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334 Michel Foucault - Ditos e Escritos

do peso , a liberação de Marx em relação à dogmá tica de partido


que simultaneamente o fechou , veiculou e brandiu durante 1984
tanto
tempo . Pode-se dar à frase: “ Marx está morto” um sentido conjun-
tural , dizer que é verdade relativamente , mas dizer que Marx vai
desaparecer dessa maneira. . .
- Mas essa referê ncia em A arqueologia do saber queria dizer O Que São as Luzes?
que , de certa forma, Marx operava em sua metodologia? ;
-7
- Sim , totalmente . Você compreende que, como na época em que
eu escrevia esses livros era de bom-tom , para ser bem visto pela es-
£ "What
querda institucional , citar Marx no rodapé , eu evitei isso. Mas is Enligthenment?" ( “ O que sã o as Luzes? ” ) in Rabinow ( . ) ,
eu P ed . , The Fou-
poderia encontrar - o que não tem nenhum interesse - várias
pas-
. .
cault reader Nova Iorque , Pantheon Books 1984 , ps , 32 50 .
-
sagens que escrevi me referindo a Marx, e se Marx não tivesse sido
esse autor , funcionando dessa forma na cultura francesa e com
uma tal sobrecarga política , eu o teria citado em pé de página . Não Quando, nos dias de hoje , um jornal propõe uma pergunta aos
o fiz para me divertir e para preparar armadilhas para aqueles que , r seus leitores , é para pedir -lhes seus pontos de vista a respeito de
dentre os marxistas , pin çavam justamente essas frases. Isso fazia > . um tema sobre o qual cada um já tem sua opinião: não nos arrisca -
parte do jogo. mos a aprender grande coisa. No século XVIII , se preferia interro-
i , . gar o p ú blico sobre problemas para os quais justamente ainda não
í ; havia resposta . Não sei se era mais eficaz ; era mais divertido .
ï:
; Assim , em virtude desse há bito , um periódico alemão, a Berlinis -
: che Monatsschrift , publicou , em dezembro de 1784 , uma resposta à i
1
pergunta: Was ist Aufklárung?1 E essa resposta era de Kant.

^
{
h
t Texto menor , talvez . Mas me parece que , com ele , entra discreta -
$ mente na história do pensamento uma questão que a filosofia mo-
1
'

derna não foi capaz de responder , mas da qual ela nunca conseguiu
se desembaraçar . E há dois séculos , de formas diversas , ela a repe-
Ih te . De Hegel a Horckheimer ou a Habermas, passando por Nie-
£ tzsche ou Max Weber , não existe quase nenhuma filosofia que , dire -
ta ou indiretamente, não tenha sido confrontada com essa mesma
I questão: qual é então esse acontecimento que se chama a Aufkl á-
£•
rung e que determinou , pelo menos em parte , o que somos , pensa-
mos e fazemos hoje? Imaginemos que a Berlinische Monatsschrift
1
ainda existe em nossos dias e que ela coloca para seus leitores a
questão: “ O que é a filosofia moderna?” Poderíamos talvez respon-
i der -lhe em eco: a filosofia moderna é a que tenta responder à ques-
tão lançada , há dois séculos , com tanta imprud ência : Was ist Aufk -
l árung?
^
1 . In Berlinische Monatsschrift , dezembro de 1784 , vol . IV, ps. 481- 491 ( “ Qu ’est - ce
i
1

que les Lumières?” , trad. Wismann , in Oeuvres, Paris, Gallimard , col. "Biblio-
th è que de la Plé iade ” , 1985 , t. II ) .

ï. 1
1
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- pode-se igualmente analisar o presente como um ponto de


transição na direção da aurora de um mundo novo. É isso que des-
Detenhamo-nos por alguns instantes nesse texto de Kant . Por creve Vico no último capítulo dos Principes de la philosophie de
muitas razões , ele merece reter a atenção . l’ histoire 4 ; o que ele vê “ hoje ” é a “ mais completa civilização propa -
1 ) A essa mesma pergunta, o pr óprio Moses Mendelssohn tinha gando-se entre os povos , na maioria subjugados por alguns gran-
acabado de responder no mesmo jornal , dois meses antes. Mas Kant des monarcas"; é també m “ a Europa resplandecente de uma in-
desconhecia esse texto quando havia redigido o seu . Certamente , cqmparável civilização” , abundante enfim “ de todos os bens que
não é desse momento que data o encontro do movimento filosófico compõem a felicidade da vida humana ” .
alemão com os novos desenvolvimentos da cultura judaica. Já há Ora , a maneira pela qual Kant coloca a questão da Aufkl árung é
uns 30 anos Mendelssohn estava nessa encruzilhada, em compa- totalmente diferente: nem uma época do mundo à qual se perten-
nhia de Lessing. Mas, até então, tratava-se de dar direito de cidada- ce , nem um acontecimento do qual se percebe os sinais , nem a au-
nia à cultura judaica no pensamento alemão - o que Lessing havia rora de uma realização{kant define a Aufkl á rung de uma maneira
tentado fazer em Die Juden2 -, ou ainda de desembaraçar o pensa- quase inteiramente negativa , como uma Ausgang , uma “ saída ” ,
mento judaico e a filosofia alemã dos problemas comuns: é o que uma “ solu ção ” . Em seus outros textos sobre a história , ocorre a
'

Mendelssohn havia feito nas Entretiens sur l’ immortalité de l’âme3 . Kant colocar questões sobre a origem ou definir a finalidade inte-
Com os dois textos publicados na Berlinische Monatsschrift , a. Aufk - rior de um processo histórico. [ No texto sobre a Aufkl árung , a
l árung alemã e a Haskala judaica reconheciam que elas pertenciam questão se refere à pura atualidade . Ele não busca compreender o
à mesma história ; buscam determinar de que processo comum elas presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura.
decorrem . Talvez fosse uma maneira de anunciar a aceitação de um Ele busca uma diferen ça: qual a diferença que ele introduz hoje
destino comum, do qual se sabe a que drama ele devia conduzir . em relação a ontem?]
2 ) Entretanto , há mais. Em si mesmo e no interior da tradição 3 ) Não entrarei nos detalhes do texto, que não é muito claro , ape-
cristã , esse texto coloca um problema novo . ‘
; sar de sua brevidade . Gostaria simplesmente de me deter em tr ês i
Certamente não é a primeira vez que o pensamento filosófico
^
procura refletir sobre seu pr óprio presente. Mas , esquematicamen-
ou quatro pontos que me parecem importantes para compreender
como Kant colocou a questão filosófica do presente s
te , pode-se dizer que , até então , essa reflexão tinha tomado tr ês for - [kant indica imediatamente que a “ saída” que caracteriza a Aufk -
mas principais:J l árung é um processo que nos liberta do estado de “ menoridade ” .
í
- pode-se representar o presente como pertencendo a uma certa E por “ menoridade” ele entende um certo estado de nossa vontade
é poca do mundo , distinta das outras por algumas caracter ísticas que nos faz aceitar a autoridade de algum outro para nos conduzir
pr ó prias , ou separada das outras por algum acontecimento dramá- nos dom ínios em que convé m fazer uso da razão. Kant dá três

^
tico Assim , em O polí tico , de Platão, os interlocutores reconhecem
que eles pertencem a uma dessas revolu ções do mundo em que
este gira ao contr ário , com todas as conseqúê ncias negativas que
issojíode ter ;
exemplos: estamos no estado de menoridade quando um livro
toma o lugar do entendimento , quando um orientador espiritual
toma o lugar da consciê ncia , quando um médico decide em nosso
lugar a nossa dieta ( observamos de passagem que facilmente se re-
'
-
- pode se também interrogar o presente para nele tentar decifrar conhece aí o registrg das tr ês cr íticas , embora o texto não o mencio-
os sinais que anunciam um acontecimento iminente .; Temos aqui o ne explicitamente ) . iDm todo caso , a Aufklárung é definida pela mo-
princípio de uma espécie de hermenêutica histórica , da qual Agos- dificação da relação preexistente entre a vontade , a autoridade e o
tinho poderia dar um exemplo ; uso da razão ;

2. Lessing ( G. j, Die Juden , 1749. 4 . Vico ( G. ) , Principii di una scienza nuoua d ’ interno alla comune natura delle
3. Mendelssohn (M . ) , Phádon Oder iiber die Unsterbfichkeit der Seele , Berlim , nazioni , 1725 [ Principes de la philosophie de l’ histoire , trad . Michelet , Paris , 1835 ; !
1767 , 1768 , 1769. reed . , Paris, A. Colin , 1963 ) . 4

à
\

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E preciso també m enfatizar que essa saída é apresentada por mas quando se disser a ela: “ Obedeçam , e vocês poderão racioci-
Kant de maneira bastante ambígua. Ele a caracteriza como um nar tanto quanto quiserem . ” É preciso observar que a palavra ale-
fato, um processo em vias de se desenrolar ; mas a apresenta tam- mã empregada aqui é rdzonieren; esta palavra, que é também em-
bé m como uma tarefa e uma obrigação. Desde o primeiro par ágra- pregada nas Critiques , não se relaciona com um uso qualquer da
fo , enfatiza que o pr óprio homem é responsável por seu estado de razão , mas com um uso da razão no qual esta não tem outra finali-
menoridade . E preciso conceber então que ele não poder á sair dele dade senão ela mesma; r á zonieren é raciocinar por raciocinarjE
a não ser por uma mudan ça que ele pr óprio operar á em si mesmo . Kant d á exemplos , eles também completamente triviais , aparente-
De uma maneira significativa, Kant diz que essa Aufklárung tem mente: pagar seus impostos , mas poder raciocinar tanto quanto se
queira sobre a fiscalização , eis o que caracteriza o estado de maio-
uma “ divisa ” (Wahlspruch ) : ora , a divisa é um traço distintivo atra-
vés do qual algué m se faz reconhecer ; é també m uma palavra de or - ridade ; ou ainda assegurar , quando se é pastor , o serviço de uma
dem que damos a nós mesmos e que propomos aos outros. E qual paróquia de acordo com os princípios da Igreja à qual se pertence ,
é essa palavra de ordem? Aude saper , “ tenha coragem , a aud ácia mas raciocinar como se quiser sobre o tema dos dogmas religiosos .
de saber ” . Portanto, é preciso considerar que a. Aufkl árung é ao / Seria possível pensar que nada há aí de muito diferente do que
mesmo tempo um processo do qual os homens fazem parte coleti- se entende, desde o século XVI, por liberdade de consciê ncia: o di-
reito de pensar como se queira , desde que se obede ça como é preci-
vamente e um ato de coragem a realizar pessoalmente . Eles são si-
so . Ora , é ali que Kant faz intervir uma outra distinção e a faz inter -
multaneamente elementos e agentes do mesmo processo. Podem
vir de uma maneira bastante surpreendente . Trata-se da distin ção
ser seus atores à medida que fazem parte dele ; e ele se produz à
medida que os homens decidem ser seus atores voluntários .
Surge uma terceira dificuldade no texto de Kant. Ela reside no ^
entre o uso privado e o uso p úblico da razãõ Mas ele acrescenta
logo a seguir que a razão deve ser livre em seu uso p úblico e que
deve ser submissa em seu uso privado. O que é , palavra por pala-
emprego da palavra Menschheit . Sabe-se a importância deste ter - vra , o contr ário do que usualmente se chama liberdade de cons-
mo na concepção kantiana da história . Ser á preciso compreender ciê ncia
que é o conjunto da espécie humana que está envolvido no proces- Mas é necessário precisar um pouco . Qual é , segundo Kant , esse
so da Aufkl árung? E , nesse caso , é preciso conceber que a Aufkl á- uso privado da raz ão? Em que domínio ele se exerce? O homem ,
rung é uma mudan ça histórica que atinge a vida política e social de diz Kant , faz um uso privado de sua razão quando ele é “ uma peça
todos os homens sobre a superf ície da Terra. jOu se deve entender de uma máquina” ; ou seja , quando ele tem um papel a desempe-
que se trata de uma mudança que afeta o que constitui a humanida- nhar na sociedade e fun ções a exercer : ser soldado , ter impostos a
de do ser humano? E se coloca então a questão de saber o que é pagar , dirigir uma par óquia , ser funcioná rio de um governo , tudo
^
essa mudan ça Ali , també m , a resposta de Kant não é desprovida
de certa ambigúidade . Em todo caso, sob uma apar ê ncia simples ,
ela é bastante complexa .
isso faz do ser humano um segmento particular na sociedade ; por
aí , ele se encontra colocado em uma posição definida , em que ele
deve aplicar as regras e perseguir fins particulares. Kant não pede
[ Kant define duas condições essenciais para que um homem saia que se pratique uma obediência cega e tola ; mas que se faça um uso
de sua menoridade . E essas duas condições são simultaneamente da razão adaptado a essas circunstâncias determinadas ; e a razão

^
espirituais e institucionais , éticas e políticas
>qA primeira dessas condições é que seja bem discriminado o que
decorre da obediê ncia e o que decorre do uso da razão Para carac-
deve submeter -se então a esses fins particulares . Não pode haver
portanto , aí , uso livre da razão]
! Em compensação , quando se raciocina apenas para fazer uso de
^
terizar resumidamente o estado de menoridade , Kant cita uma ex- sua razão, quando se raciocina como ser racional ( e não como peça
pressão de uso corrente : “ Obedeçam , não raciocinem . ” Tal é , se- de uma máquina ) , quando se raciocina como membro da humani-
gundo ele , a forma pela qual se exercem habitualmente a disciplina dade racional , então c uso da razão deve ser livre e p úblico A Aufk - 5

militar , o poder político , a autoridade religiosa:. A humanidade ter á


adquirido maioridade não quando não tiver mais que obedecer , procurariam garantir sua liberdade pessoal de pensamento . Há
^
l árung não é , portanto , somente o processo pelo qual os indivíduos

á
}
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Aufklàrung quando existe sobreposição do uso universal, do uso li- mente definido em seus princípios que sua autonomia pode ser as-
vre e do uso pú blico da razão . segurada. A Cr ítica é , de qualquer maneira , o livro de bordo da ra-
Ora, isso nos conduz a uma quarta questão que é preciso colocar zão tornada maior na Aufkl árung ; e , inversamente , a Aufkl á rung é
para esse texto de Kant . Compreende-se que o uso universal da ra- a era da Criticar]
zão ( fora de qualquer fim particular ) é assunto do próprio sujeito É preciso também , creio , enfatizar a relação entre esse texto de
como indivíduo ; percebe-se também que a liberdade desse uso Kant e os outros textos consagrados à história . Estes , em sua maio-
pode ser assegurada de maneira puramente negativa pela ausência ria, buscam definir a finalidade interna do tempo e o ponto para o
de qualquer acusação contra ele ;[mas , como assegurar um uso pú- qual se encaminha a história da humanidade . Ora ,[a análise da
blico dessa razão? A Aufkl àrung - vemos aqui - não deve ser conce- Aufkl àrung , definindo-a como a passagem da humanidade para
bida simplesmente como um processo geral afetando toda a huma- seu estado de maioridade , situa a atualidade em relação a esse mo-
nidade ; ela não deve ser concebida somente como uma obrigação vimento do conjunto e suas direções fundamentais . Mas , simulta -
prescrita aos indivíduos: ela aparece agora como um problema po- neamente , ela mostra como , nesse momento atual , cada um é res-
lí ticoj pm todo caso, coloca-se a questão de saber como o uso da ra- ponsável de uma certa maneira por esse processo do conjunto]
zão pode tomar a forma pública que lhe é necessária , como a audá-
cia de saber pode se exercer plenamente , enquanto os indivíduos
TA hipótese que eu gostaria de sustentar é de que esse pequeno
texto se encontra de qualquer forma na charneira entre a reflexão
^
obedecer ão tão exatamente quanto possível . E Kant , para terminar , crítica e a reflexão sobre a história] É uma reflexão de Kant sobre a
propõe a Frederico II , em termos pouco velados , uma espécie de atualidade de seu trabalho. Sem d úvida , não é a primeira vez que
contrato . O que poder íamos chamar de contrato do despotismo ra- um filósofo expõe as razões que ele tem para empreender sua obra
cional com a livre razão : o uso p úblico e livre da razão autónoma em tal ou tal momento. Mas me parece que é a primeira vez que um
será a melhor garantia da obediência, desde que , no entanto, o pr ó- filósofo liga assim, de maneira estreita e do interior , a significação :
prio princípio político ao qual é preciso obedecer esteja de acordo de sua obra em relação ao conhecimento , uma reflexão sobre a his-
com a razão universal. tória e uma análise particular do momento singular em que ele es-
creve e em função do qual ele escreve . A reflexão sobre “ a atualida- !
de ” como diferen ça na história e como motivo para uma tarefa filo-
sófica particular me parece ser a novidade desse texto^
Deixemos de lado esse texto . N ão pretendo absolutamente consi-
E , encarando-o assim , jne parece que se pode reconhecer nele
der á-lo como podendo constituir uma descrição adequada da um ponto de partida: o esboço do que se poderia chamar de atitude
Aufkl á rung ; e nenhum historiador , penso , poderia se satisfazer
de modernidade . \
com ele para analisar as transformações sociais, polí ticas e cultu- Sei que se fala freqúentemente da modernidade como uma é po-
rais produzidas no fim do século XVIII.
ca ou , em todo caso , como um conjunto de traços caracter ísticos de
Contudo , apesar de seu caráter circunstancial e sem querer lhe uma é poca ; ela é situada em um calendário , no qual seria precedi-
dar um lugar exagerado na obra de Kant, creio que é preciso enfati-
da de uma pré-modernidade , mais ou menos ingénua ou arcaica , e
^
zarja ligação existente entre esse pequeno artigo e as três Critiques .\ seguida de uma enigmática e inquiétante “ pós-modernidade ” . E
í Ele descreve de fato a Aufkl àrung como o momento em que a hu- nos interrogamos então para saber se a modernidade constitui a
Tnanidade far á uso de sua pr ópria razão , sem se submeter a nenhu- conseqúê ncia da Aufkl árung e seu desenvolvimento , ou se é preci-
ma autoridade ; ora , é precisamente neste momento que a Cr ítica é so ver nela uma ruptura ou um desvio em relação aos princípios
necessária, já que ela tem o papel de definir as condições nas quais fundamentais do século XVIII .
o uso da razão é legítimo para determinar o que se pode conhecer , ^
Referindo-me ao texto de Kant , pergunto-me se não podemos en-
o que é preciso fazer e o que é permitido esperar . É um uso ilegíti- carar a modernidade mais como uma atitude do que como um pe- *
mo da razão que faz nascer , com a ilusão , o dogmatismo e a heter o- r íodo da história. Por atitude , quero dizer um modo de relação que
nomia ; ao contr ário, é quando o uso legí timo da razão foi clara-
concerne à atualidade ; uma escolha voluntária que é feita por al -

Â
i

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guns ; enfim , uma maneira de pensar e de sentir , uma maneira tam- to público ; um imenso desfile de coveiros, políticos , amantes , bur -
bé m de agir e de se conduzir que , tudo ao mesmo tempo , marca gueses. Celebramos todos algum enterro .” 6 Para designar essa ati-
uma pertinê ncia e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem tude de modernidade , Baudelaire utiliza, às vezes, uma litotes que
d úvida , como aquilo que os gregos chamavam de ê thos . Conse- é muito significativa , porque ela se apresenta sob a forma de um
q üentemente , mais do que querer distinguir o “ per íodo moderno” preceito : “ Vocês não tê m o direito de menosprezar o presente. ”
das é pocas “ pr é ” ou “ pós-modernas” , creio que seria melhor procu - 2 ) Essa heroificação é irónica, bem entendido. Não se trata abso-
rar entender como a atitude de modernidade , desde que se formou , lutamente , na atitude de modernidade , de sacralizar o momento
pôs-se em luta com as atitudes de “ contramodernidade ” . j que passa para tentar mantê-lo ou perpetuá-lo. Não se trata sobre-

^ Para caracterizar resumidamente essa atitude de modernidade ,


tomarei um exemplo que é quase obrigatório: trata-se de Baudelai-
reQjá que em geral se reconhece nele uma das consciê ncias mais
tudo de recolhê-lo como uma curiosidade fugidia e interessante:
isso seria o que Baudelaire chama de uma atitude de “ flanar ” .
Aquele que flana se contenta em abrir os olhos , prestar atenção e
agudas da modernidade do século XIX. colecionar na lembrança. Ao homem que flana , Baudelaire opõe o
1 ) Tenta-se freqüentemente caracterizar a modernidade pela homem de modernidade : “ Ele vai , corre , procura . Seguramente ,
consciê ncia da descontinuidade do tempo : ruptura da tradição , esse homem , esse solitário dotado de uma imaginação ativa , sem-
sentimento de novidade , vertigem do que passa . É certamente isso pre viajando através do grande deserto de homens, tem um objeti-
que Baudelaire parece dizer quando ele define a modernidade vo mais elevado do que o daquele que flana , um objetivo mais geral ,
como “ o transitório, o fugidio, o contingente ” 5. Mas , para ele , ser diferente do prazer fugidio da circunstância . Ele busca essa alguma
moderno não é reconhecer e aceitar esse movimento perpé tuo ; é , coisa que nos permitir ão chamar de modernidade . Trata-se para
ao contr á rio , assumir uma determinada atitude em relação a esse ele de destacar da moda o que ela pode conter de poético no históri-
movimento; e essa atitude voluntária , dif ícil , consiste em recuperar co . ” E , como exemplo de modernidade , Baudelaire cita o desenhista
alguma coisa de eterno que não está alé m do instante presente , Constantin Guys. Aparentemente , ele é um sujeito que flana, um co-
nem por tr ás dele , mas nele . A modernidade se distingue da moda lecionador de curiosidades: ele é sempre “ o último em todos os luga-
que apenas segue ó curso do tempo ; é essa atitude que permite res onde pode resplandecer a luz , ressoar a poesia, fervilhar a vida ,
apreender o que há de “ heroico ” no momento presente . A moderni- vibrar a m úsica, em todos os lugares onde uma paixão pode pousar
dade não é um fato de sensibilidade frente ao presente fugidio ; é seu olhar , em todos os lugares onde o homem natural e o homem
uma vontade de “ heroificar” o presente .\ convencional se mostram em uma beleza bizarra, em todos os luga- «
Eu me contentarei em citar o que diz Baudelaire da pintura dos res onde o sol clareia as joias fugidias do animal depravado” 7 .
personagens contemporâneos . Baudelaire ridiculariza esses pinto- Mas não devemos nos enganar . Constantin Guys não é um sujei-
res que , achando muito antiestética a maneira de se vestir dos ho- to que flana; de fato , aos olhos de Baudelaire , o pintor moderno por
mens do século XIX , só querem representá-los com togas antigas . excelê ncia é aquele que , na hora em que o mundo inteiro vai dor -
Mas , para ele , a modernidade da pintura não consistir á apenas em mir , se põe ao trabalho , e o transfigura. Transfiguração que não é
introduzir vestes negras em um quadro . O pintor moderno ser á anulação do real , mas o difícil jogo entre a verdade do real e o exer -
aquele que mostrar á essa escura sobrecasaca como “ a vestimenta cício da liberdade ; as coisas “ naturais” tornam-se então “ mais do
necessária de nossa é poca". É aquele que saber á fazer valer , nessa que naturais” , as coisas “ belas” tornam-se “ mais do que belas” , e as
última moda, a relação essencial , permanente , obsédante que nos- coisas singulares aparecem “ dotadas de uma vida entusiasta como
sa é poca mantém com a morte. “ A vestimenta negra e a sobrecasa- a alma do autor ” 8£Para a atitude de modernidade , o alto valor do
ca têm não somente sua beleza poética, que é a expressão da igual- presente é indissociável da obstinação de imaginar , imaginá-lo de
dade universal, mas ainda sua poé tica , que é a expressão do espíri-

6. Id . , “ De l’ héroïsme de la vie moderne” , op. cit . , p . 494 .


5. Baudelaire ( C. ) , Le peintre de la vie moderne , in Oeuvres compl ètes , Paris , 7 . Baudelaire ( C . ) , Le peintre de la vie moderne , op. cit . , ps. 693 694.
-
Gallimard , col. “ Bibliothèque de la Pléiade” , 1976, t. II , p. 695.
8. Ibid . , p . 694 .
\
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1984 - O Que São as Luzes? 345

modo diferente do que ele não é , e transformá-lo não o destruindo , constituição de si pr óprio como sujeito autónomo ; gostaria de enfa-
mas captando-o no que ele é. A modernidade baudelairiana é um ' tizar , por outro lado, que o fio que pode nos atar dessa maneira à
exercício em que a extrema atenção para com o real é confrontada Aufkl árung não é a fidelidade aos elementos de doutrina , mas , an -
com a pr ática de uma liberdade que , simultaneamente , respeita
, tes , a reativação permanente de uma atitude ; ou seja, um ê thos filo-
esse real e o viola . \ sófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de
3) Ísío entanto, para Baudelaire , a modernidade não é simples- V
— J

nosso ser historicqjE esse éthos que eu gostaria de caracterizar


mente forma de relação com o presente; é també m um modo de re- muito resumidamente .
lação que é preciso estabelecer consigo mesmo . A atitude voluntá- A. Negativamente . 1 ) Esse ê thos implica inicialmente que se re-
ria de modernidade está ligada a um ascetismo indispensável . Ser cuse o que chamarei de boa vontade de “ chantagem ” em relação à
moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos mo- Aufklárung . Penso que a Aufklárung , como conjunto de aconteci-
mentos que passam ; é tomar a si mesmo como objeto de uma ela- mentos polí ticos, económicos , sociais , institucionais , culturais dos
boração complexa e dura: é o que Baudelaire chama , de acordo quais somos ainda em grande parte dependentes , constitui um do-
com o vocabulá rio da é poca , de “ dandismo jNão lembrarei as pági- mínio de análise privilegiado. Penso também que , como empreen-
nas muito conhecidas: aquelas sobre a natureza “ grosseira, terres- dimento para ligar por um laço de relação direta o progresso da
tre , imunda ” ; aquelas sobre a indispensável revolta do homem em verdade e a história da liberdade , ela formulou uma questão filosó-
relação a ele mesmo ; aquelas sobre a “ doutrina da elegância ” , que
impõe “ a esses ambiciosos e apagados sectários ” uma disciplina
fica que ainda permanece colocada para nós . Penso , enfim tentei-
mostr á-lo a propósito do texto de Kant -, que ela definiu uma certa
mais despótica do que a das mais terr íveis religiões ; as páginas , en- maneira de filosofar .
fim , sobre o ascetismo do d â ndi que faz de seu corpo , de seu com- Mas isso não quer dizer que é preciso ser a favor ou contra a
portamento , de seus sentimentos e paixões , de sua existê ncia , uma Aufkl árung . Isso quer dizer precisamente que é necessário recusar
obra de arte . jo homem moderno , para Baudelaire , não é aquele tudo o que poderia se apresentar sob a forma de uma alternativa
que parte para descobrir a si mesmo , seus segredos e sua verdade simplista e autoritária: ou vocês aceitam a Aufkl árung , e permane- 4

escondida ; ele é aquele que busca inventar -se a si mesmo . Essa cem na tradição de seu racionalismo ( o que é considerado por al-
modernidade nã o liberta o homem em seu ser pr óprio ; ela lhe im- guns como positivo e , por outros , ao contr ário , como uma censu -
põe a tarefa de elaborar a si mesmoj ra ) ; ou vocês criticam a Aufkl árung , e tentam escapar desses prin-
4 ) Finalmente , acrescentarei apenas uma palavra.* Essa heroifi- cípios de racionalidade ( o que pode ser ainda uma vez tomado
ca ção ir ónica do presente , esse jogo da liberdade com o real para como positivo ou como negativo ) . E não escaparemos dessa chan -
sua transfiguração , essa elaboração ascé tica de si , Baudelaire não tagem introduzindo nuan ças “ dialé ticas” , buscando determinar o
concebe que possam ocorrer na pr ópria sociedade ou no corpo po- que poderia haver de bom ou de mau na Aufkl árung .
lí tico . Eles só podem produzir -se em um lugar outro que Baudelai-
re chama de arte .
T É preciso tentar fazer a análise de n ós mesmos como seres histo-
ricamente determinados , até certo ponto , pela Aufkl árung
implica uma série de pesquisas históricas tão precisas quanto
Jo que
^ pos-
sível ; e essas pesquisas não serão orientadas retrospectivamente
N ão pretendo resumir nesses poucos traços o acontecimento na direção do “ núcleo essencial da racionalidade ” que se pode
histórico complexo que foi a Aufkl árung no fim do século XVIII , encontrar na Aufkl árung e que se poderia salvar inteiramente no
nem tampouco as diferentes formas que a atitude de modernidade estado de causa ; elas seriam orientadas na direção dos “ limites
pôde assumir durante os dois últimos séculos. atuais do necessário” : ou seja , na direção do que não é , ou não é
(Gostaria, por um lado, de enfatizar o enraizamento na Aufklá- mais , indispensável para a constituição de nós mesmos como sujei-
tos autónomos
rung de um tipo de interrogação filosófica que problematiza simul-
taneamente a relação com o presente , o modo de ser histórico e a ^
2 ) Essa crítica permanente de nós mesmos deve evitar as confu -
sões sempre muito fáceis entre o humanismo e a Aufkl árung . \ É
]
:
346 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1984 - O Que São as Luzes? 347

preciso jamais esquecer que a Aufkl árung é um acontecimento ou Deste ponto de vista , eu veria mais uma tensão entre a Aufkl árung
um conjunto de acontecimentos e de processos históricos comple- ; e o humanismo do que uma identidade .
xos , que se situaram em um determinado momento do desenvolvi- Em todo caso, confundi-los me parece perigoso ; e , alé m disso ,
mento das sociedades européiasjEsse conjunto inclui elementos historicamente inexato. Se a questão do homem , da espécie huma -
de transformações sociais , tipos de instituições políticas , formas na, do humanista foi muito importante ao longo do século XVIII ,
de saber , projetos de racionalização dos conhecimentos e das pr á- muito raramente , creio, a própria Aufkl árung se considerou como
ticas , mutações tecnológicas , que são muito dif íceis de resumir em um humanismo. Vale a pena notar també m que , ao longo do século
uma palavra , embora muitos desses fenômenos sejam ainda im-
^ XIX, a historiografia do humanismo no século XVI , que tinha sido
portantes no momento atual. Aquele que eu já destaquei, e que me tão importante em pessoas como Sainte-Beuve ou Burckhardt ,
parece ter sido fundador de toda uma forma de reflexão filosófica , sempre foi distinta e , às vezes, explicitamente oposta às Luzes e ao
concerne somente ao modo de relação de reflexão com o presente J século XVIII . O século XIX teve a tend ência a opô-los, ao menos tan-
O humanismo é uma coisa completamente diferente : é um tema , to quanto a confundi-los.
ou melhor , um conjunto de temas que reapareceram em várias oca- Em todo caso , creio que é preciso escapar tanto da chantagem
siões através do tempo , nas sociedades européias ; esses temas , intelectual e política de “ ser a favor ou contra a Aufkl árung" , como
permanentemente ligados a julgamentos de valor , tiveram eviden- també m da confusão histórica e moral que mistura o tema do hu -
temente sempre muitas variações em seu conte údo, assim como manismo com a questão da Aufkl árung . Uma análise de suas rela-
nos valores que eles mantiveram . Mais ainda , serviram de princí- ções complexas ao longo dos dois últimos séculos deveria ser feita ,
pio cr í tico de diferenciação: houve um humanismo que se apresen- e esse seria um trabalho importante para desembaralhar um pou -
tava como cr í tica ao cristianismo ou à religião em geral ; houve um co a consciê ncia que temos de nós mesmos e de nosso passado .
humanismo cristão em oposição a um humanismo ascé tico e muito B. Positivamente . Mas, levando em conta essas precauções, ; é pre-
mais teocê ntrico ( no século XVII ) . No século XIX , houve um huma- ciso evidentemente dar um conteúdo mais positivo ao que pode ser
nismo desconfiado , hostil e cr ítico em relação à ciê ncia ; e um outro um êthos filosófico consistente em uma crítica do que dizemos, pen-
que colocava ( ao contrário ) sua esperança nessa mesma ciê ncia . O samos e fazemos , através de uma ontologia histórica de nós mesmos.)
marxismo foi um humanismo , o existencialismo , o personalismo 1 ) Esse ê thos filosófico pode ser caracterizado como uma atitu -
també m o foram ; houve um tempo em que se sustentavam os valo- de -limite . jNão se trata de um comportamento de rejeição. Deve-se
res humanistas representados pelo nacional-socialismo , e no qual escapar a alternativa do fora e do dentro ; é preciso situar -se nas
os pr óprios stalinistas se diziam humanistas. fronteiras.[Ã cr í tica é certamente a análise dos limites e a reflexão
N ã o se deve concluir daí que tudo aquilo que se reivindicou sobre eles."Mas , se a questão kantiana era saber a que limites o co-
como humanismo deva ser rejeitado , mas que a temática humanis- nhecimento deve renunciar a transpor , parece- me que , atualmente ,
ta é em si mesma muito maleável , muito diversa , muito inconsis- a questão crítica deve ser revertida em uma questão positiva : no
tente para servir de eixo à reflexão. E é verdade que , ao menos des- que nos é apresentado como universal , necessário , obrigatório ,
de o século XVII , o que se chama de humanismo foi sempre obriga- qual é a parte do que é singular , contingente e fruto das imposições
do a se apoiar em certas concepções do homem que são tomadas arbitrárias. Trata-se , em suma, de transformar a cr ítica exercida
emprestadas da religião , das ciências , da polí tica. O humanismo sob a forma de limitação necessária em uma cr ítica pr ática sob a
serve para colorir e justificar as concepções do homem às quais ele forma de ultrapassagem possíveLj
foi certamente obrigado a recorrer . [Àquilo que, nós o vemos, traz como conseqüência que a cr ítica
Ora, creio que justamente se pode opor a essa temática , tão fre- vai se exercer não mais na pesquisa das estruturas formais que têm
qüentemente recorrente e sempre dependente do humanismo , [o valor universal, mas como pesquisa histórica através dos aconteci-
princípio de uma cr ítica e de uma criação permanente de n ós mes- mentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como
mos em nossa autonomia; ou seja, um princípio que está no cerne
da consciê ncia histórica que a Aufklárung tinha tido dela mesma . ^
sujeitos do que fazemos , pensamos, dizemos Nesse sentido , essa
cr ítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar possí-
i
348 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1984 - O Que São as Luzes? 349

vel uma metaf ísica: ela é genealógica em sua finalidade e arqueoló- 3 ) Mas , sem dúvida, seria totalmente legítimo fazer a seguinte
gica em seu mé todq?\Arqueológiça - e não transcendental - no sen- objeção: limitando-se a esse tipo de pesquisas e de provas sempre
tido de que ela não procurar á depreender as estruturas universais parciais e locais , não há o risco de nos deixarmos determinar por
de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; estruturas mais gerais, sobre as quais tendemos a não ter nem
mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos , dize- consciê ncia nem domínio?
mos e fazemos como os acontecimentos históricos. E essa cr ítica Sobre isso , duas respostas . É verdade que é preciso renunciar à ^

será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do esperança de jamais atingir um ponto de vista que poderia nos dar ;
que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer ; mas ela acesso ao conhecimento completo e definitivo do que pode consti- \
deduzir á da contingê ncia que nos fez ser o que somos a possibili- tuir nossos limites históricos . E , desse ponto de vista , a experiência
dade de não mais ser , fazer ou pensar o que somos, fazemos ou teórica e prática que fazemos de nossos limites e de sua ultrapassa-
pensamos . gem possível é sempre limitada , determinada e , portanto , a ser re-
Ela não busca tornar possível a metaf ísica tornada enfim ciê n- começada .
cia ; [ela procura fazer avan çar para tão longe e tão amplamente [Mas isso não quer dizer que qualquer trabalho só pode ser feito
quanto possível o trabalho infinito da liberdade j na desordem e na contingê ncia. Esse trabalho tem sua generalida -
2 ) Mas , para que não se trate simplesmente da afirmação e do de , sua sistematização , sua homogeneidade e sua aposta .
sonho vazio de liberdade , parece-me que essa atitude histó ri- Sua aposta . É indicada pelo que poder íamos chamar de “ o para -
co-cr í tica deve ser també m uma atitude experimental . Quero dizer doxo ( das relações ) da capacidade e do poder ” . Sabe-se que a gran -
que esse trabalho realizado nos limites de nós mesmos deve , por de promessa ou a grande esperan ça do século XVIII , ou de uma
um lado, abrir um dom í nio de pesquisas históricas e , por outro , parte do século XVIII , estava depositada no crescimento simultâ-
colocar-se à prova da realidade e da atualidade , para simultanea- neo e proporcional da capacidade técnica de agir sobre as coisas e
mente apreender os pontos em que a mudança é possível e desejá- da liberdade dos indivíduos uns em relação aos outros. Alé m dis-
vel e para determinar a forma precisa a dar a essa mudança .|o que so , podemos ver que , através de toda a história das sociedades oci-
quer dizer que essa ontologia histórica de nós mesmos deve desvi-
^
dentais ( talvez ali se encontre a raiz de seu singular destino históri-
ar -se de todos esses projetos que pretendem ser globais e radicais . co - tão particular , tão diferente ( dos outros ) em sua trajetória e tão
De fato , sabe-se pela experiê ncia que a pretensão de escapar ao sis- universalizante , dominante em relação aos outros ) , a aquisição de
tema da atualidade para oferecer programas de conjunto de uma capacidades e a luta pela liberdade constituí ram os elementos per -
outra sociedade , de um outro modo de pensar , de uma outra cultu - manentes . Ora , as relações entre crescimento das capacidades e
ra , de uma outra visão do mundo apenas conseguiu reconduzir às crescimento da autonomia não são tão simples para que o século
mais perigosas tradições. XVIII pudesse acreditar nelas. Pode-se ver que formas de relações
! Prefiro as transforma
ções muito precisas que puderam ocorrer , de poder eram veiculadas pelas diversas tecnologias ( quer se tra-
há 20 anos , em um certo n ú mero de domí nios que concernem a tasse de produções com finalidades económicas , de instituições vi-
nossos modos de ser e de pensar , às relações de autoridade , às re- sando a regulações sociais, de técnicas de comunicação ) : como
lações de sexos , à maneira pela qual percebemos a loucura ou a do- exemplo , as disciplinas simultaneamente coletivas e individuais , os
ença , prefiro essas transformações mesmo parciais , que foram fei- procedimentos de normalização exercidos em nome do poder do
tas na correlação da análise histórica e da atitude pr á tica , às pro- Estado , as exigências da sociedade ou de faixas da população.{ A
messas do novo homem que os piores sistemas políticos repetiram aposta é então : como desvincular o crescimento das capacidades e
ao longo do século XX. \
'
Caracterizarei então o ê thos filosófico pr óprio à Ontologia cr ítica
de nós mesmos como uma prova histórico-prática dos limites que
a intensificação das relações de poder?
^
Homogeneidade . Conduz ao estudo do que poder íamos chamar
de “ conjuntos pr áticos” . Trata-se de tomar como domínio homogé-
i

podemos transpor , portanto , como o nosso trabalho sobre nós neo de referê ncia não as representações que os homens se dão de-
mesmos como seres livres. les mesmos , não as condições que os determinam sem que eles o
?

II
f
ill 1984 - O Que São as Luzes? 351
350 Michel Foucault - Ditos e Escritos

( ou seja, do que não é constante antropológica nem variação crono-


saibam , mas o que eles fazem e a maneira pela qual o fazem . Ou
seja , as formas de racionalidade que organizam as maneiras de fa-
lógica ) é , portanto, a maneira de analisar , em sua forma historica -
zer ( o que poder íamos chamar de seu aspecto tecnológico ) , e a li- mente singular , as questões de alcance geral.
) berdade com a qual eles agem nesses sistemas pr áticos, reagindo
ao que os outros fazem , modificando até certo ponto as regras do
jogo ( é o que poder íamos chamar de versão estratégica dessas pr á- Um pequeno resumo para terminar e retornar a Kant. Não sei se
ticas ) . A homogeneidade dessas análises histórico-cr íticas é asse- algum dia nos tornaremos maiores. Muitas coisas em nossa expe-
gurada , portanto , por esse domínio das práticas, com sua versão riê ncia nos convencem de que o acontecimento histórico da Aufklá-
tecnológica e sua versão estratégica.
^
Sistematização. Esses conjuntos pr áticos decorrem de três
grandes domí nios: o das relações de domí nio sobre as coisas , o das
rung não nos tornou maiores; e que nós não o somos ainda. Entre-
tanto, parece-me que se pode dar um sentido a essa interrogação
crítica sobre o presente e sobre nós mesmos formulada por Kant
relações de ação sobre os outros, o das relações consigo mesmo . O ao refletir sobre aAufkl árung . Parece-me que esta é , inclusive , uma
que não quer dizer que esses tr ês domínios sejam completamente maneira de filosofar que não foi sem importância nem eficácia nes-
estranhos uns aos outros . Sabemos que o domí nio sobre as coisas ses dois últimos séculos. É preciso considerar a ontologia cr ítica de
passa pela relação com os outros; e esta implica sempre as rela- nós mesmos não certamente como uma teoria , uma doutrina, nem
ções consigo mesmo ; e vice-versa. Mas trata-se de tr ês eixos dos mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é
quais é preciso analisar a especificidade e o intricamento : o eixo do preciso concebê-la como uma atitude , um éthos , uma via filosófica
saber , o eixo do poder e o eixo da é tica./ Em outros termos , a ontolo- em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica
gia histórica de nós mesmos deve responder a uma série aberta de dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem
questões ; ela se relaciona com um n ú mero não definido de pesqui- possível]
sas que é possível multiplicar e precisar tanto quanto se queira; Essa atitude filosófica deve se traduzir em um trabalho de pes-
mas elas responder ão todas à seguinte sistematizaçãorfcomo nos quisas diversas : estas tê m sua coer ê ncia metodológica no estudo
constituímos como sujeitos de nosso saber ; como nos constituí- tanto arqueológico quanto genealógico de práticas enfocadas si-
mos como sujeitos que exercem ou sofrem as relações de poder ; multaneamente como tipo tecnológico de racionalidade e jogos es-
como nos constituí mos como sujeitos morais de nossas ações
Generalidade. Finalmente , essas pesquisas histórico-crí ticas
são bem particulares no sentido de se referirem sempre a um mate-
^ tratégicos de liberdades ; elas têm sua coer ê ncia teórica na defini-
ção das formas historicamente singulares nas quais tê m sido pro-
blematizadas as generalidades de nossa relação com as coisas ,
rial , a uma época , a um corpo de pr áticas e a discursos determina- com os outros e conosco. Elas têm sua coerê ncia pr ática no cuida-
dos. Mas, ao menos na escala das sociedades ocidentais da qual de - do dedicado em.colocar a reflexão histórico-cr ítica à prova das prá-
rivamos, elas tê m sua generalidade : no sentido de que , até agora , ticas concretasLNão sei se é preciso dizer hoje que o trabalho cr íti-
elas tê m sido recorrentes; assim , o problema das relações entre ra- co també m implica a fé nas Luzes ; ele sempre implica, penso , o tra-
zão e loucura , entre doença e saúde, crime e lei , ou o problema do balho sobre nossos limites, ou seja, um trabalho paciente que d á
lugar a dar às relações sexuais etc.
Mas , se evoco essa generalidade não é para dizer que é preciso
retraçá-la em sua continuidade metaistórica através do tempo ,
nem tampouco acompanhar suas variações. O que é preciso apre-
forma à impaciência da liberdade
^
ender é em que medida o que sabemos , as formas de poder que aí
se exercem e a experiê ncia que fazemos de nós mesmos constituem
apenas figuras históricas determinadas por uma certa forma de
problematização , que definiu objetos , regras de ação , modos de re-
lação consigo mesmo. O estudo ( dos modos ) de problematizações

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