todos os anos do ensino médio.
“Os componentes e conteúdos curriculares obrigatórios que compõem a
Formação Geral deverão ser desenvolvidos em todos os anos do ensino médio”
(BRASIL, 2017b, p. 11). As diretrizes do IFSP ainda apresentam na sua matriz
curricular um novo espaço, denominado Núcleo Estruturante Articulador
(NEA), que almeja aumentar a articulação entre os conhecimentos da formação
básica e os da profissional.
Articulação entre Educação Básica e Educação Profissional, sem valorização
de uma em detrimento da outra, com vistas à formação integral do estudante,
aqui entendida como a educação que forma o ser humano em sua integralidade
(intelectiva, física, psicológica, filosófica, cultural e social) e para sua
emancipação. (BRASIL, 2017b, p. 03)

110
Nesse contexto, as orientações originárias das discussões do FDE/CONIF,
entre outras razões e motivações, ampararam a proposição da construção de
Currículos de Referência (CRs) para os cursos de EMI do IFSP, regulamentada
pela Resolução IFSP n.º 37/2018 (BRASIL, 2018).
Com o objetivo de assegurar que a oferta dos cursos não só acompanhe a
dinâmica do setor produtivo, mas também garanta a formação de profissionais
com uma compreensão crítica de mundo e de sociedade, para cada perfil
de formação esperado, pretende-se definir quais os elementos essenciais
contidos na organização da oferta dos cursos. Essa definição será realizada
de forma coletiva e participativa, culminando na formação de um currículo
de referência adequado para o IFSP, reafirmando os pressupostos da nossa
instituição. (BRASIL, 2018, p. 13)

Podemos inferir que o conjunto de ações e movimentos descritos acima


obstacularizaram, de certo modo, a implementação da reforma do ensino
médio no que tange aos cursos EMI da Rede Federal de Educação Profissional
e Científica, o que não significa que as tentativas de implementação da reforma
ou do que chamamos aqui de “variantes da reforma” não estejam em curso,
como veremos a seguir.
A definição de que os IFs deveriam priorizar a oferta de cursos de educação
profissional na forma integrada gerou expectativas quanto ao enfrentamento
da dualidade estrutural na escola média, historicamente marcada pela divisão
entre a formação para o mundo do trabalho e a formação intelectual, esta
destinada às classes dirigentes. A prioridade da forma integrada em relação às
formas concomitantes ou subsequentes ao ensino médio revela a estratégia de
vincular desenvolvimento econômico e elevação da escolarização dos jovens
da classe trabalhadora, por meio da ampliação do acesso a uma educação
pública gratuita e de qualidade.
Os cursos técnicos de nível médio, ofertados pelos IFs, vinculam-se ao
processo de reforma da educação profissional do início do século XXI. A
promulgação do Decreto n.º 5154/2004 (BRASIL, 2004) revogou o Decreto
n. 2.208/97, que proibia a integração da educação básica com a educação
profissional, e inseriu novamente a perspectiva da formação politécnica e
omnilateral no centro do debate educacional. Nesse sentido, o Decreto n.º
5154/2004 se constituiu num importante instrumento mobilizador, até que um

111
projeto nacional de educação emancipatória para os trabalhadores pudesse ser
efetivado. Assim, “[...] é um documento híbrido, com contradições que, para
expressar a luta dos setores progressistas envolvidos, precisa ser compreendido
nas disputas internas da sociedade, nos estados, nas escolas [...]” (FRIGOTTO;
CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 26-27).
Voltando nosso olhar para o IFSP, observamos uma grande expansão
dos cursos de EMI. Em 2012, dos 25 campi que compunham a instituição,
apenas 5 ofertavam esses cursos. Posteriormente, incentivada pelas políticas
de apoio do MEC, a instituição promoveu uma expressiva expansão, sendo
que em 2017 todos os 36 campi passam a ofertar cursos de ensino médio na
forma integrada ao ensino médio (BRASIL, 2019, p. 03). A ampliação da
oferta desses cursos evidenciou a demanda e o desafio de construir Projetos
Pedagógicos de Curso (PPC) que “superem o dualismo alimentado de diversas
formas, inclusive na segmentação do currículo, separando a formação geral
e a formação profissional” (CIAVATTA, 2005, p. 93).
A aprovação das Diretrizes para os Cursos Técnicos de Nível Médio na
Forma Integrada ao Ensino Médio na Resolução IFSP n.º 163/2017 (BRASIL,
2017b) e a elaboração dos “Currículos de Referência” ancoravam-se no debate
em torno da aprovação do Decreto 5154/2004, do Documento Base de 2007
(SETEC BRASIL, 2007) e da Resolução n.º 6/2012, do Conselho Nacional de
Educação (CNE). Essas normativas reafirmavam, cada uma a sua maneira,
a centralidade na formação humana e integral dos estudantes. No entanto, a
reforma do ensino médio, com destaque para o quinto itinerário formativo,
ao adentrar a Educação Profissional e Tecnológica Federal, tende a alterar
significativamente esse percurso.
Depois de diversos pareceres produzidos no ano de 2020, o Conselho
Nacional de Educação (CNE/CP) publicou a Resolução n.° 1/2021 com as
novas “Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Profissional e
Tecnológica” (BRASIL, 2021a). Estas, alinhadas aos fundamentos da reforma
do ensino médio e da BNCC, não mencionam componentes curriculares e
enfatizam a oferta da educação profissional na forma concomitante (matrículas
distintas para a formação regular e técnica) e intercomplementar (matrículas
distintas para a formação regular e técnica, porém dentro de único projeto
pedagógico). As novas DCNEPT também determinam no seu Art. 26, inciso
1.º (grifos nossos):

112
Os cursos de qualificação profissional técnica e os cursos técnicos, na forma
articulada, integrada com o Ensino Médio ou com este concomitante em
instituições e redes de ensino distintas, com projeto pedagógico unificado,
terão carga horária que, em conjunto com a da formação geral, totalizará,
no mínimo, 3.000 (três mil) horas, a partir do ano de 2021, garantindo-se
carga horária máxima de 1.800 (mil e oitocentas) horas para a BNCC,
nos termos das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em
atenção ao disposto no §5.º do Art. 35-A da LDB.

Nesse formato, a nova normativa para os cursos técnicos de níveis


médio, com destaque para a forma integrada ao ensino médio, estabelece
sérios obstáculos para a concretização das resoluções internas do IFSP82.
Nesse percurso, destacamos como, no presente momento, as normativas
jurídicas internas e a reformulação dos PPC dos cursos técnicos passam a
ser representativos das tensões e mudanças impulsionadas a partir das novas
DCNEPT.
Para estudar os efeitos das novas diretrizes sobre os documentos que
tratam da regulamentação e do funcionamento da educação profissional no
âmbito do IFSP, a sua Pró-Reitoria de Ensino (PRE) criou, no dia 13 de janeiro
de 2021, um Grupo de Trabalho (GT) composto por especialistas no tema e
representantes do Conselho Superior (CONSUP) e do Conselho de Ensino
(CONEN)83. O GT formado apresentou uma proposta de minuta para uma
Instrução Normativa que regulará as reformulações dos cursos técnicos. Após
passar por consulta pública, a Instrução Normativa N.º 06 foi publicada em
22 de junho de 202184. O documento (BRASIL, 2021b) estabelece que:
82 É importante fazer uma observação metodológica: tanto as iniciativas do governo federal
para a educação profissional nos Institutos Federais, como o próprio processo de construção dos
“Diretrizes dos Cursos Técnicos de Nível Médio na Forma Integrada ao Ensino Médio do IFSP”
e dos “Currículos de Referência da Educação Básica do IFSP” são fatos recentes, muitos ainda
sem um desfecho. Assim, trataremos de analisá-los até onde for possível, partindo do pressuposto
que tais fatos devem ser interpretados na articulação e nas contradições inerentes ao contexto
sócio-histórico e aos sujeitos que disputam os rumos do projeto de educação pública do País.
83 Portaria-IFSP n.° 160/2021. Disponível em: https://drive.ifsp.edu.br/s/SZgI58QnVHC
n2Lc#pdfviewer. Acesso em: 04 jun. 2021.
84 A Instrução Normativa N.º 06 /2021 do IFSP Regulamenta, no âmbito do IFSP, os procedimentos
para os trâmites de implantação e reformulação dos cursos técnicos na forma integrada ao médio,
inclusive na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), no contexto de implementação
dos Currículos de Referência da Educação Básica e das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais
para a Educação Profissional Tecnológica.

113
Art. 5º. Os cursos técnicos na forma integrada ao ensino médio devem
conter carga horária mínima de 2.000 horas destinadas aos conhecimentos
da formação geral, distribuídos entre Núcleo Estruturante Comum (NEC)
e Núcleo Estruturante Articulador (NEA), e mínimo de 800, 1.000 ou 1.200
horas, conforme o Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos (CNCT), de
conhecimentos associados à formação técnica, distribuídos entre Núcleo
Estruturante Tecnológico (NET) e NEA, sempre observando as orientações
da carga horária dispostas pela Resolução IFSP 18/2019. § 1º. Os cursos cuja
carga horária mínima do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos está prevista
em 800 horas terão 3.000 horas como carga horária mínima total do curso.
§ 2º. Os câmpus poderão adotar nos seus cursos técnicos na forma integrada
ao Ensino Médio uma carga horária acima das 3.000 horas (nos casos das
habilitações de 800 ou 1.000 horas do CNCT) e acima das 3.200 horas (nos
casos das habilitações de 1.200 horas do CNCT), respeitadas as orientações
da Resolução IFSP 18/2019.

Nesse contexto, sob a luz da implementação dos Currículos de Referência,


surgem de forma anacrônica duas propostas de reformulação dos cursos
integrados de Edificações e Informática do campus Campos do Jordão85.
Analisamos que o conteúdo dos documentos apresenta teses que contradizem
o esforço promovido pelo IFSP nos últimos anos para implementar a política
educacional expressa nos documentos fundadores dos Institutos Federais e
no seu último Projeto de Desenvolvimento Institucional (PDI 2019-2023).
As propostas de reformulação dos cursos mencionados se amparam nas
novas DCNEPT/2021 para justificar a redução da carga horária alinhada à
reforma do ensino médio e à BNCC, que prevê para os cursos técnicos na forma
integrada ao ensino médio carga horária de 3000 horas, sendo a formação
geral (científica e humanística) constituída com no máximo 1800 horas.
Tomando como exemplo o curso Técnico em Informática, verificamos que
alguns componentes curriculares, com destaque para Arte, Educação Física,
História, Geografia, Biologia e Química não serão ofertados em todos os anos
do curso, conforme a Resolução-IFSP 163/2017, mencionada anteriormente. Em
relação a carga horária, o curso destina 1800 horas para o Núcleo Estruturante

85 No drive institucional do IFSP é possível acessar todo o processo de reformulação dos cursos
em questão: https://drive.ifsp.edu.br/s/Y5r2TBdFaYCPHcC.

114
Comum e 1266 horas para os Núcleos articuladores e tecnológico, limitando-
se às orientações da BNCC e DCNEPT/2021 e desconsiderando o processo
de discussão curricular da própria instituição86.
Nesse contexto, vale destacar que os atores que contribuíram recentemente
para a construção dos Currículos de Referência do IFSP, que contou com
ampla participação de docentes de todos os campi, são também, no caso em
específico, praticamente os mesmos que passam a defender a aplicação das
DCNEPT e da BNCC nos cursos em questão. O embate revela importantes
tensões expostas a partir da imposição das novas normativas federais.
Por exemplo, no debate realizado no CONSUP, em maio de 202187, no
qual as propostas de reformulação foram referendadas, motivações sem caráter
pedagógico foram explicitadas para justificar as alterações realizadas nos
cursos. Com relevo para a necessidade de ofertar cursos integrados com carga
horária concentrada em um único período, justifica-se a necessidade de isentar
o IFSP da oferta de refeição aos estudantes. Cita-se também a deficiência na
estrutura física da unidade que, dividida em dois prédios, sendo um deles
alugado, impediria a oferta de cursos técnicos com carga mais elevada.
Contudo, esse processo não ocorreu sem resistência. A expansão dos cursos
técnicos de nível médio integrados permitiu o ingresso de servidores docentes
com formação em licenciatura de diferentes áreas e com formação em política
educacional. Muitos desses novos servidores participaram das discussões
para a elaboração da Resolução 163/2017 (BRASIL, 2017b) e, principalmente,
da construção dos Currículos de Referência. A aprovação da reformulação
dos cursos do campus Campos do Jordão repercutiu entre a comunidade
acadêmica com a manifestação de posições divergentes das DCNEPT e da
BNCC. Através de cartas, notas e debates sindicais, posicionamentos contrários
a essas reformulações foram publicizados, com destaque para: “Carta de
consultores da Educação Básica dos Currículos de Referência”; “Carta do
coletivo dos professores de Educação Física do IFSP”; “Carta de um professor
de educação física para a comunidade do IFSP”; “Abaixo-assinado contra a
86 Resolução N.º 89/2021. Aprova ad referendum a reformulação do Curso Técnico em Informática
na forma integrada ao Ensino Médio do Campus Campos do Jordão. Disponível em: https://
ifsp.edu.br/component/content/article/66-assuntos/reitoria/colegiados/conselho-superior/1981-
resolucao-2021. Acesso em: 15 set. 2021.
87 A reunião do Conselho Superior de 05/2021 pode ser acessada pelo endereço eletrônico: https://
www.youtube.com/watch?v=CdEqXaj9Y6k.

115
aprovação ad referendum dos cursos técnicos em Informática e Edificações
em Campos do Jordão”; “Debate 1° de maio: Trabalho e Educação, Histórias
e Futuros”88.
Paralelamente a esse quadro, envolvendo os procedimentos de aplicação
das DCNEPT e a reformulação dos cursos técnicos, o IFSP iniciou uma recente
relação de parceria com o governo do estado de São Paulo para promover o
Programa Novotec Expresso, o qual analisaremos brevemente a seguir.
O Novotec é um Programa lançado pela Secretaria de Desenvolvimento
Econômico do governo do estado de São Paulo para ofertar educação profissional
na rede estadual de ensino. De acordo com os documentos oficiais, a iniciativa
tem por objetivo
ampliar o acesso à Educação Profissional e Técnica aos jovens estudantes da
rede estadual paulista e recém concluintes do Ensino Médio (14 a 24 anos)
[...], conectando com o currículo do ensino médio, apoiando na escolha de
um caminho profissional e oferecendo oportunidades de geração de renda
(SDE/NOVOTEC, 2021).

Tal iniciativa busca oferecer vagas no Ensino Médio Integrado com


aulas em único turno e currículo que abrange os três anos da modalidade,
cursos de curta duração de até 150 horas para qualificação profissional através
dos denominados Novotec Expresso e Novotec Móvel e cursos de 80 horas
oferecidos a distância por meio do Novotec Virtual (SDE/NOVOTEC, 2021).
Como apontado por Piolli e Sala (2019), o presente programa necessita ser
analisado no contexto da reforma do ensino médio, que abrange sobretudo duas
frentes: aquela voltada para a adequação à BNCC, com carga horária máxima
de 1800 horas de formação; e aquela destinada aos itinerários formativos, no
qual o Novotec surge como uma estratégia importante de implementação do

88 Muitas dessas manifestações constam no site do sindicato, SINASEFE-SP, entre as quais:


Carta do coletivo de professores de Educação Física do IFSP: https://sinasefesp.org.br/carta-
do-coletivo-de-docentes-de-educacao-fisica-do-instituto-federal-de-sao-paulo/; Carta de
consultores da Educação Básica dos Currículos de Referência: https://sinasefesp.org.br/nota-
sobre-a-reformulacao-dos-cursos-integrados-de-edificacoes-e-informatica-no-ifsp/; Carta de um
professor de educação física para a comunidade do IFSP: https://sinasefesp.org.br/carta-de-um-
professor-de-educacao-fisica-para-a-comunidade-do-ifsp/; Abaixo-assinado: https://sinasefesp.org.
br/sinasefe-sp-apoia-abaixo-assinado-contra-a-aprovacao-ad-referendum-dos-cursos-tecnicos-
em-informatica-e-edificacoes-em-campos-do-jordao/; Debate 1.° de maio: https://sinasefesp.org.
br/debate-1o-de-maio-trabalho-e-educacao-historias-e-futuros/.

116
itinerário profissionalizante. Os autores demonstram que a tônica dos cursos
de formação rápida manifesta a ênfase em uma qualificação aligeirada, pois
embora o mercado de trabalho também solicite uma força de trabalho
qualificada, ele demanda, em volumes crescentes, uma força de trabalho
embrutecida e adestrada apenas para o trabalho mais simples. É essa
qualificação desigual da força de trabalho que o governo paulista quer fornecer
em massa. (PIOLLI; SALA, 2019, p. 185)

Entre as modalidades do Programa Novotec, o IFSP vem se constituindo


como um possível parceiro para a oferta do tipo “Expresso”. De acordo com os
documentos oficiais, o Novotec Expresso se caracteriza por oferecer “cursos
de qualificação profissional com até 150 horas (em 2021 com 120 horas)
como parte da parte diversificada do currículo do EM ou no contraturno do
estudante” (SDE/NOVOTEC, 2021). Possui formato presencial com duração
de um semestre letivo e formato remoto adaptado. Estão entre os benefícios
divulgados pelo governo do estado de São Paulo:
i) os estudantes ao cursarem o Novotec em uma ETEC, FATEC, câmpus do
IFSP ou instituição privada de excelência têm grande potencial de serem
atraídos para um curso profissionalizante ou tecnólogo; ii) os estudantes
tangibilizam seu projeto de vida; iii) preparação do estudante para o mercado
de trabalho para entrada durante e após o Ensino Médio; iv) aplicação na
prática do que os estudantes estão aprendendo nos componentes curriculares
do Ensino Médio. (SDE/NOVOTEC, 2021)

É notório que a ênfase está no aspecto da empregabilidade que os cursos


do Novotec Expresso podem promover aos seus concluintes. O que não se
desnuda é que a articulação dos cursos do Novotec com as expectativas para
a empregabilidade e com o “projeto de vida” do estudante, a partir de uma
apropriação da ideologia da “autonomia de escolha”, eleva, por um lado, a
disputa pelas identidades estudantis adaptáveis ao mercado de trabalho e
reforça, por outro, o individualismo e a responsabilização dos indivíduos
por seus fracassos na construção de suas carreiras, desconsiderando a análise
sobre o mundo do trabalho no capitalismo e suas desigualdades estruturantes.
Com previsão de oferta em 2020 nas Escolas Estaduais (EEs), Escolas
Técnicas Estaduais (ETECs) e Faculdades Tecnológicas (FATECs), o plano

117
estabelecido foi garantir a “expansão para o Instituto Federal de São Paulo e
fornecedores privados em 2021” (SDE/NOVOTEC, 2021). Nessa perspectiva, a
proposta foi apresentada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico de São
Paulo (SDE/SP) na reunião extraordinária do Conselho Dirigente (COLDIR) do
IFSP, de 05/02/2021. Atualmente, não existem muitas informações publicizadas
de fácil acesso a respeito das tratativas que envolveram a possível parceria entre
a SDE/SP e o IFSP. Os dados aqui trazidos se encontram nos documentos
disponibilizados oficialmente para explicitar os caminhos pelos quais essa
parceria tentou ser implementada89 e se apoiam também nos documentos de
reação da comunidade acadêmica, no que tange a essa proposta.
A possibilidade de adesão ao programa foi encaminhada no mês de
maio de 2021 em uma consulta aos campi, que buscou coletar dados para a
adesão ao Novotec e uma primeira manifestação de interesse em participar
ministrando cursos, processo ratificado através de um e-mail institucional
com informações adicionais. Apesar de o Novotec Expresso ofertar cursos
profissionalizantes, tradicionalmente alocados e geridos pela PRE do IFSP, os
documentos informam que as negociações foram conduzidas pela Agência de
Inovação e Transferência de Tecnologia (INOVA) do IFSP, sem tratamento
prévio nas instâncias que dão acompanhamento à política educacional. Os
cursos que se mantiveram no rol de oferta são: Ajudante de Logística; Auxiliar
de Vendas; Computação em Nuvem; Comunicação e Projeto de Vida para
o Mercado de Trabalho; Criação de Sites e Plataformas Digitais; Desenho
no AutoCAD; Desenvolvimento em Java; Design de Plataforma Digitais e
Experiência do Usuário; Edição de Vídeo para Youtuber; Excel Aplicado à
Área Administrativa; Gestão de Pequenos Negócios; Introdução a Banco de
Dados; Marketing Digital e Vendas em Redes Sociais; Montagem e Manutenção
de Microcomputadores; Programação Básica para Android; Programação de
Sistemas Embarcados (Arduíno); Rotinas de Recursos Humanos; Segurança
Cibernética Fundamental e Técnicas de Atendimento.

89 Reunião extraordinária do Conselho Dirigente (COLDIR) do IFSP de 05/02/2021, disponível


em https://www.youtube.com/watch?v=suPicdXVywo&ab_channel=IFSP-InstitutoFederaldeS
%C3%A3oPaulo; Reunião do Conselho Superior (CONSUP-IFSP), de 18/05/2021, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=CdEqXaj9Y6k; Reunião do Conselho de Ensino (CONEN-
IFSP), realizada no dia 01/07/2021, que teve como ponto de pauta único: “Proposta de adesão ao
NOVOTEC pelo ISFP” - a gravação desta reunião foi disponibilizada através de solicitação oficial
feita pelos autores deste artigo.

118
Notamos que tanto a identificação da demanda como a disponibilidade
para atendê-la, por serem descentralizadas e darem autonomia para que os
campi manifestem sua adesão, dificultaram que a proposição seja analisada
e debatida por outros órgãos de ensino da comunidade acadêmica. Órgãos
esses que tradicionalmente participam da gestão da política educacional,
especialmente aquelas propostas relacionadas com a matriz curricular,
enfraquecendo assim o debate público em torno das questões que envolvem
essa iniciativa de parceria.
Além disso, constatamos que o principal dispositivo utilizado para a adesão
dos servidores do IFSP ao programa é o retorno pecuniário, sem, novamente,
proceder a um debate político-pedagógico que vise aproximar o plano de oferta
de vagas a um projeto mais amplo de educação profissional na localidade em
que o campus está inserido. Ademais, considerando serem os docentes do
IFSP amparados pela carreira do magistério EBTT (Educação Básica Técnica e
Tecnológica), que possui fundamento no mecanismo de “dedicação exclusiva”,
documentos produzidos pela comunidade, como o “Manifesto sobre a adesão
do IFSP ao Programa Novotec”90, apontam preocupação com os efeitos desse
tipo de parceria sobre a presente carreira e com possíveis mudanças nos aspectos
que definem a qualidade da educação ofertada na rede federal.
No que se refere à gestão educacional do programa no IFSP, a comunicação
das informações com a SDE-SP estaria a cargo do INOVA-IFSP, e os Planos
Pedagógicos dos Curso poderiam ser os mesmos que integram os cursos
do Novotec, padronizados para todo o estado de São Paulo. Desse modo,
percebemos que, em termos de autonomia político-pedagógica, preconizada
na condução dos cursos ofertados pelo IFSP com ênfase na articulação com
o arranjo produtivo local (APL), a relação de “parceria” com a SDE/SP se
desenvolve mediante um contexto de elevação do pragmatismo educacional.
No contexto de “asfixia orçamentária” por meio dos cortes, dos bloqueios
e do contingenciamento das verbas destinadas à educação, as parcerias se
apresentam como um caminho “quase irrecusável”. Mesmo tendo, no final
de 2020, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) se tornado política

90 Disponível em: https://sinasefesp.org.br/manifesto-sobre-a-adesao-do-ifsp-ao-programa-


novotec-expresso/. Acesso em: 10 set. 2021.

119
permanente de Estado, a publicação do Decreto n. 1656/2021, que regulamenta
o FUNDEB, ratificou a possibilidade de realização de convênios e parcerias
entre os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e o poder
público (art. 25), nos seguintes termos:
As instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
Tecnológica deverão informar, no mínimo, semestralmente à rede estadual
de educação qual é sua capacidade de absorção de matrículas para cursos
concomitantes de educação profissional técnica de nível médio na forma de
convênio ou de parceria que implique transferência de recursos previstos no
inciso II do § 3º do art. 7º da Lei nº 14.113, de 2020. (BRASIL, 2021c)

Assim, a partir da análise documental proferida, é possível aferir que está


em curso um amplo processo de alteração da educação profissional no estado
de São Paulo, alargando os meios de implementação da Reforma do Ensino
Médio para as diferentes instituições. Nesse sentido, considerando a trajetória
educacional do IFSP e sua organização em rede para a construção dos aspectos
que definem a sua matriz formativa, a oferta dos cursos profissionalizantes
através do Novotec Expresso da SDE/SP, a nosso ver, abre caminhos para
um rebaixamento de sua proposta de educação técnica e tecnológica. Além
disso, a presente parceria amplia o contexto de fragilização da carreira
docente operada nos IFs, ao mesmo tempo em que diminui a importância
dos mecanismos de gestão democrática da política educacional, como foi
expresso nos posicionamentos contrários à celebração dessa parceria91.
Esse processo, portanto, não vem ocorrendo sem tensões e divergências.
A consulta aos campi para manifestação de interesse em selar a parceria com a
SDE/SP obteve manifestações contrárias que foram publicizadas à comunidade.
Nesse ínterim, destacamos os debates sindicais organizados pelo SINASEFE-
SP “NOVOTEC: Impactos na Educação Profissional e Tecnológica na Rede
Federal” e “O currículo do Ensino Médio e o desafio da formação humana
integral nos Institutos Federais”92, a “Carta dos professores da área do Núcleo

91 Em 18 de novembro de 2020, o Ministério da Educação divulgou a Portaria 983, que altera a


atribuição docente dos professores EBTT, com destaque para a elevação da carga horária mínima em
sala de aula e a diminuição do tempo destinado aos projetos de pesquisa e extensão e a participação
em comissões, colegiados e demais representações institucionais (BRASIL, 2020b).
92 Live “NOVOTEC: Impactos na Educação Profissional e Tecnológica na Rede Federal”. Disponível
em: https://sinasefesp.org.br/video-novotec-impactos-na-educacao-profissional-e-tecnologica-

120
Comum do campus Itapetininga”93 e o “Manifesto sobre a adesão do IFSP
ao Programa Novotec”, já mencionado. Essas ações são representativas das
contradições e embates que as novas normativas têm gerado no interior do
IFSP, demonstrando ser importante que o debate público e democrático seja
respeitado em prol da defesa da trajetória e do próprio caráter público da
educação profissional oferecida na rede federal. Em meio aos conflitos e às
indefinições de caráter administrativo-institucional, a presente parceria não
foi firmada no ano de 2021, sendo postergada para futuras negociações no
ano de 2022.
Ainda que o Programa Novotec e as demais disputas em torno das
mudanças da matriz formativa do IFSP estejam em debate, é notável como
os espaços para novas parcerias vêm se ampliando, abrindo um percurso para
novas formas de captação de recurso e de articulação da esfera pública com a
esfera privada, recolocando a questão do tema da privatização sob diferentes
prismas. Nesse contexto, a seguir analisaremos como o Programa “Novos
Caminhos” do governo federal reforça a tensão por adaptação das instituições
públicas às demandas da esfera privada.

O Programa “Novos Caminhos” e a privatização silenciosa


Em abril de 2019, decorridos menos de quatro meses do governo de Jair
Bolsonaro, Marcos Nobre indicou, na contramão da correnteza da opinião
pública, existir “o caos como método”, no qual manter o colapso institucional
era a forma encontrada pelo governo federal para garantir a fidelidade dos
seus eleitores (NOBRE, 2019). Decorridos cerca de três anos de mandato,
o sugerido “método” parece tornar-se cada vez mais nítido, não deixando
despercebidas áreas como a ciência e a educação, as quais se encontram sob/
em constantes ataques.
Sei que, para muita gente, falar em modelo de governo parece absurdo no caso
do atual presidente. Mas repetir que não existe método no caos não apenas

na-rede-federal/; Live “O currículo do Ensino Médio e o desafio da formação humana integral


nos Institutos Federais”. Disponível em: https://sinasefesp.org.br/video-o-curriculo-do-ensino-
medio-e-o-desafio-da-formacao-humana-integral-nos-institutos-federais/.
93 Disponível em: https://sinasefesp.org.br/carta-dos-professores-da-area-do-nucleo-comum-
do-campus-itapetininga/.

121
impede ver o que realmente está acontecendo; também bloqueia a ação que
pode barrar o caminho da revolta conservadora em curso. (NOBRE, 2019)

Sob a justificativa do baixo desempenho da economia e, por consequência,


da necessidade de realizar reformas estruturais — como a reforma tributária,
trabalhista e previdenciária —, as instituições federais de ensino superior
(IFES) vêm passando por um severo contingenciamento de seu orçamento,
tentativas de intervenções políticas antidemocráticas, ataques ideológicos
que colocam em questionamento sua função social diante da sociedade, entre
outras formas de atacar a importância da produção científica e da educação
pública94. Dentre as ações que foram lançadas no intuito de alterar a lógica
de funcionamento das instituições, destacam-se o programa “Future-se”95, a
Medida Provisória n.° 914/2019 e o “Programa Novos Caminhos” (BRASIL,
2019b), que será analisado nesta seção.
Lançado em outubro de 2019, o Programa Novos Caminhos do MEC
(BRASIL, 2019b) foi o primeiro desdobramento da reforma do ensino médio
voltado especificamente à educação profissional. Tem por objetivo ampliar
as vagas de educação técnica e profissional, constituindo-se como uma das
principais formas para alcançar a meta prevista no Plano Nacional de Educação
(PNE), que prevê o aumento de 80% das matrículas na educação profissional
técnica de nível médio, passando de 1,9 milhões em 2018 para 3,4 milhões
em 2024.
O Programa se estrutura por meio de um conjunto de ações no âmbito da
educação profissional e tecnológica “em apoio às redes e instituições de ensino,
no planejamento da oferta de cursos alinhada às demandas do setor produtivo

94 Ver: “Cerca de 20 instituições federais de ensino estão sob intervenção no país”. Disponível
em: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/cerca-de-20-instituicoes-federais-de-ensino-
estao-sob-intervencao-no-pais1. Acesso em: 20 ago. 2021.
95 Em 17 de julho de 2019, em pleno período de férias e de difícil mobilização das comunidades
dessas instituições, o MEC lançou o “Programa Future-se: Universidades e Institutos Federais
Empreendedores e Inovadores”, com o explícito objetivo de implantar a lógica neoliberal nas
IFES. Assim, as instituições deveriam transferir a gestão de diferentes contratos às Organizações
Sociais e Fundações de Apoio, e essas seriam guiadas pelo ditame do livre mercado. A reação das
Universidades e dos Institutos Federais foi imediata. Muitas instituições aprovaram, nos seus
conselhos máximos, cartas de repúdio e indicações de que não aceitariam o programa Future-se.
Ver: “Dossiê do programa ‘Future-se’ e as implicações para a universidade e sociedade”. Disponível
em: https://gtfuturese.paginas.ufsc.br/files/2019/08/Dossie%CC%82-FUTURE-SE-ufba.pdf . Acesso
em: 15 out. 2021.

122
e na incorporação das transformações produzidas pelos processos de inovação
tecnológica” (BRASIL, 2019). Organizado em três grandes eixos: Gestão e
resultados; Articulação e fortalecimento; e Inovação e empreendedorismo,
reforça os princípios expressos na reforma do ensino médio, como veremos
adiante.  
 O Novos Caminhos não é um programa destinado automaticamente
às distintas redes de ensino. As informações disponibilizadas dão conta de
que tem sido acessado de três formas principais: por meio da concorrência
a editais específicos, principalmente nas áreas de inovação, tecnologia e
empreendedorismo, ação focada nos Institutos Federais; da oferta de cursos
técnicos de nível médio na forma concomitante nas redes regulares de ensino,
repactuando saldos do Programa Bolsa-Formação, criado em 2015;96 e da
oferta de cursos de Formação Inicial de Trabalhadores (FIC). Para fins desta
reflexão, destacamos alguns dos aspectos que, ao nosso ver, são significativos,
por entrarem em contradição com a proposta formativa preconizada pela Rede
Federal de Educação Científica, Profissional e Tecnologia.
Os documentos divulgados pelo MEC em relação a esse programa
evidenciam o papel dos Institutos Federais, esperado pelo governo federal.
De forma geral, identificamos algumas possibilidades de relação, que serão
apresentadas e posteriormente analisadas:
a) Formação de professores nos cursos de licenciaturas, prioritariamente
nas áreas de matemática e ciências, complementação pedagógica, atualização
tecnológica, especialização e mestrado profissional em Educação Profissional
e Tecnológica. Segundo o MEC, essa ação buscará capacitar professores e
demais profissionais para atuarem diretamente na educação profissional, além
de atender a demanda desses profissionais para a implementação da reforma
do ensino médio.
b) Apoio a projetos de empreendedorismo e inovação para professores
e alunos da Rede Federal.
c)  Criação e ampliação de Polos de Inovação na Rede Federal, para
atendimento às demandas dos setores produtivos, representando uma
“articulação entre academia e mercado” (MEC, 2020).

96 Editais 46/2020 e 09/2021. Disponíveis em: https://ept-ifes.selecao.net.br/index/2/. Bolsa


Formação e http://portal.mec.gov.br/bolsa-formacao. Acesso em: 02 jun. 2021.

123
d)  Oferta de educação técnica e profissional para atendimento das metas
do PNE.
e) Oferta do itinerário V, formação técnica e profissional conforme Lei
13 415/2017.
Uma questão que perpassa todo o programa é o fortalecimento de parcerias
com o setor privado para atuação em diversas frentes da educação profissional. 
Ainda em maio de 2016, a publicação da Portaria MEC n. º 401, de 10 de maio,
autorizou as Instituições Privadas de Ensino Superior a ofertarem cursos
de educação profissional tanto na modalidade presencial como a distância
(BRASIL, 2016). Posteriormente, a publicação das Portarias n.º 1718/2019
(BRASIL, 2019a) e 62/2020 (BRASIL, 2020a) viabilizou a segurança jurídica
e procedimental às instituições privadas para a oferta desses cursos. Como
desdobramento dessas ações, em 2020, o MEC autorizou a criação de 207
cursos técnicos em instituições privadas de ensino superior, onde já estão
sendo ofertadas mais de 61 mil vagas de educação profissional97.  
São inúmeras as pesquisas e as evidências que abordam a interferência
de setores privados e financeiros nas políticas educacionais (FREITAS, 2012;
GENTILLI; SILVA, 1994; MINTO, 2014). Nessa direção, o Programa Novos
Caminhos reforça a mesma concepção que vem sendo gradativamente adotada
no Brasil nas últimas décadas. Partimos da noção de “bem público”, a qual
“supõe que todos devem ter acesso à educação porque esta é um bem necessário
à constituição da ordem econômica capitalista” (MINTO, 2014, p. 247-48). Essa
noção de “bem público” se contrapõe à de educação como direito, conforme
prevê a Constituição Federal de 1988, na qual cabe ao Estado sua oferta e
financiamento.
A incorporação dessa perspectiva às políticas educacionais permite que
instituições privadas recebam recursos públicos para exercer uma suposta
função social de interesse público. Corroborando esta tese, Freitas (2012) destaca
como os conceitos de “público estatal” e “não estatal” vêm sendo utilizados
na perspectiva empresarial da gestão por concessão, para que a educação
pública seja administrada privadamente. Desta forma, continua gratuita para
os alunos, mas o Estado transfere para a iniciativa privada recursos para sua

97 Portaria SEDUC/MEC N.º 379, de 16 de junho de 2020. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/


imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=515&pagina=27&data=19/06/2020. Acesso em: 20 jun. 2021.

124
gestão. Há um “contrato de gestão” entre a iniciativa privada e o governo.
Portanto, a bandeira da escola pública tem que ser atualizada: não basta mais
a sua defesa, agora temos que defender a escola pública com gestão pública
(FREITAS, 2012, p. 386).
 Outro importante aspecto a ser destacado é a opção por um processo de
educação profissional de baixa qualidade, aligeirado e vinculado às demandas
imediatas do mercado de trabalho.  O Programa não pretende expandir
as matrículas nos cursos de ensino médio na forma integrada, que estão
concentrados principalmente na Rede Federal, o que nos permite afirmar que
a estratégia central do “Novos Caminhos” é atingir as metas do PNE através da
certificação em larga escala, sem necessariamente oferecer os conhecimentos
científicos que embasam qualquer atividade profissional.
Neste contexto, observamos uma clara tentativa de esvaziamento da
proposta formativa de educação profissional pública que impulsionou a
criação da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, em
detrimento de uma formação pensada no âmbito da racionalidade econômica
do mercado. 
Do ponto de vista das concepções educacionais, o programa referenda a
BNCC, em sua perspectiva de uma formação por competências, voltada para
o atendimento das demandas empresariais, materializada em uma proposta
formativa focada no saber-fazer.  De acordo com Ferretti (2018), isso significa
um empobrecimento da política de educação profissional para os trabalhadores,
na medida em que
[...] o problema do itinerário formativo da educação profissional está
claramente definido em termos de uma instrumentalização dessa formação.
Isso está presente na perspectiva que é posta para a formação profissional,
assim como na ampla abertura para que essa formação se dê, inclusive, no
âmbito da chamada qualificação profissional, no sentido negativo dela, que é
uma qualificação de baixo nível, de caráter mais instrumental, aberta inclusive
para a participação do setor privado. Isso significa não só um empobrecimento
na área de formação profissional, mas significa, do ponto de vista econômico
e do ponto de vista dos recursos do Estado, um favorecimento enorme ao
setor privado em detrimento do setor público. (FERRETTI, 2018, p. 30)

125
Nesse ínterim, cabe o destaque à interface do “Novos Caminhos” com a
reforma do ensino médio, em especial para a oferta do itinerário formativo
denominado “formação técnica e profissional”. Em acordo com o texto da
reforma, a parte profissionalizante dos cursos pode ser realizada através de
cursos técnicos, como de Formação Inicial e Continuada (FIC), cuja soma de
carga horária corresponda ao mínimo necessário para a certificação. Assim,
cursos oferecidos no âmbito do Programa poderão compor a carga horária
da formação profissional no ensino médio regular estadual.
    Com o objetivo de formar professores para atuarem na educação
profissional, conforme determina a reforma do ensino médio, entre os anos de
2020 e 2021, o MEC lançou dois editais para adesão das Secretarias de Educação,
das autarquias responsáveis pela Educação Profissional e Tecnológica dos estados
e do Distrito Federal e de outros órgãos que atuam na EPT, possibilitando a
participação de seus professores em um Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
em docência para a educação profissional (DocentEPT)98.
Ao todo, foram disponibilizadas 6547 vagas, ofertadas na modalidade
a distância. De acordo com o edital, o curso tem como objetivos capacitar
professores para lecionar EPT, especialmente nos cursos de ensino médio,
notadamente para atender a Lei 13414/2020; construir capacidades para o
uso de tecnologias, tendo a educação a distância como estratégia educativa
para o processo de ensino-aprendizagem em EPT; e estimular a produção e a
difusão de conhecimento sobre a EPT como campo de estudo.
Outra ação realizada pelo programa deu-se no contexto da Pandemia de
Covid-19. O MEC priorizou a qualificação profissional a distância, gerando
em 2020 mais de 170 mil vagas (BRASIL, 2020a). Ao todo, foram ofertados
92 cursos FIC em parceria com 8 Institutos Federais (IF Goiano, IFAL, IFAM,
IFMA, IFNMG, IFRO, IFTM, IFTO) e 2 universidades federais (UFRN, UFV).
No que tange ao desenvolvimento de ações em apoio a projetos de
empreendedorismo e inovação para professores e alunos da Rede Federal,
desde 2019 a SETEC vem publicando vários editais por meio dos quais os IFs
concorrem entre si por recursos a serem utilizados na implementação de projetos
para o desenvolvimento de habilidades e competências, dentro do conceito

98 Editais 46/2020 e 09/2021. Disponíveis em: https://ept-ifes.selecao.net.br/informacoes/2/.


Acesso em: 12 set. 2021.

126
de economia 4.0. Economia 4.0 é compreendida como as transformações nos
padrões da atividade econômica, baseada na introdução, desenvolvimento e
difusão das tecnologias digitais, na automação e no uso intensivo de dados,
que impactam nos setores da indústria, comércio e serviços.
Tais editais visam ao fortalecimento entre os IFs e os setores produtivos,
estreitando a relação com entidades representativas do setor privado. Por
exemplo, no caso do Edital n. 05/2020 - Apoio ao Empreendedorismo Inovador
com foco na economia 4.0, do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), o
Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) é uma
parceria obrigatória para os projetos selecionados, atuando principalmente
na capacitação e consultoria. Segundo o edital, o apoio do Sebrae “consistirá
em disponibilizar um mentor de negócios, que auxiliará na execução dos
projetos selecionados nas ações relacionadas ao desenvolvimento do modelo
de negócio, atividades de pré-incubação e incubação” (IFES, 2020).
Chama a atenção que os editais do Programa foram descentralizados pela
SETEC para o Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), que também será
responsável pelo Curso de Especialização DocentEPT, conforme mencionamos
antes. Percebemos, assim, que os IFES vêm atuando em parceria com a SETEC
como um importante articulador e executor do Programa “Novos Caminhos”
na Rede Federal.
Na mesma lógica já mencionada em relação à possibilidade de parceria
entre o IFSP e o governo do estado de São Paulo, aqui também se impõe o
contexto do corte de recurso das instituições federais como uma espécie de
moeda de troca para a adesão ao programa como forma de compensar, ainda
que parcialmente, a redução orçamentária. Por outro lado, a não adesão ao
programa pode representar o isolamento político da Rede Federal, deixando
a formação profissional referenciada no setor privado.
No IFSP, a lógica da disputa pelos recursos disponibilizados por meio
dos editais também vem sendo adotada. Em fevereiro de 2020, a instituição
divulgou em seu site institucional que seriam lançados, ainda no primeiro
semestre, três editais vinculados ao Programa “Novos Caminhos”, para oferecer
suporte a projetos de iniciação tecnológica, empreendedorismo e inovação,
além de um edital específico de incentivo à chamada Educação 4.0 − todos
desdobramentos das chamadas públicas e editais coordenados pelo Ifes.

127
No primeiro semestre de 2020 foram lançados pelos menos três editais:
Empreendedorismo inovador (227/2020); Prospecção Oficina 4.0 (216/2020);
e Inovação 2020 (179/2020), a fim de selecionar projetos pontuais entre os
campi para concorrer com outros projetos de IFs de todo o país, adotando,
portanto, a lógica de disputa por recursos no interior da Rede e do próprio
IFSP. Ainda não há publicação de edital referente a tecnologias digitais que
supostamente beneficiam alunos de outras redes de educação pública; portanto,
o tema carece de um acompanhamento.
Ademais, faz-se necessário destacar a forma como o programa “Novos
Caminhos” chegou ao IFSP. Esse programa não vem sendo desenvolvido pela
PRE, mas pela Agência de Inovação e Transferência Tecnológica (INOVA) e
pela Pró-Reitoria de Extensão (PRX), uma vez que muitos cursos ofertados pelo
Programa possuem status de cursos FIC. No entanto, a proposta pedagógica
do programa diverge, radicalmente, da política educacional indicada nas
Diretrizes para os Cursos Técnicos de Nível Médio na Forma Integrada ao
Ensino Médio (2017) e dos atuais Currículos de Referência (2018), conforme
explicitamos anteriormente. Portanto, verificamos uma tensão nas ações
díspares e desarticuladas dos órgãos da reitoria do IFSP, reforçando as disputas
e as contradições presentes no processo.
Notamos que, por meio de ações aparentemente pontuais, o Programa
“Novos Caminhos” fomenta uma competição entre os IFs e entre os órgãos
internos e os campi de um mesmo Instituto, estabelecendo uma lógica
meritocrática de disputa por recursos que deveriam ser viabilizados pelo
governo federal para toda a Rede. Vale destacar que, muitas vezes, a disputa
pelos recursos é assumida pelos gestores como uma “oportunidade de negócio”,
sem uma análise crítica sobre as possíveis armadilhas que podem reservar para
o futuro do financiamento da educação profissional pública, desconsiderando
inclusive as desigualdades sociais e estruturais inerentes à própria Rede.
Assim, a nosso ver, demarca-se um processo de redução da autonomia
dos IFs em matéria de projeto educativo e de sua discussão democrática. É
desse modo que, ao refletir sobre a universidade brasileira, Chaui (1999, p. 2)
destaca que a universidade se constituiu historicamente como uma instituição
social, fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas
atribuições, num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante

128
outras instituições sociais. Indo além, afirma que os pressupostos de mercado
deslocam os direitos sociais para o setor de serviços, pressupondo a passagem
da universidade concebida enquanto instituição social para organização social,
ou seja, ela deixa de ter a sociedade como referência e passa a guiar-se por si
própria, em uma relação de competição com outras universidades99.

Considerações finais
Partimos do pressuposto que a matriz formativa dos Institutos Federais
e da sua função social alicerçada na construção histórica do caráter público
e democrático da educação pública encontra-se em ataque pelas reformas
educacionais preconizadas no Brasil nessa primeira parte do século XXI.
Como apontado por Ferretti (2018), as novas demandas feitas pelo
empresariado ao campo educacional e o deslocamento do conceito de
qualificação profissional para a noção de competência compatível com a
forma toyotista de organização do trabalho explicam e orientam as mudanças
curriculares vigentes (FERRETTI, 2018, p. 33). Desse modo, as mudanças no
perfil ou na qualificação da força de trabalho para o desempenho de diferentes
tipos de tarefas representam, na BNCC e na Reforma do Ensino Médio, “a
constituição da sociabilidade da força de trabalho adaptada às novas demandas
do capital, seja no âmbito da produção, seja no dos serviços” (FERRETTI,
2018, p. 34).
Assim, tomando a dinâmica de mudanças nas políticas educacionais
e a forma como essas passam a ser incorporadas nas instituições públicas,
cada vez mais as pressões por adaptação à lógica das reformas neoliberais se
multiplicam, recorrendo a diferentes estratégias de incorporação.
Nesse processo, a aprovação das novas DCNEPT e o estímulo a diferentes
tipos de parcerias entre as instituições de educação profissional e com a iniciativa
privada instauram contradições e disputas que requerem uma análise criteriosa.
Tais mudanças, como analisado neste artigo, apontam para o “esvaziamento”
dos espaços de decisão coletiva nas instituições, enfraquecendo o princípio
da gestão democrática e a autonomia na condução dos projetos políticos de
99 No dia 24 de dezembro de 2019 o governo federal atacou a gestão democrática e participativa
dessas instituições, publicando a MP n.° 914/2019, que alterava a maneira como universidades e
institutos federais deveriam escolher os seus gestores, diminuindo a autonomia da comunidade
acadêmica e de seu processo de consulta.

129
educação construídos historicamente. Além disso, com os frequentes cortes
orçamentários, instaura-se a instabilidade nas instituições públicas e uma
pressão pela busca de novas fontes de recursos, o que abre caminho para
formas empresariais e gerencialistas de organização da educação profissional.
Estamos diante de um quadro em que se tornam fundamentais as pesquisas
e o monitoramento das formas de adesão ou pressão pela adaptabilidade das
instituições federais à lógica das reformas desse momento. Nesse contexto, o
posicionamento dos(as) educadores(as) na defesa do processo democrático
nas instituições públicas e na análise da essência das políticas para além
da “aparência sedutora” despolitizante é ferramenta de resistência política
preponderante na defesa do caráter público e social das instituições educacionais
federais.

Referências bibliográficas
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1997.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Profissional e
Tecnológica. Documento Base da Educação Profissional Técnica de Nível
Médio Integrada ao Ensino Médio. Brasília: MEC, 2007. Disponível em: http://
portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf/documento_base.pdf. Acesso em: 30
de set. 2021.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n.º 11 892, de 29 de dezembro de
2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica,
cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras
providências. Brasília, 29 de dezembro de 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n.º 401, de 11 de maio de 2016. Dispõe
sobre a oferta de curso de educação profissional técnica de nível médio por
instituições privadas de ensino superior. Diário Oficial da União, 11de maio
de 2016, Edição 89. Seção 1, página 41.
BRASIL. Secretaria Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n.º 13 415, de
16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis n.º  9394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11 494, de 20 de junho
2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação

130
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das
Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 5452, de 1.º de maio de
1943, e o Decreto-Lei n.º 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei n.º 11 161,
de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de
Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília, 16 de fevereiro de 2017a.
BRASIL. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
Resolução n.º 163, de 28 de novembro de 2017b. Aprova diretrizes para os Cursos
Técnicos de Nível Médio na forma Integrada ao Ensino Médio do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
BRASIL. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
Resolução n.º 37, de 08 de maio de 2018. Aprova a construção de currículos de
referência para o IFSP.
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n.º 1718 de 08 de outubro de 2019.
Dispõe sobre a oferta de cursos de educação profissional técnica de nível
médio por Instituições Privadas de Ensino Superior - Ipes. Diário Oficial da
União, 09 de outubro de 2019a. Edição 196. Seção 1, página 37.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Programa “Novos Caminhos”.
2019b. Disponível em: http://novoscaminhos.mec.gov.br/conheca-o-programa/
estrategias#anchor30. Acesso em: 10 nov. 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e
Tecnológica. Portaria n.º 62/2020. Dispõe sobre os procedimentos associados
à oferta de cursos técnicos de nível médio por instituições privadas de ensino
superior - IPES de que trata a Portaria MEC n.º 1718, de 2019. Diário Oficial
da União, 27 de janeiro de 2020a. Edição 18. Seção 1, página 34.
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n.º 983, de 18 de novembro de
2020. Estabelece diretrizes complementares à Portaria n.º 554, de 20 de junho
de 2013, para a regulamentação das atividades docentes, no âmbito da Rede
Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Diário Oficial da
União, 19 de novembro de 2020b. Edição 221. Seção 1, página 58. Disponível
em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-983-de-18-de-novembro-
de-2020-289277573. Acesso em: 02 maio 2021.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n.° 01 de 05
de janeiro de 2021. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a

131
Educação Profissional e Tecnológica. Diário Oficial da União, 06 de janeiro
de 2021a. Edição 3. Seção 1, página 19.
BRASIL. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São
Paulo. Currículos de Referência dos cursos técnicos: consulta pública.
2021b. Disponível em: https://www.ifsp.edu.br/auditoria/66-colegiados/
conselho-superior/1981-resolucao-2021.
BRASIL. Decreto Nº 5.154, de 23 de julho de 2004. Regulamenta o § 2 º do art.
36 e os arts. 39 a 41 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 2004a. Disponível em:
Acesso em: 20 set. 2021.
CHAUI, M. Escritos sobre universidade. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
FERRETTI, C. J. A reforma do Ensino Médio e sua questionável concepção de
qualidade da educação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 32, n. 93, p. 25-42, 2018.
FREITAS, L. C. de. Os reformadores empresariais da educação: da
desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação.
Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, 2012.
FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M.; RAMOS, M. (org.). Ensino Médio Integrado:
concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.
GENTILI, P. A. A.; SILVA, T. T. Neoliberalismo, qualidade total e educação.
Petrópolis: Vozes, 1994.
INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO – IFES. Edital de Chamada
Pública 05/2020 - Seleção de projetos de apoio ao empreendedorismo inovador
com foco na Economia 4.0. 30 de junho de 2020.
KRAWCZYK, N.; FERRETI, C. J. Flexibilizar para quê? Meias verdades da
“reforma”. Retratos da Escola. A reforma do Ensino Médio em Questão, Brasília,
v. 11, n. 20, p. 33-44, jan./jun. 2017.
MINAYO, M. C. de S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis:
Vozes, 1994.
MINTO, L. W. A educação da miséria: particularidade capitalista e Educação
Superior no Brasil. São Paulo: Outras Expressões, 2014.
NOBRE, Marcos. O caos como método: Manter o colapso institucional é o
modo de Bolsonaro garantir a fidelidade de seus eleitores. Jornal Folha de São

132
Paulo. Edição 151, Abril 2019. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/
materia/o-caos-como-metodo/. Acesso em: 20 ago. 2021.
OLIVEIRA, R. de. Elementos para a análise das reformas do Ensino Médio e
da Educação Profissional no Brasil. Revista Contexto e Educação, Ijuí, Editora
Unijuí, ano 16, n. 64, out./dez., p.127-139, 2001.
PIOLLI, E.; SALA, M. O Novotec e a implementação da Reforma do Ensino
Médio na rede estadual paulista. Revista USP, n. 127, out./nov./dez., p. 69-86,
2019.
SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA,
TECNOLOGIA E INOVAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. NOVOTEC.
Disponível em: http://www.novotec.sp.gov.br/. Acesso em: 18 maio 2021.
SHIROMA, E. O.; CAMPOS, R. F.; GARCIA, R. M. C. Decifrar textos para
compreender a política: subsídios teórico-metodológicos para análise de
documentos. Revista Perspectiva, Florianópolis, v. 23, n. 02, p. 427-446, jul./
dez. 2005.

133
Consenso por filantropia como estratégia de poder
neoliberal: entrevista com Rebecca Tarlau

Ana Beatriz Gasquez Porelli100


Cristiane Letícia Nadaletti101
Juliana Novais102
Rodolfo Soares Moimaz103
Tatiana de Oliveira104
Tayná Lúcio105

A entrevista que transcrevemos a seguir foi concedida pela professora


Rebecca Tarlau ao grupo de pesquisa EMpesquisa e foi realizada on line através
da plataforma Meet/Google em 14 de dezembro de 2021. A professora Rebecca
Tarlau é professora de educação e relações de trabalho na Universidade Estadual
da Pensilvânia. Sua agenda de pesquisa etnográfica tem três grandes focos: (1)
teorias do Estado e das relações entre o Estado e a sociedade; (2) movimentos
sociais, pedagogia crítica e aprendizagem; (3) educação e desenvolvimento da
América Latina. Publicou livros e artigos, tais como: Contentious Co-Governance

100 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp. Bolsa Capes.


ana_porelli@hotmail.com
101 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp. Pedagoga, IFSP.
cnadaletti@hotmail.com
102 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp – e professora na
Universidade Estadual de alagoas UNEAL julianaosnovais@gmail.com
103 Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia, IFCH- Unicamp. moimaz@
gmail.com
104 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp e professora de
Sociologia, IFSP. alvesolliveira@yahoo.com.br
105 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, FE – Unicamp. Bolsa Capes.
taynalucioo@outlook.com 

134
and Prefiguration: A Framework for Analyzing Social Movement-State Relations
in Public Education (2021); Prefigurative politics with, in, and against the State:
MST and Latin American philosophies of education (2020); Occupying schools,
occupying land: How the landless workers movement transformed Brazilian
education (2019); ‘Philanthropizing’ consent: How a private foundation pushed
through national learning standards in Brazil (2019) (escrito junto com a Dra.
Katryn Moeller e publicado em português na Currículo sem Fronteiras)

EMpesquisa: Como surgiu seu interesse em pesquisar a realidade


brasileira e em adentrar o universo da América Latina? Conte-nos um
pouco sobre esses trabalhos, destacando aspectos significativos de sua
formação e trajetória acadêmica, incluindo interlocutores e autores de
referência.

Rebecca: Mais importante para mim, na minha trajetória, é a


referência da minha família. Eu sou filha de pais que fazem parte do
movimento sindical aqui nos Estados Unidos. Agora os movimentos
sindicais nos EUA são muito fracos, porque durante os anos 80 e
90, quando houve um ataque frontal contra os sindicatos aqui, eles
representavam 40% dos trabalhadores (anos 50 e 60), agora eles
representam 10% deles. Então meu pai fez parte desse movimento
sindical nos anos 90 que estava tentando criar um sindicalismo mais
combativo e organizar os novos trabalhadores nos EUA que não
tinham sindicatos, como os imigrantes, as mulheres, as trabalhadoras
domésticas, os trabalhadores com quem os sindicatos não estavam
muito interessados.
Então, eu sou filha de lutadores que fazem parte dos movimentos
sociais daqui, e eu cresci indo para greves, indo para protestos e sempre
entendendo que as pessoas daqui são pobres. Tem muitas pessoas aqui
nos EUA que são pobres, e a razão da pobreza não é por culpa deles em
si e, sim, da estrutura, desse sistema capitalista. Então acho que essa
experiência é super importante na minha formação e trajetória. Quando
eu fui para a universidade, eu entrei em um programa de graduação
de Antropologia. Na verdade, eu entrei em um programa de Ciência
Política na Universidade de Michigan, mas a área da Ciência Política
aqui é muito marcada por investigação quantitativa e muito voltada
para estudos sobre como os países se relacionam entre em si. Enfim,
o curso de Ciência Política não tinha a minha cara!

135
Então encontrei a Antropologia como uma forma de conhecer a
realidade das pessoas. Eu também tinha um pouco de interesse nos
estudos da América Latina.
Eu já era militante na Universidade de Michigan, mas o nosso
movimento era muito pequeno, e eu queria saber como a gente podia
fazer crescer o nosso movimento. Então decidi ir para o Brasil para
fazer um intercâmbio ainda na graduação, para passar um ano no
Brasil, e meu principal interesse era entender os movimentos sociais do
país de vocês, pois eu sabia que, no Brasil, tinham movimentos sociais
muito fortes e eu queria saber como vocês estavam construindo esses
movimentos. Durante este ano que passei aí, eu tive a oportunidade de
trabalhar com um grupo feminista em Recife que se chamava Grupo
Mulher Maravilha, que é um grupo de mulheres que surgiu nos anos
60. O nome do grupo surgiu porque tinha 15 mulheres assistindo ao
um programa de televisão que se chamava Mulher Maravilha, e elas
decidiram que uma mulher maravilha não é uma mulher que chega e,
de repente, tudo dá certo e, sim, uma mulher que tem que cuidar das
crianças, limpar, passar roupa e ainda tem tempo para se organizar na
comunidade. A primeira impressão que eu tive desse grupo é que estava
usando uma ideologia de Paulo Freire, de educação popular, como uma
ferramenta de trazer a consciência política para outras mulheres na
comunidade. Enfim, foi por causa dessa experiência que eu decidi que
queria ser uma educadora popular, porque aqui nos EUA quase não tem
educadores populares, e eu achei que isso talvez fosse a razão de nossos
movimentos serem fracos: a gente não está usando essa tradição popular
como ferramenta. Eu tinha passado dois anos como educadora popular
em um grupo bem grande daqui, mas eu queria saber mais de como os
movimentos sociais estavam realizando a educação popular no Brasil.
Eu queria voltar para o Brasil e, por isso, entrei em um programa de
doutorado que pudesse me permitir isso. Não era porque eu queria ser
acadêmica, não era porque eu queria ser professora, não era porque eu
queria ser uma pessoa pública, pois geralmente elas vão reproduzindo
a mesma coisa, mas eu queria entrar para o programa de doutorado
para entender como os movimentos sociais estavam incorporando a
educação dentro de sua luta. E o maior movimento social do Brasil,
que tem uma prática em educação popular nacional é o Movimento
dos Trabalhadores [Rurais] Sem Terra (MST), que é um movimento
que existe em quase todos os estados.
Fiz a minha tese de doutorado sobre o MST e sobre a luta pela
educação do campo dentro do movimento. Mas foi trabalhando com

136
o movimento sem terra e escutando as pessoas que me dei conta que
também é super importante estudar os poderosos. No MST, sempre me
diziam que estavam muito felizes por eu estar junto deles, mas que eu
deveria também estudar as fundações, as companhias, o agronegócio,
os agentes que estão controlando a nossa realidade. Diziam que eles
poderiam pesquisar sobre isso também, mas como eu tinha essa conexão
com os EUA, então eu poderia pesquisar as classes dirigentes, a elite.
E foi um pouco por isso que, na minha tese de doutorado, resolvi fazer
essa pesquisa sobre a BNCC. Foi uma longa trajetória, mas foi através
dos movimentos sociais que eu decidi que era importante estudar as
fundações que estavam envolvidas na educação do Brasil.

EMpesquisa: No texto “O consenso por filantropia: como uma


fundação privada estabeleceu a BNCC no Brasil”, com Kathryn [Moeller],
você investiga como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi
consequência, em um curto espaço de tempo, da elaboração e da
aprovação de uma política pública derivada da prática do que você
conceitua como consenso por filantropia. Considerando as realidades
do Brasil e dos EUA, como este conceito contribui para a compreensão
das mudanças na forma do Estado e do papel da educação no tempo
presente?

Rebecca: É uma pergunta bem importante. Vou explicar um


pouco mais sobre a pesquisa, sobre a BNCC e a relação com a Fundação
Lemann. Quero deixar claro que essa pesquisa sobre a BNCC estava
sendo realizada pela minha colega Kathryn. Se vocês puderem ler em
inglês, seria interessante que lessem o livro dela chamado The Gender
Effect106 que é sobre a fundação Nike e as Ongs que a Nike estava
financiando no Rio de Janeiro. Essa pesquisa é sobre como as fundações
e as Ongs estão usando a educação das meninas como instrumento
ideológico para intervir nas favelas do Rio de Janeiro. É uma pesquisa
muito interessante! E quando ela (Kathryn) estava fazendo essa pesquisa,
a discussão sobre a BNCC era muito forte dentro das fundações onde ela
estava pesquisando. De repente, a vida sempre muda nossas pesquisas,
e minha amiga, isso era 2015, que estava fazendo essa pesquisa no
Rio de Janeiro, ficou grávida. Esse foi o momento da Zika vírus, ela
ficou com muito medo. O surto de Zika estava crescendo, e a pesquisa

106 MOELLER, K. The Gender Effect. University of California Press, Oakland, 2018, 320pp.

137
dela era na favela e ela teve que sair do Rio de Janeiro. Nesse mesmo
momento eu estava como estudante de Pós-doc na Universidade de
Stanford e tive a oportunidade de voltar para o Brasil e ficar por um ano.
Comecei a falar com a Kathryn sobre a pesquisa dela e que talvez eu
pudesse ajudá-la a fazer algumas entrevistas que ela já havia marcado
e não podia fazer… E acabei fazendo quase todas as entrevistas com
os atores principais que estavam construindo a BNCC.
Falando com Kathryn e através dessas entrevistas, nos demos conta
que a maneira de intervenção das fundações que estavam apoiando a
BNCC era muito diferente, quando comparada com a intervenções de
filantropia nas décadas passadas. Existiam dois tipos de intervenções
antes na educação, uma no campo da filantropia, ou seja de caridade,
onde você vai fazer um programa de desenvolver uma escolinha para as
pessoas carentes, fazer coisas pequenas que irão atender diretamente
o povo pobre. Mas as fundações já não estavam mais dando dinheiro
para esses projetos que somente estavam atendendo grupos pequenos
nos bairros pobres. Eles estavam pensando em políticas públicas que
iriam afetar todo o país e toda a educação pública. Eles estavam muitas
vezes, não vou dizer tomando o poder, mas eles estavam fazendo o
papel do Estado dentro das discussões sobre a BNCC.
Por exemplo, a Fundação Lemann, às vezes, juntava secretárias e
secretários de educação, tanto municipais como estaduais, para discutir
políticas públicas, e eles não estavam forçando ninguém a fazer isso.
Mas eles estavam pagando as viagens, dando a oportunidade para que
esses gestores fossem para os EUA e aprendessem mais sobre políticas
públicas. Eles estavam pagando almoços para que 30 pessoas pudessem
se juntar e falar sobre a BNCC. Então era através desses jogos de almoços,
das viagens que as fundações, principalmente a Fundação Lemann,
conseguiram juntar os diferentes atores importantes da educação pública
brasileira e não forçar nada, mas criar um consenso de que a BNCC
seria a política pública mais importante no Brasil.
Então, para nós, era algo muito gramsciano, porque era usar o
senso comum das pessoas para tentar colocar sua ideia como a ideia
de todos. E para nós, essa ideia de consenso por filantropia era muito
importante, porque ela ia mostrar as mudanças das intervenções
na educação pública. Não era mais a caridade, mas não eram mais
também as intervenções neoliberais muito grandes em cima das escolas
públicas. Era uma atuação suave, a partir de um tipo de participação
dos professores e dos gestores públicos da educação. Eu fui para vários
estados onde tinha 500 professores discutindo conjuntamente a BNCC,

138
agora, na maioria dos estados, os sindicatos não eram convidados,
mas os professores eram. Então era essa ideia de convidar de forma
individual, professores individualmente, para discutir e participar e,
através desses processos, mostrar que era um processo participativo,
mas foi uma participação bem “orientada” com algumas respostas e
sugestões que os professores podiam ter. Era “essa linha você concorda,
não concorda?”. Era uma participação muito limitada e que excluiu os
grupos mais fortes e organizados como os sindicatos e a ANPED. Essa
ideia de consenso por filantropia era através de pesquisa e, vendo esses
processos, a gente achou super importante colocar esse nome, que era
uma estratégia mais gramsciana do que um ataque frontal.

EMpesquisa: Considerando a importância de compreendermos


como se estruturam atualmente as redes de influência e poder em prol
da aprovação das reformas educacionais neoliberais, conte-nos um
pouco sobre essa pesquisa que identificou a Fundação Lemann como
o principal agente de formulação e aprovação da BNCC no Brasil. Qual
análise você faz sobre o poder que organizações como essa possuem no
Brasil e no exterior para afirmar seus interesses na área da educação?

Rebecca: Eu acho que a gente tem que pesquisar todas as


fundações. Fiz entrevistas com integrantes da Fundação Lemann, do
Instituto Unibanco, o Instituto Itaú… Tem vários grupos que eu acho
que merecem ser estudados. E o grupo que acho que tem mais destaque
é o “Todos pela Educação”, porque é um grupo que, de uma maneira
ou de outra, reúne todas as fundações para discutir projetos e políticas
públicas. Mas quando eu e Kathryn estávamos fazendo essa pesquisa, a
gente reconhecia que o “Todos pela Educação” era importante, porque
eles juntavam todo mundo, mas eles não tinham muito orçamento, não
tinham muito dinheiro por trás da rede. Diferente disso, a Fundação
Lemann tinha tanto poder político como poder econômico através
de seu fundador Jorge Paulo Lemann. Tem uma professora aqui nos
EUA, Megan Tompkins-Stange [da University of Michigan], que vai
analisar as quatro fundações mais importantes aqui nos EUA: Gates,
Broad, Ford e Kellogg Foundations, e também vai mostrando vários
tipos de estratégias, e vocês podem observar que as estratégias da
Fundação Lemann se transformaram nas mesmas da Fundação Gates
e da Fundação Broad. É uma estratégia nova, de um novo momento
político, e que tem como meta intervir nas políticas públicas na busca de
construir um novo mundo. Eles não vão dizer construir “o mundo como

139
o mercado”, mas “um mundo que é mais meritocrático”, que tem mais
competição, que as pessoas que trabalham mais, que têm mais talentos,
podem intervir mais. É uma visão de mundo muito similar ao jeito de
gerir uma companhia. Então, esse papel que a Fundação Lemann está
desempenhando é muito importante. A fundação faz doações milionárias
para universidades como as de Stanford, Harvard, Columbia, Illinois.
A razão pela qual esse dinheiro não vai para universidades de maior
destaque do Brasil é porque eles acham que as universidades mais
importantes do Brasil como a Unicamp e a USP são todas “ideológicas”,
e que esse dinheiro teria que ir apenas para universidades “científicas”.
Na época, eu estava fazendo meu pós-doc em Stanford, dentro do
centro Lemann, e estar nesse lugar me possibilitou entender melhor
essas dinâmicas.

EMpesquisa: As pesquisas que temos feito sobre a recente


Reforma do Ensino Médio no Brasil evidenciam um forte diálogo entre
a formação escolar e a preparação para o mercado de trabalho. Trata-se
de um projeto que pretende disputar a formação dos jovens estudantes
mantendo, ao mesmo tempo, um padrão de acumulação que requer
grande volume de trabalho simples e flexível, típico do capitalismo na
periferia, e ratifica a formação de trabalhadores adaptados e submissos às
contradições inerentes às configurações atuais do mercado de trabalho.
Nesse contexto, o capital advoga, para a juventude trabalhadora, a
criação do “sujeito empreendedor”, competitivo, defensor das relações
sociais orientadas pela lógica do mercado. Você acha que, nos EUA, tem
ocorrido um processo semelhante? Se não, qual o sentido das políticas
educacionais em implementação nos EUA?
Rebecca: Quando estudei no Ensino Médio, nos anos 1990,
tínhamos um sistema [Tracking] que trazia essa ideia dos “percursos”.
A entrada nesses “caminhos” acontecia no terceiro ano da escola. Os
professores decidiam se você ia para o caminho das crianças mais
espertas [“gifted and talented”], o “avançado”; para o caminho geral
[“general”]; ou se você ia estar no caminho “atrasado” [“remedial”]. Os
professores estavam decidindo o caminho dos alunos no terceiro ano e,
com certeza, decidiam essas coisas usando sinais culturais, por exemplo:
minha escola tinha metade dos estudantes negros e metade brancos.
Somente estudantes brancos é que estavam no caminho “avançado”,
e todos os que estavam nas classes menos avançadas eram negros.
Então foi um sistema de segregação dentro de uma escola pública, que

140
supostamente era integrado. E você seguia, quase sempre, no mesmo
caminho até o final. Eu me lembro que tinha os mesmos companheiros
em todas as classes até me formar no Ensino Médio.
No Ensino Médio, se você não estivesse no percurso acadêmico
“avançado” – no qual era dado maior enfoque às áreas de ciências
naturais, exatas e matemática –, tinha opções mais “técnicas”. Isto é,
principalmente estudantes classificados como “atrasados”, que eram
considerados como os que não iriam fazer faculdade, eram direcionados
a cursos técnicos no horário das aulas, voltados aos trabalhos manuais –
o que eles chamavam de “vocational education”. Aprender um trabalho
manual, em si, não é ruim. Com o Movimento [dos Trabalhadores
Rurais] Sem Terra aprendi que o trabalho manual é uma forma de
educação, de formação. O trabalho coletivo também é uma escola, é
importante. O que não era justo é que algumas pessoas estavam fazendo
apenas a parte técnica; e outras, a acadêmica. Na verdade, era a divisão
entre trabalho intelectual e manual já no Ensino Médio. Esse sistema,
de “percursos”, que existia quando eu estudava, hoje quase não existe
mais, porque existiam muitas críticas sobre a segregação contra pessoas
negras e latinas. Enfim, quando escutei sobre a reforma do Ensino
Médio no Brasil, fiquei um pouco surpresa porque tinha similaridades
com uma reforma que vivemos há 10, 15 anos atrás. Mas esse sistema
teve muitas críticas e mudanças. Agora, essa ideia de empreendedor,
isso ainda é super forte nos EUA, e a gente, às vezes, fica rindo, porque
quem é o melhor empreendedor do mundo? É o pobre, que vai encontrar
qualquer coisa no seu bairro para ganhar alguma coisa. Mas essa ideia
de empreendedorismo ligada ao Vale do Silício na Califórnia é super
forte, e quase todas as escolas públicas, quase todas as universidades
estão voltadas para essa ideia de quem será o próximo que vai fazer
aplicações da Iphone, quem vai fazer o próximo projeto, quem vai fazer
a próxima, como eles chamam, disrupção desse sistema. Enfim, é uma
ideia muito individual, uma ideia muito capitalista e é uma ideia muito
forte em nossa sociedade e tudo está voltado para isso.

EMpesquisa: Nos EUA, a partir de 2010, é possível perceber um


crescimento dos processos de resistências contra as políticas educacionais
neoliberais aplicadas em todo o país destacando inicialmente o caso
de Chicago , mas que se espalham por outras cidades, em diferentes

141
estados (como Los Angeles, Nova Iorque, a Red State Revolt107, etc.).
Como você entende estes processos de resistência? Quais foram as(os)
principais sujeitos envolvidos? Estes processos ocorreram com as
mesmas características em todo o país?

Rebecca: Eu fiz esta pesquisa sobre a BNCC, mas ainda tenho


interesses sobre os movimentos sociais e movimentos de resistência.
Tenho muito interesse nos professores, nos movimentos sociais mais
amplos. Esse interesse nos sindicatos de professores começou no Brasil,
porque, em 2017, havia muitas manifestações contra Temer, o Fora
Temer. Eu estava morando em São Paulo e fui em algumas marchas
na Avenida Paulista. Lembro que teriam 100 mil pessoas na rua e, de
repente, me dei conta de que 50 dos 100 mil eram professores, ou seja,
os professores de São Paulo estavam tendo um papel muito forte nesse
movimento maior, maior que a escola. Meu interesse começou aí.
Sobre os Estados Unidos, acho que essa pergunta é muito
impressionante, porque foi a partir de 2010 que a resistência nos
sindicatos ganhou força. Sou apoiadora dos sindicatos, meu pai é
sindicalista, mas sabemos que os sindicatos não são sempre radicais,
às vezes são conservadores e mais que tudo, os professores, como
trabalhadores da classe média, nem sempre atuam de uma forma
progressista na comunidade. Temos que entender também que o
sindicato de professores aqui nos EUA tem uma história de conflito
com o movimento negro, porque nos anos 60 havia o movimento Black
Power que era muito forte. Em Nova Iorque, esse movimento decidiu
que queria o controle das escolas públicas, queria professores negros,
currículos voltados para os bairros negros, com referências afro, queria
todo um projeto escolar para a comunidade negra. Decidiram que
demitiriam 15 professores de uma escola em NY e, para o sindicato, a
ideia de demitir um professor sem nenhum processo era contra seus
ideais. Essa foi uma batalha muito grande, o sindicato decidiu fazer
greve contra a comunidade negra e contra suas pautas. Esse momento,
que foi em 1968, marcou fortemente a relação entre o sindicato de
professores e a comunidade pobre, negra, latina, onde não há muita
confiança de uma com a outra.

107 Mobilizações sobre as quais tem sido produzida vasta bibliografia. Para mais informações,
ver: BLANC, E. Red State Revolt: The Teachers’ Strike Wave and Working-Class Politics. New York:
Verso, 2019.; UETRICH, M. Strike for America: Chicago teachers against austerity. New York:
Jacobin, 2014; dentre diversas outras obras. [N.E.].

142
Voltando para 2010, em Chicago, havia um grupo de ativistas que
não era muito envolvido nos sindicatos, e que estavam fazendo relações
com a comunidade, porque o governo estava fechando escolas em
muitas comunidades negras. O ano de 2010 foi o pico do neoliberalismo
nas escolas, estavam fechando muitas escolas. Esses ativistas, em que
também se envolviam professores, resolveram que fariam a luta junto
com a comunidade e ficariam em frente às escolas, quando os tratores
chegassem para derrubá-las. Isso criou uma relação de muita confiança
entre os professores ativistas e a comunidade negra e latina. Esses
professores ficaram muito bravos, ao se darem conta de que estavam
fazendo a luta sem o apoio do seu sindicato, que é o segundo maior do
país, e decidiram tomar o sindicato.
Por uma série de fatores, esse grupo conseguiu tomar o sindicato
de Chicago, em 2010, e dois anos depois organizaram uma greve super
importante. Foi a primeira greve importante depois de 30 anos. Não
foi uma greve somente sobre a categoria. Ele tinha uma pauta maior e
reivindicava a escola que os estudantes merecem. Esta foi a bandeira de
luta, “vamos lutar pelas escolas que os estudantes merecem”, ou seja,
classes menores, escolas com bibliotecas, com melhor infraestrutura.
Eles conquistaram praticamente todas as coisas pelas quais estavam
lutando naquele momento.
Depois de 2012, esse exemplo demonstrou que o sindicato de
professores pode ser uma força maior para a justiça social e racial
e inspirou muitos outros professores ativistas em todo o país. Foi
através dessa experiência que outros grupos tentaram conquistar os
sindicatos em outros estados com essa ideia de inserir o sindicato em
um movimento social maior. A situação é diferente em cada estado, mas
essa foi a inspiração para todas as lutas que estão acontecendo dentro
do sindicato de professores nos EUA, com muito sucesso.

EMpesquisa: Há um certo consenso de que estamos vivendo uma


crise do capitalismo em múltiplas dimensões, o que torna ainda mais
evidente a necessidade de organização da luta da classe trabalhadora.
Nesse contexto, qual papel pode assumir a escola pública?

Rebecca: A escola pública tem um papel muito importante neste


momento, porque a escola pública é uma instituição do Estado, mas
ela tem uma característica diferente de outras instituições do Estado:
ela é muito próxima da comunidade. Por isso, ela pode cumprir um

143
papel muito poderoso em organizar a comunidade contra estas crises
[do capitalismo].
E sobre a questão que coloquei antes, que os sindicatos de
professores eram os mais ativos nas manifestações contra o Temer,
em 2017: por quê? Por que os sindicatos de professores nos Estados
Unidos, e acho que também no Brasil, viraram os mais ativos? Porque
eles têm pouco espaço para respirar contra o capitalismo. Porque, mesmo
que o capitalismo esteja colocando as políticas neoliberais dentro das
escolas, a escola pública cumpre um papel para o bem comum. As elites
não podem usar a escola como eles usam a fábrica da Nike, ou a fábrica
metalúrgica. A relação entre os chefes e os trabalhadores é diferente.
Os professores têm um pouco mais de espaço para fazer a luta,
neste momento, que outros trabalhadores. Então acho que o papel da
escola é fundamental.
Ao mesmo tempo, a gente sabe que o papel da escola pública sempre
foi, dentro do capitalismo, reproduzir as mesmas desigualdades de raça,
classe e gênero que existem na sociedade. O Althusser fala que antes
era a igreja, e agora a escola pública é a ferramenta ideológica mais
importante na criação do consenso para o capitalismo.
Por isso sempre falo que a escola pública sozinha não vai fazer a
luta. A questão é como a escola pública pode estar ligada aos movimentos
sociais; e como os movimentos sociais podem aproveitar a escola
pública em suas lutas para as transformações sociais. Essa é a minha
perspectiva: que a escola pública, em si, não vai fazer a resistência, mas
os movimentos sociais podem utilizar as escolas públicas como uma
ferramenta dessa luta mais ampla.

EMpesquisa: Tendo em vista sua larga experiência profissional


e a importância de enfrentarmos a tarefa da produção crítica sobre as
transformações da educação, quais os desafios que você identifica para
o campo da pesquisa educacional?

Rebecca: É muito importante essa pergunta, eu acho que a


pesquisa educacional é diferente nos EUA e no Brasil. Aqui, nos EUA,
o problema é que está totalmente separada da teoria crítica, tem poucos
professores que estão aplicando a teoria crítica na pesquisa educacional.
Sempre falamos que, no campo da pesquisa educacional, nos anos de
1900, filósofos como Dewey, estavam dominando a produção na área.
Nos anos 60 foi o momento da psicologia, mas agora são os economistas
pelo menos aqui nos EUA eles estão no controle de tudo! As aberturas

144
de concursos em universidades na área de educação, inclusive nas
mais prestigiadas, são muitas vezes para economistas. E a economia
também é diferente aqui, nós também não temos diferentes tipos de
economia, temos uma economia neoclássica, não tem outro tipo. Então
essas ideias neoclássicas estão aqui, nos EUA, entrando nas escolas,
nas instituições de educação e estão controlando tudo: o dinheiro, o
que vai ser publicado... Enfim, eles desenvolvem pesquisas “científicas”,
estudando por exemplo uma escola a partir da ideia de meritocracia.
Eles dão mais dinheiro para professores depois que acabar o ano e, em
outra escola, eles dão o dinheiro no início do ano para ver qual o tipo de
meritocracia irá funcionar melhor. Ou seja, a ideia de meritocracia, de
dar dinheiro para o professor dependendo do resultado dos testes dos
estudantes, se é errada ou falsa, não é a questão, a questão são esses
fatos mais técnicos de como aplicar essas políticas.
Então, há campos críticos aqui, mas eles estão marginalizados
no debate sobre políticas públicas. Agora os desafios para o campo de
pesquisa educacional no Brasil, eu acho que vocês podem falar mais
sobre isso do que eu posso falar. Eu vejo que os professores não estão
no controle das políticas públicas, eu vejo que o GT de Currículo da
Anped, por exemplo, tinha muito pouco a ver com a BNCC. As pessoas
que construíram a BNCC não consultaram os experts em currículo.
Então talvez o desafio maior é como os pesquisadores e os professores
podem ser atores relevantes dentro dos debates e defender as teorias
críticas que estão defendendo, porque eu realmente penso que vocês têm
uma tradição mais crítica na pesquisa educacional no Brasil. Então a
questão para vocês é como ser relevantes e poder influenciar as políticas
públicas. Isso é um desafio, mas também acho que vocês podem falar
muito mais sobre os outros desafios. E, o último desafio que vou falar,
que está nos dois lugares (Brasil e EUA) é o movimento da direita, que
é o movimento da Escola Sem Partido no Brasil, que é muito similar ao
dos EUA. Nos EUA, a direita está se organizando para combater o que
chamam de Critical Race Theory (CRT)108. A CRT, a princípio, surgiu no
campo do direito e, com o tempo, estudos críticos na área da educação
começaram a se apropriar dessa corrente intelectual. A ideia por trás
da CRT é que, apesar das conquistas dos movimentos pelos direitos
civis, ainda há enormes lacunas entre as populações branca e negra,
destacadas nos dados educacionais, que precisam ser estudadas e não

108 Conceito que, no Brasil, tem sido traduzido de diferentes maneiras, como Teoria Crítica da
Raça; Teoria Crítica Racial; Teoria Racial Crítica.[N.E.]

145
podem ser compreendidas apenas através da análise de diferenças de
classe. Os movimentos sociais, de base, sequer utilizam esse termo. A
direita, porém, tem englobado organizações como o Black Lives Matter
no que denominam “Critical Race Theory”, e os combatido. Assim, por
exemplo, nas escolas, estão tentando fazer com que não se ensine mais
sobre a escravidão. Estão tentando tirar a história das escolas – o que
eles consideram uma “história crítica”, na verdade, são fatos. Acho que
isso é muito similar à direita no Brasil, ao Escola Sem Partido. Então eu
acho que outro desafio é como lutar contra essas tendências sem cair
no desafio de ser chamado de ideológicas porque a direita está sempre
tentando dizer que a gente é ideológico, e é por isso que as pesquisas
não merecem crédito.

EMpesquisa: Para concluirmos, há outras questões que você


gostaria de abordar, acrescentar ou enfatizar neste nosso diálogo?

Rebecca: Eu só quero mais uma vez agradecer o convite e dizer


que estamos muito felizes com o Rodolfo109 aqui, e eu também fiquei
muito feliz com esse convite de estar aqui com o grupo de vocês. Eu deixo
aberta a possibilidade de nos encontrarmos de novo para dialogarmos
mais. Para mim, a pesquisa sobre a educação que está acontecendo no
Brasil é de alta qualidade. Penso que vocês estão indo em uma direção
muito boa e, às vezes, eu tenho até inveja do que vocês produzem e
vivem aí, e quero escapar para o Brasil, mas eu sei que eu tenho que
lutar por uma educação crítica aqui nos EUA também. Obrigada de
novo pelo convite e estou aberta para outras oportunidades.

109 Rodolfo Soares Moimaz, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e membro do grupo EMpesquisa/SP. À época
da entrevista, Moimaz estava cumprindo um período de doutorado-sanduíche na Pennsylvania
State University sob supervisão da profa. Rebecca Tarlau, realizado com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES/print).

146
Coordenação editorial: Betânia G. Figueiredo
Diagramação e capa: Marcela Paim do Carmo
Revisão: Cláudia Rajão
Tipologias: Minion Pro e Myriad Pro.
Revisora de prortuguês: Maria Thereza S. Lucínio

Você também pode gostar