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o método cognitivo
de gÖethe
linhas básicas para uma gnosiologia
da cosmovisão goethiana
2ª edição
retraduzida e atualizada
tradução.
bruno callegaro
jacira cardoso
1
sobre a publicação da obra
de rudolf steiner
2
sumário
nota à segunda edição brasileira 4
prefácio à segunda edição [do original] 4
prefácio à primeira edição [do original] 7
a. questões preliminares
1. ponto de partida 8
2. a ciência de göethe segundo o método de schiller 11
3. a tarefa da nossa ciência 12
b. a experiência
4. definição do conceito de experiência 12
5. indicação sobre o conteúdo da experiência 14
6. retificação de uma concepção errônea da experiência total 16
7. apelo à experiência de cada leitor 17
c. o pensar
8. o pensar como experiência superior na experiência 19
9. o pensar e a consciência 21
10. a natureza íntima do pensar 22
d. a ciência
11. o pensar e a percepção 25
12. intelecto e razão 27
13. o processo cognitivo 30
14. o fundamento das coisas e a cognição 32
e. a cognição da natureza
15. a natureza inorgânica 33
16. a natureza orgânica 37
f. as ciências humanas
17. introdução: espírito e natureza 44
18. a cognição na psicologia 45
19. a liberdade humana 47
20. otimismo e pessimismo 49
g. conclusão
21. cognição e criação artística 49
3
nota à segunda edição brasileira
ao escrever a presente obra, em 1886, rudolf steiner era um jovem com pouco mais de 25
anos. apesar disso, no prefácio àsegunda edição, escrito em 1923, ele próprio declara não ter sido
necessário — após decorridos quase quarenta anos — alterar nada de essencial no conteúdo. com
exceção do acréscimo de algumas notas, até mesmo o estilo — típico do final do século xix — foi
mantido inalterado.
para o próprio autor, a argumentação elaborada aqui é uma manifestação germinal da
cosmovisão que, ulteriormente, ele iria postular sob o nome de antroposofia. a fundamentação no
método cognitivo de göethe, com o qual ele se familiarizara ao editar os escritos científicos do
grande poeta, foi o ponto de partida para sua nova teoria do conhecimento, contestando o
pensamento nitidamente kantiano de então. dando continuidade ao ponto em que göethe parara,
steiner demonstrou não existir limite para o conhecimento humano, já que a capacidade pensante
não ‘produz’ pensamentos, sendo na verdade uma ‘captadora’ dos pensamentos cósmicos
existentes no mundo e no universo. sendo assim, cabe ao homem torná-la plenamente ativa e
disciplinada para, com objetividade, captar a essência das coisas e dos seres que o circundam até o
infinito. materialidade e imaterialidade ganham, aqui, limites totalmente transponíveis pelo pensar
humano, numa demonstração do pleno acesso deste ao chamado ‘mundo das idéias’ e
conseqüentemente, aos bastidores metafísicos do universo visível.
a importância deste livro para a compreensão gnosiológica da própria antroposofia levou-nos a
disponibilizá-lo novamente para o público interessado. nesta segunda edição brasileira, após
dezoito anos da primeira edição, procuramos pautar o texto pela última versão do original,
incluindo também notas explicativas e bibliográficas do autor e do editor, além de um índice
onomástico no final do livro.
que a ampliação e o aprofundamento no tema do processo cognitivo possam contribuir para a
compreensão da própria vida.
a editora
escrevi esta gnosiologia da cosmovisão goethiana na metade dos anos 1880. naquela época,
preenchiam minha alma duas espécies de atividade pensante. uma delas estava voltada para o
processo criativo de göethe, empenhando-se em aperfeiçoar a visão do mundo e da vida que se
manifesta como força impulsora nessa criação. o elemento pura e completamente humano parecia-
me atuar em tudo o que göethe dera ao mundo de maneira criativa, contemplativa e vivaz. em
nenhuma parte, na época mais moderna, eu encontrava representadas a segurança interna, a
coerência harmônica e o sentido de realidade em relação ao mundo como em göethe. desses
pensamentos deveria brotar o reconhecimento de que a maneira como göethe se comporta no
processo cognitivo também provém da essência do ser humano e do mundo.
por outro lado, meus pensamentos imergiam nas teorias filosóficas, existentes na época,
sobre a essência do conhecimento. nessas teorias, a cognição ameaçava enclausurar-se na própria
natureza do ser humano. otto liebmann, o engenhoso filósofo, havia declarado que a consciência do
ser humano não écapaz de ultrapassar a si mesma deve permanecer em si; sobre o que existe como
realidade verdadeira além do mundo modelado por ela em si própria, ela nada pode saber. em
textos brilhantes, otto liebmann aplicou esses pensamentos aos mais diversos campos do mundo
experiencial humano.1 johannes volkelt havia escrito seus livros repletos de pensamentos sobre ‘a
teoria do conhecimento de kant’ fkants erkenntnistheorie] e sobre ‘a experiência e o pensar’
ferfahrung und denkenl. no mundo dado ao ser humano, ele via apenas um complexo de re-
presentações mentais que se formam na relação do homem com um mundo em si desconhecido.
1 otto liebrnann (1840—19 12), zur analysis der wirklichkeit (4. ed. strassburg 1911), p. 28. vide tb. gedanken and
tatsachen (strassburg, 1882—89); e klimax der theorien (strassburg, 1884). sobre liebmann e volkelt, vide o capítulo
‘nachklãnge der kantischen vortellungsart’, in rudolf steiner, die rátsel der pliilosophie (1914), ga-nr. 18 (dornach:
rudolfsteinerverlag, 1968). (n.e. 6rig.)
4
certamente ele admitia que na vivência do pensar se mostra uma necessidade quando este in-
tervém no mundo das representações mentais, sentindo-se, de certa maneira, um a espécie de
propulsão através do mundo dessas representações em direção à realidade quando o pensar se
ativa. mas o que se havia conseguido com isso? poder-se-ia sentir o direito de pronunciar, em
pensamento, juízos que dizem algo sobre o mundo real; porém com tais juízos se permanece
totalmente no íntimo do ser humano — nada da essência do mundo penetra neles.
eduard von hartmann, cuja filosofia me foi de grande valia sem que eu pudesse reconhecer
seus fundamentos e resultados, situava-se, nas questões de teoria do conhecimento, exatamente no
mesmo ponto que volkelt apresentou depois em detalhes.
por toda parte existia a confissão de que o ser humano, com sua cognição, depara com certos
limites além dos quais não é capaz de penetrar no campo da verdadeira realidade.
contra tudo isso havia para mim o fato vivenciado interiormente e, nessa vivência, conhecido,
de que o ser humano, quando aprofunda suficientemente seu pensar, vive com ele dentro da
realidade do mundo como numa realidade espiritual. eu supunha possuir esse conhecimento como
algo que pode estar na consciência com a mesma clareza interna do que se manifesta no co-
nhecimento matemático.
perante esse conhecimento não pode existir a opinião de que existam tais limites cognitivos,
como a caracterizada linha de pensamento acreditava dever estabelecer.
com tudo isso se introduzia dentro de mim uma tendência pensamental para a teoria da
evolução, florescente naquela época. em haeckel ela havia assumido formas em que o existir e o
atuar autônomos do elemento espiritual não podiam encontrar consideração alguma. no curso do
tempo, o posterior, perfeito, devia derivar do anterior, não-desenvolvido. isso me era claro com
relação à realidade sensorial exterior. ora, eu conhecia muito bem a espiritualidade independente
dos sentidos, em si sólida e autônoma, para dar razão ao mundo sensorial dos fenômenos
exteriores; mas era preciso lançar uma ponte deste mundo para o mundo do espírito. no curso
temporal considerado sensorialmente, o espiritual humano parece desenvolver-se do não-espiritual
pré-existente.
porém o mundo sensorial, quando corretamente conhecido, mostra por toda parte ser a
manifestação do espiritual. perante este correto conhecimento do sensorial, ficava-me claro que só
pode admitir ‘limites ao conhecimento’, conforme foram estabelecidos naquela época, quem se
depara com esse elemento sensorial e o trata da mesma forma como alguém trataria uma página
impressa caso apenas dirigisse o olhar para as formas das letras e, sem qualquer noção da leitura,
dissesse que não se pode saber o que está por detrás dessas formas.
assim meu olhar foi conduzido, no caminho da observação sensorial, ao espiritual consolidado
em minha vivência cognitiva interior. por detrás dos fenômenos sensoriais eu não procurava mundos
atomísticos não-espirituais, e sim o espiritual que aparentemente se revela no interior do ser
humano mas que, em realidade, pertence aos próprios objetos e processos sensoriaís. pelo
comportamento do homem cognoscente, surge a ilusão de que os pensamentos das coisas estão no
homem, enquanto na realidade eles existem nas coisas. o homem tem necessidade, numa vivência
ilusória, de separá-los das coisas; na verdadeira vivência cognitiva, ele os devolve novamente às
coisas.
portanto, a evolução do mundo deve ser compreendida de modo que o não-espiritual
precedente, do qual mais tarde se desenvolve a espiritualidade do ser humano, tem algo espiritual
ao lado e fora de si. o posterior estado sensorial espiritualizado em que o homem se apresenta
surge pelo fato de o ancestral espiritual do homem se unir às formas não-espirituais imperfeitas e,
metamorfoseando-as, surgir em forma sensorial.
esta seqüência de idéias me levou para além dos gnosiólogos de então, cuja sagacidade e
sentimento de responsabilidade científica eu reconhecia plenamente. ele me levou a göethe.
hoje devo voltar a pensar em minha luta interior de então. não me foi fácil ultrapassar as
linhas de pensamento dos filósofos da época; porém minha estrela-guia sempre foi o reconheci-
mento, totalmente espontâneo, do fato de o homem poder contemplar-se interiormente como
espírito independente do corpo, situado num mundo puramente espiritual.
antes de meus trabalhos sobre os escritos científicos de göethe, e antes desta gnosiologia, eu
escrevi um pequeno ensaio sobre o atomismo, o qual nunca foi publicado. ele seguia a mencionada
direção. não posso deixar de lembrar a alegria que tive quando friedrich theodor vischer, a quem eu
enviara o ensaio, me escreveu algumas palavras de aquiescência.2
2 o manuscrito desse ensaio, tido durante muito tempo como perdido, foi encontrado ao se reorganizar o legado de friedrich
theodor vischer doado à biblioteca da universidade de tübingen, tendo sido publicado por c. 8. picht em 1939 no semanário
5
ora, em meus estudos de göethe me ficou claro como meus pensamentos conduzem a uma
visão da essência do conhecimento manifesta por toda parte na criação de göethe e em sua postura
relativa ao mundo. descobri que meus pontos de vista redundaram numa teoria do conhecimento
que é a da cosmovisão goethiana.
na década de 1880, fui recomendado por karl julius schröer 3 — meu professor e amigo
paternal, a quem sou muito grato — para escrever as introduções aos escritos científicos de göethe
para a national-literatur [bibliografia nacional] de kürschner, e também cuidar da edição desses
escritos.4 durante esse trabalho, eu acompanhei a vida cognitiva de göethe em todos os campos em
que ele atuou. para mim ficou cada vez mais claro, nos menores detalhes, que meu próprio modo
de ver me encaminhava para uma gnosiologia da cosmovisão goethiana. e assim eu escrevi esta
gnosiologia durante os referidos trabalhos.
defrontando-a hoje novamente, vejo-a também como o fundamento gnosiológico e a
justificação de tudo o que eu disse e publiquei posteriormente. ela fala de uma essência cognitiva,
que abre o caminho do mundo sensorial para o espiritual.
poderia parecer estranho que este escrito da juventude, já tendo quase completado quarenta
anos, seja reeditado hoje sem alterações, apenas ampliado por algumas notas. em seu estilo ele
traz a marca característica de um modo de pensar típico da filosofia de quarenta anos atrás. se eu
o escrevesse hoje, diria muitas coisas de outra maneira; contudo, não poderia declarar nada
diferente quanto à essência do conhecimento. além disso, o que eu escrevesse hoje não poderia
conter tão fielmente os germes da cosmovísão espiritual representada por mim. só se pode escrever
dessa maneira germinal no início de uma vida cognitiva. talvez por isso este escrito da juventude
possa reaparecer justamente de forma inalterada. as teorias do conhecimento existentes na época
de sua redação tiveram seguimento em teorias posteriores. o que tenho a dizer sobre esse tema
está dito em meu livro die rätsel der philosophie [os enigmas da filosofia]. ele está sendo publicado
simultaneamente, em nova edição, pela mesma editora. o que, tempos atrás, eu esbocei neste
livrinho como gnosiologia da cosmovisão goethiana me parece hoje tao necessário ser dito quanto
há quarenta anos.
rudolf steiner
quando, por intermédio do professor kürschner, foi-me atribuído o honroso encargo de cuidar
das goethanun, ano 18, nºs 22 e 23. aos 21 anos, rudolf steiner havia enviado a vischer o ensaio com o título ‘Única possível
crítica do conceito atomístico’, acompanhado de uma carta. publicacões mais recentes do ensaio e dessa carta ocorreram
em beitrãge zur rudolf steiner gesamtausgabe, nº 63 (dornach, época de michael, 1978). (n.e. orig.)
3 vide rudolf steíner, mein lebensgang (1923—25), ga-nr. 28 (1962), cap. vi, p. 110 ss. (n.e. orig.)
4 os escritos científicos de göethe [goethes naturwissenshiaftlichec schriften], editados e comentados por rudolf steiner,
com um prefácio do prof. k. j. schrõer, na deutsche national-literatur [bibliografia nacional alemã], foram publicados em
cinco volumes. vol. 1: bildung and umbildung organischer naturen. zur morphologie (1883); vol. ii: zur naturwissenchaft im
allgemeinen. mineralogie und geologie. meteorologie (1887); vol. iii: beitiräge zur optik. zur farbenlehre. enthüllung der
thecorie newtons (1890); vol. iv: zur e’ctrbenlehre farbenlehre. materialien zur geschichte der farbenlehre (1897); vol. v:
matterialien zur geschichte der farbenlehre (schluss). entoptische fatrbcn. paralipomena zur chromattik. sprüche in prosa.
nachträge (1897). uma reprodução fac-símile foi publicada como complementação da edição completa de rudolf steiner
[rudolf steiner gesamtausgabel], ga-nr. 1a—e (dornach: rudolf steiner verlag, 1975). (n.e. orig.)
6
da edição dos escritos científicos de göethe para a deutsche national-literatur [bibliografia
nacional alemã], eu estava bem consciente das dificuldades que enfrentaria nessa empreitada. eu
teria de me contrapor a uma opinião que se consolidara de modo quase generalizado.
enquanto se difunde cada vez mais a convicção de que as poesias de göethe são a base de
toda a nossa cultura, mesmo os que mais avançaram no reconhecimento de seus esforços cientí-
ficos não vêem nestes nada além de pressentimentos de verdades que, no decurso posterior da
ciência, encontraram plena confirmação. sua visão genial teria conseguido pressentir leis naturais
que, independentemente disso, foram redescobertas pela ciência rigorosa. aquilo que se admite em
ampla escala quanto à restante atividade de göethe — ou seja, que toda pessoa instruída deve
ocupar-se com ela — é recusado no caso de sua visão científica. não se admitirá de modo algum ser
possível lograr, mediante uma incursão nas obras científicas do poeta, o que hoje nem mesmo a
ciência poderia oferecer sem ele.
quando fui introduzido na cosmovisão de göethe por k. j. schröer, meu muito estimado
professor, meu pensamento já havia tomado uma direção que me possibilitava ir além das desco-
bertas isoladas do poeta, rumo ao objeto principal: à maneira como göethe inseria tal ou qual fato
isolado no todo de sua concepção da natureza, à maneira como ele o empregava para alcançar uma
compreensão das correlações entre os seres na natureza ou, como ele próprio acertadamente se
expressa (no ensaio anschauende urteilskraft. [juízo contemplativo]5), para participar
espiritualmente das produções da natureza. eu logo reconheci que as descobertas atribuídas a
göethe pela ciência de hoje são o menos essencial, enquanto o mais significativo é justamente
ignorado. realmente, essas descobertas isoladas também teriam sido feitas sem as pesquisas de
göethe; no entanto, a ciência ficará privada de sua grandiosa concepção da natureza enquanto não
a buscar diretamente nele. com isso foi dado o rumo que as introduções à minha tarefa têm de
tomar. elas devem mostrar que cada detalhe de opinião manifesta por göethe deve ser deduzido da
totalidade de seu gênio.6
os princípios segundo os quais isso deve ocorrer são o objeto deste livrinho. este deverá
mostrar que o conteúdo aqui apresentado como opiniões científicas de göethe também pode dispor
de fundamento autônomo.
com isto eu teria dito tudo o que me parecia necessário antecipar ao que será tratado a
seguir. contudo, tenho ainda um agradável dever a cumprir: o de expressar minha mais profunda
gratidão ao prof. kürschner, que, da mesma maneira extraordinariamente benévola com a qual
sempre veio ao encontro de meus esforços científicos, também concedeu seu mais amigável incen-
tivo a esta pequena obra.
rudolf steiner
a. questões preliminares
1. ponto de partida
se seguirmos retrospectivamente, até suas fontes, qualquer das principais correntes da vida
5 vejam-se os escritos científicos de göethe na deutsche national-literatur Íbibliografia nacional alemã] de kürschner vol. 1,
p. 115. (na. 1886)
6 sobre a maneira como minhas opiniões coincidem com a imagem global da cosmovisão goethiana, schrõer trata em seu
prefácio aos escritos científicos de göethe (national-literatur de kürschner, vol. 1, pp. i—xiv). (veja-se também sua edição
do fausto, ii parte [2. ed. stuttgart, 1926, p. v.]) (n.a. 1886)
7
espiritual da atualidade, sempre encontraremos um dos espíritos de nossa época clássica. göethe
ou schiller, herder ou lessing deram um impulso, do qual então partiu este ou aquele movimento
espiritual que ainda hoje perdura. toda a nossa cultura alemã tem seus pés tão firmados em nossos
clássicos que, dentre os que parecem ser completamente originais, alguns nada mais fazem senão
declarar o que göethe ou schiller há muito insinuaram. nós nos habituamos tanto ao mundo criado
por eles que, praticamente, ninguém que quisesse movimentar-se fora da trilha que eles traçaram
poderia contar com nossa compreensão. nossa maneira de considerar o mundo e a vida é tão
determinada por eles que ninguém que não busque pontos de contato com esse mundo pode susci-
tar nosso interesse.
apenas um ramo de nossa vida cultural — e isso é preciso admitir — ainda não encontrou tal
ponto de contato. trata-se do ramo da ciência que ultrapassa o mero coletar de observações, a
tomada de conhecimento de experiências isoladas, para fornecer uma satisfatória visão global do
mundo e da vida: é o que comumente se denomina filosofia. para ela, nossa época clássica parece
simplesmente não existir. ela procura sua salvação numa reclusão artificial e num nobre isolamento
de toda a vida espiritual restante. esta tese não é contestada pelo fato de um considerável número
de antigos e modernos filósofos e cientistas se haverem ocupado com göethe e schiller; pois eles
não alcançaram sua posição científica pelo fato de terem levado os germes das realizações
científicas daqueles heróis do espírito a desenvolver-se: eles conseguiram sua posição científica
fora da cosmovisão que schiller e göethe representaram, e mais tarde a compararam com ela.
tampouco o fizeram com a intenção de obter das opiniões científicas dos clássicos algo para seu
próprio rumo, mas para verificar se elas resistiriam ante essa sua própria orientação. ainda
voltaremos a isto mais detalhadamente. por ora queremos apenas indicar as conseqüências, para o
campo científico em questão, dessa atitude ante o grau evolutivo mais elevado da cultura da idade
moderna.
grande parte do público leitor culto recusará hoje, sem ao menos lê-lo, um trabalho
científico-literário com a pretensão de ser filosófico. em nenhuma outra época a filosofia sofreu
tanta falta de estima como hoje. deixando de lado os escritos de schopenhauer e eduard von
hartmann, que tratam de problemas existenciais e universais de interesse geral e por isso encon-
traram ampla divulgação, não será exagero dizer que obras filosóficas são hoje lidas apenas por
filósofos de profissão. ninguém além destes se ocupa com elas. a pessoa culta, porém não-profis-
sional, tem o seguinte vago sentimento: “esta literatura não contém nada que corresponda a
alguma de minhas necessidades espirituais; as coisas aí tratadas nada têm a ver comigo — não têm
relação alguma com o que me é necessário para a satisfação de meu espírito.”7 por essa falta de
7 a disposição anímica que está por detrás deste juízo a respeito do gênero da literatura filosófica e o interesse que lhe é
dedicado surgiram da mentalidade do empenho científico em meados dos anos 1880. desde essa época surgiram fenômenos
perante os quais este juízo não mais parece justificado. basta pensar nas luzes ofuscantes que amplos domínios da vida
experimentaram mediante os pensamentos e impressões de nietzsche. e nas lutas passadas e ainda presentes, entre os
monistas que pensavam de modo materialista e os defensores de uma cosmovisão espiritualista, tanto vive o empenho do
pensamento filosófico por um teor cheio de vida quanto um interesse geral pelos enigmas da existência. caminhos cognitivos
como os oriundos da cosmovisão fisica de einstein tornaram-se quase objeto de palestras gerais e explicações literárias.
apesar disso, ainda hoje valem os motivos pelos quais este juízo foi pronunciado naquela época. fosse escrito hoje, seria
preciso formulá-lo de outra maneira. como ele reaparece hoje como juízo antigo, por assim dizer, é mais adequado dizer em
que extensão ainda é válido. — a cosmovisão de göethe, cuja gnosiologia deveria ser traçada na presente obra, parte da
vivência do homem integral. perante esta vivência, a contemplação pensante do mundo é apenas um lado. da plenitude da
existência humana ascendem, de certo modo, configurações pensamentais à superficie da vida anímica. uma parte destas
imagens conceituais abrange uma resposta à pergunta: o que é a cognição humana? e essa resposta leva a ver que a
existência humana só corresponde ao que está predisposto nela quando atua cognitivamente. uma vida anímica sem
conhecimento seria como um organismo humano sem cabeça — isto é, não teria existência. na vida interior da alma surge
um conteúdo que anseia por percepção vinda de fora, tal qual o organismo faminto anseia por alimento; e no mundo
exterior está o conteúdo perceptivo, que não contém em si sua essência, mas apenas a mostra quando o conteúdo da
percepção se une ao da alma pelo processo cognitivo. assim, o processo cognitivo se torna um elo na produção da realidade
do mundo. enquanto conhece, o homem participa da criação dessa realidade do mundo. e se uma raiz vegetal não pode ser
pensada sem sua complementação no fruto, não só o homem, mas também o mundo deixará de ser concluído se não for
conhecido. na cognição o homem não cria algo só para si, mas colabora com o mundo na revelação do ir real. o que está no
homem éaparência ideal; o que está no mundo perceptível é aparência sensorial; só a integração cognitiva de ambos começa
a ser realidade.
vista deste modo, a teoria do conhecimento se torna uma parte da vida. e é assim que deve ser vista para ser incluída nas
amplidões da vivência anímica goethiana. contudo, a tais amplidões de vida o pensar ou o sentir de nietzsche não se
conecta. muito menos aquilo que tem surgido como cosmovisão orientada filosoficamente desde que foram escritas as
‘questões preliminares’ desta obra. tudo isto pressupõe que a realidade exista em algum lugar fora do processo cognítivo, e
que deste deve resultar uma representação humana, figurativa dessa realidade, ou, ainda, que ela não possa resultar. que
essa realidade não pode ser encontrada pela cognição, pois, como realidade, só é criada nessa cognição, quase não é
percebido. os pensadores filosóficos procuram a vida e a existência fora da cognição; göethe está dentro da vida e da
8
interesse ante toda e qualquer filosofia só pode ser culpada a circunstância que indicamos, pois em
contrapartida há uma necessidade sempre crescente de uma visão satisfatória do mundo e da vida.
os dogmas religiosos, que por tanto tempo foram um substituto completo para isso, perdem cada
vez mais em força convincente. É cada vez maior a compulsão de alcançar, pelo labor do pensar, o
que antigamente se devia à fé na revelação: a satisfação do espírito. não poderia faltar, portanto,
a participação das pessoas cultas se o campo científico em questão andasse realmente de mãos
dadas com todo o desenvolvimento cultural, e se seus representantes tomassem posição quanto às
grandes questões que movem a humanidade.
nesse sentido, convém sempre ter em mente que nunca pode tratar-se de primeiro produzir
artificialmente uma necessidade espiritual, mas apenas de procurar a existente e satisfazê-la. a
tarefa da ciência não é lançar questões, mas observá-las cuidadosamente, caso sejam formuladas
pela natureza humana e pelo respectivo nível cultural, e responder a elas.8 nossos filósofos
modernos se propõem tarefas que não decorrem em absoluto do nível cultural em que estamos, e
cuja resposta, portanto, ninguém demanda. entretanto, as perguntas que nossa cultura tem de
fazer em virtude da posição à qual nossos clássicos a elevaram, essas a ciência ignora. assim sendo,
temos uma ciência que ninguém procura e uma necessidade científica que ninguém satisfaz.
nossa ciência central, aquela ciência que deve solucionar para nós os autênticos enigmas do
mundo, não pode constituir exceção alguma perante todos os outros ramos da vida espiritual. ela
deve procurar suas fontes onde estes as encontraram. não deve apenas discutir e explicar-se com
nossos clássicos; neles deve buscar também os germes para sua evolução; em meio a ela deve
soprar a mesma aragem que soprou por entre a nossa restante cultura. essa é uma necessidade
inerente à natureza do assunto. a ela também deve ser atribuído o fato de terem ocorrido as
mencionadas discussões dos pesquisadores modernos com os clássicos. porém elas nada mais
evidenciam senão o fato de se ter um obscuro sentimento da inadmissibilidade de se passar sim-
plesmente à ordem do dia, desprezando as convicções daqueles espíritos. evidenciam também que
não se promoveu um verdadeiro desenvolvimento posterior de suas opiniões. isso é corroborado
pela maneira como se tem abordado lessing, herder, göethe e schiller. apesar de toda a excelência
de várias obras escritas sobre os trabalhos científicos de göethe e schiller, de quase todas cabe
dizer que elas não se desenvolveram organicamente das considerações desses autores, e sim se
colocaram em relação posterior com eles. nada melhor para corroborar isso do que o fato de as
mais divergentes tendências científicas terem visto em göethe o espírito que ‘pressentiu’ suas
opiniões. cosmovisões que nada têm em comum apontam göethe aparentemente com igual direito
ao sentirem a necessidade de ter sua posição reconhecida nos píncaros da humanidade. não se pode
imaginar contrastes mais acirrados do que as doutrinas de hegel e schopenhauer. este chama hegel
de charlatão, sua filosofia de palavreado banal, puro contra-senso, bárbaras combinações de
palavras.9 não existe propriamente nada em comum entre ambos senão uma veneração ilimitada
por göethe10 e a crença de que este se tenha identificado com sua cosmovisão.
com as tendências científicas mais modernas não é diferente. haeckel, que desenvolveu o
darwinismo com conseqüência férrea e de maneira genial, e que devemos considerar o mais
importante adepto do pesquisador inglês, vê na opinião de göethe sua própria opinião pré-
formada.11 outro cientista da atualidade, c. f. w. jessen, escreve o seguinte a respeito da teoria de
darwin:
existência criativa enquanto atua cognitivamente. e também por este motivo que as mais recentes pesquisas no terreno da
cosmovisão estão fora da criacão ideativa de göethe. esta teoria do conhecimento pretende ficar dentro dela, pois com isso
a filosofia se torna conteúdo da vida e o interesse por ela se torna necessidade vital. (n.a. 1924)
8 questões do processo cognitivo surgem na contemplação do mundo exterior pela organização anímica humana. no impulso
anímico da pergunta reside a força para nos aproximarmos da contemplação de modo tal que esta, juntamente com a ativi-
dade anímica, conduza a realidade do objeto observado a manifestar-se. (na. 1924)
9 schopenhauer, parega and paralipomena: skizze einer geschichte der lehre vom idealen und realen, apêndice. obras
reunidas, editadas por rudol steiner, vol. 8 (stuttgart, 1894), pp. 26—36. (n.e. orig.)
10 quanto a hegel, vide, por exemplo, sua carta a göethe em 24.2.1821, que este último publicou no suplemento à teoria
das cores sob o título neuste aufmundernde teilnahme (com a data de 20.2). vide tb. göethes naturwissenschaftliche
schriften (cit.), vol. v, pp. 272—275, com anotações de rudolf steiner. e ainda o capítulo ‘göethe and hegel’, in rudolf
steiner, göethes weltanschauung (1897), ga-nr. 6 (dornach: rudolf steiner verlag, 1963).— já schopenhauer usufruiu do
contato pessoal com göethe em 1813—14 e recebeu uma introducão à teoria das cores; em 1816 escreveu, com base nela,
um ensaio próprio: Über das sehen and die farben. vide göethe-jahrbuch ix (frankfurt, 1888), p. 50 ss. e as indicações
bibliogáficas na p. 104. vide tb. h. doll, göethe und schopenhauer (berlim, 1904). (n.e. orig.)
11 vide ernst haeckel, die naturanschauung von darwin, göethe and lamarck, palestra de 18.9.1882 em eisenach (jena,
1882). (n.e. orig.)
9
o alarde dessa teoria, tantas vezes apresentada e igual número de vezes refutada por
pesquisa fundamentada —mas que agora encontrou apoio de alguns especialistas e muitos
leigos baseados em razões aparentes —, mostra como infelizmente ainda são pouco
conhecidos e concebidos pelos povos os resultados das pesquisas da natureza.12
o mesmo pesquisador diz, a respeito de göethe, que este se “alçou a abrangentes pesquisas
tanto na natureza inorgânica quanto na orgânica” 13 ao ter encontrado “a lei ‘fundamental de toda
formação vegetal numa contemplação sensata e profunda da natureza”. 14 cada um dos cientistas
acima referidos sabe apresentar uma quantidade esmagadora de provas a favor da concordância de
sua diretriz científica com as “observacões sensatas de göethe”. poderia muito bem ser lançada
uma luz de suspeita sobre o caráter unitário do pensamento goethiano se cada um desses pontos de
vista pudesse reportar-se a ele com o mesmo direito. a razão desse fenômeno reside no fato de
nenhuma dessas opiniões ter realmente brotado da cosmovisão goethiana, e sim ter cada qual suas
raízes fora dela; reside no fato de se procurar concordância externa com detalhes que, ao serem
arrancados do pensamento global de göethe, perdem seu sentido e de não se querer conceder a
essa mesma totalidade a solidez interna para fundar uma tendência científica. as opiniões de
göethe nunca foram pontos de partida de investigações científicas, e sim sempre apenas objeto de
comparação. os que se ocupavam dele raramente eram discípulos que se dedicassem com sentido
imparcial às suas idéias; na maioria das vezes eram críticos que o levavam ao banco dos réus.
chega-se a dizer que göethe teve muito pouco senso científico; que foi tanto o pior filósofo
quanto o melhor poeta; por isso seria impossível basear nele uma posição científica. isto é um
completo desconhecimento da natureza de göethe. göethe certamente não foi um filósofo no
sentido habitual da palavra; mas não se deve esquecer que a maravilhosa harmonia de sua perso-
nalidade levou schiller à seguinte expressão: “o poeta é o único homem verdadeiro.”15 o que
schiller entendia aqui por ‘homem verdadeiro’, esse era göethe. em sua personalidade não faltava
nenhum elemento pertinente à mais elevada cunhagem do caráter humano universal; nele, porém,
todos esses elementos se unificaram formando uma totalidade ativa em si. É por isso que seus
pontos de vista sobre a natureza se baseiam num profundo sentido filosófico, embora esse sentido
filosófico não venha à sua consciência sob forma de sentenças científicas definidas. quem se
aprofundar nessa totalidade conseguirá, caso possua disposições filosóficas, depreender esse
sentido filosófico e apresentá-lo como ciência goethiana. porém deverá partir de göethe, e não
abordá-lo com uma opinião pronta. as forças espirituais de göethe atuam sempre da maneira
adequada à mais rigorosa filosofia, embora ele não tenha legado um todo sistemático.
a cosmovisão de göethe é a mais multifacetada que se possa imaginar. ela parte de um centro
situado na natureza unitária do poeta, e sempre mostra a face que corresponde à natureza do
objeto contemplado. o caráter unitário da atividade das forças espirituais reside na natureza de
göethe; o respectivo modo dessa atividade é determinado pelo objeto em questão. göethe
empresta do mundo exterior o modo de observação, e não o impõe. contudo, o pensar de muitas
pessoas só é eficaz de uma determinada maneira, servindo apenas para uma espécie de objetos;
não é unitário como o de göethe, e sim uniforme. expressemo-nos mais precisamente: há pessoas
cuja inteligência é particularmente adequada para pensar dependências e efeitos puramente
mecânicos; elas imaginam todo o universo como um mecanismo. outras têm o impulso de perceber
em toda parte o elemento misterioso e místico do mundo exterior; tornam-se adeptas do
misticismo. todo erro surge por se declarar um modo de pensar, conquanto plenamente válido para
uma espécie de objetos, como sendo universal. e assim que se explica o conflito entre as várias
cosmovisões. se uma tal concepção unilateral se confrontar com a de göethe — que é ilimitada por
não extrair o modo de observar da mente do observador, mas da natureza do observado —, é
compreensível que essa concepção se apegue aos elementos pensamentais que, na de göethe, lhe
correspondem. a cosmovisão de göethe encerra, justamente no sentido indicado, várias direções de
pensamento, ao passo que não pode ser impregnada por nenhuma concepção unilateral.
o sentido filosófico, um elemento essencial no organismo do gênio goethiano, tem significado
também para suas poesias. embora göethe estivesse longe de apresentar em forma concei-
12 vide c. f. w. jessen, botanik der gegenwart and vorzeit in kulturhistorischer entwicklung (leipzig, 1864), p. 459. (na.
1886).
13 idem, ibid., p. 343.
14 idem, ibid., p. 332.
15 carta de schiller a goethe em 7.1.1795. (n.e. orig.)
10
tualmente clara o que esse sentido lhe transmitia, como schiller era capaz de fazer, tanto para ele
quanto para schiller esse sentido é um fator que colabora em sua criação artística. não se pode
pensar nas produções poéticas de göethe e schiller sem a cosmovísão situada detrás delas. para
schiller importavam mais seus princípios realmente cultivados; para göethe, o modo de sua
contemplação. o fato de os maiores poetas de nossa nação não terem podido passar sem esse
elemento filosófico no ponto mais alto de sua criação garante, mais do que todo o resto, que esse
elemento seja um elo necessário na história evolutiva da humanidade. É justamente a relação com
göethe e schiller que possibilitará arrancar nossa ciência central de sua solidão de cátedra e
incorporá-la à restante evolução cultural. as convicções científicas de nossos clássicos ligam-se com
milhares de fios a seus demais empenhos; e são de de tal ordem que acabam sendo exigidas pela
época cultural que as criaram.
16 otto liebmann, kant and die epigonen. eine kritische abhandlung (stuttgart, 1865). sentença final de quase todos os
capítulos. (n.e. orig.)
11
3. a tarefa da nossa ciência
para toda e qualquer ciência vale, em última análise, o que göethe declara de forma tão
significativa com as seguintes palavras: “a teoria em si e por si de nada serve senão para fazer-nos
crer na conexão dos fenômenos.”17 por meio da ciência, estamos continuamente juntando e
relacionando fatos que na experiência são separados. na natureza inorgânica, vemos separados as
causas e os efeitos e procuramos sua conexão nas ciências correspondentes. no mundo orgânico,
percebemos gêneros e espécies de organismos e empenhamo-nos em investigar suas inter-relações.
na história, deparamo-nos com épocas culturais isoladas e empenhamo-nos em conhecer a
dependência intrínseca entre uma e outra etapa evolutiva. assim, cada ciência tem de atuar em
determinado campo de fenômenos, no sentido da citada frase de göethe.
cada ciência tem seu campo, no qual procura a conexão dos fenômenos. depois, sempre
subsiste um grande contraste em nossos empenhos científicos: de um lado o mundo ideativo obtido
pelas ciências e, de outro, os objetos que lhe são subjacentes. e preciso haver uma ciência que
também aqui esclareça as relações mútuas. o mundo ideal e o real, a oposição entre idéia e
realidade, são as tarefas dessa ciência. também estes contrastes devem ser conhecidos em sua
inter-relação.
procurar essas relações é o objetivo das exposições a seguir. os fatos da ciência, de um lado, e
a natureza e a história, de outro, devem ser postos em conexão. que significado tem o reflexo do
mundo exterior na consciência humana, que relação existe entre o nosso pensar a respeito dos
objetos da realidade e eles próprios?
b. a experiência
12
nós sentimos imediatamente a necessidade de impregnar com o intelecto ordenador a infinita
variedade de formas, forças, cores, sons, etc. que surge diante de nós. empenhamo-nos em
esclarecer as interdependências de todos os detalhes que vêm ao nosso encontro. se um animal nos
surge em determinada região, indagamos sobre a influência dessa região sobre a vida animal; ao
vermos uma pedra rolar, procuramos outros acontecimentos com os quais este se relaciona.
contudo, o que ocorre dessa maneira não é mais experiência pura, tendo já uma dupla origem:
experiência e pensar.
experiência pura é a forma em que a realidade nos aparece quando nos defrontamos com ela
com completa renúncia a nós mesmos.
a esta forma da realidade são aplicáveis as palavras que goethe expressou em seu ensaio die
natur [a natureza]: “estamos rodeados e envoltos por ela. sem pedir nem avisar, ela nos acolhe na
roda de sua dança.”19
no caso do objetos dos sentidos exteriores, isto é tão evidente que decerto quase ninguém o
negará. um corpo se nos apresenta, a princípio, como uma variedade de formas, cores e impressões
de calor e luz que, repentinamente, estão perante nós como emanadas de uma fonte primordial
desconhecida.
a convicção da psicologia no sentido de que o mundo sensorial, tal como se nos apresenta, não
nada é em si mesmo, sendo já um produto da interação entre um mundo exterior molecular, para
nós desconhecido, e o nosso organismo, não vem contradizer nossa afirmação. mesmo que também
fosse realmente verdade que cor, calor, etc. nada mais são do que a maneira pela qual nosso
organismo é afetado pelo mundo exterior, mesmo assim o processo que transforma o acontecimento
do mundo exterior em cor, calor, etc. situa-se totalmente além da consciência. qualquer que seja o
papel desempenhado por nosso organismo, perante nosso pensamento não é o acontecimento
molecular que existe como forma de realidade (experiência) pronta, imposta a nós, e sim essas
cores, sons, etc.
as coisas não são assim tão claras quanto à nossa vida interior. contudo, uma ponderação mais
precisa fará desaparecer a dúvida de que também nossos estados interiores penetrem o horizonte
de nossa consciência da mesma forma como as coisas e fatos do mundo exterior. um sentimento me
afeta da mesma maneira como uma impressão luminosa. o fato de eu o levar a uma relação mais
próxima com minha própria personalidade não importa, nesse sentido. precisamos avançar ainda
um pouco mais. o próprio pensar também nos surge, a princípio, como objeto da experiência. já ao
nos aproximarmos do nosso pensar a fim de pesquisá-lo, nós o contrapomos à nossa pessoa,
existência só. ao começar a contemplar o mundo sensorialmente, o homem separa o pensamento da realidade; este, porém,
manifesta-se em outro lugar: no interior da alma. para o mundo objetivo, a separação entre percepção e pensamento não
tem nenhuma relevância; ela só ocorre porque o homem se coloca na existência. para ele surge a ilusão de que o
pensamento e a percepção sensorial constituem uma dualidade. não é diferente o caso da contemplação espiritual. quando
esta surge como resultado dos processos anímicos descritos em minha obra posterior o conhecimento dos mundos superiores
forma novamente um lado da existência — o espiritual —, enquanto os correspondentes pensamentos do espiritual formam o
outro lado. uma diferença só surge na medida em que na realidade a percepção sensorial é, de certa forma, completada
ascendentemente pelos pensamentos, em direção ao início do plano espiritual, ao passo que a visão espiritual é vivenciada,
em sua verdadeira natureza, desse início para baixo. o fato de a vivência da percepção sensorial ocorrer mediante os
sentidos formados pela natureza, e a contemplação do espiritual mediante os órgãos de percepção espiritual formados
animicamente, não constitui uma diferença de princípios.
na verdade, em minhas publicações posteriores não ocorre nenhum abandono da idéia de cognição elaborada por mim nesta
obra, e sim a aplicação dessa idéia à experiência espiritual. (na. 1924)
19 nas publicações da ‘sociedade göethe [göethe gesellschaft], eu tentei mostrar que esse ensaio surgiu da seguinte
maneira: — toblei, que estava em contato com göethe em weimar naquela época, anotou, após conversas com este, várias
idéias que habitavam a mente de göethe e que ele reconhecia. essas anotacões foram publicadas no tiefurter journal,
distribuído naquela época apenas sob forma manuscrita. nas obras de göethe se encontra um ensaio, escrito bem mais tarde
a respeito dessa publicação anterior. göethe diz expressamente não se lembrar se o ensaio é seu, mas admite que contém
idéias que eram suas na época de sua publicação. em meu tratado incluso nos escritos da ‘sociedade göethe’ eu tentei de-
monstrar que essas idéias, após haverem evoluído, fluíram para toda a visão goethiana da natureza. publicações posteriores
reclamam para tobler o pleno direito autoral do ensaio die natur [a natureza]. eu não gostaria de me intrometer na
contenda desta questão. mesmo quando se sustenta a plena originalidade para tobler, ainda assim fica de pé que estas idéias
existiram em goethe no começo dos anos 1880; e, aliás, elas se evidenciam — segundo ele próprio confessa — como o início de
sua ampla visão da natureza. não tenho, pessoalmente, nenhuma razão para me desviar da minha opinião de que as idéias
surgiram em goethe. mas mesmo que assim não fosse, elas experimentaram em seu espírito uma existência que veio a ser
imensamente fiutífera. para o apreciador da cosmovisão goethiana elas não têm significado em si mesmas, e sim no tocante
ao que vieram a ser mais tarde. (na. 1924)
[o ensaio de rudolf steiner zu dem ‘fragment’ über die natur encontra-se em metodische grundlagen der anthroposophie.
gesammelte aufsätze 1884—1901, ga-nr. 30 (dornach: rudolf steiner verlag, 1961), pp. 320—327. (n.e. orig.)]
13
enfrentando sua primeira configuração como se proviesse do desconhecido.
isto não pode ser diferente. nosso pensar, especialmente tendo-se em vista sua forma como
atividade individual dentro da nossa consciência, é observação, ou seja, dirige o olhar para fora,
em direção a alguma coisa à sua frente. como atividade, inicialmente se limita a isso. ele olharia
para o vazio, para o nada caso não houvesse algo situado à sua frente.
tudo o que deve ser objeto do nosso saber precisa adaptar-se a essa forma de confronto. nós
somos incapazes de elevar-nos acima dessa forma. para obtermos, com o pensar, um meio de
penetrar mais profundamente no mundo, o próprio pensar precisa em primeiro lugar tornar-se
experiência. devemos procurar o próprio pensar entre os fatos da experiência, como sendo um
deles.
só assim nossa cosmovisão não carecerá de unidade interior. esta lhe faltaria imediatamente
se quiséssemos introduzir-lhe um elemento estranho. nós nos defrontamos com a mera experiência
pura e procuramos, dentro dela própria, o elemento que derrama luz sobre si e sobre a restante
realidade.
14
reconhecermos essa infinita diversidade qualitativa que somos compelidos às nossas afirmações.
caso nos deparássemos com uma unidade coesa, harmonicamente composta, não poderíamos
falar de uma equivalência entre os componentes dessa unidade.
quem, por tal razão, não achasse apropriada nossa analogia acima, não a teria captado no
genuíno ponto de comparação. seria obviamente errôneo querermos comparar o mundo das per-
cepções, que é infinitamente multiforme, com a uniformidade de uma superfície. porém nossa
superfície não deve, em absoluto, materializar o variado mundo dos fenômenos, e sim a imagem
global unitária que temos desse mundo enquanto o pensar não o tenha abordado. após a atividade
do pensar, cada detalhe aparece, nessa imagem global, não da forma como é transmitido pelos
meros sentidos, mas já com o significado que tem para o todo da realidade. sendo assim, aparece
com propriedades que lhe faltam completamente na forma de experiência.
segundo nossa convicção, johannes volkelt foi extremamente bem-sucedido ao traçar em
contornos precisos isto que justificadamente denominamos experiência pura. ela já foi ca-
racterizada com primor há cinco anos em seu livro sobre a teoria do conhecimento de kant20 e em
sua mais recente publicação sobre experiência e pensar21 , ele ampliou ainda mais o assunto. aliás,
ele o fez para sustentar uma opinião fundamentalmente diversa da nossa, e com uma intencão
essencialmente diferente da que hoje temos. mas isto não nos pode impedir de situar aqui sua
excelente caracterização da experiência pura. ela simplesmente nos descreve as imagens que
passam perante nossa consciência, de maneira completamente desconexa, num lapso restrito de
tempo. diz volkelt:
agora, por exemplo, minha consciência tem por conteúdo a representação mental de ter hoje
trabalhado com afinco; imediatamente se conecta a esse conteúdo representativo o fato de poder
ir passear com a consciência tranqüila; porém subitamente se introduz a imagem perceptiva da
porta se abrindo e do carteiro entrando; a imagem do carteiro ora aparece estendendo a mão, ora
abrindo a boca, ora fazendo o contrário; ao mesmo tempo se juntam, ao conteúdo da percepção do
abrir a boca, várias impressões auditivas, entre elas a de que lá fora começa a chover. a imagem do
carteiro desaparece de minha consciência e as representações mentais que então aparecem têm o
seguinte conteúdo, nesta seqüência: pegar a tesoura, abrir a carta, repreensão da caligrafia
ilegível, imagens visuais de múltiplas letras, múltiplas imagens fantasiosas e pensamentos que se
associam; mal esta seqüência termina, surge a representação mental de ter trabalhado com afinco
e a percepção, acompanhada de aborrecimento, da chuva que continua; mas ambas desaparecem
de minha consciência, surgindo uma representação mental com o conteúdo de que uma dificul-
dade, julgada resolvida durante o trabalho de hoje, não se resolveu; ao mesmo tempo aparecem as
seguintes representações mentais: liberdade de vontade, necessidade empírica, responsabilidade,
valor da virtude, acaso absoluto, incompreensibilidade, etc., combinando-se entre si da maneira
mais diversificada e complicada; e prossegue de modo similar.22
aqui temos descrito, em relação a determinado e limitado lapso de tempo, o que nós
realmente experimentamos, aquela forma da realidade em que o pensar não exerce participação
alguma.
porém não se deve absolutamente acreditar que se teria chegado a um resultado diverso se,
em lugar desta experiência cotidiana, houvesse sido descrita a que fazemos num ensaio científico
ou num fenômeno específico da natureza. em ambos os casos, trata-se de imagens desconexas que
passam perante nossa consciência. somente o pensar estabelece a conexão.
o mérito de ter mostrado, em precisos contornos, o que efetivamente nos proporciona a
experiência despida de qualquer pensamento, devemos também atribuir ao livreto gehirn und
bewusstsein [cérebro e consciência], do dr. ríchard wahle 23 apenas com a restrição de que aquilo
que wahle estabelece como propriedades incondicionalmente válidas dos fenômenos do mundo
exterior e interior só cabe para a primeira etapa da contemplação do mundo, caracterizada por
nós. segundo wahle, nós sabemos apenas de uma coexistência no espaço e de uma sucessão no
tempo. segundo ele, nem se pode falar de uma relação entre as coisas existentes lado a lado ou
uma após a outra. ainda que, por exemplo, possa existir uma íntima conexão entre o cálido raio de
sol e o aquecimento da pedra, nós nada sabemos de uma conexão causal; apenas nos é evidente
15
que ao primeiro fato se segue o segundo. mesmo que haja em algum lugar, num mundo inacessível
para nós, uma íntima conexão entre o nosso mecanismo cerebral e nossa atividade espiritual, nós
sabemos que ambos são acontecimentos paralelos; de maneira alguma estamos autorizados a
admitir, por exemplo, uma conexão causal entre ambos os fenômenos.
aliás, se essa afirmativa é postulada por wahle como sendo ao mesmo tempo a última verdade
da ciência, nós contestamos essa dimensão [dada a ela]; entretanto, ela é perfeitamente válida
para a primeira forma sob a qual vislumbramos a realidade.
nesta etapa do nosso saber, não apenas as coisas do mundo exterior e os processos do mundo
interior são desconexos; também nossa própria personalidade é um detalhe isolado frente ao
mundo restante. nós nos encontramos como uma das incontáveis percepções sem relação com os
objetos que nos rodeiam.
enseja-se aqui o contexto para apontar um preconceito existente desde kant24, o qual já se
inseriu tão profundamente, em certos círculos, que tem valido como axioma. quem quisesse pô-lo
em dúvida seria marginalizado como diletante, como uma pessoa que não teria ido além dos
conceitos mais elementares da ciência moderna. estou-me referindo à opinião segundo a qual —
como se isto estivesse estabelecido de antemão — todo o mundo da percepção, essa infinita
variedade de cores e formas, de sons e diferenciações de calor, etc. nada mais é do que nosso
mundo subjetivo de representações mentais, que só dura enquanto mantemos abertos nossos
sentidos às influências de um mundo desconhecido para nós. todo o mundo que se nos apresenta é
explicado, por essa opinião, como sendo uma representação mental dentro da nossa consciência
individual; e, com base nesta pressuposição, edificam-se subseqüentes afirmações sobre a natureza
da cognição. também volkelt aderiu a essa opinião e, baseado nela, fundamentou sua teoria do
conhecimento, magistral quanto ao desempenho científico. todavia não se trata de uma verdade
fundamental, e muito menos destinada a figurar no ápice da ciência gnosiológica.
entretanto, que não nos entendam mal. não queremos levantar, contra as conquistas
fisiológicas da atualidade, um protesto certamente impotente. contudo, o que é perfeitamente jus-
tificável do ponto de vista fisiológico não está, nem de longe, convocado a situar-se no portal da
teoria do conhecimento. pode ser válido, como uma verdade fisiológica inabalável, o fato de
somente pela atuação conjunta do nosso organismo surgir o complexo de sensações e percepções
que denominamos experiência; contudo, permanece certo que tal conhecimento só pode ser
resultado de muitas ponderações e pesquisas. essa característica de que, em sentido fisiológico,
nosso mundo de fenômenos é de natureza subjetiva, já consiste numa determinacão intelectual do
mesmo, não tendo, portanto, absolutamente nada a ver com seu primeiro aparecimento. já
pressupõe a aplicação do pensar à experiência. deve precedê-la, portanto, o exame da relação
entre estes dois fatores da coguição.
com esta opinião se crê superar a ‘ingenuidade’ pré-kantiana, que tomava por realidade as
coisas no espaço e no tempo, da mesma maneira como ainda hoje faz o homem ingênuo sem qual-
quer formação científica.
volkelt afirma...
...que todos os atos que têm a pretensão de ser uma cognição objetiva estão
inseparavelmente ligados à consciência cognitiva individual; que eles não se realizam em
nenhuma outra parte senão na consciência do indivíduo, e que são absolutamente
incapazes de transcender o âmbito do indivíduo e captar ou penetrar o domínio do real
situado no exterior.25
16
maneira, a designá-la como mera representação mental.
a simples ponderação de que o homem ingênuo não percebe, nas coisas, absolutamente nada
que o pudesse induzir a esta opinião, já nos ensina que nos próprios objetos não existe um motivo
forçoso para essa suposição. o que uma árvore ou uma mesa traz em si que me pudesse levar a
considerá-la como uma mera imagem representativa? no mínimo isto não pode ser proposto como
uma verdade óbvia.
ao fazer isso, volkelt se enrosca numa contradição relativa a seus próprios princípios. segundo
nossa convicção, para poder afirmar a natureza subjetiva da experiência ele precisou tornar-se
infiel à verdade reconhecida por ele mesmo: a de que a experiência nada contém senão um caos
desconexo de imagens, sem qualquer determinação do pensamento; do contrário ele deveria ter
visto que o sujeito da cognição, o observador, encontra-se tão sem relações no mundo da
experiência quanto qualquer outro objeto desse mundo. entretanto, ao se atribuir ao mundo
percebido a qualidade de subjetivo, já se trata de uma determinação pensamental, do mesmo
modo como se uma pedra que caísse fosse considerada a causa da impressão no solo. o próprio
volkelt, porém, não quer admitir qualquer conexão entre os objetos da experiência. aqui reside a
contradição de sua visão — é neste ponto que ele se torna infiel a seu declarado princípio a respeito
da experiência pura. com isto ele se encerra em sua individualidade e não está mais apto a sair
dela. sim, ele até admite isso sem reservas. para ele, permanece duvidoso tudo o que está além
das precárias imagens das percepções. segundo sua opinião, é bem verdade que nosso pensar se
esforça em deduzir, desse mundo das representações mentais, uma realidade objetiva; só que
nenhuma transcendência em relação a esse mundo pode conduzir-nos a verdades realmente
seguras. segundo volkelt, nenhum saber adquirido pela via do pensar está a salvo da dúvida. de
nenhum modo este se equipara, em certeza, à experiência imediata. somente esta fornece um
saber indubitável. nós vimos como isto é falho.
tudo isto, no entanto, provém somente do fato de volkelt atribuir à realidade sensorial
(experiência) uma propriedade que de nenhum modo lhe pode caber, e de edificar sobre essa
premissa suas suposições subseqüentes.
tivemos de dispensar especial atenção ao texto de volkelt por ser a obra mais significativa da
atualidade; e também por ser válido como protótipo para todos os empenhos gnosiológicos com
princípios opostos à diretriz fundamentada na cosmovisão de goethe, representada por nós.
17
minada característica a essa personalidade, fazendo-se uma afirmação. É da mesma maneira como
o primeiro caso se comporta aqui em relação ao segundo que o início desta nossa obra deve
comportar-se em relação às semelhantes manifestações da literatura. se em alguma parte o assunto
for aparentemente diverso, por força do necessário estilo textual ou da possibilidade de expressão,
frisamos aqui expressamente que nossas exposições possuem apenas o sentido aqui explicado,
estando muito longe da pretensão de terem apresentado, a respeito das coisas, qualquer afirmação
que seja válida por si.
se quiséssemos ter um nome para a primeira forma em que observamos a realidade,
acreditamos encontrar na expressão manifestação aos sentidos26 a mais adequada ao assunto. por
sentido não entendemos apenas os sentidos externos, os mediadores do mundo exterior, mas todos
os órgãos corporais e espirituais que servem à percepção dos acontecimentos imediatos. na
psicologia existe uma denominação bastante utilizada sentido interior para a capacidade de
— —
c. o pensar
8. o pensar como experiência superior na experiência
dentro do caos desconexo da experiência — na verdade, a princípio também como fato da
experiência encontramos um elemento que nos conduz para além da falta de conexão. trata-se do
pensar. o pensar, como fato da experiência dentro da experiência, já assume uma situação de
exceção.
no caso do restante mundo da experiência, ao me deter no que se encontra imediatamente
perante meus sentidos eu não vou além dos detalhes. suponha-se que eu tenha à minha frente um
líquido que então levo à fervura. de início ele está em repouso, mas depois vejo subir bolhas de
vapor; ele entra em movimento e, finalmente, passa ao estado vaporoso. estas são, uma a uma, as
sucessivas percepções. eu posso mexer e virar a coisa como quiser; se eu me detiver no que os
sentidos me proporcionam, não encontrarei conexão alguma entre os fatos. com o pensar isto não
acontece. se, por exemplo, eu apreendo o pensamento da causa, este me conduz, por seu próprio
26 nestas explicações já reside a indicação sobre contemplação do espiritual, ao qual se referem minhas obras posteriores,
no sentido do que foi dito no final da nota 18, na p. 32. (n.a. 1924)
27 com esta explicação não se contradiz a contemplação do espiritual, mas indica-se que a percepção sensorial não chega à
essência do espiritual rompendo o âmbito do sensorial e penetrando numa existência situada atrás dela, e sim retornando ao
elemento pensamental que se manifesta no homem. (na. 1924)
18
conteúdo, ao efeito. basta eu reter os pensamentos na forma em que aparecem na experiência
imediata para que eles já se manifestem como determinações em conformidade com regras.
o que, no restante da experiência, deve ser primeiramente trazido de outro âmbito, caso seja
aplicável aí a correlação pautada por regras —,já existe no pensar em seu primeiro aparecimento.
no restante da experiência, o fato inteiro não se imprime já naquilo que se apresenta como
fenômeno ante minha consciência; no pensar, todo o assunto se resolve sem resíduos no que me é
dado. lá eu preciso primeiro atravessar o envoltório para chegar ao cerne; aqui, envoltório e cerne
são uma unidade inseparável. trata-se apenas de preconceito humano banal quando, a princípio, o
pensar nos parece totalmente análogo à experiência restante. no caso dele, basta superarmos esse
nosso preconceito. no caso da experiência restante, precisamos solucionar úma dificuldade
inerente à coisa.
no pensar, o que procuramos na experiência restante tornou-se, por si, experiência imediata.
nisso está dada a solução de uma dificuldade que raramente será solucionada de outra
maneira. deter-se na experiência é uma justificada exigência científica. não menos justificada é a
procura da regularidade interior da experiência. portanto, em determinado lugar da experiência
esse próprio interior deve apresentar-se como tal. a experiência será, assim, aprofundada com a
ajuda de si mesma. nossa teoria do conhecimento enaltece a exigência da experiência da forma
mais elevada, rejeitando qualquer tentativa de introduzir nela algo de fora. as determinações do
pensar, ela própria as encontra dentro da experiência. a maneira como o pensar adentra o
fenômeno é a mesma que no restante mundo da experiência.
o princípio da experiência é geralmente mal compreendido em seu alcance e em seu
verdadeiro significado. em sua forma mais rude, é a exigência de deixar os objetos da realidade na
primeira forma em que aparecem e só assim torná-los objetos da ciência. este é um princípio
puramente metódico; não diz absolutamente nada a respeito do conteúdo daquilo que é
experimentado. caso se quisesse afirmar que só podem ser objeto da ciência as percepções dos
sentidos, como faz o materialismo, não se poderia ter por base este princípio. se o conteúdo é
sensorial ou ideal, não cabe a este princípio fazer nenhum julgamento. no entanto, para ser
aplicável da mencionada forma rude em determinado caso sem dúvida ele estabelece uma
premissa: exige que os objetos, ao serem experimentados, já tenham uma forma que satisfaça ao
empenho científico. na experiência dos sentidos exteriores como vimos, isto não acontece só ocorre
no âmbito do pensar.
somente no pensar pode ser aplicado o princípio da experiência em seu mais extremo
significado.
isto não exclui que o princípio também seja estendido ao mundo restante, já que possui ainda
outras formas além da sua forma mais extrema. se, com o propósito da explicação científica, não
podemos deixar um objeto ficar tal qual é diretamente percebido, ainda assim essa explicação
pode ocorrer de modo a se trazerem de outros campos do mundo da experiência os meios re-
queridos por ela. assim não teremos transposto o campo da experiência em si.
uma gnosiologia fundamentada no sentido da cosmovisão goethiana atribui capital importância
à necessidade de se permanecer absolutamente fiel ao princípio da experiência. ninguém como
göethe reconheceu a exclusiva validade deste princípio. ele representava o princípio tão
rigorosamente quanto exigimos acima. todas as concepções superiores a respeito da natureza não
podiam parecer-lhe, pois, senão experiência. elas deviam constituir uma “natureza superior dentro
da natureza”.28
no ensaio die natur [a natureza], ele diz que estamos impossibilitados de sair da natureza.
nesse seu sentido, portanto, se quisermos esclarecer-nos a respeito da mesma deveremos encontrar
os meios para tal em seu próprio âmbito.
como, no entanto, poderíamos basear uma ciência do conhecimento no princípio da
experiência caso não encontrássemos, em qualquer ponto da própria experiência, o elemento bási-
co de toda cientificidade a regularidade ideativa? conforme vimos, basta admitirmos esse
—
28 vide goethe, dichtüng und wahrheit, tomo xxii, pp. 24 s. (na. 1886)
19
próprio pensar. no primeiro caso, estamos exatamente cônscios de nos depararmos com uma coisa
pronta — pronta na medida em que veio a ser fenômeno sem que tenhamos exercido uma influência
determinante sobre esse vir-a-ser. no caso do pensar é diferente. apenas no primeiro momento este
parece igual à experiência restante. ao apreendermos qualquer pensamento, ante toda a imediação
com que ele penetra em nossa consciência nós sabemos que estamos intimamente ligados ao seu
modo de nascer. ao me ocorrer qualquer idéia súbita, cujo surgimento, portanto, em certo sentido
equivale ao de um acontecimento externo que primeiro deve ser transmitido por meus olhos e
ouvidos, eu sempre sei que o campo em que esse pensamento se manifesta é minha consciência; sei
que primeiro deve ser convocada minha atividade para a ocorrência se tornar um fato. no tocante a
cada objeto exterior, estou certo de que de início ele oferece apenas seu lado externo aos meus
sentidos; quanto ao pensamento, sei precisamente que o que ele me dirige é ao mesmo tempo sua
totalidade, que ele penetra em minha consciência como um todo completo em si. as forças
impulsoras externas, que sempre devemos pressupor no caso de um objeto dos sentidos, não
existem no caso do pensamento. e a elas que devemos atribuir o fato de a manifestação aos
sentidos se nos deparar como algo pronto; é a elas que devemos imputar a gênese dessa
manifestação. no caso do pensamento, tenho certeza de que aquela gênese não é possível sem
minha atividade. eu tenho de elaborar o pensamento, tenho de recriar seu conteúdo, tenho de
vivenciá-lo interiormente até em sua menor parte, para que ele tenha qualquer significado para
mim.
até aqui obtivemos as seguintes verdades: — na primeira etapa da observação do mundo, toda
a realidade se nos apresenta como um agregado desconexo; o pensar está encerrado dentro desse
caos. ao percorrer essa variedade, encontramos nela um componente que, já nesta primeira forma
de manifestação, possui o caráter que os outros devem primeiro adquirir. esse componente é o
pensar. aquilo que deve ser superado na restante experiência — a forma da manifestação imediata
— é justamente o que deve ser conservado no pensar. esse fator da realidade, a ser deixado em sua
estrutura original, nós o encontramos em nossa consciência, e estamos de tal forma ligados a ele
que a atividade do nosso espírito é ao mesmo tempo a manifestação desse fator. trata-se da
mesma coisa, observada de dois lados. essa coisa é o conteúdo pensamental do mundo. uma vez
aparece como atividade de nossa consciência, outra vez como manifestação imediata de uma
regularidade em si perfeita, um conteúdo ideal definido em si. logo veremos qual lado tem
importância maior.
pelo fato de estarmos dentro do conteúdo do pensamento, e de o permearmos em todas as
suas partes, somos capazes de conhecer realmente sua natureza mais própria. a maneira como ele
nos aborda é uma garantia de que realmente lhe competem as propriedades que previamente lhe
atribuímos. portanto, ele certamente pode servir de ponto de partida para toda maneira ulterior de
observação do mundo. podemos extrair dele mesmo seu caráter essencial; se quisermos adquirir
esse caráter das coisas restantes, deveremos iniciar nossas pesquisas com base nele. expressemo-
nos logo mais claramente: já que só no pensar experimentamos u ma verdadeira regularidade, uma
determinação ideativa, a regularidade do resto do mundo, que não experimentamos nele próprio,
também já deve estar encerrada no pensar. em outras palavras: a manifestação aos sentidos e o
pensar se defrontam na experiência. aquela não nos fornece esclarecimento algum sobre sua
própria essência; este nos esclarece simultaneamente sobre si mesmo e sobre a essência daquela
manifestação aos sentidos.
9. o pensar e a consciência
nesta altura, entretanto, parece como se nós mesmos tivéssemos introduzido o elemento
subjetivista que tão decididamente queríamos manter afastado de nossa teoria do conhecimento.
de nossas explicações se poderia deduzir que, afora o restante mundo da percepção, o
pensamento, mesmo segundo nosso parecer, seria portador de um caráter subjetivo.
esta objeção se baseia numa confusão entre o palco dos nossos pensamentos e aquele
elemento do qual eles recebem suas determinações de conteúdo, sua regularidade interior. nós não
produzimos, em absoluto, um conteúdo de pensamento de modo a determinar, nessa produção,
quais conexões nossos pensamentos devem estabelecer. nós apenas fornecemos a causa oportuna
para que o conteúdo do pensamento possa desenvolver-se de acordo com sua própria natureza.
concebemos o pensamento a e o pensamento b e, levando-os a uma interação, damo-lhes o ensejo
20
de entrar numa relação baseada em certas leis. não é nossa organização subjetiva que determina
essa conexão entre a e b de maneira definida; o próprio conteúdo de a e b é o único fator
determinante. não exerceremos a mínima influência sobre o fato de a e b se relacionarem
justamente de determinada maneira e não de outra. nosso espírito efetua a combinação dos blocos
de pensamento apenas em conformidade com o conteúdo deles. portanto, no pensar nós aplicamos
o princípio da experiência em sua forma mais rudimentar.
com isto é refutada a opinião de kant e schopenhauer e, em sentido mais amplo, também de
fichte, segundo a qual as leis que admitimos para a explicação do mundo são apenas um resultado
de nossa própria espiritualidade, sendo que nós as introduzimos no mundo unicamente em virtude
de nossa individualidade espiritual.
do ponto de vista do subjetivismo, ainda se poderia levantar outra objeção. se já a conexão
regular dos blocos de pensamento não é realizada por nós em conformidade com nossa natureza,
dependendo, em verdade, de seu próprio conteúdo, esse conteúdo bem poderia ser um produto
puramente subjetivo, uma mera qualidade do nosso espírito, de modo que apenas combinássemos
elementos produzidos de antemão por nós mesmos. então nosso mundo pensamental seria, não em
menor proporção, uma ilusão subjetiva. essa objeção, porém, é facilmente contestável — pois caso
tivesse fundamento nós estaríamos combinando o conteúdo do nosso pensar segundo leis que
realmente não saberíamos de onde vêm. se elas não brotam de nossa subjetividade, fato que já
contestamos e podemos considerar liquidado, o que, afinal, as regras de combinação podem
oferecer-nos para um conteúdo produzido por nós mesmos?
portanto, nosso mundo dos pensamentos é uma entidade totalmente fundada em si mesma,
uma totalidade coesa, em si perfeita e completa. vemos aqui qual dos dois lados do mundo dos
pensamentos é o essencial: o lado objetivo do seu conteúdo, e não o lado subjetivo de sua
manifestação.
essa compreensão da pureza e da perfeição interiores do pensar se apresenta de forma
extremamente clara no sistema científico de hegel. ninguém como ele atribuiu ao pensar um poder
tão perfeito a ponto de este poder fundar por si mesmo uma cosmovisão. hegel possui uma
confiança absoluta no pensar: este é o único fator da realidade em que, no verdadeiro sentido da
palavra, ele confia. contudo, por mais correto que seja seu parecer em geral, foi justamente ele
quem, pela forma violenta como o defende, tirou todo o prestígio do pensar. a maneira como
apresentou sua opinião é culpada pela confusão insana que invadiu nosso ‘pensar sobre o pensar’.
ele quis evidenciar o significado do pensamento, da idéia, designando a necessidade do pensar
como excessivamente igual à necessidade dos fatos. com isto provocou o equívoco segundo o qual
as determinações do pensar não seriam puramente ideais, mas factuais. logo sua opinião foi
interpretada como se, no mundo da realidade sensorial, ele tivesse pesquisado até mesmo o
pensamento como um objeto. bem, ele mesmo nunca expôs isso tão claramente. É preciso
justamente estabelecer que o campo do pensamento é unicamente a consciência humana. depois
deve-se mostrar que, por essa circunstância, o mundo do pensamento nada perde em objetividade.
hegel evidenciou apenas o lado objetivo do pensamento; mas a maioria vê apenas — por ser isso
mais fácil o lado subjetivo; e parece-lhe que ele trata algo puramente ideal como uma coisa, e que
o teria mistificado. nem mesmo eruditos da nossa época — e são muitos — podem ser absolvidos
deste erro. eles condenam hegel por uma falta que ele não cometeu, mas que pode ser-lhe
imputada pelo fato de ele ter exposto com muito pouca clareza o assunto em questão.
concordamos que aqui existe uma dificuldade para nossa capacidade de julgar. no entanto,
cremos que para todo pensar enérgico ela seja superável. devemos imaginar duas coisas: em
primeiro lugar, que é por meio da atividade que nós levamos o mundo das idéias a manifestar-se, e,
simultaneamente, que o que ativamente chamamos à existência se reporta às suas próprias leis.
ora, certamente estamos habituados a imaginar um fenômeno de modo a só precisar defrontá-lo de
modo passivo, numa atitude de observação. só que esta não é uma exigência incondicional. por
mais que nos pareça inusitada, a idéia de que, ativamente, nós mesmos levamos algo objetivo à
manifestação, e de que, em outras palavras, nós não apenas percebemos um fenômeno mas ao
mesmo tempo o produzimos, não é inadmissível.
basta simplesmente abandonarmos a opinião habitual de que existem tantos mundos
pensamentais quanto indivíduos humanos. aliás, essa opinião nada mais é do que um preconceito
arcaico. por toda parte ela é tacitamente pressuposta sem a consciência de que outra opinião possa
ser pelo menos tão possível, e de que devam ser ponderadas as razões da validade de uma ou de
outra. imagine-se que, em lugar dessa opinião, seja colocada a seguinte: — existe apenas um único
conteúdo pensamental, e o nosso pensar individual nada mais é do que uma familiarização do nosso
21
ser, da nossa personalidade individual, com o centro pensamental do mundo. se esta opinião é ou
não correta, não cabe examinar aqui; contudo ela é possível, e nós conseguimos o que queríamos —
ou seja, mostramos ser pelo menos possível fazer a objetividade do pensar, proposta por nós como
necessária, evidenciar-se também, sob outro prisma, como isenta de contradições.
no que se refere à objetividade, o trabalho do pensador pode ser muito bem comparado ao do
mecânico. assim como este provoca uma interação entre as forças da natureza, e com isto promove
uma atividade e um processo dinâmico dirigidos a um fim, o pensador coloca os blocos de
pensamento em viva interação e estes se transformam nos sistemas de pensamento que constituem
nossas ciências.
nada melhor para esclarecer uma opinião do que desvendar os erros invocados contra ela.
aqui apelaremos novamente a este método, que já empregamos repetidamente com vantagem.
habitualmente se acredita que nós combinamos certos conceitos em complexos maiores, ou
pensamos de determinada maneira, porque sentimos uma certa coerção interna (lógica) no sentido
de fazê-lo. também volkelt aderiu a esta opinião. mas como é que ela se coaduna com a
transparente clareza com que todo o nosso mundo pensamental está presente em nossa
consciência? nós não conhecemos nada com mais exatidão no mundo do que nossos pensamentos.
ora, será que deve ser produzida uma certa conexão baseada numa coerção interna, quando tudo é
tão claro? para quê preciso eu da coerção, se conheço a fundo a natureza do que vai ser combinado
e, portanto, posso orientar-me segundo ela? todas as nossas operações pensamentais são processos
que se executam com base no conhecimento das entidades dos pensamentos, e não de acordo com
uma obrigação. tal obrigação contradiz a natureza do pensar.
contudo, poderia ser que em verdade fosse da essência do pensar imprimir igualmente seu
conteúdo à sua manifestação, e que apesar disso não pudéssemos perceber imediatamente esse
conteúdo devido à organização do nosso espírito. porém não é esse o caso. a maneira como o
conteúdo do pensamento nos aborda é, para nós, uma garantia de termos perante nós a essência da
coisa — pois estamos conscientes de que nós acompanhamos, com nosso espírito, cada processo
dentro do mundos do pensamentos. só cabe pensar que a forma de manifestação é condicionada
pela essência da coisa. como poderíamos reproduzir a forma de manifestação se não
conhecêssemos a essência da coisa? pode-se muito bem pensar que a forma de manifestação se nos
depare como uma totalidade pronta, e que depois procuremos seu cerne; mas não se pode
absolutamente ser da opinião de que se colabora para a produção da manifestação sem provocar
esse produzir a partir do cerne.
estamo-nos aproximando mais um passo do pensar. até agora, simplesmente observamos sua
posição em relação ao restante mundo da experiência. chegamos ao parecer de que ele assume
uma posição bem privilegiada dentro do mesmo, desempenhando um papel central. agora
abstraiamos disso, limitando-nos à natureza interna do pensar. examinemos o genuíno caráter do
mundo dos pensamentos, a fim de experimentar como um pensamento depende do outro; como os
pensamentos se inter-relacionam. só assim resultarão os meios para se solucionar a questão: o que
é, afinal, conhecer? ou, em outras palavras: o que significa elaborar pensamentos sobre a
realidade? o que significa querer discutir com o mundo utilizando-se do pensar?
precisamos manter-nos livres de toda opinião preconcebida. uma delas seria querermos
pressupor que o conceito (pensamento) fosse a imagem, dentro da nossa consciência, pela qual
obteríamos explicação sobre um objeto situado fora desta. neste contexto, não se trata deste ou
de outros pressupostos semelhantes. nós tomamos os pensamentos tal qual os encontramos pre-
viamente. queremos justamente examinar se eles têm relação com alguma outra coisa, e qual
seria. portanto não nos cumpre, aqui, estabelecê-los como ponto de partida. justamente a men-
cionada opinião sobre a relação entre conceito e objeto é muito comum. freqüentemente se define
o conceito como a contra-imagem espiritual de um objeto situado fora do espírito. os conceitos
retratariam as coisas, transmitindo-nos uma fotografia fiel das mesmas. ao se falar do pensar, com
freqüência se pensa apenas nessa suposta relação. quase nunca se aspira a percorrer o reino dos
pensamentos dentro de seu próprio âmbito, para ver o que aqui resulta.
queremos aqui examinar esse reino como se nada mais existisse além de seus limites, como se
o pensar fosse toda a realidade. por algum tempo abstrairemos do resto do mundo.
22
o fato de se ter deixado isto de lado, nos raciocínios gnosiológicos que se apóiam em kant,
tornou-se calamitoso para a ciência. tal omissão conferiu, nessa ciência, um impulso numa direção
que é completamente oposta à nossa. por toda a sua natureza, essa direção científica nunca é
capaz de compreender göethe. no verdadeiro sentido da palavra, é não-goethiano partir de uma
afirmação que não se encontre previamente na observação, e sim esteja ela própria inserida no
observado. porém isto acontece ao se colocar no ápice da ciência a afirmação de que entre o
pensar e a realidade, entre a idéia e o mundo exista a mencionada relação. nós só atuamos no
sentido de goethe quando nos aprofundamos na própria natureza do pensar, para depois ver qual
relação resulta quando esse pensar, conhecido segundo sua natureza, é colocado em relação com a
experiência.
göethe sempre trilha o caminho da experiência no mais rigoroso sentido. primeiro toma os
objetos como eles são e tenta penetrar sua natureza abstendo-se de qualquer opinião subjetiva;
depois estabelece as condições sob as quais os objetos possam relacionar-se, e espera o que daí
resulta. göethe procura dar à natureza ensejo de fazer valer sua regularidade em circunstâncias
particularmente características produzidas por ele, ou seja, de expressar ela mesma suas leis.
como é que o nosso pensar nos parece, considerado por si? e uma variedade de pensamentos
entretecidos e interligados organicamente das mais diversas maneiras. contudo, ao penetrarmos
essa variedade por todos os lados ela forma novamente uma unidade, uma harmonia. todos os
componentes se inter-relacionam, existem uns para os outros; um modifica o outro, restringe-o, e
assim por diante. tão logo nosso espírito efetua a representação mental de dois pensamentos
correspondentes, nota de imediato que eles confinem efetivamente num só. por toda parte ele en-
contra pertinências em seu campo pensamental; este conceito se conecta àquele, um terceiro
explica ou apóia um quarto, e assim por diante. assim, por exemplo, encontramos em nossa
consciência o conteúdo pensamental ‘organismo’; examinando nosso mundo das representações
mentais, deparamo-nos com um segundo: ‘desenvolvimento regular, crescimento’. imediatamente
fica claro que esses dois conteúdos pensamentais são co-pertinentes, simplesmente representando
dois lados de uma e mesma coisa. assim ocorre com todo o nosso sistema de pensamentos. todos os
pensamentos isolados são parte de uma grande totalidade que denominamos nosso mundo
conceitual.
se algum pensamento isolado surge na consciência, eu não descanso até que ele entre em
sintonia com meu pensar restante. um tal conceito à parte, separado de meu restante mundo
espiritual, me é totalmente insuportável. estou justamente cônscio de que uma harmonia
interiormente fundamentada existe em todos os pensamentos, e de que o mundo dos pensamentos
é unitário. por isso, cada separação dessas é uma inaturalidade, uma inverdade.
ao termos conseguido que todo o nosso mundo dos pensamentos traga o caráter de uma
sintonia perfeita, interna, esta nos proporciona a satisfação que nosso espírito exige. então nos
sentimos em posse da verdade.
quando vemos a verdade na absoluta sintonia de todos os conceitos de que dispomos, impõe-
se a pergunta: será que, abstraindo-se de toda realidade explícita, abstraindo-se do mundo
fenomenológico acessível aos sentidos, o pensar também possui um conteúdo? será que não resta o
completo vazio, um puro fantasma, se considerarmos eliminado todo conteúdo sensorial?
a opinião concordando com este último caso seria, decerto, amplamente difundida, de modo
que devemos observá-la mais de perto. como já notamos acima, muitas vezes se considera todo o
sistema de conceitos apenas como uma fotografia do mundo exterior. insiste-se, na verdade, que o
nosso saber se desenvolve na forma do pensar, exigindo, porém, de uma ‘ciência rigorosamente
objetiva’ que ela tome seu conteúdo apenas de fora. caberia ao mundo exterior fornecer o material
que flui para os nossos conceitos.29 sem aquele, estes seriam esquemas vazios, sem nenhum
conteúdo. se o mundo externo fosse suprimido, os conceitos e idéias não teriam mais sentido
algum, pois existem em função dele. esta opinião poderia ser denominada a negação do conceito
pois para a objetividade este não tem mais significado algum. e um elemento acrescentado a esta
última. o mundo existiria igualmente, em toda a sua perfeição, mesmo se não houvesse nenhum
conceito; pois os conceitos não acrescentam nada de novo ao mundo, e nada contêm que já não
existisse sem eles. só existem porque o sujeito da cognição quer servir-se deles para ter, de forma
adequada a si mesmo, aquilo que já existe de outra forma. para ele os conceitos são apenas
mediadores de um conteúdo que é de natureza não-conceitual. essa é a mencionada opinião.
29 j.h. von kirchmann diz até mesmo, em sua ‘doutrina do saber’ [lehre vom wissen], que a cognição é uma afluência do
mundo externo para nossa consciência. (na 1886)
23
se ela tivesse fundamento, deveria ser correto um dos três seguintes pressupostos:
1. o mundo conceitual se encontra numa tal relação com o mundo exterior que apenas
reproduz de outra forma todo o conteúdo deste. aqui se subentende por mundo exterior o mundo
dos sentidos. se fosse esse o caso, não se poderia realmente compreender qual necessidade
existiria de alguém se elevar acima do mundo dos sentidos. com este último já estaria dada toda a
abrangência da cognição.
2. o mundo conceitual adota como seu conteúdo apenas uma parte da ‘manifestação aos
sentidos’. imagine-se a coisa mais ou menos assim: nós fazemos uma série de observações.
depararno-nos aí com os mais variados objetos. então notamos que certas características
descobertas num objeto já foram observadas por nós. passa diante de nossos olhos uma série de
objetos a, b, c, d, etc. a teria as características p, q, a, r; b: l, m, n; c: k, h, c, g; e d: p, u, a, v.
então em d encontramos novamente as características a e p, com as quais já nos havíamos
deparado em a. designamos essas características como essenciais. e na medida em que a e d
possuem as mesmas características essenciais, dizemos que são da mesma espécie. assim, asso-
ciamos a e d ao fixar no pensar suas características essenciais. temos então um pensar que não se
coaduna totalmente com o mundo dos sentidos; ao qual, portanto, não pode ser aplicada a
superfluidade acima censurada, mas que está igualmente longe de acrescentar algo novo ao mundo
dos sentidos. contra isto pode-se dizer sobretudo o seguinte: para reconhecer as propriedades
essenciais de uma coisa é preciso uma certa norma que nos possibilite distinguir o essencial do não-
essencial. essa norma não pode estar no objeto, pois este contém o essencial e o não-essencial
numa unidade inseparável. essa norma deveria, pois, ser o próprio conteúdo do nosso pensar.
essa objeção, contudo, ainda não derruba inteiramente a opinião. em verdade, pode-se dizer
que é uma hipótese injustificada a de que isto ou aquilo seja essencial ou não para uma coisa. isto
tampouco nos importa. trata-se simplesmente do fato de nos depararmos, em várias coisas com
certas propriedades iguais e denominarmos essas coisas como idênticas. nem mesmo se fala de
essas propriedades iguais também serem essenciais. essa abordagem, contudo, pressupõe algo que
absolutamente não é verdade. em duas coisas da mesma espécie não existe nada verdadeiramente
em comum quando se permanece na experiência sensorial. um exemplo esclarecerá isto. o mais
simples é o melhor, porque é o mais fácil de ser visto de modo abrangente. observemos os dois
seguintes triângulos:
0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000
c024e02ca02040000002e0118001c000000fb021000070000000000bc02000000000102022253797374656
d0002ca0200006d830000985c110004ee8339505dbe030c020000040000002d0100000400000002010100
1c000000fb02c4ff0000000000009001000000000440001254696d6573204e657720526f6d616e000000000
0000000000000000000000000040000002d010100050000000902000000020d000000320a360000000100
040000000000c9024d0220e41b00040000002d010000030000000000
o que têm eles de realmente igual, quando se permanece na experiência sensorial?
absolutamente nada. o que eles têm de igual, ou seja, a lei segundo a qual se formaram e que faz
com que ambos incidam sob o conceito ‘triângulo’, só é alcançado por nós ao ultrapassarmos a
experiência sensorial. o conceito ‘triângulo’ abrange todos os triângulos. não chegamos a ele pela
mera observação de cada um deles. esse conceito sempre permanece o mesmo, por mais vezes que
eu possa representá-lo, ao passo que dificilmente eu conseguirei olhar duas vezes para o mesmo
‘triângulo’. o que faz com que o triângulo individual seja ‘este’ bem determinado, e nenhum outro,
nada tem a ver com o conceito. um determinado triângulo não é esse determinado por corres-
ponder ao conceito, e sim por meio de elementos que se encontram completamente fora do
conceito: comprimento dos lados, abertura dos ângulos, posição, etc. porém é totalmente ilícito
afirmar que o conteúdo do conceito ‘triângulo’ seja derivado do mundo sensorial objetivo, quando
se vê que esse seu conteúdo não está absolutamente contido em nenhuma manifestação sensorial.
3. mas ainda existe uma terceira possibilidade. o conceito poderia ser o mediador para a
compreensão de entidades que não são sensorialmente perceptíveis, mas que apesar disso têm um
24
caráter autônomo. este último seria então o conteúdo não conceitual da forma conceitual do nosso
pensar. quem admite tais entidades existentes além da experiência e nos atribui a possibilidade de
saber das mesmas deve, necessariamente, ver também no conceito o intérprete desse saber.
ainda demonstraremos mais específicamente a insuficiência desta opinião. aqui desejamos
apenas fazer notar que ela, em todo caso, não fala contra a capacidade de conteúdo do mundo
conceitual; pois se os objetos sobre os quais se pensa estivessem além de toda experiência e além
do pensar, mais ainda este último deveria abarcar em si mesmo o conteúdo sobre o qual se apóia.
não poderia pensar sobre objetos dos quais não se encontrasse vestígio algum dentro do mundo dos
pensamentos.
em todo caso fica, portanto, bem claro que o pensar não é nenhum recipiente vazio; tomado
puramente em si mesmo, ele é pleno de conteúdo, e seu conteúdo não se coaduna com outra forma
de manifestação.
d. a ciência
25
elemento. esse elemento é a percepção sensorial. a percepção oferece um tipo de especialização
das determinações pensamentaís que é deixada em aberto por estas mesmas.
É nessa especialização que o mundo se nos defronta quando simplesmente nos servirmos da
experiência. na psicologia este é o primeiro elemento que, tomado objetivamente, é deduzido.
em toda manipulação científica da realidade, o processo é este: nós nos confrontamos com a
percepção concreta. ela se posta como um enigma à nossa frente. faz-se valer em nós o impulso de
pesquisar seu genuíno quê, sua essência, que ela mesma não exprime. este impulso nada mais é do
que o trabalhoso emergir de um conceito buscado nas trevas da nossa consciência. então nós
retemos esse conceito, enquanto a percepção sensorial segue paralelamente a esse processo
pensante. repentinamente, a muda percepção fala uma linguagem que nos é compreensível;
reconhecemos que o conceito apreendido por nós é aquela procurada essência da percepção. o que
se realizou aí foi um juízo. É diferente daquela forma de juízo que une dois conceitos sem levar em
conta a percepçao. se eu disser que a liberdade é a determinação de um ser por si mesmo, também
já terei emitido um juízo. os componentes deste juízo são conceitos que eu não emiti na
percepção. É sobre tais juízos que repousa a unidade interna do nosso pensar, da qual tratamos no
capítulo anterior.
o juízo aqui considerado tem por sujeito uma percepção e por predicado um conceito. esse
determinado animal que está diante de mim é um cão. nesse tipo de juízo, uma percepção é
inserida em meu sistema pensamental, em lugar determinado. denominemos tal juízo um juízo
perceptivo.
mediante o juízo perceptivo, fica-se sabendo que determinado objeto sensorial, de acordo
com sua natureza, coincide com determinado conceito.
portanto, se quisermos compreender o que percebemos, a percepção deverá estar pré-
forrnada em nós como determinado conceito. no caso de um objeto ao qual isto não se aplicasse,
passaríamos ao lado sem que ele nos fosse compreensível.
a melhor prova disso é fornecida pelo fato de que pessoas com uma rica vida espiritual
também penetram mais profundamente no mundo da experiência do que outras cujo caso não seja
esse. muita coisa que passa despercebidamente por estas últimas causa naquelas uma profunda
impressão. (“se o olho não fosse de natureza solar, nunca poderia avistar o sol.”30 “sim, mas” — dirá
alguém — “acaso não nos deparamos, na vida, com infinitas coisas das quais não formamos até
então o mais leve conceito? e não formamos, logo de imediato, conceitos a respeito delas?”
certamente. mas porventura será idêntica a soma de todos os conceitos possíveis e a soma daqueles
que formei em minha vida até hoje? será que meu sistema conceitual não é capaz de
desenvolvimento? não posso, ao me deparar com uma realidade incompreensível para mim, colocar
imediatamente meu pensar em atividade, para que de pronto ele desenvolva o conceito que devo
confrontar com um objeto? para mim basta a faculdade de fazer emergir determinado conceito do
acervo do mundo pensamental. não se trata do fato de determinado pensamento já me ter sido
consciente no decorrer de minha vida, mas de ele se deixar deduzir do mundo dos pensamentos
acessíveis a mim. para seu conteúdo, não importa onde e quando eu o apreendo — pois todas as
determinações do pensamento eu retiro do mundo pensamental. do objeto sensorial nada aflui para
esse conteúdo. eu apenas reconheço no objeto sensorial o pensamento que retirei de meu interior.
esse objeto me enseja isolar, em determinado momento, justamente esse conteúdo pensamental da
unidade de todos os pensamentos possíveis, mas de maneira alguma me fornece os componentes
para sua construção. estes eu devo retirar de mim mesmo.
só quando fazemos nosso pensar agir é que a realidade começa a ganhar verdadeiras
determinações. ela, que antes era muda, fala uma linguagem clara.
nosso pensar é o intérprete que esclarece os gestos da experiência.
estamos tão habituados a considerar o mundo dos conceitos como um mundo vazio, sem
conteúdo, e confrontar com ele a percepção como algo pleno de conteúdo, inteiramente determi-
nado, que será difícil colocar as coisas em seu devido lugar. passa totalmente ignorado que a mera
contemplação é o processo mais vazio que se possa imaginar, e que ela só recebe seu conteúdo do
pensar. a única verdade em tudo isso é que o pensamento, sempre fluido, é fixado por ela em
determinada forma, sem que tenhamos necessidade de colaborar ativamente nessa fixação. se
alguém com uma rica vida anímica vê milhares de coisas que para o pobre de espírito constituem
um nada, isto é uma prova, tão clara quanto o sol, de que o conteúdo da realidade é apenas o
30 göethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. iii: entwurf einer’ farbenlehre. parte didática, introdução, p. 88.
levemente alterado, tb. em zahme xenien, iii. (n.e. orig.)
26
reflexo do conteúdo do nosso espírito, e de que nós apenas recebemos, de fora, a forma vazia. sem
dúvida precisamos ter dentro de nós a força para nos reconhecermos como os produtores desse
conteúdo, senão veremos eternamente apenas a imagem refletida, e nunca o nosso espírito que se
espelha. também quem se vê num espelho físico precisa reconhecer a si mesmo como persona-
lidade, a fim de reconhecer-se novamente na imagem.
toda percepção sensorial finalmente se dissolve, quanto à essência, num conteúdo ideal. só
então ela nos parece clara e transparente. em muitos casos, as ciências nem foram tocadas pela
consciência desta verdade. toma-se a determinação do pensamento por características dos objetos,
como cor, cheiro, etc. assim, acredita-se que a determinação seja uma propriedade de todos os
corpos, permanecendo estes no estado de movimento ou repouso em que se encontram até que
uma influência externa os modifique. e nesta forma que figura, na ciência natural, a lei da inércia.
porém os fatos são totalmente outros. em meu sistema conceitual, o pensamento corpo existe em
muitas modificações. uma coisa é o pensamento de um objeto que pode colocar-se em repouso ou
movimento por si mesmo, e outra é o conceito de um corpo que só muda seu estado como
conseqüência de uma influência externa. os corpos deste último tipo eu designo como corpos
inorgânicos. se, então, eu me defronto com determinado corpo que em minha percepção reflita
minha definição conceitual acima, eu o denomino inorgânico e atribuo-lhe todas as qualidades
decorrentes do conceito de corpo inorgânico.
a seguinte convicção deveria permear todas as ciências: a de que seu conteúdo é meramente
um conteúdo pensamental, e seu vínculo com a percepção não é outro senão ver no objeto da
percepção uma forma particular do conceito.
nosso pensar tem uma dupla tarefa a cumprir: primeiramente, criar conceitos com contornos
rigorosamente demarcados; em segundo lugar, reunir num todo unitário os conceitos isolados assim
criados. no primeiro caso, trata-se da atividade diferenciadora; no segundo, da atividade
cornbinatória. estas duas tendências espirituais não desfrutam, de modo algum, do mesmo cuidado
nas ciências. a perspicácia, que vai até os mais ínfimos pormenores em suas diferenciações, dota
um número significativamente maior de pessoas do que a força abrangente do pensar, que adentra
as profundezas dos seres.
por longo tempo se procurou a tarefa da ciência tão-somente numa exata diferenciação das
coisas. basta lembrarmos o estado em que göethe encontrou a história natural. por intermédio de
lineu, o ideal desta havia-se tornado procurar justamente as diferenças entre cada um dos
indivíduos vegetais, a fim de poder utilizar as características mais insignificantes para estabelecer
novas espécies e subespécies. duas espécies animais ou vegetais que se diferenciassem apenas em
coisas extremamente insignificantes eram logo classificadas em categorias diferentes. encontrando-
se, em qualquer ser vivo que até o momento fosse classificado em qualquer espécie, um inesperado
desvio do caráter genérico arbitrariamente estabelecido, não se refletia sobre o modo como tal
desvio poderia ser esclarecido a partir desse caráter: simplesmente se estabelecia um nova
espécie.
esta diferenciação é o objeto do intelecto. ele só tem de separar e fixar os conceitos na
separação. ele é uma etapa preliminar necessária a toda atividade científica superior. antes de
mais nada, são necessários conceitos bem determinados e claramente delineados antes que
possamos procurar uma harmonia entre os mesmos. contudo, não podemos deter-nos na separação.
para o intelecto estão separadas coisas cuja visão numa unidade harmônica é uma necessidade
essencial da humanidade. para o intelecto estão separados: causa e efeito, mecanismo e
organismo, liberdade e necessidade, idéia e realidade, espírito e natureza, e assim por diante.
todas estas diferenciações são provocadas pelo intelecto. elas precisam ser provocadas, pois do
contrário o mundo nos pareceria um caos difuso e obscuro, que só se tornaria uma unidade porque
seria, para nós, totalrnente indeterrninado.
o próprio intelecto não está em condições de escapar dessa separação. ele mantém os
componentes separados.
esse ‘escapar’ é assunto da razão. ela precisa deixar que os conceitos criados pelo intelecto se
entrelacem; precisa mostrar que o que o intelecto mantém em rigorosa separação é, efetivamente,
uma unidade intrínseca. a separação é algo provocado artificialmente, um passo intermediário
27
necessário ao nosso caminho cognitivo, e não sua conclusão. quem apreende a realidade apenas
intelectualmente, afasta-se dela. coloca em seu lugar — já que ela, em verdade, é uma unidade —
uma pluralidade artificial, uma multiplicidade que nada tem a ver com a essência da realidade.
daí provém a discrepância entre a ciência exercida intelectualmente e o coração humano.
muitas pessoas cujo pensar não está evoluído a ponto de alcançar uma cosmovisão unitária, que
elas possam captar em plena clareza conceitual, estão, no entanto, em plena condição de
aprofundar-se com o sentimento na harmonia interna do todo universal. a elas o coração dá o que a
razão oferece ao cientificamente erudito.
quando a opinião intelectual a respeito do mundo aborda tais pessoas, elas refutam com
desprezo a infinita multiplicidade e se atêm à unidade, que certamente não reconhecem mas sen-
tem mais ou menos vivamente. elas vêem muito bem que o intelecto se afasta da natureza,
perdendo de vista o laço espiritual que liga as partes da realidade.
a razão reconduz à realidade. a unidade de todo ser, que antes era sentida ou mesmo apenas
nebulosamente pressentida, é plenamente discernida pela razão. o parecer do intelecto deve ser
aprofundado pelo parecer racional. se o primeiro, em vez de ser visto como um passo transitório
necessário, for visto como objetivo próprio, não fornecerá a realidade, mas uma caricatura dela.
as vezes ocorrem dificuldades para unir os pensamentos criados pelo intelecto. a história das
ciências nos fornece várias provas disto. freqüentemente vemos o espírito humano pelejar para
transpor as diferenças criadas pelo intelecto.
na visão racional do mundo, o homem se integra nele em unidade indivisa.
kant já apontou a diferença entre intelecto e razão.31 ele designa a razão como a capacidade
de perceber idéias; em contrapartida, o intelecto se limita a olhar o mundo em sua separação, seu
isolamento.
ora, a razão é de fato a capacidade de perceber idéias. aqui devemos estabelecer a diferença
entre conceito e idéia, o que não consideramos até agora. para os nossos objetivos até este ponto,
era importante apenas encontrar as qualidades do elemento pensamental que se manifestam em
conceito e idéia. conceito é o pensamento isolado, tal qual é fixado pelo intelecto. se eu levo
vários desses pensamentos isolados a um fluxo vivo, de modo que eles se entrelacem, se liguem,
surgem figuras pensamentais que existem somente para a razão e que o intelecto não pode alcan-
çar. para a razão, as criações do intelecto cessam de ter suas existências separadas e continuam a
viver apenas como parte de uma totalidade. É a essas formações criadas pela razão que cabe
chamar de idéias.
que a idéia reconduz uma pluralidade de conceitos do intelecto a uma unidade, kant também
já declarou. entretanto, ele qualificou as criações manifestas pela razão como simples miragens,
como ilusões que o espírito humano concebe sem cessar, pois anseia eternamente por uma unidade
da experiência, que nunca lhe é dada. segundo kant, as unidades criadas nas idéias não se baseiam
em relações objetivas, não emanam da própria coisa são meras normas subjetivas segundo as quais
nós levamos ordem ao nosso saber. kant, portanto, não designa as idéias como princípios
constitutivos que deveriam ser determinantes para a coisa, mas como princípios reguladores que só
têm sentido e significado para a sistemática do nosso saber.
ao se verificar, porém, a maneira como as idéias surgem, essa opinião logo se mostra errônea.
É certo que a razão subjetiva necessita de unidade; mas essa necessidade é um vago anseio de
unidade, sem qualquer conteúdo. ao se defrontar com algo absolutamente destituído de qualquer
natureza unitária, ela não é capaz de produzir por si essa unidade. mas, por outro lado, ao
encontrar uma pluralidade que permita uma recondução a uma harmonia interna, ela a realiza.
essa pluralidade é o mundo conceitual criado pela razão.
a razão não pressupõe uma unidade determinada, mas a forma vazia da condição unitária; ela
é a capacidade de chamar a harmonia à luz do dia quando esta se encontra no próprio objeto. os
conceitos se compõem em idéias na própria razão. a razão coloca em primeiro plano a unidade
superior dos conceitos do intelecto, a qual o intelecto certamente possui em suas criações mas não
é capaz de ver. o fato de isto passar despercebido é motivo de muitos mal-entendidos sobre o
emprego da razão nas ciências.
em pequeno grau, toda ciência já no início, e mesmo o pensar cotidiano, têm necessidade de
razão. quando, no juízo “todo corpo é pesado”, ligamos o conceito de sujeito ao conceito de
predicado, já existe aí uma união de dois conceitos — portanto, a atividade mais simples da razão.
31 vide, por exemplo, kritik der reinen vernunft [crítica da razão pura], ‘tranzendentale dialetik’ [‘dialética
transcendental’], ii, a: von der vernunft Überhaupt’ [‘da razão propriamente dita]. (n.e. orig.)
28
a unidade que a razão torna seu objeto é, antes de qualquer atividade pensante, antes de
qualquer uso da razão, indiscutível; só que está oculta, só existindo potencialmente e não como
fenômeno de fato. então o espírito humano produz a separação para, na união racional dos
componentes separados, discernir completamente a realidade.
quem não supõe isto deve considerar qualquer combinação de pensamentos como uma
arbitrariedade do espírito subjetivo, ou então admitir que a unidade por detrás do mundo
vivenciado por nós existe e nos obriga, de uma maneira para nós desconhecida, a reconduzir a
multiplicidade a uma unidade. então combinamos pensamentos sem discernir os verdadeiros
fundamentos da relação que estabelecemos; então a verdade não é reconhecida por nós, e sim
imposta a nós de fora. a toda ciência que parte desta premissa nos é lícito chamar de dogmática.
ainda retomaremos o assunto.
toda opinião científica desse tipo irá deparar com dificuldades ao precisar indicar motivos
para executarmos esta ou aquela combinação de pensamentos. terá, em verdade, de buscar fun-
damentos subjetivos para a reunião de objetos cuja conexão objetiva nos permanece oculta. por
que elaboro um juízo, se o objeto que exige a homogeneidade do conceito de sujeito e predicado
nada tem a ver com a emissão do mesmo?
kant fez desta pergunta o ponto de partida de seu trabalho crítico. no início de sua crítica da
razão pura32 encontramos a seguinte pergunta: como os juízos sintétícos são possíveis a priori? ou
seja, como é possível que eu combine dois conceitos (sujeito, predicado), se o conteúdo de um já
não está contido no outro, e se o juízo não é nenhum mero juízo de experiência, isto é, a
constatação de um único fato? kant entende que tais julgamentos só seriam possíveis se a
experiência pudesse existir exclusivamente sob o pressuposto de sua validade. portanto, a
possibilidade da experiência é essencial para se elaborar tal juízo. se eu puder dizer que a
experiência só é possível quando este ou aquele juízo sintético é verídico a priori, então isso terá
validade. contudo, às próprias idéias isso não é aplicável. segundo kant, elas não possuem nem ao
menos esse grau de objetividade.
kant acha que os axiomas da matemática e da ciência natural pura são, a priori, tais
julgamentos sintéticos válidos. ele toma, por exemplo, o julgamento 7 + 5 = 12. em 7 e 5 a soma 12
não está de modo algum contida, conclui kant. eu devo ir além de 7 e 5 e apelar ao meu
discernimento, e então encontro o conceito 12. meu discernimento torna necessário imaginar 7 + 5
= 12. porém os objetos de minha experiência precisam aproximar-se de mim pela via do meu
discernimento, submetendo-se portanto às suas leis. para a experiência ser possível, tais axiomas
devem ser corretos.
ante uma ponderação objetiva, todo esse artificial edifício pensamental de kant não subsiste.
É impossível eu não ter, no conceito de sujeito, nenhum ponto de referência que me leve ao
conceito de predicado; pois ambos os conceitos foram obtidos pelo meu intelecto, e isto em algo
que em si é unitário. que aqui ninguém se iluda. a unidade matemática subjacente ao número não
é o primeiro elemento. o primeiro elemento é a grandeza, que é uma repetição da unidade
efetuada tais e tais vezes. eu devo pressupor uma grandeza ao falar de uma unidade. a unidade é
uma criação do nosso intelecto, que a separa de uma totalidade do mesmo modo como separa o
efeito da causa, a substância de suas características, etc. ora, ao pensar 7 + 5, em verdade eu fixo
no pensamento 12 unidades matemáticas, só que não de uma só vez, mas em duas partes. se eu
penso a totalidade das unidades matemáticas de uma só vez, é a mesma coisa; e essa identidade eu
expresso no juízo 7 + 5 = 12. o mesmo se dá com o exemplo geométrico dado por kant. uma reta
limitada pelos pontos a e b é uma unidade inseparável. meu intelecto pode formar disso dois
conceitos: primeiro pode admitir a reta como direção e depois como caminho entre os dois pontos
a e b. daí decorre o juízo: a reta é o menor caminho entre dois pontos.
todo ato de julgar, na medida em que os membros que entram no juízo sejam conceitos, nada
mais é do que uma reunião daquilo que o intelecto separou. a conexão resulta tão logo se investiga
o conteúdo dos conceitos do intelecto.
32 ibidem. vide o apêndice à ‘dialética transcendental’: ‘von dem regulativen gebrauch der ideen der reinen veinunft’ [‘do
uso regulador das idéias da razão pura’]. vide tb. rudolf steiner die rätsel der philosophie (1914), ga-nr. 18 (dornach: rudolf
steincr verlag, 1968), cap. ‘dats zeitalter kants und goethes’. (n.e. orig.)
29
a realidade se desdobrou para nós em dois campos: a experiência e o pensar. a experiência
entra em consideração em duplo sentido. primeiro, na medida em que a realidade total, fora do
pensar, possui uma forma de manifestação que deve ocorrer em forma de experiência. segundo, na
medida em que é pertinente à natureza do nosso espírito — cuja essência consiste na observação
(portanto, numa atividade dirigida para fora) — o fato de os objetos a serem observados
penetrarem em seu campo visual, isto é, novamente lhe serem dados sob forma de experiência.
ora, pode ser que esta forma do elemento dado não encerre em si a essência da coisa, e então a
própria coisa exige que ela apareça primeiro na percepção (experiência), para depois revelar sua
essência a uma atividade do nosso espírito que ultrapasse a percepção. outra possibilidade é a de a
essência já se encontrar no que é dado imediatamente, devendo-se atribuí-lo apenas à segunda
circunstância a de que tudo deve mostrar-se à nossa mente como experiência — o fato de não
captarmos logo essa essência. esta última possibilidade acontece com o pensar, e a primeira com a
restante realidade. no caso do pensar, basta superarmos nossa limitação subjetiva para captar o
elemento dado em seu cerne. aquilo que no caso da restante realidade se encontra fundamentado
concretamente na percepção objetiva isto é, que a forma imediata de manifestação deve ser
superada para ser explicada —, no caso do pensar reside apenas numa particularidade do nosso
espírito. lá, é a própria coisa que confere a si mesma a forma de experiência; aqui é a organização
da nossa mente. lá nós ainda33 não temos a coisa inteira ao captar a experiência; aqui nós a temos.
É nisso que se fundamenta o dualismo a ser superado pela ciência, pela cognição pensante. o
homem se encontra perante dois mundos, cuja conexão ele precisa estabelecer. um deles é a
experiência, da qual ele sabe que contém apenas a metade da realidade; o outro é o pensar, que é
perfeito em si e ao qual deve afluir aquela realidade experimental exterior para poder nascer uma
visão satisfatória do mundo. se o mundo fosse habitado apenas por entes sensoriais, sua essência
(seu conteúdo ideal) permaneceria sempre oculta; as leis decerto dominariam os processos do
mundo, mas nunca viriam a aparecer. para que isto aconteça deve surgir, entre a forma de
manifestação e a lei, um ser dotado tanto de órgãos para perceber aquela forma sensorial da
realidade, dependente de leis, quanto da capacidade de perceber a própria existência de leis. de
um lado deve aproximar-se desse ser o mundo sensorial, e, de outro, a essência ideal deste último;
e cabe a ele combinar, numa atividade própria, esses dois fatores da realidade.
aqui se vê bem claramente que nossa mente não deve ser considerada como um recipiente do
mundo das idéias, contendo em si os pensamentos, mas como um órgão que os percebe.
ela é um órgão de captação, como os olhos e os ouvidos. o pensamento não se comporta de
maneira diversa, em relação à nossa mente, do que a luz em relação ao olho e o som em relação ao
ouvido. certamente não ocorre a ninguém considerar a cor como algo que se imprime
permanentemente no olho, aderindo a ele. no caso da mente, esta opinião é até mesmo domi-
nante. de cada coisa se formaria na consciência um pensamento, que permaneceria nela para ser
retirado conforme a necessidade. sobre isto se fundou uma teoria própria, como se os pensamentos
dos quais não somos conscientes no momento estivessem guardados em nossa mente, só que
latentes sob o limiar da consciência.
essas opiniões aventureiras se desmancham em nada, tão logo se considera que o mundo das
idéias é um mundo determinado por si mesmo. o que esse conteúdo autodeterminado tem a ver
com a variedade das consciências? por certo não se admitirá que ele se determine numa variedade
indefinida, de modo que um conteúdo parcial sempre seja independente do outro! a coisa está bem
clara. o conteúdo pensamental é de tal ordem que deve haver um órgão espiritual para sua
manifestação, sendo porém indiferente o número de seres dotados desse órgão. portanto, um
número indeterminado de indivíduos dotados de mentes pode defrontar-se com um conteúdo
pensamental. a mente percebe, portanto, o cabedal de pensamentos do mundo, tal qual um órgão
de percepção. só existe um conteúdo pensamental do mundo. nossa consciência não é a faculdade
de produzir e guardar pensamentos, como tão freqüentemente se crê, e sim de perceber os
pensamentos (idéias). göethe expressou isso tão primorosamente34 com as seguintes palavras:
33 ‘ainda’: palavra inserida na 7ª edição [do original] (1979) segundo urna correçao manuscrita de rudolf steiner. (n.e.
orig.)
34 ‘tão’: idem (v. nota 33).
30
sendo, a própria idéia é um conceito.35
cidadão de dois mundos do mundo dos sentidos, que dele se aproxima de baixo, e do mundo dos
pensamentos, reluzindo de cima —, o homem se apodera da ciência, pela qual conecta ambos numa
unidade indivisa. de um lado nos acena a forma externa, e de outro lado a essência interior; cabe-
nos reunir as duas. com isto nossa teoria do conhecimento se elevou acima do ponto de vista que,
na maioria das vezes, investigações semelhantes assumem e que não vai além de formalidades. ali
se diz que “a cognição é elaboração da experiência”, sem determinar o quê é elaborado dentro
desta; determina-se que “no processo cognitivo, a percepção aflui para o pensar; ou o pensar,
graças a um impulso interior, avança da experiencia para a essencia existente atrás daquela”.
porém estas são meras formalidades. uma gnosiologia que queira captar a atividade cognitiva em
seu papel de importância universal deve, em primeiro lugar, indicar a meta ideal dessa atividade.
tal meta consiste em proporcionar à experiência inacabada uma conclusão, pelo desvendamento de
seu cerne. ela deve, em segundo lugar, determinar o que é esse cerne quanto ao conteúdo. ele é
pensamento, idéia. por fim, em terceiro lugar, deve mostrar como acontece essa revelação. nosso
capítulo ‘o pensar e a percepção’ informa a esse respeito. nossa teoria do conhecimento leva ao
resultado positivo de que o pensar é a essência do mundo, e de que o pensar humano individual é a
única forma de manifestação dessa essência. uma gnosiologia meramente formal não é capaz disto;
permanece eternamente estéril. não possui opinião alguma sobre qual relação os resultados da
ciência têm com a essência e os processos do mundo. no entanto, essa relação deve evidenciar-se
justamente na teoria do conhecimento. esta ciência deve mostrar-nos para onde vamos por meio da
nossa cognição, e aonde nos leva qualquer outra ciência.
em nenhum outro caminho senão o da teoria do conhecimento chega-se à opinião de que o
pensar é o cerne do mundo; pois ele nos mostra a relação do pensar com a realidade restante. mas
de onde deveríamos saber qual relação o pensar guarda com a experiência, a não ser da ciência,
que tem diretamente por meta examinar essa relação? e mais: de onde deveríamos saber, a
respeito de um ser espiritual ou sensório, que ele é a força primordial do mundo, caso não
examinássemos sua relação com a realidade? portanto, toda vez que se trate de encontrar a
essência de uma coisa, esse encontro sempre consistirá num retorno ao ideário do mundo. o âmbito
desse acervo não deve ser transposto quando se quer permanecer dentro de claras definições,
quando não se quer tatear no indeterminado, o pensar é uma totalidade em si, bastando a si
próprio e não podendo superar-se sem chegar ao vazio. em outras palavras: para explicar algo
qualquer, ele não pode recorrer a coisas que não encontre em si mesmo. uma coisa que não fosse
abrangível pelo pensar seria um absurdo. tudo se resolve em última instância no pensar, tudo
encontra seu lugar dentro dele.
no que se refere à nossa consciência individual, isto significa que, para efeito de constatações
científicas, devemos permanecer rigorosamente dentro do que nos é dado na consciência; nós não
podemos ultrapassar isto. ora, quando se compreende bem o fato de não podermos ultrapassar
nossa consciência sem chegar ao ilusório, mas ao mesmo tempo não se compreende que a essência
das coisas pode ser encontrada dentro da nossa consciência na percepção de idéias, surgem os erros
que falam de um limite do nosso conhecimento. se não formos capazes de ir além da consciência, e
se a essência da realidade não se encontrar dentro da mesma, jamais poderemos penetrar até a
essência. nosso pensar estará preso ao aquém e nada saberá do além.36
ao nosso ver, essa opinião nada mais é senão um pensar que compreende erroneamente a si
mesmo. um limite do conhecimento só seria possível se a experiência exterior nos impusesse por si
mesma a investigação de sua essência, se ela própria determinasse as perguntas a serem
formuladas a seu respeito. porém não é este o caso. para o pensar é que surge a necessidade de
confrontar a experiência, percebida por ele, com a essência da mesma. o pensar só pode ter a bem
determinada tendência a ver, também no resto do mundo, suas próprias leis e não algo qualquer do
qual ele próprio não tenha a mínima noção.
um outro erro ainda precisa ter aqui sua correcão. trata-se daquele erro segundo qual o
pensar não seria suficiente para constituir o mundo, como se ainda devesse ser acrescentado algo
mais (força, vontade, etc.) ao conteúdo pensamental para viabilizar o mundo.
numa ponderação exata, porém, vê-se imediatamente que todos esses fatores não passam de
abstrações oriundas do mundo da percepção, esperando elas próprias uma explicação somente por
31
meio do pensar. qualquer outro componente da essência do mundo, além do pensar, exigiria outro
tipo de concepção, de conhecimento, além do relacionado ao pensamento. nós teríamos de
alcançar aquele outro componente por via diversa do pensar pois afinal o pensar fornece apenas
pensamentos. contudo, já ao se querer explicar a participação daquele segundo componente no
mecanismo do mundo para isso empregando conceitos, já se incorre em contradicão. além do mais
não nos é dado nenhum terceiro elemento além da percepção sensorial e do pensar; e não podemos
admitir nenhuma parte desses como cerne do mundo, pois todos os seus integrantes mostram, à
primeira observação, que como tais não contêm sua essência. esta última, portanto, pode ser única
e tão-somente procurada no pensar.
32
emprestada pelo próprio homem. essa teoria também leva o nome de antropomorfismo. ela tem
muitos adeptos. a maioria deles, no entanto, acredita que devido a essa particularidade de nossa
cognição nós nos afastamos da objetividade tal qual é em si e por si. nós percebemos, assim crêm
eles, tudo através das lentes da subjetividade. nossa acepçao nos mostra justamente o contrário
disso. nós teremos de contemplar as coisas através dessas lentes se quisermos chegar à sua
essência. o mundo não nos é apenas conhecido tal qual nos aparece; ele aparece, evidentemente
apenas à contemplação pensante, tal qual é. a forma da realidade que o homem delineia na
ciência é a última forma verdadeira dela.
agora ainda nos compete estender a cada campo da realidade o tipo de cognição que
reconhecemos como a correta, isto é, a que conduz à essência da realidade. mostraremos então
como, em cada uma das formas da experiência, deve ser procurada sua essência.
e. a cognição da natureza
33
elemento do mundo sensorial; e justamente esse modo de atuação conjunta deve ser com-
pletamente permeável ao nosso intelecto. a relação à qual são conduzidos os fatos deve ser ideal,
em conformidade com nosso espírito. naturalmente as coisas se comportarão, nas relações a que
são conduzidas pelo intelecto, de acordo com sua natureza.
nós logo vemos o que se obtém com isto. quando eu olho a esmo para o mundo sensorial, vejo
processos produzidos pela atuação conjunta de tantos fatores que me é impossível ver de imediato
o que efetivamente existe atuando por detrás desse efeito. eu vejo um processo e, ao mesmo
tempo, os fatos a, b, e, e d. como posso saber desde logo quais fatos participam mais desse
processo e quais participam menos? o assunto só se torna transparente quando eu examino quais
dos quatro fatos são incondicionalmente necessários para que o processo aconteça. eu acho, por
exemplo, que a e c são absolutamente necessários. depois descubro que sem d o processo pode
acontecer, porém com sensível alteração, e em contrapartida verifico que b não tem nenhuma
importância essencial, podendo também ser substituído
0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000c024e
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0000000c9024d0220e41b00040000002d010000030000000000
por outro. na ilustração acima, i deve representar simbolicamente a reunião dos elementos para a
mera percepção sensorial, e ii a reunião dos elementos para a mente. portanto, a mente agrupa os
fatos do mundo inorgânico de modo a perceber num acontecimento ou relação a conseqüência dos
relacionamentos entre os fatos. É assim que a mente conduz a necessidade para a casualidade.
esclareçamos isto com alguns exemplos:
se tenho à minha frente um triângulo abc, à primeira vista eu certamente não vejo que a
soma dos três ângulos sempre equivale a um ângulo raso [180º]. isto fica claro no momento em que
eu agrupo os fatos da seguinte maneira: das figuras a seguir, imediatamente resulta que os ângulos
a’=a e b’=b. (ab e cd, e respectivamente a’b’ e c’d’, são paralelas.)
0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000c024e
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0000000c9024d0220e41b00040000002d010000030000000000
ora, se eu tiver um triângulo e traçar pelo vértice c uma reta paralela à base ab, aplicando o acima
referido quanto aos ângulos, descubro que a’=a e b’=b. como e é igual a si mesmo, todos os três
ângulos do triângulo, juntos, são necessariamente
0100090000037800000002001c00000000000400000003010800050000000b0200000000050000000c024e
34
iguais a um ângulo raso. aqui eu expliquei uma complicada relação factual reconduzindo-a a fatos
simples, por meio dos quais — pela situação que é dada à mente — a correspondente relação
necessariamente resulta da natureza das coisas dadas.
um outro exemplo é o seguinte: — eu atiro uma pedra no sentido horizontal. ela descreve uma
trajetória que reproduzimos na linha ll’. ao contemplar as forças acionadoras que entram aqui em
consideração, encontro: 1) a força impulsora que exerci; 2) a força com que a terra atrai a pedra;
3) a força de resistência do ar.
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0000000c9024d0220e41b00040000002d010000030000000000
ao refletir mais apuradamente, descubro que as duas primeiras forças são as essenciais, as
que ocasionam a peculiaridade da trajetória, ao passo que a terceira é secundária. se atuassem
apenas as duas primeiras, a pedra descreveria a trajetória ll’. eu descubro a última ao abstrair-me
completamente da terceira força e correlacionar apenas as duas primeiras. realizar isto
concretamente não é nem possível nem necessário. não posso eliminar toda e qualquer resistência;
mas para isso preciso somente captar em pensamento a essência das duas primeiras forças, para
depois estabelecer, igualmente apenas em pensamento, a necessária relação entre elas; e a
trajetória ll’ resulta como a que deveria necessariamente suceder caso apenas as duas forças
atuassem em conjunto.
desta maneira, a mente reduz todos os fenômenos da natureza inorgânica a fenômenos em
que o efeito parece resultar imediata e necessariamente do causador.
quando, tendo-se a lei do movimento da pedra como conseqüência das duas primeiras forças,
adiciona-se a terceira força, resulta a trajetória ll’. outras condições poderiam complicar ainda
mais o assunto. todo processo complexo do mundo sensorial parece um enredo daqueles fatos
simples, permeados pelo espírito, e pode ser dissólvido neles.
tal fenômeno — em que o caráter do processo resulta, de maneira clara e nítida,
imediatamente da natureza dos fatores a serem levados em consideração — é denominado por nós
fenômeno primordial ou fato fundamental.
esse fenômeno primordial é idêntico à lei natural objetiva, pois nele está expresso não
apenas que um processo sucedeu sob determinadas condições, mas que teve de suceder. compreen-
deu-se que ele tinha de suceder devido à natureza daquilo que entrou em consideração. o motivo
pelo qual, hoje em dia, o empirismo exterior é exigido de modo tão generalizado, é o fato de se
acreditar que, com qualquer suposição que ultrapasse o empiricamente dado, se esteja tateando na
incerteza. nós vemos nossa possibilidade de permanecer totalmente dentro dos fenômenos e,
apesar disso, encontrar o necessário. o método indutivo, amplamente representado hoje em dia,
nunca é capaz disto. ele procede essencialmente do seguinte modo: — ele vê um fenômeno que,
sob dadas condições, sucede de determinada maneira; uma segunda vez vê, sob condições
semelhantes, surgir o mesmo fenômeno. disso infere existir uma lei geral segundo a qual esse
acontecimento tem de suceder, e enuncia essa lei como tal. tal método permanece completamente
exterior aos fenômenos. ele não vai ao fundo das questões. suas leis são generalizações de fatos
isolados. ele sempre precisa, primeiro, esperar a confirmação da regra por esses fatos isolados.
nosso método sabe que suas leis são apenas fatos extraídos do emaranhado da casualidade e
tornados necessários. nós sabemos que, estando presentes os fatores a e b, necessariamente deve
suceder determinado efeito. nós não ultrapassamos o mundo dos fenômenos. o conteúdo da
ciência, tal como o concebemos, nada mais é senão acontecimento objetivo. apenas a forma de
combinação dos fatos é alterada. contudo, por meio desta se penetra na objetividade, justamente,
um passo além do que a experiência possibilita. nós combinamos os fatos de modo a atuarem
35
conforme sua própria natureza e apenas de acordo com ela, e de modo que essa atuação não seja
modificada por estas ou aquelas condições.
nós damos o maior valor a que estas explicações possam ser justificadas sempre que se olhe
para o real funcionamento da ciência. contradizem-nas apenas as teorias errôneas sobre o alcance
e a natureza das teses científicas. enquanto muitos de nossos contemporâneos se colocam em
contradição com suas próprias teorias ao deparar-se com o campo da pesquisa prática, a harmonia
entre toda pesquisa verdadeira e nossas explicações seria, em cada caso isolado, facilmente
demonstrável.
nossa teoria exige para cada lei natural uma forma determinada. ela pressupõe um conjunto
de fatos e constata que, quando o mesmo acontece em qualquer ponto da realidade, deve ter lugar
determinado processo.
toda lei natural tem, portanto, a seguinte forma: quando este fato atua juntamente com
aquele, surge determinado fenômeno... seria fácil demonstrar que todas as leis naturais têm
realmente esta forma: quando dois corpos de temperaturas diferentes se tocam, flui calor do mais
quente para o mais frio, até que a temperatura de ambos seja a mesma; quando um líquido está
contido em dois recipientes interligados, o nível em ambos os recipientes fica na mesma altura;
quando um corpo se encontra entre uma fonte de luz e um outro corpo, projeta uma sombra sobre
este último. aquilo que em matemática, física e mecânica não constitui mera descrição deve ser,
então, fenômeno primordial.
É na percepção dos fenômenos primordiais que todo progresso da ciência se fundamenta.
quando se consegue isolar um processo de suas conexões com outros processos e declarar que ele é
meramente a conseqüência de outros elementos da experiência, avança-se mais um passo para
dentro do mecanismo do mundo.
nós vimos que o fenômeno primordial resulta de forma pura no pensamento quando se
correlacionam, no pensar, os fatores em questão segundo sua essência. contudo, pode-se também
produzir artificialmente as condições necessárias. isto acontece no experimento científico. aí
temos sob nosso poder a ocorrência de certos fatos. não podemos, naturalmente, abstrair todas as
circunstâncias secundárias; mas existe um meio de nos afastarmos delas: — produz-se um fenômeno
em diversas modificações. deixa-se atuar uma vez esta, outra vez aquela circunstância secundária.
então se descobre que urna constante perpassa todas essas modificações. É preciso manter o
essencial justamente em todas as combinações. descobre-se que em todas essas experiências
isoladas um componente factual permanece o mesmo: ele é experiência superior na experiência; é
fato fundamental ou fenômeno primordial.
o experimento deve garantir-nos que nada mais influencie um processo determinado além
daquilo que temos em conta. nós conjugamos certas condições, cuja natureza conhecemos, e espe-
ramos o que virá resultar disso. aí temos o fenômeno objetivo como fundamento da criação
subjetiva. temos algo objetivo, que ao mesmo tempo é completamente subjetivo. o experimento
é, portanto, o verdadeiro mediador entre sujeito e objeto na ciência natural inorgânica.
os germes para nossa opinião aqui desenvolvida encontram-se na correspondência entre
göethe e schiller. as cartas de göethe e schiller do início de 1798 ocupam-se deste assunto. elas
denominam este método como empirismo racional, pois o que ele torna conteúdo da ciência não
passa de processos objetivos; contudo, esses processo objetivos são mantidos coesos por uma trama
de conceitos (leis), que nossa mente descobre neles. os processos sensoriais numa conexão a ser
captada somente pelo pensar: eis o empirismo racional. ao comparar aquelas cartas com o ensaio
de göethe der versuch als vermittler von subjekt und objekt [o experimento como mediador entre
sujeito e objeto], ver-se-á na teoria acima a conseqüência lógica disso.37
É na natureza inorgânica, portanto, que se manifesta de modo absoluto a relação geral que
constatamos entre experiêneia e ciência. a experiência comum é apenas metade da realidade. para
os sentidos existe apenas essa metade. a outra metade só existe para nossa capacidade mental de
compreensão. o espírito eleva a experiência de uma ‘manifestação aos sentidos’ à sua
[experiência] própria. nós já mostramos corno, nesse campo, é possível elevar-se do efetuado ao
37 É interessante que göethe ainda tenha escrito um segundo ensaio, onde explicita ainda mais os pensamentos sobre o
experimento. podemos reconstruir o ensaio com base na carta de schiller de 19 de janeiro de 1798. göethe divide os
métodos da ciência em: empirismo comum, que permanece nos fenômenos externos, dados aos sentidos; racionalismo, que
constrói sistemas de pensamentos baseados numa observação insuficiente e que, portanto, em vez de agrupar os fatos de
acordo com sua essência, elabora primeiro as relações para depois fantasiosamente, a partir daí, introduzir algo novo no
mundo dos fatos; e, finalmente, o empirismo racional, que não fica parado na experiência comum, mas cria condições sob as
quais a experiência revela sua essência. (na. 1886)
36
efetuante. É este último que o espírito descobre ao se aproximar do primeiro.
satisfação científica só nos é proporcionada por uma teoria quando esta nos introduz numa
totalidade coesa. porém o mundo sensorial, enquanto inorgânico, em nenhum de seus pontos se
apresenta corno algo coeso; em nenhuma parte dele se apresenta um todo individual. um processo
sempre nos aponta um outro do qual ele depende; este aponta um terceiro, e assim por diante.
onde está, aqui, uma conclusão? o mundo sensorial, enquanto inorgânico, não chega à
individualidade. apenas em sua totalidade é que é coeso. por isso, para termos um todo precisamos
empenhar-nos em conceber a totalidade do inorgânico como um sistema. esse sistema é o cosmo.
o profundo entendimento do cosmo é a meta e o ideal da ciência natural inorgânica. todo
empenho científico que não avance até aí é mera preparação um componente do todo, e não o
todo propriamente dito.
38 kritik der urteilskraft [crítica do juízo]. vide introdução, v: ‘das prinzip der formalen zweckmässigkeit der natur ist ein
tranzendentales prinzip der urteilskraft’; ademais: parte ii, ‘kritik der teleologischen urteilskraft’. (n.e. orig.)
37
sempre o impelia a olhar para cada ser em sua perfeição intrínseca. parecia-lhe uma abordagem
não-científica preocupar-se apenas com a finalidade externa de um órgão, isto é, com seu proveito
para outro. o que isso deve ter a ver com a natureza interior de uma coisa? jamais importa a göethe
para quê algo serve39, e sim, sempre e unicamente, como esse algo se desenvolve. ele não quer
observar um objeto como uma coisa concluída, e sim em sua evolução, a fim de conhecer sua
origem. spinoza o atraía particularmente40 por não admitir a externa característica de finalidade
dos órgãos e organismos. göethe exigia, para conhecer o mundo orgânico, um método justamente
tão científico quanto o que aplicamos ao mundo inorgânico.
sempre surgia novamente a necessidade de tal método na ciência natural, certamente não de
modo tão genial, porém não menos urgente. hoje, provavelmente apenas uma pequena fração dos
pesquisadores ainda duvidará da possibilidade do mesmo. se foram, porém, bem sucedidas as
tentativas que se fizeram aqui e acolá para introduzir tal método, certamente é uma outra
questão.
nisso se cometeu principalmente um grande erro. acreditava-se dever simplesmente transferir
para o reino dos organismos o método da ciência inorgânica. considerava-se o método aqui aplicado
como sendo o único científico, pensado que, se a ciência orgânica fosse cientificamente possível,
deveria sê-lo no mesmo sentido da física, por exemplo. no entanto, esquecia-se a possibilidade de
talvez o conceito de cientificidade ser muito mais amplo do que “a explicação do mundo segundo
as leis do mundo físico”. até hoje ainda não se avançou em profundidade até este conhecimento.
em vez de examinar em quê se baseia a cientificidade das ciências inorgânicas, para então buscar
um método aplicável ao mundo vivo — mantendo-se as exigências resultantes disso —,
simplesmente se declaram universais as leis obtidas naquele nível inferior da existência.
contudo, dever-se-ia examinar principalmente em quê se baseia o pensar científico. nós
fizemos isso em nosso tratado. no capítulo anterior também aprendemos que as leis inorgânicas não
são as únicas existentes, mas apenas um caso especial de toda regularidade que possa existir. o
método da física é simplesmente um caso particular de um tipo geral de pesquisa científica, no
qual se considera a natureza dos objetos em questão no campo a que serve essa ciência.
estendendo-se esse método ao campo orgânico, apaga-se a natureza específica deste último. em
lugar de pesquisar o orgânico de acordo com sua natureza, impõe-se a ele um conjunto estranho de
leis. desse modo, porém, na medida em que se nega o orgânico, jamais se virá a conhecê-lo. tal
conduta científica simplesmente repete, em nível superior, o que adquiriu num inferior; e enquanto
acredita ajustar a forma superior de existência às leis preparadas em outros campos, essa forma
escapa ao seu empenho, pois a conduta em questão não sabe mantê-la e tratá-la em sua
peculiaridade.
tudo isto provém da opinião errônea cuja crença é que o método de uma ciência seja algo
externo aos objetos da mesma, não sendo condicionado por estes, mas por nossa natureza. acre-
dita-se que se deveria pensar de determinada maneira sobre os objetos, e aliás sobre todos — sobre
todo o universo — de maneira idêntica. promovem-se investigações para demonstrar que, devido à
natureza de nossa mente, só podemos pensar de maneira indutiva, dedutiva, etc.
entretanto, com isso não se leva em conta que talvez os objetos não tolerem de modo algum
o modo de observação que lhes queiramos impor.
que é plenamente justificada a censura feita por nós à biologia atual opinando que esta não
transfere à natureza organica o princípio da abordagem científica geral, mas o da natureza
inorgânica — nos é confirmado num lançar de olhos à opinião de haeckel, certamente o mais
importante teórico da pesquisa natural da atualidade.
quando ele exige, de todo empenho científico, que... “por toda parte se faça valer a conexão
causal dos fenômenos”41, quando diz que “se a mecânica psíquica não fosse tão infinitamente com-
posta, poderíamos, caso fôssemos capazes de abranger completamente também o desenvolvimento
histórico das funções psíquicas, enquadrá-las todas numa fórmula matemática anímica”, vemos
nitidamente o que ele quer: tratar todo o mundo segundo o padrão metodológico da física.
contudo, essa exigência tampouco fundamenta o darwinismo em sua forma original, e sim em
sua interpretação atual. nós vimos que explicar um processo na natureza inorgânica significa
mostrar seu surgimento pautado por leis e oriundo de outras realidades sensoriais; deduzi-lo de
objetos que, como ele, pertencem ao mundo sensorial. mas como é que a biologia atual emprega o
princípio da adaptação e da luta pela existência, as quais, como expressão de um estado de fato,
39 vide eckermann, gespräche mit göethe, 20.2.1831. (n.e. orig.)
40 göethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. 1: einleitungen, p. lv ss. (n.e. orig.)
41 ernst haeckel, die naturanschauung von darwin, lamarck und haeckel (jena, 1882), p. 53. (na. 1886)
38
obviamente não devem ser postas em dúvida por nós? acredita-se justamente na possibilidade de
deduzir o caráter de determinada espécie das circunstâncias externas em que ela viveu, da mesma
maneira como da incidência dos raios solares se pode deduzir o aquecimento de um corpo.
esquece-se completamente que nunca se pode demonstrar esse caráter, em suas determinações
plenas de conteúdo, como uma conseqüência dessas circunstâncias. estas podem ter uma influência
determinante, mas não são a causa geratriz. nós estamos em plenas condições de dizer que, sob o
efeito desta ou daquela circunstância, uma espécie teve de desenvolver-se de modo a moldar este
ou aquele órgão em particular, mas o conteúdo, o que se refere especificamente a um órgão, não
se faz deduzir das condições externas. suponhamos que um ser orgânico tenha as propriedades
essenciais a b c, tendo alcançado o desenvolvimento sob a influência de determinadas cir-
cunstâncias externas. com isso suas propriedades adotaram a configuração especial a’ b’ c’. se
ponderarmos essas influências, compreenderemos que a se desenvolveu em forma de a’, b em b’, c
em c’. contudo, a natureza específica de a, b, e jamais se nos poderá evidenciar como resultado de
circunstâncias exteriores.
antes de mais nada, devemos direcionar nosso pensar ao seguinte: de onde tomamos o
conteúdo daquele elemento genérico, do qual consideramos caso especial o ser orgânico isolado?
sabemos muito bem que a especialização provém de uma influência externa; mas a própria forma
especializada deve ser deduzida de um princípio interno. do fato de ter-se desenvolvido justamente
essa forma particular nós temos conhecimento ao estudar o meio ambiente de um ser. porém essa
forma especial é algo em si e por si; nós a enxergamos com certas propriedades. nós vemos o que
importa. ao fenômeno exterior se antepõe um conteúdo estruturado em si, que nos fornece o meio
necessário para deduzirmos aquelas propriedades. na natureza inorgânica, nós percebemos um fato
e para sua explicação procuramos um segundo, um terceiro e assim por diante; e o resultado é que
aquele primeiro nos parece a conseqüência necessária do último. no mundo orgânico não ocorre
assim. aqui nós precisamos, além dos fatos, de mais um fator. devemos fundamentar as influências
das condições externas em algo que não se deixe determinar passivamente por elas, e sim que se
autodetermine ativamente sob essas influências.
qual é, porém, esse fundamento? não pode ser nada além daquilo que no particular se
manifesta sob forma de generalidade. no particular, porém, sempre se manifesta um organismo
determinado. aquele fundamento é, portanto, um organismo sob forma de generalidade — uma
imagem genérica do organismo, compreendendo em si todas as formas particulares do mesmo.
de acordo com o procedimento de göethe, chamemos esse organismo genérico de tipo.42 seja o
que a palavra ‘tipo’ possa significar segundo sua evolução linguística, nós a utilizamos nesse sentido
goethiano, e com esse termo nada mais cogitamos além do que foi mencionado. esse tipo não se
encontra realizado em toda a sua perfeição em nenhum organismo individual. apenas nosso pensar
racional está apto a apoderar-se do mesmo, extraindo-o dos fenômenos como imagem genérica. o
tipo é, com isso, a idéia do organismo: a animalidade no animal, a planta genérica na planta
específica.
sob esse tipo não se deve imaginar nada de fixo. ele não tem absolutamente nada a ver com o
que agassiz43 o mais importante opositor de darwin, chamava de um ‘pensamento criador encarnado
de deus’. o tipo é algo inteiramente fluido, do qual derivam todos os gêneros e espécies
particulares que se podem considerar como subtipos, tipos especializados. o tipo não exclui a teoria
da descendência. ele não contradiz o fato de que as formas orgânicas se desenvolvem umas das
outras; é apenas o protesto racional contra a opinião de que a evolução orgânica transcorre
meramente em sucessivas formas objetivas (sensorialmente perceptíveis). trata-se daquilo que
subjaz a toda essa evolução, estabelecendo a conexão nessa infinita variedade; é o interior daquilo
que presenciamos como as formas externas dos seres vivos. a teoria darwinista pressupõe o tipo.
o tipo é o verdadeiro organismo primordial; conforme se especialize idealmente, será planta
primordial ou animal primordial. nenhum ser vivo individual, sensorialmente real, pode ser tipo. o
que haeckel ou outros naturalistas consideram forma primordial já é uma estrutura específica; é
justamente a estrutura mais simples do tipo. o fato de, temporalmente, este aparecer primeiro sob
a forma mais simples não implica que as formas temporais posteriores resultem como conseqüência
42 vide, por exemplo, göethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. 1: erster entwurf einer allgemeinen einleitung
in die vergleichende anatomie, ausgehend von der osteologie, p. 239 ss. (n.e. orig.)
43 louis agassiz (1807—1873), geólogo e biólogo suíço que lecionou por longo tempo na américa do norte. vide sua obra
beiträge zur naturgeschichte der vereinigten staatten von vereinigten staaten von nordamerika, vol. 1: ein versuch über
klassificalion (an essay on classification, boston, 1857); vide a discussão de haeckel com agassiz em natürliche
schöpfungsgeschichte (6. cd. berlim, 1875), p. 55 ss. (n.e. orig.)
39
das formas temporais precedentes. todas as formas aparecem como conseqüência do tipo; tanto a
primeira quanto a última são manifestações do mesmo. É nele que devemos fundamentar uma ver-
dadeira biologia, e não simplesmente querer deduzir as diversas espécies animais ou vegetais umas
das outras. É como um fio vermelho que o tipo se estende através de todos os graus evolutivos do
mundo orgânico. devemos segurá-lo para, com ele, percorrer esse grande e diversificado reino das
formas. então ele se nos tornará compreensível — caso contrário se desintegrará diante de nós,
como todo o restante do mundo da experiência, numa multidão desconexa de pormenores. mesmo
ao acreditar que algo posterior, mais complicado, mais composto, remonte a uma forma antiga mais
simples, tendo sua origem nesta última, nós nos enganamos, pois apenas deduzimos uma forma
específica de outra forma específica.
friedrich theodor vischer expressou certa vez44, em relação à teoria darwinista, a opinião de
que ela torna necessária uma revisão do nosso conceito de tempo. aqui nós chegamos a um ponto
onde nos fica evidente o sentido em que deveria ocorrer tal revisão. ela teria de mostrar que a
derivação de algo posterior de algo mais antigo não é explicação alguma; que o primeiro no tempo
não é o princípio. toda derivação deve ocorrer de um princípio, e no máximo se deveria mostrar
quais fatores atuaram para que uma espécie se haja desenvolvido temporalmente antes de outra.
o tipo desempenha no mundo orgânico o mesmo papel que a lei natural no inorgânico. assim
como esta nos fornece a possibilidade de conhecer cada acontecimento isolado como membro de
um grande todo, o tipo nos coloca em condicões de considerar o organismo isolado como uma forma
específica da configuração primordial.
já indicamos que o tipo não é uma forma conceitual congelada e concluída, e sim é fluido,
podendo adotar as mais variadas configurações. o número dessas configurações é infinito, pois
aquilo que transformou a forma primordial em forma individual, específica, não tem significado
algum para a própria forma primordial. É justamente do mesmo modo como uma lei natural rege
infinitos fenômenos isolados, pois as determinações especiais que aparecem no caso individual nada
têm a ver com a lei.
trata-se, porém, de algo essencialmente diferente do que ocorre na natureza inorgânica. lá se
tratava de mostrar que determinado fato sensorial pode suceder assim e não de modo diferente,
porque existe esta ou aquela lei natural. aquele fato e a lei se defrontam como dois fatores
separados, e não é necessário mais nenhum trabalho espiritual além de lembrarmos, ao vermos um
fato, da lei que o rege. no caso de um ser vivo e seus fenômenos isso é diferente. aí se trata de
desenvolver a forma individual, que aparece em nossa experiência, do tipo que tivemos de captar.
devemos realizar um processo espiritual de espécie essencialmente diversa. não devemos
confrontar, com o fenômeno isolado, o tipo como algo pronto tal qual a lei natural.
o fato de todo corpo cair ao solo quando não impedido por nenhuma circunstância secundária,
de forma tal que os caminhos percorridos em tempos sucessivos se proporcionam como 1 : 3 : 5 : 7,
etc., é uma lei pronta, determinada. É um fenômeno primordial, que aparece quando duas massas
(a terra e corpos sobre a mesma) se relacionam mutuamente. se no campo de nossa observação
penetrar um caso especial sujeito a esta lei, bastará considerarmos os fatos sensorialmente
observáveis aplicando aquela relação que a lei fornece, e a veremos confirmada. nós remetemos o
caso isolado à lei. a lei natural expressa a conexão dos fatos separados no mundo sensorial; no
entanto, continua existindo como tal frente ao fenômeno individual. em se tratando do tipo,
precisamos extrair evolutivamente da forma primordial aquele caso particular que se nos
apresenta. não podemos confrontar o tipo com a figura individual a fim de ver como ele regula esta
última; temos de fazê-la surgir do mesmo. a lei domina o fenômeno como algo situado acima dele;
o tipo aflui para o ser vivo individual, identificando-se com ele.
por isso, se a biologia quiser ser ciência no sentido da mecânica ou da física, deverá mostrar o
tipo como a forma mais genérica e, depois, também nas várias formas particulares ideais. a
mecânica também é uma compilação das várias leis naturais, em que as condições reais são
admitidas hipoteticamente, sem exceção. não deveria ser diferente na biologia. também aqui se
deveriam adotar hipoteticamente determinadas formas nas quais o tipo se desenvolve, caso se
quisesse ter uma ciência racional. dever-se-ia então mostrar como essas formações hipotéticas
sempre podem ser remetidas a uma forma determinada que se apresente à nossa observação.
da mesma maneira como no inorgânico nós remetemos um fenômeno a uma lei, aqui nós
desenvolvemos uma forma especial da forma primordial. a ciência orgânica não se origina pelo con-
44 altes und neues, três cadernos em um volume (stuttgart, 1881—82, terceiro caderno: philosophic und naturwissenschaft,
p. 223. (n.e. orig.)
40
fronto externo entre o genérico e o específico, mas pela evolução de uma forma originando-se de
outra.
da mesma maneira como a mecânica é um sistema de leis naturais, a biologia deve ser uma
sucessão de formas evolutivas do tipo. só que lá compilamos as leis isoladas e as ordenamos para
um todo, enquanto aqui devemos fazer com que cada forma isolada se origine vivamente da outra.
aqui é possível uma objeção. se a forma típica é algo completamente fluido, como é possível
estabelecer como conteúdo da biologia uma cadeia de tipos especiais enfileirados? pode-se muito
bem imaginar que em cada caso particular observado se reconheça uma forma especial do tipo,
mas para fins científicos não épossível simplesmente colecionar tais casos realmente observados.
contudo, pode-se fazer algo diferente. pode-se fazer o tipo percorrer sua série de
possibilidades e, então, sempre fixar (hipoteticamente) esta ou aquela forma. assim se consegue
uma série de formas, deduzidas mentalmente do tipo, como conteúdo de uma biologia racional.
É possível uma biologia que seja tão ciência quanto a mecânica, no sentido mais rigoroso. só
que seu método é diferente. o método da mecânica é demonstrativo. cada demonstração se apóia
em certa regra. sempre existe uma premissa determinada (isto é, são indicadas possíveis condições
de experiência), e então se determina o que sucede quando essas premissas são realizadas.
compreendemos então um fenômeno isolado com base na lei. pensamos da seguinte forma: sob
determinadas condições ocorre um fenômeno; as condições existem, e por isso o fenômeno tem de
ocorrer. É este o nosso processo mental ao nos aproximarmos de um acontecimento do mundo
inorgânico a fim de explicá—lo. este é o método demonstrativo. ele é científico porque impregna
completamente um fenômeno com o conceito, fazendo com que a percepção e o pensar coincidam.
mas com esse método demonstrativo nós nada podemos empreender na ciência do orgânico. o
tipo justamente não determina que, sob certas condições, ocorra determinado fenômeno; ele nada
estabelece sobre uma relação entre partes que, estranhas entre si, passem a confrontar-se
exteriormente. ele apenas determina a regularidade de suas próprias partes; não aponta para além
de si, como a lei natural. portanto, as formas orgânicas particulares só podem ser desenvolvidas
com base na configuração genérica do tipo, e os seres orgânicos que se oferecem à experiência
precisam coincidir com qualquer de tais formas derivadas do tipo. o método demonstrativo deve ser
substituído pelo método evolutivo. aqui não se constata que as condições externas interagem desta
maneira, mostrando portanto determinado resultado, e sim que, sob determinadas condições
externas, uma forma particular se originou do tipo. eis a diferença radical entre ciência inorgânica
e orgânica. nenhum método de pesquisa se baseia nessa diferença de maneira tão conseqüente
quanto o de göethe. ninguém como göethe reconheceu que deve ser possível uma ciência orgânica
sem nenhum misticismo obscuro sem teleologia, sem admitir determinados pensamentos sobre a
,
criação; mas tampouco ninguém afastou de si mais decisivamente a pretensão de, aqui,
empreender algo com os métodos da ciência natural inorgânica.45
como vimos, o tipo é uma forma científica mais abrangente do que o fenômeno primordial.
ele também pressupõe uma atividade mais intensiva da nossa mente do que este último. ao refle-
tirmos sobre as coisas da natureza inorgânica, a percepção dos sentidos nos proporciona o
conteúdo. É nossa organização sensorial que aqui já nos oferece o que, no orgânico, só recebemos
por intermédio da mente. para se perceber doce, ácido, calor, frio, luz, cor, etc., bastam os
sentidos sadios. no pensar nós temos de encontrar, para a matéria, apenas a forma. no tipo,
contudo, forma e conteúdo estão intimamente ligados. por isso o tipo não determina o conteúdo de
maneira puramente formal, como o faz a lei; ele o permeia de maneira viva, de dentro, como
sendo o seu próprio. À nossa mente cabe a tarefa de participar produtivamente na geração do
45 em minhas obras se encontrará, de diversas maneiras, menção a ‘misticismo e ‘mística’. que não há contradição entre
essas diversas maneiras, conforme se tem desejado fantasiar, pode-se deduzir em todos os contextos. e possível formar um
conceito geral de ‘mística’, segundo o qual ela abrange tudo o que se pode experimentar do mundo mediante uma vivência
anímica interior. este conceito não pode ser contestado de saída, pois tal experiência existe. ela não só revela algo do inte-
rior humano, mas a respeito do mundo. É preciso ter olhos onde se desenrolem processos para que se possa experimentar
algo sobre o reino das cores. contudo, graças a isto não se aprende algo apenas sobre os olhos, mas sobre o mundo. É preciso
ter um órgão anímico interior para conhecer certas coisas do mundo.
no entanto, é preciso acrescentar a mais completa clareza conceitual às experiências do órgão místico para surgir o
conhecimento. porém existem pessoas que querem refugiar-se no ‘íntimo’ para escapar à clareza conceítual. estas
denominam ‘mística’ aquilo que conduz o conhecimento, retirando-o da luz das idéias, para as trevas do mundo dos
sentimentos — do mundo dos sentimentos não iluminado por idéias. minhas obras falam o tempo todo contra este tipo de
mística; cada página de meus livros está escrita em favor daquela mística que conserva a clareza de idéias por meio dos
pensamentos, e que transforma em órgão anímico da percepção o sentido místico, que atua na mesma região do ser humano
em que reinam ordinariamente os sentimentos obscuros. este sentido é, em relação ao espiritual, plenamente comparável
ao olho ou ouvido físico. (na. 1924)
41
conteúdo, simultaneamente à da forma.
desde tempos remotos, a maneira de pensar à qual o conteúdo aparece em imediata conexão
com o formal sempre foi denominada intuitiva.
repetidamente a intuição tem surgido como princípio científico. o filósofo inglês reid46 chama
de intuição o fato de simultaneamente haurirmos, da percepção dos fenômenos externos
(impressões sensoriais), a convicção da existência dos mesmos. jacobi entendia que em nosso
sentimento de deus não nos é dado apenas este mesmo sentimento, mas também a garantia de que
deus existe.47 também este juízo se denomina intuitivo. como se vê, o característico é que no
conteúdo sempre deve ser dado mais do que este próprio; que se tenha conhecimento de uma
determinação intelectual, sem prova, simplesmente por convicção imediata. acredita-se não ser
necessário comprovar os atributos mentais ‘ser etc., do objeto perceptual: nós os possuímos em
unidade inseparável com o conteúdo.
no caso do tipo, no entanto, isto realmente ocorre. por isso ele não pode fornecer nenhum
meio de comprovação simplesmente oferecer a possibilidade de desenvolver cada forma particular
com base em si mesmo. portanto, nossa mente precisa atuar muito mais intensamente na
compreensão do tipo do que na compreensão da lei natural. juntamente com a forma, ela deve
gerar o conteúdo. precisa assumir uma atividade que na ciência natural inorgânica é assumida pelos
sentidos, e que denominamos ‘contemplação’. neste grau superior, portanto, a própria mente deve
tornar-se contemplativa. nosso juízo deve contemplar pensando e pensar contemplando.48 aqui nós
lidamos, conforme explicou göethe pela primeira vez, com um juízo contemplativo. com isto
göethe comprovou existir no espírito humano, como forma necessária de compreensão, aquilo que
kant pretendia ter demonstrado não competir ao homem, dada toda a disposição deste.
se o tipo representa, na natureza orgânica, a lei natural (fenômeno primordial) da natureza
inorgânica, a intuição (juízo contemplativo) representa o juízo demonstrativo (reflexivo). assim
como se acreditava poder aplicar à natureza orgânica49 as mesmas leis válidas para um grau inferior
de conhecimento, também se entendia que o mesmo método valesse aqui como lá. ambas as coisas
são um erro.
muitas vezes a intuição foi tratada com muito desprezo na ciência. considerou-se uma falha
do espírito de göethe o fato de ele querer alcançar verdades científicas com a intuição. o que é
alcançado pelo caminho intuitivo é, na verdade, considerado bem importante por muitos quando se
trata de uma descoberta científica. aí, conforme se diz, o fato de ocorrer uma idéia leva mais
longe do que o pensar educado metodicamente. É que freqüentemente se denomina intuição
quando alguém encontra por acaso algo certo, de cuja verdade o pesquisador só se convence com
muitos rodeios. no entanto, sempre se nega que a própria intuição possa ser um princípio da
ciência. o que se revelou à intuição precisa ainda ser comprovado posteriormente — segundo se
pensa — para ter valor científico.
foi assim que também se consideraram as conquistas científicas de göethe como idéias cheias
de espírito, que só depois foram confirmadas pela ciência rigorosa.
para a ciência orgânica, no entanto, a intuição é o método correto. de nossas explicações se
sobressai nitidamente o fato de o espírito de göethe, justamente por estar aberto à intuição, ter
encontrado o caminho correto no âmbito orgânico. o método apropriado à ciência orgânica
coincidia com a constituição de sua mente. por isso, tudo lhe ficava mais claro quanto mais ela se
distinguia da ciência natural inorgânica. para ele, uma se esclarecia na outra. por isso ele também
delineou com traços bem marcantes a essência do inorgânico.
para o menosprezo com que se trata a intuição concorre — e não menos o fato de se achar
que não se pode atribuir às suas conquistas o mesmo grau de credibilidade das ciências demons-
trativas. freqüentemente, só se denomina saber aquilo que se demonstrou; todo o resto é crença.
É preciso ponderar que a intuição significa algo totalmente diverso, no âmbito da nossa
46 thomas reid (17 10—1796), an inquiry into the human mind of common principle of common sense (7. ed. edinburgh,
1814), cap. ii, 7. aí é descrito o processo com a palavra ‘sugestão’, que na tradução alemã (3. ed. leipzig, 1782) foi
substituida pela palavra ‘intuição. (n.e. orig.)
47 “a revelação primordial de deus ao homem não é nenhuma revelação em imagem e palavra, mas um despontar no mais
íntimo sentimento.” friedrich heinrich jacobis werke, 6 vols. (leipzig, 1812—1825), vol. 3, p. xx. vide tb. op. cit., vol. 3, von
göttlichen dingen, p. 317 et al. (n.e. orig.)
48 vide os ensaios de göethe bedeutende fördernis durch ein einziges geistreiches wort, in goethes naturwissenschaftliche
schriften (cit.), vol. ii, p. 31; e anschauende urteilskraft, ibidem, vol. i, pp. 115—116. vide tb. kant, kritik der urteilskraft
[crítica do juízo], § 77. (n.e. orig.)
49 em edicões anteriores do original constava inorgânica, erro que foi corrigido na última edição do mesmo e,
conseqüentemente, nesta nova traduçáo brasileira. (n.e.)
42
direcão científica — que está convicta de captarmos em essência, no pensar, o cerne do mundo —
do que naquela que transfere esse cerne para um além insondável. quem, no mundo que se nos faz
presente na medida em que o vivenciamos ou o permeamos com nosso pensar, nada mais vê do que
um reflexo, uma imagem de um além, de algo desconhecido e atuante — e que permanece oculto
atrás desse envoltório não só ao primeiro olhar, mas a despeito de toda a pesquisa científica, só no
método demonstrativo poderá enxergar um substituto para o deficiente acesso à essência das coi-
sas. como não admite a opinião de que uma concatenação mental surja diretamente por meio do
conteúdo essencial dado no pensamento, isto é, por meio da própria coisa, ele crê só poder
sustentá-la colocando-a em sintonia com algumas convicções fundamentais (axiomas) — que, por
tão simples, nem são capazes de demonstração e nem precisam dela. sendo-lhe então feita uma
afirmação científica sem demonstração, mormente uma que, segundo toda a sua natureza, exclua o
método demonstrativo, esta lhe parece imposta de fora; uma verdade se aproxima dele sem que
ele conheça as razões de sua validade. ele acredita não possuir um saber, um discernimento da
coisa; acredita poder apenas entregar-se a uma crença de que fora de sua capacidade pensante
existiriam quaisquer razões para sua validade.
nossa cosmovisão não está exposta ao perigo de precisar considerar os limites do método
demonstrativo igualmente como limites da convicção científica. ela nos conduziu à opinião de que
o cerne do mundo aflui para o nosso pensar; de que não só pensamos sobre a essência do mundo,
mas de que o pensar é um caminhar junto com a essência da realidade. e com a intuição não nos é
imposta de fora uma verdade, pois para o nosso ponto de vista não existe um exterior ou interior da
maneira como supõe a recém-caracterizada teoria científica oposta à nossa. para nós a intuição é
uma percepção direta, uma penetração na verdade, dando-nos tudo o que importa no tocante a
esta última. ela se realiza totalmente naquilo que nos é dado em nosso juízo intuitivo. o elemento
característico da crença, ou seja, o fato de apenas nos ser dada a verdade pronta, e não as causas,
e de estarmos privados do conhecimento intrínseco da coisa em questão, falta aqui
completamente. o conhecimento adquirido pelo caminho da intuição é tão científico quanto o
conhecimento demonstrado.
cada organismo isolado é o aperfeiçoamento do tipo em forma particular. É uma
individualidade, que regula e determina a si mesma a partir de um centro. É uma totalidade coesa,
o que na natureza inorgânica é constituído apenas pelo cosmo.
o ideal da ciência inorgânica é captar a totalidade de todos os fenômenos como sistema
unitário, a fim de enfrentarmos cada fenômeno isolado com a consciência de que o conhecemos
como membro do cosmo. na natureza orgânica, em contrapartida, o ideal deve ser ter no tipo e em
suas formas manifestas, na maior perfeição possível, aquilo que vemos desenvolver-se na seqüência
dos seres individuais. a realização do tipo através de todas as manifestações é aqui o fator decisivo.
na ciência inorgânica existe o sistema, e, na orgânica, a comparação (de cada forma individual com
o tipo).
a análise espectral e o aperfeiçoamento da astronomia estendem ao universo inteiro as
verdades obtidas no restrito domínio do terrestre. com isto se aproximam do primeiro ideal. o
segundo será realizado quando o método comparativo empregado por göethe for reconhecido em
todo o seu alcance.
f. as ciências humanas
43
como tais, nunca chegariam à existência. na verdade haveria seres que perceberiam o efetuado (o
mundo sensorial), mas não o efetuante (a regularidade intrínseca). É realmente a forma genuína, e
até mesmo a mais verdadeira forma da natureza, a que se manifesta na mente humana, enquanto
para um mero ente sensorial existe apenas o lado exterior dela. a ciência tem aqui um papel
mundialmente significativo: ela é a conclusão da obra da criação. É a luta da natureza consigo
mesma desenrolando-se na consciência do ser humano. o pensar é o último componente na
seqüência dos processos que formam a natureza.
não é o que ocorre com as ciências humanas. aqui nossa consciência lida com o próprio
conteúdo espiritual: com o espírito humano individual, com as criações da cultura, da literatura,
com as sucessivas convicções científicas, com as criações da arte. o elemento espiritual é captado
pelo espírito. aqui a realidade já contém o ideal, a as leis reguladoras, que em outro âmbito só se
revelam na concepção mental. o que nas ciências naturais é apenas produto da reflexão sobre os
objetos, aqui já é inato a eles.
a ciência desempenha um papel diferente. a essência já existiria no objeto sem seu trabalho.
e com atos, criações e idéias humanas que nós lidamos. e uma confrontação do ser humano consigo
mesmo e com sua espécie. a ciência tem, aqui, uma missão diferente a cumprir do que perante a
natureza.
novamente essa missão surge, a princípio, como uma necessidade humana. assim como, frente
à realidade da natureza, a necessidade de encontrar a idéia da mesma surge primeiramente como
anseio do nosso espírito, também a tarefa das ciências humanas existe primeiramente como
impulso humano. novamente, é apenas um fato objetivo que se manifesta como necessidade
subjetiva.
o homem não deve atuar, tal qual o ser da natureza inorgânica, sobre outro ser segundo
normas exteriores, segundo leis que o dominem; tampouco deve ser simplesmente a forma indivi-
dual de um tipo genérico, e sim propor a si mesmo o objetivo, a meta de sua existência, de sua
atividade. se seus atos são resultados de leis, essas leis precisam ser as que ele outorga a si mesmo.
o que ele é em si, o que ele é entre seus semelhantes, no estado e na história, não pode ocorrer
por determinação externa. ele precisa sê-lo por si mesmo. o modo como ele se encaixa na
estrutura do mundo depende dele próprio. ele precisa encontrar o ponto para participar do
mecanismo do mundo. É aqui que as ciências humanas recebem sua tarefa. o homem precisa conhe-
cer o mundo espiritual para, segundo este conhecimento, determinar sua participação no mesmo.
aí surge a missão que a psicologia, a etnologia e a ciência da história têm a cumprir.
a essência da natureza é o fato de a lei e a atividade estarem separadas, parecendo que esta
é dominada por aquela; a essência da liberdade, ao contrário, é o fato de ambas coincidirem,
sendo que o efetuante se realiza imediatamente no efeito e o efetuado se regula a si mesmo.
as ciências humanas são, portanto, eminentemente ciências da liberdade. a idéia de
liberdade tem de ser seu ponto central, a idéia que as domina, o fato de as ‘cartas estéticas’ de
schiller50 ocuparem lugar tão elevado é por quererem encontrar a essência da beleza na idéia da
liberdade, pois a liberdade é o princípio que as impregna.
o espírito ocupa na totalidade, no todo do universo, apenas aquele lugar que, como
indivíduo, ele atribui a si. enquanto na biologia deve ser sempre focalizado o genérico, a idéia do
tipo, nas ciências humanas é a idéia da personalidade que deve ser fixada. o que importa não é a
idéia tal como se manifesta na generalidade (tipo), mas sim como se apresenta no ser singular
(indivíduo). naturalmente o determinante não é a personalidade isolada casual, esta ou aquela
personalidade, mas sim a personalidade si — porém não se desenvolvendo por si em formações
especiais e só assim vindo à existência sensorial, mas de maneira auto-suficiente, coesa,
encontrando sua determinação em si própria.
o tipo tem a determinação de realizar-se tão-somente no indivíduo. a pessoa tem, já como
algo ideal, a de conquistar uma existência baseada realmente em si mesma. e totalmente diferente
falar de uma humanidade em geral e de uma regularidade geral aplicável à natureza. nesta última,
o particular é condicionado pelo geral; na idéia de humanidade, a generalidade é condicionada pelo
particular. se conseguirmos descobrir leis gerais para a história, estas só serão gerais na medida em
que houverem sido propostas como metas ou ideais pelas personalidades históricas. este é o
contraste intrínseco entre a natureza e o espírito. a primeira exige uma ciência que ascende do
imediatamente dado, como algo condicionado, ao que é apreensível no espírito como algo
condicionante; o último exige uma ciência que progrida do elemento dado, como condicionante, ao
50 vide friedrich von schiller, a educação estética do homem (são paulo: iluminuras 1989). (n.e.)
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condicionado. o fato de o particular ser ao mesmo tempo o que fornece as leis é uma característica
das ciências humanas; o fato de este papel caber ao geral caracteriza as ciências naturais.
o que na ciência natural vale apenas como ponto de transição o particular — é só o que nos
interessa nas ciências humanas. o que procuramos naquela o geral — só entra aqui em consideração
na medida em que nos esclarece sobre o particular.
seria contra o espírito da ciência permanecer, perante a natureza, no imediatismo do
particular. no entanto, seria também diretamente mortal para o espírito se, por exemplo, se qui-
sesse enquadrar a história grega num esquema conceitual geral. ali, o sentido preso ao fenômeno
não conquistaria ciência alguma; aqui, o espírito que procedesse segundo um padrão genérico
perderia todo o sentido para o individual.
51 vide, por exemplo, o texto de fichte die bestimmung des menschen. (n.e. orig.)
52 vide f. h. jacobi, von göttlichen dingen (cit.), p. 234 s. (n.e. orig.)
45
encontra como unidade na realidade multiforme, ele deve encontrá-lo em sua individualidade como
existência imediata. o que ele contrapõe à particularidade como sendo algo genérico, ele deve
atribuí-lo à sua individualidade como sendo a própria essência desta.
de tudo isto se deduz que só é possível alcançar uma verdadeira psicologia ao se compreender
a natureza do espírito como sendo ativa. em nossa época quis-se colocar, em lugar deste método,
um outro que torna objeto da psicologia os fenômenos em que o espírito se revela, e não o próprio
espírito. acredita-se poder levar as diversas expressões do espírito a uma correlação externa, tal
como no caso dos fatos naturais inorgânicos. assim, quer-se fundar uma ‘teoria da alma [porém]
sem alma’.53 de nossas observações se deduz que com esse método perde-se de vista justamente o
que importa. dever-se-ia destacar o espírito de suas exteriorizações e remontar a ele como o
produtor delas. as pessoas se limitam às mesmas e se esquecem dele. portanto, também aqui se
deixaram seduzir pelo falso ponto de vista que quer aplicar os métodos da mecânica, da física, etc.
a todas as ciências.
a alma unitária nos é dada à experiência da mesma maneira como seus atos isolados. cada um
é cônscio de que seu pensar, sentir e querer partem de seu ‘eu’. toda atividade de nossa per-
sonalidade está ligada a esse centro do nosso ser. quando, numa ação, não se considera essa ligação
com a personalidade, ela deixa inteiramente de ser um fenômeno psíquico: ou se subordina ao
conceito da natureza inorgânica ou ao da natureza orgânica. caso haja duas bolas sobre a mesa e
eu impulsione uma em direção à outra, abstraindo-se de minha intenção e de meu querer tudo se
resolve em acontecimento físico ou fisiológico. em todas as manifestações da mente — pensar,
sentir, querer —, o que importa é reconhecê-las em sua essência como expressões da per-
sonalidade. É nisto que se baseia a psicologia.
porém o homem não pertence apenas a si próprio; ele também pertence à sociedade. o que se
revela nele não é apenas sua individualidade, mas também a da nacionalidade a que ele pertence.
o que ele realiza se origina de sua força, mas também da força plena de seu povo. com sua missão
ele cumpre uma parte da missão de seu povo. o que importa é que seu lugar no âmbito de seu povo
seja tal que ele possa fazer valer plenamente a potência de sua individualidade. isto só é possível
quando o organismo social permite ao indivíduo encontrar o lugar onde ele seja capaz de fincar sua
alavanca. não deve ficar entregue ao acaso a eventualidade de ele encontrar esse lugar.
pesquisar a maneira como a individualidade se manifesta e vive dentro da comunidade de seu
povo é assunto da etnologia e da ciência política. a individualidade nacional é o objeto desta
última. ela tem de mostrar a forma a ser adotada pelo organismo estatal para a individualidade
nacional se expressar nele. a constituição que um povo outorga a si mesmo deve evoluir da essên-
eia mais íntima deste. também aqui decorrem erros consideráveis. não se considera a ciência
política como uma ciência experimental. acredita-se poder estruturar a constituição de todos os
povos segundo um certo padrão. a constituição de um povo nada mais é, porém, do que seu caráter
individual colocado em formas legais bem determinadas. quem queira prescrever a direção em que
determinada atividade de um povo deve mover-se não pode impingir nada de fora a ele: deve
simplesmente expressar o que reside inconscientemente no caráter do povo. “não é o homem
inteligente que rege, e sim o intelecto; não é o homem racional, e sim a razão”, diz göethe.54
conceber a individualidade étnica como racional é o método da etnologia. o homem pertence
a um todo cuja natureza é a organização da razão. também aqui podemos citar novamente uma
importante frase de göethe: “o mundo dotado de razão deve ser visto como uma grande
individualidade imortal, que realiza incessantemente o necessário e, por isso, torna-se até mesmo
senhor do casual.”55 assim como a psicologia tem de pesquisar a essência da individualidade
particular, a etnologia (psicologia dos povos) tem de pesquisar aquela ‘individualidade imortal’.
nossa concepção das fontes da nossa atividade cognitiva não pode deixar de ter influência
sobre a dos nossos atos práticos. o homem age segundo determinações pensamentais que lhe são
53 friedrich albert lange (1828—1875) cunhou a expressão ‘psicologia sem alma’ em geschite des materialismus und kritik
seiner bedeutung in der gegenwart (iserlohn, 1866; 10. ed. 1821), p. 462: ‘zweites buch, iii. die naturwissenschaftliche
psychologie’. (n.e. orig.)
54 goethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. v: sprüche in prosa, p. 482. (n.e. orig.)
55 ibidem, p. 482
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inerentes. o que ele realiza orienta-se segundo intenções, metas que ele se propõe. contudo, é
inteiramente natural que essas metas, intenções, idéias, etc. tragam o mesmo caráter que o
restante mundo pensamental do homem. e assim haverá uma verdade prática da ciência
dogmática, com um caráter essencialmente diferente da que resulta de nossa teoria do
conhecimento. se as verdades que o homem alcança na ciência forem condicionadas por uma
necessidade objetiva sediada fora do pensar, também o serão os ideais em que ele baseia o seu
atuar. então o homem estará agindo segundo leis cuja fundamentação lhe falta, no sentido
objetivo: ele estará imaginando uma norma prescrita de fora para o seu atuar. esse, porém, é o
caráter do mandamento que o homem tem de observar. o dogma, como verdade prática, é
mandamento moral.
É bem diferente quando a fundamentação se dá em nossa teoria do conhecimento. esta não
reconhece nenhum fundamento das verdades a não ser o conteúdo pensamental existente nelas. ao
surgir, portanto, um ideal moral, é a força interior situada em seu conteúdo que guia o nosso atuar.
não é pelo fato de um ideal nos ser dado como lei que nós agimos de acordo com ele, e sim porque
o ideal, graças ao seu conteúdo, atua em nós, guiando-nos. o impulso para agir não está fora, mas
dentro de nós. ao mandamento do dever nos sentiríamos submissos; deveríamos agir de
determinada maneira por ele assim o ordenar. aí vem primeiro o dever e depois o querer, que tem
de sujeitar-se àquele. segundo nossa opinião, não é esse o caso. o querer é soberano. ele só
executa o que, como conteúdo pensamental, reside na personalidade humana. o homem não se
submete a receber leis de um poder externo; ele é seu próprio legislador.
quem mais deveria outorgá-las a ele, segundo nossa cosmo-visão? o fundamento cósmico se
derramou completamente no mundo; ele não se retirou do mundo a fim de guiá-lo de fora ele o —
movimenta de dentro, não se esquivou dele.56 a forma mais elevada sob a qual ele se manifesta
dentro da realidade da vida comum é o pensar, e com este a personalidade humana. se com isso o
fundamento cósmico tem metas, estas são idênticas às metas a que o homem se propõe quando se
auto-realiza. não é pesquisando quaisquer mandamentos do regente universal que ele age segundo
as intenções deste, e sim atuando segundo seus próprios critérios; pois é neles que se manifesta
esse regente universal. este não vive como uma vontade em qualquer lugar fora do homem; ele se
desfez de toda vontade própria para tornar tudo dependente da vontade humana. para que o
homem possa ser seu próprio legislador, todos os pensamentos sobre determinações extra-humanas
do mundo, e coisas semelhantes, têm de ser abandonadas.
nesta oportunidade, chamamos a atenção para o interessantíssimo ensaio de kreyenbühl no
periódico philosophische monatshefte [cadernos filosóficos mensais], vol. 18, nº3.57 ele expõe de
maneira correta como as máximas do nosso atuar procedem de determinações imediatas de nossa
individualidade; e como nada do que é eticamente grandioso é incutido pelo poder da lei moral, e
sim executado em virtude do impulso direto de uma idéia individual.
somente esta opinião possibilita uma verdadeira liberdade do homem. se o homem não
trouxer em si os fundamentos do seu atuar, precisando orientar-se conforme mandamentos, estará
agindo sob um jugo, estará sujeito a uma necessidade, quase como um mero ser natural.
nossa filosofia é, portanto, eminentemente uma filosofia da liberdade.58 primeiro mostra
teoricamente como devem ser suprimidas todas as forças, etc. que guiavam o mundo de fora, para
que então o homem se torne seu próprio senhor, no melhor sentido da palavra. quando o homem
age moralmente, para nós isto não é cumprimento do dever, mas a expressão de sua natureza
completamente livre. o homem não age porque deve, e sim porque quer. göethe também tinha esta
opinião em vista ao dizer o seguinte:
portanto, não existe outro impulso para o nosso atuar além do nosso discernimento. sem que
se acrescente qualquer imposição, o homem livre atua conforme seu discernimento, conforme
56 vide o poema de göethe proemion, na coletânea gott and welt. (n.e. orig.)
57 j. kreyenbühl, ‘die etische freiheit bei kant’. philosophische monatshefte xviii, heidelberg, 1882, p. 129 ss. (n.e. orig.)
58 as idéias desta filosofia foram posteriormente desenvolvidas em minha obra die philosophie der ereiheit. (na. 1924) -
[título da edição brasileira: a filosofia da liberdade (3. ed. são paúlo: antroposófica, 2000). (n.e.)]
59 goethes naturwissenschaftliche schriften (cit., vol. v: sprüche in prosa, p. 460. (n.e. orig.)
47
mandamentos que ele próprio outorga a si.
era em torno destas verdades que girava a conhecida controvérsia entre kant e schiller.60 kant
assumia o ponto de vista do mandamento obrigatório. ele acreditava degradar a lei moral caso a
tornasse dependente da subjetividade humana. segundo sua opinião, o homem só age moralmente
quando, no atuar, se despoja de todos os impulsos subjetivos e se curva puramente àmajestade do
dever. schiller via nessa opinião uma degradação da natureza humana. seria esta, afinal, tão ruim
que precisaria eliminar completamente seus próprios impulsos se quisesse ser moral? a cosmovisão
de schiller e göethe só pode reconhecer para si a opinião que indicamos. É no próprio homem que
deve ser buscado o ponto de partida de seu agir.
por isso, tampouco na história, cujo objeto é o homem, é permitido falar de influências
externas à atuação deste, de idéias existentes na época, etc.; menos ainda de um plano subjacente
a ela. a história nada mais é senão o desenvolvimento de atos humanos, opiniões, etc. “em todos os
tempos, foram apenas os indivíduos que atuaram em prol da ciência, e não a época. foi a época
quem envenenou sócrates; foi a época quem queimou huss; as épocas sempre permaneceram
iguais”, diz goethe. toda construção apriorística de planos que deveriam fundamentar a história é
contra o método histórico resultante da essência da história. esta tem por meta perceber com quê
os homens contribuíram para o progresso de sua espécie; descobrir que objetivos esta ou aquela
personalidade se propôs, que rumo deu à sua época. a história deve ser completamente
fundamentada na natureza humana. deve captar seu querer, suas tendências. nossa ciência
gnosiológica exclui completamente que se atribua à história uma finalidade como, por exemplo, a
de os homens serem educados para um grau superior de perfeição a partir de um inferior, etc. da
mesma maneira, à nossa opinião parece errôneo querer, como faz herder em ideen zur philosophie
der geschichte der menschheit [idéias para a filosofia da história da humanidade], compreender os
acontecimentos históricos como os fatos naturais segundo a sucessão de causa e efeito. as leis da
história são justamente de natureza bem superior. um fato da física é determinado por outro de
modo tal que a lei está acima dos fenômenos. um fato histórico é, como algo ideal, determinado
por um fator ideal. aí só se pode falar de causa e efeito ficando bem na superficialidade. quem
poderia acreditar que alguém estivesse relatando a verdade ao denominar lutero a causa da
reforma? a história é essencialmente uma ciência ideativa. sua realidade já são idéias. por isso, a
dedicação ao objeto é o único método correto. tudo o que o ultrapasse deixa de ser histórico.
a psicologia, a etnologia e a história são as principais formas das ciências humanas.61 seus
métodos, conforme vimos fundamentam-se na apreensão imediata da realidade ideativa. seu
objeto é a idéia, o espiritual, da mesma forma como o da ciência inorgânica era a lei natural e da
orgânica, o tipo.
48
pessimismo. o primeiro argumenta ser o mundo de natureza tal que tudo nele é bom, e que ele
conduz o homem à mais alta satisfação. mas, para isso ocorrer, o próprio homem deve extrair dos
objetos do mundo algo pelo qual anseie, ou seja: ele não pode tornar-se feliz graças ao mundo,
mas apenas graças a si mesmo.
o pessimismo, por sua vez, crê que a organização do mundo é de natureza a deixar o homem
eternamente insatisfeito, de modo que ele nunca pode ser feliz. a objeção acima vale, natural-
mente, também aqui. o mundo externo não é, em si, bom nem ruim; ele só vem a sê-lo por
intermédio do homem. o homem precisaria tornar a si próprio infeliz para o pessimismo ter fun-
damento; precisaria ter anseio de infelicidade. porém a satisfação de seu anseio fundamenta
justamente sua felicidade. o pessimista deveria, por conseguinte, admitir que o homem vê na
infelicidade sua felicidade. com isto, porém, sua opinião se desfaria novamente em nada. esta
única ponderação é o bastante para mostrar claramente o caráter errôneo do pessimismo.
g. conclusão
nossa teoria do conhecimento despojou a cognição de seu caráter meramente passivo que em
geral lhe é atribuído, compreendendo-o como atividade do espírito humano. habitualmente,
acredita-se que o conteúdo da ciência seja recebido de fora; entende-se até mesmo que a
objetividade da ciência possa ser mantida em grau tanto maior quanto mais o espírito se abstenha
de qualquer adição própria ao material captado. nossas explicações mostraram que o verdadeiro
conteúdo da ciência não é, em absoluto, a matéria exterior percebida, mas a idéia mentalmente
apreendida, que nos introduz mais profundamente na engrenagem do mundo do que toda
dissecação e observação do mundo exterior como mera experiência. a idéia é confeúdo da ciência.
com isso, diante da percepção obtida passivamente a ciência éum produto da atividade do espírito
humano.
com isso nós aproximamos a cognição da criação artística, que aliás também é uma produção
ativa do homem. ao mesmo tempo, contudo, também provocamos a necessidade de esclarecer a
mútua relação de ambas.
tanto a atividade cognitiva quanto a artística se baseiam no fato de o homem se elevar da
realidade enquanto produto à realidade enquanto produtora; ascender do elemento criado ao
processo criador, da casualidade à necessidade. enquanto a realidade externa sempre nos mostra
apenas uma criação da natureza,nós nos elevamos em espírito à unidade natural que se nos
manifesta como a criadora. cada objeto da realidade nos apresenta uma das infinitas possibilidades
ocultas no seio da natureza criadora. nosso espírito se eleva à visão da fonte onde estão contidas
todas essas possibilidades. ciência e arte são, então, os objetos nos quais o homem imprime o que
essa visão lhe oferece. na ciência isto só acontece sob forma de idéia, isto é, no meio espiritual
imediato; na arte, num objeto perceptível de modo espiritual ou sensorial. na ciência a natureza se
manifesta como “aquilo que abrange tudo o que é individual”; na arte, um objeto do mundo
exterior se manifesta representando esse algo abrangente. o infinito, que a ciência procura no finito
e se esforça para representar na idéia, a arte cunha num material retirado do mundo da existência.
o que na ciência se manifesta como idéia, na arte é imagem. o mesmo infinito é objeto tanto da
ciência quanto da arte, só que naquela se manifesta diferentemente do que nesta. o modo de
representação é diferente. por isso göethe censurava o fato de se falar de uma idéia do belo como ,
63 goethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. v: sprüche in prosa, p. 379: “no âmbito estético, não se faz bem em
dizer ‘a idéia do belo’; com isso se individualiza o belo’; que no entanto não pode ser pensado individualmente.”
49
manifestaram ao espírito humano. as grandes obras de arte que goethe viu na itália 64 lhe pareceram
expressão imediata do elemento necessário que o homem percebe na natureza. para ele, portanto,
a arte também é uma manifestação de leis naturais ocultas.65
na obra de arte, tudo depende de como o artista implantou a idéia na matéria. o importante
não é o que ele trata, mas como o faz. se na ciência a matéria percebida de fora tem de submergir
completamente, de modo que apenas remanesça sua essência — a idéia , no produto artístico ela
deve permanecer, só que sua peculiaridade e sua contingência devem ser completamente superadas
pelo tratamento artístico. o objeto deve ser totalmente isolado da esfera do casual e transposto
para a do necessário. no belo artístico não deve permanecer nada em que o artista não haja
imprimido o seu espírito. o quê deve ser vencido pelo como.
a superação do sensorial pelo espírito é a meta da arte e da ciência. esta supera o sensorial
dissolvendo-o completamente em espírito; aquela, implantando-lhe o espírito. a ciência olha atra-
vés do sensorial para a idéia; a arte enxerga a idéia no sensorial. para concluir nossas
considerações segue-se um texto de göethe, expressando essas verdades de modo abrangente:
penso que se poderia chamar a ciência de conhecimento do genérico, de saber obtido; a arte, ao
contrário, seria ciência aplicada à ação; a ciência seria razão e a arte seu mecanismo, e por isso
também se poderia denominá-la ciência prática. por fim, então, a ciência seria o teorema, e a
arte, o problema.66
64 italienische reise, roma, 6.9.1787: “estas elevadas obras de arte são, ao mesmo tempo, produzidas por pessoas como as
supremas metas da natureza, segundo leis verdadeiras e naturais: tudo o que é voluntário, imaginado, coincide; isso é
necessidade, isso é deus.”
65 goethes naturwissenschaftliche schriften (cit.), vol. v: sprüche in prosa, p. 494: “o belo é uma manifestação de leis
naturais secretas, que sem sua manifestacão nos permaneceriam eternamente ocultas.’
66 ibidem, p. 535.
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