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Os brasileiros têm uma inclinação por falar mal de si mesmos, de seu país, de sua população,
de sua cultura. Nesse meio, acaba sobrando também para sua história. Uma história
supostamente desinteressante, sem grandes acontecimentos, pacata e sonolenta, sempre um
acordão meio secreto entre poderosos para manter ricos os ricos, e pobres os pobres. Nem
uma independência digna desse nome o Brasil teria tido!
É certo que nem todo mundo pensa assim e sempre haverá honrosas exceções. Principalmente
os brasileiros que não só se interessam por sua história, mas ainda procuram estudá-la com
seriedade e rigor. Mas também é certo que nossos mitos nacionais são fortes, estão
espalhados por toda a parte, se alimentam de desinformações (e comemorações) e acabam por
confundir muita gente. Dentre esses mitos, está o de nossa não-independência.
Existiu, sim, uma independência do Brasil e fazer essa afirmação não quer dizer que este
autor esteja elogiando nosso país ou nossa história. Menos ainda que ele goste de tediosas
comemorações cívicas oficiais, acredite em heróis ou admire grandes feitos militares. Quer
dizer apenas que, após estudar o tema, ele tem quatro coisas a dizer.
Primeira: em 1822, o Brasil começou a se separar de Portugal e isso não aconteceu de
repente. Foi parte de um processo mais longo que, em alguns aspectos, começou em fins do
século XVIII e, em outros, se completou nos primeiros vinte ou trinta primeiros anos do XIX.
Até 1822, Portugal e Brasil tinham sido parte daquele enorme Império português que, em
1815, tinha recebido um novo e pomposo nome: Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Quando o Brasil se separou, esse Reino Unido deixou de existir e o Brasil começou uma vida
própria.
É certo que essa separação não foi total, completa e absoluta. Em muitos sentidos, o Brasil
continuou a ser um pouco “português”. Em outros sentidos, também um pouco “colônia”.
Mas isso é absolutamente normal. Nenhum país independente vive completamente livre de
seu passado. Nenhum país é só novidade ou superação.
Segunda: quando se tornou independente, o Brasil foi virando, aos poucos, um Estado e uma
nação soberanos – duas coisas que não existiam antes e que existem até hoje. Colônia de
Portugal ele já não era fazia tempo: desde pelo menos 1808, quando a corte portuguesa veio
morar no Brasil. Em 1815, o Brasil tinha virado um reino da mesma importância que
Portugal. Mas a partir de 1822, outros países do mundo foram reconhecendo o Brasil como
sendo mais um deles, como um membro de um sistema de relações internacionais sem o qual
um país não pode – é assim até hoje – ser verdadeiramente independente.
Ao contrário do que se costuma pensar, em 1822 o Brasil não deixou de ser colônia de
Portugal – como já disse, isso ocorreu antes – para se tornar colônia da Grã-Bretanha ou dos
Estados Unidos. Simplesmente, como qualquer país independente, o Brasil teve que se
adaptar ao sistema internacional do qual ele passou a fazer parte.
Terceira: como tudo na história, as palavras e seus sentidos estão sempre mudando. Hoje em
dia, a palavra independência pode significar, dentre outras coisas, poder, prosperidade,
bem-estar, liberdade. Mas em 1822, ela queria dizer principalmente capacidade de tomada
de decisão própria, sem ter que seguir as decisões de outro. E a independência do Brasil foi
exatamente isso: um grupo bastante amplo de pessoas decidiu formar um novo governo e –
aos poucos – um novo Estado e uma nova nação que não seriam mais portugueses, mas
brasileiros. E fizeram isso no meio de muitas disputas, conflitos, revoluções e guerras (isso
mesmo: o Brasil teve suas revoluções e guerras, e nossa independência juntou as duas coisas).
Quarta: a independência também foi uma mistura de outras independências menores, um
monte de situações em que pessoas quiseram tomar suas próprias decisões de maneira livre,
em defesa de interesses que nem sempre eram comuns a outras: ricos, pobres, brancos,
pardos, pretos, índios, homens, mulheres… Alguns grupos perderam, outros ganharam, uns
são hoje mais conhecidos do que outros, mas todos fizeram parte de um mesmo processo
histórico e que não aconteceu em um só lugar, mas em muitas regiões daquele mosaico de
lugares diferentes que era o Brasil de 1822.
Talvez a Independência não tenha sido aquilo que o leitor imaginasse. Certamente, ela não foi
o que muitos de seus participantes quiseram que ela fosse. Tampouco foi exatamente o que
dela fizeram governos, instituições, políticos e outros grupos específicos que, desde 1822,
vêm comemorando, distorcendo e usando politicamente a História a seu bel-prazer, segundo
seus interesses privados – no Brasil atual, inclusive. Todos esses desconhecimentos,
frustrações e manipulações também contam suas histórias particulares, sem dúvida. E todos
juntos formam a história da Independência, de sua memória e de sua atualidade.
Não só como História, mas também como memória, a Independência existiu. E é assim que
ela continuará a existir, hoje e amanhã, no nosso Brasil. Gostemos dele ou não.
Saiba mais
JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005.
LYRA, Maria de Lourdes Viana. O império em construção: Primeiro Reinado e Regências.
São Paulo: Atual, 2000.
MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marília e a pátria. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. A Independência e a construção do império,
1750-1824. São Paulo: Atual, 1995.
POVOS INDÍGENAS E A INDEPENDÊNCIA
Das matas às vilas, em rebeliões ou por escrito, os indígenas atuaram politicamente de
diferentes formas na independência do Brasil
João Paulo Peixoto Costa
Para começo de conversa, é preciso saber que não havia (assim como não há hoje) uma
forma única de ser indígena. Na década de 1820 eram compostos por incontáveis línguas,
culturas, tradições, espiritualidades e formas de ver o mundo. Além disso, e talvez o mais
importante para o que discutimos aqui, estavam submetidos a variadas condições sociais. Daí
é fácil imaginar a diversidade de posições assumidas, das condições de envolvimento e dos
impactos vivenciados pelos povos indígenas na independência do Brasil.
Os que habitavam seus próprios territórios, até então com pouco ou nenhum contato com os
não indígenas, cada vez mais sofriam com a expansão agrícola. Com a independência, à
frente da elite política e fundiária, Dom Pedro I deu seguimento às ordens que seu pai, Dom
João VI, havia dado em 1808 e 1809 para eliminar os ditos “selvagens” das matas dos atuais
Sul e Sudeste brasileiros. A tendência de avanço em territórios de povos não integrados à
sociedade luso-brasileira seguiu firme em outras regiões do Brasil, com muitas mortes,
escravizações, resistências e negociações. Apesar das grandes transformações políticas –
chegada da corte ao Brasil, Revolução do Porto e Independência –, para esses indígenas, as
invasões eram as mesmas e os desafios ainda maiores.
A discussão política sobre se os indígenas seriam ou não considerados cidadãos estava em
aberto. O debate iniciou ainda nas cortes de Lisboa, parlamento que passou a governar o
império português a partir de janeiro de 1821, como desdobramento da Revolução do Porto.
Mas não havia dúvidas quanto à grande parcela da população indígena cujos ancestrais
viviam integrados aos não índios fazia décadas ou séculos. Habitavam fazendas, pequenos
lugarejos, vilas e cidades, na condição de homens livres e trabalhando de aluguel para
proprietários e governos ou em terrenos próprios.
Esses grupos tinham uma longa tradição de relações de troca e fidelidade com o rei, por quem
seus antepassados haviam lutado. A figura do monarca representava amparo contra os abusos
de proprietários, ambiciosos de suas terras e de sua mão de obra. Por isso muitos índios
tenderam a apoiar o príncipe regente quando as cortes de Lisboa impuseram o retorno de
Dom João VI a Portugal e rivalizaram com Dom Pedro. Portanto, durante a independência, o
que estava em jogo para alguns grupos indígenas era a defesa de seu protetor e,
principalmente, a segurança de suas terras e a luta por condições dignas de trabalho.
Em regiões diferentes e tão distantes, esses povos acompanhavam as discussões na alta
política e o que era decidido tanto em Lisboa quanto no Rio de Janeiro. Agiam diante dos
debates mais amplos e, por vezes, na defesa de grandes projetos, mas sempre conectados com
questões locais e a partir de objetivos próprios. A partir das relações com proprietários
vizinhos, autoridades da Igreja e de governo e outros grupos inferiorizados, davam forma às
suas muitas atuações.
Os índios se envolveram em conflitos bélicos durante a Independência do Brasil. Várias
tropas indígenas foram recrutadas para proteger o território contra uma possível invasão da
antiga metrópole, como no litoral cearense entre setembro e novembro de 1822. Outras foram
convocadas para combater agrupamentos fiéis a Portugal, como a que veio da serra da
Ibiapaba, no Ceará, para um Piauí que ainda lutava contra tropas lusitanas em março de 1823.
Houve aqueles que empunharam seus arcos e flechas compondo revoltas e motins por
motivos muito variados. Os mesmos que adentraram em terras piauienses, fiéis a Dom Pedro
I, participaram de saques a casas de pessoas abastadas na vila de Campo Maior, dando gritos
de “morra, é corcunda”! Termo pejorativo usado contra os inimigos da separação Brasil e
Portugal, nessa situação foi estendido aos ricos, os verdadeiros inimigos das populações
marginalizadas. Já os índios da vila de Cimbres, em Pernambuco, se posicionaram em 1824 a
favor de Dom João VI. Motivados por desavenças contra as elites pernambucanas, também se
opuseram à Independência e à Constituição.
No entanto, o que parecia ser mais comum era o engajamento dos índios no projeto de Brasil
independente e identificando-se como “brasileiro”. No Pará, entre 1823 e 1824, houve
incontáveis episódios de envolvimentos indígenas em revoltas. Nelas, buscavam muito menos
se contrapor a europeus e mais lutar por uma nova posição social que não mais os obrigasse
ao trabalho forçado. As disputas em torno do “ser brasileiro” expressavam os projetos
políticos dos índios para a construção de uma nova ordem em que não fossem mais uma
parcela inferiorizada das sociedades. Por motivo semelhante, a índia Dionísia e suas
companheiras expulsaram da povoação de Baepina, no Ceará, em julho de 1822, o padre
Felipe Benício Mariz e outras duas autoridades na base de bofetadas! Os índios vereadores da
câmara de Vila Viçosa saíram em sua defesa, argumentando em um ofício que os
escorraçados eram “inimigos da causa brasílica”, assim como os membros da Junta de
Governo do Ceará, que deveria ser destituída.
Há ainda muito o que se pesquisar sobre a diversidade da atuação indígena na Independência,
que ia da rebelião às ações escritas. Agiram de formas variadas e em condições bem distintas,
com projetos próprios para o novo país e se valendo, inclusive, de preceitos liberais. No
entanto, o Estado que se formou em seguida rapidamente os marginalizou. A Constituição de
1824 sequer os menciona, revelando o silêncio como método de um Estado de proprietários
para, entre outras coisas, destruir o ancestral direito indígena à terra. Fato é que não se pode
compreender a Independência do Brasil sem o protagonismo indígena e a importância do
debate sobre essas populações na formação do país. As lutas atuais, como contra a aberração
jurídica do “marco temporal”, têm uma longa e aguerrida história de povos que sempre
estiveram e estarão por aqui.
Saiba mais
DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena: Estado
nacional e revoltas em Pernambuco e Alagoas, 1817-1848. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2018.
MACHADO, André Roberto de A. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do
Antigo Regime Português na província do Grão-Pará (1821-25). São Paulo: Hucitec/Fapesp,
2010.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A caverna de Platão contra o cidadão multidimensional
indígena: necropolítica e cidadania no processo de independência (1808-1831). Revista
OUTROS GRITOS DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL*
Ynaê Lopes dos Santos