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RUDOLF STEINER

ANTROPOSOFIA
UM RESUMO 21 ANOS DEPOIS

GA 234

NOVE CONFERÊNCIAS FEITAS EM DORNACH DE 19 DE JANEIRO A 10 DE


FEVEREIRO DE 1924

Índice
1ª palestra 19 de janeiro de 1924.
Antroposofia, o anseio do ser humano atual.
Duas perguntas prementes da alma humana. O ser humano não pode chegar à Natureza sem ser
destruído. A Natureza não pode chegar ao interior do ser humano sem converter-se em aparência.
As respostas tradicionais da Ciência, da Arte e da Religião antigas não dão suporte. A Antroposofia
quer dar uma nova resposta.

2ª palestra 20 de janeiro de 1924.


A consciência meditativa.
A Natureza física atua através de forças destrutivas sobre o corpo físico. O que constrói o corpo,
configurando-o, provém de outro mundo. O ser humano ingere substâncias exteriores e as elimina.
Princípio e fim dos processos interiores são afins à Natureza exterior, mas não os processos que
estão no meio. Estes processos interiores do organismo humano têm afinidade com um estágio
terrestre anterior. Repetimos em nós o que existiu certa vez no princípio da Terra. Este estado
terrestre anterior pode ser observado por meio da meditação. A Natureza da meditação. A
percepção do etérico e do astral no desenvolvimento temporal.

3ª palestra 27 de janeiro de 1924.


A transição do conhecimento habitual para o conhecimento iniciático.
A relação do ser humano com os astros e o universo precisa atingir a consciência. A tarefa da
Antroposofia. Dois portais conduzem ao mundo supra-sensível: o portal do Sol e o portal da Lua.
Sol e Lua contemplados científico-espiritualmente; sua relação com o passado e o futuro, com o
destino humano. Pessoas que causam impressão sobre nosso intelecto e outras que atuam sobre
nossa vontade como sinal de relações cármicas.

4ª palestra 1 de fevereiro de 1924.


O pensar fortalecido e o segundo homem. O tecer da respiração e o ser humano aeriforme.
Não podemos resolver o enigma da Natureza e o enigma da alma por meio do pensar comum. O
fortalecimento do pensar por meio da meditação leva à vivência de um segundo homem e sua
conexão com o mundo estelar. O ser humano físico e o sólido; o ser humano líquido e sua conexão
com o etérico. Esvaziar a consciência leva à vivência da intervenção ativa do mundo espiritual, do
astral, mediante a Inspiração. O astral e o homem aeriforme. A lira de Apolo como música interior.

5ª palestra 2 de fevereiro de 1924.


O amor como força de conhecimento. A organização para o Eu do ser humano.
A Natureza do corpo etérico e o astral. O corpo etérico como organismo temporal. O corpo astral
que resplandece desde o espiritual. O amor como força de conhecimento. A dor da iniciação.
Reconhecer o Eu da encarnação anterior. A atuação do Eu no interior do organismo calórico. A
atuação dos impulsos morais provenientes das vidas terrestres anteriores, através do homem de
calor.

6ª palestra 3 de fevereiro de 1924.


Os pensamentos cósmicos imperantes no ar da expiração. O Eu ativo nos processos de calor.
O estado de sono. Os conteúdos da consciência Inspirativa emergem como recordações da vida
de sonho. Eu e organização astral na vigília e durante o sono. A Natureza da Inspiração e da Intuição.
O ser humano volta à sua vida pré-natal durante o sono ou a uma vida terrestre anterior.
Metamorfose do conceito do tempo. A morte. A Natureza da memória. Derramamento das
imagens da memória no cosmo depois da morte. Ação recíproca entre o ser humano e o mundo.

7ª palestra 8 de fevereiro de 1924.


Sobre a vida onírica. As relações da vida onírica com a realidade exterior e interior.
Contemplação da vida onírica como ponto de partida para a contemplação científico-espiritual do
ser humano e suas conexões com o passado e o futuro. Os dois tipos de sonhos: os que
reproduzem algo exterior e os que expressam simbolicamente processos interiores. No primeiro
tipo de sonhos se expressa a relação do Eu com o mundo, sua força e debilidade de vontade; o
corpo astral interfere no outro tipo de sonhos. Este tipo de sonhos tem afinidade com a maneira
como se vivenciam as imagens na Imaginação. É indicada a relação da Imaginação e imagem onírica
com os órgãos internos.

8ª palestra 9 de fevereiro de 1924.


As relações do mundo dos sonhos com o conhecimento Imaginativo. Endividar-se perante a vida.
O fundamento do carma.
A percepção Imaginativa. O organismo trimembrado contemplado Imaginativamente. A
retrospectiva depois da morte. Os atos morais do ser humano contemplados Imaginativamente. A
vivência de tornar-se devedor do universo. O carma se forma na vivência da retrospectiva.
Vivenciamos inconscientemente o lado espiritual da vida diurna no sonho.

9ª palestra 10 de fevereiro de 1924.


A capacidade mnemônica do ser humano.
A lembrança do ponto de vista da vida física. O quadro das recordações depois da morte
dissolvendo-se como sombra no universo. Submergir-se no equivalente espiritual das lembranças
no transcurso invertido da vida terrestre e a compensação dolorosa (Kamaloka). Isso se transforma
em nossa autoconsciência espiritual. A entrada no mundo espiritual. A vivência das entidades
espirituais. O impulso de compensação em uma nova vida terrestre.

1 – Antroposofia, o anseio da humanidade contemporânea.

Dornach, 19 de janeiro de 1924.

Meus caros amigos, tentarei hoje apresentar uma introdução à Antroposofia propriamente
dita que deverá constituir uma espécie de orientação para o procedimento daqueles que puderem
representá-la perante o mundo. Portanto, direi algumas palavras preliminares sobre o assunto. Leva-
se raramente em consideração que o espiritual é algo vivo e que, como tal, deve ser compreendido
com toda a vida que tem. Quando nos sentimos como portadores do movimento antroposófico
dentro da Sociedade Antroposófica, não podemos pressupor que esse movimento se inicie a cada
dia, pois ele existe há mais de duas décadas, e o mundo já tomou posição em relação a ele. Portanto,
em todo tipo de postura diante do mundo – no sentido antroposófico – deve haver o sentimento
de que se trata já de um fato em relação ao qual o mundo tomou uma posição. Este sentimento
deve ficar como pano de fundo. Se não tivermos esse sentimento e acreditarmos representar a
Antroposofia em sentido absoluto, como poderíamos tê-lo feito há vinte anos ou mais,
continuaremos a apresentar a Antroposofia aos olhos do mundo sob uma luz ambígua, o que
efetivamente já aconteceu bastante. Agora temos de pôr um fim nisso, dando simultaneamente
lugar a um novo início com nosso Congresso de Natal, um início que não pode permanecer sem
continuidade, como já ilustrei sob os mais diversos aspectos.
Certamente, não podemos pretender que todo membro da Sociedade Antroposófica se
proponha a assumir novos impulsos, se esta qualidade não fizer parte da disposição de sua alma:
cada pessoa tem o direito de ser um membro participante que se limita a receber; mas, aquele que
quiser representar a Antroposofia perante o mundo de alguma maneira não pode prescindir do
que lhes indiquei. Sob esse aspecto, deverá predominar no futuro a veracidade mais completa, não
só nas palavras, mas também nos atos.
Pois bem, meus queridos amigos, repetirei freqüentemente estas palavras preliminares;
passaremos agora a dar uma espécie de introdução à cosmovisão antroposófica.
Aquele que quiser falar sobre Antroposofia deve supor que, em última análise, o que ele
quer dizer não é senão o que cada um de seus ouvintes já diz em seu coração. Em todo o mundo,
e em todo o conhecimento iniciático, jamais se pretendeu outro objetivo senão o de dar expressão
ao que os corações dos ouvintes já dizem por si mesmos. Assim, o tom fundamental da exposição
antroposófica deve ser de tal forma que chegue a tocar o anseio mais profundo do coração dos
seres humanos que necessitam da Antroposofia.
Quando observamos hoje as pessoas que se elevam acima da superficialidade da vida,
vemos que nelas foram renovadas antigas sensações, freqüentes em cada alma humana. Vemos que
as pessoas têm graves perguntas em seu subconsciente, perguntas que não podem ser formuladas
com clareza pelo pensamento e que também não podem encontrar resposta no mundo civilizado.
Não obstante, tais perguntas existem, estão profundamente arraigadas num grande número de
pessoas e estão presentes, de fato, em todos os seres realmente pensantes da atualidade. No
entanto, quando estas perguntas se expressam em palavras, parece de início que elas estão muito
distantes, quando na verdade estão bem próximas! Elas estão na vizinhança mais imediata da alma
do indivíduo pensante.
De início, podemos expor duas questões da mesma esfera de enigmas que oprimem hoje
as pessoas. Uma delas surge para a alma humana assim que ela olha para a própria existência e para
o mundo que a circunda. A alma vê o homem entrar na existência terrestre através do nascimento;
vê a vida transcorrer entre nascimento, ou concepção, e morte física e passar pelas mais variadas
experiências exteriores e interiores. Vê também fora, na Natureza, toda a quantidade de impressões
que os seres humanos recebem e que preenchem gradativamente a própria alma.
Então, a alma humana presente no corpo observa, sobretudo, que a Natureza recolhe tudo
aquilo que a alma vê na existência física terrestre. Quando o homem ultrapassa o umbral da morte,
a Natureza acolhe o corpo físico humano como quer que esteja a sua substância (não há grande
diferença entre ser cremado ou enterrado). Mas, que é que ela faz desse corpo físico? Aniquila-o.
Em geral, a alma humana não observa os rumos que tomam as substâncias de seu corpo físico; mas,
quando exercitamos a observação em locais onde acontece um tipo particular de sepultamento,
aprofundamo-nos na visão impressionante do que a Natureza faz com tudo o que existe de físico-
sensório no ser humano assim que ele ultrapassa o umbral da morte. Existem criptas onde os
cadáveres humanos são conservados fechados, protegidos do ar. Eles ali ressecam. E como ficam
depois de algum tempo? Esses cadáveres apresentam a figura humana alterada, consistindo de ácido
carbônico que tende a se dissolver em pó. Se tocarmos apenas ligeiramente nesta massa de ácido
carbônico que reproduz de maneira alterada a figura humana, ela se dissolverá em pó.
Isto causa uma profunda impressão sobre o que acontece à alma, sempre que ela observa
o que se passa com o instrumento através do qual são executadas todas as ações humanas entre
nascimento e morte. O indivíduo olha então para a Natureza, que também lhe fornece o
conhecimento e da qual ele alcança o que reconhece como cognições, e diz: A Natureza, que faz
brotar de seu seio a mais prodigiosa cristalização; a Natureza, que faz surgir por encanto as plantas
germinantes a cada primavera, que conserva as cascas nas árvores por décadas; a Natureza, que
preenche a Terra das mais variadas espécies animais, dos paquidermes aos minúsculos bacilos, que ergue
a água e a dispõe em nuvens; a Natureza, sobre a qual se irradia algo que desce das estrelas, embora
ainda desconhecido; esta mesma Natureza procede de forma a reduzir totalmente a pó o que o homem
traz consigo entre nascimento e morte. A Natureza com suas leis é destrutiva para o ser humano.
Ponhamos diante de nossos olhos a figura humana, que nos parece maravilhosa por ser a mais
perfeita dentre todas as que se encontram na Terra. De um lado, temos a figura humana e, de
outro, a Natureza com suas pedras, suas plantas, seus animais, com nuvens, rios e montanhas, com
tudo o que se irradia lá de cima do oceano estelar, com o calor e a luz que reverberam do Sol
sobre a Terra. Vemos, então, que essa Natureza não suporta a figura humana em seu próprio
conjunto de leis. O que existe como ser humano desfaz-se em pó quando é entregue à Natureza.
É o que o ser humano vê; embora ele não forme idéias a respeito, tem [essa compreensão]
profundamente arraigada em si mesmo, em especial quando se encontra diante da visão da morte.
Não é simplesmente por um sentimento egoísta, nem pela esperança superficial de continuar a
viver além da morte que se forma uma pergunta subconsciente nas profundezas da alma, uma
pergunta infinitamente importante para ela, que significa sua felicidade ou infelicidade, mesmo que
não seja formulada. Tudo o que a consciência de felicidade ou infelicidade possa significar para o
indivíduo sobre a Terra em termos de destino é insignificante diante da incerteza do sentimento
decorrente da antevisão da morte. Aqui ele formula a questão: De onde vem a configuração humana?
Vejo as formas admiráveis do cristal, a configuração das plantas, dos animais, vejo como os rios correm
pela Terra, vejo as montanhas, vejo tudo o que nos dizem as nuvens e os astros. E, mesmo assim, a
figura humana não pode vir disto tudo, porque tudo isto só tem a força de aniquilamento, de pulverização
da configuração humana como tal.
E aí, na antevisão da morte, surge a pergunta angustiante para o coração humano: Onde fica
esse mundo, esse outro mundo, de onde vem a configuração humana?
Não me digam que nunca ouviram esta pergunta formulada desta maneira. Se apenas
escutarmos o que as pessoas confiam à fala, depois de o terem formulado em sua cabeça, com
certeza não ouviremos esta pergunta feita assim. Mas, se nos aproximarmos das pessoas e elas
expressarem os lamentos de seu coração, (elas talvez falem deles dando relevo a detalhes de suas
vidas, tecendo sobre eles todo tipo de considerações, que inserem como nuances no problema
abrangente do destino) quem entende a linguagem do coração poderá ouvir o que vem de seu
subconsciente: De que mundo provém a configuração humana, uma vez que o ser humano, com sua
forma, não pertence a este mundo?
E assim se apresenta para o homem o mundo que ele avista, contempla, percebe, sobre o
qual ele concebe sua Ciência, o mundo que lhe dá matéria para suas obras de arte, que lhe dá a
base para sua devoção religiosa; enfim, assim se lhe apresenta este mundo. Mas ele está na Terra e
tem no fundo da alma o sentimento de não pertencer a ela, de que deve existir um outro mundo
do qual ele tenha surgido com sua figura, como por encanto. A qual dos dois mundos eu pertenço? É
o que ressoa do coração das pessoas de hoje; esta é a grande pergunta. E, se as pessoas estão
insatisfeitas com o que lhes é oferecido pela Ciência moderna, é porque trazem no fundo da alma
este questionamento que as Ciências estão bem longe de abordar: A que mundo o ser humano
verdadeiramente pertence, uma vez que não é decerto ao mundo visível?
Caros amigos, eu tenho certeza: não sou eu quem diz o que acabei de lhes dizer, apenas
emprestei palavras ao que é dito pelos corações. E é disso que se trata, não de expor às pessoas
algo que lhes é desconhecido – que, quando muito, pode causar sensação – mas trata-se
unicamente de pôr em palavras o que as almas humanas dizem por si mesmas. Também o que o
ser humano vê de si próprio e de seus semelhantes – para ficar nos limites do visível – não pertence
ao mundo visível restante; o ser humano compreende que nem ao menos um único dedo que faça
parte dele pertence ao mundo da visibilidade, uma vez que este contém em si somente as forças
de destruição para cada dedo.
Esta é a situação inicial do ser humano diante da grande incógnita, situação esta em que ele
se encontra quando considera a si próprio como parte desta incógnita. Em outras palavras, é como
dizer que existe luz espiritual ao redor de tudo que o ser humano não é; no instante em que ele
volta o olhar para si mesmo, o mundo todo escurece e a pessoa se debate nas trevas, uma vez que
carrega o enigma sobre seu próprio ser através da escuridão. E é assim quando o ser humano
observa a si mesmo de fora, quando ele se descobre como um ser de fora que está imerso na
Natureza. Enquanto ser humano, ele não pode aproximar-se desse mundo.
E, repito, não é a cabeça, mas são as profundezas do inconsciente que formulam perguntas
decorrentes da questão geral que acabei de descrever. Quando o ser humano considera sua
existência física, que é seu instrumento entre nascimento e morte, ele sabe bem: Sem este mundo
físico eu não poderia viver a existência entre nascimento e morte, porque tenho de continuamente contrair
empréstimos com a vida no mundo visível. Cada bocado que ponho na boca, cada gole de água provém
deste mundo visível ao qual eu não pertenço. Mas não posso viver na existência física sem isso. Quando
como um bocado de alguma substância deste mundo visível e, logo depois de tê-lo comido, ultrapasso o
portal da morte, imediatamente esse bocado em mim passa a pertencer às forças de destruição do
mundo visível. E é o meu ser, meu próprio ser, que tem de tomar cuidado para que esse bocado não
venha a pertencer às forças de destruição em mim mesmo. Mas no mundo visível, em parte alguma do
exterior se pode encontrar este meu próprio ser. Que faço eu, através de meu próprio ser, com o bocado
que pus na boca, com o gole de água que bebi? Quem sou eu, então, que recebo as substâncias da
Natureza e as transformo? Quem sou eu? Esta é a segunda pergunta, oculta na primeira e decorrente
dela.
Quando me coloco em relação ao mundo visível, não só percorro as trevas; atuo nas trevas
sem saber quem é que age, sem saber quem é o ser que designo como meu Eu. Entrego-me
totalmente ao mundo visível, mas não pertenço a ele.
Isto tira o ser humano do mundo visível e faz com que ele se revele a si próprio como
pertencente a um mundo inteiramente diferente. E permanece a grande dúvida, que se exprime
cheia de angústia na pergunta: Onde está o mundo ao qual pertenço? E quanto mais a civilização
humana avançou, quanto mais intensamente as pessoas aprenderam a pensar, mais angustiante se
tornou esta pergunta. Hoje ela está situada nas profundezas da alma; os seres humanos se
subdividem em duas categorias em relação a ela, na medida em que pertencem ao mundo civilizado:
alguns a empurram para o fundo e a reprimem, não a trazem para a claridade, mas padecem de
uma terrível ansiedade pela solução deste enigma; outros se fazem surdos a estas questões, falam
de todo tipo de coisas da existência exterior para não ouvir; ao se tornarem surdos, eliminam de si
mesmos um sentimento sólido sobre a própria existência: a frivolidade reveste sua alma. Este
sentimento de frivolidade vive hoje no subconsciente de inúmeras pessoas.
Tudo isso é um aspecto, é uma grande questão, com a decorrência que já mencionei. Ela
surge quando o ser humano olha para si mesmo a partir de fora e percebe sua relação com o
mundo entre nascimento e morte, mesmo que vagamente, subconscientemente.
A outra questão surge, porém, quando o ser humano olha para seu próprio interior, onde
está o outro pólo da existência humana. Lá estão os pensamentos, e estes reproduzem a Natureza
exterior. Através de seus pensamentos, o homem torna presente a Natureza exterior e desenvolve
sensações, sentimentos sobre ela; ele atua sobre a Natureza exterior por meio de sua vontade.
Primeiro, ele lança um olhar retrospectivo sobre seu próprio interior. Pensar, sentir, e querer flutuam
diante de sua alma. Esta é sua situação anímica atual. A ela se acrescentam as lembranças das
vivências passadas, as recordações das coisas vistas em tempos anteriores à atual existência
terrestre. Que é tudo isso que preenche a alma?
O ser humano não chega a formular idéias claras sobre qual é verdadeiramente seu
conteúdo interior, mas o subconsciente as formula. Basta que uma enxaqueca afugente os
pensamentos, e imediatamente a interioridade humana se torna um enigma. Até mesmo o estado
de sono faz dela um enigma, quando o indivíduo está imóvel, sem capacidade de se corresponder
com o mundo exterior pelos sentidos. Quando o ser humano sente que seu corpo físico precisa
se pôr em movimento, surgem então os pensamentos, os sentimentos, os impulsos volitivos em
sua alma. Mas, se retiro minha atenção da pedra referida há pouco, com esta ou aquela forma de
cristal, e depois de algum tempo retorno, percebo que ela permaneceu igual ao que era antes. Ao
contrário, meu pensamento surge, revela-se como imagem na alma e depois se atenua. Ele é sentido
como algo infinitamente mais valioso que os músculos e os ossos; mas é algo evanescente, mera
imagem. Ele é menos que o quadro pendurado na parede que ali permanece por certo tempo,
enquanto perdura a substância da qual é feito. O pensamento passa; é uma imagem que continua
a surgir e a desaparecer, uma imagem flutuante que vem e vai, que se contenta com sua existência
de imagem. No entanto, se o ser humano olha para dentro de sua alma, nada encontra senão essas
imagens representadas. E só pode dizer que sua alma consiste dessas imagens representadas.
Volto a olhar a pedra: lá está ela no espaço e ali permanece. Faço dela então uma
representação mental; uma hora depois torno a fazê-la, e de novo duas horas depois. O
pensamento sobre a pedra desaparece nesse intervalo, precisa ser sempre renovado. A pedra
continua lá fora. Que é que sustenta a pedra de uma hora para a outra? Que é que faz os
pensamentos flutuarem de uma hora para a outra? Que é que mantém e conserva a pedra de uma
hora para a outra? Que é que aniquila o pensamento de cada vez, de tal forma que ele precisa ser
incitado de novo ao se olhar para fora? Costumamos dizer quanto ao que mantém a pedra: ela é,
cabe a ela existir, mas isso não cabe ao pensamento. O pensamento pode compreender a cor da
pedra, a forma da pedra, mas não pode compreender por que meios ela se conserva. A pedra
persiste em estar lá fora, enquanto apenas a mera imagem penetra na alma.
O mesmo acontece com cada coisa da Natureza exterior em relação à alma humana. O
ser humano pode olhar para a alma e considerá-la sua própria interioridade: a Natureza como um
todo se espelha na alma humana, mas esta só contém imagens flutuantes que, por assim dizer,
revelam a superfície das coisas; mas o interior das coisas não penetra nela. Ando pelo mundo com
minhas representações mentais e descubro, sobretudo, a superfície das coisas, mas o que elas são
continua de fora. Levo minha alma pelo mundo que me rodeia, mas esse mundo fica de fora. E o
mundo exterior, com sua própria essência, não alcança o que está no interior. Portanto, quando a
pessoa está diante do mundo que a circunda contemplando a morte, precisa dizer a si mesmo: Eu
não pertenço a este mundo, pois não o alcanço; meu ser pertence a outro mundo; mas eu não alcanço
este outro mundo enquanto viver em um corpo físico. E, depois de minha morte, mesmo que meu corpo
se aproxime desse mundo exterior, não consegue alcançá-lo, pois, cada passo que dá é destruição para
ele. Lá fora está o mundo; se o homem o penetra, ele o destrói, não suporta em si mesmo a sua entidade.
No entanto, se o mundo exterior quisesse penetrar na alma humana, também não poderia; os
pensamentos são imagens que permanecem fora da essência, da existência das coisas. A essência
das pedras, das plantas, dos animais, das estrelas, das nuvens não entra na alma humana. Todo um
mundo circunda o ser humano, um mundo que não pode alcançar sua alma, que permanece de
fora.
De um lado está o ser humano, fora da Natureza (isso fica claro para ele no que diz respeito
à morte); de outro lado está a Natureza, fora da alma humana. O ser humano a vê como algo
exterior, e surge então para ele a pergunta angustiante sobre um outro mundo. Ele olha para o que
existe de mais íntimo, de mais familiar em sua própria interioridade, olha para cada pensamento,
cada representação mental, cada sensação, cada sentimento, cada impulso volitivo. A Natureza não
se aproxima de nada daquilo em que ele vive; ele não a possui.
Nisso reside a nítida fronteira entre ser humano e Natureza: ele não pode chegar à
Natureza sem ser aniquilado, a Natureza não pode penetrar sua interioridade sem se tornar
aparência. Quando o ser humano pensa em si mesmo dentro da Natureza, encontra apenas a dura
destruição, sobre a qual ele deve fazer uma representação mental. Quando olha para si mesmo e
se pergunta como fica a Natureza em relação a sua alma, encontra nela somente uma aparência da
Natureza, carente de essência.
Mas, quando o ser humano carrega em si mesmo essa aparência dos minerais, das plantas,
dos animais, dos astros, do Sol, das nuvens, das montanhas, dos rios, quando ele traz na memória
a aparência de todas as experiências que percorreu nos reinos da Natureza exterior, quando
vivencia tudo isso como sua interioridade flutuante, nesse flutuar ele alcança seu próprio sentimento
de existir.
Como isto pode acontecer? Como o ser humano vivencia esse sentimento de existir? Ele
o vivencia mais ou menos assim. Talvez só possamos expressá-lo por meio de uma imagem.
Imaginemos o amplo mar; as ondas sobem e descem, aqui uma, ali outra, por toda parte estão as
ondas que se formam pelo movimento das águas. Nisto, o olhar se fixa em uma onda especial, pois
esta onda especial dá a perceber que nela existe algo que não é somente mar agitado; existe alguma
coisa por trás dessa onda. No entanto, a água envolve isso que existe por todos os lados; só se
sabe que algo vive dentro da onda, mas dela se vê somente a água que envolve isso que existe. A
onda tem o mesmo aspecto de todas as outras. Só pela força com que se ergue, pela energia com
que se impõe, é que temos o sentimento de que algo especial vive nela. Ela torna a descer e
ressurge em outro ponto, e de novo a água esconde o que anima interiormente a onda. O mesmo
acontece com a vida da alma humana: as representações mentais, os pensamentos ondulam, os
sentimentos, os impulsos da vontade ondulam; por toda parte existem ondas. Uma delas emerge
em um pensamento, em uma decisão da vontade, em um sentimento: o Eu está lá dentro, mas os
pensamentos, os sentimentos, os impulsos da vontade o encobrem tal como a água encobre o que
há de vivo na onda marinha; eles encobrem o que está lá dentro como Eu. E o ser humano não
sabe o que ele mesmo é, pois tudo quanto lhe aparece naquele local é somente aparência, ele sabe
apenas que ali seu próprio Eu, seu próprio ser vem à tona. A aparência esconde na alma aquela
existência que está com certeza presente, que o ser humano sente e vivencia interiormente; mas a
aparência a encobre, tal como a água da onda encobre algo vivo que surge das profundezas do mar
e que não se conhece. E o ser humano sente seu próprio ser verdadeiro oculto pelas imagens
aparentes de sua alma; é como se o ser humano quisesse continuamente agarrar-se a seu próprio
ser, tentando alcançá-lo em algum lugar. Ele sabe que está presente; mas, no momento em que
quer alcançá-lo, este lhe escapa das mãos e rapidamente desvanece. O ser humano não consegue
apreender na ondulação de sua alma aquilo que ele sabe que existe, um ser existente. Quando,
portanto, o homem chega à constatação de que esta vida ondulante das aparências da alma tem a
ver com aquele outro mundo, o mundo que surge para sua representação mental quando ele olha
para a Natureza, um terrível enigma se lhe impõe. O enigma da Natureza, pelo menos, é por assim
dizer limitado à experiência, mas o enigma da própria alma não está presente na experiência; uma
vez que ele próprio vive, pode-se dizer que ele é um enigma vivo e que à pergunta constante do
homem, Quem sou eu?, só se apresenta para ele o que é mera aparência.
Quando o ser humano olha para a própria interioridade, descobre nela sempre a seguinte
resposta: Eu te mostro de ti apenas uma aparência; e se achas que provéns de uma existência espiritual,
eu te mostro a aparência dessa existência espiritual na vida de tua alma.
Graves questões atingem hoje de dois lados a vida do ser humano. Uma delas se forma
quando o ser humano percebe que:

A Natureza existe, mas o homem


só pode alcançá-la
quando se deixa destruir por ela.

E a outra:

A alma humana existe, mas a Natureza


só pode alcançá-la
tornando-se imagem aparente.

Estas duas verdades vivem no subconsciente das pessoas de hoje.


Elas então se voltam para aquilo que vive no presente, proveniente de épocas antigas. Aqui
está a Natureza desconhecida que destrói o homem; ali está a imagem aparente da alma humana,
na qual a Natureza não pode ser confirmada, embora o ser humano só possa viver sua existência
física com os empréstimos feitos pela Natureza. Pode-se dizer que o homem está numa dupla
escuridão. Surge então a pergunta: Onde está o outro mundo ao qual pertenço?
A tradição histórica responde: houve no passado uma Ciência que falava sobre este mundo
desconhecido. Quando voltamos atrás aos tempos antigos, logo somos tomados por um
sentimento de grande respeito pelo que se tentou demonstrar cientificamente naquela época sobre
esse outro mundo que está por toda parte na Natureza. Bastava saber estudar a Natureza da
maneira correta para que esse outro mundo se revelasse ao olhar humano.
Mas a consciência moderna deixou essa Ciência antiga se perder. Ela não vale mais; foi
transmitida, mas não é mais válida. O ser humano não pode mais considerar que aquilo que, no
passado, as pessoas demonstraram cientificamente sobre o mundo ainda possa responder à
pergunta angustiante que brota destes dois fatos subconscientes. Então se oferece a ele uma
segunda possibilidade: a Arte.
Por outro lado, também na Arte se vê que sua prática – a espiritualização da matéria física
– provém de tempos antigos. O ser humano pode receber pela tradição muito do que se conservou
da antiga espiritualização artística. Mas ele se sente insatisfeito se a verdadeira Natureza artística
reside em seu subconsciente, por não conseguir mais fazer uso daquilo que fez com que Rafael
ainda tivesse estabelecido na forma humana terrena, como por encanto, o reflexo de um outro
mundo ao qual o homem verdadeiramente pertence com seu próprio ser. Onde está hoje o artista
que sabe empregar a substância física terrestre, com estilo refinado, de modo que essa substância
mostre o reflexo daquele outro mundo ao qual o ser humano verdadeiramente pertence?
A terceira tradição do passado é mantida pela Religião: ela aponta para o sentir humano,
para a devoção humana por aquele outro mundo. A Religião surgiu antigamente pelo fato de o
homem ter acolhido as manifestações da Natureza, que estão, na verdade, tão distantes dele. E se
voltarmos o olhar espiritual retrospectivamente para milênios atrás, encontramos pessoas que
também sentiam que havia uma Natureza da qual o ser humano não se pode aproximar sem se
deixar destruir por ela.
Sim, os seres humanos que nos precederam há milênios também sentiam isso no fundo de
suas almas; no entanto, eles olhavam para o cadáver que penetra na Natureza exterior como numa
espécie de Moloch1 cósmico (isso ainda acontecia com os antigos egípcios), e o viam destruído,
como cadáver. Eles o seguiam com o olhar e viam que a alma humana entra também pela mesma
porta além da qual o cadáver humano é destruído. Jamais os Egípcios teriam feito suas múmias se
eles não tivessem visto no passado, ao acompanhar a alma, que através da mesma porta pela qual
passa o cadáver – e além da qual ele é destruído – passa também a alma humana. Mas a alma segue
adiante. Essas pessoas da Antigüidade sentiam que a alma se expande cada vez mais e vai até o
cosmo. E então viam que o que desapareceu dentro da Terra, o que desapareceu dentro dos
elementos, retornava das amplidões universais, dos astros; viam a alma humana desaparecer na
morte; viam-na, primeiro, além do umbral da morte, depois no caminho para outros mundos e
finalmente a viam retornar dos astros. Esta era a Religião antiga: era revelação cósmica. Era revelação
cósmica na hora da morte e manifestação cósmica na hora do nascimento. As palavras foram
conservadas, a crença foi conservada, mas será que o conteúdo ainda tem relação com o mundo?
Ela permaneceu conservada em uma literatura alheia ao mundo, em uma literatura e em
uma tradição religiosa alheias ao mundo, distantes do próprio mundo. O homem da civilização
contemporânea não pode mais distinguir nenhuma relação entre o que foi transmitido como
conteúdo religioso e o que é agora um enigma angustiante. Pois, ao observar a morte, ele olha para
a Natureza exterior e vê somente o corpo físico humano transpor o portal da morte e, além dela,
ser submetido às forças de destruição. Vê depois a figura humana chegar pelo nascimento e se
pergunta: De onde vem? Para onde quer que eu olhe, nada descubro de onde ela possa vir. De fato, ele
não pode mais vê-la chegar dos astros, da mesma forma como não tem mais a possibilidade de vê-
la além do portal da morte. Por isso, a Religião se tornou palavra carente de conteúdo. Os homens
têm ao seu redor na civilização o que os antigos possuíram como Ciência, Arte e Religião. Mas a
Ciência dos antigos se tornou decadente, a Arte antiga não é mais sentida em sua interioridade e
o que lhe é apresentado como substituto é algo que o homem não pode elevar até o irradiar do
espiritual na substância física.

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N.T: Nome pelo qual a Bíblia designa uma divindade dos moabitas e dos amonitas a quem sacrificavam
crianças.
A religiosidade dos tempos antigos permaneceu, mas não se vincula ao mundo em
nenhuma direção, porque, apesar dela, o mundo permanece um enigma no que diz respeito ao ser
humano. E então ele olha para dentro de si mesmo e ouve a voz da consciência. No passado, a voz
da consciência era a voz daqueles deuses que conduziam a alma para além daquelas regiões em
que o cadáver é destruído, que conduzia a alma e lhe dava a forma para a vida terrestre; era o
próprio Deus quem falava dentro da alma como voz da consciência. Hoje, a voz da consciência
também se tornou exterior. As leis morais não levam mais de volta aos impulsos divinos. Primeiro,
o homem olha para o aspecto histórico, olha para o que lhe restou dos tempos antigos, e consegue
ter apenas uma noção de que os antigos sentiam os dois grandes enigmas da existência de maneira
diferente da atual; por isso puderam, de certo modo, encontrar uma resposta. Hoje não se consegue
mais encontrá-la. Os enigmas pairam esmagadores diante do ser humano, porque lhe mostram
apenas a destruição depois da morte e a aparência da alma durante a vida.
Assim se encontra hoje o ser humano diante do universo. As perguntas a que a
Antroposofia deve responder nascem desse sentimento. São os corações que falam a partir desses
dois sentimentos e dizem: Onde está o conhecimento do mundo que faça jus a estes sentimentos?
A Antroposofia gostaria de ser esse conhecimento do mundo; ela gostaria de falar sobre o
mundo e sobre o ser humano de maneira a suscitar, por sua vez, algo que possa ser compreendido
pela consciência moderna, assim como a consciência antiga compreendeu a Ciência, a Arte e a
Religião antigas. A Antroposofia tem sua imensa tarefa através da própria voz do coração humano.
Ela não é senão o profundo anseio do ser humano do presente. Ela deve existir porque é o
profundo anseio do ser humano do presente. É isso que a Antroposofia quer ser, meus caros
amigos. Ela corresponde ao que o ser humano anseia mais intensamente para sua existência interior
e exterior. Surge então a pergunta: Pode haver hoje tal concepção de mundo? É a Sociedade
Antroposófica quem deve dar esta resposta ao mundo; a Sociedade Antroposófica precisa
encontrar o caminho para fazer com que os corações humanos falem do íntimo de suas aspirações.
E então os corações humanos sentirão também o mais profundo anseio pelas respostas.

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