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Por onde começamos?

Fábio dos Santos Umeda

São as perguntas que orientam todo o nosso processo. É a partir da pergunta inicial
“Do que queremos falar?” que surgem respostas, que desencadeiam novas perguntas, e assim
por diante, tornando-se cada vez mais específicas, estruturam toda a nossa obra. Todas as
respostas são pessoais, e algumas até de cunho íntimo. É por isso que havia tanto, no nosso
trabalho, de pequenas partes de lugares profundos de cada um de nós. Não somente no nosso
trabalho, mas no de todos os nossos colegas.
Decidimos que falaríamos do tempo. Da vida, de agonias, passadas, presentes e
futuras. Logo, algumas referências existencialistas apareceram. Pra mim, de certa forma,
Hamlet aparece em um sentido similar, questionando a validade da existência e seu propósito,
tendo em vista todas as dores e desafios enfrentados em vida. Não só no sentido existencial,
mas de certa forma, na estética “mórbida” (Pouca iluminação, referências à natureza morta,
roupas escuras e a maquiagem com o aspecto grotesco, remetendo à um cadáver/monstro). A
escolha por contar uma história não com humanos, mas com “criaturas”, talvez pudesse ter
sido mais potente, se o aspecto metafórico fosse enfatizado. Ainda assim, considero que estar
na fronteira entre o metafórico e o literal foi um caminho que atingiu a força necessária. Digo
isso porque os textos falam de uma realidade necessariamente humana.
Nas primeiras reuniões, elegemos algumas perguntas norteadoras, para que
pudéssemos elaborar os monólogos. Confesso que a saída de dividir a cena em 4 monólogos
pode ter sido uma solução “Fácil”, uma estrutura que poderia ter sido melhor elaborada,
talvez contornando essa ordem “engessada”. Encontramos algumas saídas e soluções, mas que
poderiam ter sido melhor pensadas. Fizemos algumas perguntas entre nós, numa roda de
conversa. Já havíamos decidido que falaríamos da vida de uma criatura abstrata, em diferentes
fases (infância, adolescência, maturidade, velhice), e já havíamos designado as personagens
aos atores. Faltava um texto. A pergunta principal foi: “Por que você sofre/sofria/pensa que
sofrerá?”.
Todas as respostas foram profundamente emocionais e verdadeiras. Tínhamos
consciência de que estávamos tratando de questões delicadas, que tocariam em lugares
profundos. Yara trouxe questões da infância, David trouxe inseguranças e violência, eu trouxe
a exaustão e o cansaço, e Luan tratou do arrependimento. Cada questão correspondia ao que

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pensávamos que seria mais forte em cada fase da vida. Nesse tipo de trabalho, é crucial
compreendermos que não se trata de uma sessão de terapia. É preciso ter responsabilidade
para acessar todos esses lugares e essas emoções, e técnica e profissionalismo para exprimi-
las de maneira artística, o que considero que todo o grupo atingiu durante o trabalho.
Depois de responder à primeira pergunta, ainda na primeira reunião em grupo, fizemos
uma rodada de perguntas. Cada pessoa deveria fazer uma pergunta para a outra, ainda em
roda. Dessa forma, colheríamos mais material para trabalhar dentro dos monólogos. Era muito
difícil entender quando estávamos respondendo como nós mesmos, pessoas, ou quando
respondíamos enquanto personagens. Aliás, o exercício de responder como personagem não
estava muito claramente proposto/estabelecido entre nós, enquanto respondíamos às
perguntas. Acredito que nesse memento, o mais importante é que fossemos verdadeiros e
sinceros. Naturalmente, as emoções afloraram.
Em seguida, o processo foi de estruturar os monólogos e conceituar melhor o trabalho
que estávamos fazendo. Particularmente, foi a parte que menos gostei e que por um momento
pensei ser absolutamente desnecessário divagar em grandes elaborações filosóficas sobre o
conceito da obra. Mas ao final do trabalho, percebi o quanto estávamos alinhados, com o
mesmo entendimento acerca da obra, dos signos que empregávamos, das marcações, da luz,
do corpo e da voz. Vejo que todo o trabalho de discussão foi absolutamente necessário para a
concepção de um projeto cênico coeso. Ainda assim, penso que muitas vezes a entrada nessas
discussões antes do ensaio com a cena começar propriamente é muito mais uma espécie de
“fuga” ou uma atitude de tentar evitar o trabalho do que uma decisão consciente de alinhar o
grupo com o conceito da cena. Teatro não é filosofia.
Aprender a trabalhar em grupo foi um grande desafio pessoal, e a autocrítica foi minha
dolorosa amiga e companheira, do início ao fim. Tentar impor minhas ideias ou minha
logística de trabalho sobre o grupo foi um erro que cometi muitas vezes, em trabalhos
anteriores, mas agora consciente disse, me policiei muito. O Luan foi um exemplo fantástico
de assertividade, maturidade e sensibilidade para o trabalho em equipe. Percebi, inclusive, que
no começo do processo, os conflitos e embates de ideias dentro do grupo eram muito maiores.
Em alguns momentos, parecia que não estávamos concordando em nada e que não
chegaríamos a lugar algum. Perto do fim do processo, a relação do grupo era totalmente
diferente. Estávamos trabalhando em grupo de maneira muito mais eficiente, com uma
comunicação muito melhor. Sabíamos acatar e descartar ideias. É justamente em torno das
tomadas de decisão para o trabalho que se estabelecem a maior parte dos conflitos da direção

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coletiva. Cada coisa, por menor que fosse, gerava no início do trabalho uma discussão imensa.
Ao fim o trabalho, com todos os membros mais alinhados com a ideia central, as decisões
eram tomadas de maneira muito mais ágil. Isso não significa que não havia distribuição de
funções dentro do grupo. Naturalmente, nos distribuímos em torno daquilo que tínhamos mais
afinidade, e talvez não a “palavra final”, mas a “palavra mais forte” estava em torno daquele
que havia se responsabilizado. David cuidou de toda a parte de produção: Sonoplastia,
iluminação, maquiagem e cenografia. Luan era responsável pela parte da direção musical do
trabalho.
Nos ensaios, elaboramos o corpo da criatura, a voz e sua movimentação. Realizamos
as marcações do palco de acordo com as limitações de movimentação da criatura, e de acordo
com os sentidos empregados em cada cena. A grosso modo, cada monólogo era seguido de
um episódio de transição, que envolvia uma interação entre todas as criaturas. Normalmente,
a interação servia tanto para fortalecer a ideia de que se tratava de uma criatura única, em
diferentes estágios da vida, que se “consolava” consigo mesma nesses diferentes estágios.
De tudo, o que mais me marcou em todos os trabalhos foi a facilidade que tivemos em
acessar os lugares sensíveis e emocionais dos textos. É claro que foi mais simples, tendo em
vista que somos nós os próprios atores e dramaturgos, mas a disponibilidade de todos foi de
encher os olhos. Considero que todo o trabalho foi uma dinâmica de suma importância para
todos dentro do curso. Eu nunca havia visto, em nenhuma disciplina, esses lugares alcançados
com tanta potência.

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