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EXISTIU UMA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL?

Obcecados por falar mal de si mesmos, os brasileiros costumam minimizar um dos


acontecimentos mais importantes de sua história
João Paulo Pimenta

Os brasileiros têm uma inclinação por falar mal de si mesmos, de seu país, de sua população,
de sua cultura. Nesse meio, acaba sobrando também para sua história. Uma história
supostamente desinteressante, sem grandes acontecimentos, pacata e sonolenta, sempre um
acordão meio secreto entre poderosos para manter ricos os ricos, e pobres os pobres. Nem
uma independência digna desse nome o Brasil teria tido!
É certo que nem todo mundo pensa assim e sempre haverá honrosas exceções. Principalmente
os brasileiros que não só se interessam por sua história, mas ainda procuram estudá-la com
seriedade e rigor. Mas também é certo que nossos mitos nacionais são fortes, estão
espalhados por toda a parte, se alimentam de desinformações (e comemorações) e acabam por
confundir muita gente. Dentre esses mitos, está o de nossa não-independência.
Existiu, sim, uma independência do Brasil e fazer essa afirmação não quer dizer que este
autor esteja elogiando nosso país ou nossa história. Menos ainda que ele goste de tediosas
comemorações cívicas oficiais, acredite em heróis ou admire grandes feitos militares. Quer
dizer apenas que, após estudar o tema, ele tem quatro coisas a dizer.
Primeira: em 1822, o Brasil começou a se separar de Portugal e isso não aconteceu de
repente. Foi parte de um processo mais longo que, em alguns aspectos, começou em fins do
século XVIII e, em outros, se completou nos primeiros vinte ou trinta primeiros anos do XIX.
Até 1822, Portugal e Brasil tinham sido parte daquele enorme Império português que, em
1815, tinha recebido um novo e pomposo nome: Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Quando o Brasil se separou, esse Reino Unido deixou de existir e o Brasil começou uma vida
própria.
É certo que essa separação não foi total, completa e absoluta. Em muitos sentidos, o Brasil
continuou a ser um pouco “português”. Em outros sentidos, também um pouco “colônia”.
Mas isso é absolutamente normal. Nenhum país independente vive completamente livre de
seu passado. Nenhum país é só novidade ou superação.
Segunda: quando se tornou independente, o Brasil foi virando, aos poucos, um Estado e uma
nação soberanos – duas coisas que não existiam antes e que existem até hoje. Colônia de
Portugal ele já não era fazia tempo: desde pelo menos 1808, quando a corte portuguesa veio
morar no Brasil. Em 1815, o Brasil tinha virado um reino da mesma importância que
Portugal. Mas a partir de 1822, outros países do mundo foram reconhecendo o Brasil como
sendo mais um deles, como um membro de um sistema de relações internacionais sem o qual
um país não pode – é assim até hoje – ser verdadeiramente independente.
Ao contrário do que se costuma pensar, em 1822 o Brasil não deixou de ser colônia de
Portugal – como já disse, isso ocorreu antes – para se tornar colônia da Grã-Bretanha ou dos
Estados Unidos. Simplesmente, como qualquer país independente, o Brasil teve que se
adaptar ao sistema internacional do qual ele passou a fazer parte.
Terceira: como tudo na história, as palavras e seus sentidos estão sempre mudando. Hoje em
dia, a palavra independência pode significar, dentre outras coisas, poder, prosperidade,
bem-estar, liberdade. Mas em 1822, ela queria dizer principalmente capacidade de tomada
de decisão própria, sem ter que seguir as decisões de outro. E a independência do Brasil foi
exatamente isso: um grupo bastante amplo de pessoas decidiu formar um novo governo e –
aos poucos – um novo Estado e uma nova nação que não seriam mais portugueses, mas
brasileiros. E fizeram isso no meio de muitas disputas, conflitos, revoluções e guerras (isso
mesmo: o Brasil teve suas revoluções e guerras, e nossa independência juntou as duas coisas).
Quarta: a independência também foi uma mistura de outras independências menores, um
monte de situações em que pessoas quiseram tomar suas próprias decisões de maneira livre,
em defesa de interesses que nem sempre eram comuns a outras: ricos, pobres, brancos,
pardos, pretos, índios, homens, mulheres… Alguns grupos perderam, outros ganharam, uns
são hoje mais conhecidos do que outros, mas todos fizeram parte de um mesmo processo
histórico e que não aconteceu em um só lugar, mas em muitas regiões daquele mosaico de
lugares diferentes que era o Brasil de 1822.
Talvez a Independência não tenha sido aquilo que o leitor imaginasse. Certamente, ela não foi
o que muitos de seus participantes quiseram que ela fosse. Tampouco foi exatamente o que
dela fizeram governos, instituições, políticos e outros grupos específicos que, desde 1822,
vêm comemorando, distorcendo e usando politicamente a História a seu bel-prazer, segundo
seus interesses privados – no Brasil atual, inclusive. Todos esses desconhecimentos,
frustrações e manipulações também contam suas histórias particulares, sem dúvida. E todos
juntos formam a história da Independência, de sua memória e de sua atualidade.
Não só como História, mas também como memória, a Independência existiu. E é assim que
ela continuará a existir, hoje e amanhã, no nosso Brasil. Gostemos dele ou não.

Saiba mais
JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005.
LYRA, Maria de Lourdes Viana. O império em construção: Primeiro Reinado e Regências.
São Paulo: Atual, 2000.
MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marília e a pátria. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. A Independência e a construção do império,
1750-1824. São Paulo: Atual, 1995.
POVOS INDÍGENAS E A INDEPENDÊNCIA
Das matas às vilas, em rebeliões ou por escrito, os indígenas atuaram politicamente de
diferentes formas na independência do Brasil
João Paulo Peixoto Costa
Para começo de conversa, é preciso saber que não havia (assim como não há hoje) uma
forma única de ser indígena. Na década de 1820 eram compostos por incontáveis línguas,
culturas, tradições, espiritualidades e formas de ver o mundo. Além disso, e talvez o mais
importante para o que discutimos aqui, estavam submetidos a variadas condições sociais. Daí
é fácil imaginar a diversidade de posições assumidas, das condições de envolvimento e dos
impactos vivenciados pelos povos indígenas na independência do Brasil.
Os que habitavam seus próprios territórios, até então com pouco ou nenhum contato com os
não indígenas, cada vez mais sofriam com a expansão agrícola. Com a independência, à
frente da elite política e fundiária, Dom Pedro I deu seguimento às ordens que seu pai, Dom
João VI, havia dado em 1808 e 1809 para eliminar os ditos “selvagens” das matas dos atuais
Sul e Sudeste brasileiros. A tendência de avanço em territórios de povos não integrados à
sociedade luso-brasileira seguiu firme em outras regiões do Brasil, com muitas mortes,
escravizações, resistências e negociações. Apesar das grandes transformações políticas –
chegada da corte ao Brasil, Revolução do Porto e Independência –, para esses indígenas, as
invasões eram as mesmas e os desafios ainda maiores.
A discussão política sobre se os indígenas seriam ou não considerados cidadãos estava em
aberto. O debate iniciou ainda nas cortes de Lisboa, parlamento que passou a governar o
império português a partir de janeiro de 1821, como desdobramento da Revolução do Porto.
Mas não havia dúvidas quanto à grande parcela da população indígena cujos ancestrais
viviam integrados aos não índios fazia décadas ou séculos. Habitavam fazendas, pequenos
lugarejos, vilas e cidades, na condição de homens livres e trabalhando de aluguel para
proprietários e governos ou em terrenos próprios.
Esses grupos tinham uma longa tradição de relações de troca e fidelidade com o rei, por quem
seus antepassados haviam lutado. A figura do monarca representava amparo contra os abusos
de proprietários, ambiciosos de suas terras e de sua mão de obra. Por isso muitos índios
tenderam a apoiar o príncipe regente quando as cortes de Lisboa impuseram o retorno de
Dom João VI a Portugal e rivalizaram com Dom Pedro. Portanto, durante a independência, o
que estava em jogo para alguns grupos indígenas era a defesa de seu protetor e,
principalmente, a segurança de suas terras e a luta por condições dignas de trabalho.
Em regiões diferentes e tão distantes, esses povos acompanhavam as discussões na alta
política e o que era decidido tanto em Lisboa quanto no Rio de Janeiro. Agiam diante dos
debates mais amplos e, por vezes, na defesa de grandes projetos, mas sempre conectados com
questões locais e a partir de objetivos próprios. A partir das relações com proprietários
vizinhos, autoridades da Igreja e de governo e outros grupos inferiorizados, davam forma às
suas muitas atuações.
Os índios se envolveram em conflitos bélicos durante a Independência do Brasil. Várias
tropas indígenas foram recrutadas para proteger o território contra uma possível invasão da
antiga metrópole, como no litoral cearense entre setembro e novembro de 1822. Outras foram
convocadas para combater agrupamentos fiéis a Portugal, como a que veio da serra da
Ibiapaba, no Ceará, para um Piauí que ainda lutava contra tropas lusitanas em março de 1823.
Houve aqueles que empunharam seus arcos e flechas compondo revoltas e motins por
motivos muito variados. Os mesmos que adentraram em terras piauienses, fiéis a Dom Pedro
I, participaram de saques a casas de pessoas abastadas na vila de Campo Maior, dando gritos
de “morra, é corcunda”! Termo pejorativo usado contra os inimigos da separação Brasil e
Portugal, nessa situação foi estendido aos ricos, os verdadeiros inimigos das populações
marginalizadas. Já os índios da vila de Cimbres, em Pernambuco, se posicionaram em 1824 a
favor de Dom João VI. Motivados por desavenças contra as elites pernambucanas, também se
opuseram à Independência e à Constituição.
No entanto, o que parecia ser mais comum era o engajamento dos índios no projeto de Brasil
independente e identificando-se como “brasileiro”. No Pará, entre 1823 e 1824, houve
incontáveis episódios de envolvimentos indígenas em revoltas. Nelas, buscavam muito menos
se contrapor a europeus e mais lutar por uma nova posição social que não mais os obrigasse
ao trabalho forçado. As disputas em torno do “ser brasileiro” expressavam os projetos
políticos dos índios para a construção de uma nova ordem em que não fossem mais uma
parcela inferiorizada das sociedades. Por motivo semelhante, a índia Dionísia e suas
companheiras expulsaram da povoação de Baepina, no Ceará, em julho de 1822, o padre
Felipe Benício Mariz e outras duas autoridades na base de bofetadas! Os índios vereadores da
câmara de Vila Viçosa saíram em sua defesa, argumentando em um ofício que os
escorraçados eram “inimigos da causa brasílica”, assim como os membros da Junta de
Governo do Ceará, que deveria ser destituída.
Há ainda muito o que se pesquisar sobre a diversidade da atuação indígena na Independência,
que ia da rebelião às ações escritas. Agiram de formas variadas e em condições bem distintas,
com projetos próprios para o novo país e se valendo, inclusive, de preceitos liberais. No
entanto, o Estado que se formou em seguida rapidamente os marginalizou. A Constituição de
1824 sequer os menciona, revelando o silêncio como método de um Estado de proprietários
para, entre outras coisas, destruir o ancestral direito indígena à terra. Fato é que não se pode
compreender a Independência do Brasil sem o protagonismo indígena e a importância do
debate sobre essas populações na formação do país. As lutas atuais, como contra a aberração
jurídica do “marco temporal”, têm uma longa e aguerrida história de povos que sempre
estiveram e estarão por aqui.
Saiba mais
DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena: Estado
nacional e revoltas em Pernambuco e Alagoas, 1817-1848. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2018.
MACHADO, André Roberto de A. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do
Antigo Regime Português na província do Grão-Pará (1821-25). São Paulo: Hucitec/Fapesp,
2010.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A caverna de Platão contra o cidadão multidimensional
indígena: necropolítica e cidadania no processo de independência (1808-1831). Revista
OUTROS GRITOS DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL*
Ynaê Lopes dos Santos

O grito “independência ou morte!” marcou um novo tempo na história do Brasil. Naquele 7


de setembro de 1822, D. Pedro, até então príncipe regente, marcava a emancipação política
do território que pertencia a seu pai. O feito foi muito menos pomposo do que o quadro
pintado por Pedro Américo, em 1888, justamente um ano antes da queda do Império do
Brasil. O grito às margens de um rio pouco caudaloso – muitos diriam que não passava de um
córrego – não fora ensaiado. Foi quase um rompante do príncipe, agora imperador, tomando
as rédeas de uma independência que já havia sido assinada por sua esposa dias antes, uma
informação quase esquecida num país que insiste em silenciar a atuação das mulheres.
Gerações e mais gerações de brasileiras e brasileiros foram ensinados a pensar a
Independência do Brasil tendo o 7 de setembro como seu começo, meio e fim. Uma
Independência ou Morte!, que na realidade foi construída anos depois, que pouco fala sobre o
complexo e intrincado processo que culminou na emancipação e soberania deste país, que a
partir de então passou a se chamar Brasil.
É uma versão dos fatos marcada pelo que se tornou praxe ao contar a história do Brasil: a
passividade do brasileiro, sobretudo do povo, formado pelo harmonioso encontro das três
raças. Uma grande e redonda mentira.
Não foi por acaso que D. Pedro I bravejou Independência ou Morte! naquele 7 de setembro.
Ele sabia muito bem o quão esquentados estavam os ânimos de seus súditos. Sabia também
que, num tempo não muito longínquo, esses mesmos súditos haviam ousado pensar um país
independente e soberano. Por vezes, um país republicano – como na Inconfidência Mineira
(1789), na Conjuração Baiana (1798) e na Revolução de Pernambuco (1817). Em momentos
mais audaciosos, um país sem escravos.
Mas não foi isso que aconteceu. O 7 de setembro de 1822 foi também a escolha por uma
monarquia – que tinha a particularidade de ser um quarto poder – cuja base social era
composta por milhares de escravizados, africanos e nascidos no recém-criado país. Como
bem disse o historiador Luís Felipe de Alencastro, o Brasil nasceu apostando na escravidão,
projetando-a no seu futuro.
Uma aposta que explica muito o Brasil de hoje e os significados que estão tentando atribuir a
esse 7 de setembro. Um Brasil forjado por e para os interesses de uma classe política e
econômica muito bem desenhada, que fez tudo o que estava ao seu alcance para manter seus
privilégios e propagar sua visão de mundo, que entendia a população branca como a única
detentora do poder e do próprio fazer histórico. Um país para poucos. Os mesmos poucos de
sempre.
Mas a questão é que houve independência, e houve morte! Porque não foi apenas a elite
econômica e política que desejou uma nação soberana. O povo também a queria. E mais, o
povo – esse ser amorfo, heterogêneo, polifônico e profundamente poderoso – lutou por essa
liberdade, disputando à unha os possíveis sentidos que ela poderia ter.
É extremamente significativo que tenhamos aprendido tão pouco sobre as Guerras de
Independência no nosso próprio país. Como se elas nunca tivessem existido. Mas se nossa
soberania foi mais do que um grito, foi porque teve gente lutando e morrendo em nome dela.
Piauí, Rio de Janeiro, Maranhão, Bahia. Essas foram algumas das localidades brasileiras nas
quais o povo não branco deu novos sentidos para o Brasil, mostrando que o 7 de setembro de
1822 só perseverou graças à luta pela independência da Bahia, que começou em 1822 e
culminou no 2 de julho de 1823.
Homens e mulheres, negros, indígenas, mestiços, pobres e nem tão pobres fizeram com que o
7 de setembro se transformasse na nossa primeira data cívica. Foram eles que lutaram,
sangraram e, por vezes, morreram por um país que insiste em enterrar seus conflitos e
enfrentamentos.
Controlar o passado é uma forma eficaz de definir o futuro. Essa é uma das mais antigas
estratégias de exercício de poder. Por isso, precisamos revisitar o passado com criticidade.
Porque munidos de um olhar apurado, e de novas perguntas, vamos escutar as vozes de Maria
Felipa, uma mulher negra que liderou mais de 200 pessoas contra os portugueses nas batalhas
travadas na ilha de Itaparica, na Bahia. Ou então ouviremos Joana Angélica, uma senhora
branca, pertencente a uma ordem religiosa, que morreu em nome da Independência do Brasil.
Ouviremos também as vozes de Francisco Montezuma e de seus comparsas, muitos homens
negros, que queriam que a liberdade do Brasil se estendesse à população escravizada.
Como bem disse o samba-enredo da Mangueira, vencedor do Carnaval de 2019, ao
procurarmos “a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar”, veremos que um
outro 7 de setembro pode e deve ser nosso. Lutemos por ele.
*Texto originalmente publicado na coluna Negros Trópicos na DW Brasil, em 06/09/2021.
Para saber mais:
REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o partido negro na Independência da Bahia.
Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 13, p. 47-60, 1987.
SANTOS, Ynaê Lopes dos. O racismo brasileiro. Uma história da formação do país. São
Paulo: Todavia, 2022.
AFRODESCENDENTES E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
Esquecidos pela historiografia, saiba quem foram alguns dos “negros patriotas” que
militaram na época da independência.
Luiz Geraldo Silva
Já ouviu falar de Pedro da Silva Pedroso ou de Agostinho Bezerra Cavalcante e Souza? E os
nomes de Emiliano Felipe Benício Mundurucu e Antônio Joaquim da Costa Ribeiro, lhe
soam familiar? Pedroso, Cavalcante e Souza, Mundurucu e Ribeiro revelam importantes
traços em comum: todos eles tiveram relações profundas com eventos capitais da
Independência do Brasil, a exemplo da revolução de 1817 ou da decisão, tomada em janeiro
de 1822, de o príncipe D. Pedro permanecer no Brasil. Outros traços importantes se referem a
que todos eram militares de linha ou milicianos e exerciam ofícios artesanais – como de
alfaiate, músico ou sapateiro. Finalmente: todos eram afrodescendentes, isto é, “pretos,
“pardos” ou “crioulos”, como se dizia na época, o que significa que seus ascendentes
maternos ou paternos eram africanos e, de algum modo, vinculados à escravidão.
Portanto, o status desses indivíduos na sociedade brasileira da época da independência
também era, em última análise, associado ao cativeiro. Por essa razão, pesava sobre eles a
condição de desigual num contexto em que a noção de igualdade conferia acesso à
representação política àqueles que tomassem parte nas novas nações que então se
prefiguravam, baseadas na soberania do povo, e não mais na do monarca ou soberano.
Desde a Conjuração Baiana de 1798, chegando até a abdicação do imperador, em 1831,
sabe-se que esses “pardos” e “pretos” tiveram conhecimento das revoluções democráticas que
tiveram curso nos EUA, na França, em Saint-Domingue e no Caribe espanhol. Em vários
momentos eles se referiram a esses eventos e tiveram curiosidade em saber sobre eles: em
1805, por exemplo, milicianos afrodescendentes do Rio de Janeiro usavam no peito efígies de
Dessalines, imperador do Haiti. Em 1818, os irmãos “pardos” Dorneles e Barbosa, ambos
milicianos, alfaiates e moradores no Recife, perguntaram desavisadamente a um espião
“como viviam os rebeldes de Saint-Domingue.”
Um número ainda não calculado de africanos escravos e, sobretudo, de afrodescendentes
libertos e livres tiveram papel saliente na defesa militar, na condução e no destino final da
república criada em 1817 em Pernambuco. Pedro da Silva Pedroso (1770-1849), por
exemplo, destacou-se na ofensiva de deposição do governador Montenegro e, no plano
político, ressalta-se sua ação enérgica na vitória do partido republicano sobre os monarquistas
constitucionais. Frei Caneca escreveu em 1823 que Pedroso, na primeira reunião do governo
provisório, realizada a 7 de março de 1817, “quis atravessar com a espada e matar a José Luís
de Mendonça porque este fizera a moção de se estabelecer um reino constitucional em lugar
de uma república”. Uma vez que se tornou pública sua fama de “principal herói militar” de
1817, Pedroso foi investido no cargo de coronel do exército republicano e, durante o processo
de independência, foi governador de armas da província de Pernambuco (1822-1823).
Sua atuação em favor da república contradiz, todavia, sua adesão incondicional ao projeto
imperial, que o levou, após liderar um motim no Recife, em fevereiro de 1823, a se aproximar
de D. Pedro I. Foi graças a essa proximidade que Pedroso, então residindo no Rio de Janeiro,
foi incumbido pelo imperador de debelar as forças da Confederação do Equador (1824).
Curiosamente, Pedroso também esteve entre os militares que, em abril de 1831, conduziram
D. Pedro I ao exílio – o que demostra o quão tortuoso foi sua trajetória pessoal.
Dois outros milicianos destacaram-se na Confederação do Equador – o “preto” Agostinho
Bezerra Cavalcante e Souza (1788-1825) e o “pardo” Emiliano Felipe Benício Mundurucu
(1792-1863). Ambos lutaram contra a constituição outorgada do Império do Brasil e a favor
do novo projeto republicano e separatista. Preso em fins de 1824, Agostinho Bezerra acabou
enforcado em março de 1825, ao passo que Mundurucu seguiu por caminhos “atlânticos”: em
dezembro de 1824, embarcou em navio norte-americano e se refugiou em Boston. Em 1825,
fez breve visita ao Haiti e, em 1826, desembarca em Puerto Cabello, na Venezuela, onde se
alista nos exércitos bolivarianos. Mundurucu regressa a Boston em 1827. Em 1836, quando
obtém anistia, retorna ao Brasil, onde tenta se estabelecer como comandante de uma
fortaleza. No entanto, vítima de sua antiga militância, tem seu posto negado. Em 1841, acaba
retornando aos EUA, onde se torna um eminente abolicionista.
Embora identificadas com a luta pela igualdade política, essas trajetórias não conseguem,
contudo, ocultar tensões que sacudiam as personalidades desses indivíduos. Afinal, eles
viviam num contexto de transformações profundas, no qual aspirações do passado e projetos
de futuro se mesclavam. O miliciano “pardo” José do Ó Barbosa, a quem coube costurar o
estandarte da república de Pernambuco, em 1817, jamais abriu mão de possuir o escravo
Melchior, o qual também foi acusado de se juntar às hostes revolucionárias. Após renegar a
monarquia durante a revolução, Barbosa envergou, durante todo o tempo que esteve preso, a
sua farda de capitão do Terço de Pardos. Por sua vez, enquanto esteve no Brasil entre 1837 e
1841 ao lado dos filhos e da esposa norte-americana, Harriet Jardine, o mais tarde
abolicionista Emiliano Mundurucu sempre teve a companhia de um escravo. Em abril de
1840, ele obteve um hábito de ordem militar, a de Avis, e pareceu bastante satisfeito com a
distinção que lhe foi atribuída pelo governo imperial.
O caso dos afrodescendentes paulistas também é sintomático dessas tensões internas aos
indivíduos que confrontavam a velha e a nova ordem. Como se sabe, em setembro de 1821 as
cortes enviaram ao Rio de Janeiro uma tropa de 1.200 soldados sob o intuito de forçar o
retorno de D. Pedro I a Lisboa. O príncipe, em resposta, solicitou apoio militar às províncias
de Minas Gerais e São Paulo, de onde seguiram 1.100 milicianos, dos quais 69 eram
membros do Regimento dos Úteis, formado por “pardos”. Dentre eles, João Alves,
carpinteiro, Bento da Silva e Antônio Joaquim de Almeida, sapateiros, e o alfaiate Antônio
Joaquim da Costa Ribeiro, receberam condecorações e promoções, bem como solicitaram
hábitos da Ordem de Cristo.
Essas tensões, típicas da fase da transição, também marcavam as trajetórias de brancos, filhos
de europeus: basta destacar, por exemplo, como eles eram sedentos e ciosos de seus títulos
nobiliárquicos inventados nos Trópicos. Isso leva a concluir que valores e significados
daquela sociedade em transição permeavam a todos que dela faziam parte. O que havia de
específico aos afrodescendentes naquela ocasião era algo muito mais complexo e profundo,
algo que ainda urge na sociedade contemporânea: encarar o passado escravista,
compreendê-lo, superá-lo e, a partir daí, construir as bases de uma sociedade verdadeiramente
igualitária.
MULHERES NA INDEPENDÊNCIA?
Ausentes da historiografia, os lugares das mulheres brasileiras do século XIX continuam
desconhecidos
Ana Maria Veiga
Falar sobre mulheres no período que ficou conhecido como Independência do Brasil (em
torno do marco de 1822) é abordar ausências e como elas foram sendo construídas. Não que
as mulheres inexistissem ou não tivessem papel social relevante, mas a elas não era dado o
privilégio do protagonismo, social, econômico ou político. Se dizemos isso a respeito de
mulheres brancas, o que pensar das mulheres negras, indígenas, sertanejas? Que
“independência” era destinada a elas?
As mulheres rememoradas ao longo do século XIX vêm de uma pertença de classe definida.
Além de brancas, são membras de famílias privilegiadas, que começam a ganhar o espaço
urbano na transformação gradual de um Brasil em grande parte rural. No entanto, um amplo
leque se abre entre a imperatriz Leopoldina (1797-1826) e as mulheres indígenas localizadas
em seus territórios.
O protagonismo da existência sempre esteve nas mãos das excluídas da história – pobres,
sertanejas, negras, indígenas, escravizadas. Raras vezes a bolha da historiografia foi rompida
a ponto de chegar a elas, mulheres de vida comum, nos interiores e nas cidades incipientes.
A urbanização nas principais cidades, como Rio de Janeiro e Recife, marca a transição dos
moldes da família senhorial para os da família burguesa, quando as mulheres ganham
centralidade como reprodutoras/educadoras dos filhos e mantenedoras do sucesso dos
maridos. Tornam-se visíveis como função social, não como sujeitos/as.
A Independência e seu entorno constituem uma história masculina. É o momento dos novos
hábitos, do consumo de espetáculos e livros, que em pouco tempo alcançariam as famílias
abastadas de municípios menores, por exemplo, do Rio Grande do Norte, onde nasceu
Dionísia de Faria Rocha (1810-1885), que adotou o pseudônimo Nísia Floresta Brasileira
Augusta, mais conhecida como Nísia Floresta. Aos treze anos, ela se casava pela primeira
vez, para logo depois se separar do marido – um escândalo. Em 1832, publicou o texto
“Direito das mulheres e injustiça dos homens”. Além de escritora, Nísia se destacou como
jornalista, republicana e abolicionista, influenciando outras mulheres.
No ano que marca o Brasil independente, nascia em São Luís, no Maranhão, uma mulher
“parda”, que seria tida como a primeira autora de um romance brasileiro – Úrsula (1859). Na
atualidade, Maria Firmina dos Reis (1822-1917) é reivindicada pelo feminismo negro
brasileiro como marco do abolicionismo a partir da sua escrita literária.
Para além das linhas centrais, a literatura de cordel e os livros de memórias trazem à tona
figuras de mulheres sertanejas. Quando pertencentes às poucas famílias abastadas de suas
regiões, elas se casavam muito jovens, pela reprodução de sua camada social, na maioria das
vezes sem amor. As mais pobres não passavam por tantas exigências; de todo modo,
mulheres solteiras nunca foram bem vistas, sendo consideradas um perigo social.
Existiam também escravizadas que formaram vínculos afetivo-sexuais não formalizados pela
Igreja. Não tinham nomes de família, adotando sobrenomes ligados a santos, referências
religiosas ou dos seus antigos senhores, quando alforriadas. Logo as que mais precisavam de
liberdade ficaram fora da historiografia tradicional sobre a Independência. Havia uma
contradição flagrante entre a monarquia “civilizada” e a vigência da escravidão no Brasil.
Desse contexto, emergem personagens interessantes.
Eva Maria do Bonsucesso, por exemplo, foi uma escravizada que vendia quitutes nas ruas do
Rio de Janeiro e conseguiu a prisão de um homem branco de prestígio. Ao reivindicar seus
direitos pelo prejuízo causado por uma “cabra”, foi surrada pelo dono do animal, no meio da
rua; isso foi em 1811 e o processado era um amigo, depois funcionário da família real. As
escravizadas também reivindicavam direitos legais.
Gertrudes Maria, ex-escravizada sob condição, conseguiu um feito inédito na Parahyba do
Norte, tendo entrado com recurso judicial nos anos 1820 contra tentativas de reescravização.
Comprou metade da sua liberdade com o dinheiro do trabalho como quitandeira, mas teve
que provar nos tribunais que sua história era verdadeira: para o pagamento da segunda
metade, trabalharia para os senhores até o final das suas vidas. Mas ela ainda constava da lista
de bens do casal e foi cobrada como propriedade a ser confiscada pelos credores. A querela
judicial durou uma década e meia e Gertrudes virou símbolo da resistência negra.
Outra escravizada de destaque é Luiza Mahin, mãe do abolicionista Luís Gama (1830-1882).
Embora a documentação não comprove isso, Luiza é reivindicada pelo movimento negro
como uma das lideranças na revolta dos Malês, ocorrida em 1835 em Salvador. Nesse caso, a
oralidade traz seu valor histórico.
Por fim, chegamos à mulher cuja história se confunde com o mito e que virou símbolo do
silenciamento das mulheres negras no Brasil. Anastácia viveu na primeira metade do século
XIX, tendo passado pela Bahia e por Minas Gerais até chegar no Rio de Janeiro. As imagens
produzidas dessa mulher destacam os olhos verdes e a máscara de ferro cobrindo a boca. O
motivo pode ter sido a rejeição ao senhor, o ciúme gerado pela beleza ou mesmo a punição
pela ousadia. Com Anastácia, interrogamos a continuidade da herança escravista no Brasil
independente e o racismo, estruturante, que ainda habita o cerne da sociedade brasileira.
Junto a isso, os fatores gênero e classe intensificam a opressão sobre as mulheres, nesse e em
outros períodos históricos.
Uma historiografia que considere a multiplicidade de opressões sobre as mulheres na
Independência do Brasil ainda está por ser escrita, embora esforços já tenham sido feitos por
autoras/es que expandem seus olhares para além das linhas centrais, que evidenciam
mulheres destacadas em outras pesquisas. As ausências podem ser resolvidas com a
simplicidade de um ajuste de lentes e interesses, além da (re)descoberta de nova
documentação.
Saiba mais:
GOMES, Flávio, LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia M. (org.). Enciclopédia Negra.
São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
MAIA, Cláudia. A invenção da solteirona. Florianópolis: Editora Mulheres, 2011.
PRIORE, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
ROCHA, Solange. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco
espiritual. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

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