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Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

“I APOLOGIA”, DE SÃO JUSTINO DE ROMA

O autor e a obra

➢ O autor: S. Justino é o mais célebre apologista do século II. Nasceu na atual cidade de Naplona,
antiga Siquem, na província de Damasco, na Síria, em data incerta, entre os anos de 100 e 110.
Filho de pais pagãos, o jovem Justino, ávido de instrução e apaixonado pela filosofia, percorreu
várias escolas filosóficas. Recebeu primeiro as lições de um estóico, mas notando que este
filósofo era pouco versado na metafísica e que não podia esclarecê-lo a respeito de Deus,
abandonou-o e foi procurar um peripatético, que o ensinou durante alguns dias, mas no fim
veio nítida e instante a questão dos honorários, que Justino levou a mal e retirou-se. Foi procurar
um pitagórico, que inicialmente o submeteu a um
interrogatório acerca dos seus conhecimentos de
música, astronomia, aritmética, geometria e
demais ciências, cujo estudo era necessário para o
entendimento da filosofia. Como respondesse
negativamente, não foi admitido. Foi então
procurar um platônico. O platonismo gozava
naquele tempo de grande reputação e era seguido
por homens de valor. Tomou um destes por mestre
e logo começou a fazer rápidos e importantes
progressos. O que o entusiasmava mais em Platão
era o conhecimento de coisas inteligíveis. A teoria
São Justino Mártir
das ideias dava asas ao seu espírito, mas um dia em
que se entregava a profundas cogitações filosóficas, encontrou um velho, que veio ao encontro
do seu pensamento e mostrou-lhe a insuficiência da filosofia. Este velho, que era cristão,
convidou-o a estudar, de preferência, a Sagrada Escritura e sobretudo os Profetas e a vida de
Jesus Cristo. Justino aceitou o conselho. As suas inquietações foram desaparecendo. Uma luz
nova iluminava o seu caminho e com a abertura de novos horizontes veio a converter-se, aí
pelo ano de 130. Esta conversão, fruto de muito exame e de muita reflexão, foi notável. Como
apologista, S. Justino foi um verdadeiro iniciador. Soube juntar admiravelmente os princípios
da razão com os dogmas da fé e procurou fazer, no tempo do imperador filósofo Marco Aurélio,
um ensaio de filosofia religiosa. Foi o primeiro, diz Tixeront, que examinou mais de perto as

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relações entre a Razão e a Fé e que introduziu nas suas obras a linguagem filosófica. Fez-se
missionário leigo da doutrina de Cristo, principalmente entre os homens de certa erudição, com
os quais melhor se entendia, e chegou a abrir em Roma uma escola que alcançou algum sucesso.
S. Justino apresentava a doutrina cristã como a mais alta e a mais segura de todas as filosofias.
Foi em Roma que alcançou a palma do martírio, cujas atas autênticas se conservam ainda,
morrendo por Cristo no tempo de Antonino Pio.
➢ Obras de São Justino: S. Justino foi um escritor fecundo. Conhecem-se os títulos de nove ou
dez das suas obras autênticas: Duas Apologias, um Discurso aos gregos, uma Refutação contra
os gregos, Da Monarquia divina, O Salmista, um Tratado da alma, o Diálogo com Trifão, um
Syntagma (Tratado contra todas as heresias). De todas estas obras apenas chegaram até nós as
duas Apologias e o Diálogo com Trifão. Das outras restam apenas citações ou fragmentos.
➢ A Primeira Apologia: Se trata de uma obra admirável e, do ponto de vista literário, é superior
a todas até aqui estudadas. É uma verdadeira apologia, tanto dos cristãos quanto da fé cristã:
para defendê-los, dedica-se a mostrar que os cristãos são castigados injustamente, e entendendo
que isso se devia à ignorância a respeito da fé católica, se põe a explicá-la aos ilustres
imperadores. Apesar de ser na II Apologia que a empreitada de São Justino rumo à conciliação
entre o pensamento filosófico grego e a Verdade Revelada fica evidente, na I Apologia já há
apontamentos neste sentido. Isso faz do grande mártir São Justino o ancestral de todos os Padres
da Igreja que se dedicariam a desenvolver tal tarefa, e um dos pilares do pensamento católico.
➢ Data e endereçamento: Deve ter sido publicada em Roma entre 150 e 155, e foi dirigida ao
imperador Antonino Pio, aos seus Co-Césares e herdeiros Marco Aurélio e Lúcio Vero, ao
Senado e ao povo romano.
(Padre Insuelas. Curso de Patrologia, p. 51-54).

A estrutura do texto

➢ A Primeira Apologia divide-se em cinco partes:


o Na primeira parte Justino estabelece a proposição: quem não comete crimes não deve
ser condenado. Ora, os cristãos não cometeram os crimes de que o acusam. Logo, os
cristãos não devem ser condenados (1-4)
o Na segunda parte, trata de provar a proposição menor, qual seja, a de que os cristãos
não cometem crimes e que não são inimigos do Império (5-12).
o Na terceira parte propõe-se a tornar conhecida a fé cristã: sua moral (14-17), alguns de
seus dogmas (18-20), seu fundador e sua história (21-22).

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o Na quarta e mais extensa parte, o santo dedica-se a provar tudo quanto diz,
fundamentando a razão da fé cristã nas profecias veterotestamentárias e
demonstrando simultaneamente os absurdos do paganismo (23-60).
o Na quinta parte, Justino dá testemunho dos ritos e sacramentos da Igreja, uma preciosa
fonte histórica a respeito da liturgia antiga (61-67).
➢ Conclui com uma exortação final aos imperadores (68).

Primeira Parte – Exortação Inicial e razão da apologia

➢ O motivo da apologia: Justino se apresentava como cristão aos imperadores sem medo,
dizendo, “sou um deles”, deixando claro que com esse escrito não queria bajulá-los, mas pedir
que realizassem “um julgamento justo contra os cristãos, conforme o exato discernimento da
investigação” e não por paixão, preconceito, ou com o intento de agradar aos homens
supersticiosos e irracionais (1-2). No final da Apologia, porém, dirá que não está apenas a
defender os cristãos, mas a própria fé cristã, exortando por isso os imperadores à conversão:
“Uma vez que os exortamos pelo raciocínio e por uma figura parente, na medida de nossas
forças, daqui por diante nós não nos sentiremos irresponsáveis, mesmo que continueis
incrédulos, pois o que dependia de nós já foi feito e chegou ao fim” (55,8).
➢ Como os imperadores devem agir: O santo apela para o espírito filosófico dos imperadores,
todos eles dedicados à filosofia, mostrando que quando eles assim agem, prejudicam antes a si
mesmos, “sentenciando contra vós mesmos” (2,3) Quando eles cometem injustiça, acrescenta,
o fazem não apenas contra homens inocentes, “mas contra vós mesmos” (3,1). Este argumento,
que é variadas vezes repetido ao longo da I Apologia, demonstra o pano de fundo platônico do
texto de Justino, explicado na caixa abaixo:

Um dos aspectos mais fundamentais da ética platônica, aspecto este herdado do pensamento socrático, é a máxima
de que “é melhor ser vítima de injustiça do que cometê-la”.

A questão aparece com clareza no diálogo “Górgias”, de Platão, entre os parágrafos 468e e 470d, nos quais o
personagem Sócrates discute com o jovem Pólo a respeito da felicidade. Pólo declara invejar os homens que fazem
o que quer e os tiranos que executam quem quiserem, e pergunta se Sócrates também não os inveja. Sócrates se
exalta, dizendo que não se deve invejar os miseráveis, pois “aquele que comete uma injustiça é o mais infeliz e
miserável dos homens”, concluindo dizendo que é menos infeliz aquele que é executado injustamente do que aquele
que perpetra a injustiça. Para o horror de Pólo, Sócrates diz que: “Se fosse necessário ou cometer injustiça ou sofrê-
la, escolheria sofrê-la de preferência a cometê-la”. Pólo replica que é pior sofrer injustiça a cometê-la, mas que é
mais vergonhoso cometer injustiça a sofrê-la. Sócrates mostra como tal raciocínio é equivocado, pois Pólo dissocia
o admirável do bem e o vergonhoso do mau. Não há como, argumenta o filósofo, algo ser melhor e ao mesmo
tempo mais vergonhoso do que outra coisa, de modo que caso cometer injustiça seja mais vergonhoso do que sofrê-
la, por decorrência será pior cometer a sofrê-la.

Só é possível compreender plenamente o argumento de Platão quando se considera sua visão a respeito da justiça
e da felicidade. Ela começa a desvelar-se mais adiante no próprio Górgias, entre os §§ 477b e 479c, e fica mais
evidente na “A República”.

Para Platão, como enunciado no Górgias, a justiça e a injustiça não são realidades externas ao homem. Ao contrário,
assim como o corpo padece das doenças, a alma padece do estado de injustiça. A injustiça, o estado vicioso da
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alma,para Daniel
é o maior deque
mal Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com
existe.
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Na República ele explica no que consiste a injustiça: havendo na alma do homem três partes – a racional, a
irascível e a concupiscível -, para que o homem seja feliz a parte superior deve governar a inferior, e nisso consiste
a justiça. No homem justo, a parte racional governa a irascível e a concupiscível, e a irascível a concupiscível,
enquanto no homem injusto as duas partes inferiores estão desgovernadas, dando ele, portanto, livre curso às
paixões. O homem justo é feliz, enquanto o injusto não pode sê-lo.

Esse estado de injustiça prejudica sobretudo aquele que nele vive, e os atos injustos que pratica apenas pioram o
estado doentio de sua alma.

É por isso que São Justino afirma aos imperadores que caso permitam semelhantes injustiças contra os cristãos,
serão eles os primeiros prejudicados. Outrossim, antes sofrer injustiça a cometê-la.

Outra nítida influência platônica na I Apologia e que se relaciona com o mesmo argumento se encontra no capítulo
57, no qual diz São Justino: “Os demônios não conseguem convencer que não haverá a conflagração para castigar
os ímpios, do mesmo modo que não conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu. A única coisa que
conseguem é fazer que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em meio aos maus costumes,
entregues às suas paixões e seguindo a opinião vã, nos tirem a vida e nos odeiem. Nós, porém, não só não os
odiamos, mas, como é evidente, queremos, por pura compaixão que temos por eles, persuadi-los a que se
convertam.”
➢ OsComo
pagãos,os cristãos devem
perseguidores ser investigados
dos cristãos, e condenados:
“vivem irracionalmente”, pois estãoÉnaquele
necessário
estado condenar
de injustiçaos cristãos
de que fala
Platão: neles não é a parte racional da alma que governa, mas as partes inferiores, vivendo “entregues às suas
somente quando fizeram algo de verdadeiramente mal e contrário às leis, e não somente pelo
paixões”.
“nome de cristão”. Um nome, em si mesmo, “não pode originar elogio ou reprovação se não
se puder demonstrar por fatos alguma coisa virtuosa ou vituperável”. Os cristãos são, com
efeito, condenados somente por se declararem cristãos – e libertados caso neguem sê-lo. Isso é
absurdo. “É necessário examinar a vida tanto daquele que confessa como daquele que nega, a
fim de pôr às claras, por suas obras, a qualidade de cada um” (4).
➢ Não pede que os acusadores sejam punidos: Mais adiante (capítulo 7), São Justino pede que
as ações dos cristãos denunciados sejam examinadas e, caso tenham cometido crimes, que
sejam punidos, mas que ninguém seja punido apenas por ser cristão. Ademais, pede
que os acusadores não sejam punidos, “pois eles já padecem bastante com sua
maldade” (7,5).

Segunda Parte – Os cristãos não cometem crimes e não são inimigos do Império

➢ Na segunda parte da Apologia (capítulos 5 a 12), São Justino trata


de responder às mentirosas acusações feitas contra os cristãos:
o Os cristãos não são ateus (5-6): Acontece que no
passado os demônios convenceram os homens de
que eram deuses, e os homens passaram a os
adorar com os nomes com os quais se
apresentavam. Sócrates chamara atenção a isso:
“Quando Sócrates, com raciocínio verdadeiro e

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investigando as coisas, tentou esclarecer tudo isso e afastar os homens dos demônios,
estes conseguiram, por meio de homens que se comprazem na maldade, que ele também
fosse executado como ateu e ímpio, alegando que ele estava introduzindo novos
demônios. Tentam fazer o mesmo contra nós” (5,3). Os cristãos receberam, pela fé em
Jesus Cristo, ciência de que aqueles demônios não são deuses e que, por isso não devem
ser adorados. Deste modo, não são ateus, pois creem no Deus verdadeiro e no seu Filho:
são ateus apenas em relação aos falsos deuses cultuados pelos pagãos.
o Os cristãos não mentem (8): Os cristãos podiam mentir e dizer que não são cristãos
quando interrogados, mas não mentem, pois não vivem na mentira, ao contrário,
desejam viver na vida eterna e pura com Deus Pai.
o Os cristãos buscam praticar a virtude (9-10): Não tomam parte nos vãos sacrifícios
dos pagãos, pois sabem que Deus não tem necessidade de nenhuma oferta material. Ele
quer, ao contrário, que se imite suas próprias virtudes. Os cristãos creem que se unirão
a Deus no céu se praticarem a virtude, e se suas obras se mostrem dignas do desígnio
de Deus. Com efeito, quem com tal esperança e tal fé praticaria os crimes que lhes são
imputados.
o Os cristãos não são inimigos de Roma (11): Ao contrário do que dizem, nosso reino
não é deste mundo. O Reino de Deus que esperam não é neste, mas no outro. E o prova
de modo cabal: “De fato, se esperássemos um reino humano, o negaríamos para evitar
a morte e procuraríamos viver escondidos, a fim de conseguir o que esperamos; mas
como não depositamos nossa esperança no presente, não nos importamos que nos
matem, além do que, de qualquer modo, haveremos de morrer” (11,2).
o Os cristãos são os melhores cidadãos (12): “Somos vossos melhores ajudantes e
aliados para a paz”, pois professamos doutrinas que nos obrigam a viver de acordo com
a virtude. Ao contrário dos demais, que praticarão crimes se não forem vistos, o cristão
sabe que Deus vê até seu pensamento. Se toda a sociedade fosse cristã, não mais haveria
crime e desordem. Os cristãos são, por decorrência, os melhores cidadãos.

Terceira parte – Resumo da moral e da fé cristã

➢ No que creem os cristãos (13, 18): Creem em Jesus Cristo, o Filho de Deus verdadeiro, aquele
mesmo que nasceu e que foi morto sob Pôncio Pilatos no tempo de Tibério (13); creem, mais
até do que os antigos gregos, que a alma humana é eterna, e que Deus nos ressuscitará no fim
dos tempos (18); prova a possibilidade da ressurreição utilizando a imagem do sêmen (19);

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creem que os que não tiverem vivido de acordo com os preceitos de Cristo irão para o inferno
(19).
➢ Por que os pagãos zombam dos dogmas cristãos se creem em paralelos muito mais baixos?
(20-22): Como o santo tem afinidade com a filosofia e a mitologia pagãs, ela faz uma
comparação entre as doutrinas cristãs com as filosóficas e com alguns mitos gregos. Sua
intenção não é rebaixar a fé cristã a elas, mas demonstrar que os pagãos creem em coisas
deveras absurdas. Com efeito, encontra paralelo do fogo do inferno nos estoicos; da criação do
mundo por Deus em Platão; dos castigos e das bonanças após a morte muito filósofos e poetas
falaram. Enquanto os cristãos creem na vida de Cristo (Encarnação, morte e ressurreição), os
pagãos creem em histórias absurdas sobre seus deuses, etc. Por que então punir os cristãos que
nisso creem e não os pagãos que naquilo creem?
➢ Como vivem os cristãos – a doutrina de Cristo (15-16): Justino resume o Sermão da
Montanha, citando as virtudes cristãs, as bem-aventuranças e as exortações do Senhor: a
temperança; a condenação ao adultério, mesmo de desejo; a virgindade e o celibato; a correção
de vida dos que eram dissolutos e se converteram; o amor a todos; repartir tudo com os
necessitados e nada fazer por ostentação; entesourar para o reino dos céus; não se preocupar
com o que comer e vestir; a paciência; oferecer a outra face; não jurar e dizer a verdade; adorar
unicamente a Deus; ser cristão não apenas de boca.
➢ Atitude dos cristãos perante o Império (17): Dar a César o que é de César e a Deus o que é
de Deus. “Portanto, nós somente a Deus adoramos, mas em tudo o mais nós servimos a vós
com gosto, confessando que sois imperadores e governantes dos homens e rogando que, junto
com o poder imperial, também se encontre que tenhais prudente raciocínio” (17,3).

Quarta parte – Defesa da veracidade da fé cristã

➢ Plano Apologético (23): Justino diz que irá provar o que está dizendo, mostrando que a fé
cristã “é a única verdade e a mais antiga do que todos os escritores que existiram”.
Demonstrará que Jesus Cristo é o único Filho de Deus, seu Verbo, que se fez homem de acordo
com seu designío e nos ensinou toda nossa fé”.
➢ As virtudes dos cristãos (24-29): Em primeiro lugar Justino prova que os cristãos são
injustamente perseguidos. Diz que eles são os únicos que são odiados por causa do seu nome
(o de Cristo), sendo que a única coisa pela qual podem ser recriminados é de que “não
veneramos os mesmos deuses que vós” (24). Com efeito, os cristãos creem em um Deus superior
aos dos gregos, que não se entrega às vãs paixões dos falsos deuses, e preferem a morte,

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desprezando todos eles por amor a Jesus Cristo (25). Os hereges, apesar de levarem o nome de
cristãos, não são perseguidos e nem condenados por causa de suas doutrinas, “apenas nós”
(leia-se “os católicos”) (26). Os católicos, contudo, evitam cometer todo tipo de pecado, pois
sabem do juízo de Deus (28). Ao contrário dos pagãos, não abandonam as crianças para serem
pervertidas ou mortas (27 e 29) e recusam todo tipo de união impura – “nós, ou nos casamos
desde o princípio para a única finalidade de gerar filhos, ou renunciamos ao matrimônio,
permanecendo absolutamente castos”.
➢ Provas da fé cristã nas profecias judaicas: O principal instrumento apologético que o santo
utiliza para a provar a veracidade da fé em Jesus Cristo são as profecias do Antigo Testamento:
“apresentaremos, pois, a demonstração, não dando fé àqueles que nos contam os fatos (ou
seja, os apóstolos), mas crendo por necessidade naqueles que os profetizaram antes de
acontecer” (30). Mais adiante diz mesmo: “por que motivo haveríamos de crer que um homem
crucificado é o primogênito de Deus ingênito e que julgará todo o gênero humano, se não
encontrássemos testemunhos sobre ele, publicados antes de ele ter nascido como homem e não
os víssemos literalmente cumpridos” (53,2). Começa por explicar que entre os judeus houve
profetas e reis pelos quais o Espírito profético anunciou tudo o que se realizou em Jesus e nos
apóstolos: que ele nasceria de uma Virgem (33), em Belém de Judá (34), que ele viveria oculto
dos homens e que chegaria à idade adulta (35), que curaria toda doença e fraqueza (48) e que
ressuscitaria dos mortos; que seria vítima de conspiração dos poderosos (40); que seria
invejado, desconhecido e crucificado (35); que morreria, ressuscitaria e subiria aos céus; que
ele é e se chama Filho de Deus; que ele enviaria alguns dos seus para proclamar essas coisas a
todo o gênero humano e que seriam os gentios os que mais creriam neles (39-40), que ele
reinaria depois de crucificado (41) e que seria a alegria das nações (42). Essas profecias, diz o
santo, “foram feitas umas cinco, outras três, outras dois mil e outras mil e oitocentos anos antes
que ele aparecesse no mundo” (31,8). “Cristo”, diz em outra parte, “que foi crucificado, morreu
e ressuscitou em nosso tempo, não só reinou ao subir ao céu, mas pela sua doutrina, pregada
pelos apóstolos em todas as nações, é a alegria de todos os que esperam a imortalidade que
ele nos prometeu” (42,4). Que outro crucificado, pergunta ao imperador, tornou-se alegria dos
homens de todas as nações como anunciara Davi senão Jesus Cristo? Ademais, também foi
profetizada a ascensão e a glória de Jesus (45 e 51), a devastação de Jerusalém (47), a ausência
de fé dos judeus e a conversão dos gentios (49).
➢ A maioria dos cristãos viria das nações e não do judaísmo: Concluindo a listagem das
profecias cumpridas e as por cumprir, São Justino cita aquela que “prediz que os crentes serão
em maior número entre aqueles que procedem da gentilidade do que entre judeus e

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samaritanos” (53,5). Trata-se de profecias de Isaías, cumpridas no evidente fato de que


enquanto as nações estavam abandonadas por Deus, creram, os judeus, que tinham a palavra de
Deus e esperavam o Cristo, não creram nele, exceto alguns poucos (53.6).
➢ Diferença das profecias cristãs e o destino pagão (43-44): Logo após listar todas as profecias
do Antigo Testamento, Justino enfatiza que elas não se tratavam de um destino premeditado
que deveria se cumprir, tal como nas religiões pagãs. Ao contrário, a fé cristã crê na
possibilidade de o ser humano escolher seus próprios caminhos. Se assim não fosse, não seria
possível que os homens mudassem do bem para o mal e vice-versa, e tampouco seria razoável
que alguém fosse punido ou elogiado por suas ações. Se se diz que os acontecimentos futuros
foram profetizados, se quer dizer que Deus conhece de antemão tudo o que será feito por todos
os homens, e que ele os recompensa por isso. Com efeito, a responsabilização humana pelos
seus atos é algo previsto desde o Antigo Testamento antes mesmo que Platão dissesse que “a
culpa é de quem escolhe. Deus não tem culpa”. Justino diz que Platão disse isso porque tomou-
o de Moisés, acrescentando que “tudo o que os filósofos e poetas disseram sobre imortalidade
da alma e da contemplação das coisas celestes, aproveitaram-se dos profetas, não só para
poder entender, mas também para expressar isso” (44,9). E para aqueles que porventura
procurassem alguma semelhança entre a vida de Cristo e a dos heróis e deuses gregos, ele
responde demonstrando que Moisés, maior dos profetas, é anterior no tempo a todos eles (54,2-
10). Diz que a única coisa que os demônios não arremedaram foi a cruz, porque não a
entenderam (55).

Quinta parte – Os ritos e sacramentos da Igreja

➢ Batismo (61): “Todos os que se convencem e acreditam que são verdadeiras essas coisas que
nós ensinamos e dizemos, e prometem que poderão viver de acordo com elas, são instruídos,
em primeiro lugar, para que com jejum orem e peçam perdão a Deus por seus pecados
anteriormente cometidos, e nós oramos e jejuamos juntamente com eles. Depois os conduzimos
a um lugar onde haja água e pelo mesmo banho de regeneração, com que também nós fomos
regenerados, eles são regenerados, pois então tomam na água o banho em nome de Deus, Pai
soberano do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo”.
➢ A inclusão do neófito na comunidade católica e sua primeira comunhão (65): “De nossa
parte, depois que assim foi lavado aquele que creu e aderiu a nós, nós o levamos aos que se
chamam irmãos, no lugar em que estão reunidos, a fim de elevar fervorosamente orações em
comum por nós mesmos, por aquele que acaba de ser iluminado e por todos os outros

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espalhados pelo mundo inteiro, suplicando que nos conceda, já que conhecemos a verdade, ser
encontrados por nossas obras como homens de boa conduta e observantes do que nos
mandaram, e assim consigamos a salvação eterna. Terminadas as orações, nos damos
mutuamente o ósculo da paz. Depois àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e uma
vasilha com água e vinho; pegando-os, ele louva e glorifica ao Pai do universo através do
nome de seu Filho e do Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças, por ter-nos
concedido esses dons que dele provêm. Quando o presidente termina as orações e a ação de
graças, todo o povo presente aclama, dizendo: “Amém”. Amém, em hebraico, significa “assim
seja”. Depois que o presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se
chamam diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da água sobre os
quais se pronunciou a ação de graças e os levam aos ausentes.”
➢ A Eucaristia é o Corpo de Cristo (66): “Chamamos este alimento Eucaristia, e ninguém pode
ter parte nele se não crer na nossa doutrina, se não tiver recebido o batismo para a remissão
dos pecados e para a regeneração, e se não viver conforme os preceitos de Cristo. Porque nós
não tomamos este alimento como pão e bebidas comuns. Mas, assim como Nosso Salvador
Jesus Cristo tomou carne e sangue para nossa salvação, assim o alimento consagrado pela
oração de Cristo, este alimento que deve nutrir nosso sangue e a nossa carne, é a carne e o
sangue de Jesus encarnado. Eis nossa doutrina!”
➢ A Missa dominical (67): “No dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os
que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as memórias
dos apóstolos ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma
exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos
juntos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão,
vinho e água, e o que preside, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces
e ações de graças e todo o povo exclama, dizendo: “Amém”. Vem depois a distribuição e
participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos
ausentes pelos diáconos. Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre
vontade, dá o que bem lhe parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui
a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão
nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o provisor de todos os
que se encontram em necessidade. Celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o
primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia
em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o
crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do

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Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que
estamos expondo para vosso exame.”

Petição Final

➢ São Justino pede aos imperadores que caso entendam que essa doutrina provém da razão e da
verdade, a respeitem, caso contrário, as desprezem. Porém, “não decreteis pena de morte, como
contra inimigos, contra aqueles que nenhum crime cometem” (68,1).
➢ Conclui como começou (3,5 e 68,2), avisando que “se vos obstinais em vossa iniquidade, não
escapareis do futuro julgamento de Deus”.

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