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!

Robert Castel

AGESTAO
DOS
RISCOS
DA AN TIPS/00/A TRIA
À PÔS.PS/CANÀUSE:

Tradução
Celina Luz

-
Francisco
Alves
© 1981 by Les Editions de Minuit

Título original: La Gestion des Risques

a Franco Basaglia,
vivo pelo que nos mostrou: que a utopia, quer dizer, o pensamen-
to generoso e desinteressado, predominava sobre a realidade se
Revisão tipográfica: Henrique Tarnapolsky nele colocássemos, até o fim, obstinação suficiente.
Uranga

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

1987

ISBN 85-265-0084-8

Todos os direitos desta edição reservados à


LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORAS.A.
Rua Sete de Setembro, 177 - Centro
Te!.: 221-3198
20050 - Rio de Janeiro - RJ
"Que seja inversa ou diretamente proporcional, de causa a efeito,
inter-humana, econômica, incestuosa ou diplomática, a relação,
salda das carências do positivismo que deveria ter levado ao fra-
casso, encontra-se atualmente no centro de todas as reformas tec-
nocráticas, dotando-as de uma caução revolucionária, mantida de
longa data: o senhor Lip pode finalmente responder ao senhor
Freud, o salão da senhora Verdurin engendrou as comissões prio-
ritárias. "
Folheto do Comitê de Ação Saúde, divulgado em setembro de
1968.

--~-~-------··-"·------
Sumário
Apresentação 13
Capítulo 1: MITOS E REALIDADES DO "AGGIORNAMENTO"
. PSIQUIÁTRICO 21
1. Grandezas e servidões contestatárias 22
O imaginário da liberação 22
- Psicanálise e tabu 26
- Limites da an tipsiquiatria 29
2. A resistivel ascensão do reformismo 32
A reestruturação da profissão 33
- Um novo dispositivo institucional 38
- O expansionismo psiquiátrico 40
3. Um principio de não escolha 43
- IBtrapassar ou reformar o hospício? 44
- Prevenir ou reparar? 46
"Serviço do usuário" ou controle social? 49
- A infância, primeira ou última das preocupações? 51
- Unidade teórica, ou consenso tático? 53
4. O desencantamento 55
Um balanço decepcionante 55
Inércias e resistências 58
Os órfãos de um mi to 61
Capítulo 2: A MEDICALIZAÇÃO DA SAÚDE MENTAL 67 2. Trabalhar o capital humano 143
O trabalho sobre a normalidade 143
I. A crise da "medicina especial" 68 - A promoção do relacional 147
Novos filantropos e primeiros tecnocratas 68 - A vida de rede 152
A banalização institucional 73
3. Uma a-social-sociabilidade 156
Da instituição especial às instituições especializadas 75
O social não é mais o que era 157
A homogeneização profissional 77
A objetividade do psicológico 159
2. O mal-estar na clínica 80 Narciso libertado, ou Prometeu acorrentado? 163
A vitória de um marginal 81
- Um remédio miraculoso 86 Conclusão: EM DIREÇÃO A UMA ORDEM PÓS-DISCIPLINAR? 169
- Bonito demais para ser verdade 88 - A bipolaridade objetivismo-pragmatismo 171
- Mudança tecnológica e história 175
3. A volta do objetivismo médico 90
Mudança do imaginário profissional 90 Referências bibliográficas 181
A pesquisa biológica 92 Índice Remissivo 191
A terapia comportamental 96
Um novo paradigma 98
Capítulo S: A GESTÃO PREVISÍVEL 100

1. Do se encarregar à gestão administrativa 101


Um novo dispositivo jurídico-administrativo 102
- Da doença à deficiência 105
- O especialista mascarado 107
2. A gestão previsível dos perfis humanos 110
A constituição dos perfis 111
- Da programação dos equipamentos à das populações 112
- Mais vale prevenir do que remediar 114
3 . A nová política social 117
Dirigismo e convivência 118
Centralismo e diferenciação 122
Da periculosidade ao risco 125
O objetivismo tecnológico 129
Capítulo 4: A NOVA CULTURA PSICOLÓGICA 133

1 . A desestabilização da psicanálise 134


Uma cultura psicanalítica de massa 134
A crise da ortodoxia 13 7
Herdeiros e bastardos 140
Apresentação

No curso dos dez últimos anos, um certo tipo de crítica da medicina


mental, que de maneira esquemática, enfeitada com a etiqueta de "antipsi-
quiatria'', irrompeu bruscamente no campo intelectual, pareceu se impor e se
encontra hoje contestada por sua vez. Paralelamente, formas novas de análise
das instituições e do poder, que se pode outro tanto aproximativamente colo-
car sob o rótulo de "problemática do controle social", desenvolveram-se e
parecem igualmente se esgotar.
Primeira questão: como atou-se esta conexão inesperada entre críticas
setoriais de prá.ticas freqüentemente marginais e as apostas estratégicas que
operaram o período contemporâneo? Há somente quinze anos os problemas
colocados pela doença mental ficavam circunscritos a um domínio mal conhe-
cido do público porque entregue à conta previdenciária das situações de exce-
ção e deixado aos especialistas. Portanto, um conjunto de lutas práticas, e
também simbólicas, estabeleceu-se sobre a reabilitação da loucura, através das
quais a utopia de. uma libertação completa do assunto se confrontava com as
imposições da organização social, pensadas como arbitrárias, irracionais, alie-
nantes. Por que uma problemática profissional de resto prosaica encontrou
um imaginário político superdeterminado?
Segunda questão: por que a mola que animava tais tentativas parece
hoje tão esticada, se não quebrada? O decênio que acaba de se esgotar foi mar-
cado pela conjunção do psicologismo e do politismo. Nos anos que seguiram

13
1968, pare~eu a muitos que, a um projeto de exploração radical do assunto, Talvez começa a ser possível hoje dar uma certa inteligibilidade, ou pelo me-
correspondia uma polític~ igualmente radical, e que não era mais necessário nos uma legibilidade nova, a esse feixe de acontecimentos que recentemente
escolh:_r entre revolução social e revolução pessoal: libertação do sujeito, li- nos perpassaram. Podemos talvez agora tomar um certo recuo a respeito da
bertaçao das massas, mesmo combate, e, para dizer a verdade, único combate representação que uma época se dá de si mesma, para obrigá-la a entregar
verdadeiramente revolucionário. alguns de seus segredos.
Esta posição incluía uma crítica da "velha" política concebida como Para fazer isso, tentarei balizar um percurso que, em uma dúzia de anos,
uma cena separada com seus profissionais, suas instituições e suas organiza- leva da crítica da instituição totalitária à do totalitarismo psicológico. Trata-se
ções. Contra as estratégias globais animadas pelas burocracias políticas e sin- de cercar as condições de uma mutação contemporânea de técnicas médico-
dicais, era preciso, dizia-se, definir os alvos limitados investidos sobre a base psícológícas para chegar numa primeira avaliação do que, no conjunto de nos-
de urna implicação pessoal direta. Foi o que se chamou um momento as "lu- sa cultura, começa a ser transformado pela hegemonia do que chamarei de
tas setoriais", que levaram o afrontamento político aos novos setores institu- tecnopsicologias. Mas uma tal tentativa impõe um preâmbulo: evitar projetar
cionais - hospitais, prisões, instituições pedagógicas ... - onde era sobretudo sobre o presente e o futuro o sistema de representações que, nesse terreno,
denunciada a imposição de uma hierarquia, quando nem mesmo a exploração dominou os anos setenta.
econômica era nela evidente. A esse primeiro deslocamento logo seguiu-se um
segundo, por superposição sobre o próprio sujeito da estratégia da libertação:
combate contra as alienações cotidianas, as coerções difusas, luta das minorias Até estes últimos anos a psiquiatria clássica parecia a ponto de conse-
sexuais, feminismo ... O corpo tornava-se o último palco onde se perseguia a guir seu aggiomamento, o que implicava a um só tempo a transformação
repressão e onde se disfarçavam os traços do poder. profunda de suas condições de exercício e a continuidade de sua tradição
A redefinir assim a política, esquecemos talvez de nos indagar se não secular. Transformação profunda, pois ela se esforçava para romper com a
extenuávamos progressivamente o seu conceito. Se tudo é política, talvez em antiga solução segregativa para intervir diretamente na comunidade. Mas con-
última análise nada é política, exceto uma política da pessoa, versão à moda tinuidade de seu projeto, pois essas novas modalidades de intervenção conti-
dos velhos tempos do apolitismo psicológico. Em todo caso, muitos experi- nuavam a visar a um objeto específico, a doença mental, através de institui-
mentaram que a subjetividade "liberada" logo se encontrava sem confronta- ções específicas, se bem que desdobradas a partir de então sobre todo o tecido
ção: potencial psicológico que não tem outro objetivo a não ser slla própria social. Ela continha também a pretensão de se encarregar totalmente das po-
cultura, narcisismo coletivo onde novas gerações de Amiel se acariciam perpe- pulações sob sua responsabilidade: da prevenção às tentativas de ressociabili-
tuamente o ombro. A imagem é inspirada em Sartre, que já há muito denun- zação passando pela fase propriamente terapêutica, renovava as condições de
ciava na velha introspecção a tentativa de cavar infinitamente em si mesmo uma assistência constante e contínua que tinha sido realizada sob uma forma
p_ara atravessar o espelho no qual a subjetividade se perde através da multipli- rude pelo confinamento em asilo. Enfim, a medicina mental moderna conser-
cidade de seus reflexos. Certo, agora, é sobretudo uma mais-valia de gozo ou vava a vocação de serviço público. da psiquiatria clássica. Seus reformadores
de eficiência do que uma soma de conhecimentos que se procura extrair de tinham avidamente defendido essa concepção de um serviço nacional, impul-
suas próprias profundezas. Podemos também dispor de técnicas científicas sionado e financiado pela administração central, e o Estado parecia lhes dar
para conduzir esses exercícios, e alugar novos profissionais para dirigi-los. razão. Na França, a "política do setor", nos Estados Unidos, a implantação de
Mas, do divã às tecnologias importadas dos Estados Unidos ou da Índia - Ges- centros de saúde mental na comunidade (Community Mental Health Centers),
talt-terapia, análise transacional, rolfing ou ioga - não teríamós nós inventado uma e outra primeiro imaginadas pelos profissionais reformadores, depois
só dispositivos mais refinados para explorar e transformar o único território aceitas pelos administradores modernistas, tornam-se nos anos sessenta a nova
que valeria sê-lo, o psiquismo consciente ou inconsciente? política oficial da saúde mental a promover e generalizar.
Havia aí uma necessidade nessa mutação que introduz aos aspectos mais Paralelamente, a relação psicanalítica continuava a se verificar para o
contemporâneos de nossa modernidade? Ou então a um dado momento o paradigma de um tipo de prática bem diferente, liberta das imposições polí-
processo de "liberação" derrapou - e, nesse caso, quando, onde e por q~ê? tico-administrativas nas quais a psiquiatria corre o risco de soterrar. Ela pre-

14 15
tendia propor uma aproximação sui generis para uma exploração desinteres- qual elas se desembaraçam melhor dessa cumplicidade direta, e se banaliz~r:,
sada da problemática da pessoa. Sem dúvida esse ideal de uma relação que no interior de uma ampla gama de intervenções diversificadas ( trabalho social,
escapa às lentidões sociais estava perpetuamente ameaçado de "recuperação" perícia, ação sanitária, gestão das populações em risco, e até "terapia para os
pelos interesses profissionais, administrativos, políticos, comerciais. Sem dú- normais"), das quais não se pode_mais desvendar as funções complexas que
vida também, essa representação se revelava pouco compatível com o papel assumem, colocando somente à frente seu caráter coercitivo, segregativo, re-
efetivo que a psicanálise tinha começado a representar, após vários anos na pressivo. Compreende-se melhor assim que a maioria das críticas (exceto as
transformação das instituições e das técnicas psiquiátricas. Mas, para a maior que ousaram se referir também à psicanálise, mas não é um acas~ ~e foram
parte de seus adeptos, nisso seguidos pela comtinidade intelectual em sua particularmente mal recebidas) tenham perdido as descobertas mais movado.
maioria, essas peripécias não engajavam verdadeiramente seu destino. Parecia- ras do dispositivo que se implantava. Mais: em nome da luta contra a repres-
lhes sempre possível retornar dali à pi:.reza da mensagem e ao rigor da técnica são, a contestação das funções mais manifestas da medicina mental freqüente-
analítica ( o famoso "retorno a Freud") para reencontrar as condições de uma mente apresentou-se como crítica de suas formações arcaicas, assegurando a
abordagem da subjetividade incomparável em todos os empreendimentos re- promoção das novas técnicas e das novas instituições que iam encadear a mo-
paradores ou manipuladores. dernização do sistema. .
Assim, a partir dos anos sessenta, o futuro parecia plúmbeo pela presen- Então hoje começa a se tornar pensável que a medicina mental esteJa
ça simultânea no campo médico-psicológico desses dois dispositivos de voca- em vias de perder a especificidade que tinha conquistado e defendido através
ção hegemônica: uma psiquiatria pública cuja inserção comunitária vai pro- de uma história secular. Acontece também, ou vai se tornar cada vez mais evi·
gressivamente se impor e lhe permitir esposar seu século; uma psicanálise que dente, que a psicanálise não poderá mais reivindicar por muito tempô .uma
representa um modelo intransponível na abordagem da problemática do sujei- posição de originalidade absoluta e intransponível em meio a uma batena de
to. Futuro aberto sem dúvida, pois se trata de dispositivos em curso de im- novas técnicas psicológicas de que em parte ela constituiu a plataforma de
plantação e que ainda não realizaram integralmente suas promessas; mas futu- lançamento.
ro apesar disso pré-desenhado a partir da projeção dessas duas linhas de força. Mas restabelecer esses dados não consiste somente em retificar um
Mostraremos sem dificuldade que um consenso geral existiu sobre a dominân- ponto da história. É uma verdadeira reviravolta que se verifica. Sob os debates
cia desse modelo até a metade dos anos setenta, a um só tempo entre os que o rumorosos que ocuparam a frente do palco há uma dúzia de anos, novas tec-
instalavam com entusiasmo e entre os que o denunciavam. Em particular, o nologias apareciam e marcavam época. A mutação se esboçava. Hoje aparece
movimento de crítica da medicina mental viu na reconversão do dispositivo claramente. Arrastadas pelo mesmo movimento de fundo, a psiquiatria e a
psiquiátrico uma das vias reais que iam servir-se dos controles estatais para se psicanálise entram em crise, sua hegemonia se decompõe, e sua contribuição
difundir na comunidade; ao mesmo tempo, aceitando com freqüência as pre- é a partir disso banalizada em meio a uma nova configuração que não domi·
tensões à extraterritorialidade social e à neutralidade política da psicanálise, nam mais.
dispensou-se de refletir sobre o desenvolvimento de novas regulações que não Essa rede diversificada de atividades de expertises, avaliações, assinala-
passavam mais por esse aumento da dominação do aparelho do Estado. ções e de distribuição das populações que representa uma nova fórmula de
gestão do social está agora por ser descrita. Assistimos ao advento de estratégias
É essa conjuntura que hoje é preciso reavaliar. Um exame mais minu- inéditas de tratamento dos problemas sociais, a partir da gestão das particula-
cioso de transformação das práticas libertará um hiato entre o que é consta- ridades do indivíduo. A um extremo desse léque, encontraremos a administra-
tado ou denunciado e o que foi efetivamente divulgado sob o rótulo da medi- ção autoritária, ainda diretamente orquestrada pelo aparelho do Estado, de
cina mental e de suas formações derivadas. Simplificando muito: é no começo populações "de riscos", a partir do estabelecimento de un: perfil que traça
dos anos setenta que se desenvolve sistematicamente uma contestação da me- para elas as fieiras sociais que serão obrigadas a empregar. E a gestão dos ris-
dicina mental enquanto ela reproduz a herança dos asilos e cumpre uma parte cos sociais. No outro pólo florescem inovações de caráter aparentemente qua-
das tarefas do aparelho de Estado. Mas esta data marca paradoxalmente o se lúdico: exercícios de intensificação do "potencial humano", técnicas de
começo de uma reorganização das práticas médico-psicológicas, através da desenvolvimento do capital relacional, produção de uma cultura psicológica

16 17
de massa que consumidores bulímicos ingurgitam como um analogon de for- Na ausência de uma reavaliação dessa situação, o desprezo das abstra-
mas de sociabilidade perdidas. É a gestão das fragilidades individuais. Será ções da "antiga" política induz uma forma sutil de psicologismo pelo qual a
preciso mostrar que aí existe um teclado de possibilidades articuladas em pessoa tornou-se o último objetivo legítimo de um processo de transformação
função dos tipos de populações que elas tocam, e ali ressituar, como que completamente banalizada que se enfeita ainda, não se sabe por quê, com vir-
intermediários e relais, as antigas posi_ções hegemônicas, psiquiátrica e psica- tudes de progressismo. A desconfiança a respeito dos poderes centrais, das
nalítica, agora destronadas. organizações estruturadas, desemboca numa apologia da sociabilidade de con-
Seja então o movimento deste texto. Reconstituir primeiro, a partir vivência onde os problemas da vida cotidiana são autogerados num quadro
da crônica recente, esta espécie de ponto falso no qual foram apanhados os associacionista que faz de militantes reconvertidos os herdeiros das antigas
movimentos de crítica da medicina mental e da psicanálise, impondo-se no damas d'oeuvre. Mas não basta se subtrair das formas de regalia do exercício
fim de um ciclo e visando a um conjunto teórico-prático no momento em que do poder ou se refugiar nas terras de ninguém sociais onde se admitem produ-
começa a se dissolver. Empenhar-se em desconstruir as antigas representações zir suas próprias regras de vida para se proteger de novas técnicas de in~tru-
dominantes, mostrando que elas eram suas contradições internas, e porque mentalização coletiva.
não puderam superar os desafios que a conjuntura recente lhes apresentava. Hoje, a revitalização de uma posição crítica passa pela compreensão do
Então somente começar a seguir as linhas de recomposição que trabalham estatuto da subjetividade "liberada" e da subjetividade recomposta pelas no-
hoje esse campo psícotecnológico em três direções principais: um retomo vas tecnologias. Quais são os processos que as produziram? Quais são as novas
forte do objetivismo médico que substitui a psiquiatria no regaço da medi- estratégias que as orquestram e que constituem as modalidades mais específi-
cina geral; mutação das tecnologias preventivas que subordina a atividade de cas da gestão dos homens que se localizam nas sociedades capitalistas avança-
tratar a uma gestão administrativa das populações de riscos; a promoção de das?
um trabalho psicológico sobre si mesmo que faz da mobilização da pessoa a Uma tal teoria está por ser feita. Eis, no entanto, alguns prolegômenos
nova panacéia para enfrentar os problemas da vida em sociedade. para começar a empreendê-la. Na versão proposta aqui, seu alcance é limitado,
Em suma, retornar a uma história próxima, não como um historiador, já que repousa sobre a credibilidade de uma demonstração que se refere so-
mas correndo o risco de constituir o presente em trocador entre o passado e mente à reestruturação do campo médico-psicológico. Por um lado, é uma
o futuro. escolha: não me converti às visões panorâmicas da história que começam com
É, ao mesmo tempo, a possibilidade de ajustar a posição crítica às novas a Bíblia no deserto da Judéia e terminam nas estepes siberianas com Soljenit-
formas de dominação. Sem dúvida, continuam a existir instituições coerciti- sin. Mas é também uma lacuna, pois, partindo da análise das modificações de
vas, intervenções diretas e freqüentemente violentas do poder de Estado. Mas um domínio restrito de práticas, só se pode evocar de um modo alusivo as
a análise desses modos de imposições foi feita, pelo menos em seu princípio. transformações globais das estratégias do poder, cujas modificações setoriais
Mais do que reiterá-las para aplicá-las ao que surge de mais novo nas situações só apresentam, no entanto, um caso de porte. Por isso, propus algumas hipó-
atuais, é preciso começar a tirar todas as conseqüências do fato de que a coer- teses para relacionar este estudo limitado com a evolução sócio-política geral.
ção está longe de constituir o único processo de imposição que mantém o À espera de uma sistematização mais satisfatória, pode nisto haver urgência
consenso social, os equilíbrios econômicos e as regulações ideológicas. para, pelo menos, pressentir quais podem ser as novas regras do jogo, antes
Existem setores cada vez mais amplos da vida social para os quais o pro- que os jogos estejam completamente feitos. Acrescento que reconstruí aqui
blema a enfrentar é sobretudo o da existência e do uso de uma espécie de li- uma evolução tendencial que cada vez mais se impôs nestes últimos anos, à
berdade vazia, no sentido em que ela não se liga mais nos processos reais de medida que a sociedade francesa se reestruturava segundo um plano de gover-
decisão em uma vida coletiva que só gera objetivos irrisórios. Existem também namentabilidade neoliberal. Em que medida as mudanças políticas ocorridas
novas formas de gestão dos riscos e populações com riscos pelas quais a conju- recentemente são de natureza a afetá-la, é uma pergunta de resposta prematu-
ração do perigo que representam nio se faz mais pelo enfrentamento direto ra hoje, mas ela inicialmente convida a tentar o balanço da situação que está
ou a segregação brutal, mas por uma marginalização dos indivíduos que passa na hora de enfrentar.
pela negação de sua qualidade de pessoa e de desconstruções de sua história.

18 19
Capítulo 1
Mitos e realidades do
aggiornamento psiquiátrico

Nada mais espetacular, aparentemente, do que as mudanças que inter-


vieram no estatuto social da medicina mental há uma dúzia de anos. Em vez
da quase indiferença do público e do monopólio entregue aos profissionais
para fazer as perguntas legítimas, abordagens antropológicas, históricas, socio-
lógicas, políticas, poéticas, impuseram-se em um domínio outrora quase total-
mente dominado pelas categorias médicas. Tornou-se aceitável - em certos
meios, às vezes, exigido - que pessoas que, por sua formação técnica, nada
teriam a dizer, mantenham discurso sobre a loucura.
Atribui-se em geral aos acontecimentos de 1968 e suas recaídas ares-
ponsabilidade desse deslocamento. É parcialmente exato, desde que se acres-
cente que o fascínio exercido pela psiquiatria e o sucesso frágil da antipsiquia·
tria repousam num certo número de curtos-circuitos inesperados, que foram
fonte de tantos mal-entendidos. Na raiz destes, a imensa distância que exigiu
entre as novas metas assim aparecidas e o que se passava ( ou melhor, o que não
se passava) tanto no plano das práticas como das especulações próprias ao pró·
prio meio psiquiátrico. Em outras palavras, o corte que afetou o imaginário
político da época não o foi absolutamente ao nível da organização da profis.
são. Implicação: sob os acontecimentos espetaculares e as esperanças messiâ·
nicas, é preciso destacar as linhas de força que lentamente trabalharam o
campo médico-psicológico para dar-lhe sua configuração atual.

21
1. GRANDEZAS E SERVIDÕES CONTESTATÁRIAS Posições e hierarquias que pareciam alicerçadas sobre o conhecimento ou o
mérito foram bruscamente reinterrogadas.
Contrariamente a uma opinião espalhada por antigos combatentes, que Segundo quais categorias? Pareceu que o aparelho conceitua! da crítica
colorem suas lembranças sobre o fundo do esquecimento, não se passaram tradicional de esquerda ( a grosso modo os quadros teóricos do marxismo em
efetivamente na França coisas extraordinárias em psiquiatria por volta de suas indicações econômicas e políticas clássicas) estava mal armado para im-
maio de 1968, pelo menos no sentido da ruptura que se atribui freqüentemen- pulsionar esse tipo de análises. Existe um projeto de objetivos estratégicos que
te aos "acontecimentos". Alguns hospitais ocupados, algumas contestações das não é nem o de afrontamento psicológico ( ainda que este se misture freqüen-
formas mais próximas do mandarinato no exercício do poder médico, algu- temente nisso), nem o dos determinismos sociais e econômicos globais (ainda
mas fraternizações incestuosas que provocaram curtos-circuitos p0r um tellipü que interesses de classe possam subentender as posições dos protagonistas).
muito breve nas hierarquias profissionais estabelecidas, muitas discussões, reu- Esta problemática promoveu um tipo de análises fundadas na busca da distri-
niões, projetos de mudanças metade sonhados e metade pensados. O essencial buição dos poderes internos nas instituições e o despistamento das imposições
desta atividade, pelo menos em Paris, desenrolou-se no quadro das discussões objetivas aquém dos consensos de superfície. Sensibilização que fazia da ex-
e comissões organizadas pelos estudantes de medicina para reformar a organi- ploração dos espaços fechados uma espécie de modelo metodológico experi-
zação dos estudos e da profissão. A temática dominante permaneceu assim mentado a partir de um investimento pessoal.
centrada na exigência de modernizar e de racionalizar as condições do exercí- Se de fato pensamos (com ou sem razão) que um certo número de me-
cio da psiquiatria. 1 O efeito mais claro da crise de 1968 no meio psiquiátrico tas essenciais assomaram ao palco da política, concebida como um mundo
terá sido facilitar a aceitação de projetos de reformas em suma moderadas, separado, para estruturar a experiência imediata, disso resulta que é no plano
consignadas há muito na literatura psiquiátrica. de uma totalidade concreta, circunscrita pelo espaço que o indivíduo percor-
re e como saturada por sua experiência, que se deve analisar e controlar sua
O imaginário da liberação dinâmica. Ora, as "instituições totalitárias", que os hospitais psiquiátricos e as
Assim, se uma certa contestação adveio à psiquiatria na época da crise prisões representam em nossa época, permitem analisar este conjunto acabado
de 1968, ela no essencial lhe chegou de fora, e não pode haver incidência so- de interações totalmente atravessado por jogos evidentes de poder. Palcos
bre a prática a não ser numa espécie de pós-golpe. A mudança da percepção reais, mas fechados, povoados de seres de carne e osso, mas reduzidos a viver
do estatuto da psiquiatria no pós-68 atém-se na verdade ao fato de que se cris- em toda sua existência a unilateralidade da imposição, essas instituições po-
talizou nesse terreno uma dupla temática bem mais geral: o deslocamento de dem aparecer como um modelo reduzido, ou uma "boa forma" no sentido da
certas lutas políticas e a superdeterminação da problemática da subjetividade. Gestalt, para ajudar a ler o que se passa na sociedade "normal". Uma grade
Os italianos inventaram a expressão "política redefinida" para qualificar de interpretação como a de Goffman, por exemplo, que faz do totalitarismo
a tomada de consciência de uma dimensão política atravessando os objetivos menos uma monstruosidade incompreensível do que a cultura em recipiente
profissionais, os quadros institucionais outrora preservados pela neutralidade fechado e a exasperação de estruturas de autoridade instaladas em numerosas
suposta de suas funções objetivas, e mesmo algumas esferas da existência pri- instituições, 2 pode assim reencontrar uma experiência vivida em certos espa-
vada. A essa mudança de sensibilidade corresponderam práticas. Confronta- ços sociais, hospitais, prisões, organismos de trabalho e, às vezes, mesmo fábri-
ções explodiram em locais onde a exploração econômica ou a luta pela re- cas, onde conflitos de ordem anti-hierárquica se sobrepuseram às reivindica-
presentatividade não eram evidentes, mas onde a distribuição das relações ções econômicas.
sociais, precedências, saberes e Competências, foi recolocada em questão. Daí o sucesso de análises que tinham começado desde os anos sessenta
a se interrogar sobre a finalidade social dessas práticas, mas em um contexto
1
Os números da Informação PsiauiátriNJ. publicados entre novembro de 1968 e abril de epistemológico e acadêmico mais do que político. Foi nesse momento que
1969 abriram uma seção, "O movimento de maio, documentos médicos e psiquiá· apareceu, por exemplo, uma segunda leitura da História da loucura, de Michel
tricos", que reproduz alguns dos principais textos elaborados na época a respeito
dos projetos de reorganização da medicina mental. 2 GOFFMAN, Erving. Asylums, trad. francesa. Ed. de Minuit, Asiles, 1968.

22 23
Foucault, onde o afresco histórico dos avatares dá insensatez cede o passo a cault, por exemplo, tenham funcioilado de maneira intercambiável no seio
uma sensibilidade exacerbada em relação ao fenômeno do enclausuramento e dos mesmos grupos diz bastante sobre o que se pode interpretar como ecletis-
das potencialidades repressivas nele implicadas. Toda uma parte da obra de mo, mas que demonstra sobretudo que o objeto desse interesse não era mais
Michel Foucault, como de sua audiência prática, provém dessa osmose, entre nem a análise teórica de um fenômeno social, nem a crítica de um setor parti-
pesquisa teórica e metas sociais vividas que fizeram de certos livros, como dis- cular da prática médica.
se Gilles Deleuze dos do próprio Foucault, espécies de "caixas de ferramen- É a partir desse momento que se pode começar a falar de antipsiquia-
tas" disponíveis para eventuais usuários. 3 tria. A antipsiquiatria como fenômeno social foi menos a crítica exata (teó-
Só basta, aliás, enumerar as principais publicações, nascidas na eferves- rica ou prática) de uma atividade profissional particular, do que a superdeter-
cência de então, que começaram a popularizar essas análises além W.a i;:stiita minação do sentido dessa atividade a partir de uma temática antiautoritária
intelligentsia universitária: Cardes foUs, Psychiatrisés en lutte, Cahiers pour la generalizada.
folie, Champ social, Que! corps, Joumal de l 'A.E.R L.I.P. (Associação para o A contestação antipsiquiátrica foi assim um ponto de fixação privilegia-
estudo e a redação do livro branco das instituições psiquiátricas), etc.: elas do de um imaginário político da liberação, vivida na época sob a forma de
foram tocadas sobretudo por uma minoria de profissionais interessados na uma sensibilização exacerbada à repressão. A psiquiatria representou uma
base de uma crítica de sua profissão, trabalhadores sociais "trabalhadores figura paradigmática do exercício do poder, arcaica em sua estrutura, rígida
da saúde mental", etc., e mesmo por a~tigos pensionista~ de instituições em sua aplicação, coercitiva em sua mira. Ela como que cristalizou as formas
totalitárias como o Grupo de informação sobre os asilos (G.I.A.) e o Grupo mais difusas de revolta contra a autoridade vividas na família e outras institui-
de informação sobre as prisões (G.I.P.), compostos respectivamente sobretudo ções. A psiquiatria funcionou como modelo, porque a relação de imposição
de antigos pacientes psiquiátricos e antigos prisioneiros. que ela coloca em operação implica, pelo menos em suas formas tradicionais
de exercício, uma desnivelização absoluta entre aquele que age e aquele
Se o rendimento das análises das instituições totalitárias em geral foi que padece. Ela deixava ler a gratuidade e o arbitrário que pode caracterizar
bastante elevado no que assumiam a contracorrente o "ponto de honra espiri- todo exercício do poder a partir do momento em que ele não se inscreve e.m
tualista'' de uma sociedade liberal como poderia ter dito Marx, e pareciam lhe uma relação recíproca. É a loucura, patética e sem munição, afastada do mun-
desvendar a face vergonhosa, aquelas que se dirigiam mais exatamente para a do mesmo se contém potencialidades enormes, que exemplifica melhor a con-
psiquiatria se beneficiaram conjunturalmente de uma mais-valia de interesse. trario o imperialismo brutal e impessoal da razão instituída.
O que de fato era reprimido pela psiquiatria era a própria loucura, quer dizer, Ao se tomar assim o principal cavalo de batalha da espontaneidade, a
a expressão mais alta e a mais romanticamente infeliz da subjetividade. antipsiquiatria ganhava uma audiência imprevisivel e que seria incompreensí-
É preciso então colocar em relação, como as duas faces de um mesmo vel, se tivesse se co_ntentado em contestar as condições de exercício de uma
fenômeno social, o interesse suscitado por uma crítica da medicina mental prática particular como a prática médica. Mas, fazendo de seu alvo um mode-
de inspiração epistemológica ou teórica, e o sucesso da antipsiquiatria inglesa lo generalizado de poder, essa crítica se desconectava pela mesma ação da
que popularizou o tema da "viagem" da loucura: a loucura é portadora de prática profissional. É significativo por exemplo que o próprio termo antipsi-
uma espécie de verdade misteriosa sobre a existência, sempre reprimida pela quiatria, proposto por David Cooper para nomear uma estratégia de ruptura
pressão social que a degrada em doença mental. Em vez de tratar o louco por real no quadro da instituição psiquiátrica,4 tenha se posto a boiar nas águas
meios coercitivos, é preciso ouvi-lo e mais ainda ajudar seus reencontres con- vagas de uma contestação plena.
sigo mesmo acompanhando-o ao longo do percurso da loucura. Quanto ao No quadro desta generalização, a organização _concreta da medicina
regime intelectual, não havia ali aparentemente nada em comum entre aquela mental torna-se mais ainda o pretexto do que o alvo principal da antípsiquia-
espécie de romantismo exaltado e a problemática mais acadêmica da ruptura tria. Sem mesmo falar na corrente sem rumo mundana que uns tempos fez desta
com a ideologia médica. Mas que a obra de David Coopere a de Michel Fou- um tema em moda para ensaístas à míngua de reproduções, o afastamento

4
3 Conversâ Gilles Deleuze-Michel Foucault, in Os intelectuais e o poder, L 'Are, n9 49. COOPER, David. Psiquiatn·a e antipsiquiatria. Trad. francesa. Ed. du Seuil, 1970.

24 25
não cessou de aumentar entre um radicalismo crítico cujas denúncias perma- ação política não é mais paga com a amputação dos investimentos subjetivos;
neciam quase sempre sem apoio em relação às metas dos profissionais, e a re- a liberação social e a liberação pessoal fazem parte da mesma trajetória, e
organização efetiva da prática que se elaborava paralelamente. potencializam seus efeitos. 6
A rentabilidade dessa postura foi ainda reforçada com o refluxo do
Psicanálise e tabu movimento. Se a revolução social é despachada para um futuro imprevisível,
pelo menos pode-se, mantendo a preocupação de um trabalho sem concessão
Um outro componente da paisagem intelectual e política da época devia
sobre si mesmo, continuar a ocupar uma posição de radicalismo inexpugnável.
acrescer ainda à confusão: a pretensão de uma certa psicanálise a encarnar a
A ideologia psicanalítica serviu assim de estrutura de desdobramento a uma
verdade da crítica política da psiquiatria. Voltaremos às etapas da penetração
ideologia política quando esta constatou a ruína de suas esperanças. Certa-
da psicanálise no meio psiquiátrico e na intelligentsia (capítulos 2 e 4). Na
mente é um fato conhecido que o fracasso ou a repressão de um movimento
base dessas implantações prévias, um pórtico qualitativo foi franqueado por
político acarreta um desdobramento na esfera do privado. Mas o maravilhoso,
volta de 1968. A psicanálise parecia então articular na unidade de uma teoria
com a psicanálise, é que ela permitiu pensar esse deslocamento, ao contrário
rigorosa os dois componentes essenciais do movimento, a superdeterrninação
de um recuo ou de uma derrota, como uma radicalização, que decantava a
do político e a superdeterminação do psicológico, e levá-los ao seu ponto de
posição politicamente justa no próprio momento em que perdia seus suportes
incandescência: politismo e psicanalismo.
na realidade. O combate liberador se perpetuava num "outro palco". 7
A psicanálise, ou melhor, sua orientação lacaniana. Nos anos cinqüenta,
Assim o método psicanalítico é subversivo por essência, já que é capaz
Jacques Lacan tinha tido o mérito, pelo menos aos olhos da inteligência de
de rachar todos os confortos e todos os conformismos. Ele procura um ponto
esquerda, de conduzir uma crítica vigorosa da psicanálise americana, denun-
de vista e critérios capazes de julgar (e de desqualificar) toda situação, não
ciando suas funções adaptadoras através de seu desvio teórico no sentido de
somente de ordem psicológica, mas mais geralmente de ordem social e polí-
uma psicologia do eu. Ele economizava assim a possibilidade de uma síntese
tica, que não está à altura de suas pretensões. Se essa posição dominou por
psicanálise-política que o partido comunista tinha perdido no momento da
guerra fria. Em sua crílica da americanização, cuja integração da psicanálise um momento o campo intelectual da extrema esquerda, nos ateremos aqui a
ao american way of life parecia um componente, a política cultural do parti- destacar a função que ela teve em relação à questão psiquiátrica. Ela alimen-
do comunista francês não tinha então encontrado outro meio a não ser de- tou a dicotomia absoluta opondo a má psiquiatria (porque repressiva) à boa
nunciar ( e fazer denunciar pelos psicanalistas do partido) a psicanálise como psicanálise (porque subversiva). Manteve assim uma parte do meio profissio-
elemento da ideologia dominante, e mesmo como repositório do imperialis- nal em sua boa consciência em relação à inocência política da prática psicana-
mo. 5 Esse mesmo partido comunista opunha-se vigorosamente, a partir de lítica, creditada das virtudes da neutralidade, e mesmo das da subversão, com
1968, a um esquerdismo acusado de ser um desvio pequeno-burguês, cujo a única condição de se abster de uma integração direta com o aparelho do
sinal mais evidente era a ênfase colocada sobre a liberação individual e o culto Estado.
da realização pessoal em detrimento da luta de classes. Revolução proletária Compreende-se assim que seja a obra de uma psicanalista, Maud Man-
ou revolução pessoal, para a esquerda clássica era preciso escolher. noni, que tenha sem dúvida feito mais para divulgar na França os temas da
O sucesso do lacanismo deveu-se sobretudo porque permitia economizar 6
Para ser completo, seria preciso fazer aqui uma valorização da audiência reencontrada
essa escolha. A radicalidade é una e indivisível, quer dizer, simultaneamente
por Reich no mesmo momento e cm meios próximos. No entanto, Rcich tocou
política e psicológica. Benefício político: essa problemática se inscreve no um público ao mesmo tempo menos intelectualmente sofisticado e conectado
quadro da crítica à moda da "velha" política abstrata, aquela dos partidos e com práticas políticas mais do que profissionais. Além disso, a maior simplicidade
das burocracias sindicais que desenvolvem seus programas ao preço do recha- (os psicanalistas dizem simplismo) do corpo teórico e da técnica reichiana permi-
çamento da subjetividade; a nova política se encarrega, num só movimento, tiu bem ligeiro um deslizamento em direção das formas de "nova~ terapias" que já
anunciam a pós-psicanálise (capítulo 4).
das lutas concretas e o sujeito concreto das lutas. Benefício psicológico: a
7
Para ilustrações de época dessa atitude de época, cf. CASTEL, Robert. O psicanalismo,
5
Cf., assinado por vários psiquiatras comunistas, Autocrítica: a psicanálise, ideologia Ed. Maspero, 1973; UGE, 1976 e Flammarion, 1981.
reacionária. Nouvelle Critique, 7, junho de 1949.

26 27
antipsiquiatria. O argumento central do livro é no entanto frágil. Repousa Freud e do presidente Mao, o aforisma do primeiro "A história do homem e a
sobre essa oposição maniqueísta entre uma posição psicanalítica pura e justa história de sua repressão", pretendendo dar a chave da revolução cultnral do
10
e uma psiquiatria cúmplice da administração para instalar uma política repres- segun do.
siva de tratamentos ( o psicanalista, aliás, correndo o risco de se transmutar em
"superpsiquiatra" traidor da causa psicanalítica, a partir do momento em que Limites da antipsiquiatria
entra num serviço público). 8 Na obra que sucede esse ensaio, Maud Mannoni É então geralmente na base desse duplo consenso - a psiquiatria, forma
tem, aliás, uma fórmula que resume sua problemática: "É a psicanálise que, de repressão ligada ao aparelho de Estado, a psicanálise pelo menos neutra e
chegado o momento, é chamada a colocar um problema político."9 mais freqüentemente adornada com prestígios do radicalismo contestatório -
No quadro de uma divisão do trabalho bastante cômoda, a psiquiatria que o movimento de crítica da medicina mental pareceu se impor. Na base
representou seu papel de "mau objeto". Sua organização se prestava mais também de uma inscrição mais mundana - jornalística, literária, teórica ... -
imediatamente a uma reinterpretação política de sua função e não era difícil do que propriamente profissional. Estas particularidades dão conta de uma
demais religá-la (a um só tempo sua "ciência", o tipo de "poder" exercido certa limitação de sua audiência, sem que se fique autorizado por isso a con-
pelo médico, o caráter desusado de suas "instituições especiais" e a antiga siderar negligenciável seu impacto.
legislação de 1838 que ainda legitima seu estatuto) a uma função administra- A popularização da temática antipsiquiátrica abalou primeiro o segredo
tivo-política diretamente ligada ao poder de Estado, e exercendo uma ação institucional, que constituía uma regra secular de funcionamento da medicina
essencialmente coercitiva. Em relação a uma ideologia, cuja liberação era a mental. Era tradição para a administração central e mesmo para a justiça, con-
palavra mestra, a psiquiatria representava o bode expiatório ideal. ceder uma espécie de crédito moral aos responsáveis de instituições de um cer-
Diante desse empurrão, a psicanálise acumulava aparentemente todos to tipo (o problema é quase o mesmo para as prisões) a fim de que eles assu-
os traços positivos. No plano do saber, o caráter altamente sofisticado da teo- mam melhor a gestão das populações a eles confiadas, certos de que um direi-
ria psicanalítica e a sutileza das categorias de seu discurso contrastam com a to de fiscalizar sua prática seja exercido de maneira puramente formal. Por
aproximação fora de uso das nosografias psiquiátricas; no plano institucional, convenção tácita, o médico era insuspeitável, agindo o melhor para o bem
uma prática nova, em vias de implantação, escapa aos arcaísmos, fontes de indissolúvel de seus administrados, da administração e da justiça.
bloqueios e de disfuncionamento, que embaraçam a tradição psiquiátrica; e, Essa deontologia do segredo foi sacudida. A partir do momento em que
sobretudo, o caráter privado das formas mais visíveis de seu exercício lhe a eventualidade da intrusão de um olhar crítico exterior faz pairar uma amea-
assegura os benefícios da neutralidade política: bastar-lhe-ia abster-se da tenta- ça sobre a legalidade das práticas, estas tiveram que mudar. Por exemplo, se a
ção de colaborar com as administrações públicas para perpetuar eternamente facilidade de trancar sistematicamente os doentes pode ser longamente o pri-
sua inocência. Ela pode até se declarar subversiva, já que se desdobra em um meiro reflexo dos psiquiatras, a tendência atual seria sobretudo inversa: é o
no man 's land social franqueado de imposições administrativas, pedagógicas e que evitará ter de intervir autoritariamente no processo de localização. O te-
médicas, e não persegue outro objetivo senão o de ajudar a pessoa a descobrir mor de ser apanhado em erro por um olhar crítico não é estranho a essa evo-
uma verdade sua e de sua relação com outrem. lução. Assim, em mala de 1977, o sindicato dos psiquiatras dos hospitais di-
Uma tal representação, demonstraremos, tem cada vez menm a ver com vulgava recomendações de "extrema vigilância" sobre a observação das dispo-
o processo real de divulgação da psicanálise. Mas o fato é que ela foi geralmen- sições legislativas e regulamentares, em particular nas modalidades de destina-
te partilhada, não somente pelo meio psicanalítico, mas pela maioria da intel- ção dos doentes mentais, motivando-os pelo risco que ali haveria, no caso con-
ligentsia de esquerda. Testemunha este número especial de O Idiota Interna- trário, de "fazer o jogo dos antipsiquiatras de todos os lados" .11
cional de 1970 que ataca a psiquiatria hospitalar e a fórmula "reformista" do
setor (a psiquiatria comunitária), mas é colocado sob o duplo patrocínio de
8 MANNONI, Maud. O Psiquiatra, seu louco e a psicanálise. Ed. du Seuil, 1970. 10
O Idiota Internacional, 10, set. 1970.
9 11
MANNONI, Maud. Educação impossível Ed. du Seuil, 1973. "Editorial". Boletim do Sindicato dos Psiquiatras de hospitais, maio 1977, p. 3.

28 29

J
Mas no plano de reestruturação, ou da desestruturação do meio profis-
Mais geralmente, no decorrer dos dez últimos anos, a loucura saiu par- sional, os resultados se revelaram mais decepcionantes. A esperança soerguida
cialmente de seu gueto. As ilhotas mais arcaicas da prática psiquiátrica foram no momento de constituir um conjunto coerente de práticas alternativas fran-
erradicadas em sua maioria. A vida da maior parte dos serviços humanizou-se queadas pelo monopólio dos técnicos e apoiadas em formas coletivas e popu-
e sua organização aproximou-se das expectativas de uma parte da população. lares de encargos dos problemas mentais, ardeu bastante. 12 Os que esposaram
Um número crescente de psiquiatras cessa de se identificar com o papel tradi- em sua coerência paradoxal a ideologia antipsiquiátrica foram freqüentemente
cional de representante de uma ordem indissoluvelmente filosófica, social, acuados a wna espécie de fuga para a frente. Muitos deixaram a profissão, às
moral e médica. vezes depois de ter tentado experiências difíceis e corajosas, mas quase sem-
Transformações próprias ao meio pesaram incontestavelmente nessa pre efêmeras. Os outros foram remetidos a sua insatisfação e má consciênci~.
evolução, mas também esta pressão vir,. 'ia de fora. Uma dimensão nova abriu Os profissionais críticos no exercício de sua profissão não acharam no movi-
caminho no universo asseptizado do profissionalismo. Que o doente mental mento de contestação nenhuma das armas exatas que poderiam utilizar para
seja um ser humano é uma idéia a um só tempo banal e que vai de encontro ajudá-los a transformar a situação existente.
há quase dois séculos de atitudes segregacionistas, justificadas primeiramente Existem aí várias razões, a um tempo internas e externas ao movimento.
pela experiência de asilo, mas também amplamente partilhada pela opinião. A luta contra o monopólio dos profissionais supunha alianças com as forças
Apologias, mesmo discutíveis, da loucura, contribuíram para quebrar esse sociais exteriores. Estas não foram achadas, sem dúvida porque partidos polí-
claustro feito tanto de preconceitos quanto de muros. Experiências, mesmo ticos e sindicatos, a maior parte do tempo, só manifestaram indiferença a res-
aventurosas, que negavam qualquer diferença entre terapeutas e pacientes, peito de posições que se deveriam ter teoricamente inscrito no quadro de suas
deixaram pelo menos ver que a alternância do doente não era radical. Mais reivindicações sociais e autogestionáveis. O movimento crítico também não
geralmente, uma certa prevenção para com o doente inscreveu-se, com um convenceu de sua capacidade de propor técnicas alternativas, quer dizer, capa-
certo número de outras para com o prisioneiro, o indígena, o emigrado, em zes, ultrapassando uma contestação abstrata do tecnicismo dos profissionais,
um grande empreendimento para fazer em pedaços a unilateralidade da razão de fornecer ferramentas para atacar concretamente as dimensões sociais e
ocidental e seu sentido burguês da virtude. A antipsiquiatria foi ao mesmo políticas da doença mental.
tempo o sintoma e um dos repositórios de uma nova sensibilidade, segundo a
Mas esses limites se devem sobretudo ao fato de que o terreno já estava
qual as partilhas do positivo e do negativo, do bem e do mal, da respeitabili-
dade e da indignidade, da razão e da loucura, não são traçadas a priori e não ocupado por outros modelos e outras técnicas, difíceis de atacar de frente. Ao
são substancializadas como irreversíveis. Se estas conquistas podem ser man- contrário da Itália, por exemplo, onde wn movimento crítico vigoroso opôs-
tidas e aprofundadas, representaram talvez para um historiador futuro uma se a um sistema psiquiátrico globalmente arcaico e acabou por reduzi-lo, 13 na
das raras mutações positivas que se deve à nossa época ambígua: aquela que França, a instalação de dispositivos institucionais mais sofisticados como o
terá restituído uma dimensão humana a algumas categorias de excluídos. setor e novas técnicas em geral inspiradas na psicanálise, mobilizaram o essen-
A transformação mais decisiva intervinda após uma dezena de anos no cial dos esforços dos profissionais progressistas. Eles contribuíram para desa-
setor da medicina mental foi sem dúvida como que um recuo do que se pode- creditar como ingênuas ou redutoras as tentativas de mudança que não se
ria chamar o "racismo antilouco", uma das formas mais profundamente ins-
critas da negação da diferença. Não haveria aí senão sua contribuição a depo- 12 Coletivo internacional, Rede alternativa à psiquiatria, UFE, 1977.
sitar no crédito da antipsiquiatria a essa mudança, aqueles que dela participa- 13 Esse movimento, começado em princípios dos anos sessenta em Gorizia, cm volta de
ram ou por ela foram assimilados não teriam a lamentar de nisso ter despen- Franco Basaglia, permaneceu muito tempo marginal e minoritário. Ele soube, no
dido algum esforço. E, na medida em que esse tipo de aquisição é sempre frá- entanto, constituir-se pouco a pouco em força social importante, associando-se a
gil, provisório e ameaçado, onde amplos setores da opinião alimentam ainda a correntes políticas e sindicatos. Em 1978, em grande parte graças à influência des-
antiga rejeição da loucura, onde enfim todos os racismos subterraneamente se se movimento que se tomou Psiquiatria Democrática, o Parlaml•nto italiano votou
a lei 180, que programa a rnpressão dos hospitais psiquiátricos e prevê a integra-
dão as mãos na grande comunhão dos excludentes, valerá ainda a pena de nis-
ção da psiquiatria cm uma reorganização territorial dos serviços de saúde.
so consagrar esforços no futuro.
31
30
enquadravam nas exigências de um tecnicismo modernista em via de implan- Henri Ey recebia nestes termos no hospital psiquiátrico de Soisy-sur-Seine
tação. Se os profissionais, em sua maioria, permaneceram relativamente alér- o Ministro da Educação Nacional Edgar Faure: "A reunião de hoje marca a
gicos à contestação sócio-política, é porque possuíam seu próprio programa liberação da psiquiatria: ela só conhece um precedente, o grande impulse de
de reformas. organização de 1945. (... ) Nenhum domínio da medicina é mais favorável ao
O movimento de crítica foi a~sim empurrado, seja em direção a ações espírito de revolução na Universidade, e o senhor foi o presidente e grande
chamadas irresponsáveis, porque não podem se revestir de racionalizações sá- mestre da Universidade, o artesão desta revolução psiquiátrica." 14
bias, seja em direção à denúncia das práticas mais arcaicas e mais arbitrárias da Mais perto ainda dos "acontecimentos", Charles Brisset, secretário do
organização oficial: a lei de 1838, a violência da instituição totalitária, o arbi- Sindicato dos Psiquiatras Franceses, escreveu: "Nós devemos reconhecer que
trário das rotulações psiquiátricas, a colusão das funções administrativas e o movimento dos estudantes permitiu às idéias do Livro branco se imporem
médicas exercidas pelo psiquiatra, a tentação de reduzir o desvio social à com uma aceleração de vários anos. O efeito de "ruptura" que foi obtido pelos
doença, etc. estudantes acarretou projetos de reformas além das perspectivas previsíveis
Em suma, mais esta crítica se pretendia radical, e mais ela se limitava à há somente um ano." 15
contestação das formas mais manifestas da expressão psiquiátrica; mais ela se
queria política e mais era levada a dar lances sobre a natureza diretamente A reestruturação da profissão
política de seu alvo, a saber, as relações que a medicina mental mantém com o
aparelho de Estado; mais também ela se instalava na denúncia de uma repres- O que então aconteceu de tão feliz à psiquiatria? A certeza de ver enfim
são sobre a qual estava claro que era "o poder" que puxava as cordinhas. aplicar seu próprio programa de transformação, que tinha laboriosamente
É esta fixaçãCl de crítica sob o modelo de uma espécie de Estado-Levia- completado através de uma vintena de anos de esforços e tentativas e que está
tã, às vezes desequilibrando todo o campo da medicina mental, outras mani- consignado, desde antes de 1968, no grande manifesto do reformismo psiquiá-
pulando-a sub-repticiamente, que é preciso reconsiderar hoje. Se é verdade trico, o Livro branco da psiquiatria francesa. 16 Por volta de 1968 de fato,
que o período pós-68 foi marcado sobretudo pelo encontro entre uma coloca- intervém uma série de medidas que parecem garantir o desenvolvimento da
ção em causa dos aspectos mais tradicionais da organização da medicina men- especialidade em bases renovadas.
tal e a problemática político-moral das lutas anti-repressivas, compreende-se
que tal contestação tenha sido especialmente eficaz contra as caracteristicas 1. "Da grande fermentação dos espíritos ( trata-se ainda de maio de
menos confessáveis dessa organização, as mais constrangedoras em relação a 1968) nasceu enfim uma grande especialidade médica: a Psiquiatria." 17 De
um projeto de modernização da própria profissão. No final, um espírito cíni- fato, o certificado de estudos especiais de psiquiatria é criado a 30 de dezem-
co poderia chegar a pretender que uma crítica que se queria radical contribuiu bro de 1968. Na aparência, simples peripécia corporatista; mas, para os psi-
a impor na base de uma ação militante, quer dizer, da benevolência, quase o quiatras, conclusão de uma longa história conflituosa que marca o sucesso de
mesmo tipo de reàlização que a tendência reformista fazia prevalecer na~base uma estratégia profissional e funda a psiquiatria como campo teórico-prático
de um trabalho oficialmente reconhecido e regularmente remunerado. E um autônomo.
fato aliás em que o alvo foi definido de maneira demasiado estreita em rela-
ção ~o co~junto do processo de transformação que agitou esse se.torno decor- 14
EY, Henri. Apud Inter-Setor, 15, 1969, p. 32.
rer destes últimos dez anos. Resta agora restituir às mudanças internas do
15
meio sua amplidão e seu ritmo próprio. BRISSET, Charles. Os acontecimentos de maio e o Livro branco. A Evolução Psiquiá-
trica, III, set. de 1968. p. 549.
16
2. A RESISTÍVEL ASCENSÃO DO REFORMISMO Livro branco da psiquiatria francesa. Ed. Privat. Toulouse. t.I. 1965, t.11, 1966, t.III,
1967.
Os psiquiatras têm, no entanto, eles também, sua hagiografia de 1968, 17
EY, Henri. A psiquiatria, uma grande especialidade médica. A Imprensa Médica, 44,
mas ela é muito diferente da dos contestatános. A 18 de janeiro de 1969, dez. 1968, p. 740.

32 33
A separação com a neurologia põe fim primeiro a uma sit~ç~o p~ra~~- diz ainda Henri Ey, "a psiquiatria, para responder ao seu objetivo, não deve
xal. o essencial das. práticas da medicina mental se dava nos ho~pltats ps1qma- perecer, nem por excesso de autonomia nem por excesso de dependência". 21
tricos a formação ali se fazia no local pela intermediação do mtemato, e os Veremos que o perigo que corre o risco de diluir a psiquiatria numa espécie
psiquiatras públicos eram nomeados por um concurso a~inistra:ivo que s_e de cultura relacional inspirada pela psicanálise é tanto mais grave do que a de
abria para uma carreira de médico~-funcionários. Mas o umco ensmo d~ ~s1- sua banalização médica, e o próprio Ey tomará consciência disso mais tarde.
quiatria era dado sob o rótulo da neuropsiquiatria nas FacuMades_de Medicma Mas, por enquanto, o inimigo principal é ainda o inimigo hereditário, quer
(Centros Hospitalares Universitários depois de 1958) por Uruvemdades corta- dizer, a neurologia, e acaba de ser vencido, ou pelo menos parado em sua
das da prática dos hospitals psiquiátricos. O corpo dos neuropsiqmatras se expansão. O próprio Edgar Faure rubricou o tratado que garante a au:odeter-
reproduzia assim ele mesmo. Mais, o prestígio da ~~versidade os colocava minação da psiquiatria e pode lhe servir de base operacional para desenvolver
como interlocutores privilegiados nas diversas connssoes onde se tomam as todas as suas potencialidades. ·
decisões estratégicas para o futuro da profissão. Além do fato de sere~ .ex- Talvez se pense que era ingênuo dar tanta importância a uma resolução
cluídos das atividades de ensino que pareciam a seus o~os ser ~e s~u direito, do Ministro da Educação Nacional. Mas, além do que lá se tratava, aos olhos
18 dos psiquiatras, da questão da vida ou morte da psiquiatria, esse reconheci-
08 psiquiatras do "quadro" temiam ver-se cada vez mrus m~rgmaliz~do~ p~r
re form as decididas sem eles. O reconhecimento da autononna da ps1qmatna
.. mento de sua autonomia ia na mesma direção de uma série de outras medidas
restabelecia assim uma certa paridade. Ele permitia vislumbrar uma part1~1p!- mais ou menos contemporâneas, que pareciam provar que aquela "grande
ção dos psiquiatras no ensino de sua especiali~ad~. Ele os colocou na pos1çao especialidade médica" estava realmente conseguindo impor sua hegemonia.
de interlocutores válidos junto aos poderes pubhcos no momento em que a 2. A 3 de janeiro de 1968, o Parlamento tinha votado uma lei sobre os
profissão se reestruturava. "incapazes maiores" revogando certas disposições da lei de 30 de junho de
No entanto, se os psiquiatras dispensaram tantos esforços para obter 1838 sobre os alienados relativas à gestão dos bens e aos direitos civis dos
essa separação, foi porque nela viram um objetivo mui_to mais pr~fundo do doentes mentais. Essa lei de 1838 funcionava há mais de um século de manei-
que a concorrência de duas estratégias profissionais: a propna questão do esta- ra monolítica, segundo o princípio do tudo ou nada. Ela tinha correspondido
19
tuto da psiquiatria, e de sua existência como entidade espe7ffi~a: ~egundo a um estágio de desenvolvimento da psiquiatria onde ser alienado era ter que
Henri· Ey, principal cabeça do movimento reformador, esta ongmalidade do ser internado, e onde a atividade terapêutica se passava inteiramente em espa-
fato psiquiátrico que é o grande argumento do refo~mi~m~ que nos ~ns~ir~ a ço de asilo fechado. A lei tinha sido ultrapassada pela instalação de novas prá-
todos"20 passa primeiro pelo_ reconhecimento da ps1qwatna co~o disc1plin~ ticas, como a abertura dos serviços livres em meio hospitalar, onde as admis-
autônoma:· De fato, a psiquiatria só existe se a doença men~ ~x1ste, q~e~ di- sões se fazem a pedido independentemente da lei, e pelo desenvolvimento de
se é urna doença (então a psiquiatria existe como especialidade medica), atividades extra-hospitalares, elas também sem regime especial. Mas a legisla-
~ -~d.
mas uma doença diferente (então a psiquiatria existe como-espec1 a e on- ção de 1838 permanecia o núcleo rígido que freava as possibilidades de ex-
ginal). Esta questão da natureza da doença mental, questão do objeto e da pansão da medicina mental, já que ela representava sua única cobertura legal
existência da psiquiatria, é, aliás, um combate em duas frentes, p01s, como num modo pesadamente discriminativo. Os psiquiatras reformistas pediam in-
sistentemente, seja sua supressão pura e simples, seja uma transformação pro-
18 o "quadro" é O nome tradicional para o corpo de médicos dos hospi!ais psiquiátr.icos funda que quebraria a tautologia alienado-internado, outro tanto ruinosa para
constituído llO século XIX para pôr em prática a lei de 1838 e cuJo estatuto tmha sua prática quanto chocante em relação a qualquer ideologia que queria rom-
permanecido praticamente imutável até 1968 precisamente. per com as tradições segregacionistas. Assim, desde 1945, eles defendem "um
19 Sobre a história e os objetivos do conflito psiquiatria-neuropsiquiatria, cf; ~EC, c.01:t- ponto de vista novo, saído dos trabalhos mais recentes, que destrói a noção
te. Em direção a uma psiquiatria normalizada, história de uma. estrategw profzsszo- de internação e a ela substitui um teclado de medidas de assistência infinita-
nal, 1945-1970, tese de doutorado do 3<? ciclo, Paris, 1977, mrmeo. mente mais maleáveis, acrescendo consideravelmente o caráter médico da as-
20 EY, Henri. "Prefácio", in BRISSET, Charles. O futuro da psiquiatria na França. Payot,
21
1972, p. 18. EY, Henri."Discurso de abertura". Livro branco da psiquiatria francesa. p. 3. t. I.

34 35
sistência psiquiátrica e estendendo medidas médico-sociais cambiantes a todas tria das condições de exercício da prática nos hospitais comuns, eles se viam
as categorias de perturbações mentais, segundo sua repercussão social".
22 regularmente acusados de assim prolongar a tradição assistencialista da filan-
A nova lei de 1968 fornece uma resposta parcial a essas reivindicações tropia em detrimento da função de tratamento, que deve ser a partir de então
reiteradas. Ela dissocia o internamento da colocação sob proteção judiciária. a única justificativa de uma psiquiatria moderna.
Doentes podem ser colocados sob a guarda da justiça, sob tutela ou sob cura- Parece que, ao contrário do que se passou com as outras reformas, não
doria por decisão judiciária, quer ·sejam hospitalizados ou não, em serviço aber- houve aí, à primeira vista, unanimidade sobre esse ponto no quadro. Este, por
to ou em serviço fechado. Inversamente, um doente internado pode conservar razões profundas, sobre as quais voltaremos, continuava muito ligado à tradi-
a totalidade de seus direitos. As medidas podem valer, aliás, para outros inca- ção assistencialista. Mas a lei Debré de 1958, 23 que tinha deixado a psiquiatria
pazes maiores - bebedores inveterados, pródigos, etc. - que não são doentes fora de seu campo, continha riscos de marginalização grave se a medicina men-
mentais. A alienação mental cessa de pertencer a essa categorização maciça a tal não,se ligasse à organização administrativa da medicina em geral. O conjun-
um tempo médica, administrativa e jurídica, que anulava umas pelas outras to da profissão se religa então à posição expressa nas conclusões do Livro
todas essas determinações e as resumia num estatuto de exceção. branco: "A harmonização das estruturas administrativas dos hospitais psiquiá-
Certo, essa reforma de 1968 continua limitada ao estatuto de direito tricos com as dos hospitais gerais, o alinhamento do estatuto dos médicos dos
civil do doente, a lei de 1838 continuando a reger os outros aspectos de seu hospitais psiquiátricos com o dos médicos de horário integral dos hospitais
regime. Mas, nesse ano de 1968, iria fazer quase que exatamente um século gerais, vão no sentido do progresso no caminho da integração da psiquiatria
que no final do Segundo Império um deputado chamado Gambetta apresen- na medicina. " 24
tava o primeiro projeto de reforma e liberalização da lei de 1838. Dezenas Ao mesmo tempo, os hospitais psiquiátricos cessam de ser estabeleci-
de outros o seguiram, mas nenhum chegou ao fim. Não era proibido pensar mentos departamentais colocados sob a autoridade direta da administração lo-
que vencer uma resistência secular já constituía um grande sucesso, e que se cal para se tornarem autônomos como os outros hospitais. A nova lei introduz
tratava da primeira etapa decisiva em direção à abolição dessa legislação arcai- assim uma hierarquia no quadro, instituindo dois concursos de recrutamento,
ca. (Hoje, cento e vinte anos depois de Gambetta e perto de um século e meio o de "assistente", para entrar na carreira, e o de "psiquiatra", para ser o médi-
após sua promulgação, a refonna ou a revogação da lei de 1838 continua na co-chefe do serviço.
ordem do dia ... ) Era talvez ir um pouco longe em direção da integração à medicina. O
novo estatuto dos psiquiatras vai ser o cavalo de Tróia, que tornará possível
3. A 31 de julho de 1968 sai a lei trazendo reforma do estatuto dos a passagem da psiquiatria para a banalização médica (capítulo 2). Mas esta
médicos de hospitais psiquiátricos. Esta medida marca, aqui ainda, a conclu- implicação só se desprenderá progressivamente. Na espera, uma tal assimilação
são de uma longa história. Os alienistas tinham sido os primeiros e durante é tentadora: ela valoriza consideravelmente uma profissão cujas condições
muito tempo os únicos médicos (seguidos pelos médicos dos sanatórios, eles financeiras de exercício pareciam escandalosamente piores do que qualquer
também encarregados de trabalhar no isolamento um "flagelo social"), dota- outra especialidade médica. E, sobretudo, o novo estatuto parecia que ia pro-
dos de estatuto de fllncionários: nomeados pelo Ministério, pagos com recursos mover uma aplicação acelerada da política de setor. A lei previa de fato que
públicos, responsáveis diante da administração local. Esse estatuto correspon- só seriam colocados no "primeiro grupo", com uma importante diferença de
dia a importantes funções administrativas e até administrativo-políticas reco- tratamento, os psiquiatras cujo serviço seria setorizado. Foi, efetivamente,
nhecidas aos psiquiatras no quadro da lei de 1838. uma poderosa motivação para "trabalhar o setor".
Enquanto isso, o exercício desse poder administrativo marcava os psi-
quiatras com um estigma cada vez mais difícil de assumir, à medida que eles
23 A lei Debré institui o estatuto de tempo integral dos médicos ho'ipitalares, assim como
reivindicavam o caráter essencialmente médico de sua prática. Na polêmica
com os neurologistas e alguns reformadores que querem aproximar a psiquia- a indissolubilidade da prática hospitalar, do ensino e da pesquisa nos centros hos-
pitalares universitários (C.H. U .) .
24 "Conclusões". Livro branco. Op. cit., moção 11, p. 153, t. III.
22 BONNAFÉ, Lucien. As jornadas psiquiátricas. O Méàico Francês, 39, 1945, p. 11.

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36

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1

Um novo dispositivo institucional esp_e~am ~ue "os acontecimentos'' vão ajudá-los a obtê-la. A necessidade já
O "setor" tinha se tornado o cavalo de batalha dos psiquiatras reforma- esta mscnta no novo estatuto de 1968. O processo de sua implantação vai ser
dores. Será preciso voltar à lógica complexa que o tinha progressivamente programado, com uma sábia lentidão, todavia A partir de 1972 aparecem as
constituído na única alternativa capaz, aos olhos dos profissionais, de garantir mais importantes circulares de aplicação que definem as condições de instala-
a especificidade da medicina mental e de lhe assegurar os meios de seu desen- ção sistemática do setor. Em particular os "Conselhos de Setor" são constituí-
volvimento moderno. Mas a política do setor como fórmula ele ren.rganização dos, cujos membros, nomeados pela administração da Prefeitura, devem coor-
do conjunto da psiquiatria tinha sido oficializada por uma circular ministerial denar a ação de diferentes instâncias tendo a ver com "a luta contra as doen-
de 1960. Ela previa o retalhamento de todo o país em unidades territoriais ças mentais". O dispositivo para adultos está encimado de "intersetores da
correspondendo a uma população de 70.000 habitantes aproximadamente, psiquiatria infanto-juvenis", correspondendo cada um a três setores àdultos.
e afetava a cada uma dessas zonas uma equipe psiquiátrica plurivalente dotada A p~rti~ do início d~s anos setenta, o organograma completo da implantação
de ampla gama de instituições diversas, do hospital psiquiátrico a estruturas terntonal de uma psiquiatria moderna - o que alguns denunciarão como uma
mais maleáveis. nova "quadriculação" - está instalado.
Ora, essa decisão tinha resultado de uma conjuntura feliz, e a muitos
olhos prematura em relação à evolução das práticas e mesmo dos espíritos da Notamos que essas diferentes disposições tanto procedem imediatamen-
maioria silenciosa dos profissionais. Ela era o produto da aliança entre o nó- te, tanto sucedem a 1968: como vão todas na mesma direção, que consiste em
dulo illais progressista dos psiquiatras que trabalhava nesse sentido desde a garantir a especificidade da psiquiatria no seio da medicina. Prova de que esta
Liberação, e alguns administradores esclarecidos do "Departamento das Doen- data de 1968 não constitui um mecanismo significativo. Por exemplo, a im-
ças Mentais" no Ministério da Saúde. Talvez se tratasse também de dar uma portante reforma do estatuto dos psiquiatras, votada emjulho de 1968 esta-
compensação a um grupo de médicos deixados à margem da lei Debré de va muito evidentemente preparada antes. Os acontecimentos de 1968 s~ con-
1958. 25 Em todo caso, a decisão permaneceu amplamente formal e, exceto tentaram em acelerar a instalação do processo. Contrariamente ao que se pas-
algumas situações-piloto como a experiência da 13~ Região de Paris, a organi- sou para outras profissões que tentaram inventar na febrilidade das reestrutu-
zação da psiquiatria continuava essencialmente hospitalar. rações inéditas, a crise confirmou os psiquiatras na idéia de que trilhavam há
O setor representa, portanto, aos olhos de seus promotores, o desdobra- vários anos em direção â história. Possuíam um programa completo de refor-
mento em ato da especificidade da psiquiatria. Supõe estruturas horizontais, ma~ que eles mesmos tinham constituído. Bastava <:1plicá-lo para que fosse
integradas ao tecido social, cujo funcionamento democrático (a um só tempo assmado o pacto da reconciliação da psiquiatria com a sociedade moderna.
no seio da equipe e através do tipo de relacionamento que ela mantém com os No máximo, a crise de 1968 empurrou para ir um pouco mais longe,
usuários) se opõe às estruturas verticais ou piramidais de uma hierarquia médi- mas sempre na direção do combate contra a hegemonia dos universitários e
ca rígida e centralizada, 26 tal qual é representada nos hospitais comuns. para promover uma democratização das condições de exercício da psiquiatria
Trata-se então de aplicar enfim essa estrutura necessária e suficiente que andava a par com o aumento de suas possibilidades de expansão. Por
para promover o aggiornamento progressista da psiquiatria. Os psiquiatras exemplo, no imediato pós-68, constituíram-se em inúmeras cidades universi-
tárias "Colégios Regionais de Psiquiatria", assegurando a coordenação da ati-
25
Os principais documentos oficiais sobre o setor estão reproduzidos em AUDISIO, vidade de todas as instâncias psiquiátricas de uma região para organizar a for-
Michel. A psiquiatria de setor. Privat, 1980. Sobre a história do setor, CASTEL, mação profissional. Em algumas cidades, o Colégio acresceu-se com "trabalha-
Robert. Gênese e ambigüidades da noção do setor em psiquiatria. Sociologia do
Trabalho, jan. 1975; História da psiquiatria de setor ou o setor impossíveL Pesqui- d~res_ da_ s!~~" não médicos para formar um "Instituto Pluridisciplinar de
sa, 17 mar. 1975. Na literatura psiquiátrica, o texto mais sintético sobre o setor é Ps1qmatna . Modelo alternativo ao do ensino dispensado nas Faculdades,
sem dúvida o relatório de Henri Duchêne no congresso de Tours em 1959: "Os
serviços psiquiátricos extra-hospitalares". Congresso de psiquiatria e neurologia da
Ungua francesa. Masson, 1959. 27
26 DEMA~, ~ean & DEMAY, Marie. O movimento de maio, documentos médicos e psi-
Sobre es~a distinção, BRISSET, Charles. O futuro da psiquiatria na França, cap. UI. qutatncos. Informação Psiquiátrica, nov. 1968.

38 39

l
e seria impensável que nos fechássemos em nossa torre de marfim.''3o Mas
apoiado na prática do setor, a fórmula parece ter-se beneficiado com alguns
preconizar uma "psiquiatria de extensão" não é fazer do próprio social um
apoios nos meios próximos a Edgar Faure". 28
grande corpo doente do qual todas as disfunções dependeriam de soluções
De fato, em psiquiatria como alhures, algumas esperanças reformistas
médicas? Diante dessa interrogação sobre a "psicocracia", diferentes atitudes
serão decepcionadas. Em particular, o núcleo conservador dos neuropsiquia-
se desenham.
tras, que se tinha submetido durante a tempestade, prova logo que continua
Tentações tecnocráticas de alguns: "Tenho consciência de que, diante
a controlar os centros importantes de decisão. Segue-se um certo número de
da enormidade dos deveres que já temos diante de nós, poderia parecer irô-
conflitos, particularmente sobre a instalação de uma agregação d.P psJquiatiia
nico querer acrescentar-lhes novos e alargar - com risco de pulverizar o fato
e da participação no ensino universitário. 29 Mas o essencial parecia em jogo
psiquiátrico - a função do psiquiatra em domínios mais amplos que os atual-
entre 1965 e 1970. O modelo de implantação de uma nova psiquiatria comu-
mente seus, domínio onde ele já não consegue ser suficiente. Podemos no en-
nitária parece então existir, e tudo leva a pensar que vai rapidamente se impor
tanto nos perguntar, levando em conta o que sabemos da gênese de uma parte
aos fatos.
das perturbações mentais, se uma posição demasiado defensiva não é a conde-
Assim, a medicina mental parece ter reconquistad9 sua autonomia, a
nação de um certo tipo de progresso; e se - com prudência - não convém
partir do reconhecimento da especificidade de seu objeto. Esta especificidade
colocar a questão da intervenção do psiquiatra em níveis profiláticos corres-
tinha ganho uma vez em torno das condições de exercício de uma prática de
pondendo nisso à definição da saúde. " 31
asilo. Ela tinha permitido construir uma síntese completa, comportando uma
Inquietudes morais de outros: "No papel do médico, creio que há, em
dimensão técnica, teórica, institucional, profissional e legislativa. A psiquiatria
qualquer caso, uma função social e normativa. ( ... ) Nossos colegas expert",
parece ter alcançado sua metamorfose moderna, ou estar em via de alcançá-la,
ao longo do dia, ditam o direito em matéria de doença mental. Há aí um pro-
porque parece pronta a estender a mesma sistematicidade em torno do dispo-
blema que mereceria ser estudado com muita seriedade, não na perspectiva
sitivo do setor. É novamente um modelo público; está dotado de seu corpo
criminologista, mas na perspectiva normativa. Na estrutura social atual há
especializado de profissionais, de suas instituições específicas, e pretende pro-
um certo número de normas que fazem que um tal esteja doente, e tal o~tro
mover uma abordagem original das perturbações mentais diferente da tecno-
não o esteja. Não está dito aliás que, se nos colocamos no plano histórico, as
logia médica clássica. Mas, enquanto a rigidez da síntese anterior limitava a
fronteiras tenham sido sempre as mesmas. " 32
realização aos espaços fechados regidos por uma legislação especial, o exercí-
É ainda Henri Ey, com seu sentido tático, que conclui o debate, recor-
cio da medicina mental torna-se no fim coextensivo ao conjunto social. Dar
rendo novamente à especificidade do fato psiquiátrico concebido como uma
fim à segregação é também abrir o caminho a um intervencionismo generali-
espécie muito particular do gênero das doenças: Tão essencial e tão funda-
zado.
men_~ que seja a função social do psiquiatra, pareceu a todos os que tinham
participado desse debate que essa função é e tinha sido limitada. Limitada por
O expansionismo psiquiátrico
quem e por quê? Pelo próprio objetivo da psiquiatria, quer dizer, a estrutura
Desde 1967, o Livro branco da psiquiatria françesa abre uma interes- da doença men_tal. Ela não se confunde nem com todos os vícios, nem com
sante discussão sobre as implicações desse deslocamento. Para um dos líderes ~odas as originalidades, nem com todas as infelicidades da condição humana,
do movimento desde 1945, "a cultura espera a palavra do psiquiatra; ela espe- isso que chamamos romanticamente "a loucura da humanidade. " 33
ra que nós formulemos nosso pensamento em um certo número de domínios,
30 BONNAFÊ, Lucien. Discussão sobre "As funções sociais do psiquiatra". Livro bran-
co... , p. 261, t. II.
31
28
FAURE-LISFRANC, Sylvie. Mesa redonda de 25 de outubro de 1968. Psiquiatria BALLY-SALIN, Jean. Idem. p. 255.
Francesa. 2 nov. 1968. 32
DAUMEZON, Georges. Idem. p. 257.
29 Sobre estes pontos, a literatura sindical, em particular A Informação Psiquiátrica nos
33
EY, Henri. Idem. p. 263.
anos seguintes a 1968.

40 41
Sem dúvida. Mas, se essa é a única barreira contra o expansionismo psi- setor parece a muitos como a panacéia psiquiátrica, a solução ideal, democrá-
quiátrico, ela é bem frágil. Seria preciso ter certeza não somente de que todos tica, civilizada e tUdo. ( ... ) É provável que a setorização vá se estender muito
os psiquiatras, mas também todos os responsáveis administrativos e todos os mais amplamente nos próximos anos e que o Estado aceitará o custo da ope-
governos, estivessem convertidos a uma definição limitativa da doença mental ração. ( ... ) Uma tal política, que operará um esquadrinhamento completo da
para ter garantia quanto ao risco de ver a medicina mental tornar-se um modo população, constituirá uma verdadeira polícia do desvio. Quais são os critérios
generalizado de resolução dos conflitos? É então nesse contexto, nutrido que justificarão a intervenção da equipe encarregada do tratamento? De fato,
pelas esperanças de alguns e inquietudes de outros, que desenvolveu-se uma estamos começando a erguer um pequeno exército a serviço da norma e da
crítica política da medicina mental. Pareceu tanto mais natural denunciar os ideologia dominante. " 36
riscos provenientes de sua ligação ao poder do Estado quanto a setorização se Se ao slogan do "psiquiatra tira" ac1<.:~centou-se o do setor como "es-
tomava a si mesma como uma transformação e uma ampliação de um modelo quadrinhador policial", é que aí havia,. sob o exagero das fórmulas, a cons-
de inteivenção central, exercendo funções administrativas ao mesmo tempo ciência de um mesmo religamento da psiquiatria, antiga e moderna, ao apare-
que médicas. Em particular, a nova psiquiatria comunitária retomava integral- lho do Estado. A primeira referência ao setor como esquadrinhamento não se
mente a vocação de seiviço público da estrutura asilar: "A nação deve a edu- encontra, aliás, na literatura contestatária, mas na pena de um dos pais menos
cação às pessoas que dela fazem parte; ela deve então colocar a educação ao contestáveis da psiquiatria moderna, Georges Daumezon: "Há comissariados
alcance do usuário. Da mesma forma, a nação deve o aparelho de proteção da de polícia para os delinqüentes, por que não haveria 'comissariados de polícia
34 mental'? E, em certa medida, o esquadrinhamento do território em zonas
saúde mental: ela deve colocá-lo ao alcance do usuário. "
É, aliás, um psiquiatra que, na época, dá a formulação talvez mais sinté- onde há assim um responsável definido é uma providência tranqüilizadora. " 37
tica da nova "tentação" psiquiátrica. Um psiquiatra do Quebec - o que não
constitui um acaso: Quebec tinha sido profundamente penetrado pelas in-
fluências psiquiátricas francesas, em particular, por intermédio da equipe da 3. UM PRINCÍPIO DE NÃO ESCOLHA
13i:t Administração, responsável pela primeira experiência de implantação sis-
temática do setor na França - e a disponibilidade e os recursos de um país Este modelo do setor é tão coerente, tão imperialista - exaltante para
novo tinham permitido começar a realizá-las lá: "Mais a ação do psiquiatra se alguns, perigoso para outros - quanto parecia na época? Representa a princi-
quer precoce e radical, mais ela deve inteivir no nível dos conjuntos, das pal matriz, através da qual pode-se consumar o conjunto das transformações
estruturas familiares e sociais, cuja apreensão exige o domínio das teorias e em curso?
práticas novas ainda mal definidas. ( ... ) Ele não pode mais se contentar (ins- Uma volta à gênese da política de setor sugere que ela justapõe sobre-
tado pelo psiquiatra de asilo) em "constatar", quer dizer, reconhecer sua im- tudo um conjunto de elementos heteróclitos e representa no final uma ma-
portância no nível da estrutura já alterada, mas ressente a necessidade de ín- neira hábil de unificar, num organograma formal, dados inconciliáveis na prá-
teivir no nível da estrutura que se está alterando, ou mesmo experimenta a tica. O setor, síntese original ou ajuntamento de dados díspares? Opção auda-
35 ciosa ou astúcia sutil para evitar ter verdadeiramente de escolher uma política
vertiginosa tentação de inteivir no nível da conjuntura."
A essas ambições, às vezes misturadas de escrúpulos, ecoa a inquietude da saúde mental? Reexaminar aqui sua estrutura interna não corresponde ao
sem nuance dos contestatários. No número já citado do Idiota Internacional, desejo de tomar a contracorrente da opinião quase unânime que vê no setor a
o ponto de vista "esquerdista" sobre o setor é assim apresentado: "Muito mais síntese harmoniosa e nova capaz de renovar os poderes da psiquiatria. Fazer
flexivel que a política de internamento, menos autoritária, ( ... ) a política de explodir a estrutura do setor é fazer explodir a falsa unidade de um alvo, que
cristalizou o essencial dos ataques contra as formas modernas de hegemonia
34 BONNAFÊ, Lucien. Discussão sobre "As instituições e a organização de setores psi-
36 "Contra a psiquiatria", O Idiota Internacional, 10. p. 7
quiátricos". Livro branco... Op. cit., II. p. 54.
37
35 STERLIN, Carlo. Ser psiquiatria de setor. Infonnação psiquiátriéa, 7 set. 1969. pp. DAUMEZON, Georges. Discussão sobre "As instituições· e a organização de setores
762-63. psiquiátricos". Op. cit. p. 72.

42 43

-- ·. .. ·-··-··
1 da medicina mental, enquanto que o essencial, sem dúvida, já se passava além.
Com o recuo, pode-se agora desprender um certo número de contradições
internas que minavam a própria fórmula do setor.
cura nas mãos de um médico hábil, é o agente terapêutico mais-poderoso con-
tra as doenças mentais". A psicoterapia institucional redescobre as virtudes do
tratamento moral do século XIX. O principal promotor dessa psicoterapia ins-
titucional reconhece: "Em suma, com a diferença de poucos detalhes téc:nicos,
Ultrapassar ou reformar o hosp(cio? de alguns instantes, empreendidos por cada um em seu seiviço, o fundamento
1. "Nosso objetivo é, a um só tempo, transtornar nossa organização dessa psicoterapia coletiva que perseguimos não variou nada há um século. " 42
hospitalar, e levar nossa atividade a todos os campos onde o conhecimento Seria injusto interpretar esta fidelidade nos mais ativos dos inovadores
psicopatológico é necessário". 38 Desde 1945, multiplicam-se declarações ten- somente por sua própria alienação a uma tradição secular. O trabalho sobre a
dendo a recolocar "o alienado na sociedade" e ir "além do hospício e do hos- instituição é capitalizável na polêmica que opõe essa corrente reformadora aos
pital psiquiátrico". 39 partidários do tecnicismo médico. Só, com efeito, permite argumentar medi-
O programa elaborado por ocasião das jornadas de 1945 exprime igual- camente a defesa de uma posição assistencial. Veremos (capítulo 2) as razões
mente esta intenção de ultrapassar a prática hospitalar: "A competência dos pelas quais a psiquiatria moderna foi como que obcecada por um contramode-
psiquiatras qualificados deve ser considerada como estendida a todos os pro- lo de reforma possível da medicina mental, o do objetivismo médico. Ela
blemas que dizem respeito à saúde mental, individual ou social, a readaptação consagrou o essencial de seus esforços, teóricos e práticos, a se dissociar de
ao meio das pessoas desadaptadas. As ligações indispensáveis devem ser manti- uma fórmula que faría da psiquiatria um simples ramo da medicina, caracte-
das com os organismos da Educação Nacional, da orientação profissional, da rizado pelos seus cuidados intensivos e suas inteivenções precoces, abando-
justiça, etc. " 40 nando a instâncias de encarregados não médicos esses pensionistas de longo
Pprtanto, essas múltiplas declarações de intenção não são nada seguidas curso nos hospitais psiquiátricos batizados "crônicos". Contra essa tendência,
de efeitos reais. Há nisso, primeiro, razões prosaicas. A base operacional dos os psiquiatras querem provar que a maneira pela qual eles administram a assis-
psiquiatras é e permanece o hospital. Ora, por razões trágicas devidas à guerra, tência é um forma original de medicina. O desenvolvimento de uma psicote-
este se encontra ampiamente suhocupado na Liberação e oferece - antes mes- rapia institucional nos hospitais psiquiátricos mostra que técnicas que nada
mo da descoberta dos neurolépticos e antes também da penetração da psicaná- têm aparentemente de ponto em comum com aquelas de serviços médicos de
lise no meio psiquiátrico - possibilidades novas de trabalho. Operou-se assim, urgência são assim mesmo eficazes. Então, não somente é uma heresia médica
pelo menos nos seiviços mais ativos, um trabalho ao mesmo tempo espetacu- batizar crônicos doentes que não respondem a determinado tipo de tratamen-
lar e aprofundado de humanização, comparado ao que foi efetuado na Grã- tos intensivos, mas, mais geralmente, há, pelo menos para certas categorias de
Bretanha pela corrente das comunidades terapêuticas e ao qual se deu na doentes, uma especificidade do tratamento psiquiátrico que não se pode
França o nome de "psicoterapia institucional". 41 medir pela bitola dos critérios da medicina comum. As técnicas institucionais
Trata-se do que se poderia chamar um "neo-esquirolismo ". Como na representam a forma apropriada de medicalização que convém às condições
famosa fórmula de Esquirol, "uma casa de alienados é um instrumento de específicas de exercício da psiquiatria.
Essas tenta~ivas transfonrtaram profundamente a estrutura de certos
38 BONNAFÉ, Lucien & DAUMEZON, Georges. "Perspectivas de reformas psiquiátricas serviços, e, às vezes, antes do aparecimento dos medicamentos psicotrópicos
na França após a Liberação". Congresso dos médicos alienistas e neurologistas de nos anos cinqüenta. Mas seu próprio sucesso acarretou um desequilíbrio entre
lingua francesa de Genebra. Masson, 1946. o relativo desenvolvimento das tecnologias hospitalares e a quase inexistência
39 São os títulos dos dois primeiros Documentos da Informação Psiquiátrica (1945 e de práticas externas. Uma tal disparidade vai pesar enormemente em toda a
1946), que contêm manifestos das idéia'> reformadoras. elaboração da política do setor.
40 "Conclusão das jornadas psiquiátrica<, de março de 1945", conclusão n9 3, p. 19.
41 DAUMEZON, Georges & KOECHLIN, Phillippe. A psicoterapia institucional contem- 42
DAUMEZON, Georges. "Os fundamentos de uma psicoterapia coletiva". Evolução
porânea. Anais Portugueses de Psiquiatria, vol. 4, dez. 1982. Pstq_uiátrica. 1948, li, p. 61.

44 45

l
quiatra, quando ele não int:rvém mais _direta1;1e~te com~ t~rapeuta, ~as
Prevenir ou reparar?
como consultante, o que supoe a colocaçao de tecmcas qualitativamente d~fe-
2. Disparidade maciça, então, ao nível das práticas, entre as que se ela- rentes. Quando esta orientação constituiu-se em política de conjunto da saude
boram no espaço hospitalar e as que se presume vão romper com a hegemonia mental ( o movimento das Comrilunity Mental Health Centers), ela montou-se
do hospital e em proveito das primeiras. Mas, ao mesmo tempo, afirmação em derivação, em relação ao sistema dos hospitais psiquiátricos (Sta te Mental
reiterada das necessidades de desenvolver sobretudo as práticas fora do hos- Hospitais). Seus promotores esperavam que, quando ela se_ impusesse, exerce-
pital. Era difícil que nessas condições a síntese dessas duas posições não ficas- ria uma força de atração suficiente sobre a estrutura hospitalar para desesta-
se em larga medida verbal. Ela foi pensada como uma articulação do "hospi- bilizá-la e torná-la caduca, com o tempo. Mas eles não pretenderam propor
talar" e do "extra-hospitalar" no seio de um moto-contínuo que se presumia uma fórmula cobrindo a um só tempo e vez todo o hospitalar e todo o extra-
constituir uma unidade orgânica: "Também devemos chegar a uma organiza- hospitalar.45 _
ção que transcenda tanto a noção do hospital como a do hospício: o centro Em relação a essa relativa modéstia, a ambição do setor frances de cons-
de cura e de readaptação, o estabelecimento psicoterapêutico, não será senão tituir por si mesmo um sistema unificado e sedutor. Em particular, parece ~er
uma da.s engrenagens da organização inteira que deve cobrir praticamente a única capaz de assegurar a continuidade dos cuidados, m1:a mesma equ_ipe
todo o país, e, em todo caso, corresponde a uma ótica absolutamente revolu- assumindo todos os usuários todo o tempo, qualquer que seJa a estrutura ms-
cionária em relação à atitude tradicional. " 43 titucional na qual eles se encontrem colocados. Mas uma tal construção deixa
Pode-se perceber, através de todos esses textos que antecipam a organi- em suspenso dois problemas: . ..
zação do setor, a imagem de um deslocamento no espaço, que faria deslizar o - A estrutura hospitalar continua enquistada no novo d1spos1t1vo. Ela
centro de gravidade das práticas psiquiátricas do hospital a-uma pluralidade de é suscetível de destransitoriedade espontânea? Se os psiquiatras franceses pen-
instituições colocadas tanto a montante como água abaixo do antigo hospí- saram isso, implícita ou explicitamente, se pelo menos eles não desenca~ea-
cio, e esse desdobramento parece valer por uma revolução completa do ponto ram uma luta aberta para destruir o hospício como fez a corrente progressista
de vista. Assim, por exemplo, Bonnafé opera um atalho bastante envolvente, italiana, é preciso não se espantar muito que seu peso tenha permanecido tal
mas que parece um número de mágico quando ele declara: "A instituição psi- que ele tenha completamente desequilibrado a estrutura diversificada na qual
quiátrica é pensada como uma rede de postos diversos, através dos quais o se presumia iria se fundir. , .
médico assegura ao doente seu cuidado tão pessoal quanto possível. O eixo do - O risco que o hospital permaneça preponderante e tanto maior por-
serviço não está mais no hospício, mas na cidade, no coração do território, no que ele não domina somente por suas estruturas mais fortes e rígidas, mas
qual se exerce a função do psiquiatra, ampliada à proteção da saúde men- também por suas tecnologias. Porque as práticas, mesmo inovadoras, tinham
tal. " 44 se ajeitado na instituição, os operadores correm o risco de ficar tecnicamente
Pode-se mudar de eixo, a partir da imagem da germinação? Pode-se desguarnecidos quando é preciso dela sair. Para dizer a verdade, há mais grave:
colocar no próprio seio de um processo contínuo as práticas que provêm do não existem, falando claro, tecnologias específicas para o trabalho do setor,
espírito da comunidade terapêutica e as que se referem à psiquiatria comuni- mas sobretudo um coquetel de técnicas ou de receitas diversas, experimentadas
tária? Nos países anglo-saxões, as duas fórmulas foram concorrentes e inspira- primeiro em instituição: um pouco de psicoterapia, um pouco (ou °:uito) de
ram opções políticas diferentes. Assim, nos Estados Unidos, a corrente da medicamentos, um pouco de ergoterapia, etc. Mas, por exe°:plo, a mterv~n-
Community psychiatry desenvolveu um conjunto de pesquisas e experimen. ção in vivo, em uma situação de urgência (a crisis interventwn dos amen~a-
tos para conseguir tecnologias de intervenção no território. Ao mesmo tempo nos), não é de uma outra natureza que a maioria das outras condutas terapeu-
se efetuava uma importante reflexão teórica sobre a mutação do papel do psi- ticas?
43 BONNAFÊ, Lucien & DAUMEZON, Georges. "Perspectivas de reformas psiquiátricas
na França, após a Liberação". Op. cit. p. 588. 45 CASTEL, Françoise; CASTEL, Robert & LOVEL, Anne. A s~cie~ade psiquiát~ica
44 avançada: 0 modelo americano. Grasset, 1979, cap. V: "A~ 1lusoes da comunida-
BONNAFÉ, Lucien. Da doutrina pós-esquiroliana, II, Informação Psiquiátrica, maio
1960. p. 580. de".

47
46
Se se trata efetivamente de sair para assumir problemas que se colocam ''Serviço do usuário'' ou controle social?
no nível de comunidade, e não somente de para ela levar o saber constituído 3. Os riscos de imperialismo do setor foram debatidos sobretudo no
na instituição, não seria preciso reconsiderar do todo ao todo as condições de nível do Livro branco, através do prQblema da livre escolha e da necessidade,
aplicação do esquema médico? Alguns psiquiatras americanos jogados em,con- ao mesmo tempo por razões táticas e por causa da ideologia liberal partilhada
díções de exercício completamente novas (por exemplo, a prática nos guetos) pela maioria dos psiquiatras, de deixar subsistir um setor de exercício privado:
ali perderam mesmo a certeza de" que havia no local um papel apropriado aos "Se o setor é somente uma espécie de aparelho público disponível, um serviço
psiquiatras naquelas circunstâncias e foram arrastados numa fuga considerada 1i público no sentido etimológico do· termo, se não há nenhuma vontade psico-
perigosa para o ativismo social ou político. Os psiquiatras franceses aparente- 1•.·.
crática, nenhuma vontade reformadora além da didática, se não se trata senão
mente se preservaram dessas tentações. Mas é sem dúvida também porque eles de informar, cuidar, fazer a profilaxia, o problema da livre escolha não se co-
subestimaram a amplidão da reconversão a trabalhar fora da instituiçãci. f- loca. " 47
Há na psiquiatria francesa uma rP.lação de reforçamento recíproco entre f De fato, a despeito de seus temores, os psiquiatras liberais não tiveram
um forte componente institucionalista e um forte componente profissionalis- · nada do que-se queixar da concorrência do setor e, voltaremos a isso, a psi-
ta. Os achados montados no hospital são pensados como exportáveis ao exte- quiatria de exercício privado conheceu um crescimento mais rápido ainda
rior, o que evita ter de recolocar profundamente em causa o papel do mé- que a psiquiatria pública.
dico nas novas condições de exercício. E, se um pouco mais tarde, a psiquia- Mas, mesmo se o setor não é totalitário, no sentido em que devoraria os
tria francesa atirou-se nos braços da psicanálise, depois de a ela ter sido alér- outros tipos de práticas psiquiátricas, ele assume responsabilidades sociais que
gica durante tanto tempo, não foi porque ela tendeu a acolher a tecnologia não podem se interpretar na ideologia da livre escolha. Existe em psiquiatria
relacional dos analistas como uma panacéia, por não ter podido ou sabido for- uma espécie de divisão do trabalho entre certas intervenções que provêm de
jar ela mesma suas próprias técnicas extra-hospitalares? uma demanda mais ou menos livre da parte dos beneficiários, e deveres cor-
respondendo a funções sociais para as quais a intervenção do psiquiatra é
Esquematicamente: não há aí uma opção radical - e dolorosa - a to- obrigatoriamente requisitada. Podemos desde logo julgar um pouco ingênua
mar entre reformar (melhorar) o hospício e suprimir ( destruir) o hospício? a apresentação do conjunto do trabalho psiquiátrico como uma oferta desin-
Se, por exemplo, o movimento italiano parece ter ido mais longe no sentido teressada de serviços a usuários eventuais convidados a se determinarem livre-
de uma transformação revolucionária da prática psiquiátrica, é sem dúvida mente em relaçã0 a ela: "O desalienista é aquele que, abandonando sua fun-
porque ele ultrapassou o compromisso do hospitalar e do extra-hospitalar, o ção de alienista, se apresenta diante da sociedade perguntando: o que há para
que o levou, ao mesmo tempo, a tomar ainda mais distância em relação ao servi-la?" 48
profissionalismo médico. 46 Inversamente, se o setor impôs-se, pelo menos Por um lado, um serviço de setor pode dispensar serviços propriamente
como fraseologia, é talvez porque a escolha que representava evitava deveres- médicos, abertos a um amplo público (e é para esses serviços que a psiquiatria
colher realmente entre duas fórmulas se não totalmente antagônicas, pelo me- privada temeu a concorrência). Mas ele completa assim outros mandatos que
nos não diretamente complementares: a comunidade terapêutica e a psiquiatria são, sem dúvida, pelo menos do ponto de vista da administração, sua principal
comunitária, a reforma da estrutura hospitalar e a "psiquiatria de extensão", razão de ser, e de que nem os psiquiatras nem os usuários estão livres para se
os cuidados e a prevenção, o papel de terapeuta e o de conselheiro. Tudo se subtraírem.
passou como se os promotores do setor tivessem subestimado as diferenças De fato, o psiquiatra do setor herda alguns deveres devidos ao alienista,
entre esses dois grandes modelos de intervenção psiquiátrica. Princípio de e vai ser cada vez mais conduzido a assumir novidades na direção de popula-
economia, e no final de não-escolha, que não podia ser eternamente mantido
47 AUDISIO, Michel. As instituições e a organização dos setores psiquiátricos. Livro
li ao nível da prática. branco. Op. cit. t. II. p. 25.
48
BONNAFÉ, Lucien. Discussão sobre "As funções sociais da psiquiatria". Livro bran-
46 BASAGLIA, Franco. A instituição em negação. Trad. francesa, Ed. du Seuil, 1970. co... Op. cit. t. II. p. 261.
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ções não concedentes" Ele é sempre o garantidor da aplicação da lei de 1838, tado pela lei e os regulamentos, era preciso poder entrar aqui no labirinto das
em particular sob a forma mais coercitiva da localização do ofício; ele pode contradições concretas que colocam práticas como a visita a domicfüo, a con-
ser requisitado para expertises junto a tribunais ou determinadas administra- duta a observar diante dos "assinalamentos" feitos pela D.A.S.S. ou os vizi-
1

ções; a partir de 1954, intervém para a repressão dos "alcoólicos perigoso(, nhos, etc., e mais geralmente sobre a ambigüidade que há a propor-impor um
a partir de 1970 para o tratamento forçado de alguns toxicômanos, etc" Vere- setviço a pessoas que nada pediram.
mos (em particular no capítulo -3, a propósito da lei de orientação em favor
dos deficientes) que essas funções, longe de representar uma velha herança em
via de liquidação, vão continuamente se diversificar e ampliar. A infância, primeira ou última das preocupações?
Dois traços complementares devem ser sublinhados. Do lado do psiquia-
tra, seu estatuto comporta obrigações às quais ele não pode se furtar e que 4" Lendo a abundante literatura produzida desde 1945 em torno dos
provêm da manutenção da ordem pública, do inventário e do controle das projetos de reformas da medicina mental, fica-se chocado do pouco lugar que
populações marginais. É sem dúvida o mérito de um grande número de psi- ali tiveram por muito tempo as reflexões sobre a infância. Tudo se passou
quiatras há uns vinte anos assumir esses papéis com um máximo de liberalis- como se, até uma data recente, os problemas da infância tivessem sido trata-
mo. Assim, a lei de 1954 sobre os alcoólicos perigosos, por exemplo, só é mui- dos como uma conseqüência do dispositivo pensado para os adultos. Impasse
to parcialmente aplicada, e a de 1970 sobre os toxicômanos é freqüentemente tanto mais grave, já que o recentemente contemporâneo de toda a assistência
contornada pelos profissionais. Apesar disso cada chefe de setor continua sob médica e de toda a prevenção se faz principalmente em torno dessa zona ne-
a dependência da autoridade da prefeitura (atualmente religada pelas Direções vrálgica de práticas (capítulo 3).
à ação sanitária e social) e que pode ser requisitado a intervir como a p;:,lícia é Como explicar essa descoberta tardia da infância na psiquiatria pública?
de verbalizar. Há aí um feixe de exigências incontornáveis. A criança entrou pela fresta em um dispositivo psiquiátrico concebido primei-
Do lado das populações concernidas, por outro lado, a representação de ro para os adultos alienados. Para isto, simples razão: a construção do sistema
um usuário indeferenciado é igualmente um mito. Além mesmG da diferença asilar tinha correspondido a uma exigência administrativo-jurídica tanto quan-
entre os que estão bem e os doentes, há alvos específicos aos quais se dirige to médica, a necessidade de exe;-cer uma tutela sobre pessoas reputadas irres-
preferencialmente o trabalho psiquiátrico e que não estão muito afastados dos ponsáveis e perigosas, mas cujo aparelho judiciário não podia assegurar a res-
do trabalho social no que se recrutam freqüentemente também no seio de ponsabilidade, já que não provinham de sanções penais. As crianças não repre-
categorias de populações desfavorecidas, desestabilizadas, marginais, às vezes sentam os mesmos problemas, porque são mais ainda colocadas sob uma tute-
perigosas para a ordem pública. A liberdade de escolha, aqui como em várias la familiar que assume a maioria dos problemas de responsabilidade penal ou
ocorrências, é um privilégio social. E, para os que não são livres para escolher, civil e de assistência material. Certo, crianças puderam encontrar seu lugar no
a liberdade em si seria às vezes, simplesmente, serem deixados tranqüilos. Mas asilo, seja em razão de carências familiares, seja porque a gravidade das pertur-
a existência do setor teve também muitas vezes como conseqüência que não bações ou das deficiências que apresentavam ultrapassava as possibilidades de
gozassem nem mesmo dessa liberdade. um encargo familiar. Foi o caso sobretudo primeiro dos grandes retardados
Sem dúvida não há aí matéria a criar de qualquer maneira para a repres-- ( os idiotas, no vocabulário do século XIX). Mas as alas de crianças de hospi-
são policial. Mas esquecer esta dimensão essencial, fazer do setor um serviço tais psiquiátricos não representavam nada de específico, a não ser qus..as con-
público como um outro aberto aos passantes, e do psiquiatra o equivalente dições de albergamento ali eram ainda piores.
de um monge pedinte, colocado nas encruzilhadas da peregrinação por uma Portanto, alguns desses lugares foram excepcionalmente centros de ino-
autoridade tutelar para enxugar a miséria do mundo, era se expor a desperta- vação, pois a preferência maciça de idiotas ou de retardados exigia, se quisés-
res dolorosos. Poder-se-ia mesmo se espantar que fossem os promotores politi- semos ainda deles cuidar, afrontar um tipo de deficiência diferente do dJ
camente mais à esquerda que tenham feito o máximo para desenvolver uma doença mental: um retardado de desenvolvimento requer um aprendizado e
ideologia do serviço público que desemboca facilmente em práticas de inge- não um tratamento. Foi assim que à instigação de Seguin abriu-se desde o
rência da autoridade pública. Independentemente mesmo do que é requisi- meio do século XIX, no hospício de Bícêtre, uma "escola espech..1" para os

50
51
idiotas que constituiria uma espécie de laboratório onde se forjaram as pri- promotores da psiquiatria pública. so No momento em que a política de setor
meiras fer"ramentas da psicopedagogia. 49 se instala, existem como que dois sistemas quase independentes, um centrado
Assim, logo que ela escapava da simples guarda, a especificidade do tra- no adulto (e que contém alguns serviços de crianças no centro dos hospitais
tamento da infância levava a conseguir um tipo de instituições pedagógicas psiquiátricos), o outro sobre a iníancia ligado à Educação Nacional, às funda-
mais do que médicas. Movimento a_centuado pela lei sobre a escolaridade obri- ções particulê!!eS ou à medicina universitária e que está fora da estrutura hos-
gatória que, multiplicando o número de pessoas necessitando de uma educa- pitalar pública. Quando, em 16 de março de 1972, uma circular ministerial de
ção especial, exigia a criação de um dispositivo montado em derivação sobre o aplicação do setor cria os intersetares infanta-juvenis (à razão de um para três
sistema escolar e não sobre o sistema psiquiátrico ( classes especiais a partir de setores de adultos), têm-se quase a impressão de que esta medida surge num
1909, internatos médico-pedagógicos a partir de 1935, centros médico-peda- vazio de reflexões anteriores, mas que ela encontra por outro lado inúmeras
gógicos a partir de 1945, grupos de ação psicopedagógicos a partir de 1970, implantações prévias que ocuparam o terreno e nele se desenvolveram de mo-
etc.). Essas instituições são mais ou menos medicalizadas, a maioria funcio- do anárquico. O serviço de intersetar ( que repousa talvez ele mesmo sobre
nando com um pessoal específico formado pela Educação Nacional. Mesmo uma não ratão terapêutica, pois como cortar a assistência às crianças e a assis-
aquelas que desenvolvem a orientação médico-psicológica são animadas por tência· aos adultos em serviços diferentes, quando, ao mesmo tempo, se acen-
um pessoal estranho ao quadro dos hospitais psiquiátricos. Assim a importan- tuam as responsabilidades da farm1ia na etiologia das perturbações mentais?)
te rede dos Centros Médico-Psicopedagógicos (C.M.P.P.), que se desenvolve- custará bastante a encontrar seu lugar e seu papel no seio dessa rede de insti-
ram a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, foi um pináculo da difusão tuições díspares. Mas, independentemente mesmo desse problema técnico, é
da psicanálise em direção à infância. Mas ela consiste em instituições em geral uma grave carência que um dispositivo que se pretendia hegemónico tenha
privadas (tipo lei de 1901) que se instalaram fora do dispositivo da psiquiatria mal integrado um domínio essencial das práticas; tanto mais que, como se
pública. verá, esse setor da infância não é somente uma parte importante de um con-
Mesmo fora dessas conexões estreitas com a pedagogia, a responsabili- junto mais amplo. Ele vai se tornar o foco a partir do qual vão logo se irradiar
zação psiquiátrica da infância impôs-se principalmente através das redes des- as técnicas médico-psicológicas mais inovadoras em matéria de descobertas.
conectadas dos hospitais psiquiátricos: instituições privadas de origem filan-
trópica ou religiosa; serviços de neuropsiquiatria, como a famosa clínica in- Unidade teórica, ou consenso tático?
fantil, fundada em Paris em 1925 e dirigida por Georges Heuyer, grande 5. Os psiquiatras reformadores não pouparam esforços para definir uma
mestre da psiquiatria infantil na França, mas universitária; centro de consulta abordagem específica da doença mental diferente da da medicina em geral. Do
infantil Henri-Rousselle em Sainte-Anne, aberto por Edouard Toulouse, ino- encontro de Bonneval ao de sevres, passando pelas numerosas contribuições à
vador marginal e discutido pelo quadro dos hospitais psiquiátricos e que ten- Infonnação Psiquiá'lrica e sobretudo à Evolução Psiquiátrica, 51 uma teoria foi
tará colocar com Heuyer programas de descoberta sistemática das anomalias procurada, e acreditou-se ser encontrada, que teria fundado, a partir do obje-
d3 infância ... to que ela se dava, a vontade de autonomia da psiquiatria. Mas, mais que uma
É sem dúvida ·porque não estavam, por sua prática, nos circuitos de ino- teoria unitária, essas tentativas deram lugar a teorizações diferentes. Elas pu-
vações a respeito da iniancia, que os reformadores da psiquiatria pública ape- deram funcionar juntas, num certo nível tático, manifestando que ali havia
nas abordaram essas questões, incluídas por eles na quantidade de medidas de acordo sobre o que a perturbação psiquiátrica não era: não uma doença como
ordem geral, quer dizer, pensadas a partir da psiquiatria de adultos..
Desenvolveu-se assim todo um setor importante e dinâmico das práticas so Para a instalação do setor da infância inadaptada, a partir da guerra, e em particular do
psiquiátricas em direção da infância, que escapa no essencial ao controle dos papel representado pela administração de Vichy, cf. CHAUVIÊRE, Michel. lnfân-
cia inadaptada: herança de Vichy. Edições Operárias, 1980, cuja análise confirma
esse tipo de montage'm em derivação dos dispo~itivos a respeito da infância.
49 Cf. CASTEL, Robert & LE CERF, Jean-François. O fenômeno psi e a sociedade fran- S1 Em particular EY, Henri; BONNAFÉ, L.; FOLLIN, S.; LACAN, J. & ROUART, S.
cesa. O Debate, 1 maio 1980. O problema da psicogênese das neuroses e das psicoses. Desclée de Brouwer, 1950.

52 53
uma outra, não reduzível a uma abordagem médica clássica. Mas nada estava ao se aplicar, não ia revelar esse caráter de lado ~ai cortado, dissimulado, sob
em jogo quanto à relação das forças em presença sob esse consenso de super- o rigor formal de uma construção que ressalta ainda mais do que Franco Basa-
fície. A adesão a um projeto tático comum levava a suspeitar, ou mesmo dis- glia chamava "uma psiquiatria de propaganda. " 53 do que de uma aproxima-
simulava aos olhos dos protagonistas, a profundidade das divergências teóri- ção realista da problemática de conjunto da medicina mental.
cas.
De fato, os partidários do moVimento se apegavam a diferentes corren-
tes que se pode esquematicamente aproximar a uma influência fenomenológica 4. O DESENCANTAMENTO
(Eugéne Minkovski, Georges Daumezon, Georges Lentéri-Laura), ao organo-
dinam1smo de Henri Ey e de seus discípulo$ e uma orientação psicanalítica O balanço dos resultados atuais da implantação da política de setor con-
surgida mais tardiamente, mas que no final dos anos sessenta alcançava bem firma essa fragilidade da fórmula. Oficialmente decidida há mais de vinte anos,
ligeiro o tempo perdido. 52 Cada uma dessas tendências tem talvez sua própria em curso de aplicação sistemática há uma dezena de anos, seria tempo de con-
coerência, mas elas se opõem, e, aliás, se combateram vivamente em diferentes frontar seu mito com suas realizações efetivas. Portanto a literatura profissio,
circunstâncias, como por ocasião do encontro de Bonneval em 1946 ou o de nal sobre o setor, muito abundante, apresenta a particularidade de se subtrair
Sêvres em 1958. Elas têm, no entanto, em comum, procurar a origem da per- perpetuamente a essa prova de realidade. Existe sempre aí a questão de um
turbação psíquica do lado de uma patologia das relações, e podem assim re- setor desnaturado, setor traído sempre aquém de seu conceito, mas sem que
presentar juntas contra um esquema médico organicista. Por ocasião das J or- ele em si mesmo carregue responsabilidade nesse não acabamento. Assim
nadas do Livro branco, por exemplo, elas se expuseram em sua heterogenei- ouve-se repetir freqüentemente ainda hoje nos meios psiquiátricos que "o se-
dade sem provocar discussões, o que seria paradoxal se se tratasse de um en- tor não existe" ~ o que dá um excelente álibi para não interrogá-lo em sua
contro científico. Mas tudo se passou como se sua simples justaposição equi- natureza, a partir do que ele se tornou na realidade.
valesse a uma soma de certezas e como se cada um trabalhasse para construir
um ponto de vista coerente global. Taticamente, a manobra se revelou gratifi- Um balanço decepcionante
cente, já que provava a existência de uma frente comum contra a neuropsiquia- O setor não se projetou num vazio institucional e humano. No momen-
tria. Mas o ecletismo tem seus limites. A unanimidade não podia resultar se- to em que começava a se implantar, o pesado dispositivo hospitalar psiquiátri-
não de um encontro conjuntural e ela estava destinada a estourar na prllJ!eira co estava intacto com seus hábitos e tradições, que metgúlham numa história
ocasião. Veremos em particular que a psicanálise não ia se contentar por mui- secular, e as exigências burocráticas e econômicas de uma administração tanto
to tempo com servir de tecnologia de aperfeiçoamento numa estratégia psi- mais tateante quanto está amarrada por sua própria rede de obrigações.
quiátrica. Com o peso crescente que toma a psicanálise, é todo esse equilíbrio Em 1960, ano em que o setor tornou-se em princípio a política psiquiá-
frágil que corre o risco de logo balançar. trica oficial, os hospitais psiquiátricos tinham uma capacidade de 83.000 lei-
tos para 105.000 doentes (taxa de ocupação de 127%). Continuaram-se então
Se é verdade que a política de setor mistura práticas diferentes, queren- a programar leitos para lutar contra a superlotação, com uma boa cons-
do opções teóricas divergentes nas instituições heterogêneas, ela pode dificil- ciência, tanto mais evidente, porque os especialistas nacionais e internacionais
mente se apresentar como um modelo conquistador. Se é verdade também tinham decretado que eram precisos três leitos hospitalares por fatias de 1. 000
que ela não pode dominar ou domina mal seus domínios essenciais de prática habitantes, e estava-se ainda longe da conta. O IV plano (1962-1965) conse-
( a prevenção, a inf"ancia, sem dúvida também a reinserção social), ela falha guiu então 11.159 lugares novos ou renovados nos hospitais, e o V plano
ainda mais à vontade sintética que exibe. Pode-se então perguntar se ela não (1965-70), 9. 892. Em 1972 ainda, 7. 290 leitos hospitalares psiquiátricos esta-
estava de certa maneira condenada antes de ser aplicada, ou, pelo menos, se vam sendo construídos ou ajeitados.
52
BEC, Colette. "Em direção a uma psiquiatria normalizada", in. op. cit., e adiante,
capítulo li. 53
BASAGLIA, Franco. O que é a psiquiatria? Trad. francesa. P.U.F., 1978.

54 55
Assim, se o setor presumiu subordinar o hospital ao dispositivo extra. diferentes de população, correspondendo como que a dois estratos históricos
hospitalar, sua instalação coincidiu com o reforçamento do primeiro: há hoje da organização da psiquiatria. Há os "crônicos" ou assim pretendidos, geral-
ainda mais lugares (cerca de 120.000) nos hospitais psiquiátricos do que em mente de pequeno status social e !dosas, que há muito tempo romperam to-
1960. Por outro lado, em 1977, havia somente, para toda a França, 72 locais das as amarras com a vida normal; há os doentes dos quais não somente o
de pós-tratamento (dos quais 55 para alcoólicos), 255 hospitais de dia e 108 diagnóstico, mas as características sociais, profissionais, demográficas, geográ-
hospitais noturnos, dos quais a maioria foi, aliás, adaptada ao quadro dos hos· ficas diferem significativamente dos primeiros, e que são mantidos bem ou
pitais psiquiátricos. Os "apartamentos terapêuticos" e outras estruturas mais mal nos circuitos de sociabilidade ou de produtividade, freqüentemente ao
flexíveis concebidas para a reinserção dos doentes mentais começavam apenas preço de recaídas e readmissões freqüentes (é o que nos Estados Unidos se
a se desenvolver. chamam os revolving doar patients, que entram e saem do hospital como que
Mesma insuficiência do lado dos dispensários, que constituem as ante- arrastados por um torniquete). Uma parte dentre eles (e seria a contribuição
nas principais da intervenção psiquiátrica na comunidade: 726 em 1962, me- mais específica do setor) economiza a hospitalização, sendo mantida, bem ou
nos de mil em 1970. Mesmo se atualmente seu número cresce bastante rapi- mal, fora pela freqüência nos serviços extra-hospitalares. Mas, salvo nos servi-
damente e atinge mais de 2.763 em 1978, o hospital continua o centro de ços de urgência, é ainda uma miI10ria.
gravidade do dispositivo psiquiátrico. Havia 121.000 doentes hospitalizados Como nos Estados Unidos, falou-se muito ligeiro na França de desinsti-
em 1963, 120.000 em 1970, 110.000 em 1976, 104.000 em 1978, 107.000 tucionalização da doença mental. 56 Mais do que um enfraquecimento do hos-
em 1980. Diminuição apreciável, dirão talvez os otimistas. Mas, se levarmos pital psiquiátrico indo até sua supressão, assiste-se a uma reestruturação de
em conta as entradas (admissões) no ano, elas mais que dobraram em quinze suas funções. É verdade que a diminuição do número de leitos hospitalares
anos: 104.000 em 1963, 155.000 em 1970, 246.000 em 1976 e 269.000em da ordem de um terço, seja de uns quarenta mil, foi proposta, por motivos
1978. Isto significa, para a maioria dos doentes, estadas mais curtas (às quais essencialmente econômicos, aliás, pelas instâncias ministeriais. 57 Mas essa eco-
não se pode atribuir o único mérito do setor, pois, entre outras variáveis, no- nomia, aqui como alhures, deve aumentar a competitividade e a racionalidade
vos medicamentos, como os nellrolépticos-efeito retardado, permitiram a do sistema. Deve eliminar do hospital aqueles que ali não têm seu lugar em
saída de novas categorias de doentes}, mas também que um contingente cada função de normas médicas mais rigorosas, e não eliminar, mesmo a prazo, a
vez maior de doentes passa pelo hospital psiquiátrico e que o número de rein· hospitalização.
ternações aumenta igualmente (55,3% em 1975). s4
Notaremos assim que mais da metade dos leitos de hospitais psiquiátri- Na programação do setor, "equipes médico-sociais" diversificadas, às
cos estão ainda ocupados pelo que chamamos pudicamente de um "sedimen- vezes pluridisciplinares, deviam assegurar, pelo menos, tanto quanto o plura-
to" de doentes crônicos. Em 1975 ainda, encontravam-se 65.000 doentes sob lismo institucional, o suporte concreto da nova política. O que existe de fato?
a rubrica "hospital~zações de duração anual", o que quer dizer que a maioria Os enfermeiros co.nstituem sempre a maioria esmagadora do pessoal psiquiá-
dentre eles estava lá há vários anos e lá permaneceria ainda por muito tem- trico (mais de 52.000). Salvo alguns dentre os mais jovens, eles não foram for-
55
po. A maioria dos serviços psiquiátricos justapõe na realidade dois tipos mados para exercer fora do hospital, e muitos têm horror a isso, pois seus
deveres são aí mal definidos. Alguns sindicatos se opõem, aliás, atualmente
54 à supressão dos leitos hospitalares em nome da defesa do "instrumento de
Números recolhidos em diferentes fontes. Em particular para os mais recentes, MA-
trabalho".
MELET, Marie-Rose, "Trinta anos de política", Informações Sociais, 11, 1979;
Relatón·o da inspeção geral dos negócios sociais apresentado à Sra. Simone Veil a
27 de fevereiro de 1979, Documentação francesa, 1979; e sobretudo um docu-
mento do Ministério da Saúde e da Previdência Social,A política dos tratamentos 56 Para a situação nos Estados Unidos, cf. CASTEL, F.; CASTEL, R. & LOVELL, A.
em psiquiatria, balanço e sfntese, feito durante o verão de 1980, e cuja divulgação "A sociedade psiquiátrica avançada". Op. cit. cap. IV: A nova ordem hospitalar.
permaneceu confidencial.
57 Cf. Ministério da Saúde e da Previdência Social. "A política dos cuidados em psiquia-
55
"Relatório da inspeção geral dos negócios sociais". Op. cit. tria, balanço e síntese". Op. cit. p. 20.

56 57
Os efetivos dos psiquiatras são aqueles cujo crescimento foi maís rápi-
do, não fosse porque eles assumem funções administrativas incontornáveis:
um setor supõe ao menos um chefe de setor! Eram 435 em 1963, 960 em
1,!j ..., "'"""" ' ..... , '"""""'"· '- ""~''"" '""'~"'" '"
intenções primitivas do setor. Desde 1974, a Infonnação Psiquiátrica consa-
rava o essencial de dois números a um dossiê intitulado "O livro negro do
1971, 1.060 em 1975, por volta de 1.500, hoje. Durante os últimos seis anos, ~.:·. !erviço de saúde mental francês", cujo título é evidentemente escolhido para
o númer.o de psiquiatras públicos mais do que dobrou. 58 f, lembrar as esperanças frustradas do Livro branco. A argumentação desenvol-
Em contrapartida, para as outras categorias de pessoal, o saldo é muito i vida ali é também em preto e branco. As reivindicações dos psiquiatras públi-
mais deficitário. Em 1975, contava-se para o conjunto do serviço psiquiátrico i;, os em relação ao Ministério e às administrações responsáveis são ali longa-
público mil psicólogos, mais mil entre o pessoal associado, tipo reeducado- /; ~ente enumeradas em termos de um atraso na aplicação dos princípios defi-
61
res, ortofonistas, cineseterapeutas, ergoterapeutas, etc., e uma proporção ain- 1 n,·dos entre 1967 e 1972 e que é atribuído à má vontade do Ministério..
da inferior de assistentes sociais. 59 Em certo hospital da região parisiense, Não faltam argumentos para mostrar que a administração não capita-
cuja situação não é excepcional, há uma assistente social para seis serviços neou resolutamente a nova política proposta pelos psiquiatras. Por exemplo,

l
do setor. Assim, da mesma maneira que o sistema continua dominado pela um setor qualquer que seja seu local de implantação, deve necessariamente
estrutura hospitalar, está também pela hierarquia médica e a dupla tradicional ser gerid~ no plano financeiro e administrativo·por um hospital. A Previdência
psiquiatra-enfermeiro. O que pode significar, por exemplo, a expressão de Social toma então a si as despesas de hospitalização. Um hospital funciona ao
"equipe-médico-social", quando em numerosos serviços do setor não existe preço de diária e tem então um lucro, às vezes vital, se tiver um coefici~nte sa-
nem mesmo uma assistente social? Uma psiquiatria comunitária teria exigido tisfatório de ocupação de leitos. Por outro lado, as despesas extra-hospitalares,
uma transformação profunda do exercício do esquema médico, forjado pri- atividades de ambulatórios, visitas domiciliares e eventuais intervenções na
meiro nas condições da prática hospitalar. Teria sido preciso também poder comunidade entram na rubrica da prevenção e são pouco ou nada reembolsá-
se acrescentar competências novas, em particular de hrdem social, tanto é ver- veis pela Previdência Social. Essas despesas devem ser votadas pelos Conse-
dade que, mesmo se doença há, quando ela é percebida no meio da vida, não lhos gerais e só são parcialmente tomadas como encargos em seguida pelo
é isolável das condições ambientais. Mas já a estrutura profissional da maioria Estado. Dado muito prosaico, mas que constitui uma incitação prática pode-
dessas "equipes", sobre as quais tanto se escreveu e t:.onhou, conduz a repro- rosa, para manter a hegemonia das práticas mais tradicionais e frear as mais
duzir quase que exatamente na comunidade o modelo de uma intervenção novas. Sobre os 18 bilhões de francos mais ou menos que representam as des-
médica clássica. A se ater à repressão das diferentes categorias de pessoal, é pesas prescritas num quadro psiquiátrico, mais de 80% o são a título de hospi-
claro que a política de setor fez muito pouco para quebrar uma hegemonia talização. 62 Estamos aqui nos limites do absurdo: a maioria dos setores, estan-
médica que é o grande dado tradicional de toda a história da psiquiatria. do implantada a partir dos hospitais psiquiátricos e tendo necessidade do pre-
ço de diária para funcionar, um serviço que assumiria inteiramente sua voca-
Inércias e resistei1cias ção comunitária trabalharia de fato contra si mesmo!
Pode-se, com a maioria dos profissionais, imputar a principal responsa- É fato que tudo se passou como se a administração tivesse visto sobre-
bilidade dessas insuficiências a uma penúria de meios e a obstáculos, cuja tudo no setor uma fórmula para gerar tecnocraticamente e ao mínimo custo o
administração seria principalmente responsável. 60 Esses ava tares teriam con- problema espinhoso da doença mental: um corte geográfico homogêneo,_~~
organograma hierarquizado sob a responsabilidade das D.A.S.S., a poss1b1h-
58
Em razão, principalmente, da revalorização do estatuto que interveio em 1968, e tal- dade de homogeneizar a prazo o setor psiquiátrico com toda uma série de re-
vez também das dificuldad~~-~ de instalação em outras especialidades médicas, as cortes burocráticos do domínio da saúde e da ação social, tudo isso entra bas-
vocações psiquiátricas permanecem numerosas. Assim, no último concurso de
tante bem no quadro de um grande sonho gerencial que começa, aliás, a poder
1981 da entrada na carreira pública, contavam-se 320 candidatos para 100 lugares.
59
"Relatório da inspeção geral dos negócios sociais". Op. cit. p. 267. 61 "O livro negro do serviço de saúde mental francês". Informação Psiquiátrica, 6 jun. e
00 Cf. BENHA'iM, Simone. A mutação impossível da psiquiatria pública? Psiquiatria Ho- 8 out. 1974.
je. 33, 1978.
62 A política dos tratamentos em psiquiatria, balanço e síntese. Op. cit. p. 26.

59
58

L
·t mente requisitado pelos regulamentos para obter a habilitação de chefes
mobilizar os recursos da informática. Face a essa máquina, a utopia do serviço ~a . . d
de setor: introduzir a atividade mista em seu serviço, acolhe: os doentes e
do usuário ou o engajamento pessoal na perseguição de uma espécie de convi-
vência social correm o sêrio risco de ser pulverizados. Os psiquiatras refor- sua área geográfica (e excluir os que vinham de ~utras),_~bnr uma consu~ta
mana em um ou dois ambulatórios que podiam, alias, confiar a um m-
madores f"izeram certamente prova de uma certa ingenuidade, maravilhando-se por se ·d·
demasiado rápido, porque seus projetos foram tão bem acolhidos nos gabine- terno ... Por outro lado, as coisas podiam continuar segum o mais ou menos
tes ministeriais. como antes.
Não é, no entanto, uma razão suficiente para gritar por traição do setor.
A experiência histórica prova que uma disposição administrativa não tem que Os órfãos de um mito
realizar na prática todas as promessas que carrega para preencher o essencial Então setor desnaturado, setor traído? Todas estas razões pesaram in-
de seu ofício. Assim a lei de 1838, ela mesma nunca foi plenamente aplicada contestavel~ente, e poderiam dar conta do fato de que uma idéia generosa
em quase um século e meio, a começar por seu artigo primeiro, que previa a tenha escorregado para o pântano dos conformismos. Apesar de tu_do, o setor
construção de pelo menos um hospício público por departamento. Mal foi ou em paite nos fatos. Os argumentos não faltam aos que contmuam seus
m tr hl ..
votada, deu lugar, por parte dos alienistas, às mesmas reivindicações dos psi- defensor~s. É um dispositivo mais evoluído de gestão ~os pro emas so~ia1.s
quiatras atuais, lamentando-se de suas condições concretas de trabalho. Mas, colocados pela doença mental do que o precedente, a lei d~ 1838, que_'." hm1-
uma vez a lei passada, o essencial ficava em jogo para os administradores e os tava a comandar uma parte cada vez mais restrita das pratJ.cas psiquiatncas.
políticos. A loucura não representava mais problemas de princípio, era "admi- dúvida continuam a existir insuficiências e incoerências. Mas algumas
Sem .
nistrável". As questões técnicas e de intendência para chegarem a uma aplica- estão em via de reabsorção. Lá onde havia wn psiquiatra em 1960, existem
ção completa poderiam tanto mais esperar que exigissem freqüentemente h · três ou quatro a situação dos doentes examinados ou tratados em extra-
OJe , d h ·tal· d 63
enormes gastos. Assim acontece atualmente no setor, e não há muito do que hospitalar começa a ultrapassar significativ~ente a os osp~ 1~a os,
se espantar. algumas equipes dispensam cuidados personalizados que pod~~ nval1~ar _cº1:1
Seria preciso acrescentar que a inércia também foi praticada por muitos, os da medicina liberal, enfim, o próprio Ministério parece decidido a d1mmmr
e sem dúvida pelos próprios profissionais. Não se insistiu bastante sobre adis- 0
peso da herança hospitalar e a racionalizar o modo de financiamento do
tância que, desde 1945, sempre separou uma minoria ativa de uma maioria setor.
silenciosa de psiquiatras. O setor tornou-se popular, ou pelo menos majoritá- Uma tal argumentação não é contraditória com a que a precede. P?d~-se
rio, no momento do Livro branco, quando apareceu como o meio de obter ter um balanço de sucesso ou de fracasso do setor em função dos obJetlvos
uma valorização da profissão. O gênio tático dos reformadores consistiu em propostos. O conjunto do território franc~~ logo será coberto por ser~ços
ligar indissoluvelmente a reforma do sistema geral da medicina mental, à pro- dotados do mínimo de estruturas necessanas para que se possa chama-los
moção individual de seus agentes ( de fato, só os psiquiatras, pois os 40.000 a setores: eram necessárias 1.200 equipes, na base de um setor para 70.000
50.000 enfermeiros ficaram fora do debate até o fim) e um desenvolvimento habitantes e de uni intersetar infanta-juvenil para três _setores adultos, e 911
64
espetacular da profissão. Assim a necessidade afirmada de passar de 600 a estão atualmente criados e dotados no mínimo de um chefe de serviço.
r 4.000 psiquiatras em alguns anos: os internos, pelo menos, só podiam concor- Assim a disposição sobre o setor logo será realizada. Mas, d~r-se-á, seu es~írito
dar. .. não 0 está e O desencantamento substituiu no meio profissional o entusiasmo
1 O religamento quase unânime da profissão à política de setor não impli- do começo. Hoje, numerosos psiquiatras são como os órfãos de um setor im-
cava então necessariamente, da parte da maioria, uma motivação tal que eles
se comprometam de um dia para o outro a romper com seus hábitos e a· reor- 63 Em 1978 mais de 2 milhões de consultas individuais tinham sido dadas em ambulató-
ganizar toda sua atividade sobre uma base inteiramente nova. Ora, se há qual- rios ~ontra 381.000 em 1962; 557.000 pacientes tinham freqüentado ambulató-
rios' no ano, dos quais 188.000 novos (Cf. "A política dos cuidados em psiquia-
quer coisa na qual a reforma não tocou, é bem a preeminência do médico-
tria. Balanço e síntese". Op. cit., p. 14).
chefe, fonte exclusiva de todo poder. Compreende-se a partir daí que um
64
grande número de psiquiatras tenham se contentado com fazer o que era Idem, ibidem, p. 6.

61
60
possível, cuja representação vem alimentar sonhos de ocasiões perdidas e espe- tentariam em sincronizar a ação de todas as instituições públicas e particula-
ranças mortas. res, as que foram implantadas pela administração federal como as herdadas
Mas isto se deve a que o caráter inovador do setor e sua coerência inter- da tradição religiosa-filantrópica e até mesmo as nascidas na corrente da con-
na foram superavaliados. A fórmula pode iludir enquanto cristalizou todas as tracultura.66 É o desdobramento desse dispositivo que permitiria cobrir com-
aspirações - ou todos os fantasmas - de reformismo psiquiátrico. A prova da pletamente o conjunto das necessidades da população, tais, pelo menos, como
realidade, suas ambições totais - ou totalitárias - esvaziadas, aparece como percebidos pelo lado do poder. Não é certamente a administração Reagan que
um disposit.ivo frágil, mais ou menos eficaz, mas que em todo caso não pode irá de encontro a essa tendência, ao desengajamento do poderio público. Mas
mais carregar a ambição de conter o futuro da psiquiatria. a_ intenção de sistematicidade dos partidários da intervenção federal poderia
No fundo, o verdadeiro princípio de unificação que promoveu o setor é de certa maneira ser conservada por vias diferentes: potencializando todos os
de ordem administrativa: ele permite gerir a heterogeneidade de um certo nú- recursos assistenciais, qualquer que fosse sua origem, sua inspiração ou sua
mero de práticas e de instituições que tentam se encarregar das perturbações direção, a administração central reservando-se o cuidado de separar o bom
psíquicas, no momento em que emergem na comunidade e nela causam pro- grão do joio por meio de regulamentações administrativas e financeiras.
blema. É sem dúvida a razão pela quru os administradores a ela estão, à sua Observa-se uma evolução do mesmo tipo na França. É num triplo nível
maneira, ligados, mesmo entendendo-a num sentido muito diferente dos psi- pelo menos que podem ser ressaltados os signos de um recuo dessa posição
quiatras. Recentemente um representante do Ministério da Saúde titulava um privilegiada da nova psiquiatria pública, que se parecia ter progressivamente
artigo: "Psiquiatria: o setor continua prioritário" e fazia o balanço dos pro- imposto desde o final da Segunda Guerra Mundial até o começo dos anos
gressos conseguidos nessa via, desde alguns anos, mas logo acrescentando: setenta.
"Creio que a visão do setor universal, capaz de tudo absorver, e mesmo even- No plano da organização administrativa, primeiro. A psiquiatria pública
tualmente de tudo reinserir, é uma ilusão. " 65 propôs o primeiro modelo coerente de uma estrutura setorial como matriz
É forçoso reconhecer que esta concepção é mais realista do que a dos unificada de todas as intervenções em direção a um alvo específico, a doença
profissionai,s promotores da fórmula. Que ela se impõe hoje nos meios "res- mental. Mas esse dispositivo tornou-se o organograma administrativo privile-
ponsáveis" epermite medir o caminho percorrido há uma dezena de anos. Nos giado do redesdobramento da ação sanitária e social em geral. A instauração
anos sessenta, o desenvolvimento do setor psiquiátrico foi efetivamente a de uma carta hospitalar (lei de 31 de dezembro de 1970), de uma circunscri-
expressão da vontade que parecia então se afirmar ao instalar um dispositivo ção e de um setor de proteção maternal e infantil ( artigo 148 do Código da
unificado de cuidado e de assistência aberto a todos, impulsionado, financia- Saúde Pública), de um setor médico-escolar (portaria de 26 de agosto de
do e executado pelos poderes públicos. Mesmo nos Estados Unidos, onde as 1968), de uma circunscrição do serviço social ( circular de 12 de dezembro de
tradições de encargos por formas de assistência religiosa, os particularismos 1966), de um setor antituberculose (instrução de 29 de maio de 1973), de
locais e a desconfiança a respeito das intervenções do poder central são mais um setor por pessoas idosas ( circular de 14 de março de 1972), poderia ser
fortes, é também o espírito que inspira na época (1963) a passagem do Com- interpretada como um triunfo dessa política de setorização inaugurada pela
munity Mental Health and Retardation Act, sustentado pelo próprio presi- psiquiatria pública. Mas os difíceis problemas de coordenação entre essas dife.
1
dente Kennedy. rentes instâncias não poderão se resolver a não ser homogeneizando essas es-
Mas assiste-se há um bom decênio ao refluxo dessa política. Nos Esta- truturas, e particularmente aplainando a originalidade do setor psiquiátrico,
1 sob vários aspectos específico e particularment~ difícil de integrar. Esse pro-
dos Unidos, em 1978, um relatório de uma comissão presidencial sobre a saú-
tV: de mental presidida pela Sra. Rosalyn Carter preconiza uma reorganização dos cesso de laminação das estruturas psiquiátricas dentro de um organismo admi·
nistrativo cada vez mais unificado e exigente ao nível das D.A.S.S. já está for-
serviços no seio da qual o sistema público impulsionado no nível federal só
conservaria um lugar limitado e específico. As instâncias centralizadas se con- temente comprometido.

65 66
LACRONIQUE, Jean-François. O setor continua prioritário. lmpact-médica, 51, nov. Report ta the President from the President 's Commissian an Mental Health, Washing-
1980, p. 31. ton, 1978. 4v.
1

6] 63
1
De fato, uma das características essenciais das transformações intervin- trações diferentes, proteção maternal e infantil, proteção médico-social esco-
das há uma dezena de anos nesse campo é certamente a extraordinária expan- lar, infância inadaptada, serviços sociais e até justiça. Só pode haver uma
são e tecnização da infra-estrutura administrativa. Logo que a política do se- consciência aguda da relatividade de seu modo de inserção no seio de um
tor foi oficializada por uma circular de 1960, havia, no Ministério da Saúde, amplo conjunto de organismos e de instâncias de decisão em meio aos quais
uma repartição de doenças mentais, com alguns funcionários, a maioria cúm- não se detém o poder de direção.
plices das novas idéias. Os psiquiatras reformadores - algumas personalidades Em terceiro, a hegemonia da psiquiatria pública aparece também roída
também - tinham aí suas entradas. Hoje, os escritórios estão povoados de no próprio interior da profissão. A existência de um setor particular deve ser
enarcas, de politécnicos e de jovens liberais dinâmicos. Terminais de compu- aí concebida, ao contrário de uma herança ou de uma sobrevivência, como
tadores acabam ali, e as pastas estão c!1eias de pesquisas sobre as racionaliza- um domínio em expansão cujo desenvolvimento foi encorajado pelas próprias
ções das escolhas orçamentárias. No interior, o secretário do gabinete do pre- administrações no quadro da curva neoliberal que se impôs nestes últimos
feito foi substituído pela pesada máquina tecnocrática das D.A.S.S. e por uma anos. Seu desenvolvimento está desequilibrando a relação de forças no pró-
proliferação de comissões administrativas de todas as espécies. prio seio da profissão. Notou-se a progressão do número dos psiquiatras públi-
Em segundo lugar, observa-se uma inclinação, para não dizer urna inte- cos, mas a dos particulares é mais rápida ainda Eles são atualmente quase
gração, do serviço público do setor no seio de uma constelação de instituições 3.000 (enquanto seu número era insignificante há trinta anos) e avalia-se em
particulares e parapúblicas. O peso do particular, pelo menos no quadro da quatro milhões o número de atos terapêuticos que eles concluem anualmente,
psiquiatria de adultos, a partir da qual tinha sido pensado o modelo de desen- contra um milhão para os psiquiatras públicos. 68 O próprio ministério reco-
volvimento do setor, sempre foi relativamente modesto. O patrimônio hospi- nhece a existência de "uma dupla malha, uma destinada às categorias sociais
talar das clínicas particulares nunca representou senão o décimo mais ou me- mais privilegiadas de encargo da medicina de exercício liberal e estabelecimen-
nos das capacidades da hospitalização pública e "fazendo função de público". tos particulares, outra que recebe os doentes menos favorecidos (setor)". 69
O exercício da psiquiatria em clieritela particular só começou a se desenvolver Ainda trata-se aí de atos efetuados pelos especialistas públicos ou particulares.
de maneira significativa há uns dez anos. De onde a consciência dos psiquia- Mas eles representam a minoria: 74% das intervenções da saúde mental são
f tras públicos, até os anos sessenta, de cobrir o essencial do campo da prátjca efetuadas por clínicos gerais e outros especialistas que não são psiquiatras,
da medicina mental, com somente concorrentes principais, os psiquiatras uni- que não têm praticamente nenhuma relação com o setor. 70 Estamos longe, vê-
versitários. se, do domínio desse grande serviço público que representaria o setor.
A ótica se transmuta no entanto, se levarmos em conta que o domínio
1 da infância e as intervenções sobre deficiências que não são doenças mentais Assim, à medida que se aplica, o setor se apaga como a estrutura susce-
no sentido estrito, mas que requerem cada vez mais a intervenção da expertise tível de servir de fio condutor para compreender o conjunto das mudanças em
psiquiátrica, como os deficientes mentais (capítulo 3), cuja responsabilidade curso no domínio da medicina mental. Portanto, não há alternativa no setor,
depende de estabelecimentos médico-educativos. Ora, em 1.800 estabeleci- pelo menos se se entende por isso uma fórmula unificada e autônoma do de-
mentos desse tipo, que dependem do Ministério da Saúde, 1.100 nasceram de senvolvimento da psiquiatria. Se atribuímos à sua discussão uma tal impor-
u?1a iniciativa particular; 88% dos estabelecimentos acolhendo Crianças em tância, é porque sobre ele acaba de ser jogada a última peripécia do projeto
dificuldade, e 90% dos que se encarregam dos deficientes adultos, são igual- secular de unificar numa síntese original os diferentes elementos que fariam
mente de origem particular. 67 A tarefa essencial de um chefe de seta~ infanto-
juvenil, por ex:mplo, é freqüentemente compor com as instituições e associa- 68 Sobre a implantação e as estrutura~ da psiquiátrica particular, cf. BLÊS, Gerard. "A
ções variadas. E também negociar e coordenar com representantes de adminis- prática psiquiátrica particular". Enciclopédia Médico-cirúrgica, 1 976, A 1O, 11.
37957. Número~ atualizados no decorrer de uma entrevista com o autor, secretá-
67 Cf. Discussão da lei de orientação em favor das pessoas deficientes, Assembléia Nacio- rio-geral do Sindicato dos psiquiatras de exercício particular.
nal, sessão de 13 de dezembro de 1974, Diário Oficial, 102, ano de 1974, p. 82. 69
Para uma avaliação recente do peso do setor particular no domínio da infância "A política dos tratamentos em psiquiatria, balanço e síntese. Op. cit. p. 36.
cf. CHAUVIERE, Michel. "Phagocytages", Non! ,jan.-fov. 1981. ' 70 Idem. Ibidem. p. 50.

64
65
da medicina mental uma medicina especial. Sobre ele jogou-se também odes-
tino de um certo proselitismo psiquiátrico que alimentava o desígnio de abrir
as vias novas às intervenções médico-psicológicas em nome de uma ideologia
do serviço do usuário que conciliaria a exigência jacobina de desenvolver o
serviço público e a exigência humanista de ir à frente de qualquer fraqueza,
talvez prevenir sua aparição. Em vez então de repetir as condenações de "im-
perialismo psiquiátrico" que se cristalizaram em volta da política de setor,.
melhor vale a partir de então analisar os dispositivos estourados que pegam o
relais de sua ambição.

Capítulo 2
A medicalização da saúde mental

Há uma nova organização de conjunto da medicina mental suscetível de


substituir a que se acreditava dominante até a metade dos anos setenta'! À
primeira vista, hoje, em um contexto de crise que não é somente econômico,
é a dispersão que prevalece. Iniciativas partem em todas as direções, novas li-
nhas de expansão se desenham, enquanto que posições antes sólidas são con-
denadas à defensiva. De uma certa maneira, entramos, simultaneamente, na
era da pós-psiquiatria e da pós-psicanálise. Esta proposição deve-se entender
sem equívoco. Ela não significa que nós nos instalamos em uma modernidade
sem memória que.teria ultrapassado e tornado caducos os antigos dispositivos.
Assiste-se sobretudo a decomposições e a recomposições inéditas que acarre-
tam uma redistribuição das cartas. A análise dessas transformações trabalhan-
do um campo médico-psicológico, que cessa por esse fato de ser dominado
pela psiquiatria clássica e pela psicanálise, constitui assim uma prévia obrigada
a uma avaliação sintética da situação atual.
Seja então, neste capítulo e nos dois seguintes, a identificação das três
principais linhas de fuga que nos levam para novos horizontes:
- a laminação da especificidade da abordagem psiquiátrica permirindo
o retorno forte do objetivismo e do positivismo e operando uma banalização
das instituições e técnicas da medicina mental no seio da medicina geral,

66 67
- , ,;,sd.,~ a, ,oo•~ •• • ••=•., WMme,< & _ , , " ] coerente, mas perigosamente deslocado e como que em atraso em relação aos
medicina mental que, autorizando a dissociação do diagnóstico e do tratamen-
to, tende a substituir a prática de tratamento por uma prática de expertise critérios de cienti:ficidade que se impõem no mesmo momento da medicina.
generalizada, à base de estratégias inéditas de gestão das populaçõe~. A explicação desse paradoxo se deve à própria natureza da perturbação
- a derrapagem da orientação psicoterapêutica se diluindo numa nova psíquica tal como.a representam os alienistas. Que a alienação mental tenha
cultura psicológica, no seio da qual as fronteiras entre o normal e a patologia ou não raízes orgânicas, 1 ela se dá sob a forma de uma desordem na organiza-
desaparecem e onde a terapia é ultrapassada, mesmo quando a totalidade da ção da sociabilidade, e a psiquiatria representa o saber e a prática capazes de
existência torna-se matéria de tratamento. combater e anular essas turbulências. Ela é assim, antes de ser uma medicina
orgânica, ainda mais uma medicina social. O alienismo colocou-se dessa ma-
neira em posição de chefe de fila em relação às práticas da higiene social e da
1. A CRISE DA "MEDICINA ESPECIAL" filantropia, que repousavam sem dúvida sobre tradições mais antigas, mas ti-
nham necessidade de caução científica que lhes tenham buscado a indexação
A medicina mental esforçou-se além do mais para fundar a originalidade médica. Ocupando essa posição, a medicina mental consumou uma parte es-
de seu objeto, de seus métodos e sua abordagem em relação à medicina geral. sencial de sua vocação histórica. 2
Isto significa, primeiro, defender a especificidade de um lugar de exercício, o Esta concepção de conjunto dominou amplamente a primeira metade
"estabelecimento especial" como se dizia no século XIX, quer dizer, o hospí- do século XIX. A partir de 1860 mais ou menos, ela começa a ser roída pelos
cio especialmente concebido para o tratamento da loucura, mas também mais ataques do positivismo médico, que se desenvolvem segundo uma linha dupla.
tarde_ o dispositivo do setor cujas estruturas horizontais, capilares, se opõem à De um lado, fazer do espaço hospitalar um meio verdadeiramente médico,
estrutura piramidal do hospital geral. Afirmar a originalidade da medicina quer dizer, onde se dispensam tratamentos intensivos, rompendo conforme a
mental é ainda impor através da exigência de continuidade dos tratamentos necessidade com as funções de assistência e guarda tradicionais, mesmo se
uma tomada de encargo completo e um tratamento em profundidade da clien- estas se enfeitem de virtudes da filantropia. Paralelamente, sair do hospital
tela em oposição às intervenções mais pontuais e mais técnicas de uma medi- para desenvolver ações preventivas às quais a luta contra as doenças infeccio-
cina que ataca preferencialmente os estados agudos. sas, e sobretudo contra a tuberculose, vão logo propor um modelo médico
que não deve nada à tradição alienista. Essa dupla evolução das práticas apóia-
Novos filantropos e primeiros tecnocratas se no plano teórico sobre uma distinção que tende a se impor desde o século
XIX entre "doença mental" e Halienação mental". Se a alienação corresponde
Essas noções, que os profissionais apresentam freqüentemente como a um estatuto administrativo-legal, ao mesmo tempo que médico sancionado
quase-evidências, s6 se impuseram, no entanto, através de longas lutas. De na lei de 1838, um grande número de doenças mentais correspondem a uma
fato, essas conquistas são frágeis, pois repousam numa contradição que a problemática puramente médica que não exige medidas de assistência e/ou de
medicina mental viveu até hoje: uma especialidade médica constituindo-se em contenção. 3 É preciso então romper com esta associação assistência-medicina
medicina especial, quer dizer, em uma relação a um s6 tempo essencial e im- que remete aos estágios arcaicos da constituição da psiquiatria.
possível para a medicina.
Desde sua origem, de fato, a medicina mental instituiu-se numa curiosa 1 Desse ponto de vista, o debate se abre no nível teórico, e opõem "somatizadores" e
situação de falsidade em relação à medicina. No começo do século XIX, no "psicologistas". Mas, nesse plano da prática, prevalece o que J.P. Falret chama de
"ecletismo terapêutico", que consiste em mobilizar todos os meios empiricamente
próprio momento em que se impõe a medicina "científica" moderna, e em
disponíveis para afrontar a doença mental tal qual ela se apresenta: como o que
que a Escola de Paris encontra seus mais brilhantes sucessos, o alienismo pro- nós chamaríamos hoje uma perturbação relacional.
curou na medicina do século XVIII o modelo de suas nosografias e a fórmula 2 CASTEL, Robert. A ordem psiquiátrica. Ed. de Minuit, 1976, cap. III: "A primeira
de sua abordagem prática. Classificação dos sintomas, procura de uma etiolo-
medicina social".
gia moral das doenças mentais, preponderância do tratamento moral sobre os
3 Pelo que eu conheço, essa distinção aparece pela primeira vez com clareza em "A con-
meios físicos formam, no começo do século XIX, um conjunto certamente
valescença dos alienados", de LEGRAIN, M. Relatório do conselho superior da

68 69
Antes da Segunda Guerra Mundial éssa orientação tecnicista e, dever-se-ia
dos ambulatórios de higiene mental e "serviços livres". Essa posição é acom-
dizer, tecnocrática por antecipação, está apta a propor um programa coerente
panhada de violentas críticas pela tradição alienista, entre as quais Heuyer,
de reformas que se poderia formular aproximativamente assim: a medicina
que pede praticamente a supressão através da abolição de qualquer legislação
mental começa a dispor de métodos de pesquisas e de técnicas de tratamento
especial como a lei de 1838, a "desadministração" da função do psiquiatra,
intensivo que a reaproximam da medicina comum. Façamos então, tanto
que deve tornar-se um especialista como os O.R.L. e outros tisiologistas, re-
quanto possível, da doença mental uma doença como qualquer outra, tratável
crutando com base num diploma de faculdade e não mais um médicu-funcio-
num hospital como uma outra, mandando de volta, se necessário, as crônicas
nário, absorvido por tarefas administrativas. É preciso ao mesmo tempo reme-
aos estabelecimentos de carceragem. Por outro lado, existem também tecno-
dicalizar a instituição psiquiátrica fundindo-a no hospital geral. "O centro
logias médicas de detectação e de prevenção entre as quais a luta contra a
lógico da organização psiquiátrica é o serviço hospitalar no quadro do hospital
tuberculose oferece o modelo. Abramos dispensários de higiene ffil"!:t:tl do
geral. " 5 O novo especialista, enfim, liberado para tarefas propriamente médi-
mesmo tipo religando-os por exemplo à repartição pública de .higiene social
cas, poderá simultaneamente exercer suas competências em domínios tão
(O.P.H.S.); eles tocarão diretamente o público economizando os desvios da
diversos quanto "a orientação profissional", Ha organização do exército", "a
hospitalização. Enfim, proponhamos mais amplamente ainda as novas compe-
antropologia criminal" ou "a inlancia deficiente ou em perigo moral".
tências do médico-psiquiatra fazendo-o inteivir como conselheiro junto a ins-
tituições como escola, exército, empresa, que têm problemas de recrutamen-
Eis a organização que se poderia instalar como alternativa à tradição
to, de seleção e organização interna que um expert pode resolver.
alienista. Podemos nos espantar que os alvos dessa confrontação tenham sido
freqüentemente dissimulados na literatura dos reformadores, por exemplo, no
Tal é aproximadamente o programa que encontramos formulado por Livro branco, atrás da polêmica algo corporativista e limitada contra o conser-
Georges Heuyer em 1945. Ele se refere a Edouard Toulouse, e, além, à tradi- vantismo dos universitários. Eis também o modelo em relação ao qual e con-
ção do movimento americano de higiene mental4 que tinha inspitado Toulou- tra o qual o setor se bateu, e pelo qual acreditou poder igualar a coerência
se para a criação do Centro de Cuidados Intensivos Henri-Rousselle em Paris, economizando os exclusivos.
e para seus projetos de detectação sistemática das anomalias da iniancia Ele Há assim não só um, mas dois modelos de modernização da medicina
já pode se apoiar sobre um começo de realização: em 1936, a integração de mental. O das espécies de "mutantes da tradição alienista", segundo a palavra
um programa de luta contra as doenças mentais na O.P.H.S. com abertura de de Bonnafé, que se expande na doutrina do setor: renovar o dispositivo psi-
ambulatórios psiquiátricos ligados aos ambulatórios de detectação das doen- quiátrico conseivando a um só tempo a especificidade de sua abordagem em
ças infecciosas; a mudança do nome de hospício para hospital psiquiátrico in- relação à medicina e a vontade de encargo total da tradição assistencialista. O
teivinda em 1937, a despeito da oposição dos alienistas; a circular do ministro do objetivismo médico, cuja exigência de eficácia se paga com o abandono
da Frente Popular Roucard que, no mesmo ano, recomenda a multiplicação algo cínico dessa espécie de sedimento da população de hospícios que resiste
assistência-pública, 78, 1982: "No alienado há dois seres, o anti-social e o doente. aos cuidados intensivos e é batizada "crônica", "incurável", "irrecuperável",
O primeiro é alienado do ponto de vista legal, o segundo é alienado do ponto de etc. 6 De um ponto de vista humanista ou político, o desfile dos alienistas e
vista médico". Legrain mesmo acrescenta; "Tal é a distinção capital que não foi de seus sucessores é forte quando eles denunciam aí uma exclusão e uma rejei-
abordada até esse dia e que nós consideramos como o pivô das reformas de ama-
ção. Nem por isso eles subestimaram a força, a coerência e a dinâmica da
nhã'' (p. 7).
4
orientação oposta.
Fundado em 1909 por antigo doente mental, Clifford Beers, o movimento de higiene
mental logo cobre os Estados Unidos com comitês que se propõem ter antes de
tudo um papel de informação e de prevenção. A filial francesa foi criada em 1921 5
HEUYER, Georges. Para uma verdadeira assistência aos doentes mentais. O médico
(será a segunda sociedade estrangeira depois da canadense). Em 1937 realiza-se em
Francês, 51, out. 1945. p. 9.
Paris o segundo congresso mundial de higiene mental. O presidente é Edouard
6
Toulouse. Ele já avaliava em um milhão para a França o número de "mentais" A título de ilustração, esta profissão de fé de Edouard Toulouse, chefe de fila da cor-
que precisavam de tratamento intensivo. rente modernista entre as duas guerras: "A crítica mais justa que se possa fazer a

70 71
uai só quiseram reter os traços mais conservadores, os estão suplantando
Esta, do ponto de vista teórico, podia se apoiar sobre o alargamento
;m quase todos os terrenos, e que são eles que parecem a partir de então estar
progressivo da concepção da doença mental, além do círculo estreito da alie-
contra o vento da história.
nação mental. Podia, ela também, reivindicar um .caráter progressista, na me~
dida em que a forma de medicalização que propunha quebrava a velha taut0-
A banalização institucional
logia doença mental== alienação completa =internação necessária, sobre a qual
se fundavam as condutas mais segregacionárias a respeito das doenças mentais. É primeiro a noção de instituição especial, quer dizer, de um espaço
Enfim, em termos de relações de força, ela se apoiava em posições pelo menos autônomo no qual se desenrolariam todas as práticas psiquiátricas e nada
tão sólidas quanto as de sua concorrente, pois, se o positivismo médico era mais do que elas, que aparece no ponto de ser implantada. Essa concepção
fracamente representado nos hospitais psiquiátricos, sempre dominou os tinha sido conseguida em alta luta pelos alienistas no correr dos debates que
poderosos bastiões universitários. culminaram na lei de 1838. Disso resultou que o hospício constituiu a princi-
pal matriz no seio da qual foi constituída a prática psiquiátrica hospitalar
Curiosamente, quase toda a polêmica recente sobre os objetivos da psi- até data recente.
quiatria desenrolou-se como se só tivesse existido uma tradição alienista reno-
vada pela política do setor, e sobre o sucesso ou fracasso da qual se jogava o No máximo, foram conservados, com a condição de ficarem perfeita-
destino da medicina mental. A ocultação da outra possibilidade não somente mente separados e terem um funcionamento autônomo, alguns "quarteirões
teve o inconveniente de fazer mal conhecido ou subestimado todo um domí- especiais" nos hospícios ou hospitais gerais, um setor institucional particular
nio de práticas que, elas também, pesaram nas transformações recentes do que nunca ultrapassou 10.000 leitos e serviços psiquiátricos ou neuropsiquiá-
sistema psiquiátrico (para tomar esse único exemplo, os medicamentos psico- tricos de faculdade. Estes recebiam além dos doentes de perfil diferente, casos
trópicos foram descobertos pela psiquiatria universitária). Fazer 'da política agudos rapidamente transferidos ao hospício, logo que não se curavam ligeiro,
de setor a única fórmula coerente do reformismo psiquiátrico, e da orientação a menos que não fossem conservados como "belos casos" a apresentar aos
propriamente médica um puro bastião da resistência ao progresso, era tam- estudantes. Assim, em 1964, havia para a região parisiense 240'1eitos de psi-
bém hipotecar pesadamente a concepção que se podia fazer do futuro da quiatria e 925 de neuropsiquiatria dependendo da Assistência Pública, contra
medicina mental. Pois, hoje, os defensores do setor descobrem com espanto 15.000 leitos de hospitais psiquiátricos e, para toda a França, 1.500 leitos de
7
que os seus inimigos hereditários, os defensores do objetivismo médico, do serviços de neuropsiquiatria para 114.000 hospitalizados em psiquiatria.

nossos hospícios, é que eles não respondem a um objetivo claramente determina- Os primeiros setores tendo sido criados a partir dos hospitais psiquiá-
do. Se são destinados a hospitalizar doentes atingidos por formas agudas de lou- tricos existentes, essa relação não foi logo modificada Mas os novos serviços
cura, devemos reconhecer que não possuem um pessoal suficiente de médicos e psiquiátricos são cada vez mais freqüentemente ligados a hospitais gerais. Há
guardas, nem a instalação desejável do interior dos locais. Se, pelo contrário, esses
hoje 17.000 lugares psiquiátricos nesses hospitais, ou seja, perto de 15% do
hospícios são feitos para receber crônicos e incuráveis, poder-se-ia declarar que o
pessoal médico e vigilante é demais. ( ... ) A estada de todos esses crônicos inofen~ conjunto, contra 1%, há vinte anos, e a tendência se acentua.
sivos em nossos hospícios, onde a vida é tão dispendiosa, é quase uma extravagân- Essa normalização relativa de suas condições de exercício pode benefi-
cia de assistência, tal como escreveu um alienista inglês. Por que gastar tanto para ciar a psiquiatria ajudando-a a sair de seu gueto. As trocas que autorizam a
cultivar em estufa e prolongar indefinidamente a existência de tão grande número proximidade dos serviços, a homogeneização dos estatutos do pessoal vão
de idiotas e dementes? Uns nunca puderam, e os outros não poderão jamais dar acarretar uma certa osmose entre as práticas e atenuar os estigmas de rejeição
qualquer proveito à sociedade. Esta última deve assisti-los proporcionalmente e
reservar o resto de seu dinheiro para os doentes agudos e para tantos outros desa- associados ao exercício de uma medicina mental confinada em espaços espe-
fortunados, por exemplo, as crianças abandonadas, que são um capital seguro, ciais. No entanto, uma tal evolução leva a termo o risco de ver instituirwse um
cujos resultados ultrapassam todos os sacrifícios feitos por eles." (Relatório sobre
a existência dos alienados na França e na Escócia, Conselho Geral do Sena, 1898,
PP- 3 e 4). 7 LOSSERAND, Jean, "Neurologia e psiquiatria". Livro branco... Op. cit. t. 1.
\
1:
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J ___ 72
duplo circuito de cuidados e um duplo curso institucional. A partir do mo. bações psíquicas reivindicada pelos partidários da tradição psiquiátrica. Não
m~~t~ em que coexistem dois modelos de práticas, a médica clássica e a psi- -: é também um dado marginal que na outra extremidade do leque das institui-
qmatnca, tudo leva a crer que a primeira representa a boa fórmula que aca- ções hospitalares os estabelecimentos de tipo hospício abriguem um grande
bará por vencer. , número de velhos sofrendo de perturbações mentais. Em 1976, seu número
era avaliado em 115.000, 10 seja aproximadamente a população dos hospitais
_ Já em algumas grandes cidades, grandes hospitais (por exemplo, Edouard- : psiquiátricos.
He1_:1ot em Lion, o Hôtel-Dieu em Paris) não somente recebem a maioria das Mas, fato mais grave ainda para os defensores de uma psiquiatria especí-
urgencias, mas constituíram serviços de tratamentos intensivos, com um pes- fica, os próprios serviços ministeriais, pelo menos sob a antiga maioria, se dis-
soal reforçado, que escolhem uma parte da clientela dos setores das redonde- tanciaram a respeito do que se convencionou ser a política oficial de defesa
zas. Os responsáveis pelas estruturas universitárias jamais se converteram à dessa especificidade. Numa entrevista recente, o adjunto do Diretor-Geral da
r:li~ião do s:tor como dispositivo homogêneo, cobrindo o conjunto do terri- Saúde preconizava, contra os "incondicionais do setor", a abertura de um ser-
tono. Ele.s visam antes de tudo, através da modernização da psiquiatria, ao viço de psiquiatria em cada hospital geral. Passando por cima do risco de esco-
desenvolvimento de serviços integrados à estrutura hospitalar geral, partici- lha dos setores por tais serviços, punha em questão a coexistência no seio de
pando de seu dinamismo e de suas formas hierarquizadas de funcionamento um serviço unificado de patologias mentais muito diferentes, quer dizer, o
de maneira que as estruturas horizontais se desenvolvam nas zonas meno~ princípio de base do alienismo retomado pela política de setor: "Fazer cotejar
medicalizadas. Seu peso é cada vez maior na profissão. Um psiquiatra da tradi- o grande débil ou o violento com o doente que é frágil em sua inserção social
ção clássica dava assim conta do recente congresso que se realizou em Tou- não vai contribuir em nada a que o último tenha muita vontade de sair disso,
louse so~re o tema "A psiquiatria no hospital geral" (fevereiro de 1980): "Sua nem a que ele possa se reinserir rapidamente. " 11
o:1entaçao, ~eral nos apareceu de certa maneira como uma colocação em ques-
tao da poh tlca de setor em psiquiatria. " 8 Da instituição especial às instituições especializadas
O que se esboça aí é uma reestruturação de todo o dispositivo institu-
O setor, de fato, era a associação hospital psiquiátrico-serviços comuni-
cional da psiquiatria, onde haveria não mais "instituições especiais", mas ins-
tários; o recentramento das práticas psiquiátricas sobre o hospital geral seria a
tituições especializadas no tratamento, e outras na vigilância, de tal ou tal
separação entre os serviços especializados de alta tecnicidade e os serviços de
longas estadias fracamente medicalizados. categoria de doentes. Política nova (e, ao mesmo tempo, velha política, já que
ela só retoma antigos projetos tais como o de Toulouse) que está ainda no
Esta ameaça é tanto mais real quanto os serviços especializados dos hos- estágio de esboço, mas que começa a se perfilar atrás de algumas diretrizes
P_it~s ge~ais, que não são os únicos a tratar das perturbações psíquicas. O rela- recentes.
tono mais recente do Ministério da Saúde numera em 263.000 a quantidade Assim, a última, em data das circulares de aplicação da política de setor
de altas dos hospitais gerais de doentes sofrendo de uma perturbação mental, (15 de junho de 1979), obriga todas as equipes a estarem aptas a assegurar as
contra lb5.000 altas_ dos hospitais psiquiátricos. 9 Mesmo, se é verdade que urgências, recebendo a qualquer momento os chamados, tanto de doentes ou
~m regra geral a gravidade das perturbações tratadas nos serviços não especia- de sua equipe como de outros serviços médicos e serviços encarregados da
lizados dos hospitais gerais é menor que a apresentada pelos doentes oriundos manutenção da ordem e da segurança, polícia, guardas, bombeiros. 12 As equi-
do ~ospital psiquiátrico, e que estão em geral associadas com uma patologia
10
somatica, estamos muito longe da situação quase-monopólio sobre as pertur- Idem, ibidem, p. 37.
, 11
LACRONIQUE, Jean-François. "Psiquiatria: o setor continua prioritário". Op. cit.
BACIOCCHI, Maurice. A psiquiatria no hospital geral. Boletim do Sindicato dos Psi· p. 28.
quiatras dos Hospitais, 2, mar.-abr. 1980.
12
9 "A Circular nC? 896 A.S.2., reproduzida na Informação Psiquiátrica, fev. 1980, pp. 223-
po l'.
lt1ca d os tratamentos em psiquiatria, balanço e síntese". Op. cit. p. 38. 226.

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75
pes de s~tor são incitadas a se agruparem em _três ou quatro para assegurarem te da ordem de 500. 13 Movimento sem dúvida destinado a se ampliar, porque
e:se _serviço, e a constituír~m uma antena de intervenção, que será, de prefe. formas atenuadas e mais concretas da contestação antipsiquiátrica, elas sedu-
renc1a, baseada num hosp1 tal geral, onde poderá se beneficiar da infra-estru~ zem também um número crescente de profissionais que ali vêem o meio de
t~r~ dos outro~ se~i?os méd~c?s. de urgência. Mesmo se só se trata, em prin. ultrapassar a rigidez da estrutura burocrática do setor, e mesmo de responsá-
c1pio,, de _um_ disp~sitivo prov1s~no, e que só diz respeito a uma parte das tare-· veis administrativos da Ação Sanitá1ia e Social tentados a um só tempo pela
f~s pr~p~ias _ª eqmpe psiquiátrica, é colocá-la à frente de um modelo de prá- sua flexibilidade e seu menor custo de funcionamento. Não somente elas
tica medica i~te~:n~ionista, pontual, centrada sobre a crise, oposta. ao modo ampliam a gama institucional, além da instituição especial, mas contradizem
de encargo_ ps1qmatnco e lon~o termo. Haveria bastante razões técnicas para sua própria concepção, já que acolhem freqüentemente, com e ao lado de
que essa diferença na modalidade das intervenções se institucionalizasse e doentes mentais propriamente ditos, diferentes tipos de casos sociais oriundos
uma d~cotomia entre tipos de serviços de tratamentos intensivos e serviç: dos meios da marginalidade e do desvio.
apropnados à vigilância. "Desespecificação", então, dos espaços psiquiátricos. Mas, no seio de
Num espírito aproximado, uma disposição da lei de 30 de junho de todas as forças que fazem explodir a velha idéia de uma única instituição para
1975, _'.'m favm das pessoas deficientes (cap. 3), prevê a criação de casas de todos os _doentes mentais e unicamente para os doentes mentais, as que im-
recepçao especializadas (M.A.S. ), para assegurar uma vigilância e um mínimo põem a prevalência do esquema médico clínico parecem as mais fortes. Vê-se
de ac?m~anhamento médico para grandes deficientes que não mais seriam assim ressurgir perpetuamente o espectro de uma faceta entre uma psiquiatria
s~s~etiveis ~e- recuperação. Disposição em curso de aplicação, que vai sem de ponta altamente medicalizada e serviços de toda origem, ou marginalizados
duv~da permit1r regularizar o destino de um certo número de "crônicos" dos nos campos bucólicos ou, pior ainda, especializados na manutenção dos '"crô-
quais Toulou~e j~ notava q~e a m3:1utenção em meio hospitalar era "quase nicos" e outros "não-valores sociais", como dizia ainda Edouard Toulouse.
um~ extravagancia de assistencia". E também questão de abrir alguns desses Essa distinção contra a qual toda a linhagem alienista, depois a da psiquiatria
se~iços nos grandes hospitais psiquiátricos que não podem mais lotar com os comunitária, lutara e continua a lutar, até aqui com sucesso, tem, apesar
?.ªcientes ~ecrutados em sua área geográfica. Assim, no próprio coração do disso, por ela, todo o peso da tradição propriamente médica. À medida que a
estabelecimento especial" inventado para o tratamento exclusivo da loucura medicina mental se reaproxima da medicina geral, a atração desta se faz mais
vere~_os se instalar uma nova população de grandes deficientes que ali serã~ forte. Que esteja se sobressaindo mais, não significa o fim da medicina mental,
admitidos com a condição de que não sejam doentes mentais suscetíveis de mas o fim da psiquiatria como medicina especial.
tr~tamento. Ao ~~smo tempo que uma peripécia comandada por razões pro-
sa~camente (ou cinicamente) econômicas, há aí como que um símbolo de uma A homogeneização profissional
~nse profunda da "medicina especial" que cqmeça a ser desmantelada até 0 Devemos reaproximar esta banalização do dispositivo institucional da-
imo de sua fortaleza secular.
quele que está se impondo no nível da formação de pessoal. As faculdades de
, _A proliferação atual das ''estruturas intermediárias", se provém de um medicina (atualmente C.H.U.) não tinham formado, até data recente, a não
esp1nto todo diferente, vai na mesma direção. Trata-se do desenvolvimento. ser um ínfimo número de psiquiatras. Assim, em sete anos, por volta de 1960,
nas margens das instituições oficiais, de "apartamentos terapêuticos" para somente 34 diplomas de estudos especializados de neuropsiquiatria tinham
d~entes mentais, de comunidades de inspiração mais ou menos antipsiquiá- sido concedidos pela faculdade de Paris. 14 A imensa maioria dos psiquiatras se
tnca que, por exemplo, acolhem no campo crianças psicóticas ou toxicôma-
n~s., Alg~mas dentre elas herdaram aquisições do movimento· de crítica anti-
hi~rarqmco e antiestático destes últimos anos. Outras são promovidas por psi- 13
Uma associação para o estudo e a promoção das estruturas intermediárias (A.S.E.P.
qw~t~as empreendedores, que as montam em derivação sobre as estruturas S.O.) recentemente fundada lança uma revista, Transições (cinco números publi-
oficiais do setor. Que sejam de estatuto privado ou parapúblico, contava-se cados desde dezembro de 1979).
em volta de 250 dessas estruturas intermediárias em 1977, e seriam atualmen- 14
BRISSET, Charles. "Psiquiatria, neurologia e medicina". Livro branco... Op. cit., t. II.
p. 148.

76 77
formava "no local", no hospital psiquiátrico, onde primeiro eram internos, Para a psiquiatria, isto significa primeiro que o número dos internos,
recrutados por concurso especial, 15 depois faziam, para se tornarem médicos- por volta dos 3.000 atualmente, vai baixar para mals da metade. Em seguida,
ch~fe~, ~ doutorado, concurso nacional ele mesmo totalmente específico à que serão formados em prioridade nas estruturas médicas, C.H. U. e serviços
p~1qmatna. Essa formação entretinha evidentemente o particularismo psiquiá- de psiquiatria dos hospitais gerais. Enfim, o concurso de internato sendo úni-
tnco. Os estudantes escolhendo a psiquiatria foram, aliás, sempre caracteriza- co para todas as especialidades, há lugar para pensar que a maioria daqueles
dos por várias particularidades atípicas em relação ao recrutamento do con- que teriam vontade de fazer psiquiatria não o poderão, e que os que a toma-
junto dos profissionais médicos: gosto pelo serviço público, origem social me- rão como especialidade não a teriam querido, já que as possibilidades de esco-
nos elevada, orientação política "de es,:iuerda", etc. lha são estritamente determinadas pelo lugar obtido no concurso único. Acon-
Uma tal particularização já foi fortemente empreendida pela reforma do tecendo muito cedo no curso universitário esse concurso, o recrutamento se

l
r
estatuto dos psiquiatras em 1968. A partir de então, internos como não-inter-
nos devem obter o certificado de estudos especiais. Este, preparado em quatro
anos, comporta seminários obrigatórios de cuja maioria são dispensados nos
C.H. U. A manutenção na especialidade e a memória terminal são julgados por
fará sobre critérios muito "científicos". Aliás, o mínimo que se pode dizer
dos programas dos estudos de medicina em geral e dos internatos em particu-
lar é que eles não encorajam o sentido das relações humanas e da indagação
sobre os mistérios do psiquismo. Já ao nível da formação requisitada, eles dre-
um júri composto principalmente de universitários. Aqui os psiquiatras perde- nam preferencialmente os espíritos positivos, adaptados a um mundo de con-
ram completamente numa reivindicação que a seus olhos era a contrapartida corrência que muitos afrontarão com a eficiência e o dinamismo dos jovens
necessária da separação entre neurologia e psiquiatria: a participação nas ativi- tecnocratas.
dades de ensino em paridade com os universitários, e o reconhecimento dos Atualmente, o Sindicato dos Psiquiatras dos Hospitais e o dos Internos
caracteres específicos da prática psiquiátrica de setor como elemento essencial em Psiquiatria hesitam entre tentar arrumar essa reforma dos estudos médicos
da formação. E mais, o novo estatuto dos psiquiatras que os assimilava aos num sentido menos destruidor da originalidade da psiquiatria, ou tentar im-
médicos dos hospitais de segunda categoria permitiu aos elementos provenien- por a manutenção de um internato de psiquiatria completamente independen-
tes da Universidade ( chefes de clínicas, assistentes, adidos, etc.) postular dire- te do novo curso, o que marcaria um retomo à especificidade psiquiátrica mas
tamente à direção de um serviço de setor, e o fizeram em grande número. No correria o risco de assim pagar um corte radical em relação à medicina.
concurso de 1980 do ramo psiquiátrico, um terço de aprovados tinha sido
exclusivamente formado por essa rede, com grande dano para os psiquiatras A mesma tendência está aliás prevalecendo para a formação dos outros
dos hospitais. 16 "trabalhadores da saúde mental".
. o q~e tmha subsistido do antigo modo de reprodução endógena dos psi- Os enfermeiros psiquiátricos tinham herdado seu papel de '"vigilantes de
qmatras publicas, e que continuava quantitativamente determinante está em loucos", uma homogeneidade da profissão e uma originalidade em relação aos
via de ser completamente abolido com a reforma dos estudos de :Uedicina enfermeiros da medicina geral, que se marcavam por um diploma específico e
votada em 1979. A rede do internato único abrirá para todas as especialida- pelo fato de que um enfermeiro psiquiátrico assumia, com os cuidados estrita-
des, entre as quais a psiquiatria. Os internos serão formados nos C.H.U. e num mente médicos, todas as tarefas de vigilância e de manutenção dos doentes.
nú.mero li-!11-itado de serviços reputados "qualificadores" escolhidos pelo esta- A reforma recente dos estudos de enfennagem institui um trono comum aos
bhshment médico segundo critérios que não darão certamente vantagem para enfermeiros psiquiátricos e aos enfermeiros do Estado, que aproxima a forma-
os defensores da tradição psiquiátrica. ção dos primeiros da dos segundos.
Nos serviços psiquiátricos dos hospitais gerais introduz-se também,
IS A . ~ .
preemme_ncia desse emaranhado era tal que a maioria dos psiquiatras e psicanalista'i entre enfermeiros, ajudantes, agentes dos serviços hospitalares, etc., uma hie-
que se mstalaram no particular a partir dos anos cinqüenta eram antigos internos rarquia do pessoal subalterno calcada na divisão do trabalho em medicina,
d_os grande_s _hospitais psiquiátrico<;, como os do Sena, cujo título dava a equivalên- mas nova na tradição psiquiátrica, onde o enfermeiro completa, em princípio,
cia do certificado de estudos especializados de neuropsiquiatria. todas as tarefas hospitalares da psicoterapia aos cuidados corporais dos doen-
16
Boletim do Sindicato dos Psiquiatras dos Hospitais, 3 abr. 1980. tes, passando pelas injeções, segundo a ideologia que quer que, num ambiente

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de tratamento, "'tudo seja terapêutica". Mas esse colaborador polivalente em
loucura e paixão, doença mental e desordens da civilização que ocorrem em
termos está ameaçado de desaparecimento. Da mesma maneira que a especiali-
todo o curso do século XIX. Depois da Segunda Guerra Mundial, uma refe-
zação das instituições se impõe pouco a pouco, a do pessoal segue a mesma
rência à fenomenologia através da influência da obra de Karl Jaspers dá sua
evolu?ãº_· Racionalização aí também: cada especialista será o representante da
caução principal ao movimento de renovação que se desenvolve na época. A
espec1fic1dade de sua técnica em vez de todos os terapeutas terem em comum
a abordagem da especificidade do fato psiquiátrico. abordagem fenomenológica justifica a colocação em primeiro plano da com-
preensão do fenômeno patológico) a atenção ao vivido, a exigência de entrar
em empatia com o doente, que caracterizam a renovação humanista da épo-
_ ~ê-se em que contradições está preso o movimento da modernização da
~ed1cma mental:_ A necessidade de romper com alguns particularismos da prá- ca. 18 Mas uma tal referência permanece impressionista. A aproximação feno-
~ca e da formaçao, que encerravam a psiquiatria num gueto, tinha sido acres-- menológica continua restrita ao presente. Ela não conhece nem a gênese nem
c1da de exigências precisas para manter sua originalidade. Teria sido necessário a causa do aparecimento das perturbações patológicas. Há aí, da própria con-
poder impo~ um_a transversalidade real dessa prática e dessa formação em tor- fissão de seu mais eminente representante na França, Eugêne Minkowski,
no da organizaçao do setor, o que os psiquiatras, aliás, reivindicaram energica- "como que uma fraqueza". 19
mente. Mas tudo se passa como se, tendo colocado eles mesmos O dedo na
engr~nagem ( a possibilidade de religar setores aos hospitais gerais está prevista A vitória de um marginal
na c1rcular de 1960, o novo estatuto da profissão votado em 1968 foi reivindi- A psicanálise vai superar esta fraqueza e tentar encontrar na procura de
cado pelo _quadro, etc.), tivessem começado um processo que ia progressiva- uma especificidade da medicina mental moderna seu fundamento teórico. Co-
me.nte lam1~ar ~ originalidade da especialidade. O acabamento desse processo mo a psicanálise foi levada a representar esse papel depois de ser longamente
sena a reahzaçao do velho sonho positivista de uma psiquiatria "verdadeira- proibida em psiquiatria? Para compreendê-lo, é preciso colocar entre parên-
mente" méd~c~, ~ particularismo que a caracterizou até agora só representan- teses o debate de caráter ideológico que se passou no meio analítico e do qual
do ~s s~b:'e_v1vencias de sua pré-história, quando ela não tinha atingido O nível falamos antes (capítulo 1) a respeito da relação psiquiatria-psicanálise'º e ler
da c1enhflc1dade das outras especialidades médicas.
funestos à humanidade, e que é talvez a causa deplorável do estado de abandono
no qual se deixa quase todos os alienados, é olhar seu mal como incurável, e atri-
2. MAL-ESTAR NA CLÍNICA buí-lo a uma lesão orgânica no cérebro ou em qualquer outra parte da cabeça. Pos-
so assegurar que, na maioria dos fatos que reuni sobre a mania delirante tornada
incurável ou terminada por outra doença funesta, todos os resultados da abertura
A exigê~ci~ da es~e.cificida~e das instituições e da formação psiquiátrica dos corpos comparados aos sintoma<:, que se manifestaram provam que essa aliena-
repousava em ultima análise, se disse, na concepção de uma medicina "não co-- ção tem em geral um caráter puramente nervo':>o, e que não é o produto de ne-
m~. outra", porque el~ diz respeito à doença mental, doença "não como ou- nhum vício orgânico da substância do cérebro." PINEL, Philippe. Tratado médico-
tra . Se, desde sua ongem, a psiquiatria atacou a desordem da loucura mais filosófico sobre a alienação mental, 1 ed., Ano IX, p. 154.
18
do que a infra-estrutura orgânica que pode eventualmente constituir sua etio- Cf. HESNARD, André. "Contribuição da fenomenologia à psiquiatria contemporâ-
logia, é porque ela foi tanto mais concebida como uma tentativa de redução nea", Congresso de psiquiatria e de neurologia de lfngua francesa de Tours, 1959,
de uma patologia relacional, e não de uma patologia dos órgãos. 17 Masson, 1960.
19 MINKOWSKI, Eugêne. "Fenomenologia e análise existencial em psiquiatria", Evolu-
Mas qual fundamento teórico dar a essa concepção de uma doença dife-
rente das outras? Procurou-se sucessivamente no decorrer da história da medi- ção Psiquiátrica, III,juL-set 1948, p. 150.
cina mental, por aproximações. Daí as especulações sobre a analogia entre 20
Há de fato um enorme hiato entre o discurso psicanalítico dominante, pelo menos em
sua versão lacaniana, que é extremamente crítica a respeito da psiquiatria, e as
17 L b .
em ;aremos aqui um texto de Pinel, o "pai fundador" do alienismo, que funda tam- práticas concertadas do inve':>timento das instituições psiquiátricas pelos psicanalis-
bem esta tradição dominante de toda a psiquiatria: "Um preconceito dos mais tas. Diante do encarniçamento de numerosos psicanalistas em condenar, em nome
do purismo analítico, a colaboração da psicanálise para uma reforma da psiquia-
80
81
a história da penetração da psiquiatria pela psicanálise à luz das estratégias dos nalítica ( ... ). No estado atual do saber, nenhuma dessas posições triunfou so,.
protagonistas, que eles mesmos percorreram um certo número de etapas. bre as outras de fato senão de direito. A obrigação de levá-las toàas em con-
23
O meio psiquiátrico francês sempre foi hostil à psicanálise. A força da sideração faz parte da originalidade da psiquiatria.
tradição clássica, o prestígio de Pierre Janet, rival de Freud, uma sólida hosti- Dentro desse complexo, a psicanálise procura uma aproximação essen-
lidade a respeito da Alemanha e até um certo anti-semitismo fizeram que a cial na medida em que cultiva o sentido da relação e a implicação pessoal do
orientação freudiana não seduzisse primeiro senão elementos pouco numero. terapeuta que são o imo da prática psiquiátrica. Mas, como diz um outro
sos e muito marginais da profissão psiquiátrica. 21 Se a situação começa a se interveniente, ''uma formação psicoterápica levada ao máximo, inspirada
desbloquear logo após a Segunda Guerra Mundial, a guerra fria remete logo inevitavelmente pela psicanálise, deveria integrar o ciclo dos estudos psiquiá-
tudo em questão pois um certo número de psiquiatras mais abertos às novas tricos( ... ). O essencial é, reciprocamente, velar para que esta regeneração da
idéias eram ao mesmo tempo membros do Partido Comunista, e devem rom- psiquiatria, sob a influência de modas de pensamento inspiradas pela psicaná-
per violentamente com a psicanálise, essa "ideologia reacionária." 22 É muito lise, não vá acabar em uma volatilização da psiquiatria, a qual deve conservar
progressivamente que a psicanálise recuperará o tempo perdido, e tomando sua forma e traços específicos". 24
primeiro circuitos marginais em relação ao "quadro" dos psiquiatras públicos,
em particular pelo atalho da infância. Urna tal síntese só podia ser instável. Ela supunha primeiro uma relação
quantitativa na profissão, onde os psicanalistas estavam representados, mas
Ela parece fazer sua volta oficial na psiquiatria pública no momento do sem ser majoritários. E o que se verificava naquele momento. Por exemplo,
Livro branco, num contexto do qual já assinalamos o significado tático. Para em 1965, dez dos trinta e três chefes de serviços psiquiátricos da região pari-
fundar o reformismo. psiquiátrico, não se pensa atribuir a prática psiquiátrica siense são de formação psicanalítica. 25 Mas cinco anos antes não havia ne-
a uma orientação teórica precisa, mas deixar adicionarem-se tendências diver- nhum, e a relação logo se reinverterá, sobretudo entre os jovens para os quais,
sas afirmando seu caráter não contraditório e procurando nesse ecletismo um a partir do fim dos anos sessenta, em Paris pelo menos, será uma quase obriga-
efeito de reforço recíproco. O relatório sobre a formação dos psiquiatras, do ção ter seguido ou seguir uma formação analítica para ter direito à palavra no
qual um dos autores é psicanalista, precisa: "Teríamos podido de passagem meio psiquiátrico.

! reconhecer as atitudes organicista, organodinarnista, fenomenológica e psica-

tria, lembraremos - uma vez não representa hábito - a opinião de Freud: "A psi-
Mas a perpetuação do ecletismo tornara-se ainda mais impossível pelas
ambições dos psicanalistas mais dinâmicos, engajados na prática psiquiátrica.
Para eles, não se tratava de fornecer um dado a mais ao reformismo psiquiá-
canálise não está no entanto em oposição à psiquiatria como se poderia acreditar
1 trico, mas de apresentar o ponto de vista da verdade sobre o que dali em dian-
diante da atitude quase unânime dos psiquiatras. Ela é sobretudo, na qualidade de
psicologia das profundezas, quer dizer, psicologia do.~ processos da vida psíquica te deve ser essa prática. Existe sobre esse ponto um consenso total entre as
inconsciente, chamada a fornecer à psiquiatria a indispensável infra-estrutura e a duas principais escolas psicanalíticas rivais, que disputaram na França o mer-
acorrer em auxílio a suas limitações atuais. O futuro produzirá verdadeiramente cado da psiquiatria.
uma psiquiatria cientffica à qual a psicanálise terá servido de introdução". ("Rela- Um primeiro círculo de difusão da psicanálise no meio psiquiátrico pro-
tórios da psicanálise e da psiquiatria", Gesammelte Werke XIII, 1923, p. 227). No-
pagou-se, a partir da clínica de La Borde a Courheverny, fundada em 1953
taremos então que Freud vê que na oposição, por parte dos psiquiatras na França,
as resistências vieram freqüentemente dos psicanalistas. É justo no entanto notar por Jean Oury e Félix Guattari. Em torno de La Borde desenvolveu-se um tra-
que o purismo antipsiquiátrico foi sobretudo o resultado da tendência lacaniana. balho teórico e prático importante para aplicar a orientação psicanalítica laca-
Para outra orientação que se propõe explicitamente desenvolver uma "psiquiatria
psicanalítica", cf. por exemplo RECAMIER, Paul-Claude. De psicanálise em psi- 23 GREEN, A.; MARTIN, D. & SILVADON, P., "Ensino da psiquiatria e formação do
quiatria. Payot, 1979. psiquiatra", Livro branco.. Op. cit. t. I. p. 61.
21 24 MISÊS, Roger. Intervenção na discussão sobre "Formação do psiquiatra e ensino da

l
SMIRNOFF, Victor N. De Viena a Paris. Nova Revista Frrmcesa de Psicanálise, 21, ou-
tono de l 979. psiquiatria. Idem, t. II. pp. 240-1.
22 "Autocrítica: a psicanálise, ideologia reacionária". Op. cit. 25 MISÊS, Roger. "As psicoterapias. Relação com a psicanálise", Idem, t. I. P· 228.

1
82 83
f
niana às condições de um trabalho em instituição. A ambição é integrar no
Assim, desde o fim dos anos cinqüenta - quer dizer, antes mesmo da
quadro de uma teoria rigorosa (conseqüentemente psicanalítica) as aquisições
~
dação do Livro branco - essa corrente prepara uma espécie de secessão. .
e
de toda a "psicoterapia institucional" que, desde o fun da Segunda Guerra
funda em 1965 a Federação dos Grupos de Estudos e Pesquisas Instituc10nais
Mundial, tinha começado a transformar concretamente a vida diária dos servi-
(F.G.E.R.l.), recrutado em critérios de estrita ortodoxia analítica. Esse grupo
ços, mas sem se mostrar exigente demais sobre a conceitualização. François
será um local de reflexão e de trocas importantes para elaborar uma aproxi-
Tosquellês, ele mesmo engajado ·desde a guerra nesse movimento, tornou-se
mação psicanalítica do trabalho em instituição. Mas o mínim? que se_ pode
chefe de fila da psicoterapia institucional "segunda maneira" 26 e, depois de sua
dizer é que ele não se caracterizou por sua indulgência a respeito de_ onenta-
conversão ao lacanismo, exprime assim o sentido dessa transmutação: "O hos-
ões mais prosaicas. Oscilará continuamente entre a tentação de se retirar para
pital representaria do ponto de vista terapêutico um papel análogo ao do psi-
Iormar um gueto de puros e a de constituir um lobby de conquistadores impe-
canalista. Seria objeto de investimentos sucessivos desses conflitos; e a dialé-
riosos. 29
tica da cura passaria, por assim dizer, nessa lâmina de transferências e de pro- No mesmo momento em que La Borde, há aproximadamente um ano
jeções que a estrutura social do hospital poderia permitir. " 27 (1954), debuta "a experiência do 139 Quarteirão"., Animada pelos mais sá-
Religados pelos prestígios do seminário de Lacan, essa orientação se bios psicanalistas, pertencendo à Sociedade Psicanah tlca de Pans, ela desdo-
desenvolve nos anos sessenta e atrai urna sementeira de jovens psiquiatras, eles bra seus esforços para demonstrar a pertinência da psicanálise em fecundar
próprios engajados numa formação analítica, mas preocupados em conciliar um trabalho psiquiátrico na comunidade. Outra versão da pretensão de ultr~-
as exigências do purismo freudiano com as servidões do serviço público. Re- passar os quadros mais estreitos do reformismo psiquiátrico. Este não ~ez ~:11s
agruparam-se em tendência desde os Encontros de sevres de 1958, onde de- do que preparar o terreno para um cumprimento que encontra na ps1canahse
sencadearam um violento afrontamento com as representações do movimento sua verdadeira justificação: "Há novamente um doente, um médico, um tera-
reformista oriundo da Libertação. Louis Le Guillant, um dos mais constantes peuta. Mas o que podem eles se tornar? E o que pode fazer a instit~iç!o_? Não
representantes da psicoterapia institucional "primeira maneira", marxista é aqui que o impulso humanitário e as ideologias constituem prmc1p10s de
ainda por cima, exprimirá mais tarde sua amargura: "Parece-me que todos ação. E é no ponto dessa interrogação grave que a psiquiatria se v?lto~, entr~
aqueles - numerosos - que se calaram em Sevres tinham sido dominados, outras direções, para a psicanálise, e que entraram em cena os pnme1ros psi-
subjugados, talvez mais ou menos diminuídos a seus próprios olhos, pelas quiatras de formação psicanalítica e de prática institucional. '~30 _
prestigiosas exposições relativas a uma psicoterapia institucional que só pode- Diferença de escola posta entre parênteses, esta preferencia algo menos-
ria ser validamente fundada sobre as bases teóricas de uma muito sábia psi- preziva à insuficiência de "impulso humanitário" e "ide~logias:·, rende exa!a-
F cologia das profundezas, e tornaria bastante derisórias suas humildes reformas mente o mesmo som que a reprimenda que faz Tosquelles, o hder da tenden-
"materiais" e mesmo um pouco suspeita, pelo menos ingênua, errônea, a soli-
1 citude, "armadilha" de seu inconsciente, que eles testemunhavam a respeito
cia lacaniana, a Daumezon, chefe de fila da psicoterapia institucional pré-
analítica de ter tido a ingenuidade de se deixar pegar pela realidade prosaica
de seus pacientes e se esforçavam - não sem sucesso - em obter de seus cola- em vez de se erguer sobre as sutilezas da transferência e da contratransferên-
1 boradores". 28 cia. 31 As diferentes orientações analíticas ficam assim profundamente de
acordo, pelo menos nesse ponto: a psicanálise não representa para a psiquia-
t; 26
Para a elaboração dessa distinção entre psicoterapia institucional "primeira maneira" 29
A importância dessa corrente é essencial sob um outro título: ela cruzou e misturou as
e "segunda maneira", cf. CASTEL, Robert. A instituição psiquiátrica em questão.

1 Revista Francesa de Sociologia, XII. jan.-mar. 1971. principais tendências da extrema esquerda francesa, prepara~do a via_a_esta outra
síntese espantosa do elitismo lacaniano e do esquerdismo cuJos presttg1os e pode-
27
TOSQUELL:ÊS, François. Miséria da psiquiatria. Esprit, número especial dez. 1952, res se desdobraram depois de maio de 1968.
p. 901. 30 RECAMIER, P.C. et al. O psicanalista sem divã. Payot, 1970. p. 60.
28
LE GUILLANT, Louis. "As instituições e a organização de setores psiquiátricos", Dis- 31 TOSQUELLÊS, François. "Introdução ao problema da transferência na psicoterapia
cussão. Livro branco... t. ll, p. 69.
institucional", Psicoterapia Institucional, 1, p. 15.

84
85
tria uma fonte entre outras de sua regeneração moderna; ela pretende se impor fala, sobre O qual se escreve, e que se co_meça a exportar, enquanto não existe
como a posição dominante a partir da qual devem-se redistribuir todas as car- ainda nenhuma outra realização comparavel.
tas. Ela tem vocação hegemônica para a restruturação de todo o sistema psi-
quiátrico. Impondo-se a um só tempo na instituição fechada e na comunid~de, a
sicanálise parece assim provar que sua tecnologia supera os antagomsmos
Um remédio miraculoso istitucionais que a prática psiquiátrica se aplica a ten~ar -~lt~apassar. Ela
parece realmente o instrumento da contemporaneidade ps1qmatnca, mas com
Assim esses dois primeiros locais de difusão da psicanálise em psiquia-
a aparente capacidade de assegurar sua direção em vez de se manter no lugar
üia, inaugurados de maneira completamente independente e vividos no anta-
gonismo por seus protagonistas, 32 funcionaram de maneira milagrosamente subordinado definido pelo Livro branco. , . .
complementar. Assim pode se explicar o sucesso, aparentem~nte paraa~~~l da ps1qma·
tria psicanalítiq.. Não faltam razões para denunciar. as amb1g_mdades desse
Lembramo-nos que o reformismo psiquiátrico tinha-se fixado na exis-
casamento, e os psicanalistas lígados à estrutura duelista ~efimda por Freu~
tência de dois modelos organizacionais dificilmente compatíveis, o da comu-
nidade terapêutica e o da psiquiatria comunitária. Mas a tecnologia psic_ana- disso se privam raramente. No entanto, para nos aterm~: a :rança, ~ss~ casal
litica parece providencialmente transcender esse corte. La Borde é, a sua capenga conquistou Paris após a província, ~pós ~s e~pene~cias margrnai~ e,~-
tamente sofisticadas, o venha-a-nós do serviço pubhco, apos os chefes h1ston-
maneira, um espaço fechado, cercado de árvores mais do que de muros, mas
que apresenta a maioria das características objetivas de urna verdadeira "insti- os e carismáticos, os cumpridores de tarefas que tentam aplicar receitas. Era
tuição totalitária": os pacientes fazem ali em geral longas estadias no decorrer ;reciso certamente refinar a análise, disting~ir tipos .de i~~tituiç_ões ~pa~ti~u-
das quais se desenrola o ciclo completo de uma vida social sob a autoridade de larmente para as crianças) onde a penetraçao da ps1canál1se .~m mais fac~ e
urn grupo que, queiramos ou não, representa um corpo de terapeutas. Em outras que resistiram mais tempo, detalhar regiões logo seduzidas em funçoes
seguida, a maioria dos adeptos dessa tendência foi praticar nos hospitais psi- de conjunturas locais, como o Baixo Reno, o Essone e outros que perm~·
quiátricos mais clássicos, onde se depara diariamente com a herança dos hos- neceram durante muito tempo quase alérgicos, como o Langued~c~Rouss~-
pícios. lon. Mas globalmente, hoje, noções de graus de interpretação e pratl~a~ ma1s
As equipes do 139 Quarteirão são, ao contrário, chamadas a circular da ou menos diretamente inspiradas na psicanálise ( ouvir o doente, a pnondade
maneira mais fluida em todo o espaço social, sem até, durante os primeiros dada à relação de tipo psicoterapêutico, a atenção enfocad_a n~ hi_stór~a infan.
anos, pelo menos, dispor de um hospital psiquiátrico. Beneficiando-se de re- til e nos problemas familiares, a tentativa de manipulaçao ms:1tu~10nal da
cursos consideráveis em homens e em material, elas exibiam uma primeira transferência e da contratransferência, etc.) tornaram-se referencias quase
realização do setor que os reformadores não psicanalistas tinham laboriosa- obrigatórias de todos os profissionais que desejam praticar uma psiquiatria
mente tentado conceitualizar desde 1945. Perpetuamente comentada e dada moderna.
a imitar, "a experiência do 139 Quarteirão" ia tornar-se o modelo e a vitrina Mesmo se esse alívio permanece em parte verbal, não deveríamos subes-
do setor francês, aquele que as delegações estrangeiras visitam, do qual se timar sua força que repousa, além dos efeitos de moda, sob~e a prof~ndidade
dessa necessidade de fundar a especificidade da aprox1maçao ps1qmatn~a.. A
1 relação corno matéria primeira da intervenção, a psicoterapia como tecru~a
! 32
Não se pode entrar aqui na problemática insolúvel, pelo menos para um profano, que pareceram para um grande número de profissionais os assentarnento.s ma~s
i consistiria em se perguntar quem detém a posição psicanaliticamente mais "verda~ seguros para garantir o fato de que a aproximação psiquiátric~ n~o s~Jª assi-
dcira". Mas parece ao observador que a oposição endurecida, no plano teórico, milada a uma banal especialidade médica. Ou bem, de fato, a ps1qmatna ado~a
por cuidado de pureza doutrinal, é bem menos significativa, no plano das práticas.
Assim, a despeito da posição muito purista da tendência lacaniana, é, no entanto,
melhor ou pior tecnologias médicas ou importadas das ciências exa:as - qm-
uma parte dessa corrente que, por intermédio da "psicoterapia institucional" ana- mioterapias, intervenções cirúrgicas como as lobotomias, sismotera~1~s, et~. -
lítica, conquistou uma parte importante dos bastiões de hospício mais tradicio- e então sua originalidade em relação à medicina só se atém a seu mrnuno ngor
nais da psiquiatria pública. e ao caráter mais aleatório de seus sucessos: ela não é urna medicina como

86 87
As referências psicanalíticas tornaram-se as idéias reguladoras, no sentido
outra simplesmente, porque é menos medicina do-que outra; ou bem tem uma
kantiano da palavra, da prática psiquiátrica moderna.
especificidade positiva que não pode se fundir, a não ser em uma aproximação
Mas então elas colocam essa prática numa posição difícil, às vezes con-
psicoterapêutica rigorosa, cuja relação psicanalítica propõe o modelo.
traditória. É uma aposta, de fato, para uma atividade que continua em princí-
pio a se inscrever na órbita médica, de colocar ela mesma seu_pr~prio sucesso
Bonito demais para ser verdade
em um registro inacessível, senão assintomático. Todos os ps1qmatras na mo-
Mas esse ganho se paga com um custo enorme qlle, no fim, nada mais é vimentação psicanalítica se dizem insatisfeitos com suas realizações, mas
do que o risco de desmedicalização da medicina mental. É preciso homena- vivem essa decepção como fazendo parte da definição do trabalho que é o
gear a lucidez de Henri Ey, que tinha percebido perfeitamente o objetivo desse seu. Existe assim uma espécie de desnivelamento estrutural, quer dizer, ampla-
debate desde 1968: "A operação que a (psiquiatria) separa de sua irmã sia- mente independente das contingências e mesmo de todas as circunstâncias,
mesa, a neurologia, era necessária, mas não evidentemente sem perigo. Pois, entre o que, nessa atividade, seria preciso fazer e o que é efetivamente possí-
claro, pode-se, deve-se temer que, rompendo as amarras que a mantinham vel fazer.
estreitamente ligada à neurologia, ela não flutue a partir de então na nebulosa Uma tal postura é, compreende-se, inconfortável e, por aí, frágil. Ela
chamada "ciências humanas".( ... ) Diante dessa nova ameaça "psiquiatricida", mantém juntas duas exigências que, poder-se-ia dizer, só pediam para se sepa-
devemos propor uma alternativa própria a demonstrar suas contradições: ou rar. Por que não se separariam? A intencionalidade de uma intervenção rea-
bem a psiquiah~a não existe, ou bem é parte importante da medicina. " 33 lista, reparadora, mensurável em seus efeitos empíricos, se consumaria melhor
A psicanálise, "ameaça psiquiatricida"? No plano prático primeiro, num emprestando técnicas mais prosaicas do que aquelas que se referem ao corpo
serviço que quer funcionar realmente segundo os princípios da psicanálise, a psicanalítico. Inversamente, as potencialidades mais originais da psicanálise
referência ao esquema médico se esbate. A capacidade de insight, * o domínio seriam liberadas se a referência ao pólo médico fosse diretamente abandona-
da transferência, a pertinência das interpretações, etc. não são absolutamente da. É preciso ver aí o nódulo de pertinência das discussões confusas que agi-
implicações necessárias de uma posição médica. Desde então, o papel próprio ram nestes últimos anos os meios psiquiátrico-psicanalíticos sobre o ponto de
do psiquiatra como psiquiatra ( de fato, terá havido em geral a prudência de saber se a finalidade dessas profissões era ou não curar. Essa seria uma inter-
se fazer ao mesmo tempo analista, pelo menos para poder sobreviver) se rogação próxima do absurdo, se nos referíssemos ao conjunto da clínica psi-
reduz a assumir as funções administrativas, o que lhe dá quase necessariamen- quiátrica, onde a necessidade de intervenções de caráter terapêutico é dificil-
te o lugar ingrato do "mau objeto". A psiquiatria, num serviço "verdadeira- mente recusâvel. Mas, a partir do momento em que esta exigência ficasse satu-
mente" impregnado de psicanálise, não é a terapia, é a administração, com rada por outras aproximações mais médicas, poder-se-ia muito bem conceber
talvez, em complemento, a responsabilidade de um certo número de atos pro- o desdobramento de um trabalho de inspiração psicanalítica sobre a pessoa
priamente médicos e, por isso, desvalorizados pela ideologia psicanalítica, (eu, os outros e suas relações), franqueado pelo cuidado da cura. A psicanálise
como por exemplo a administração de medicamentos. torna-se então o principal vetor de propagação de uma cultura psicológica
Certo, se dirá, os princípios da psicanálise não são quase nunca ''verda- que, veremos, desemboca nos terrenos mal balizados da "terapia para os nor-
deiramente" aplicados nos serviços. Mas, mesmo se conseguinnos notar que a. mais", além do corte que separa o normal do patológico.
"audiência" do doente é imperfeita, às vezes impossível em certas condições
de exercício da prática, que sua "demanda" é distorcida, que a equipe não Em suma, a psiquiatria psicanalítica tentou um golpe ambicioso: recodi-
funciona de fato como lugar de "circulação da palavra", etc., esses valores ficar o conjunto da prática psiquiâtrica no quadro de um1 rigorosa tecnologia
continuam, apesar disso, colocados como o ideal de toda relação terapêutica das relações comandada pelos princípios da psicanálise. É a versão maxima-
digna desse nome, orientam as opções desejáveis e os progressos a consumar. lista do reconhecimento do fato de que a patologia mental é uma patologia
relacional. Mas a operação só pode ter sucesso completo com a condição de
33
EY, Henri. "A psiquiatria, grande especialidade médica". Op. cit. p. 740.
reduzir o fato psiquiátrico a essa pura patologia relacional, quer dizer, de tirar
a psiquiatria definitivamente da esfera médica. Ora, há qualquer coisa no fato
*Em inglês no original. (N. da T.)

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88
psiquiátrico - e sobretudo na organização da psiquiatria con:o Profissão - _ dos psiquiatras no seio das outras medicinas, cujas orientações positivistas
que resiste a tal redução. Henri Ey, ainda, dizia em 1966: "E mais do que dominantes raramente se embaraçaram com tais estados de alma. Mas elas
tempo que a psicanálise encontre seu lugar na medicina, e que seja assim reco- também perigosamente cavaram o fosso entre uma exigência de cientificidade
locad?, em _seu lugar. " 34 Pudemos acreditar, de fato, nessa época, que a psica- que se impõe cada vez mais na medicina moderna _e especulaç?es'. pesqui~as,
nálise encontrava na psiquiatria um lugar. Mas esta integração relativa não a inovações, que correm o risco de aparecer a contrano como amave1s fa~tas1~~·
recolocou em seu lugar, porque ela quis tomar todo lugar. E, por um choque quem sabe empreendimentos irresponsáveis e per~go~os: U~a cer~~ ps1canah-
de volta, essa vontade de hegemonia está atualmente fazendo a cama da con- se, uma certa psiquiatria social e uma certa ant1ps1qmatna frequentemente
tra-ofensiva do positivismo médico.
casaram seus prestígios para produzir sonhos sedutores e frágeis, para levan-
De fato, se a psiquiatria psicanalítica constituiu, nestes últimos anos, a tar perguntas muito sérias também, mas que não encontram sua resposta no
ideologia dominante da medicina mental moderna, hoje assiste-se à explosão plano de eficácia prosaica. Mais gravemente, deve-se reconhecer também qu~
da síntese frágil que ela representava. De um lado, a psicanálise continua seu ~sse imaginário tem por vezes entretido uma negação da realidade, auton-
percurso social que é uma fuga para a frente numa cultura psicológica genera- zando uma indiferença altaneira a respeito de toda avaliação positiva da prá-
lizada, além do psiquiátrico, e mesmo do psicanalítico propriamente dito tica, mesmo quando assim provocava o impasse sobre problemas dos próprios
( capítulo 4). De outro lado, em medicina mental se desenha uma volta ao pacientes. Pior ainda, talvez, em certos casos essas referências autorizar_a~ o
objetivismo médico, aquém do psicanalítico, e mesmo ao psiquiátrico. duplo jogo entre um discurso irrepreensivelmente sofisticado sobre as prati_cas
e práticas contraditórias com esse discurso: poderíamos, por exemplo, citar
serviços que supostamente funcionam há dois ou três decênios de acordo com
3. A VOLTA DO OBJETIVISMO MÊDICO
a "psicoterapia institucional analítica" e nos quais as condições materiais de
existência dos doentes mudaram muito pouco desde a bela época hospitalar.
Um sistema particular de representações, diríamos quase de crenças,
Mas, seja por boas ou más razões, esse imaginário é atualmente com-
que chamaremos aqui um "imaginário profissional" mais do que uma ideo-
testado. Lassidão, sem dúvida, a respeito de um certo confusionismo verbal
logia, sempre deu à psiquiatria um espírito muito particular dentro da medi-
que tinha se instalado em numerosos serviços, discussões repetitivas sobre o
cina. Há uma vintena de anos, esse imaginário profissional se alimentava em
que significava curar, e mesmo se era preciso curar, intem:ináveis "r~un_iõ~s
duas fontes principais. De um lado, os psiquiatras reformadores eram inspi-
de síntese", onde são abordados mais os problemas da equipe ou da mstltm-
rados por preocupações sociais que tendiam a fazer da psiquiatria um serviço
público e desembocaram na elaboração da política de setor. De outro, a refe-
ção do que os dos doentes< Mas arrogância também, agora, dos jovens ou :e-
lhos lobos de um positivismo que retorna para a frente do palco e a CUJOS
rência psicanalítica fez que, por uma maioria de .. trabalhadores da saúde men-
adeptos se atribuem ares de franco-atiradores redescobrindo somente velhos
tal", o essencial da vocação terapêutica passasse por um investimento pessoal
mitos cientistas que florescia...111 na psiquiatria, no final do século XIX. Eis
cuja relação psicoterapêutica era a matriz. A essa dupla referência acrescen-
aqui, sem dúvida de volta, aqui, como alhures, o tempo dos caçadores de uto-
tou-se, no último decênio, o efeito das críticas políticas da medicina mental
pias que medem todo o interesse de uma questão por sua rentabilidade em
que trouxeram, a uma parte pelo menos do meio profissional, perguntas des- uma economia de eficácia, quando não a própria economia diretamente,
confortáveis sobre as finalidades sociais da prática de tratamento.
Essa mudança participa de um certo desencantamento geral, mas remete
também a dados específicos do campo. De um lado, vimos, o modo essencial-
Mudança do imaginário profissional mente administrativo, sobre o qual se faz agora a implantação da política do
setor, não permite mais nela investir grandes motivações políticas, nem mes-
Às vezes separadas, às vezes confundidas ao preço de muitas ambigüida-
mo humanistas. Por outro lado, a crise que atravessa a psicanálise desvitaliza a
des, essas preocupações acusaram a originalidade - que sempre foi de tradição
especulação sobre a natureza profunda da perturbação psíqui_ca e cort~ a prá-
34 tica da referência a um "outro palco". Quanto às pesquisas de alternativas em
EY, Henri. Plano de organização do campo da psiquiatria. Privat, 1966. p. 10.
relação aos modos médicos de se encarregar, o mínimo que se pode dizer é

90
91
que elas não tinham provado sua capacidade de balançar os establishments Nessa linha se desenvolve toda uma série de pesquisas para localizar os
profissionais. pontos de fixação e o modo de ação dos medicamentos psicotrópicos. Um
aparelho como a câmara de pósitron permite acompanhar o que os medica-
A pesquisa biológica mentos se tomam no cérebro. O mecanismo de ação dos mediadores bioquí-
Pelo que está sendo substituí.do esse imaginário que dominou O último micos dá lugar neste momento a estudos aprofundados. 35
decênio'. Primei~o por um interesse crescente pelas práticas ou técnicas que Por enquanto, só as pesquisas sobre a psicose maníaco-depressiva pare-
nunca tmham sido abandonadas, mas que subsistiam um pouco envergonha- cem ter liberado uma relação rigorosa entre a ação de um medicamento e a
damente, recobertas por um discurso dominante mais incandescente. cura clínica de uma entidade nosográfica. As pesquisas sobre a esquizofrenia
Assim os medicamentos. Poderíamos nos espantar constatando O pouco são menos convincentes, sem dúvida, porque estão reunidas sob essa etiqueta
lu~ar que ocuparam nas discussões sobre os objetivos da prática psiquiátrica. entidades mórbidas heterogêneas, das quais será preciso empreender a redução
~rn~a, quando _se falava, tratava-se mais freqüentemente de limitar sua impor- uma por uma.
tancia ou de remterpretar sua ação, a partir de alguns de seus efeitos laterais Essa aproximação bioquímica deve ser relacionada com as pesquisas
co~~ na argumentação psicanalítica um pouco fácil, que mantém o interess~ genéticas que visam a estabelecer o caráter hereditário de algumas perturba-
prmc1~~ ~o medic~ento,,na relação que ele permite atar com o paciente ções psíquicas ( aliás, constataríamos uma anomalia cromossômica em 80%
como obJeto transac10nal . Portanto, independentemente de qualquer julga- das psicoses maníaco-depressivas). Aqui, ainda, trata-se de uma velha ambição,
mento de valor, a descoberta dos neurolépticos em 1952 foi incontestavel- mas que se dá meios novos. Desde Esquirol, a importância da hereditariedade
mente um acontecimento maior da história da psiquiatria. Os medicamentos na etiologia das doenças mentais tinha sido inúmeras vezes sublinhada, e sua
representam de fato o denominador comum da prática psiquiátrica, já que são preponderância tinha mesmo sido afirmada, particularmente depois da divul-
~plame~te empreg~do_s em_ quase todos os serviços, qualquer que seja, aliás, gação do conceito de degenerescência por Morei ou a descoberta das leis de
ª 1~eol?gia ~e refere~cia: ~1 compreendidos nos altos escalões, a partir dos Mendel. Mas esta referência manteve-se difícil de instrumentalizar na prática,
quais difundm-se a psicanálise como instituição. exceto inspirar, sobretudo nos Estados Unidos e na Alemanha nazista, práti-
M~~ a ig_norância em que estamos, dos mecanismos de sua ação, facilitou cas eugênicas que lançaram a suspeição sobre essa orientação. Não se poderia
essas ut.ilizaçoes puramente empíricas. O medicamento era mais freqüente- ser prudente demais, quando se sabe que, quase todos os Estados de uma na-
~ente tido co~o uma fe:r_amen~a in~ispensável, mas cuja utilização não ques- ção tão "liberal" quanto os Estados Unidos, nos anos vinte, adotaram dispo-
tlona~a o sentido da pratica ps1quiatrica, porque parecia ele mesmo agir de sições legislativas para esterilizar os retardados e deficientes psíquicos (feeble
mane:ra compl~t~ente cega. Mas desenvolvem-se atualmente pesquisas que, minded}, e mesmo algumas categorias de doentes mentais e de delinqüentes.
atraves da eluc1daçao do _modo de ação dos medicamentos, têm a ambição de Dezenas de milhares de operações foram feitas em nome de uma ideologia
chegar_ a uma ~ompreensao do mecanismo bioquímico na origem das doenças inspirada pelo darwinismo social, colocando impasse em duas questões muito
mentais e~ no fmal, ~und_ar uma teoria positivista de sua etiologia. simples: Pode-se fundar cientificamente um diagnóstico de deficiência incurá-
Assim, a eluc1daçao da ação dos antidepressivos e dos sais de lítio so- vel? Pode-se fundar cientificamente o caráter hereditário de sua transmissão? 36
~re a P~,icose maníaco-depressiva. Controlando todas as outras variáveis (inclu-
SIVe
- o d efeito
· _ estabelecer que de 70 a 80"10 dessas psicoses
placebo"),. pode-se
. ·
35 Cf. GLOWINSKI, Jacques. "Mecanismos de ação bioquímica dos neuromediadores",
sao re 1:,z1das pela adm1mstraçao de um antidepressivo. Existiria assim uma
Mesa redonda sobre o modo de ação dos medicamentos psicotrópicos, documen-
corr_elaça~ entre a cura .clínica de certas doenças e as modificações bioquími- tação do Movimento universal da responsabilidade cient(fica. Paris, 1977.
cas 1~,duz1das pelo me~.1camento. !s~o significaria que, pelo menos para algu- 36 O esquecimento revelador que recobriu essa voga do eugenismo nos Estado5 Unidos
mas doenças da alma , se podena mtervir exatamente, e com conhecimento
nos anos vinte convida a dar aqui uma amostra dessa legislação, por exemplo, a lei
d~ ~a~sa, como a respeito d~ um acesso infeccioso ou uma perturbação meta- 290 votada no Estado do Missouri em 1923 (a maioria dessas leis não foi revogada,
bolica. a doença mental sena verdadeiramente uma doença "como qualquer mesmo se atualmente são pouco aplicadas): "Quando alguém for acusado de mor-
outra". te (salvo se cometido sob o império da paixão), de violação, de roubo em grandes

92
93
As pesquisas sobre a hereditariedade se desenrolam atualmente num Assim, o encontro que se realizou em Montpellier em 1980 sobre os neuro~
contexto científico asseptizado. As mais interessantes na França abordam a peptídios, sob o patrocínio conjunto do professor Roger Guillernin, Prêmio
esquizofrenia, a partir do estudo de genealogias familiares de doentes atingi- Nobel, e dos laboratórios Clin-Midy, e que se prolongou pela criação de um
dos pela afecção. Chegaram recentemente a propor um modelo de probabili- laboratório de pesquisa fundamental sobre a biologia dos peptídios, e;om a
dade_ genética de aparecimento da esquizofrenia. Os esquizofrênicos ( da or- colaboração do C.N.R.S. e da indústria farmacêutica. Que os seminários de
dem de I % da população) se caracterizam pela associação de dois genes (s.s.). Bichat de 1980 tinham sido consagrados aos estados depressivos é igualmente
Um só gene é encontrado em 32% dos sujeitos de dada população. A presença um índice dessa medicalização de aproximação das perturbações psíquicas.
dos dois genes s.s. daria assim uma probabilidade de uma ocasião em quatro
de se tornar esquizofrênico. 37
Uma coisa é a pesquisa científica e outra o contexto ideológico, no qual
Notaremos que essas pesquisas propõem resultados nuançados, já que, funcionam essas descobertas. A Dr9' Escoffier-Lambiotte relatou nestes termos
mesmo se um tal modelo é válido, ele só dá à "causa" hereditária o papel de o encontro de Montpellier: "O objetivo último desses trabalhos e a esperança
urna predisposição cuja ação deve ser completada por outros dados, em par- evidente dos pesquisadores que os conduzem é a descoberta da natureza exata
ticular os que provêm do meio. t sobretudo o fascínio que exercem sobre e do tratamento das perturbações, acabando nas patologias mentais graves,
numerosos espíritos em nome da nP,utralidade e da eficácia absolutas do diante das quais a medicina só pode, na hora atual e em inúmeros casos, ofe-
saber positivo que merece que _paremos aqui. O fato também é que os susten- recer soluções carcerárias tragicamente inoperantes. " 39
tadores dessa orientação ocupam altos cargos da pesquisa, C.H.U. principal- O progresso da medicina mental é assim assimilado ao conhecimento
mente, Colégio de França, Instituto Pasteur, etc. e que, mesmo sem falar dos das únicas condições que sejam cientificamente instiumentalizáveis. São reme-
laboratórios farmacêuticos, esses trabalhos são colocados prioritariamente pe. tidos para o esquecimento da história todos os esforços para alcançar a pessoa
los organismos de planejamento e de incentivo à pesquisa médica. Assim, o sofredora em sua relação problemática no sentido, na linguagem, no simbolis-
I.N.S.E.R.M. colocou recentemente a psicofarmacologia à frente das pesqui· mo e outras. Para o objetivismo médico, a psiquiatria, especialidade médica
sas pelos próximos anos, antes mesmo dos trabalhos sobre o câr1cer. Coló. como outra, se deixou distanciar por causa desses investimentos "ideológicos"
quios de alto nível, como se diz, reúnem periodicamente os pesquisadores (quer dizer, psicanalíticos e/ou políticos), mas atualmente está retomando seu
engajados nessa via. Assim, o encontro sobre o modo de ação dos medicamen- atraso graças aos progressos do pensamento científico.
tos psicotrópicos que se realizou em Paris, sob a égide do Movimento Univer- Sem dúvida, não se jogou tudo. Urna grande maioria de profissionais
sal pela Responsabilidade Científica, no curso do qual numerosos especialis-- parece ainda temer nesses domínios os efeitos de um desligamento "cientí-
tas mundiais exprimiram a convicção de que a pesquisa nesses domínios fran- fico" que, historicamente, acomodou-se muito bem a práticas das mais repul-
queava um pórtico qualitativo que ia revolucionar a prática psiquiátrica. 38 sivas a respeito da loucura, e até freqüentemente deu.lhes caução. No entanto,
vias, roubo de frangos, uso de explosivos ou roubo de carro, o juiz que instrui o sob os debates barulhentos que monopolizaram a atenção nestes últimos anos,
processo designará imediatamente um médico competente residente na região
instalou-se um dispositivo de poder e de saber atualmente bem colocado para
onde o delito aconteceu para fazer no condenado a operação chamada vasectomia
ou salpingcctomia, com o fim de esterilizá.lo, para que o poder de procriar lhe seja reinverter a situação em seu favor. O indicador da balança volta-se para a
tirado para sempre." (O roubo de frango em particular era um delito freqüente· brancura asseptizada dos laboratórios, empurrando para a sombra das velhas
mente atribuído aos negros.) Sobre a importância da eugenia como episódio afas- metafísicas as orientações que revitalizaram a problemática da medicina men-
tado da história_ da medicina mental, cf. CASTEL, F.; CASTEL, R: & LOVELL, tal nestes últimos quinze anos e disso fazendo um objetivo existencial, social
A. "A sociedade 'psiquiátrica avançada". Op. cit., cap. II.
37
e político.
DEBRAY, Quentin; CAILLARD, Vincent & STEWART, John. "Schizophreni.a, a
Study of Genetic Models and some of their Implications", "Neuro·psychobiology,
1978. 4.
39 Dr? ESCOFFIER-LAMBIOTTE. Hormônios cerebrais e regulações do psiquismo, Le
38
Mesa redonda sobre o modo de ação dos medicamentos psicotrópicos, documentação Monde, 15 maio 1980; cf. também Biologia do cérebro e doenças mentais, Le
do Movimento universal pela responsabilidade científica. Paris, 1977. Monde, 6 out. 1980.

94
95
A terapia comportamental tuações para as quais o recurso à modificação comportamental se revela, em
Outro índice do progresso do positivismo, a implantação recente das diversos graus, operante. Ela é "de uma grande eficácia" para "as reações fóbi-
terapias comportamentais. Não se trata aqui exatamente de uma volta à tra- cas e de ansiedade, a enurese, a gagueira e os tiques associados à síndrome
diçã? médica clássica. As terapias comportamentais se situam, ao contrário, de Gilles de La Tourette". Ela proporciona "melhora freqüente" para "os
na linguagem da psicologia de laboratório, do behaviorismo americano reatua- comportamentos obsessivos e compulsivos, a histeria, a encopresia, * a impotên-
lizado pelos trabalhos de Wolpe e Skinner. 40 Nos Estados Unidos, elas foram cia devida a causas psicológicas, a homossexualidade, o fetichismo, a frigidez,
até o instrumento de uma espécie de revanche dos psicólogos sobre os psiquia- o transicionismo, o exibicionismo, a paixão do jogo, a anorexia, a insônia, os
tras: os psicólogos, quase excluídos da formação analítica no momento em pesadelos", assim como para "os problemas de comportamento das crianças
que esta dominava na psiquiatria, importaram em medicina mental essa nova próximas da nonnalidade, tais como o fato de chupar o dedo, recusar alimen-
técnica, que ali se impôs imediatamente. Na França, onde os psicólogos cEni- to, se coçar freqüentemente". Ela, enfim, obteve "sucessos promissores" para
1 cos _puderam integrar a psicanálise em sua formação e na sua prática, foi a "comportamentos que causam problemas no seio da família, tais como o fato
partn de certos serviços psiquiátricos do C.H. U. que as terapias comportamen- de fazer perguntas incessantemente, condutas de oposição, rivalidades entre
1
tais começaram sua implantação. Assim, na antiga clínica de doentes mentais irmãos e irmãs e, fora da fam11ia, a tendência a se isolar, o mutismo eletivo, a
de Santa Ana, onde a clorpromazina f01 descoberta, tiveram lugar simultanea- hiperatividade e as dificuldades nos contatos com os colegas. " 41
mente pesquisas avançadas de bioquímica e experimentos de modificação Compreende-se que essa panacéia seja atualmente a tecnologia médico-
comportamental, assim como pesquisas para proceder a diagnósticos psiquiá- psicológica mais empregada nos Estados Unidos. Seu menor mérito não é per-
tricos pelos meios da informática. mitir indicações em todos os casos sem que tenhamos que colocar problemas
A terapia comportamental seduz, por sua simplicidade, sua eficácia, e metafísicos ou políticos sobre o bom fundamento dessas intervenções. É até
também a amplidão de suas intoxicações. Uma fobia é reduzida em algumas recomendado economizar essas questões: o positivismo, enfim, deixado livre
li sessões, argumento que é oposto aos comprimentos e aos resultados aleatórios para se mirar no espelho da eficácia.
das psicoterapias. As terapias comportamentais podem ser aplicadas nos mais Na França, só estamos no começo do processo de implantação dessas
* diversos locais institucionais. Nos Estados Unidos, foram adotadas primeiro
nas instituições, hospitais psiquiátricos, prisões, "comunidades terapêuticas"
técnicas. Como para a orientação bioquímica, trata-se no momento menos de
ocupar o terreno do que colocar no ponto uma fórmula cujo sucesso depen-
para toxicômanos, etc., onde a totalidade das condições do meio ambiente derá de um certo número de fatores em um jogo que ainda não está parado.
pode ser controlada. Mas elas podem também se adaptar a qualquer tipo de Também os principais sítios de implantação são ainda espaços de experimen-
relação terapêutica aí compreendida, e cada vez mais no quadro de um "con- tos como o serviço hospitalar-universitário de saúde mental e de terapêutica de
trato" parecido com o da psicoterapia, que excluem assim em seu próprio ter- Paris-Cochln, o laboratório de psicologia médica de Lyon, o Instituto Marcel-
reno. Elas encontram aí possibilidades extraordinárias de difusão. É assim que Riviêre, mais alguns serviços psiquiátricos ainda raros como o hospital Breton-
um terapeuta pode definir com os pais um programa de retificação do com- neau de Tours ou o hospital psiquiátrico de Monfavet, perto de Avignon. Mas
portamento para uma criança difícil, e estes o aplicarão na vida diária, tanto uma primeira via de implantação séria se desenha em direção da infância defi-
quando a criança brinca como quando come, ritmando toda sua existência ciente. Voltaremos logo, a propósito da lei de 1975 "em favor das pessoas
pelas punições e as recompensas pudicamente chamadas métodos opostos e deficientes", sobre a tendência a uma certa "despsiquiatrização" que a inspi-
condicionamento operante. rou, animada pelas associações de pais de deficientes. Algumas delas se incli-
Possibilidades de expansão literalmente infinitas, levando em conta a nam a ver na modificação comportamental um método objetivo e eficaz para
gama ~as i~~icações para as quais esta técnica afinna sua competência Um melhorar pelo condicionamento os déficits motores ou intelectuais dos defi-
relatóno oficial da American Psychiatric Association caracteriza assim as si- *Defecação involuntária de criança de mais de três anos que não apresenta problema or-
gânico. Pequeno Larousse Ilustrado, 1982.
40 Cf. WOLPE, J. Prática da terapia comportamental, Trad. francesa. Masson, 41
1975; Task Force Report from the American Psychiatric Associatíon. Behavior Therapy in
SKINNER, B.F. Beyond freedom and dignity. New York, Harper, 1971. Psychiatry. Washington, 1973.

96 97
cientes e içá-los a um nível de performances que os torne capazes de um míni- co", como já dizia Jean-Paul Falret na metade do século XIX, se impõe quase
mo de vida social e profissional. É assim que as associações de pais de defi- sempre numa profissão em que é preciso fazer fogo com qualquer madeira.
cientes como a União Nacional de Pais de Crianças Inadaptadas (U.N.A.P.E.I.) Assim, não se pode imputar unicamente à falta de exigência intelectual, que
estão no momento vivamente interessadas nos programas que se esboçam, e creditamos bem aos anglo-saxões a existência dessas espantosas sínteses, entre
cuja aplicação começa em algumas instituições particulares. 42 psicanálise e terapia comportamental, por exemplo, que já funcionam nos
É fato que a terapia comportamental promove uma despsiquiatrização Estados Unidos há muito tempo. Na França também a psicanálise vai se en-
real. "Tratando o sintoma" ela não se preocupa mais em encontrar uma etio- contrar cada vez mais acuada às posições defensivas. Em vez de constituir o
logia para esta ou aquela deficiência. Também não é mais somente a esfera dO modelo ideal da relação terapêutica, ela vai verossimilmente refluir para "in-
patológico que está em vista, mas mais geralmente a diferença em relação a dicações" mais específicas e deixar o campo livre para novas composições.
normas de conduta, na proporção em que incomoda, intolerável ou intole- É pouco provável que as abordagens objetivistas venham bruscamente
rada, inaceitável ou inaceitada, pelo meio ambiente ou pela própria pessoa. É ocupar todo o terreno. A hipótese mais verossímil no imediato é antes a do
uma técnica de retificação pedagógica mais do que tratamento médico, e que triunfo de um ecletismo que procurará sua caução na eficácia de seus proce·
não comporta, a partir de sua própria tecnologia, nenhum limite à sua expan- dimentos. Más nessa perspectiva as orientações que se enfeitam com os pres-
são indefinida. Já estamos na esfera da "terapia para os normais" (capítulo tígios da cientificidade têm uma carta decisiva para jogar. Em nome do sério,
4), mas em Sua versão mais objetivista. real ou suposto de seus resultados, em afinidade com o ar do tempo que prega
o retorno ao realismo, dotadas de um forte potencial mobilizador e apoiadas
Um novo paradigma em tecnologias avançadas, elas vão pelo menos quebrar o jogo das antigas
Tratando-se da modificação comportamental ou mais geralmente de hegemonias. Sem pretender deduzir o que será o futuro, é pelo menos possí·
todas as abordagens objetivistas dos males psíquicos, deficiências ou anoma- vel prever com uma quase certeza o que ele não será. Não será mais dominado
lias, poder-se-ia notar um atraso da França em relação a outras sociedades pelas grandes sínteses que tentaram se impor nos dois últimos decênios em
industriais avançadas, em particular os Estados Unidos. Pelo menos tanto . redor da psiquiatria social e/ou da psicanálise confrontando as técnicas de
quanto uma carência em meios, parece que seria preciso procurar sua razão cura com objetivos políticos ou existenciais.
no vigor desse duplo imaginário, psicanalítico e político, que dominou o É a própria mira da marcha terapêutica que aparece assim profunda-
último decênio. mente transformada. Em vez da pesquisa de uma totalidade sensata - encon.
A psicanálise, em particular, representou e representa ainda o papel de trar, além do episódio patológico, o sentido de uma trajetória individual em
freio ao desenvolvimento dessas abordagens. Se a escuta é a atitude terapêu- relação à história da pessoa ou o sentido de sua inscrição em seu meio social -
tica por excelência, e o esforço para instituir uma relação autêntica a forma se perfila uma totalidade nova, que não seria mais do que a soma de tantos
paradigmática da ajuda a outrem, as abordagens objetivistas são além disso pontos de vista sobre o homem quanto possa existir de saberes positivos que
suspeitas de serem redutoras. Para a maioria dos "trabalhadores da saúde men- a parcelam. Aquela mesmo de que alguns já propõem a fórmula afirmando "a
tal", o essencial da vocação terapêutica passa ainda por um investimento pes- necessidade de uma pesquisa interdisciplinar experimental à qual a física, a
soal, cuja relação psicoterapêutica é a matriz. química, a bioquímica, a fisiologia celular, a neurofisiologia, a farmacologia,
Mas seria perigoso acreditar que essas resistências serão eternas.Já estão a etologia, a psicologia e a sociologia", para citar só essas possam começar a
cedendo. Um certo purismo inspirado pela psicanálise fez admitir por muito trocar suas informações. 43
tempo como indo de si que as abordagens teoricamente opostas são pratica- "Para só citar essas"! Perguntamo-nos em quantos pedaços o objetivis-
mente inconciliáveis. A experiência mostra mais que o "ecletismo terapêuti- mo científico poderá recortar uma pessoa a quem creditávamos, não há tanto
tempo, um inconsciente, uma história e um projeto ...
42
WELGER, Corinne. A cenoura e o bastão, número especial deAutrement, nov. 1980, 43
LABORIT, Henri. "Para uma psiquiatria total... O homem e seu.<; meios ambientes:
que faz o levantamento sobre os começos do processo de difusão das terapias
ensaio de integração bio-neuro-psico-sociológico", Prospectiva e Saúde, 1, prima-
comportamentais na França.
vera de 1977.p. 77.

98 99
lógicos que, autorizando uma dissociação radical entre o diagnóstico e o se
encarregar, faz balançar a prática terapêutica do lado de uma pura atividade
de expertise. O saber médico-psicológico torna-se assim o instrumento de uma
política de gestão di!erencial das populações mais do que o cuidado ( ou, na
versão crítica, de repressão). Na medida em que esta orientação pode se apoiar
ao mesmo tempo em tecnologias altamente sofisticadas como a infonnática, e
numa nova administração da Ação Social reorientada ao redor da prevenção
sistemática dos riscos, ela representa uma das linhas de transformação das
mais novas, mas também das mais inquietantes, que trabalham no domínio
das práticas.

1. DO SE ENCARREGAR À GESTÃO ADMINISTRATIVA

Capítulo 3 A vontade de se encarregar das populações de que têm a responsabilida-


de tão total quanto possível, caracterizou até hoje a tradição psiquiátrica. Ela
A gestão previsível realizou-se primeiro sob a forma frustrada de encerramento: o diagnóstico de
alienação mental equivalia a uma definição completa a um só tempo médica,
jurídica e social do estatuto da pessoa, seu lugar fixado na "instituição espe-
Não existe incoerência em lamentar_que se abandone a referência ao in- cial" garantindo-lhe um tratamento completo, em todo o sentido da palavra,
consciente, depois de ter criticado uma psicanálise que se pretendia a melhor - e, veja-se, freqüentemente por toda a vida. Mas para a psiquiatria moderna
colocada para defendê-la? Não é contraditório pleitear pela salvaguarda de a noção essencial de continuidade de tratamento significa também que a equi-
uma dimensão social, em medicina mental, depois de ter denunciado na psi- pe médico-social, a despeito da diversidade dos locais onde é exercida e da
i quiatria social a tentação de reduzir o social ao psiquiátrico? descontinuidade no tempo do se encarregar, deve assegurar a totalidade das
Não se trata, portanto, nem de renegar análises que visavam ao hegemo- intervenções sobre uma pessoa, das atividades preventivas à pós-cura. É uma
nismo psicanalítico ou psiquiátrico, nem de queimar o que outros adoram. evidência que um paciente ganha sempre e em todas as circunstâncias - no
Mas, se é verdade que uma transformação profunda está se produzindo nesses final, do nascimento à morte - em ser tratado pela mesma equipe? Sem dúvi-
domínios, ela implica também um reexame das posições ocupadas pelos dife- da, diz-se, ele pode assim estabelecer relações "estruturantes" de longa dura-
rentes parceiros no novo campo em via de constituição. Em particular, o itna- ção. Mas é absurdo se perguntar se não poderia ser também mais terapêutico,
ginário profissional precedentemente descrito, alimentado de referências psi- pelo menos em certos casos, poder mudar, escolher, tentar outras relações e
canalíticas e sociais, mesmo ambíguas, está se tornando uma linha de resistên- outras aproximações com outras pessoas?
cia diante da subida de novas estratégias de intervenção que se anunciam sem- Se esta questão nunca foi colocada no meio médico, é porque contradiz
pre sob o estandarte do bem-estar e do interesse das pessoas, mas se consu- o princípio regulador de toda a prática psiquiátrica antiga ou moderna, o para-
mam através da desestabilização do indivíduo e da desarticulação de sua histó- digma da assistência completa. Mesmo a psicanálise não rompeu com essa
ria, pessoal ou social. lógica já que, como todos sabem, a cura marca em longos anos toda uma exis-
[ Pois a ofensiva do objetivismo médico só representa uma tendência, a tência com o ritmo regular de suas sessões.
mais tradicional ou a mais clássica, no seio da nova constelação do positivismo Hoje, no entanto, esse regime contínuo de assistência está a ponto de
conquistador tal qual tende hoje a se impor. Uma orientação diferente se de- cessar de representar o modelo dominante da prática médico-psicológica, e
senvolve, a partir de uma outra transformação dos dispositivos médico-psico- essa situação nova, bem além das mudanças institucionais e tecnológicas que

100 !OI
implica, recoloca em questão o próprio registro da intervenção terapêutica. etc. Mais especificamente (se se pode dizer), "é deficiente a pessoa que, em
~ ~uncionamento da última data das grandes disposições legislativas espe- razão de sua incapacidade física ou mental, de seu comportamento psicoló-
ciais fundadas em critérios médico-psicológicos, a lei votada pelo Parlamento gico ou de sua ausência de formação, é incapaz de prover suas necessidades ou
a 30 de junho de 1975, em favor das pessoas deficientes, exemplifica o que exige cuidados constantes, ou se encontra segregada por sua própria iniciativa,
poder_ia_ const1tmr uma mutação da prática de tratamento: sua transformação ou da coletividade. " 4
em atividade de avaliação. Tais definições são evidentemente pouco rigorosas. Não têm nenhum
caráter operatório, e não comandam como tais nenhuma mediçla particular.
Um novo dispositivo jurz'dico-administrativo Quanto à lei, ela também não define a natureza da deficiência, nem a pessoa
do deficiente. Na ocasião da discussão no Senado, a Ministra Simone Veil
Lei quantitativamente importante primeiro, já que diz respeito, segundo
declarou, aliás: "O governo, nesse ponto, escolheu uma concepção muito
as avaliações, a entre dois e três milhões de pessoas, mais ou menos pela meta-
flexível e muito empírica: será a partir de agora considerada deficiente toda
de adultos e crianças. 1 Que é que permite decidir que uma pessoa é "deficien-
a pessoa reconhecida como tal pelas Comissões Departamentais previstas pelos
te"? A inspiração ideológica da lei se encontra no relatório de um alto funcio-
artigos 4 para os menores e 11 para os adultos, do projeto." 5
nário, François Bloch-Lainé, estabelecido em 1967 a pedido do Presidente
-É deficiente aquele que é definido como tal, por ocasião de sua passa-
Pompidou, então Primeiro-Ministro.
gem diante de uma comissão. Como então funcionam as comissões às quais é
Bloch-Lainé define assim o deficiente: "Dizem-se 'deficientes' ... aqueles
delegado esse JJOder? 6
que sofrem, em seguida a seu estado físico, mental ou de caráter, ou de sua
Existem duas Comissões Departamentais, uma a respeito das crianças,
si:uação social, perturbações que constituem para eles 'dificuldades', quer
outra dos adultos. São compostas essencialmente de representantes das dife-
dizer, fraquezas, servidões particulares em relação à normalidade· esta estando
rentes administrações e serviços concernentes nomeados pelo prefeito. Assim,
definida como a média das capacidades e das oportunidades d~ maioria dos
para as crianças, três funcionários da Educação Nacional, três outros dos servi-
indivíduos que vivem na mesma sociedade. " 2
ços sanitários e sociais da Prefeitura (D.A.S.S.), três representantes da Previ-
A deficiência se recorta na categoria mais vasta da inadaptação. Sempre
dência Social, um responsável dos estabelecimentos de recepção dos deficien·
se~undo Bloch-Lainé, "são inadaptados à sociedade da qual fazem parte as
tese dois membros das associações de pais de alunos e/ou de famílias dos defi-
cnanças, adolescentes ou adultos que têm por razões diversas dificuldades
cientes. Para os adultos, representantes do Ministério do Trabalho e do mun-
mais ou menos grandes a ser ou a agir como os outros. " 3 René Lenoir Secre-
tário de Estado de Giscard para a Ação Social, que fará passar a lei n~ Parla- do de trabalho substituem os da Educação Nacional. Nos dois casos, os repre-
mento e, sobretudo inspirará seus importantes decretos de aplicação, enu- sentantes da administração estão em maioria e têm assento assegurado.
rl As comissões julgam por dossiês, que são preparados por outras comis-
mera uma ampla gama de "excluídos" que representariam mais ou menos
um quinto da população francesa. Achamos aí misturados inadaptados físicos sões ditas, para as crianças, Comissão de Circunscrição pré.escolar e elementar
(2~300.000), débeis mentais (1.000.000), inadaptados sociais (3 ou 4 mi- ou Comissão de Circunscrição do segundo grau segundo a idade da criança, e
lhoes), q~e compreendem ao mesmo tempo crianças desadaptadas, delinqüen- Comissão Técnica. Elas são compostas por um pessoal mais especializado.
tes, tox1comanos, doentes mentais, alcoólicos, suicidas potenciais anti-sociais
' ' 4 LENOIR, René. Osexclufdos. Ed. du Seuil, 1974.

1 5 Diário Oficial, de 4 de abril de 1975, Debates parlamentares, Senado, sessão de 3 de


BLA~C, J acque~ .. "Relàtório feito em nome da Comissão dos negóciós culturais, fami·
h_:'-fes e socirus sobre o projeto de lei n9 951", Assembléia Nacional. Primeira ses- abril de 1975.
sao comum de 1974-75, n9 1.353. 6 Encontraremos um notável dossiê crítico sobre a lei de 1975, graças ao Sindicato da
2
BLOC~-LAINt , Franç01s.
. Estudo do problema geral da inadaptação das pessoas defi· Psiquiatria em Psiquiatria hoje, 32, "Os incluídos". Cf. também V ACHER, Nicole
czentes, a Documentação Francesa, 1969, p. 111. & CHESSEL, Patrick: "O sistema G.A.M.I.N.: o melhor dos mundos". Autrement,
22, 1979, e MASSON, Alain. Mainmise sur /'enfance, Payot, 1980. Para o texto da
3
Idem, ibidem, p. 111. lei e os decretos de aplicação, assim como amplos excertos dos debates parlamen-

102 103
Assim, a Comissão de Circunscrição, presidida por um inspetor da Educação protegidas. 8 É o papel da primeira seção da Comissão, ligada à direção do Tra-
Nacional, compreende em geral o médico escolar, um psicólogo escolar, uma balho. A segunda seção, ligada à direção da Ação sanitária e social, atribui os
assistente social, dois membros da Educação Nacional, instrutores e/ou chefes abonos especiais e pode colocar o deficiente em hospital psiquiátrico ou nes-
de estabelecimento, um representante dos pais dos alunos, um r~pre~e11tar..te sas Casas de Recepção especializadas (M.A.S.) em via de constituição, onde
da Previdência Social, um membro d<;> intersetar infanto-Juvenil psiquiátrico. vegetará até sua morte.
Sigamos uma pista freqüente que, para uma criança, desemboca, a partir
Da doença à deficiência
da escola, a caracterizá.la como deficiente. A lei dá aos chefes de estabeleci.
mentas a obrigação de fazer uma lista das crianças com dificuldades ou retar· Sob essa pesada maquinaria burocrático.administrativa, representada
dos escolares. Um dossiê é constituído, compreendendo informações pedagó-- pelas comissões, qual é o espírito da lei? Uma de suas primeiras característi·
gicas, médicas, sociais e um exame psicológico. Sobre essa base, a equipe edu· cas é unificar sob um mesmo rótulo e fazer depender da mesma instância de
cativa escolar emite uma opinião de orientação sobre a qual a Comissão de decisão casos absolutamente heterogêneos. Primeiro, os deficientes físicos e
Circunscrição vai tomar a primeira decisão. Ela pode reorientar a criança no os deficientes mentais, por exemplo, o cego de nascença e o débil mental. Em
circuito escolar (classes de aperfeiçoamento ou sessões de educação especial). seguida, dentro de cada uma dessas categorias, tipos heterogêneos de diferen-
Ela pode também julgar que a criança é inapta a seguir uma escolaridade nor· ças em relação a um funcionamento normal ou médio, por exemplo, o grande
mal. Nesse caso, transmite o dossiê à Comissão Departamental, que só ela tem oligofrênico e a criança marcada por dificuldades escolares. Ora, se certas defi.
poder de decidir a colocação num estabelecimento especializado até uma du. ciências, sejam físicas, sejam mentais, são dificilmente recusáveis, outras, e
ração de cinco anos, a atribuição de uma alocação especial por fixação de uma elas representam a maioria dos casos apresentados às comissões, pelo menos
taxa de incapacidade, 7 o total acrescido por uma inscrição no fichário depar· no que diz respeito às crianças, dependem de critérios bem menos simples.
tamental dos deficientes. Primeiro, a noção de deficiência coloca em primeiro plano as perfor-
Além da rede desenhada aqui, a partir do sistema escolar (é a principal), mances sociais. Ela depende de uma medida da eficiência do comportamento
a Comissão Departamental pode igualmente ser tomada por múltiplas instân· com pretensão objetivista, a qual se opõe à percepção da perturbação psíquica
cias: os próprios pais ou as pessoas que têm o encargo do presumido deficien· que prevaleceu em medicina mental. O louco pode, finalmente, ser genial; o
te, a Previdência Social, os serviços da D.A.S.S., os responsáveis por estabele· deficiente representa sempre um déficit. Ele remete a um outro modo de pen·
cimentos onde a criança já foi colocada, os médicos que a tratam etc. sarnento e a uma outra tradição além das que constituíram a psiquiatria.
A medicina mental nasceu de uma reflexão sobre o delírio, a crise, a
Para os adultos, o mecanismo é um pouco diferente, já que a Comissão ruptura, o mistério da diferença e da descontinuidade. O próprio. Pinel, que
Departamental (Comissão Técnica de Orientação e Reclassificação Profissio- não é suspeito de desvio antipsiquiátrico, assinala seguidamente seu espanto
nal, C.O.T.O.R.E.P.) tem por função principal elaborar estatuto sobre a locali- diante da descompensação brutal, mas freqüentemente reversível, de doentes
zação do deficiente em função de suas capacidades de trabalhar. Ele pode ser que, diz ele, eram ou serão talvez homens ou mulheres notáveis, até excepcio-
deixado nos circuitos normais de produção (empregos reservados) ou coloca· nais.
do em estabelecimentos especiais, centros de ajuda pelo trabalho e oficinas Certo, a psiquiatria respondeu também à apreensão menos humanista
da loucura em termos de perigo e de violência, a qual representa como a face
de sombra dessa imprevisibilidade que caracteriza a doença mental, através do
tares e de críticas endereçadas à lei, dois números especiais da revista dos psiquia·
tras de exercício particular, Psychiatn·es, 30 e 31. Existe também uma abundante 8 As "oficinas protegidas" são empreendimentos nos quais, mediante algumas adapta·
literatura contestatária, mas freqüentemente inédita, produzida pelo próprio meio
ções, os deficientes permanecem submetidos ao mercado de trabalho. Os Centros
profissional, a partir de 1978, por ocasião do começo da aplicação da lei.
de ajuda para o trabalho (C.A.T.) são organismos de assistência que funcionam ao
7
As tabelas d~ deficientes são estabelecidas em referência a uma lei de 1919 a respeito preço de diárias. Havia recentemente cerca de 1.000 lugares em oficinas protegidas
dos fenmen tos de guerra. A atribuição de uma pensão passa pela assimilação à para 13.000 em C.A.T., mas desde a implantação da lei, esses efetivos crescem
categoria de "grande enfermo". num ritmo rápido.

104 105
temor da passagem ao ato brutal e devastador. Mas nenhuma dessas duas O especialista mascarado
conotações da loucura, a positiva ou a negativa, se reencontra na noção da O fato de que a opção de deficiência se consiga assim, ao contrário de
deficiência. Deficiente é conotado com diminuído, retardado, incapaz, invá- uma concepção tornada dominante nas orientações terapêuticas modernas -
lido, enfermo, mutilado, inferior, às vezes, tarado. pelo menos em sua ideologia, inspirado pelo duplo imaginário psicanalí~ti~o e
A principal linha de reflexão S(?bre o deficiente amadureceu na tradição social, já assinalado - explica por urna ampla parte a oposição quase unamme
de uma certa forma de medicina e de psiquiatria sociais, preocupadas com dos profissionais da saúde à lei de 1975. Assimilando resultados comporta-
problemas do trabalho, da reinserção profissional, da readaptação, da reclassi- mentais que podem remeter à etiologias e problemáticas subjetivas diferentes,
ficação social e da recuperação da mão-de-obra. Foi assim que o primeiro rela- a caracterização em termo de deficiência impede o tratamento diferencial ~ ~
tório na Europa sobre os problemas dos deficientes, o relatório Tominson, foi possibilidade de passar um contrato terapêutico personalizado. Como_ d_1~a
feito em 1943 numa Inglaterra que a guerra conduzia à mobilização de todas uma comissão de psiquiatras, exprimindo sob uma forma brutal a opm1ao
as formas de mão-de-obra possível. y- Se esta tradição visa a incluir mais do geral do meio, "o funcionamento da Comissão Departamental de educação
que excluir, ela o fez banalizando a deficiência sob a forma de um déficit que especial anula a realidade do campo psiquiátrico". 11 Os principais sindicatos
se pode compensar. A atenuação da deficiência se obtém, através dos proces- de psiquiatras depositaram, aliás, um recurso no Conselho d~ 1:-_stado ~obre a
sos de aprendizagem, que diferem profundamente da terapia. legalidade do decreto de aplicação, instituindo essas comissoes. Alem d~s
Em relação à doença mental, que é um acontecimento mesmo prolon- contradições observadas entre o funcionamento das comissões e certas exi-
gado, e só no extremo crônico, a deficiência se situa assim do lado do fixo, do gências terapêuticas ou deontológicas (o segredo profissional, por exemplo),
estado permanente, do estatuto definitivo, mesmo se acrescentamos sempre, ele sublinha que, na pesada máquina administrativa instalada pela lei, o lugar
como se deve, que "é preciso deixar lugar às possibilidades evolutivas". Estas do psiquiatra aparece submerso em meio a múltiplos funcionários e represen-
podem, no melhor, significar reparação, na acepção mais ortopédica da pala- tantes de instituições diversas. Sua presença nem mesmo é obrigatória nesses
vra. Nesse sentido, o discurso da deficiência promete uma verdadeira despsi- organismos reais de deciSão que constituem as Comissões Departamentais.
quiatrização, pois mesmo se uma ação sobre o déficit é empreendida, é pensa- No entanto, em vez de contabilizar o que falta à lei em relação às exi-
da em termos de exercícios de desenvolvimento, de melhora de performances, gências de uma prática terapêutica, tal qual a concebem a maioria dos pro-
mais do que em termos de tratamento, e ainda menos de escuta, de resposta a fissionais, pode-se indagar o que ela inaugura em relação à definição clássi-
um pedido de cuidado, de atenção ao sofrimento psíquico, de levar em conta ca do papel desses especialistas. Percebe-se então que, mais do que uma anu-
à problemática da pessoa, etc., em suma, de todas as noções que se tornaram lação do ponto de vista médico-psicológico, assistimos a um redesdobramen-
palavras-chave da psiquiatria moderna. Trabalho para "' adulta;, resultados to do mandato que ele assume.
escolares para as crianças constituem o duplo horizonte de valores de eficiên- Embora ela opere uma certa despsiquiatrização orientada freqüente-
cia, a partir dos quais a deficiência se inscreve como falta. O que se esconde mente para modos não psiquiátrica; de responsabilização,' 2 o papel do diag-
atrás da deficiência não é a irrupção do patológico, mas o reino da desigual-
filhos de imigrados são proporcionalmente muito mais numerosos a se tomarem
dade. Desigualdade. que remete à deficiência de uma constituição, ou desi-
"~deficientes" do que os filhos de fami1ias auto-suficientes.
gualdade adquirida na luta pela vida concebida como um percurso de obstá-
11 Congresso da Comissão das Croix-Marines, "Relatórios da Comissão", A Informação
culos, mede sempre uma inferioridade. A deficiência naturaliza ao mesmo
Psiquiátrica, fevereiro de 1972, p. 203. Cf. também em Psiquiatrias, 30, o resumo
tempo a história da pessoa, fazendo de sua falta um déficit e a his.tória social, de numerosas tomadas de posição do meio profissional hostis à lei.
assimilando as performances requisitadas a um certo momento histórico a
12 Além do fato que permitia uma racionalização na distribuição dos serviços e abonos, a
uma normalidade "natural". 1º
lei de orientação foi primeiro bem acolhida pelas fami1ias, por essa razão. Contra a
9 VEIL, Claude. Deficiência e sociedade. Flammarion, 1968. p. 21. tendência da psiquiatria moderna, a tornar a deficiência psicológica, com o que
isto comporta de culpabilizante para as fam11ias, ela fazia esperar que a deficiência
10 Ê por isso que é impossível distinguir, em rigor, o deficiente de certas formas de desa·
ia ser tratada como um dado a reduzir, ou pelo menos a melhorar, pelo desdobra-
daptação social. Empiricamente, isto se traduz notadamente pelo fato de que os mento de meios objetivos e de incitações materiais.

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nóstico médico-psicológico continua determinante no quadro da lei As Co- gações sociais a cargo do empregador, sem mesmo falar do fato de que o
missões Departamentais de fato, não fosse por causa do número de casos de exercício dos direitos sindicais parecerá incongruente em instituições assim fi-
que tem de tratar, funcionam quase à maneira de câmara de registros ou de lantrópicas. Em relação ao sistema escolar, vê-se também o interesse que pode
oficialização das comissões especializadas. Julgam baseadas em dossiês elabo- apresentar o fato de declarar deficientes os que assim poderão sê-lo para seu
rados por técnicos. É nesse nível que o papel do especialista do domínio médi- funcionamento normal.
1 co-psicológico é essencial, mesmo se ntimericamente minoritário. É de fato o Que não se pense então que a vontade dos profissionais, para enraizar
único a propor a referência a um saber científico. O pessoal da Educação Na- um tal desvio de sua prática, poderia constituir um freio suficiente à realiza-
i-'
cional, por exemplo, traz fatos que representam desvios do comportamento ção dessas eventualidades. Eles são eles mesmos, presas de uma mecânica que
em relação a uma norma social: retardo escolar, agitação em classe, etc. A ca- não podem dominar. Um texto escrito por vigorosos oponentes à lei de orien-
1 tegorização médico-psicológica faz disso uma dimensão da pessoa: apresentar tação exprime assim a propósito de sua presença na Comissão de Circunscrição
1 retardo toma-se ser débil, dar sinais de hiperatividade torna-se problema de para crianças: "De fato, encontramo.nos num tal tecido de contradições que
caráter, ter graves dificuldades de contato se traduz por ser psicótico ou autis- nosso papel dentro da Comissão se resumia a ser espectadores embaraçados de
ta. A referência ao saber possui uma função legitimamente indispensável na uma manipulação de ponteiros (mais do que de uma real orientação pedagó-
medida em que dá uma caução científica a um julgamento normativo. gico.tecnocrática). Vamos, aliás, compreender bem ligeiro que só nos pediam
O ponto aqui não se atém ao caráter freqüentemente aleatório e impre- isso, e que ao que se visava em nossa participação não passava do lugar sim-
ciso de tais etiquetagens: é o fato de todo diagnóstico. O elemento novo, é bólico que ali tínhamos ( ... ). Como, à vista de um dossiê de três ou quatro
que o diagnóstico é completamente dissociado da responsabilização. O pro- folhas, pode-se fazer uma idéia da história de uma criança, de sua personali-
fissional da saúde mental opera assim literalmente como um especialista, dade profunda, de seus problemas? Aliás, o dossié não é constituído por pes-
quer dizer, como alguém cujo julgamento é objetivado como peça essencial de soas que estão "bem localizadas", que conhecem a criança? A partir de quais
um dossiê, sobre o qual os que decidem, em seguida, se apoiarão para fundar critérios emitir uma opinião contrária à deles, sem falar do aspecto descortês
seu próprio julgamento que, este, chegará às opções práticas. e, digamos claramente, da suspeita de incompetência que deixaria planar uma
Um tal uso da psiquiatria não é sem precedente: diante dos tribunais, opinião contrária'!( ... ) O silêncio constituiu o grosso de nossa intervenção na
por exemplo, a expertise é tomada como elemento de apreciação num proces- Comissão Consultiva. ( ... ) De fato, assistíamos silenciosos ao processo impla-
so de decisão, do qual a conclusão prática escapa ao especialista. Mas, além de cável do aparelho escolar em seus mecanismos fundamentais de rejeição. " 13
que, uma expertise no senso estrito pode se discutir como tal, e, por exemplo, A mesma equipe descreve em outro lugar a função, apesar de tudo indis-
suscitar uma contra-expertise, o que não é o caso aqui. O que é objeto de ex- pensável, desse "lugar simbólico": "Posicionada assim numa função que não é
pertise no quadro da lei de orientação de 1975 não o é da ordem do delito, nem mais nem menos a de expert, ele (o psiquiatra) traz a caução pseudocien-
mas de uma distância em relação à norma. Não existe nenhum código para as- tífica que justificará o bem fundado da lei. Solicitado como expert, não lhe é
sinalar limites a tais avaliações. Elas medem simplesmente uma relação a mo- assim dado nenhum meio de funcionar como tal (seus certificados não po-
delos sociais dominantes e· ainda por cima mutantes. Pode-se imaginar, por dendo ser considerados como objeto de expertise). Pesa na comissão com o
exemplo, que um crescimento das exigências do sistema escolar aumente peso de um expert, mas não "expertisa' nada.( ... ) Expert tanto mais temível,
ainda o número de seus desadaptados e, por aí, crianças para quem se coloca- porque não diz seu nome, expert 'mascarado', suposto capaz de apreciar
rá a questão da deficiência; ou que haja intensificação dos critérios da· produ- com alguma coerência o que ele, por outro lado, se esforça por tratar, goza de
tividade normal, multiplicando o número de adultos que devem trabalhar em uma impunidade tanto maior, porque nenhuma contradição é considerada.
meio protegido. Tais "oficinas protegidas" criam-se atualmente a um ritmo rá-
pido e está previsto que possam mesmo ser organizadas pelas próprias empre-
sas. Estas poderão assim gerar a produtividade dos deficientes, em condições 13
"Resumo de uma experiência de participação nas Comissões de circunscrição por
tanto mais interessantes que a lei fixa para esses trabalhadores um teto de re- membros de uma equipe de intersetar de psiquiatria infanto-juvenil", documen-
muneração inferior ao dos trabalhadores normais e uma diminuição das abri- to interno de um intersetar do Essone, inédito.

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Assim, sagrado deus ex machina pela lei, ele é, ao mesmo tempo, seu execu- A constituição çl.os perfis
tante mais alienado. 14
Quem detém o poder, quem faz a lei por ocasião das decisões que as Seja o que for que se pense desse processo, ele não é mais da atualida-
Comissões tomam? Primeiro, funcionários sob a autoridade direta do prefeito, de. É preciso, a partir de agora, encarar o papel social cada vez mais impor-
e que exercem um mandato administrativo. No entanto, de maneira menos tante que assume a medicina mental independentemente da cobertura do tra-
evidente, mas também essencial, esse pro-cesso de decisão não pode funcionar tamento, quer dizer, a partir de intervenções que são expertises no senti.do
sem a referência ao saber médico-psicológico. A presença desses especialistas amplo da palavra e não tratamentos. A relação tratamento (que seja julgada
não é uma sobrevivência ou uma inadvertência Embora aparentemente aban- terapêutica ou "repressiva") cessa de ser o elemento determinante da prática.
donados no quadro de uma relação de força, são indispensáveis para fazer des- O psiquiatra aparece cada vez mais como um especialista que marca um desti-
sa relação de força uma relação de direito. no sem modificar uma situação: no final, como o auxiliar de um computador
O papel do saber psiquiátrico é assim de servir de fundamento de legi- que ele alimentaria com dados, distribuídos em seguida em circuitos adminis-
timidade e de correia de transmissão num funcionamento institucional, cujo trativos, independentemente de qualquer visão terapêutica. Desse ponto de vis-
domínio lhe escapa completamente. Na aventura, sua vocação terapêutica ta a função de controle social da medicina mental não teria mais g-rande coisa
perdeu-se. A oposição a uma "má" administração, cujos objetivos se oponham a ver com uma coerção exercida diretamente: seria um simples instrumento
aos do humanismo médico, sempre funcionou um pouco à maneira de um mi- de gestão das populações, que opera sem modificar por si mesmo as pessoas
to, através de toda a história da psiquiatria. Mas, outrora, este adversário era visadas. As intervenções médico-psicológicas seriam assim, antes de tudo, um
representado pelo diretor não médico do hospital, que se podia freqüente- meio de calibrar diferencialmente categorias de indivíduos para assinalá-los a
mente seduzir, ou pela argola de regulamentações minuciosas, que se podia vi- lugares precisos. O diagnóstico expertise representaria o estágio "'científico"
rar. Pela primeira vez, poderia bem ser que a dicotomia cuidado-administra- de um processo de distribuição das populações em circuitos especiais, educa-
ção ou tratamento-prazo a injunções começasse a representar uma lapidação ção especial ou trabalho especial, por exemplo. Legitimação por um saber ( ou
estrutural, inscrita nessas formas novas de práticas. Dizendo de outra maneira, um pseudo-saber) de decisões que arbitram entre valores essenciais e levam a
poderia bem acontecer que a medicina mental assumisse a partir de então, expertise à altura de uma nova magistratura dos tempos modernos.
uma função de auxiliar em relação a uma política administrativa completa- Esta função das intervenções médico-psicológicas foi várias vezes anteci-
mente definida pelas exigências de gestão. pada, através das relações que a psiquiatria e a psicologia mantiveram com ou-
tros aparelhos como a Justiça ou a Educação nacional, em relação às quais
2. A GESTÃO PREVISÍVEL DOS PERFIS HUMANOS elas desempenharam o papel de auxiliar, permitindo aos representantes de ou-
tros instituições patrocinar decisões tomadas em função de seus próprios cri-
Uma tal transformação da medicina mental pode-se interpretar de uma térios. 15 Poder-se-ia também notar que as Comissões Departamentais atuais só
só vez como continuidade e ruptura em relação a sua história. A lei de 1838 já fazem, em muitos aspectos, sistematizar o que as antigas Comissões Médico-
permitia ao psiquiatra desempenhar um papel de expert, mesmo se este estava Pedagógicas da Educação realizavam de um modo mais artesanal, quando ori-
dissimulado pela contrapartida terapêutica que se imaginava justificar sua in- entavam as crianças indesejáveis para fora do circuito escolar normal. Portan-
tervenção. Ê, aliás, na base da contestação de um tal amálgama entre funções to, a partir da lei de 1975, esse papel se reveste de um caráter mais sistemático
administrativas e funções terapêuticas que se desenvolveu a denúncia do e, sobretudo, é dotado de uma infra-estrutura administrativa e tecnológica no·
poder psiquiátrico, acusado de reprimir ou de neutralizar, sob o pretexto de
15 Uma parte crescente da justiça dos adultos e a quase totalidade das crianças vé"m de
tratá-los, comportamentos socialmente indesejáveis.
uma avaliação médico-psicológica da personalidade do delinqüente. Georges Can-
ghuilhem assinalava já em "O que é a psicologia?" o peso dessa "prática generali-
zada de expertise, no sentido amplo, como determinação da competência e despis-
14 "Reflexão sobre a lei de orientação dos deficientes e sobre o papel dos psiquiatras em tamento da simulação". (Estudos de história e de filosofia das Ciências, Vrin,
suas diferentes instâncias", id. 1968, p. 376).

110 1 II
va suscetível de dar a essas operações um alcance bem mais importante do que grupos inteiros, a partir da operação que consiste em lhes definir um perfil di-
antes. ferente. Há de fato aqui um elemento profundamente inovador em relação às
Dando um diagnóstico de deficiência, o técnico objetiva diferenças em técnicas clássicas de exames, de arquivamento, de punção de conhecimentos,
relação.a uma combinatória de performances, requisitadas no nível da escola- de acumulação de informações, etc. Estas se contentavam em registrar dados
ridade ou do trabalho, que são atualmente os dois principais setores de locali- para que o poder político-administrativo pudesse deles se servir. Mas, aqui, a
zação de anomalias. A partir dessa discriminação, no sentido literal da palavra, Comissão Departamental, instância administrativa, tem poder de decisão sobre
o indivíduo submetido à expertise se põe a transitar num circuito especial. a própria constituição dos perfis. Não é exagero dizer que ela define a defi-
Assim, na rede de deficiência. Se não se sabe muito a que corresponde, clini- ciência e que essa definição tem função constitutiva, na medida em que retira,
camente falando, a deficiência, e se estamos ainda mais embaraçados para tra- numa população ainda não diferenciada, um subconjunto, para o qual se põe
tar os deficientes, por outro lado, essa etiqueta coloca a pessoa em um percur- a existir uma rede especial.
so social bem balizado. Não é absurdo admitir outros perfis diferenciais, aos Assim se esboça a possibilidade de uma gestão previsível de perfis huma-
quais corresponderiam séries homogêneas de abonos sociais programáveis an- nos.18 Até o presente, o planejamen.to social repousou essencialmente na de-
tecipadamente. Os "superdotados", por exemplo, apresentam em positivo fmição de objetivos sócio-econômiCos, a partir da programação dos equipa-
16
exatamente as mesmas características objetivas que os deficientes. Também mentos. A racionalização, a coordenação, os redesdobramentos, etc., visam a
esboça-se para eles igualmente um circulo social especial, que consistiria em modificar a estrutura dos empreendimentos e dos estabelecimentos, com a
maximizar suas oportunidades de se tomarem as futuras elites. Mas, mais ge- carga para o pessoal de seguir e se adaptar a essas mudanças com todos os ris-
ralmente, toda diferença, a partir do momento em que é objetivada, pode dar cos de turbulência individuais e coletivos que comporta um tal empirismo. A
lugar à constituição de um perfil. programação das populações seria a contrapartida lógica de um planejamen-
to conseqüente, mas ela é mais difícil de ser realizada por razões a um só tem-
Da programação dos equipamentos à das populações po técnicas e políticas.
No entanto, com a informática, torna-se possível constituir fluxos de
Os especialistas médico-psicológicos poderiam assim constituir, para in- população, segundo não importa qual critério de diferenciação, em particu-
divíduos para os quais objetivariam a diferença em relação âs normas, os mo- lar as anomalias físicas ou psiquícas, os riscos devidos ao meio ambiente, às
dos de programação análogos aos que o sistema escolar promove para os indi- carências familiares, o nível de eficiência social, etc. Basta reunir duas con-
víduos normais: atestar um nível de performance ao qual correspondem cir- dições: dispor de um sistema de codificação bastante rigoroso para objetivar
cuitos franqueados antecipadamente na textura social. O rótulo de deficien- essas diferenças; darem-se os meios de inventariar sistematicamente todas as
tes seria essa espécie de diploma ao contrário, que dá, senão direitos, pelo me- pessoas que compõem uma certa população. O saber médico-psicológico pro-
nos um estatuto, um lugar assinalável na estrutura social. porciona um código científico de objetivação das diferenças. Quanto à pre-
Nessa lógica, a rede da deficiência poderia contribuir a distender a de- ocupação de exaustão, ele encontra o meio de se realizar com o exame siste-
manda sobre o mercado de trabalho, da mesma maneira que poderia sanear a mático das populações. O resto, quer dizer, o fato de abonar a esses indiví-
escola distribuindo em circuitos menos exigentes aqueles cujo perfil foi cer- duos constituídos em fluxos estatísticos um destino social homogêneo, é uma
tificado não conforme. Já se observam transferências do mundo normal ao do questão de vontade política. Até o presente, tais possibilidades tecnológicas
trabalho "protegido". 17 Mas é teoricamente possível ir mais longe orientando
revogação da lei de orientação, mimeo. pp. 4 748: itinerário de uma manobra víti-
16 Um dos primeiros psiquiatras na França, a se interessar pelos problemas da deficiência, ma de um licenciamento coletivo que, depois de ter trabalhado normalmente du-
já fazia desde 1968 a pergunta: "Que fazemos pelas crianças desadaptadas porque rante onze anos e não reencontrando emprego, foi colocado, sem dúvida definiti-
superdotadas?" (VEIL, Claude. "Deficiência e sociedade". Op. cit. p. 111. vamente, numa "oficina protegida".
17 Cf. por exemplo: "Testemunho: como transformar um desempregado válido num defi- 18 Cf. FOUSSET, J. A orientação das leis e a direção da história. Psiquiatria Hoje, 32,
ciente produtivo" pelo Coletivo de ação e de coordenação dos deficientes para a jan. 1978, e MASSON, Alain. "Intervenção na infância". Op. cit., cap. IV.

!12 113
permanecem subempregadas. Mas existem sinais alimentando o temor de que que poderá ser oficializada, por exemplo, por ocasião da passagem diante da
possamos ir muito mais longe. Em particular, dois programas em realização Comissão Departamental para adultos (C.O.T.O.R.E.P.), para a localização
visando à infância já desenham o que poderia ser uma gestão perfilada do con- num Centro de auxílio para o trabalho, depois, eventualmente num estabele-
junto da população. cimento para deficientes da terceira idade. Desenho pré-progr~ado de uma
existên~ia paralela, na qual um risco individual inscreveu-se como a marca que
Mais vale prevenir do que remediar detenmna as grandes opções da vida.
. Essas disposições pareceram tão perigosas que se chocaram com a opo-
O sistema de Gestão Automatizada em Medicina Infantil (G.A.M.I.N.) sição de um certo número de grupos contestatários. Sem sucesso até que a
diz respeito a todas as crianças, a partir de seu nascimento. Os dados recolhi- c01~issão "Informática e Libertados", cinco anos depois do começo' daimplan-
dos para os exames médicos obrigatórios (no 89 dia, no 99 mês e no 249 taçao do programa G.A.M.I.N., recomende sua supressão ou, pelo menos,
mês) são sistematicamente tratados pelo computador. Permitem estabelecer uma reforma profunda do sistema que asseguraria o anonimato do tratamen-
"fichas prioritárias" assinalando as crianças "com riscos". O risco é definido to dos dados. A data dessa decisão (junho de 1981) permite esperar que uma
pela presença de um ou de uma associação de critérios, uns de ordem médi- nova orientaç:ão política comece a levar a sério as ameaças para os libertados
ca,1 outros de ordem social. É assim que uma malformaç_ão, o mau estado de que carteg~ tais dispositivos. Mas, para fazê-lo, não basta a opinião tardia
saúde da mãe, abortos anteriores, etc., representam fatores de risco. Mas tam- de uma corrnssão sobre um elemento particular de um conjunto coerente. É
bém que a mãe ou quem recebe o salário-fam11ia seja solteiro, menor, de na- de fato uma política sistemática que, depois de alguns anos, promove esse
cionalidade estrangeira, operário(a) agrícola, empregada, manobrista, apren- modelo de gestão tecnocrática das indiferenças.
diz, estudante, militar do contingente, sem profissão, etc. Um representante
dos serviços sociais visita a fanu1ia para confirmar ou não a existência do ris- . ,~ª mesm_a lógica, o sistema de Automatização Departamental da Ação
co. Uma ação dos serviços médico-sociais pode então tudo desencadear. Samtana e Soc1_al (A.U.D.~.S.S} ficha as crianças (720.000, atualmente) que
Esse dispositivo visa, diz-se, a assegurar uma detecção sistemática e rápi- d:pendem da AJuda Social a Infancrn. A termo, é previsto para alojar informa-
da de certos riscos. Ê duvidoso, portanto, que a informatização do processo çoes sobre todas as pessoas que se beneficiaram a um ou outro título dos ser-
permita concretamente ganhar tempo. A ida e volta das informações do médi- viços soci~s. Figuram no fichário informações como o código do motivo do
co examinador ao serviço departamental poderia de fato ser curto-circuitada abono (cnança não escolarizada, encarcerada, etc.), o código do motivo de
pela intervenção direta do primeiro, em caso de urgência. Por outro lado, d~s~daptaçã~ (perturbações motoras, sensoriais, mentais, doenças crônicas), 0
como está expresso na exposição de motivos, o tratamento dos dados em ní- cod1go da ongem do abono Guiz, trabalhador social, serviços da medicina in-
vel departamental e nacional permitirá conhecer a incidência real das doenças fantil, etc.).
infantis e programar os equipamentos e pessoal necessários à abordagem des- Essas crianças recebem uma ajuda financeira por intermédio da famfüa
ses problemas. ou então são colocadas em fami1ias receptoras ou em estabelecimento ou en:
Um tal dispositivo realiza essa forma particular (ou esse desvio) da pre- tão ainda colocadas sob a vigilância dos serviços da A.ção Educativa e~ Meio
venção, que é o resultado sistemático. A eventual intervenção visa a indiví- Aberto (A_.E.M.A.). Constituem uma população sociologicamente bem simpli-
duos pré-selecionados, fora do contexto em relação ao meio ambiente, e eco- ficada. Mais ~e. um terç_o entre eles, por exemplo, são filhos de desempregados,
nomiza uma ação preventiva geral sobre o meio. Mas a operação permite tam- de subproletanos ou b1scateiros, e quase 60% dos assumidos provêm de difi-
bém constituir um fichário geral das anomalias. Ela desprende esse perfil in- culdades de ordem familiar ou econômica. 19
dividual que desenha uma rede social. Assim, antes do revelador da escola, fa- O sistema A.U.D.A.S.S. corta assim o universo familiar em dois as fa-
tores de deficiência terão sido detectados que farão depender alguns indivi- mílias "normais", quer dizer, as que não fazem história, ou cujas histórÍas não
duas da Comissão Departamental prevista pela lei sobre os deficientes. O sis- 19
tema G.A.M.I.N. situa-se na vertente da lei de orientação. Opera uma primei- Ministério ~a Saúde, A prevenção das desadaptações sociais, estudo de R.C.B., Docu-
mentaçao francesa, 1973.
ta triagem, que para alguns desenha pon tilhadamen te o perfil da deficiência,

114 115
chegaram aos serviços sociais, e as que representam um outro tipo de riscos, não significa anulação: a referência a um código médico-psicológico permane-
além dos da rede da deficiência, embora alguns critérios se recortem, e que o ce um momento indispensável na constituição do processo. Mas o técnico apa-
itinerário social das pessoas seja freqüentemente recuperado. Que a ajuda so- rece como um simples expert, quer dizer, ele estabelece o perfil sem do-
cial à infância (a antiga Assistência Pública) representa uma rede aparecia des- minar a rede. Cava-se assim uma divisão do trabalho entre os que constituem
de sempre através do destino freqüente çl.os "filhos da Assistência", essas tra- os dossiês e os que decidem, os que tratam e os que gerenciam.
jetórias da infelicidade pelas quais as crianças tornadas adultas reproduzem Tal evolução não teve nada de irracional num universo político-social
a situação de partida e procriam por sua vez crianças para serem assistidas. onde reinam enarques. * altos funcionários e outros representantes eficazes de
Mas esses casos representam, a partir de agora, uma população estatística um poder cujo modo de ação se fez cada vez mais oculto. Simplesmente, ela
objetivável, com base em critérios precisos. Eles engordam a onda diversifica- quebra a ambição sintética sobre a qual a psicanálise clássica tinha vivido e
da de todos os que correm o risco de serem estigmatizados por suas diferenças que a psicanálise não tinha repudiado: fazer do olhar (ou da escuta) que de-
e que poderíamos chamar, permitindo-nos um neologismo, os anomálicos. De- tecta um sofrimento e do ato que se esforça de a ele responder as duas faces
pois dos loucos, os delinqüentes, os deficientes, os casos sociais e outros des- de uma mesma operação. É significativo que tenha se desenrolado, nestes últi-
viados diversos, eis um novo conjunto, mais extenso, de contornos esmaeci- mos anos, nos meios impregnados de cultura psicanalítica, um debate sobre ai
dos, de indivíduos vocacionados para uma vigilância especial, que pode de- questão de saber se seria preciso ou não curar, sem que se tenha dado conta
sembocar num tratamento especial. de que, num número crescente de situações, o problema nem se colocava mais.
Ora, o que é uma anomalia? Só pela colocação do sistema G.A.M.I.N., Certo, a pessoa suspeita de sofrer de alguma anomalia, deficiência ou doença,
em 1976, 46,7% dos recém-nascidos da região parisiense, seja 16.130 crianças, contin1:1a a dever ser "vista" pelo especialista. Mas em numerosos casos, ela
são assinaladas "de risco". 20 Estamos longe da proporção que se poderia ori- cessa de ser "seguida" por ele. É um outro agente que, a partir de então, se
ginar de doenças hereditárias, de pesadas deficiências físicas ou mentais, quem encarrega dela.
sabe condições econômicas ou sociais excepcionalmente desfavoráveis, que
poderiam exigir uma ajuda especiai. Por exemplo, 15% do que é bem preciso
chamar crianças suspeitas o são simplesmente porque nasceram de mães sol- 3. A NOVA POLfTICA SOCIAL
teiras. A quem podem servir tais avaliações, e quem delas pode se servir?
Sempre é malvisto fazer tais perguntas; fica-se logo sob suspeita de pro-
Esta linha de transformação não recobre evidentemente todo o campo
cesso de intenção. Não pretendemos certamente que esses dispositivos te-
da terapêutica. Neste momento, aproximações artesanais e métodos "científi-
nham-se inseri to em uma política, da qual um poder maquiavélico teria sido o
cos" nela estão concorrendo. É particularmente nítido no domínio da infân-
instigador. Mas é um fato que desenham em sua coerência uma política possí-
cia desadaptada, vasto consórcio onde equipes pedagógicas, equipes sociais e
vel, que consistiria, por exemplo, em ventilar populações em função de exigên~
equipes médicas, serviços de tratamento a domicílio, dispensários, internatos
das econômicas, a fim de realizar com os homens uma programação-planifica-
ou externatos médico-psicológicos, centros médico-psicopedagógicos, serviços
ção que é bem difícil obter das coisas. de colocação familiar, de assistência educativa, de ajuda médico-social preco-
c~, de prevenção em meio aberto, lares para adolescentes sob assistência judi-
Seja o que for que se pense destas extrapolações, tais dispositivos já têm ciária, etc., disputam o mercado. Mas não é um acaso também, se a infância é
uma incidência que, ela, não é discutível, sobre as condições de exercício e o hoje a preocupação prioritária de todos os especialistas do tratamento e todos
estatuto das profissões médico-psicológicas. As condições de constituição e de os administradores da ação social. Primeiro porque é preciso racionalizar esta
tratamento dessas informações acarretam um desequilíbrio entre os especialis- nebulosa cuja constituição remete a estratos históricos diferentes e a inten-
tas da gestão do social e os técnicos do tratamento e subordinam estes últimos ções divergentes. Mas também, porque através da vontade de constituir um
a uma concepção administrativa da ação sanitária e social. Subordinação que banco completo de dados sobre a infância, joga-se o projeto de dominar seus
20 Cf. MASSON, Alain. "Intervenção na infüncia". Op. cit. p. 120.
*Antigo aluno da Escola Nacional de Administração (N. da T.).

l 16
117
rente da que se pode observar hoje, nesta reserva próxima que a noção de par-
riscos e planificar até suas deficiências, para desembocar num programa de ticular a um só tempo ampliou·se e embaralhou.se, e também que um terceiro
gestão racional das populações. parceiro, bem pouco representado há quarenta anos no setor, o corpo de espe-
cialistas, intervém agora nessa dialética.
Dirigismo e convivência Como esta filosofia neoliberal começou nestes últimos anos a reestrutu·
Se queremos desenhar o novo modelo de gestão dos homens que foi rar o campo da Ação Sanitária e Social redefinindo o papel dos três tipos de
implantado nestes últimos anos, é preciso dar conta desta contradição aparen· interlocutores que aí jogam sua responsabilidade, o Estado, o setor privado e
te: a acentuação das tendências dirigistas, planificadoras e tecnocráticas que ós profissionais?
vêm de exemplificar a lei de orientação e os sistemas G.A.M.I.N. e A.D.D.A.
S.S. de um lado, e de outro pelo recuo de uma concepção pública da assistên· 1. Redefinição do papel do Estado primeiro, cujas funções foram ao
eia ( o que chamamos o Welfare Sta te) que fazia do Estado o responsável dire- mesmo tempo reforçadas e circunscritas. Trata-se menos de criar, executar e
to da organização da rede completa. O domínio da Ação Sanitária e Social é financiar diretamente, do que de centralizar e planificar os dados, de racio·
sem dúvida característico do modo de gestão que queria promover um Estado nalizar a implantação dos serviços, de lhes fixar normas estritas de funciona-
neoliberal, esta estratégia que tenta conjugar a planificação centralizadora e a mento e de controlar seus resultados - deixando-os em seguida gerenciar seu
iniciativa privada, o autoritarismo dos tecnocratas e a convivência das associa. negócio como uma empresa.
ções espontâneas dos cidadãos, a objetividade que emprestamos aos profissio. Ou seja, algumas formas recentes que traduzem essa vontade. No mes-
nais e os bons sentimentos que se imaginam ser o apanágio dos benévolos. mo dia da lei de orientação de 1975 em favor dos deficientes é votada uma
O antigo Secretário de Estado da Ação Social, que tanto fez para im- outra lei importante sobre reorganização das instituições sociais e médico.
plantar a nova burocracia presidindo a partir de então a sorte dos deficientes, sociais. 24 Ela confia a responsabilidade de autorizar a abertura de toda insti-
dava ao mesmo tempo a filosofia dessa orientação no quadro de uma petição tuição nova (numa gama que cobre toâo o domínio médico-social, do alberga-
para o desenvolvimento da ação das associações: "O Estado não tem o mono. menta das pessoas idosas ou dos jovens trabalhadores nos clubes de prevenção
pólio do bem público, mas é seu fiador. Ele deve aqui desempenhar um papel passando pelas instituições de cuidado médico-psicológicas) a comissões re-
de regulador, definir as regras gerais de gestão e saber eventualmente consoli· gionais ou nacionais compostas, ao mesmo tempo, de representantes do Esta·
21
dar, seguir ou deixar a ação privada pela gestão pública. " . do, das coletividades locais, da Previdência Social e dos administradores e
Um porta.voz da Revolução Nacional proclamava já nos tempos de Vt· profissionais do campo rnédico--social. As comissões planificam a criação de
chy: "Tudo seria de uma só vez estatizado no alto, o que é uma necessidade todo estabelecimento em função das necessidades. Elas podem também deter-
evidente, e livre na base, o que é uma idêntica. Assim, a unidade estando ga. minar o fechamento provisório ou definitivo, total ou parcial de um estabele-
rantida pela ação do Estado, a diversidade e a adaptação poderia se dar livre cimento. Esta reforma instaura igualmente um procedimento de habilitação
curso e satisfazer às aspirações particulares. " 22 Essa aproximação não é tão das instituições, o convencionamento, mais restritivo do que o antigo reco--
espantosa quanto parece, à primeira vista. O regime de Vichy já tinha tentado, nhecimento. A autorização de funcionar é concedida à vista do programa
em matéria de política social, conciliar um autoritarismo de Estado, susten· completo do estabelecimento, o qual engaja a política concreta que prossegui·
tado por uma primeira geração de tecnocratas, e o apoio dos setores tradicio- rá em todos os domínios, a respeito do pessoal como dos clientes, e os resulta·
nais e conservadores, em particular os que se situam na dependência da Igreja, dos serão regularmente controlados.
grande provedora de serviços particulares. 23 Conjuntura que não. é tão dife· Assim o contrato de convencionamento define completamente o siste·
ma de normas ao qual deve se submeter o funcionamento institucional, e é o
21 LENOIR, René. Associações, democracia e vida diária. Le Monde, 17 jun. 1975. estabelecimento mesmo que é convidado, ou melhor, forçado, a constituir seu
22 JAUREGUIBERRY, Jean. A hora da geração 40, Scquana, 1943, apud CHAUVIÊRE,
próprio sistema de regulamentos. Mas em seguida, goza de uma grande liber·
Michel. Phagocytages". Op. cit. p. 110. 24
Lei n9 75.5 35, de 30 de junho de 1975.
23 Cf. CHAUVIÊRES, Michcl. "A infância desadaptada, a herança de Vichy". Op. cit.

119
118
uma prática consistindo, nesses domínios, em controlar a posteriori mais do
dade de gestão no quadro do contrato passado. A um dirigismo pontilhado
que a priori. " 26
que tentaria dominar todos os detalhes do funcionamento tende assim a se
substituir um duplo sistema de regulamentos, muito impositivos ao nível da É significativo igualmente que esse grande comissionado do Estado re-
definição dos objetivos e de controle dos resultados, mas que deixa de desen- comende desde essa data tomar o mais amplo possível apoio sobre todas
volver no intervalo um espaço autogerenciado, orientado, portanto, pela ne- as implantações prévias, quer dizer, o mais freqüentemente num setor privado
cessidade de rentabilizar o empreendimento. preexistente: "De maneira geral, tratar-se-ia, em todos os setores, de privile-
O decreto de 22 de abril de 1977, sobre a organização das direções re-- giar o que se fez primeiro e parece bom numa área determinada, a fim de
gionais e departamentais dos Negócios Sanitários e Sociais, vai na mesma dire- evitar uma coexistência desordenada. " 27
ção. 25 O diretor regional dos Negócios Sanitários eSociaisreúneemsuapessoa Ainda não é um afrouxamento, mas a maneira mais inteligente de impor
as responsabilidades outrora partilhadas entre diversos serviços. Correspon- uma ordem, que parecerá tanto menos pesada quanto o Estado não será seu
dente único do. prefeito da região, ele exerce uma tutela direta sobre o con- garantidor, a não ser em último recurso, quando as associações não terão sa-
junto do dispositivo da Ação Sanitária e Social. Ele centraliza as informações, bido elas próprias fazer respeitá-Ia.
planifica os equipamentos, coordena a ação dos serviços, tem mão firme sobre Os méritos de uma tal política são de fato pelo menos triplos. Primeiro,
o conjunto das eScolhas orçamentárias e das despesas. Controla diretamente o um princípio de economia, que é evidente e vai se revelar precioso num perío-
funcionamento das instituições e "procede a estudos comparativos de gestão do de crise econômica; não seria preciso, portanto, superdeterminar esse as-
sobre os custos e rendimentos dos estabelecimentos, organismos e serviços pecto, pois a imensa maioria das instituições privadas são convencionadas.
sanitários e sociais públicos" (art. 7). A recente reforma das coletividades lo- Mas o apelo ao privado e ao espírito de iniciativa apresenta igualmente a van-
cais que transferiu dos Conselhos Gerais ao Estado a determinação anual dos tagem de assegurar uma capilaridade na distribuição de certos serviços que os
orçamentos consagrados à Ação Sanitária e Social vai no mesmo sentido. Isto organismos públicos custam a dispensar, sobretudo tratando-se "do que é
representa ainda a situação atual na espera de uma descentralização, agora em mais embaraçoso" e que se situa freqüentemente às margens da sociedade. As
iniciativas particulares sabem mobilizar as redes de conivência que lhes permi-
preparação.
tem cobrir todo o tecido social e se integrar nos interstícios onde os funcio·
2. Mas as "garantias" de um poder centralizador que reforça e raciona- nários, representantes de um poder longínquo, abstrato, e freqüentemente
liza suas formas tradicionais de controle se acompanham do encorajamento considerado com suspeita, custam a conseguir um lugar. Enfim, o modo de
dado ao desenvolvimento da iniciativa privada, a exaltação dos méritos do funcionamento das instituições particulares assegura formas eficazes de con-
associacionismo e da benevolência. Essas virtudes da convivência enquadrada trole interno, em particular sobre os profissionais. Os conselhos de adminis-
mobilizam de uma só vez os recursos da velha herança .da assistência caridosa :ração compostos de notáveis equilibram as exigências técnicas, financeiras,
e do direcionam~nto moral, e das formas bem comportadas do espírito con- as vezes as veleidades subversivas do pessoal qualificado. Na mesma lógica, o
testatário, anti-hierárquico e antiestático, legados mais recentes dos sobressal- apelo à benevolênciq., não somente permite realizar economias, mas representa
tos políticos e da difusão da contracultura. François Bloch-Lainé, um dos ins- um meio de pressão que contribui para desenvolver um "bom espírito" no
piradores dessa política sanitária e social, vai bastante longe nessa via, quando conjunto do pessoal.
recomenda dar crédito às iniciativas mais marginais, sob reserva ~e um con-
trole a posteriori: "A sociedade está tão interessada em que as iniciativas se . 3. Os profissionais constituem de fato o terceiro elemento do disposi-
multipliquem para se ocupar do que é mais embaraçoso, que a administração tivo. Tendem de mais a mais a intervir como especialistas dotados de um sa-
não saberia reservar seu apoio calculado às soluções que já fizeram suas provas ber e de uma competência próprios, que alugam seus serviços em um mercado
e estão homologadas. Há mais benefícios a esperar que perigos a temer de 26
BLOCH-LAINÉ, François. "Estudo do problema geral da desadaptação das pessoas
deficientes". Op. cit. p. 39. -
27 Idem, p. 59.
25 Decreto citado em Psiquiatria de hoje, 32,janciro de 1978, p. 10.

121
120
de trabalho como qualquer outro, negociando as condições de emprego e mes- ção. Ela define um tipo particular de ação social que consiste em cobrir um
mo convenções coletivas. As profissões de saúde estiver~m entre as que, há vasto campo de intervenções, dedicando-se cada vez a alvos específicos: doen-
uma vintena de anos, conheceram as mais fortes taxas de crescimento. Mas a tes mentais, toxicômanos, deficientes, crianças em dificuldade, mulheres .sur-
concorrência para achar um emprego aí é particularmente viva. Há, por exem- radas, mães solteiras, alcoólicos, delinqüentes, etc. Face a essa diversidade,
plo, 30.000 estudantes inscritos em Psicologia cada ano na França, e formam- poder-se-ia ter a impressão de estar na presença de um empirismo sem doutri-
se muito mais clínicos ou pessoal paramédico do que o mercado de trabalho na que responderia golpe por golpe e sempre a posteriori a desafios exteriores.
pode absorver. E mais, as ftligranas para encontrar as s~da~ são freqüen~- É assim que se duvida às vezes de que a França dispõe de uma verdadeira polí-
mente informais, dependem de redes de relações, para nao dizer da seduçao tica de ação social. Parece de fato que, pelo menos há alguns anos, ela teve
individual. Em relação à estrutura do emprego da psiquiatria clássica, por uma, se entendemos o sentido do termo. Uma política social não existe aí à
exemplo, fundado sobre a dupla fortemente hierarq~izada médico-e~fe_rmeir~, maneira dos países socialistas, por exemplo, onde é inteiramente definida,
se desenvolve O que se poderia chamar uma categona de quadr?s_medios (psi- impulsionada, financiada e executada pelo Estado. Mas é uma política tam-
cólogos, educadores, ortofonistas, massagistas e outros especialistas de uma bém organizar a serialização das populações a assistir em função da mul tipli·
técnica limitada). cidade dos problemas que as assinalam a uma autoridade tutelar. Os beneficiá-
De um lado, a presença dessa massa de qualificações sem_ e~pre~os leva rios de socorro não representam nunca grupos concretos que poderiam se
à criação de empregos correspondendo às qualificações, _e ~ontn~m assun para organizar por si mesmos e reivindicar um direito. Eles são uns quantos casos
0
desenvolvimento do campo médico-psicológico e medico-social. Mas se os sobre os quais urna competência exterior se inclina para verificar a existência
"colarinhos brancos" das profissões paramédicas contribuem poderosame~te real de um déficit.
para a extensão desse domínio de práticas, eles não controlam sua orgamza- Desse ponto de vista, a divisão do trabalho Estado-setor privado-profis-
ção. Sua situação se parece com a do pessoal de uma empresa ~ualquer, ~n_de sionais é completamente funcional. Mais freqüentemente, é a iniciativa priva·
os parceiros sociais negociam seu estatuto e, numa ~e~ta medida, a pohhca da que detecta concretamente uma dificuldade e improvisa um primeiro dis-
da empresa sob a tutela do Estado. Dissociação aqui amda e~tre_ o ~ape~ de positivo de assistência, o qual repousa primeiro na boa vontade e nos fundos
técnico e O de administrador, no oposto não somente da ps1qmatna asilar, privados. Por exemplo, um grupo de pais de crianças representando um certo
onde a função médica se queria função de governo, mas do ~ue constitui ~n- tipo de deficiência cria uma instituição que cuida delas e tem inicialmente
da a ideologia do setor, cujo chefe é, ao mesmo tempo, o ammador da eq_mpe um modo de organização muito artesanal. A expertise do técnico competente,
terapêutica, 0 organizador responsável pela gestão administrativa do serviço e que intervém geralmente num segundo estágio de evolução da estrutura, san-
0
avalista do caráter de interesse público do trabalho consumado. Cada vez ciona a objetividade desse recorte empírico. É característico de fato que a
mais, os membros das profissões médico-psicológicas se pensam como técni- pretensão tem a generalidade, às vezes a universalidade dos saberes psicológi-
cos que têm de promover uma política profissional autônom,:i. Defend~m _e cos, se acomoda perfeitamente da diversidade das indicações tais quais elas
ilustram sua técnica como representando o fundamento de uma ~º~?etenc1a foram primeiro empiricamente constituídas sem nenhuma referência à dou-
neutra, caucionada somente por sua eficácia, que garante a obJet1vtdade de trina Essas referências sábias contribuem assim a fazer do domínio médico-
um estatuto na instituição e supõe aqueles que o tem como interlocutores dos psicológico e assistencial esse universo estilhaçado, onde uma multidão de
administradores e comanditários privados. A estratégia profissional dos profis- especialistas de competência diversificada se inclina sobre tantos problemas
sionais médios do setor sanitário e social tende assim a reforçar o tecnicismo, quantos necessário, no quadro de um recorte, cujo domínio lhe escapa. Por
que é uma característica marcante da evolução do campo. exemplo, há especialistas da toxicomania, ou do alcoolismo, e instituições
especiais para alcóolicos e toxicômanos, a partir do momento em que esses
problemas são assinalados como problemas sociais. Não somente porque,
Centralismo e diferenciação como se poderia cinicamente pensar, cada um terá de se haver aí, e que há
Esta dialética de três pólos·_ Estado, setor privado, profissionais - as~e- tanto mais competência a mobilizar, e cujos empregos criar, que existem pro-
gura uma gestão unificada a partir de uma tomada de posição de diferencia- blemas a tratar. Mas, mais profundamente porque, na medida em que essas

122 123
1

técnicas repousam em última análise sobre a referência a uma competência Da periculosidade ao risco
de tipo psicológico, elas são de repente cúmplices de l.1I11a concepção ato~- Uma tal centralização da Ação Sanitária e Social acarreta uma dupla
zante dos problemas de assistência e do tratamento: a razão última de um d1s- transformação em relação às ambições que a medicina mental alimentou his-
funcionamento qualquer só pode estar no indivíduo que carrega seu sintoma, toricamente.
e a compreensão de sua economia pessoal propõe o único fio condutor no Uma limitação de seus objetivos, primeiro. Até o período completamen-
domínio estilhaçado da assistência. Defenderíamos de boa vontade o aparente te contemporâneo, tivemos a ver, sociológica e politicamente, com um mode-
paradoxo em que mais um sistema de assistência e tratamento é afastado, lo de prática psiquiátrica construída e aperfeiçoada através de um século e
entre diversos serviços burocráticos que recortam os beneficiários em catego- meio de história e ao qual mais ou menos todo mundo se referiu, seja para
rias abstratas, mas apela à sua psicologização como a contrapartida necessária exaltá-lo, seja para contestá-lo. É aquele do qual precedentemente destacamos
de seu funcionamento, a elaboração de uma causalidade interna, intrafísica, a lógica: encarregar-se de maneira específica e global das perturbações psíqui-
28
fornecendo então o único princípio de totalização possível. cas a se consumar, de preferência no quadro de um serviço público. Se essa
concepção da política psiquiátrica não está abolida, ela cessa, vimos, de ser a
Resta agora aos poderes públicos dois papéis principais a assumir. Pri- matriz a partir da qual se desdobra o conjunto das inovações atuais. Mas, cor-
meiro, diante de uma constelação de implantações prévias, cuja distinção en- relativamente a essa limitação do mandato assumido pela medicina mental,
tre público e privado não fornece o princípio de discriminação mais perti- assistimos à sua redefinição no quadro de novas estratégias de gestão das po-
nente, coordenar o conjunto do dispositivo, eliminar progressivamente as pulações.
redundâncias e encorajar a perseguição de objetivos mais ou menos negligen- A profundidade dessa mudança foi até aqui mal destacada, porque a
ciados. Vimos que era a isso que tinha-se empregado a reorganização adminis-- medicina mental continua paralelamente a assumir, sob formas renovadas,
trativa recente. Ela dispõe para fazê-lo de poderosos meios. Assim, as Comis- suas funções terapêuticas clássicas, cuja defesa ou crítica polarizam a aten-
sões Departamentais instituídas no quadro da lei de orientação de 1975 deci- ção. Mas é preciso compreender que as iniciativas que foram tomadas recente-
dem soberanamente sobre as localizações em tal ou tal tipo de instituições. mente sob o estandarte da prevenção correspondem a uma verdadeira muta-
Possuem assim um verdadeiro direito de vida ou de morte sobre certos esta- ção da política administrativa que engaja uma parte da prática médico-psico-
belecimentos, na medida em que podem inflar ou esvaziar sua clientela à von- lógica em vias completamente novas em relação a seus papéis tradicionais,
tade. tanto terapêuticos como disciplinares.
As novas estratégias médico-psicológicas e sociais se pretendem sobre-
Mas as administrações centrais perseguem igualmente um objetivo mais tudo preventivas, e a prevenção moderna se quer, antes de tudo, rastreadora
ambicioso do que a detectação sistemática das anomalias e de planejamento a dos riscos. Um risco não resulta da presença de um perigo preciso, trazido por
longo prazo das redes especialistas no qú.adro de uma gestão em massa das uma pessoa ou um grupo de indivíduos, mas da colocação em relação de
populações que se desviam. Aí está uma função especificamente estática, pois dados gerais impessoais ou fatores ( de riscos) que tornam mais ou menos pro-
só pode ser orquestrada no nível central, com ligações regionais e departamen- vável o aparecimento de comportamentos indesejáveis. Pode haver aí associa-
tais. Todos os grandes Estados mOdernos se lançam assim em nome da preven- ções de riscos, quer dizer, correlações de fatores independentes: ter nascido,
ção em vastos programas de arquivamento das diferenças que mobilizam no- por exemplo, de mãe solteira que é também empregada doméstica ( ou sem
vas tecnologias. profissão, estrangeira, estudante, assalariada agrícola ... ), menor de dezessete
anos ( ou mais de quarenta), tendo tido um número de gravidezes superior às
taxas médias segundo a idade, etc. A presença de tais fatores basta para desen-
28
cadear um assinalamento automático, em virtude do axioma de que uma
A organização do We/fare nos Estados Unidos fornece disso uma ilustração atraente.
Cf. CASTEL, Robert. "A 'guerra à pobreza' nos Estados Unidos: o estatuto da
"mãe de riscos" engendra, ou cria, filhos de riscos.
miséria numa sociedade de abundância", Atas da pesquisa em Ciências Sociais, Assim, prevenir é primeiro vigiar, quer dizer, se colocar em posição de
21,janeiro de 1979. antecipar a emergência de acontecimentos indesejáveis ( doenças, anomalias,

124 125
comportamentos de desvio, atos de delinqüência, etc.) no seio de po~~l~çõ~s te que falar de imputações de periculosidade, e o diagnóstico que a estabelece
estatísticas, assinaladas como portadoras de riscos. Mas o modo de v1gll~c1a é o resultado de um cálculo de probabilidade intuitivo dissimulado sob um
promovido por essas políticas preventivas é totalmen~e novo em relaç~o ao julgamento substancialista. "Ele é perigoso" significa de fato: "As chances
das técnicas disciplinares tradicionais que foram parttcularmente anahsadas são - mais ou menos - fortes de que exista uma correlação entre tais sintomas
nestes últimos anos, e que Michel Foucau~t sintetizou a partir do modelo do atuais e tal ato futuro." Em termos de lógica, o diagnóstico de periculosidade
Panopticon. 29 abate a categoria do possível sobre a do real, sob pretexto de que o possível é
Segundo o modelo panóptico, a vigilância supõe uma co-presença dos - mais ou menos - provável.
controladores e dos controlados num espaço homogêneo que o olhar varre. A impotência da psiquiatria, mesmo a mais positivista, a objetivar com-
Esta coexistência é ainda mais evidente em todas as intervenções corretivas, pletamente a periculosidade foi uma cruz particularmente pesada de carregar,
punitivas ou terapêuticas, pelas quais um agente intervém diretamente num pois designa no coração de seu funcionamento um coeficiente incompreensí-
paciente para reerguê-lo, corrigi-lo ou tratá-lo. Se a palavra repressão tem um vel de arbitrar. Toda "conduta a ter" diante de uma pessoa suposta perigosa
sentido preciso, supõe um afrontamento de certa maneira físico entre duas (mesmo se a eve~tualidade que se teme é uma recidiva) pode ser suspeita de
pessoas. 30 E que o ato terapêutico tenha ou não um caráter repressivo, entra ser ou bem. demasiado lassa, ou demasiado repressiva. Sem dúvida é porque
certamente nesse regime geral de inter-relação concreta. os psiquiatras escolheram durante muito tempo esta forma paradoxal de pru-
As novas políticas preventivas economizam essa relação de imediatismo, dência, que é o intervencionismo. Mais vale de fato fazer demais que não o
porque do que elas tratam, num prim?iro tempo, pelo menos, não são indiví- bastante, pois, se erro pode haver em neutralizar um indivíduo potencialmen-
duos, mas fatores, correlações estatísticas. Elas desconstroem também o sujei- te perigoso, a prova não seria jamais feita, é sempre permitido pensar que ele
to concreto da intervenção para recompô-lo, a partir de uma configuração de poderia ter passado à ação se não tivesse sido impedido. Ao contrário, se não
elementos heterogêneos. Assim, pode-se menos falar de uma vigilância que, intervimos e a passagem à ação se verifica, o erro de diagnóstico torna-se ma-
mesmo a distância, suscita sempre alvos precisos e materiais, do que de cons- nifesto e o psiquiatra é seu responsável.
trução de uma combinatória sistemática de todos os grupamentos possíveis, Como escapar ao risco de arbitrariedade que comportam tais operaçôt::s?
suscetíveis de produzir risco. Trata-se menos de afrontar uma situação já peri- As nosografias psiquiátricas clássicas já são o esboço de uma perfilação dos
gosa do que de antecipar todas as figuras possíveis da irrupção do perigo. E, o indivíduos que implica uma imputação sobre sua conduta futura. Dizer de
que marca assim em oco o lugar do perigo é uma distância avaliável em rela- alguém que é monômano, ou perverso instintivo, ou psicopata, etc., é imputar-
ção às normas médias. lhe uma probabilidade de passar à ação e fundar um certo tipo de conduta
preventiva a seu respeito, já que então pode-se sentir justificado por não
Apreciaremos a importância de um tal deslocamento comparando as esperar a pós-ação para intervir. No entanto, tais diagnósticos só podem fun-
estratégias, a partir de então possíveis, com as instaladas anteriormente. Para dar condutas preventivas elas mesmas muito frustradas. A psiquiatria clássica
a psiquiatria clássica, o risco se apresentava essencialmente sob a forma de pode dispor principalmente de duas entre elas: o encarceramento e a esterili-
uma percepção do doente mental como suscetível de uma passagem ao ato zação. Mas o custo ecÓnômico, social e simbólico de tais intervenções é tão
imprevisível e violento. A "periculosidade" é esta noção misteriosa, qualidade elevado, e o valor dos argumentos teóricos que se supõem fundá-los tão frágil,
imanente a uma pessoa, mas cuja existência permanece aleatória, já que a pro- que suas possibilidades de aplicação, em todo caso em larga escala, tornaram-
va objetiva só é dada logo depois de sua realização. Assim, só há propriamen- se gravemente afetadas. 31

29
'
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Gallimard, 1975.
31
A população simultaneamente trancada pelos problemas mentais, logo atingiu o teto
30 No caso do modelo panóptico o vigiado, que não sabe quando é olhado, pode interio- J na França de 100.000 pessoas, mais ou menos. Número que se pode julgar fraco,
rizar a vigilância, em vez de ser reduzido a se afrontar com ela, num~ relaçã~ d~ teve relação com a ampla gama de "riscos" a prevenir. De fato, não fosse que, por
força. Mas o olhar implica sempre o contato, a co-presença dos parceiros e a md1- 1 razões econômicas, esta fonna de intervenção encontra seus limites rapidamente.
visão da pessoa observada. j A esterilização era suscetível de aplicações mais amplas por causa de seu fraco cus-

126 127
Os limites de uma tal perspectiva, que têm a ver com o fazermos da pe- trabalhos de Lindeman e de Caplan 35 e parcialmente aplicada através do pro-
riculosidade uma qualidade imanente da pessoa, apareceram muito cedo. grama das Community Mental Health Centers. 36 De um lado a ambição, que
Quando, antes de 1860, Morei propõe um ponto de vista "hlgiênico e profi- se exprime sob uma forma nova de evitar os riscos inerentes a certos modos
lático", a partir da levada em conta da freqüência das doenças mentais e de vida, em particular aqueles das populações desfavorecidas dos guetos. Mas,
outras anomalias nas camadas mais desfavorecidas, e que ele relaciona com as de outro, uma simples reiteração da propensão médica tradicional a confiar
condições de vida do subproletariado, já-está num outro registro de interven- ao psiquiatra essas tarefas, fosse mudando seu papel, dele fazendo um consul-
ção possível. Já raciocina em tennos de riscos objetivos, sugerindo ao prefeito tor acreditado junto dos decididores políticos: "O especialista da saúde men-
proceder uma vigilância especial das populações com problemas, "pene- tal oferece seus serviços aos legisladores e aos administradores, e colabora com
trando no interior das famílias", a fim de "prevenir uma grande enfermida- os outros cidadãos para incitar os serviços governamentais a mudar as leis e
de". 32 Mas Morei logo recodifica essa descoberta no quadro do que ele mes- os regulamentos. A ação social compreende os esforços para modificar as ati-
mo chama de uma "psiquiatria de extensão". Ele só imagina como solução tudes gerais e o comportamento da comunidade pela comunicação, através do
uma desmultiplicação dos poderes d0 psiquiatra, e vai até falar de "tratamen- sistema escolar e da mass-media e através da interação dos profissionais e dos
to moral generalizado" para designar as práticas que se devem defrontar com comitês de usuários. " 37
esses problemas, como se bastasse para resolvê-los estender ou suavizar um Mas o que é que qualifica o psiquiatra a desempenhar o papel de conse-
modo de tratamento que se impôs para o indivíduo. 33 lheiro do príncipe ou de mediador do povo? O que há em sua teoria ou em
Morei teve a intuição do que poderia ser uma política preventiva moder- sua prática que o autoriza especialmente a intervir sobre fatores tais como a
na, mas não dispôs de tecnologia específica para realizá-la. Foi condenado a miséria, os alojamentos insalubres, a subeducação, a violência urbana, etc.?
desviar-se na prática terapêutica de seu tempo, da qual se contenta em pensar a
extensão, quer dizer, o simples alargamento quantitativo. Uma tal política só O objetivismo tecnológico
pode encontrar muito depressa seus limites, pois, por exemplo, como "genera- Tais ambigüidades entretiveram especulações confusas sobre a "psico-
lizar" ao infinito um tratamento moral em cuja estrutura pennanece o cara-a- cracia" ou o "imperialismo psiquiátrico". Temores de um intervencionismo
cara do terapeuta e do cliente? 34 generalizado que podem ser legítimos, mas sem dúvida que é errôneo supor
A mesma ambigüidade caracteriza um século mais tarde a tradição ame- fantasmas sobre o personagem do psiquiatra. Se uma imagem da tirania amea-
ricana da preventive psychiatry, portanto elaborada com cuidado depois dos ça, não é sob a figura do psiquiatra-rei de uma nova República platônica, o
"estado terapêutico" que alguns ideólogos denunciaram. 38 Empresta-se assim
à psiquiatria e aos psiquiatras um poder sem relação com o que eles represen-
to econômico. Apresentava igualmente a vantagem de prevenir a longo prazo; en- 1
quanto que a internação é freqüentemente condenada por intervir após a ação. i tam realmente na sociedade. Postula-se igualmente uma correspondência, bem
Mas além dos escrúpulos morais que é suscetível de provocar, percebeu-se bem duvidosa, entre as competências médicas ou médico-psicológicas e as compe-
depressa da inconseqüência do fundamento científico das políticas eugênicas, tências administrativo-políticas. É, sem dúvida, a razão pela qual os ambicio-
que as versões selvagens do tipo nazista acabaram por desconsiderar. sos programas de uma "psiquiatria de extensão" deram nascimento a poucas
32 MOREL, B. Le no-restreint. Paris, 1857. p. 103.
35
33
Idem, p. 78. LINDEMAN, Ercih. Symptomatology and Management of Acute Grief, American
Journal of Psychiatry, 101, 1944; CAPLAN, Gerald. Principies of Preventive
34
De fato, o tratamento moral comporta uma dupla forma, indiVidual e coletiva, e é esta Psychiatry, New York, 1964.
última que foi a mais freqüentemente aplicada, através do tratamento de massa 36
dos pacientes nos grandes hospícios (cf., por exemplo, FALRET, Jean-Pierre. "Do Cf. CASTEL, F.; CASTEL, R. & LOVELL, A. "A sociedade psiquiátrica avançada".
tratamento geral dos alienados". Das doenças mentais e dos hospfcios de aliena- Op. cit. cap. V; "As ilusões da comunidade".
dos. J .B. Bailliere e filhos, 1864, p. 682-3, onde esta distinção é perfeitamente ex- 37
Cf. CAPLAN, Gerald. "Princípios de psiquiatria preventiva". Op. cit. p. 59.
plicitada). Mas, mesmo no caso do tratamento em massa, a intervenção é limitada 38
pela necessidade de ter a população tratada sob o olhar. Cf. KITTRIE, Nicholas. The right to be different. Baltimore, 1971.

128 129
realizações convincentes. Em seus projetos expansionistas, o psiquiatra é man- truição de seu objeto. No que ela colabora com uma política de gestão pre-
tido na coleira pela necessidade de intervir es qua/ité. "* Pode tentar suavizar ventiva, a participação do prático se reduz a uma simples avaliação abstrata:
seu papel; não pode desmultiplicá-lo ao infinito. assinala os fatores de risco. Em suma, procede como um agente administra-
Essas dificuldades são levantadas, se dissociamos francamente o papel tivo que constitui um banco de dados.
técnico do papel político, o prático do administrativo. Separam-se então Sem dúvida, a máquina, assim, em parte alimentada a golpes de diagnós-
(quer dizer que se devolve a cada wná sua liberdade) as tecnologias de in- ticos, pode de volta reesquentar uma prática de tratamento. As populações
tervenção e as tecnologias de prevenção. É o que podem promover as for- suspeitas detectadas no plano estatístico farão o objeto de uma vigilância es-
mas novas de gestão administrativa, em particular as que repousam sobre o pecial e de investigações particulares que permitirão assinalar as pessoas con-
tratamento informático dos dados. A informática está, sem dúvida, dando à cretas a tratar. Estes serão então objeto de uma responsabilização, que poderá
administração, nos setores da ação sanitária e social, sua tecnologia autônoma, ser, quem sabe, personalizada. Por que não, de fato, oferecer por exemplo
enquanto antes ela ficava reduzida a reinterpretar-desviar inovações realizadas uma psicanálise a pessoas detectadas pelo recorte de um certo número de
primeiro pelos práticos. Assim, o dispositivo administrativo de gestão da lou- fatores dé riscos, e examinadas por essa razão por um especialista competente
cura do século XIX, sancionado pela lei de 1838, oficializava o novo tipo de que formularia a indicação adequada?
práticas sócio-médicas, inauguradas pelos alienistas; o corte administrativo da No entanto, mesmo se pudéssemos falar assim sem ironia, subsistiriam
política de setorização demarcava e generalizava um corte que os psiquiatras dois elementos novos em relação à situação terapêutica clássica. De um lado,
reformadores a partir do fim da Segunda Guerra Mundial começaram a operar não pode haver aí reequilíbrio de expertise pelo tratamento, porque, nesta
de maneira tateante. Tais reinterpretações das práticas médicas em função de nova estrutura, a expertise precede o tratamento e o supera. No processo de
finalidades administrativo-políticas são regularmente denunciadas pelos pro- constituição dos dados que fazem o perfil do risco, .a avaliação médico-psico-
fissionais como tanto de recuperações, às vezes traições. Mas esta proximidade lógica não passa de uma das fontes nas quais se alimenta a investigação. Ela
ambígüa entre prática de tratamento e prática administrativa faz obstáculo ao se encontra banalizada no meio de um complexo de atividades de exame, de
desdobramento das finalidades administrativas por si mesmas. É a partir do percepção, de procura da informação sob todas as suas formas, pelas quais são
momento em que elas se dotam de tecnologias próprias que as exigências ges- estocadas as informações mais heterogêneas de ordem econômica, social, mé-
tionárias podem se tornar completamente autônomas em relação ao ponto de dica, psicológica. 39 O eventual retorno a uma prática terapêutica, a partir da
vista dos práticos. massa heteróclita dos dados· alojados, só pod~ recobrir um setor muito limi-
No entanto, esta autonomia tem um efeito de volta decisiva ao estatuto tado do conjunto das indicações de intervenção.
das próprias práticas médico-psicológicas. O tratamento informático dissolve Em seguida, e sem dúvida fatalmente, um tal banco de dados em cres-
a pessoa para só reter_ dados abstratos interpretados como fatores numa série. cimento perpétuo não está sob o controle dos operadores-práticos. Nesse
Por exemplo, o alcqú1ismo tal qual é encarado no quadro das políticas preven- dispositivo, a relação que ligava o diagnóstico e o tratamento, o saber sobre
tivas é o grupamento de Um certo número de itens, que eventualmente tal ou uma pessoa e a possibilidade de intervir nela, essa relação está quebrada. O
tal pessoa concreta satura, e nada o alcóolico com sua história própria, seus papel do terapeuta e dos outros operadores de terreno se acha assim subordi-
problemas particulares, as significações simbólicas ou outras de suas condutas. nado. É o que gere que possui todas as cartas, é ele só que pode dominar o
As estratégias preventivas podem assim se desdobrar, economizando o face-a- conjunto do jogo e impor sua estratégia. É quem decide de verdade.
face no qual a prática terapêutica encontrava sua origem. O que diz respeito à É mais grave do que depender de boas intenções de um terapeuta? A
intervenção, antes de ser uma pessoa é um alvo abstrato: uma população de diferença é mais uma questão de escala. Seja o que pudéssemos pensar do va-
riscos. lor positivo ou negativo das intervenções inspiradas pela filantropia psiquiá~
A aproximação médica é aqui tomada ao contrário. A colaboração das
profissões médico-psicológicas às novas políticas preventivas passa pela des- 39
Para se ter uma-idéia de heterogeneidade e da diversificação dos itens escolhidos para
as fichas só do sistema G.A.M.I.N., cf. Ministério da Saúde, Divisão, Organização
*Exercendo essa função. (N. da T.) e Métodos Informáticos, Manual de apresentação do sistema G.A.Ml.N. 1976.

130 131

l
trica, ou pela filantropia em geral, elas se exerciam no registro limitado de um
cara-a-cara. Mesmo quando as pessoas eram tratadas em massa, continuavam
no espaço da presença e do olhar, pelos quais permaneciam individualizadas.
Todas as grandes tecnologias disciplinares clássicas empregadas nos conventos
hospitais, prisões, casernas, fábricas, supunham, aí compreendidas sob sua~
for~as ~ais coletivistas e mais reprêssivaS, esse mínimo de individualização
que implica a presença física dos interessados.
_ A p~r~ir daí, a presença real do suspeito, o contato direto com as popu-
laçoes a v1g1ar, não são mais requisitados. O espaço generalizado dos fatores
de~ riscos está no espaço concreto da periculosidade ou da doença como 08
geometras não euclidianos estão para a geometria euclidiana. É uma mutação
da qual estamos longe de ter medido todas as conseqüências. Mas podemos
pelo menos perceber o que constitui a condição de possibilidade do desdobra-
mento dessas novas políticas preventivas: o desaparecimento da própria noção Capítulo 4
da pessoa. O retorno do objetivismo médico reduzia esta àquelas de suas con- A nova cultura psicológica
~~ões que são cientificamente instrumentalizáveis. A instauração de um obje-
tivismo tecnológico o dissolve numa combinação abstrata de elementos inter-
cambiáveis.
Uma terceira grande linha de transformação contemporânea dos disposi-
tivos médico-psicológicos conduz à promoção do psicológico por si mesmo.
Com a mutação tecnológica que se acaba de desenhar, estamos já bem além
do psiquiátrico, quer dizer, do recorte do normal e do patológico e da proble-
mática do tratamento. Com o recobramento da cultura social por uma cultura·
psicológica desenvolvida por si própria, entramos na era da pós-psicanálise.
A pós-psicanálise não é o fim da psicanálise, mas o fim do controle pela psi-
canálise do processo de difusão da cultura psicológica na sociedade.
Não que só a psicanálise esteja em causa nesta evolução. Mas podemos
tomar a dinâmica de sua banalização na sociedade contemporânea como um
fio condutor para seguir uma mudança decisiva do estatuto das técnicas médi-
co-psicológicas, que não se esgotam mais notando disfuncionamentos patoló-
gicos ou institucionais, nem mesmo prevenindo riscos de doença, mas se põem
a trabalhar o estado do homem normal e o tecido da sociabilidade comum. O
destino da psicanálise na França introduz a compreensão de um estado do
mundo e de um vivido do mundo, cuja total espessura se deve ao que é psico-
logicamente interpretável e psicologicamente transformável.
Tal poderia ser a definição prévia da nova cultura psicológica. Ela sugere
que é além de toda referência ao patológico, além também da instalação de tal
ou tal dispositivo especial, que convém procurar a última posteridade do com-
plexo médico-psicológico: em uma postura cultural que tende a fazer da insta-
lação na psicologia a consumação da vocação da pessoa social.
132
133
1. A DESESTABILIZAÇÃO DA PSICANÁLISE testes. 2 Assim, a fecundação pela psicanálise de certas orientações médicas
ditas psicossomáticas,3 ou de certas profissões da formação, da animação e
A p_sic:nálise realizou do lado da psiquiatria uma primeira perfuração, do trabalho social, onde uma linhagem analítica se ramificou muito cedo,
que constitma um alargamento em relação às condições técnicas de prática tal embora de maneira discreta, na corrente psicossociológica dominante da
qual Freud tinha elaborado (capítulo_ 2). Perfuração que permanece parado- dinâmica de grupo. 4 Assim, e sobretudo na psicologia da criança, onde as
xal. De, um lado, saindo totalmente do quadro da relação dual e da exploração orientações analíticas equilibram hoje quase uma tradição psicopedagógica
pr_10~1tana do domínio da neurose, a psicanálise acentuava por essa via sua ins- mais antiga. s
cnçao no campo patológico: os psicóticos são freqüentemente mlis .;:;tigmati- Esta integração da psicanálise à formação de numerosas profissões da
za~os do ~u~ os neuróticos, e as condições de uma prática em instituição são relação já impõe uma certa banalização de seu conteúdo. Subsistem certas
~ais e~pec1~s- do que em clientela particular. Mas, inversamente, a aproxima- querelas de escolas, que continuam a levantar problemas nos termos da orto-
çao ps1canal1tica desse setor patológico puxava a prática terapêutica do lado doxia e da fidelidade à doutrina freudiana. Assim, a psicologia da criança é
de uma tecnologia relacional, dentro da qual seu caráter propriamente médico hoje despedaçada entre uma tendência pedagógica, mais freqüentemente
se esfumava, e o final se abolia. carregada pelo pessoal saído da Educação Nacional, e uma tendência lacania-
na majoritária em numerosos centros médico-psicopedagógicos (C.M.P.P.).
Uma cultura psicanalítica de massa Mas observam-se também todas as variantes intermediárias entre a preocupa-
ção principal de reinserir a criança no sistema escolar e a de acompanhar sua
Mas, paralelamente a essa conquista-alargamento de um mercado tradi-
própria dinâmica pessoal. Além desses conflitos que se apóiam em referências
cionalmente dominado pela psiquiatria, desenhava-se um certo número de
tão amplas, que vão de Piaget a Freud, estabeleceu-se um consenso para fazer
outras li~has de expansão que iam integrar a psicanálise à cultura em geral.
da criança em relação ao homem, e da criança em cada homem, a chave de seu
F~1 primeiro, próximo ainda dos problemas da clínica, sua integração à
destino pessoal e o princípio explicativo essencial de sua história. Esse postu-
formaçao de certas especialidades psicológicas. À diferença do que se passou
lado fundador do pensamento psicológico dominante, em psicologia clínica
nos .E~tados Unidos, por exemplo, onde permaneceu um quase monopólio
como na pedagogia e até na criminologia, a saber, que as relações atadas na
p,r~fiss10n~ dos médicos, a integração da psicanálise em certos cursos psico-
inlancia, sobretudo se não foram satisfatórias, determinam o destino do indi-
log1cos foi na França um elemento importante de sua difusão. Muito antes da
víduo, difundiu-se bem além dos meios profissionais especializados. É o indu-
abertura de departamentos próprios de psicanálise em Vincennes ou Censier
tor de uma atenção inquieta e generalizada às turbulências psicológicas que,
psica~ali~t~s logo implantados na Universidade ( orientação Daniel Lagache:
das escolas de pais às petições do advogado, passando pelas diferentes formas
depo1.s D~d1:r ~~:ieu) tin~am-na adaptado ao quadro do ensino de uma "psi-
cologia dmam1ca e relac10nal capaz de funcionar em sincretismo com outras
2
orientações psicológicas. Ela fazia assim uma entrada discreta mas eficaz ao É uma das razões do sucesso da ex-Escola Freudiana de Paris (lacaniana) ter-se ampla·
mente aberto aos não médicos e outros analistas que "só se autorizavam por si
nível de certas formações profissionais. Em particular, a psica~álise torno~-se
mesmos". Isto pelo menos para o grosso das tropas, pois, para o acesso às funções
u~ ~lemento essencial na estratégia profissional de numerosos profissionais de responsabilidade, a Escola Freudiana apresenta quase a mesma quota médicos/
medias de profissões de saúde. Ela deu caução teórica e de desenv.olturas téc- não-médicos que as outras sociedades (cf. STORA, Ben,iamin. As sociedades de
nicas a alguns setores dessa nebulosa do psicológico, do qual a fonte tradicio- psicanálise à prova do tempo. Poderes, 11, 1979).
nal da legitimidade continuava exterior. 1 3
Cf. NASCHT, Sacha. Introdução à medicina psicossomática,.Evolução Psiquiátrica,
. Assim ~m.psi~ologia clínica onde, graças à psicanálise, o psicólogo pode, 1948, 1.
diante da ps1qmatna, conquistar uma posição quase de concorrência, em vez 4
É o caso das pesquisas psicanalíticas de grupo constituídas em volta de Didier Anzieu,
de ser limitado a papéis subalternos de estatuto incerto, como o de fazer de Anne Schutzenberger e de grupos de "sócio-análise".
1
Cf. ANZIEU, Didier. A psicanálise a serviço da psicologia. Nova Revista de Psicanálise 5
CASTEL, Robert & LE CERF, Jean-François. "O fenômeno 'psi' e a sociedade fran·
20, outono de 1979. ' cesa". Debate, op. cit:- .

134 135
de conselho familiar, propaga a nostalgia de uma harmonia relacional, que
Freud por primeiro julgava impossível. Esta contradição da boa vontade edu-
1 Mas, sobretudo, se é verdade que Lacan e o lacanismo desempenharam
o papel de locomotivas do movimento, a audiência intelectual da psicanálise
cativa entre a injunção de ter melhor a fazer e a certeza de fracassar no bem foi imediatamente muito mais ampla. Os Escritos de Lacan foram, é certo,
fazer, já que o universo das relações é incontrolável em todo rigor, está no 110.000 exemplares vendidos. Mas a Introdução à psicanálise de Freud teve
princípio de um consumo infinito de psicologia: pedido de ajuda psicológica uma tiragem de 650.000 exemplares, Três ensaios sobre a teoria da sexuali-
e apelo a uma competência psicológica para instrumentalizar o projeto, que dade 400.000, A psicanálise de Daniel Lagache, 200.000. É bem a psica-
pode rondar toda uma vida, dominar sua própria economia relacional e a de nálise em geral que tornou-se um ingrediente cultural de massa, e a sacudidela
seus próximos. de 1968 só ampliou um movimento amplamente engajado nos anos sessenta. 8
Qual é a responsabilidade da psicanálise no desenv01vimento de um tal Se 68 lhe trouxe um novo público, foi na base de aspirações ideológico-polí-
processo? É impossível responder com algum rigor a essa pergunta, e talvez ticas estranhas a sua pertinência clínica, ou mesmo a seu rigor teórico. Uma
seja pouco sensato fazê-lo. A referência ao corpo e à técnica psicanalítica tem observadora americana notava que a audiência encontrada pela psicanálise
incontestavelmente sido essencial para induzir e exprimir esse apetite de psi- na França era agora superior à que tinha sido em seus melhores momentos
cologia. Mas por sua vez, o interesse pela psicanálise propagou-se pelo interes- nos Estados Unidos, o que não é dizer pouco. 9 Mas um reconhecimento social
se pelo psicológico em geral. Salvo talvez para os técnicos, a exigência de um de tal amplitude não pode se dar sem uma transformação profunda da natu-
rigor no método ou de uma pureza doutrinária estão completamente desco- reza do objeto.
nectadas dessa superdeterminação do relacional que instalou-se através da pro-
blematização psicológica da educação e da vivência familiar em um fato social A crise da ortodoxia
dominante. A vulgata psicanalítica tornou-se a principal linguagem de base da A análise das razões que constituíram a psicanálise em ideologia domi-
codificação psicológica da existência. Mas, por esta razão, sua especificidade nante na intelligentsia e nos amplos setores da sociedade francesa está por ser
perdeu-se. feita. 10 Mas é certo, em todo o caso, que esse sucesso não pode ser explicado
A mesma banalização se observa na constituição do que se poderia cha- somente pela implantação das práticas que podem reivindicar uma estrita apli-
mar uma intelligentsia psicanalítica de massa. Entendemos por isso a transmu- cação do método freudiano. Hoje ainda, mal se conta na França um milhar de
tação de uma teoria difícil e exigente em comum denominador de todo um psicanalistas devidamente habilitados por uma das quatro Escolas que dispu-
meio cultural. tam o mercado da formação. 11 Mesmo multiplicando esse número por dois ou
Atribui-se em geral a Jacques Lacan o mérito principal do sucesso en- três, para integrar todos os analistas praticando em condições vizinhas da si-
contrado pela psicanálise nos meios intelectuais, e ao período pós-68 o mo- tuação dual definida por Freud ( ou em situações que podem entrar no quadro
mento em que esse sucesso se afirma. 6 Tais avaliações devem no entanto ser de uma ortodoxia ampliada, como certas técnicas analíticas de grupo, certas
nuançadas. Cronologicamente primeiro. Lacan transfere seu seminário na inscrições institucionais do tipo da psicoterapia institucional analítica, etc.),
Escola N armai Superior desde 1964, o que significa que seu reconhecimento
por certos círculos da intelligentsia é bem anterior a essa data. É também an-
8 Desde 1961, um estudo de Serge Moscovici sobre a imagem da psicanálise no público
tes de 1968 que se faz a aliança Lacan-Althusser, 7 que desempenhará um
francês dava conta de uma boa implantação "popular": imprecisa no conhecimen-
papel decisivo na conquista dos meios culturais de esquerda. E é igualmente to da doutrina, mas ampla pelo interesse que suscitava. Cf. MOSCOVICI, Serge.
no decorrer dos anos sessenta que as discussões sobre o estruturalismo (Lévi- A psicanálise, sua imagem, seu público. P .U.F ., 1961.
Strauss, Foucault, Althusser, Lacan) tomam-se a vulgata dos mesmos meios. 9 TURKLE, Sherry. Op. cit.
10 Além da interpretação que disso tentei em seguida e que permanece parcialmente im-
6 pressionista (O Psicanalismo, 1973), a de Sherry Turkle, apesar de seus méritos,
Cf. TURKLE, Sherry. Psychoanalitic politics, Freud's french revo/ution. New York,
1978. embeleza demais 1968 e superestima o papel do lacanismo.
7 11 Cf. STORA, Benjamin, "As sociedades de psicanálise à prova do tempo". Op. cit.
Cf. ALTHUSSER, Louis. Freud et Lacan. A Nova Critica, 161-162, dez.-jan. 1964-65.

136 137
eles só se encarregam diretamente de algumas dezenas de milhares de pessoas. miram sua tarefa, através de condenações, cisões, exclusões, dissoluções, re-
Número sem nenhuma medida comum como aquele de todos os que, a qual- fundações, enquanto se trata principalmente de salvaguardar a pureza de uma
quer título, têm a ver com a psicanálise. técnica e as condições de sua reprodução: a fidelidade ao corpo freudiano e a
De fato, a psicanálise hoje na França, o que é? Um número relativamen- formação dos analistas. Mas esta problemática conservatória da ortodoxia
te limitado de práticas terapêuticas ou paraterapêuticas no quadro estrito da sempre foi incapaz de se encarregar da relação da psicanálise com sua própria
relação dual; mas também a referência privilegiada da maioria das orientações história e com a história em geral. Ela nunca pode apreender que sobre o re-
psicoterapêuticas, que, portanto, tomam grandes liberdades, com a tecnologia gistro da condenação ética ("recuperação", "traição") a imensa maioria das
freudiana; é ainda um meio de afrontar certas dificuldades institucionais no práticas sociais que dependem da psicanálise, nesse sentido, pelo menos, que
hospital ou na escola, por exemplo, ou bem um complemento de formação esta é a primeira condição de sua existência e a última garantia de sua legiti-
que se integra em certas estratégias profissionais; é também um produto cultu- midade.
ral que se consome, moda que se partilha, hábito de uma intelligentsia culta à Mas esses anátemas não impedem que o fosso se aprofunde entre a re-
qual sonhamos pertencer; tanto a ciência dos experts, tanto o idioma de quase presentação que a profissão tem e a que se dá de si mesma e o que,ela é e faz
todo mundo, para exprimir as dificuldades de relacionamento, os fracassos realmente. Vive a partir de então segundo um princípio de irrealidade, osci-
escolares ou os conflitos conjugais; é o que alguns escolhem no quadro de um lando entre a má fé e a negação de seu papel efetivo. O psicanalista continua a
contrato livremente passado com o terapeuta que elegeram, mas também o se embandeirar com os prestígios da extraterritorialidade social, quando não
que muitos sofrem por ocasião da passagem por uma instituição de tratamen- é o heroísmo de uma posição solitária à ordem estabelecida, enquanto é o
to ou de dificuldades encontradas por uma criança: primeiro contato freqüen- representante de uma profissão respeitável e respeitada. Que um dos membros
te com a psicanálise para os meios modestos, em virtude do poder discricio- mais reconhecidos do establishment pense ainda o psicanalista como "essen-
nário que têm as profissões que tratam de impor suas tecnologias preferidas cialmente bastardo, a-social, clandestino" 13 pronto hoje a sorrir. Esta maneira
a seus clientes menos municiados. de retomar os velhos prestígios da eleição e do profetismo não tem agora ne-
A "crise" da psicanálise, cujos sinais começam a se multiplicar, deve-se a nhum contato com a realidade. Os episódios tragicômicos que recentemente
que esse desequilíbrio entre uma base estreita de práticas ortodoxas e das pro- acompanharam a dissolução da Escola Freudiana por Jacques Lacan mostra-
duções que o são cada vez menos, atingiu seu ponto de ruptura. Não se obser- ram que tal modo de organização profissional do tipo da seita, baseando-se no
va, de fato, recuo da implantação social da psicanálise. 12 Também não há cri- carisma do Chefe e submissão à Obra, era incapaz de gerar os múltiplos inte-
se no nível da produção teórica, mais rica do que nunca, nem daquele do inte- resses que hoje a psicanálise recobre, e da qual a maioria só tem longínqüos
resse que provoca. Mas torna-se patente que as instâncias de legitimação do relacionamentos com a mística da Causa: Encarniçando-se a interpretar a tota-
meio psicanalítico não podem mais controlar o conjunto desse processo de lidade de suas funções no quadro exclusivo da ortodoxia, é o próprio sentido
divulgação. de seu papel social que os psicanalistas deixam escapar.
Um tal controle, de fato, é exercido pelas estruturas fracamente institu- Constatando o papel desempenhado pela psicanálise na reforma dos
cionalizadas que são' as Sociedades de Psicanálise. Estas, melhor ou pior, assu- hospitais psiquiátricos, a resolução de certas dificuldades próprias ao sistema
escolar, a divulgação de conselhos educativos ou psicossexuais, quem sabe na
12
Esquematicamente, pode-se destacar um duplo movimento, que só é contraditório na publicidade ou na empresa, nunca ninguém esperou ver nisso a pura situação
aparência. De um lado, o começo de um certo descrédito na intellig~ntsia sofisti- poltrona-divã. Mas constatar o caráter herético desses usos não tira nada a seu
cada (assim o sucesso recente dos panfletos antianalíticos como L 'effet'yau de impacto. Do ponto de vista social, a psicanálise como tal deve a partir de en-
poêle de François Georges) e no.~ setores profissionais mais inovadores (por exem-
plo, uma proporção importante de psiquiatras em formação da região parisiense
tão ser assimilada à totalidade de sua herança, quer dizer, ao conjunto de seus
economiza a partir de então a obrigação, quase incontornável há alguns anos, de efeitos na cultura, que não se deve somente conceber como os reflexos insos-
fazer uma psicanálise "didática"). Inversamente, a implantação prossegue no inte-
rior e nos setores que tinham resistido a sua atração. Por exemplo, numa cidade 13
MAJOR, René. Une théorie porteuse de révolution. Le Nouvel Observateur, n<? 307,
como Avignon, o número de psicanafütas passou de um a 15 em alguns anos. abril-maio (28-4) de 1980.

138
139
If
1

sos ou deformados de uma verdade originária: esta difusão social cria de fato paternidade. Também eles não podem ser reconhecidos pelos verdadeiros her-
positividades novas. Ela transformou profundamente a cultura moderna con- deiros. Aliás, maiS do que de dois círculos de difusão, seria preciso falar de
tribuindo para fazê-la desembocar sobre uma Westanchauung psicológica a um duas séries de ondas sucessivas, a primeira, saída do divã, servindo de trampo-
·só tempo mais universal e mais banal. lim e a segunda de ligação. Elas confluem para propagar uma cultura psicoló-
Tomar ciência dessa transformação da psicanálise, já é se situar na após- gica que se universaliza, perdendo a memória de suas origens e o cuidado de
psicanálise. Restam, é certo, núcleos de ortOdoxia psicanalítica, e é verossímil seus fundamentos teóricos.
que o movimento geral da leiguice da psicanálise na cultura psicológica acar- Tal é o papel dessas novas terapias, em geral importadas dos Estados
retará, em contragolpe, uma crispação dos puristas nesses bastiões. Mas a par- Unidos, que reagrupamos na Europa tanto sob o nome de "movimento do
tir de agora se impõe a necessidade de encarar a psicanálise também como um potencial humano", -quanto sob o de "psicologia humanista". Elas compre-
fenômeno cultural de massa. endem a bioenergia, a Gestalt-terapia, o co-conselho, a análise transacional, o
grito primal, etc., com numerosas variedades, a invenção de um novo apelo,
Herdeiros e bastardos justificada por uma inovação quase sempre mínima na técnica, representando
para os promotores um meio de se colocar em um mercado de concorrência. 14
Se a metáfora sociologicamente aberrante da "recuperação" da psicaná-
Poder-se7ia interpretar seu sucesso como uma revanche póstuma de Reich
lise pode fazer uma longa carreira é porque a maioria dos profissionais a isso
sobre Freud, mas do Reich do período americano, o qual teria fortemente
se prestaram, aceitando referir sua prática aos cânones da pureza original. Des-
atenuado a dimensão marxista de sua obra, que seus herdeiros teriam substi-
se ponto de vista, os processos internos do meio psicanalítico se parecem exa-
tuído por uma sensibilidade para os valores da contracultura espalhados nos
tamente com os processos estalinianos, acusando-o, aceitando ser julgado em
anos sessenta: crítica da autoridade, obrigações e hierarquias, cultos da espon-
função de sua submissão à Causa combinada, se ele sente-se forte bastante
taneidade, de autenticidade, de não-direcionismo e da convivência informal.
para fundar uma posição ainda mais ortodoxa do que a que o exclui ou amea-
Essas aproximações repousam quase todas na concepção de uma energia
ça excluí-lo. Mas esta lógica está hoje quebrada pela aparição de novas técni-
biofísica que liga indissociavelmente o registro psíquico inconsciente e o regis-
cas psicológicas, aos olhos das quais a questão da recuperação não se coloca
tro corporal. 15 As dificuldades psíquicas que podem resultar de traumatismos
mais, simplesmente porque seus promotores não sentem nenhum interesse
pelo que bem poderia ser a ortodoxia na matéria. 14 Sobre a bioenergia, cf. seu fundador LOWEN, Alexander. Bioenergetics. Middlesex,
Há, a partir daí, de fato, como que duas séries de círculos de difusão da 1974, trad. fr. La Bioénergie, Payot, 1976; do fundador da Gestalt-terapia,
cultura psicanalítica. Uma continua a se propagar a partir do epicentro do PERLS, Frédéric S. Gestaltherapy berbatim. New York, 1971; do fundador do
divã, repercutindo os efeitos da descoberta freudiana sob formas cada vez grito primal, JANOV, Arthur. The primai scream. New York, 1972, trad. fr. Le
cri primai, Flammarion, 1973; do fundador da análise transacional, BERNE, Eric.
mais afastadas e atenuadas. É, por exemplo, a que vai de uma cura clássica a Games people play, New York, 1964, trad. fr. Des jeux et des hommes. Stock,
uma emissão radiofônica de Françoise Dolto, passando por diversas formas de 1964; do fundador do co-conselho, JAKINS, Harvey. The human side of human
inscrição da prática nas instituições mais diferentes. É uma pirâmide invertida beings: the theory of re-evaluation couse!ing, Seattle, 1965. Entre os comentários
que continua a repousar sobre a ponta frágil da relação dual. mais sintéticos em francês, cf. DREYFUS, Catherine. Les groupes de rencontre,
Mas um segundo epicentro está se constituindo em volta de novas téc- Retz, 1978; LAPASSADE, Georges. Socio-analyse et potentiel humain, Gauthier-
Villars, 1975; ANSELIN-SCHUTZENBERGER, Anna. Le corps et !e groupe,
nicas psicológicas que, a um só tempo, derivam da psicanálise e se tornaram
Privat, 1977.
completamente autônomas em relação a ela. Elas são pós-psicanalíticas ao tri-
15 A análise transacional é, como seu nome indica, mais transacionalista do que centrada
plo sentido em que supõem a psicanálise, que a sucedem ( coexistindo com
sobre as massas energéticas do corpo, mas a influência de Freud e a reação a Freud
ela) e que retém uma parte de sua mensagem. Mas elas franquearam a si mes-
aí são pelo menos igualmente nítidas. Para a análise transacional, cada pessoa é
mas a problemática da ortodoXia, criticando-a de frente ou negando a referên- composta de três "estados do eu", o pai, o adulto e a criança, demarcação da tri-
cia analítica. Diante dos herdeiros legítimos da psicanálise, poderíamos falar a partição freudiana dac; instâncias psíquicas, na base da qual ela entra em relação
seu propósito de bastardos: esqueceram ou recusam a füiação e transmitem com outrem. A técnica consiste em adquirir o domínio dessas transaçõe:s para reti-
uma parte da herança da psicanálise sem querer, ou sem saber, reconhecer sua ficá-Ias ou ajustá-las.

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infantis (versão que seria sobretudo a da bioenergia e do grito prima!) ou ex- trabalham para a realização de nossas capacidades inatas de indivíduos ou de
pressar desequilíbrios de organização atual (versão Gesfalt-terapia) se ligam membros cooperativos de uma sociedade cooperativa. " 17
assim principalmente sob a forma de bloqueios corporais. Uma parte impor-
tante da atividade terapêutica consiste então em exercícios de expressão cor-
poral para liberar essas cargas emocionais. As sessões têm freqüentemente lu- 2. TRABALHAR O CAPITAL HUMANO
gar sob a forma de atividades de grupo. Essãs técnicas elaboradas nos anos cin-
qüenta têm de fato quase fusionado no decorrer do decênio seguinte, com Que sobra então, sob a oposição absoluta de dois regimes de verdade e
uma série de pesquisas e de experimentos sobre os grupos inaugurada primeiro de prática, que autoriza a colocar essas tendências na dependência da psica-
num contexto experimental pela escola de Kurt Lewin, depois reinterpretada nálise? Essencialmente, duas coisas:
pelo movimento da psicologia humatiista e rogeriana, ele mesmo penetrado De um lado, são constituídas em relação à psicanálise, e contra ela. É na
por correntes da contracultura. 16 constatação de carências próprias à psicanálise que construíram o que parti-
É provável que um psicanalista negaria qualquer filiação entre essas téc- lham de positividade. A acentuação posta no trabalho do corpo repousa em
nicas e a psicanálise. E não se trata aqui de subestimar as diferenças. Acen- uma crítica do intelectualismo freudiano, o culto do hic et nunc se opõe às
tuando a situação presente ( o famoso "aqui e agora") do qual a Gestalt-tera- durações do merg_ulho na história infantil, as manipulações técnicas de super-
pia em particular tentou uma reinterpretação clínica, essas técnicas reduzem fície querem provocar curto-circuito na pesquisa dos processos primários, a
ao mínimo a parte da historicidade, que acham essencialmente sob a forma de espontaneidade do contato se opõe à dialética da transferência e da contra-
traços inscritos no corpo; também não se trata de mecanismos primários, subs- transferência, etc. São tantas maneiras de dizer que a despeito de seu simplis-
tituídos por fluxos de energia; uma grande desconfiança e às vezes um despre- mo, essas aproximações pretendem ser alternativas da psicanálise: pretendem
zo do intelectualismo e da especulação, que corre o risco de afastar o cuidado ter sucesso lá onde esta teria fracassado e assumir o essencial de sua ambição.
de v~rdade que conduzia Freud a sempre reestruturar suas descobertas em Querem reencontrar sua positividade verdadeira reinterpretando-a no quadro
novos conjuntos teoricamente coerentes; no lugar, um pragmatismo que auto- de uma abordagem mais eficaz, mais realista e mais democrática.
riza a si mesmo a mudar de hipótese ou a modificar a técnica em função da Mas, sobretudo, essas abordagens retomam, exploram e instrumentali-
rentabilidade imediata; pouca preocupação em explorar e escutar, mas a impa- zam prosaicamente um aspecto fundamental da descoberta freudiana: a possi-
ciência de intervir, de calafetar, de manipular, de reduzir a falha mais do que bilidade de trabalhar o próprio conceito de normalidade.
avaliá-la, etc.
Essas aproximações são também quase intermutáveis: vê-se os mesmos
O trabalho sobre a normalidade
animadores empregarem sucessivamente toda a sua gama, ou fazê-las funcionar
juntas segundo um ecletismo sem complexo. Damos aqui uma amostra desse Em relação à tradição da medicina mental, Freud foi profundamente
sincretismo: "Nós nos abrimos à política, filosofia, sociologia, religião, ciên- inovador, no fato de que não concebeu a intervenção de um profissional na
cia, economia, e estendemos as mãos às pessoas a que dizem respeito esses problemática psíquica no quadro exclusivo da procura da cura. Sem dúvida,
domínios para lhes oferecer o melhor de nossos valores e de nossas técnicas a cura psicanalítica clássica da neurose se prende preferencialmente a casos
humanistas, a saber, a integração da totalidade da pessoa: suas emoções e sua ainda qualificados de patológicos. Mas é para descobrir logo que um equilí-
inteligência, seu corpo e sua alma, o desenvolvimento das ciências humanas brio psíquico não constitui nunca um dado definitivo, natural, no máximo
segundo modos que reconhecem nossas qualidades humanas intrínsecas e que um corte atual numa dinâmica interna, cujo acabamento não é fixado a priori.
Uma análise é bem "interminável'' nesse sentido: o trabalho de elucidação do
eu e de transformação de si que ela instaura nunca termina.
16
Para corrigir o que tem de demasiado panorâmica esta apresentação, podemos nos re-
portar à exposição de Kurt W. Back sobre a América, Beyond Words, New York,
17
1972, ou a CASTEL, F.; CASTEL, R. & WVELL, A. "La societé psychiatriqÚe Prospectas de convite do "Terceiro Congresso Europeu de Psicologia Humanista",
avancée". Op. cit., cap. VIII: "Os novos consumidores de bens psi." Genebra, julho de 1979.

142 143
Além dessa descoberta, convidar a relativizar as noções de normal e de prir. Como ultrapassar a contradição sempre renascente entre um certo uni-
patológico, ela implica que a normalidade não é um estado definido, uma versalismo das categorias psicanalíticas quando elas se aplicam à interpretação
vez por todas, mas uma situação sobre a qual se pode sempre intervir. O recur- das realidades sociais e políticas e o particularismo das práticas psicanalíticas
so a uma tecnologia psicológica não tem por único objetivo reparar (curar), limitadas pelo rigor (ou a rigidez) do método freudiano?
nem mesmo manter a saúde (prevenir), mas pode servir para explorar, apro- As "novas terapias" podem atenuar essa contradição, de uma só vez no
fundar, trazer um acréscimo que não Se contentaria em calafetar um disfun- plano do fosso entre a existência de demandas pessoais e da possibilidade de
cionamento. A ambigüidade que trai a expressão de "terapia para os normais" respondê-las e no de mais amplas aplicações sociais das tecnologias psicológi-
já está inscrita no coração da psicanálise. Aproximada por razões históricas à cas. No plano pessoal, propõem uma "psicanálise do pobre", através de alguns
tradição médica, ela é também uma teoria e uma prática geral do funciona- fins de semana no campo, ou uma sessão semanal de grupo, durante algwis
mento psíquico. meses. Essas práticas comportam incontestavehnente benefícios não negligen-
De fato, um grande número de práticas psicanalíticaS deixou pa8sar ciáveis. Elas quebram a prosopopéia monótona e solitária do divã, e permi-
progressivamente indicações mais ou menos terapêuticas ( ou mais ou menos tem, no decorrer do itinerário terapêutico, atar relações, ter aventuras e ami-
didáticas para os profissionais) para experiências, nas quais o que estava em gos, quem sabe, encontrar um trabalho tomando-se ele mesmo animador de
jogo era a procura de uma verdade e de uma dinamização de si. Se a psicaná- grupo.
lise fascinou a esse ponto, é que propunha, alé.m do modelo terapêutico, esta Mas o principal é a generalização da "terapia para os normais", para
eventualidade de um mergulho no psicológico que renovava as delícias da retomar a rica ambigüidade de uma expressão que serve, às vezes, nos Estados
introspecção escapando à melancolia do narcisismo contemplativo à Amiel. Unidos, para qualificar esses métodos. Se tomarmos ao pé da letra essa metá-
Mas, abrindo-se a esse programa, a psicanálise era presa numa contra- fora, ela significa primeiro que é a normalidade que funciona a partir de então
dição. Esta eventualidade de um trabalho sqbre si é virtualmente universal; como sintoma. De fato, essas aproximações partem (ou partiam, no seu come-
em sua versão psicanalítica, é necessariamente restrita a grupos muito limita- ço) de uma visão crítica da vida social como lugar onde se exercem constran-
dos, não somente por razões econômicas, mas também por causa dos recursos gimentos absurdos, exigências de disciplina e de rendimento incompatíveis
culturais, em tempo, em liberdade de espírito, que ela obriga a mobilizar. As com a expansão pessoal, as relações espontâneas entre os seres humanos, etc.
exigências e os prazos pedidos pelo rigor do método analítico fazem com que Suspeição, então, a respeito dos princípios e dos hábitos que regulam a socia-
sua democratização seja um mito. Universalista de intenção, a abordagem psi- bilidade comum. Mas, além desse elemento de crítica social que recolheu ecos
canalítica é elitista em suas condições de aplicação. De onde uma ambivalên- um pouco atenuados do movimento da contracultura nos Estados Unidos e da
cia a respeito da psicanálise, mistura de vontade e de frustração, que fez por contestação do período pós-68 na França, a expressão significa, do lado do
um lado a cama dos novos métodos. A psicanálise foi fantasiada por muitos indivíduo, que este não é um ser acabado, que pode ser o objeto-pessoa de um
como é a vida das princesas e das estrelas contadas pelo Jours de France a trabalho para desenvolver seu potencial e intensificar suas capacidades relacio-
donas-de-casa que sonham e.m sua cozinha com noitadas no cassino e palmei- nais. Como? Pelo emprego sistemático de técnicas psicológicas. O acabamento
ras sob a lua. do ser humano toma-se uma tarefa infinita, na qual não se terá nunca acabado
Assim, a psicanálise não pode responder à demanda social que lhe é de investir. As "novas terapias" fazem explodir - como a psicanálise, mas de
endereçada a não ser dilatando-se em relação à base estreita das práticas du!lis, uma maneira muito mais extensiva - de uma só vez o conceito de patologia e
em que sua legitimidade se funda. Ela se encontra, por conseqüência, constan- o de saúde, mas conservando a exigência de uma intervenção por intermédio
temente ameaçada por um desequilíbrio entre as cargas que ela pode realmen- de técnicas especializadas.
te assumir e as para as quais corre o risco de só fornecer cobertura ideológica. A vocação desta intervenção é a partir de então encarregar-se da proble-
Esse hiato é uma das causas da crise atual da referência psicanalítica em psi- mática da felicidade (o desenvolvimento) tão bem quanto da infelicidade (a
quiatria (cf. capítulo 3), mas poder-se-ia fazer a mesma análise a propósito patologia). No entanto, em relação às aspirações vagas do senso comum ou da
do trabalho social, da pedagogia institucional e todos os setores onde se im- especulação moral ou filosófica, a psicologia faz a prova de sua positividade
plantou e onde está sempre sob ameaça de prometer mais do que pode cum- científica propondo técnicas para cumprir um tal programa. Vontade de uni-

144
145
A promoção do relacional
versalismo que toma, às vezes, aspectos quase caricaturais, como quando a
análise transacional propõe suas receitas não somente para o tratamento dos O público afetado por tais práticas não representa sem dúvida uma au-
psicóticos, dos bebedores, dos fumantes ou dos obesos, mas também para diência maciça, embora o número de adeptos pareça alcançar o dos clientes da
melhorar as relações no seio da famt1ia normal ou para aumentar o rendimen- psicanálise. 19 A primeira área de recrutamento situou-se, aliás, nas fronteiras
to dos funcionários de uma empresa. _
18 da psicanálise, junto a um público do qual já assinalamos a ambivalência a
respeito da institucionalização estreita da promessa freudiana: Pessoas em ge-
As novas terapias testemunham assim o fato de que é possível instru- ral menos afortunadas, jovens ou relativamente jovens (idade média: trinta)
mentalizar a subjetividade e a intersubjetividade por intervenções exteriores. em estudos ou tendo-os abandonado, pouco integradas familiar e socialmente,
Elas promovem uma visão do homem pela qual se concebe ele mesmo como espiadas por um futuro incerto. 20 Todavia, a audiência se amplia progressiva-
um possuidor de uma espécie de capital (seu "potencial"), que gere para dele mente a elementos que transbordam essa franja: jovens desempregados, mili-
extrair uma mais-valia de gozo e de capacidades relacionais. Há em suma indi- tantes políticos decepcionados, mulheres domésticas que se aborrecem, etc.
víduos subdesenvolvidos e em via de desenvolvimento como os tecnocratas Ela se estende também para os profissionais da saúde e da relação.
dizem dos países do terceiro mundo. E, para se desenvolver, é preciso, literal- Assim, no Centro de Desenvolvimento do Potencial Humano(C.D.P.H.),
mente, investir e trabalhar, fazer frutificar seu potencial humano. que é, com sua quinzena de formadores muito profissionalizados, o mais im-
portante dos organismos franceses de aprendizagem desses métodos, observa-
Emerge, assim, a possibilidade de fazer rombos nas esferas da existência se desse ponto de vista uma evolução interessante da clientela. Há cinco anos,
privada, da intimidade e da intersubjetividade que tinham escapado a prece- os quatro quintos dos participantes freqüentavam estágios de sensibilização
dentes empreendimentos de racionalização segmentária. O que Taylor, ou a para se familiarizar com as técnicas e um quinto somente empreendia uma
psicologia industrial, ou a psicofísica promoviam como possibilidades de me- verdadeira formação. Hoje a proporção se inverteu.
dida e de manipulação de uma dimensão do homem - na qualidade de produ- Seria preciso aqui distinguir a reinjeção dessas abordagens no domínio
tor ou suscetível de realitar ou não realizar tal ou tal performance profissional da terapia e da paraterapia e no do mais amplo, que é coberto pelo que se po-
ou escolar - se encontra aqui globalizada. Essas abordagens podem efetiva- deria chamar as profissões da relação, as que compreendem também os educa-
mente se dizer humanistas, pelo menos nesse sentido de que a totalidade do dores, trabalhadores sociais, certas categorias de ensino, de animadores, quem
homem que é levada em conta, não fosse para ser instrumentalizada. A au-
diência das novas terapias vem, aliás, em parte, de que atuam nesse duplo re- 19
Um número recente da revista Sexpol. 29-30, 1979, recenseava oitenta instituições só
gistro, conservando uma referência cada vez mais mítica para a crítica social e
de prática da bioenergia, e de numerosas outras não responderam ao jornal. A
os prestígios revolucionários das grandes recusas, propondo ao mesmo tempo maioria desses centros de formação são pequenas fábricas precárias lançadas por
uma_ concepção perfeitamente pragmática da pessoa. Composto estranho do dois ou três animadores. Mas o ritmo de aprendizagem dessas técnicas e o turn-
rousseaunismo sonhador que exalta a espontaneidade e pretende lutar contra over dos clientes são bem mais rápidos do que no caso da psicanálise.
as alienações e os constrangimentos em nome da transparência dos indivíduo~, 20
Os principais dados relatados aqui foram recolhidos no quadro de uma abordagem do
e de uma procura infin1ta da receita técnica, indispensável para bem condu21r tipo etnográfico, cf. CARPENTIER, Jean; CASTEL, Robert; DONZELOT, Jac-
essa tarefa. Tomar-se livre aplicando um programa, construir a espontanei- ques; LACROSSE, Jean-Marie; LOVELL, Anne & PROCACCI, Giovanna. Resis-
dade a golpes de tecnologia; combater a alienação desdobrando uma bateria tências à medicina e desmultiplicação do conceito de saúde, C.O.R.D.E.S., Comis-
sariado geral do Plano, Paris, 1980; cf. em particular LOVELL, Anne. "Palavra de
de exercícios, da qual nos perguntamos, às vezes, se não se originam de sim-
curas e energias na sociedade: a~ bioenergias na França" (pp. 39-110) e LACROS-
ples ginástica. SE, Jean-Marie. "Uma cultura pós-terapêutica: modos de vida e clientela" (pp.
112-215). Esses dados quase recortam a literatura americana sobre o assunto e
nossa própria experiência desses grupos nos Estados Unidos, levando em conta,
18 JAMES, Muriel. The ó.K. boss, Reading, 1975, ou como ter sucesso nos negócios gra- no entanto, o fato de que o boom dessas abordagens se situa na América, no fim
dos anos sessenta e começo dos anos setenta.
ças à análise transacional.

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sabe, um número crescente de profissões de venda, de publicidade, da promo-
ção, do empresariado. ma coisa da implicação pessoal das psicoterapias, poderiam colocá-las em posi-
Na primeira categoria, essas orientações parecem em posição de recolher ção de concorrente sério em relação à psicanálise. Via paralela, mas que pode
uma parte da herança da psicanálise. Já existe um certo número de psicanalis- ser vivida como alternativa, em relação à qU'e foi aberta pelas terapias compor-
tas fatigados com as demoras do método, ou desencorajados pelas dificulda- tamentais, onde um mesmo cuidado de eficácia é associado a um objetivismo
des de aplicar em instituição, que se reCiclaram em bioenergia ou em análise "cien_tífico" qu~ ~~pugna ainda fre~üentemente aos profissionais da relação.
transacional, seja que se trate de uma conversão completa, seja que tenham E mais, sua flextbilidade e seu ecletismo lhes servem para funcionar em asso-
em vista novas técnicas como uma abordagem não antagonista com a análise ciação, sem exigir tomar todo o lugar; elas podem, assim, calafetar as brechas
e convindo melhor a certas indicações. Outros manifestam a respeito do movi- em dispositivos existentes ou em via de implantação. Elas também começam a
mento uma real curiosidade, freqüentemente um pouco condescendente. Tes- cobrir toda a gama, do setor mais privado e mesmo o mais marginal (esses
temunha o livro que Roger Gentis consagrou recentemente às correntes oriun- pequenos organismos de existência quase sempre efêmera fundados pelos ani-
das da bioenergia; 21 testemunha também o fato de que a Associação Francesa ma~or~s pouco profissionalizados que só têm a autoridade de si mesmos), até
de Psicologia Humanista realizou no ano passado em Paris um sel!linário onde o publico (alguns hospitais psiquiátricos).
vários psicanalistas do establishment não desdenharam fazer conferências.
Alguns dos adeptos mais profissionalizados dessas orientações trabalham, As novas terapias devem essa riqueza à posição de junção que são susce-
aliás, em uma síntese da bioenergia e do lacanismo, e uma instituição de bio- tíveis de ocupar em relação às intervenções que visam ao campo da patologia.
energia sonha mesmo tomar-se "o quinto grupo" psicanalítico. De um lado, inscrevem-se ainda num domínio terapêutico bastante tradicional
As chances de futuro dessas técnicas são reais, na medida em que sedu- mesmo ultrapassando-o: mais flexíveis que as abordagens psicanalíticas clássi-
zem mais os que entram atualmente em formação, e num nível de profissio- cas, atraem um novo público em nome de uma concepção ampliada da relação
nais médios, do que os que já estão formados, e no nível médico. A escolha de terapêutica. Mesma situação em relação às indicações de psicanálise que subs-
fazer uma psicanálise é freqüentemente uma prova a temer para um psicólogo, tituem ou as quais suplementam sob certas condições. 23 Mas, sobretudo, essas
um educador ou um paramédico. Mas a necessidade de se engajar nela era sen- abordagens, ~iviando o apetite da psicologia por novas franjas da população,
tida como uma necessidade social para ter acesso a uma prática psicoterapêu- estendem-se a esfera do que se poderia chamar o "paraterapêutico", quer di-
tica reconhecida, pelo menos porque a psicanálise reinava de maneira hegemô- zer, esta nebulosa de intervenções que engorda nos limites da patologia e do
nica. Que de um lado a legitimidade da psicanálise se enfraqueça, e que, de mal-estar existencial. O sentimento de viver ao lado de sua vida não suscita
outro, se apresentam alternativas menos dispendiosas, em todos os sentidos da realmente uma demanda de terapia: não é uma doença, mas sobretudo um
palavra, a tentação é grande de se voltar em direção a esses substitutos meno- conjunto de insatisfações e de frustrações, que recortam ao menos em parte
res aos quais muitos começam a ceder. algumas motivações da clientela da psicanálise, mas podem ser, a partir de
Uma integração possível dessas técnicas se desenha assim em direção a então, tratados de um modo ao mesmo tempo menos caro, mais democrático
vários tipos de instituições terapêuticas ou paraterapêuticas. Sem dúvida, elas mais flexível e mais selvagem. '
permanecem limitadas. Só algumas instituições públicas integraram as novas Essas novas terapias se inscrevem assim nesse vasto setor ainda mal bali-
terapias em seus programas terapêuticos. 22 Mas o proselitismo dé seus adep- zado onde, entre o exercício clássico da neuropsiquiatria e da psicanálise em
tos, o fato de que se possa ayaliar imediatamente alguns de seus resultados, a clientela privada, por um lado, e as instituições públicas, hospitais psiquiátri·
possibilidade de aplicá-los em grupo, e também o fato de que conservam algu-
23 A
enque t e empmca
'· mostra que as relações entre psicanálise e bioenergia, por exem-
21 plo, são muito mais complexas do que se pensaria a priori. Às vezes a bioenergia
GENTIS, Roger. Lições do corpo, Flammarion, 1980.
22
intervém como alternativa à psicanálise para os que não poderiam ou não quere-
Por exemplo, no hospital psiquiátrico de Montfavet, perto de Avignon ou no Instituto riam t~r acesso a ela, às vezes ela a sucede para inúmeros decepcionados do divã,
Marcel-Riviêre, na região parisiense. Algumas dessas abordagens, tal como a análise como as vezes ela a precede, alguns adeptos da bioenergia experimentando a ne-
transacional, começam também a se integrar às práticas do setor psiquiátrico. cessidade de prosseguir o processo num quadro mais clássico. Cf. LACROSSE,
J.M. "Uma cultura pós-terapêutica: modos de vidas e clientelas." Op. cit.
148
149
ços e serviços de setor, por outro, aparece uma multidão de novas deman- Poder-se-ia provocar análises do mesmo tipo em outros setores da so-
das e de novas respostas a essas perguntas: centro de conselhos conjugais e de ciedade contemporânea, onde profissões de longa data, animadas pelo cuidado
terapia sexual, terapia familiar, fins de semana de encontro e mesmc- centros do contato humano até os domínios dominados pelas exigências de rentabili-
de medicina paralela de diversas origens onde o que é kvaúo em conta é pelo dade, como a empresa ou os ofícios da venda, se desenvolve esse mercado de
menos tanto um pedido de atenção relacional quanto de cura. Vasto mercado promoção do relacional. Seria, portanto, muito difícil, e sem dúvida vão, ten-
dos bens de saúde que está substituindo esse mercado dos bens de salvação do tar medir com exatidão o que se deve, propriamente falando, às técnicas pós-
qual Max Weber fazia a essência da religião. psicanalíticas nessa promoção. Elas se inscreveram sem solução de continui-
dade nesse movimento de fundo, que, desde o fim do século XIX, multiplica
Terapêutica, paraterapêutica, mas também extraterapêutica. Opera-se, os recursos de uma competência psicológica para enfrentar os problemas, seja
de fato, com o mesmo ecletismo, uma reinjeção maciça dessas tecnologias re- propriamente pessoais (clínicos e, agora, existenciais), seja de organizações
lacionais em setores que, eles, desenvolveram-se de maneira totalmente estra- ( contribuir para o bom funcionamento de certas instituições ajudando-as a
nha em relação à clínica, a saber, a empresa, o empresariado, o comércio, a selecionar seus membros, mensurar suas atuações, resolver seus conflitos inter-
publicidade, etc. Se estes métodos abarcam a fronteira do normal e do patoló- nos, etc.).
gico, é de fato natural reencontrá-los em todas as situações onde existe um
problema relacional. Por exemplo, a lei de 1971 sobre a formação permanente Mas, se tudo fosse assim, que haveria de novo nessa evolução em relação
abriu-lhes um mercado inesperado, prevendo consagrar o centésimo da massa à constatação, estabelecida há muito tempo, da inflação do psicológico em
salarial a financiar atividades de formação contínua ou de reciclagem. O impe- nossas sociedades? Que trazem a mais essas novas técnicas, a não ser enrique-
rativo que põe para a frente essa ideologia do renovamento perpétuo é apren- cer a palheta das modalidades de intervenção no homem? Desde que existem,
der você mesmo a mudar, quer dizer, a exigência de trabalhar sua própria dis- a psicopedagogia, a psicotécnica, a psicologia industrial, e, mais recentemente,
ponibilidade e sua flexibilidade relacional, pelo menos tanto quanto seus o comportamentalismo, sempre se situaram além ou ao lado da visão repara-
conhecimentos. Como de fato enfrentar as mudanças tecnológicas e os impe- dora da clínica. Na própria linhagem da medicina mental, a tradição da higie-
rativos da concorrência, se não fazendo do trabalhador um ser sem asperezas ne logo se desprendeu do modelo clínico para promover um trabalho sobre a
e sem crispação, cujas capacidades são mobilizáveis a qualquer instante? Mas "normalidade". Desde 1930, Adolphe Meyer, líder da psiquiatria americana,
como conseguir isso, se não for perseguindo seus bloqueios e suas resistências, duplamente influenciado pela psicanálise e pela higiene mental, formulava o
cultivando uma espontaneidade reencontrada, capaz de responder às injun- que poderia ser o programa da escola-medicina contemporânea: "A higiene
ções do presente? mental como filosofia de prevenção é um princípio diretor para trabalhar tan-
Milhares de "animadores de formação", pertencentes a uma poeira de to quanto possível com os valores da vida, antes da diferenciação do normal e
organismos públicos, semipúblicos e particulares, enfiaram-se nessas ranhuras. do patológico." 24
Vêm dispensar as tecnologias relacionais em direção ao mundo do trabalho, e A novidade, de fato, é dupla. De um lado, um tal programa pode ultra-
mesmo do mundo da falta de trabalho, pois é ainda mais importante para um passar as piedosas declarações de intenção para se instrumentalizar numa am-
profissional carente de emprego, por exemplo, reciclar a vida de modo a exer- pla escala, porque dispõe de uma panóplia nova de técnicas. Em segundo e,
cer o comando e trocar suas competências; é mesmo quase a única coisa que é sobretudo, tomando-se a si mesmo como objeto e fim de uma experimentação
possível fazer, já que ninguém sabe exatamente para qual posto novo, exigin- psicológica, o homem descobre uma propriedade inesperada do trabalho psi-
do quais competências técnicas exatas, ele é suscetível de ser indicado. Atra- cológico, a de criar ela mesma uma fonna nova de sociabilidade. A "cultura
vés de diferentes tipos de estágios, o carente de emprego tornou-se assim a das relações" empreendida de longa data por meio da psicologia está <lesem-
matéria-prima de uma nova indústria de transformaÇão do capital humano,
pois de todos os indivíduos sociais são sem dúvida os desempregados que es- 24
MEYER, Adolph. The organization of community facilities for prevention, care and
tão melhor colocados, se se pode dizer, para aprender a mudar, a fim de cons- treatment of ne;rvous and mental diseases. Proceedings of the First International
tituir uma força de trabalho completamente disponível nas condições ideais Congress of Mental Hygiene, II, New York, 1932.
de reciclagem.
150 151
bocando numa "cultura relacional" no seio da qual a mobilização psicológica Tais regras estruturam o campo de uma socialidade que se basta a si
se coloca como um fim em si, que satura todos os valores da existência. mesma, no sentido em que é completa em seu acabamento, à exceção de seu
caráter intermitente. Os ideólogos do movimento têm certo um discurso sobre
A vida de rede a sociedade em geral concebida como fator de alienação, com suas hierarquias
rígidas, a coisificação das relações pessoais sob as exigências de rentabilidade,
Vejamos _o que se passa num "grupo de encontro" (encounter group},
etc. Mas não existe nunca análise desses mecanismos sociais por si mesmos, da
por exemplo. E um espaço artificial construído para a experimentação dessas
maneira como aí funciona realmente a autoridade, cujo poder se encarna e se
novas técnicas, em geral centrado na aprendizagem de uma delas (bioenergia
" , exerce em estruturas, instituições, classes. A alienação social se reabateu sobre
G estai t, maratona", etc.). Um grupo pode constituir-se de um ou vários fins
suas implicações pessoais, e não se pode liberar a não ser por uma estratégia
de semana, ou uma sessão por semana, à noite, durante algumas semanas ou
individual. Oposição não dialética à sociedade, já que ela se contenta em inver-
alguns meses, sob a conduta de um ou dois animadores. Os participantes, em
ter os sinais da alienação: à negatividade dos constrangimentos se opõe a posi-
geral, não se conhecem antes. Vão livremente, quer dizer, baseados numa
tividade de uma natureza. Mas, na medida em que a alienação preexiste, a
motivação que lhes é própria. A atmosfera é informal, o que significa que seu
nat~reza hão vem por acréscimo e é preciso reconstruí-la por técnicas psico-
formalismo põe entre parênteses as formas da sociabilidade comum, as quais
lógicas, trabalhar no espaço do grupo a imanência da pessoa para dela fazer
repousam no estatuto e papéis sociais para representar o jogo de uma sociabi-
jorrar o modelo de uma sociabilidade vivível.
lidade vazia ( ou plena) que tem seu próprio rigor. Duas regras de partida pelo
menos, a aceleração dos contatos e a maximização das reações. Tal como é orquestrado nos grupos de encontro, esse trabalho sobre o
Em virtude da primeira regra, os participantes são convidados a repre- eu tem um caráter descontínuo. 25 Existem portanto experiências mais próxi-
sentar os papéis que exprimem a proximidade e a intimidade com outrem e a mas da vida social comum, como as "escolas de verão", "comunidades de
travar relações verdadeiras entre eles. Existe uma contradição aparente entre verão", "espaços do possível", etc., que se desenvolveram no ambiente do
esta exigência de um reconhecimento intenso do outro em sua unidade pro- movimento. A função de aprendizagem das técnicas é aí atenuad~, ou abo-
funda, além dos estereótipos e o fato de que outrem seja rigorosamente inter- lida, pelo vivido contínuo desses valores durante algumas semanas ou alguns
mutável. Mas ela se resolve no fato de que o interlocutor, como si mesmo, é meses. A efervescência grupal se faz estilo de vida, tornando-se a lei de uma
a cada vez uma pessoa em si, a totalidade realizada de uma existência na eter- comunidade de existência. "Instituições a-normativas", 26 nesse sentido que
nidade de um presente sem referências sociais e sem gênese histórica. recusam as normas da sociedade comwn, mas através da encenação de seus
próprios rituais. Aliás, ·mesmo os participantes de grupos descontínuos vão
A segunda regra consiste em exprimir livremente suas emoções (feel-
ings), e principalmente as que são objeto de uma censura social. Transgressão freqüentemente de grupos em grupos, à procura, a um só tempo, da última
das normas da civilidade ou, sobretudo, desrecalcamento: pode-se assim gritar, novidade e da exposição no tempo das "experiências no cume" {peak expe-
chorar, manifestar sua agressividade, vomitar, ser deliberadamente provoca- riences). Eles desenvolvem uma espécie de subcultura que se reconhece por
dor, ou mais temo do que normalmente ê requisitado. Alguns grupos autori- sua linguagem, por uma certa maneira de entrar em contato, ao mesmo tempo
zam passagens ao ato sexual, mas é a exceção. Assiste-se em todo caso a uma intensa e sem implicação, como se tudo se jogasse a cada golpe (hic et nunc}
com, no entanto, a consciência de que existe uma infinidade de partes e que
encenação da vida social sob a forma de sua histerização, numa grandiloqüên-
cia, uma desmesuração, no sentido literal, que pode surpreender o observador
quando ele constata, por exemplo, que uma pessoa que "trabalhou" durante
dez minutos no paroxismo pode secar repentinamente suas lágrimas e retomar
" Mesmo se uma das características dessas técnicas é sua capacidade de ultrapassar 0
corte entre as situações "de trabalho" (homólogo do dispositivo da cura) e a vida
comportadamente seu lugar enquanto seu vizinho o sucede. Hipertrofia que diária. Os exercícios técnicos podem ser transportados e reatualizados nas situa-
representa a passagem ao limite de intensificação do que se vive habitualmen- ções mais comuns. Essas abordagens são assim as operadoras de uma espécie de
te em marcha de cruzeiro marítimo. Dir-se-ia a ubris dos tempos gregos, mas novo higienismo centrado no corpo. Cf. LOVELL, Anne. "Palavras de cura e
energias em sociedade". Op. cit.
os deuses não vão ao encontro: é bem uma imanência radical que essas tentati-
26 LACROSSE, Jean-Marie. "Uma cultura pós-terapêutica". Op. cit.
vas tencionam descolar.

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elas são todas as mesmas. Droga ou estilo de vida que se basta a si mesmo? gração social que são a família e o trabalho. A família: encontramos nesses
Como dizia um animador desses grupos, universitário conhecido: "Desde que grupos uma nítida maioria de pessoas não casadas, nela compreendidas as
estou nesse meio, as outras formas de encontros não me interessam mais. Não idades que se caracterizam normalmente por uma forte taxa de conjugalida-
suporto a frieza e os constrangimentos das relações sociais e dos jantares na de. 30 O trabalho: numerosos adeptos das novas terapias se dedicaram a peque-
cidade." Intensificação das relações, mas ~em o quadro de um comércio inscri- nos trabalhos, mudando freqüentemente de_ empregos e se deixaram contratar
to nas estruturas sociais e na história, a cultura psicológica vê-se como um fim aquém de seu nível de qualificação. Mais significativo ainda seria o fato de
em si. É como uma democratização do que já se teria podido chamar uma que a metade dentre eles, mais ou menos parece em situação de mobilidade
"cultura do divã", esta maneira inimitável, observável nos velhos freqüenta- descendente em relação a seus pais. 31
dores da psicanálise, de recobrir sua vida real com um duplo fantasmático no Voluntariamente ou não, uma forte proporção dessas pessoas não é co-
qual eles existem mais ainda do que para o prosaísmo cotidiano. locada nas trajetórias sociais que passam ou passavam por comuns. Mesmo
Essas novas técnicas alimentam assim um ethos, pelo qual o desenvolvi- para aqueles que apresentam os sinais exteriores da conformidade social, uma
mento de seu potencial psicológico e a intensificação de suas relações com os análise mais fina detecta um ponto de ruptura. Interrogado sobre os motivos
outros podem tornar-se o alfa e o· ômega da existência. A psicologia faz aí a que levam professores, psicólogos, e mesmo às vezes diretores de empresas a
experiência de sua própria finalização como atividade autônoma, de uma só freqüentar seu centro, um dos mais caros, um animador descreve assim sua
vez porque as outras dimensões da existência estão a ela subordinadas, e por- clientela: "Uma quantidade de pessoas são o que se poderia chamar 'desfilia-
que esse porvir passa por uma implicação em um novo universo pleno de rela- dos' em sua profissão ou em sua vida social. Instalaram-se na beira. Não
ções do qual não acabaremos nunca de dar a volta. Entrar na cultura relacio- podem se identificar com os grupos com os quais trabalham e não podem
nal é abordar uma paisagem social de contornos fluidos, munida da única cer- também encontrar uma alternativa de valores. Muitas chegam aqui com um
teza de ter perpetuamente que retecer a imagem frágil de uma sociabilidade certo anticonformismo. São marginais, porque não conseguem se adaptar.
perfeita, cujos pedaços estão exibidos num universo unidimensional do psi- Não estão colocadas em posição de exclusão, mas protestam contra sua pro-
cológico. fissão, por exemplo. " 32
Qual pode ser a significação social dessas novas práticas? Se nos ativer- Simples estado de alma dos pequenos-burgueses que representamosnão-
mos ao círculo dos que poderíamos chamar "os amigos e sustentadores das conformistas? Últimos sobressaltos do pós-68, ecos amortecidos de uma con-
novas terapias" ,27 sua audiência permanece limitada. Mas, já nesse nível, duas tracultura em via de banalização? Tais julgamentos de valor pesam menos do
características devem ser sublinhadas que poderiam fazer desses pseudomar- que a constatação segundo a qual as características que saturam atualmente
ginais espécies de testemunhas dos tempos futuros. 28 certos meios, minoritários certamente, e marginais talvez, são precisamente
Por um lado, a clientela desses grupos é recrutada a partir de redes so- as que as transformações atuais da estrutura social generalizam em larga esca-
ciais que têm pouco a ver com a terapia. Trata-se de um público em ruptura la. Mais do que uma estrita ligação de classe, são de fato diferentes fatores de
mais ou menos aberta com as formas admitidas da sociabilidade normal fllil- não-integração e/ou de não-investimento social, impossibilidade de encontrar
dada em afinidades culturais e eletivas, franqueadas das diferenças estatutá- um trabalho ou desinteresse no trabalho, falta de investimento de ordem fa-
rias e das obrigações sociais codificadas. 29 Em particular ele manifesta uma miliar, crise de certezas políticas, etc. Sentimento de que a vida é um casco
distância, querida ou sofrida, a respeito desses dois fatores essenciais de inte- meio vazio que se enche com psicologia. Se se esfuma a eventualidade de
pontuar a existência pela sucessão de um certo número de papéis socialmente
27 30 Cf. LACROSSE, Jean-Marie. "Uma cultura pós-terapêutica". Op. cit. p. 172: uma son-
Transponho aqui uma expressão de Charles Kadushin ( Why people go to psychiatrists,
New York, 1969). dagem efetuada em cinqüenta pessoas mostra que somente um quarto dentre elas
28 são casadas na faixa de idade 30-40 anos.
Cf. CASTEL, Robert & LE CERF, Jean-François. O fenômeno psi e a sociedade fran-
cesa. "O Debate". Op. cit. III: "O após-psicanálise na França". 31
Idem. p. 173.
29 32 Apud LOVELL, Anne. Op. cit. p. 85.
Cf. LOVELL, Anne. "Palavras .de cura e energias em sociedade". Op. cit.

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defmidos da aprendizagem à aposentadoria, ou se a credibilidade desses obje- O social não é mais o que era
tivos some, subsiste uma espécie de eu bergsoniano para o qual as determina- Pretendendo-se exclusivas, tais críticas correm o risco, no entanto, de
ções sociais cessam de ter uma função definidora. A pessoa torna-se o itinerá- passar ao lado de um elemento novo da conjWltura contemporânea: a consti-
rio obrigado de um percurso infmito cujo desenvolvimento de seu próprio tuição de setores de práticas onde a psicologia se constitui análoga do social.
potencial é a única lei. Tal é pelo menos a hipótese que sugerem os mais recentes desenvolvimentos
Ora, as condições sociais que suscitam uma tal atitude correm o risco de da cultura psicológica. Virando a metãfora marxista, diremos que, da mesma
se agravar na conjuntura histórica atual. Isto não quer di~er que todos os mar- maneira que Marx viu na religião o sol de um mundo sem sol, o psicológico
ginais vão se tomar clientes das novas terapias; mas isto pode significar que a está se tomando o social de um mundo sem social. Da mesma forma que, no
cultura psicológica se apresenta como alternativa em uma situação em que os religioso, investe-se todo o poder que o homem não pode desdobrar no mun-
investimentos sociais se eximem, e tanto mais que as alternativas políticas es- do real, o psicológico invade e satura novos espaços liberados pelo refluxo do
tão embaralhadas. De gratificação acompanhando o exercício de outras ativi- social, faz a vez de social representando o estatuto de uma sociabilidade com-
dades (benefício secundário), a psicologia toma-se o objetivo primário, consti- pleta quando os fatores propriamente sociais escapam ao domínio dos atores.
tuindo uma sociabilidade vazia de qualquer outro conteúdo, a-social-sociabili- ·Esta intermutabilidade de uma "ordem pública" (no sentido em que o
dade para retomar uma expressão kantiana, que se esgota a desdobrar uma entendem os sociólogos americanos como Eiving Goffman ou Richard Sen-
combinatória relacional comportando seu fim em si mesma. nett, que defmem a public arder como um jogo de rituais sociais) e de uma
organização da existência correspondendo a encenações puramente subjetivas
começa a ser representado nos laboratórios de experimentação social que são
3. UMA A-SOCIAL-SOCIABILIDADE os grupos de encontro e outras "instituições anormativas". A despeito do
caráter aparentemente artificial ou marginal de tais situações, a dinâmica na
A crítica sócio-política da psicologia sempre se encarniçou a negar-lhe a origem dessa inflação do psicológico não é, ela, de natureza psicológica. Re-
mínima autonomia. E sem dúvida, à parte a abstração acadêmica de uma psi- mete a uma transformação de estruturas sociais. Por um lado, um número
cologia geral que estudaria as leis de funcionamento do psiquismo de maneira crescente de pessoas se encontram em ruptura, provisória ou definitiva, com
totalmente desinteressada, é fácil notar que a psicologia desenvolveu-se à som- as estruturas integrativas clássicas e são conduzidas a construir formas novas
bra de instituições das quais era chamada para dar paliativos a disfunciona- de sociabilidade. 33 Por outro lado, mesmo para aqueles que permanecem no
mentos. O que ê a psicopedagogia? Uma tentativa de resposta a problemas seio das estruturas familiares, de vizinhança, de emprego, observa-se uma evo-
que se colocaram diante das exigências do sistema escolar. O que é a psicolo- lução interna nesses grupos de participação que assim fazem no fmal pequenas
gia do trabalho? Uma maneira de levar em conta o fator humano da produção unidades relacionais autogeradas.
depois que ocasionou certas dificuldades diante das exigências do rendimento. Assim, a família. O discurso divulgado pelos adeptos do planejamento
Ninguém terá a ingenuidade de acreditar que os testes, por exemplo, quer se familiar, da Escola dos Pais, pelos porta-vozes das emissões radiofônicas espe-
trate de selecionar aptidões ou avaliar desempenhos, tenham podido ser inven- cializadas no conselho familiar ou conjugal, pelos jornais femininos e as rubri-
tados no interesse da Pessoa. cas "Sociedade" das revistas e semanários, faz repousar a realidade última da
Sobre essas bases desenvolveu-se uma contestação da psicofogia como família na capacidade de seus membros em intensificar suas relações e a regu-
máscara: o recurso à psicologia teria por função última dissimular propósitos lá-las pela psicologia. Esta ideologia não encontraria uma tal audiência se não
mais profundos, escamotear interesses mais gerais. Mesmo quando ela não é fosse verdade que a família, em particular na pequena burguesia, perdeu uma
invocada para desmanchar os conflitos de classe, ela economiza, na medida de
seus meios, as recolocações em questão dos sistemas estabelecidos: é menos 33 Por exemplo, nos Estados Unidos, durante os anos setenta, o número de indivíduos
dispendioso, por exemplo, tratar essas crianças problemáticas que são os deje- entre quatorze e trinta e quatro anos vivendo fora de qualquer forma de estrutura
familiar praticamente quadruplicou, passando de 1.500.000 a 4.300.000 (cf. TOF-
tos da organização escolar do que mudar a estrutura na origem dos tais pro-
FLER, Alvin. A terceira onda, Trad. francesa, Denoel, Paris, 1980, p. 265).
blemas.

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boa parte de suas funções tradicionais. A família se organiza cada vez menos não têm nada de marginais e também não se deixam reduzir a uma moda: a
em volta da transmissão do patrimônio numa estrutura econômica que faz da famI1ia como estrutura social existe numa ampla medida, através do trabalho
renda individual a fonte principal da riqueza; ela tem cada vez menos a res,. visando a produzi-la como estrutura relacional.
ponsabilídade da gestão das alianças quando os adolescentes autonomizam É a família normal que é hoje a maior consumidora da psicologia. As
seus próprios círculos de sociabilidade; ela assegura cada vez menos a prom0- fam11ias mais desestruturadas provêm sobretudo da Ajuda Social e de socorros
ção social de sua descendência quando a maioria das vias da mobilidade as- econômicos, e se recrutam em outras categorias sociais que não sã"o as que
cendente estão bloqueadas. têm acesso à cultura psicológica. O que motiva a ouvinte de tal programa
Permanecem evidentes fami1ias tradicionais organizadas em volta da ges- radiofônico é menos a vontade de encontrar paliativos de disfunções patoló-
tão de seu capital econômico, cultural, social e demográfico. 34 Mas, cada vez gicas do que a esperança de realizar uma "verdadeira" família, quer dizer,
mais, o que fica para gerir para uma família Hmédia", é a combinação de suas uma famfüa cuja vida relacional seja ao mesmo tempo intensa e harmoniosa.
relações interpessoais; é seu capital relacional que lhe dá seu plano de consis- A psicologia representa aqui um papel homólogo ao da cirurgia estética, cuja
tência e sua capacidade de resistência às pisadelas das instituições educativas finalidade é menos reparar os corpos do que lhes proporcionar uma mais-valia
e normativas concorrentes. Sem esse nexo intenso e conflitual de relações de de harmonia e de beleza.
cônjuges entre si, dos pais com os filhos, dos filhos com os pais, dos filhos
entre s1 através da imagem dos pais, .:. fam11ia correria o risco de se tomar
definitivamente uma estrutura porosa, esmigalhável, pois exposta a todas as A objetividade do psicológico
agressões externas, e deixada logo que um mínimo de socialização e de inde- Este novo modelo de animação social pela psicologia afeta até os seto-
pendência econômica fossem asseguradas. Para se defender, que pode ela pro- res que passam pelos mais firmemente estruturados pelas imposições da eco-
duzir, senão sentimentos e, como se diz, laços? nomia, como as relações de trabalho.
Sem dúvida uma tal efervescência sentimental sempre acompanhou o Sabe-se que as primeiras intervenções da psicologia no domínio das apli-
exercício das funções tradicionais da fam11ia, e a ordem familiar sempre foi a cações industriais foram motivadas pela preocupação de aumentar a produti-
terra natal das relações psicológicas essenciais. Mas esta estrutura de acompa- vidade. As constatações dos psicossociólogos de empresas insistiam na ligação
nhamento está se tornando uma estrutura de posição, na falta da qual a famí- entre o interesse portado às relações no seio de uma equipe e o aumento de
lia não seria mais do que um ponto de passagem obrigatório no percurso so- seu rendimento. Quando um pouco mais tarde a acentuação deslocou.se para
cial neutralizado. a melhora das comunicações e a racionalização das formas de exercício da
A partir dessa constatação, observa-se no seio e em volta da família uma autoridade, podia-se ainda ver no recurso à psicologia uma tática para des-
forte produção de mercadorias psicológicas destinadas a alimentá-la a partir montar conflitos sociais. A preocupação prioritária de levar em conta o fator
de dois núcleos principais, a sexualidade e a infância. Segundo cada um desses humano na empresa serviu de fato freqüentemente de álibi para não tocar em
eixos se desenvolve um duplo sistema de apoio que mobiliza sua constelação outras causas de afrontamento, como os salários ou as condições de trabalho.
de especialistas e de conselheiros. Instrumentalizar uma sexualidade conjugal "Tomava-se cada vez mais evidente para nós que as principais condições im-
e uma intensificação afetiva entre cônjuges é uma idéia que não vai sozinha, plicadas no fracasso (dos operários) eram pessoais e constitucionais; que elas
se nos lembrarmos de que, da literatura cavalheiresca ao romance burguês, o diziam respeito i economia dos próprios operários, mais do que à eventuali·
amor, físico ou platônico, construiu no Ocidente seu mito contra a família. dade de uma sorte contrária, ou a horríveis condições de trabalho, ou à situa·
Programar uma harmonia educativa em direção dos filhos não é outra evidên- ção econômica geral, ou a outros fatores desse tipo. " 35 Assim se exprimia um
cia, já que o próprio Freud, ourives na matéria, a julgava ainda por cima con- dos primeiros psicossociólogos industriais em meio à grande crise econômica
denada. Portanto, os esforços atualmente desenvolvidos nessa dupla direção dos anos trinta.

34
Cf. SAINT-MARTIN, Monique de. "Uma grande famllla". Atas da pesquisa em ciên- 35 ANDERSON, V.V. "The Contribution of Mental Hygiene to Industry'", Proceedings
cias soei.ais, 31 jan. 1980. of the First Jnternational Congress of Mental Hygiene. Op. cit. p. 698.

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Portanto, sem que tais finalidades sejam excluídas, elas cessam hoje de As questões suscetíveis de um tratamento psicológico são assim empurradas
esgotar O sentido do recurso à psicologia. Para retomar uma distinção de Jac- ao primeiro plano. Mas esse primeiro plano se põe a ocupar todo o palco se
ques Delors, entre três níveis de problemas nas negociações sociais - o das não houver outros. A promoção do relacional se desenvolve assim no vácuo
oposições irredutíveis, o da disputa inevitável e o das convergências possí- deixado pelo deslocamento de um certo número de centros reais de decisão,
veis36 -, existem sem nenhuma dúvida oposições que podem ser radicais da mesma maneira que, no quadro familiar, completava no recuo os papéis
entre parceiros sociais no plano das opções políticas fundamentais. Mas a refe- estruturados pelas tradições .
rência a um transtorno das estruturas econômicas perde toda consistência .Constatar essa relativa autonomização do psicológico não significa abso-
estratégica a partir do momento em que as próprias organizações sindicais e lutamente dar um estatuto autônomo à psicologia. De um lado, esta política
de oposição fazem seus os objetivos do desenvolvimento social e do cresci- das relações tem efeitos que não são somente psicológicos. Assim, na empresa,
mento econômico. Os parceiros sociais podem acampar em posições políticas ela pode contribuir a lutar contra a ausência ou aumentar o investimento do
irredutíveis, participando, ao mesmo tempo, do mesmo complexo sócio-eco- pessoal em seu trabalho. Ela pode ainda ajudar a desmontar certos conflitos
nômico. Desde então, os afrontamentos concretos dizem respeito à partilha sociais. Mais profundamente, mobilizando todas as energias em proveito da
dos lucros, à organização do trabalho, à defesa, ao alargamento ou, ao contrá- empresa, cuja competitividade é o imperativo categórico, esta dimensão psico-
rio, à restrição das vantagens adquiridas. Domínio da "disputa inevitável" sem lógica tem implicações econômicas essenciais. Nas grandes firmas modernas,
dúvida, já que os interlocutores tent~m, numa certa conjuntura, maximizar sua cultura é objeto de novas estratégias do gerenciamento que consistem em
suas vantagens numa relação de força que diz respeito ao emprego, aos lucros, delegar amplas margens de iniciativa e a transformar, na medida do possível,
aos salários, às aposentadorias; à duração do trabalho, etc. os executantes em decididores. 37
Mas, cada vez mais, as imposições do mercado, a concorrência interna- Nada então de desinteressado aqui. Nada também de espontâneo. O
cional, a política das multinacionais e dos bancos definem para o essencial as lugar que atrai o interesse para o psicológico e o relacional não resulta de uma
estratégias de uma empresa, o custo dos produtos e as margens de aumento descoberta tardia das virtudes da convivência. Ele expressa sobretudo um esta-
salarial. Quando operários afrontavam um patrão particular, quem sabe o do do sistema de produção onde as imposições objetivas da economia são
patronato das Minas ou da Siderurgia em uma greve, do conflito podia sair um colocadas fora do alcance das pessoas, que não têm outro recurso senão traba-
sucesso ou um fracasso determinados para o essencial pela relação de força lhar o espaço de seu próprio potencial e de suas relações. É mais fãcil mudar
interna. Agora, bem ligeiro se disse que em razão da mundialização da econo- seus desejos do que a ordem do mundo: a fórmula não é nova mas, o que é
mia, um aumento forte demais dos salários comprometeria a realização do novo, é a disposição de tecnologias psicológicas para mudar um imperativo de
Plano, a política de exportação, ou faria crescer ainda mais o desemprego. moral provisória em programa permanente. É também a descoberta de que a
Que resta então a decidir num organismo de produção, quando o essen- finalidade visada por esse trabalho do psicológico não corresponde somente a
cial é decidido em outro lugar? Reagendamentos internos, rearrumações na uma adaptação às circunstâncias, mas constitui uma intensificação das poten-
distribuição das tarefas, melhoras na maneira de as informações circularem na cialidades, a qual por sua vez muda as regras do jogo social.
transmissão das ordens, na percepção dos subordinados para o que se lhes Sem dúvida, sabe-se hã muito que nenhum suplemento do psicológico,
pede - e que, de qualquer maneira, eles serão obrigados a fazer. como se falaria de um suplemento de alma, mudará a lógica de um sistema
Trata-se do "domínio das convergências possíveis"? Digamos mais que econômico, fundado sobre a maximização dos lucros. Mas começamos a com-
hã um conjunto de problemas que podem ser tratados no quadto da empresa preender que um trabalho psicológico pode modificar profundamente os obje-
concebida como uma unidade fwicional, depois que se tiver extraído dos limi- tivos que se desenrolam nesse campo. Dois organismos públicos foram recen-
tes do negociávei as opções comandadas pelas leis do mercado. Esses objetivos temente criados para se encarregar dessas dimensões não produtivas da produ-
referem-se essencialmente às regularizações relacionais no seio do organismo. ção, um para mudar as condições de trabalho (Agência Nacional para a Melho-

36 Cf. BODMAN, Eric de & RICHARD, Bertrand. Changer les relations sociales. Les 37 Cf. PAGÊS, Max; BONETTI, Michel; DE GAULEJAC, Vincent & DESCENDRE,
Editions d'Organization, 1976. Daniel. A empresa da organização, P.U.F., 1979.

160 161
ra das Condições de Trabalho: A.N.A.C.T.), outra para desenvolvera formação nsonas. A vida social, estando a partir de agora desinvestida em numerosos
contínua (Agência Nacional para o Desenvolvimento da Educação Permanente: setores de opções que ultrapassam a encenação da economia pessoal, a consti-
A.N.D.E.P.). Um grande esforço de flexibilidade relacional constitui hoje uma tuição de uma sociabilidade saturada.pelo psicológico cria o último teatro
parte importante do que se chama a política social. Consiste em impulsionar onde se desdobra uma cultura relacional que não pode então ter outra fina-
ou em impor o discurso da mudança no mundo do trabalho. Mudar é menos lidade além de sua própria reprodução.
transformar as condições de trabalho do que trabalhar a relação com o traba-
lho, quer dizer, o próprio trabalhador - ou o postulador de emprego. Deslo- Narciso libertado, ou Prometeu aco"entado?
camento decisivo: a definição do trabalhador tende a ser menos dada por seu Nos Estados Unidos esse processo constitui o pano de fundo de um
1
estado, caracterizado a· partir de seu posto e de seu estatuto no quadro da
r legislação do trabalho, do que pelo fato de que possa apresentar um conjunto
debate que se engajou recentemente a propósito de .uma mudança de sensibi-
lidade social que seus ideólogos batizaram "a cultura do narcisismo". 39 Chris-
de disposições pessoais que é convidado ele mesmo a cultivar. 38 Não fosse em topher Lasch mostra igualmente a relação que existe entre o desinvestimento
razão das técnicas obsoletas e da necessidade das reconversões rápidas, a pro- generalizado para a "ordem pública" e a popularização das técnicas da libera-
fundidade de uma competência adquirida de uma vez por todas é menos re- ção emocional e outras inovações que estaríamos ainda mais no direito de
quisitada do que a aptidão em mobilizar novas competências. chamar pós-psicanalíticas nos Estados Unidos. do que após-psicanálise, lá
Se é uma função política representada pela psicologia no quadro da pro- começou muito antes do que na França. Para Richard Sennett, a sociedade
dução, ela está lá mais do que em uma manipulação que consistiria em dissi- moderna perdeu progressivamente esse sentido da vida pública, essa capaci-
mular aos trabalhadores seus "verdadeiros interesses". Ela está no que criou dade, cultivada no mais alto ponto pela civilidade do século XVIII, de fazer
ou é sllscetível de criar mais do que no que mascara. Começamos a perceber a partilha entre uma vida pessoal, com seus investimentos privados, e uma
o que o trabalho do psicólogo contribui assim para criar, através da forma- existência social, espaço aberto a encontros, contatos, um comércio permi-
ção permanente, os estágios de reciclagem, os grupos de sensibilização das re- tindo comunicar com outrem na base dos papéis sociais que assume. O inte-
lações humanas, os exercícios de criatividade: um homem da mudança, cuja resse cada vez mais preponderante pelos problemas da personalidade, a pro-
espontaneidade trabalhada por técnicas será capaz de enfrentar todas as situa- cura de uma autenticidade que exige que um indivíduo seja autêntico e como
ções que se apresentarão no mercado. Em suma, uma espécie de interino per- que transparente através de todos os seus atos, abateram todos os interesses
manente. na esfera do eu. A intimidade, hoje, ''nos faz medir toda a realidade social na
É preciso cessar de reduzir a psicologia, seja a um movimento de retor- aurora da psicologia." 4 º Christopher l.asch retoma, aliás, análises recentes de
no sobre si com finalidades clínicas ou narcísicas, seja a um simples discurso psiquiatras e de psicanalistas41 que sublinham a freqüência de uma patologia
de acompanhamento de práticas que teriam mais objetividade pelo fato de nova, ou pelo menos cuja difusão em larga escala é um fenômeno novo, e que
que produziriam outra coisa além dos estados de alma. Um tal esquema pos- se caracterizaria por uma insatisfação crônica, um sentimento intenso de vazio
tula uma relação do público e do particular que está em via de se transformar interior, um desejo imenso de ser adulado, junto a uma desconfiança profun.
profundamente. Sem dúvida, a vida em sociedade permanece em ampla medi-
da estruturada por finalidades que uma sociologia clássica de tipo durkheimia- 39 Cf. SENNETT, Richard. The fali of public man, New York, 1976, trad. fr. As tiranias
no chamaria objetivos, e aos quais opomos tradicionalmente a subjetividade da intimidade: Ed. du Seuil, 1979, e LASCH, Christopher. The Culture of Narci-
do psicológico. Mas, quando as opções econômicas, sociais e políticas se en- sism, New York, 1979, trad. fr. O complexo de Narciso, Laffont, 1980. Cf. tam-
contram fora do alcance do indivíduo, o psicológico se encontra dotado de bém LIPOVETSKY, Gille5. Narciso ou a estratégia do vazio, O Debate. 5 out.
1980.
uma realidade, se não autônoma, pelo menos autonomizada. Lidamos agora
40 SENNETT, Richard. "A5 tirania5 da intimidade". Op. cit. p. 274.
com uma subjetividade tanto mais "livre", porque ela só gera finalidades der-
41 Em particular KERNBERG, Otto. Borderline conditions and pathological narcisism,
38 Cf. DONZELOT, Jacques. "O prazer no trabalho". ln: CARPENTIER, J.; CASTEL,
R. & DONZELOT, J. et al. Resistências à medicina e desmultiplicações do concei- New York, 1975, trad. fr. I. As perturbações limites da personalidade, II. A per-
to de saúde. Op. cit. sonalidade narcisica, Privat, 1980.

162 163
da a respeito de outrem e a uma impotência de se ligar de maneira duradoura,
um terror de envelhecer e de morrer, etc. 42 Ora, uma tal Caracterização não dá conta senão de um aspecto do fenô-
As exigências dessa "personalidade narcísica de nosso tempo" estão no meno. Se cultura psicológica há aí, ela se caracteriza evidentemente por uma
princípio de uma recomposição fundamental das relações que o indivíduo certa superdeterminação da subjetividade e da intimidade. Mas, no fenômeno
mantém com seu corpo, os outros, a sociedade. Aqui reina o eu, um eu de social atual, esta atitude de dobra constitui uma reação. Num sentido, a cultu-
uma só vez pletórico e insatisfeito, cheio de veleidade e. exigente. Uma tal ra psicológica consuma o contrário do narcisismo se entendemos por esse
imersão na subjetividade é tirânica. Ela comanda uma "guerra de todos contra termo a procura de uma relação entre o espelho e o eu.
todos" que faz do novo estado de sociedade o equivalente do estado da natu- Sublinhamos de fato que é a instância do grupo que dominava quase
reza segundo Hobbes. A audiência que essa problemática encontra nos Esta- todas as tentativas e as realizações da nova cultura psicológica. Um grande
dos Unidos confirmaria que uma sacudida cultural está abalando as sociedades sonho relacional a desequilibra: contatos, encontros, vida grupal, redes, con-
ocidentais, caracterizada por uma inversão das relações do psicológico e doso- vivência, trocas. Sem dúvida esta procura está condenada a uma espécie de
cial, e cuja onda de choque é propagada pela difusão em todo o corpo social imobilismo, obrigada a proceder ao golpe por golpe, retomar tudo cada vez do
das novas tecnologias psicológicas. zero no hic et nunc de uma experiência para retecer os fios de uma sociabili-
Deve-se portanto emitir certas reservas sobre a conceitualização desses dade que se·esvai logo. Mas isto significa que, mesmo se fracassa em se tornar
fenômenos propostos pelos autores americanos na medida em que ela corre o sociedade, ela existe bem como projeto de sociabilidade, e não somente como
risco de distorcer seu significado social. Falar da constituição de uma persona- vertigem de intimidade.
lidade narcísica ilustra esta tentação tipicamente americana de procurar no É reativar a velha dicotomia entre o indivíduo e a sociedade postu-
indivíduo um princípio de totalização que permite uma leitura sintética do lar uma opacidade subjetiva cuja presença seria imposta por uma pressão so-
social e autoriza um olhar panorâmico a cavaleiro sobre a- história ( a personali- cial. Como o isolamento individual pode tornar-se um fenômeno de massa?
dade de base de Kardiner, a personalidade extrovertida de Riessman, a perso- Não existem senão duas possibilidades. A primeira é a hipótese do narcisismo,
nalidade esquizóide de Devereux, etc.). Não é contraditório juntar de certa a hipótese psicológica ou psicopatológica: a inflação dos esquemas psicológi-
maneira um conceito pré-construído pela psicologia, o narcisismo, para servir cos no social é o resultado da proliferação cancerígena de uma estrutura da
de fio condutor a uma crítica da inflação do psicológico?43 Acentuando o personalidade de um certo tipo, cuja análise é devida a saberes psicológicos e
narcisismo, corremos o risco de reduzir a cultura psicológica à cultura da inte- cuja gênese deveria ser, na lógica total, igualmente psicológica. Poderemos
rioridade. Sennett, se conserva mais à distância do que Lasch a respeito da belamente invocar o contexto social para explicar essa universalização de uma
clínica. Partilha seu ponto de vista quando ele afirma: "As sociedades ociden- postura psicológica, não saberíamos ultrapassar o raciocínio analógico que
tais estão passando de um tipo de sociedade quase dirigida pelos outros a uma provém das semelhanças entre traços de personalidade e certas características
sociedade dirigida do interior. " 44 Embora os dois autores enviem evidente- dominantes da estrutura social. Ê o que faz Lasch e até em certa medida, Sen~
mente, para dar conta de sua hipertrofia, ao contexto histórico e social geral, nett.
é bem seguodo eles um fechamento completo sobre o círculo da subjetividade A outra hipótese é sociológica. A propósito do "suicídio egoísta", "tipo
que promove a cultura psicológica. particular de suicida que resulta de uma individualização desmesurada" - de
fato, é o suicídio de Narciso -, Durkheim escreve: "A sociedade não pode se
42 Cf. LASCH, Christopher. O complexo de Narciso. Op. cit. p. 60 e segs. desintegrar sem que, na mesma medida, o indivíduo não se desprenda da vida
43
social, sem que seus próprios fins não se tornem preponderantes sobre os fins
Lasch justifica assim sua iniciativa "Partindo do princípio que a pato1ogia simplesmen-
comuns, sem que sua personalidade, em uma palavra, não tenda a se colocar
te representa uma versão mais intema da normalidade, pode-se comiderar que o
narcisismo patológico, freqüente nas perturbações do caráter, desse tipo, nos dá acima da personalidade coletiva. Mais os grupos aos quais pertence enfra-
indicações sobre o narciüsmo como fenômeno social" (op. cit., p. 62). "Dar indi- quecem, menos ele depende deles, mais, em seguida, ele só depende de si mes-
cações", o que isso significa? mo para não conhecer outras regras de conduta senão as fundadas em seus
44 SENNETT, Richard. As tiranias da intimidade. Op. cit. p. 14. interesses particulares. " 45 O egoísmo do desdobramento é menos uma estru-
45 DURKHEIM, Emile. O suicídio. P.U.F., 1967. p. 223.
164
165
ram que nada talvez é _mais normalizado do que as condutas que regulam a
tura da personalidade do que urna posição de refúgio, com"'.1dada por certas aproximação do corpo. Nossas sociedades ocidentais, em particular, se carac-
transformações sociais. Não investimento do social e do pohtico d~~ l_ado, terizam por um tabu do tocar, tão poderoso que a própria psicanálise, afron-
superinvestimento do psicológico do outro: o lugar da cultura ps1colo~~ca é tando o tabu do sexo, respeitou, se não reforçou, o tabu do corpo. Não é
no vácuo deixado por essa dialética. Quer dizer, também, que ela li1~ ~pua ou então um pequeno deslocamento daquele que substitui as tecnologias de
se contrai em função da conjuntura social e política. Pode-se -: pod1a-~e c~da intervenção sobre a psyché pelas tecn.ologias de intervenção sobre o corpo. 47
vez menos até há pouco - ter a impressão de que os espaços deixados a psico- O que os puristas interpretarão, através da passagem de Freud a Reich, depois
logia são cada vez mais amplos. Isto significa que estamos_ ~ogados em ~ma a Lowen, nestes termos de um achatamento da profundidade do inconsciente
cultura narcísica? Não existe nenhuma razão para substancialtzar esta conJ~- na superfície do corpo e talvez, numa outra dimensão, tão revolucionária
tura histórica. Sem dúvida, como sugere Durkheim, a ausência de fins coleti- quanto a generalização do conceito de sexualidade instrumentalizada pela
vos ou a impossibilidade de deles participar impõem uma co~versão ou uma psicanálise. É em todo caso o índice de uma desestabilização do código cor-
inversão, fins pessoais de fora para dentro, do público ao particular. M~s, ~u: poral nas sociedades modernas, quer dizer, um dos rituais sociais dos mais
a onda da história se lance outra vez, e esse narcisismo desaparece: os mdi~- poderosos no Ocidente. E, em virtude da capacidade já sublinhada dessas
duos que se tinham dobrado sobre a cultura psicológica se reencon~ram entao experiências a se exportar, elas divulgam imediatamente fora de seu quadro
pessoas sociais. O narcisismo não é nem sua natureza nem se~ d:st1:°"o e o~ e~- técnico a desestabilização das quais são o sinal.
f orços que despendem, mesmo nos períodos aparentemente unove1s ~a _hi~to-
ria, para colocar no palco um grande sonho relacional mais do que o mturusta 3. Um contexto social político e cultural geral que induz à privatização,
já o provam. . ou melhor, ao superinvestimento das práticas relacionais, na medida em que
Esse desenvolvimento de uma cultura psicológica de massa se situa en- um certo número de objetivos que permitiriam tradicionalmente uma outra
46
tão finalmente na confluência de várias nascentes: estruturação das relações entre a ordem pública e a vida particular escapam ao
domínio dos atores históricos. Evocou-se os efeitos desta situação global em
1. A ampla divulgação de esquemas de interpretação_ e_ de t~cnic~s. de certos setores particulares como a reestruturação do espaço familiar ou certas
intervenção que têm freqüentemente sua origem na trad1ça? ps~c_ochmca, transformações contemporâneas da relação com o trabalho. A cultura relacio-
mas que tem transbordado as fronteiras do patológico. A ps1canáhse e sua nal daí desprende totalmente sua filiação psicoclínica e abandona qualquer
posteridade foram escolhidas aqui como placa giratória para ~preender esta referência às situações experimentais onde ela se colocou primeiramente em
lógica da passagem do terapêutico ao paraterapêutico, em segm~a ~o extrat:- cena para construir novas formas de sociabilidade.
rapêutico. De fato, seu impacto foi o mais espetacular nestes últ1mos de~e- Por exemplo, que faz uma equipe de prevenção implantada num quar-
nios, pelo menos nos Estados Unidos e na França. Mas um estudo exa~shvo teirão de imigrantes? Mudar as condições de morada, encontrar trabalho para
deveria substituí-lo na dinâmica do desenvolvimento geral das tecnologias d~ os adolescentes, modificar os reflexos racistas da população exterior? Ostra-
intervenção sobre a normalidade, cujo papel freqüentemente i:nais discreto fm balhadores sociais estão bem colocados para saber que essas possibilidades de
igualmente determinante: psicopedagogia, psicologia industnal, trabalho em uma intervenção, diretamente social ou política, estão na maioria do tempo
grupos na tradição psicossociológica de Lewin, comportamentahsmo, etc. fora dos limites de seu mandato. Então tecem redes de relações, tomam possí-
veis ligações afetivas, estruturam empregos de tempo em volta de atividades
2. A retomada dessas técnicas psicológicas nas experiências ~e trab~o que têm por fim intensificar encontros, despertar interesses, saturar desejos
sobre a sociabilidade ou de trabalho sobre a normalidade. Expenmen~oes no quadro de uma sociabilidade construída por sua própria estratégia. Seu
freqüentemente marginais de grupos e de redes que apa~eceram _como ~mto~ trabalho liga-se menos à possibilidade de agir sobre causas objetivas do que a
máticas de uma transformação profunda das regras do Jogo social. Assun, sua capacidade de produzir um espaço de sociabilidade diferente das condi-
relação do corpo encenado nesses meios. Os trabalhos dos etnólogos mostra- ções nas quais vive sua clientela.
47
Cf. LOVELL, Anne. "Palavras de cura e energias em sociedade". Op. cit.
46 Cf. LACROSSE, Jean-Marie. "Uma cultura pós-terapêutica''. Op. cit.

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A análise da cultura psicológica desemboca assim nessa terra de nin-
guém, onde as fronteiras entre o psicológico e o social se embaralham porque
uma soci8.bilidade programada por técnicas psicológicas e relacionais represen-
ta o papel de substituto de um social em crise.

Conclusão
Em direção a uma ordem pós-disciplinar?

Chegamos, sem dúvida, ao final de um ciclo. Um modelo de intervenção


nas perturbações da psyché, constituído há quase dois séculos e que se mante-
ve e se enriqueceu através dos renovamentos sucessivos, está perdendo a pre-
eminência. Isto não significa que os dispositivos como o do setor psiquiátrico
ou da psicanálise estejam invalidados ou ultrapassados, mas que as mais signi-
ficativas inovações, as que dizem respeito ao futuro, não podem mais ser pen-
sadas exclusivamente em sua filiação.
Se vai bem assim, é preciso revisar um certo número de representações,
que alimentaram as esperanças ou os temores dos protagonistas, que se afron-
taram nestes últimos anos nesse campo. Alguns, sem dúvida, resistirã'o a essa
necessidade: sempre é aborrecido ouvir-se dizer que não estamos mais nos pos-
tos avançados da história. Eles poderão encontrar argumentos no fato de que
a transformação precedentemente descrita deixou subsistir todos os estratos
anteriores de organização. Resta então suporte bastante na realidade para nela
pregar sua nostalgia. Mesmo um defensor do hospital psiquiátrico ainda pode
defender a vitalidade de seu modelo. Que não fará então um psicanalista? Mas,
se levarmos em conta a convergência das transformações que intervieram nes-
tes últimos anos, a evidência de uma mudança decisiva se impõe.
Recapitulemos as principais direções, segundo as quais as cartas foram
distribuídas recentemente: retorno ao objetivismo médico e ao positivismo

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1

científico, promoção de novas tecnologias de gestão das "populações proble- volta ao objetivismo médico e de uma fuga para a frente na cultura psicoló-
máticas" (quer dizer que representam problemas para os responsáveis pela gica, por exemplo, ou reforço dos controles centralizados, apoiados pela
manutenção de uma ordem social e ideológica), desenvolvimento de técnicas informática e encorajamentos dados aos movimentos associacionistas para
de intensificação psicológica, além do corte do normal e do patológico. Já que maximizar as responsabilidades da iniciativa particular.
se trata de processos em curso de implantação, ainda é impossível propor um Se unidade há, ela não se exprimirá então a partir de um simples inven-
balanço preciso de suas audiências respectivas. Mas foram bastante emprega- tário dessas abordagens. O princípio deverá ser procurado em outro plano,
dos para que nos autorizemos pelo menos a desenhar a trajetória que traçam. além do da descrição empírica, o da complementaridade dessas práticas, a
Por outro lado, é muito mais aventuroso decidir .se essas transformações partir de meta comum. PÓd_er-se-ia dizer então que essas diferentes orienta-
vão na direção de uma dispersão máxima, de tal maneira que aí haveria so- ções manifestam um mesmo partido, tomado reducionista no modelo d~ hu-
mente uma justaposição de tentativas de soluções estilhaçadas para problemas manidade que constituem em alvo de suas intervenções. Elas podem assnn se
heterogêneos, ou se assistimos à instalação de um novo dispositivo de conjun- inscrever numa estratégia geral de gestão das diferenças, das fragilidades e dos
to, cuja coerência relativa seria comparável à do sistema que vem de se apagar riscos que parece caracterizar as sociedades neoliberais.
e que seria bastante apropriada para comandar no futuro.
A primeira dificuldade está no fato de que, se novo sistema há, ele não
está ainda completamente instalado, ou que nos falta recuo histórico neces- A bipolaridade objetivismo-pragmatismo
sário para objetivar seu funcionamento, pelo menos. A segunda dificuldade Verificando a primeira parte da hipótese, constata-se um deslizamento
se dá por uma razão de método, que recorta a primeira e se agrava. É o recu.r- geral de todos os dispositivos médico-psicológicos, tendendo a impor um mo-
so à história que dá sua espessura ao presente e permite nele destacar objeti- delo do homem e da ação sobre o homem que significa impasse na dimensão
vos ultrapassando a simples fenomenologia descritiva das práticas. Mas acon- do inconsciente, a espessura do social e o peso da história.
tece que uma análise do tipo genealógico acaba mostrando que uma linhagem É evidente para um primeiro conjunto dessas orientações novas ou anti-
se esgota e se perde, talvez definitivamente. Pelo que então substituir a inteli- gas mais investidas de esperanças novas, que são atualmente impulsionadas
gibilidade da filiação histórica quando ela corre o risco de funcionar como para a frente do palco. A referência a um modelo clínico estritamente médi-
armadilha? Questão tanto mais delicada que, se mutação existe, ela não se co, a fascinação pelas explicações biológicas ou bioquímicas, a procura de um
contenta em quebrar a lei de uma série. Ela desconecta e reconecta de outra determinismo orgânico ou fisiológico, quem sabe de um código genético na
maneira séries independentes, ela recompõe toda uma paisagem a partir de origem das perturbações psíquicas, a programação de protocolo de reforça-
sua própria linha de fratura. mento das condutas positivas e de eliminação das práticas negativas pela tera-
A transformação atual não se reduz, de fato, ao reforçamento do dis- pia comportamental, são tanto mais avançadas quanto o sucesso conspira a
positivo já instalado. Não há somente mais pessoas atingidas pelas novas mo- desvalorizar como subjetivista, pré-científica, ideológica, a atenção às totali-
dalidades de encargo, um enriquecimento progressivo das tecnologias mobili- dades concretas pessoais, sociais ou históricas. Mas a mesma desestruturação
zadas, uma especialização crescente dos agentes que intervêm, uma complexi- do sentido é operada de maneira mais radical ainda pelas tecnologias informá-
dade contínua da rede institucional que se instala, etc. Constata-se também 'ticas aplicadàs à ação sanitária e social. A pessoa desaparece na condição de
a emergência de estratégias inéditas: a gestão diferencial das populações não interlocutor da intervenção, os indivíduos concretos são decompostos segun-
se situa na continuidade de sua segregação no seio dos espaços fechados, e do tal ou qual objetivo definido no quadro de uma programação administra-
difere igualmente do intervencionismo assistencialista dos programas de psi- tiva e recompostos em fluxos abstratos de populações. Que se trate sobretudo
quiatria comunitária. Há igualmente deslocamento dos objetivos perseguidos, de intervir diretamente nos primeiros casos, ou de prevenir riscos no segundo,
já que técnicas de intensificação do funcionamento normal se superpõem, a o paradigma comandando a prática é sempre um objetivismo que se justifica
partir de então, às das que propunham reparar disfunções (modelo clínico) ou em nome da eficácia: dispor de um conjunto mobilizável de informações fiá-
evitar que ocorram (modelo preventivo). Orientações igualmente dinâmicas veis a fnn de modificar uma situação definida a partir de elementos que se
parecem corresponder a intencionalidades divergentes: simultaneidade de uma podem instrumentalizar.

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O imaginário da busca do Graal funciona aí ainda: procura de uma superação


Que wna tal representação funcione o mais freqüentemente como mito, pessoal e de Uma comunidade liberada das alienações e das hierarquias. Mas,
ou se se prefere como idéia reguladora, não tira nada à sua validade. O ideal procurando-se cauções sábias, a utopia se troca em tecnicismo, e ganha assim
consiste aqui em se aproximar, tanto quanto se pode fazer, de um modelo de seus brevês de realismo. Contrariamente aos defensores do objetivismo cientí-
humanidade como espécie, série, sistema input-output etc., que permite cons- fico, os representantes dessa corrente n[o fazem impasse na pessoa: eles a
tituir protocolos precisos de intervenção cujos efeitos seriam eles próprios reinterpretam no quadro de um pragmatismo total.
mensuráveis. Mesmo se se pretende mais como no século XIX, em que tudo o Esse pragmatismo domina hoje o campo do que chamei as para terapias,
que não cai sob o escalpelo ou não entra na máquina não tem existência, essas atingidas pelas insatisfações afetivas ou sexuais, as dificuldades conjugais ou
dimensões se encontram de fato sacrificadas na medida em que não se ade- familiares, os problemas da solid[o e do mal-estar existencial - o que alguns
quam a procedimentos de validação científica.· chamaram "doenças da civilização" e sobre as quais não se sabe muita coisa,
salvo que não têm a ver com a medicina nem com as tecnologias de interven-
Aparentemente, a linha de transformação seguida, a partir da posterida- ção mais "científicas". As novas abordagens respondem assim a demandas
de da psicanálise e que se expande na nova cultura psicológica, escapa a essas específicas levadas por um público diferente daquele que freqüenta as institui-
tentações reducionistas. Ao mesmo tempo, os que recusam a seus representan- ções mais tradicionais e os profissionais mais clássicos. Elas ampliam o círculo
tes a seriedade da cientificidade, e os que foram seduzidos pela sua atenção daqueles cujos problemas talvez provenham de uma intervenção especializada
passional ao presente, sua procura de autenticidade pessoal e de relações suavizando a maneira como isto é proposto e dispensado.
transparentes com outrem, sublinham a dimensão humanista de seu empreen-
dimento. Mas esta meta se realiza diminuindo a trajetória da pessoa no hic et No quadro da volta forte dos valores da rentabilidade, de procura de
nunc da experiência imediata e identificando a relação a outrem a uma capa- resultados tangíveis e de mudanças avaliáveis, constata-se assim uma bipola-
cidade técnica de comunicar. A utopia convencional cobre uma rachadura do ridade, mais do que uma franca oposição, entre as tendências propriamente
tecnicismo até nódulos anteriormente preservados da subjetividade e do co- científicas, cujos suportes institucionais provêm em geral das tradições mais
mércio com outrem. O "potencial humano" - a um só tempo pessoal e rela- antigas e das implantações mais respeitáveis (medicina, pesquisa científica,
cional - é de fato um capital objetivável que se cultiva a fim de se tornar administrações públicas) do que as que se desdobram às margens dos apare-
mais "atuante" na sociabilidade, trabalho ou gozo. Um postulado volta cons- lhos oficiais e acumularam um capital mínimo de legitimidade. Esquematica-
tantemente na literatura da nova "psicologia humanista": o homem pseudo- mente, diremos que o pólo mais institucionalizado gera mais os disfunciona-
normal só funcionaria a 20% de suas potencialidades (por que 20%, aliás?). mentos e os riscos mais objetivos - assinalados por uma autoridade exterior
Lutar contra as alienações torna-se assim uma tarefa programável cujas etapas em razão das perturbações daqueles que assim são afetados ameaçam ser por-
são mensuráveis, ao longo dessa espécie de percurso do combatente, que é o tadores - enquanto que o pólo mais difuso toma sobretudo encargo das fragi-
empreendimento da liberação pessoal. lidades mais subjetivas- as que são experimentadas sob a forma de mal-estares
Sob uma maneira" que se quer aventurosa de desafiar os confortos e os e de insatisfações e incitam freqüentemente a própria pessoa a levar seu pro-
conformismos subsiste então um modelo de homem que visa também a opera- blema a um especialista competente. Claro, uma tal oposição é demasiado
cionalizar e vai por vezes até encarecer naquilo mais fora de moda do cientis- cortada. Os diferentes tipos de populações são distribuídos ou se distribuem
mo. Marta e Maria numa só e mesma pessoa, já é Wilhelm Reich, profeta da ao longo dessa gama em função de muitas variáveis, entre as quais a origem
revolução social e sexual construindo suas caixinhas de orgones. É toda a bio- social não é a menor, mas que não podem ser analisadas aqui por si mesmas.
energia atual com sua procura simultânea Hde experiências de cúpula" e de Esse panorama de conjunto, apesar disso, deixa ver uma característica essen-
um fundamento bioquímico - às vezes, nas tendências influenciadas pelo cial da transfonnação em curso: a propensão a fazer nrover de soluções técni-
orientalismo, cosmológico - da circulação energética. cas todos os problemas de consenso.
A existência de uma tal dualidade não é estranha à audiência que encon- A partir do momento em que esta exigência se impõe, sua atuação passa
tram essas orientações. Elas puderam integrar certas aspirações da contracul- pela eliminação de' certas dimensões antropológicas demasiado investidas de
tura e até uma sensibilidade atravessada pela psicanálise e a crítica política.
173
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sentido para se prestarem a uma instrumentalização rigorosa. Assim o car_áter mo, por exemplo), deslocou-se. A totalidade nova que se desenha não é o
simbólico da linguagem (exceto fazer deste um sistema de sinais); o projeto domínio de um dispositivo único em medida de ocupar todo o terreno das
de dominar seu meio ambiente social ( exceto reduzi-lo a um conJunto de fa- intervenções comandadas pelo cuidado de se encarregar das turbulências psi-
tores quantificáveis, cuja dinâmica obedece às leis do engineering); a ~tenção cológicas ou sociais. Ela seria mais o resultado de uma articulação muito bem
de se reapropriar de sua história (exceto a se contentar em reencontra-la, sob azeitada de um conjunto de respostas técnicas a problemas heterogêneos, cujo
forma de traços inscritos no corpo). A coerência subjacente às ~bordag~ns denominador comum é precisamente serem pensadas como devendo provir de
atualmente dominantes é minar a possibilidade de interpelar a eficacrnpOSiti- soluções técnicas. Se totalitarismo pode existir nessa via, será, se podemos
vista, a partir de um estatuto da pessoa que escapa~a a~ ~o~elo de c1~n:1fi- assim dizer, um totalitarismo liberal, quer dizer, pondo em concorrência
cídade ipresentada pelas ciências ditas exatas, ou as exigencias pragmaticas orientações diversas para impor uma mesma concepção da ordem.
da adaptação ao meio ambiente. Terceiro, a relação de domínio das técnicas está igualmente se modifi-
Mede-se assim a importância, e também os limites do deslocamento que cando profundamente no sentido em que algumas dentre elas escapain cada
está se efetuando. Evidentemente, nada diz que todas essas orientações sejam vez mais ao controle dos profissionais. Se estes foram freqüentemente coloca-
novas: algumas reativam simplesmente os mais velhos devaneios ~o cientific_is- dos ao lado, recentemente no quadro de urna crítica social ou política de seu
mo. Não se trata mais aqui de se ligar posteriormente em nostalgia da manerra mandato, é porque os supunham os principais agentes da instrumentalização
pela quai as recentes hegemonias ( sobretudo a psiquiatria social e a psicanálise) dos dispositivos que instalavam. Ora, em razão mesmo da autonomização das
tinham podido orquestrar essas referências à pessoa e ao social que a ofensiva tecnologias, acontece em certos setores uma inversão da relação dos profissio-
tecnicista atuai desvitaliza. Em relação à situação de há alguns anos, ou em nais e dos administradores (capítulo 3) que, se inocenta os primeiros, subor-
todo caso à representação que em geral se faz, aparecem, no entanto, pelo me- dina-os aos segundos. Torna-se de agora em diante possível, especialmente em
nos três diferenças importantes. . matéria de prevenção, programar protocolos de intervenção liberados de toda
Primeiro, uma alteração do imaginário profissionai (capítulo 2) e mais referência a um assunto concreto: determinação dos fatores de risco, por
amplamente social ( capítulo 4), impondo essas tecnologias com~ suportes exemplo, que pennite planificar antecipadamente operações combinadas so-
nece:s:sários das aspirações à mudança que se querem realistas e cnve1s. Esta bre tal ou tal fluxo de população, e que não são evidentemente da origem do
pressão é tão forte que trabalha no próprio interior das orientações que_ lhe próprio técnico.
são opostas. Assim, uma parte do meio analítico se interroga sobre o umver-
salismo de sua abordagem e é tentada por uma colaboração com as novas Mudança tecnológica e história
terapias, pelo menos para apagar certas demandas que lhe são endereça- Na medida em que ê nova, esta situação convida a que nos interrogue-
das.1 Assim certas correntes à procura de alternativas políticas para os mode- mos sobre as relações que ela poderia manter com mudanças igualmente re·
los médico-psicológicos tentam se apoiar em uma ou várias dessas novas tec- centes do contexto social e político.
nologias para conciliar a vontade de sair do esquema médico e o cuidado de Uma das características da evolução político-social desses últimos anos
2
oferecer uma tornada concreta da realidade prática. (aproximativamente, sob os sete anos giscardianos) é o fato de que o Estado
Segundo, a aineaça do que pode ser denunciado como um risco de hege- parece ter voltado a certas das responsabilidades que tinha tomado, desde a
monia de uma orientação particular (imperialismo psiquiátrico ou ps1canal1s- era keynesiana, na regulação dos mecanismos econômicos em geral e na admi-
1 A tentação do sincretismo (que triunfou no meio psicanalític? an_ierican~) vai às vezes nistração da assistência em particular. Se trata, para ele, corno dizem alguns,
até procurar a aliança com o comportamental.ismo. O pnme17.o ptes!de~te da_ As- de "organizar seu próprio desfazer"? 3 De fato, a análise da transformação do
rnciação francesa de terapia comportamental, o doutor Wildocher, e ps1canal15ta. setor sanitário e social já sugeriu uma outra interpretação. O Estado se desfez
2 É o caso, por exemplo, da corrente que se exprime no~ Cadernos Cr_,fticos de Te.rapta de certas tarefas que são bem ou melhor assumidas de outra maneira e a um
Familiar e de Práticas da Ramificação, dirigidos por Mony El Ka1m; o~de ~m~ v_:r-
são ampliada da terapia familiar é chamada para dar um s_u~orte tec~1.co a exigen- 3
NORA, Simon & MINC, Alain. A informatização da sociedade. Documentação France-
cia de restituir à prática de tratamento suas dimensões socms e políticas. sa, 1978,p. !08.

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custo melhor, tudo reforçando seu monopólio sobre a definição das grandes tiva, da liberação; ele está longe de representar a forma única sob a qual se
opções imperativas, a planificação da carta de conjunto dos serviços e o con- impõe hoje o consenso. Um outro modelo de regulação se desenvolve: a inci-
trole a posteriori da conformidade das realizações dos objetivos que se pro- tação a colaborar, de seu lugar e segundo suas necessidades, com a gestão das
pôs. Existe assim uma relação entre o fechamento de novas formas de contro- imposições no quadro de uma divisão do trabalho entre as instâncias de domi-
le centralizadas, através em particular dos sistemas informáticos, e o desenvol- nação e as que a ela se sujeitam. "E se cada um criasse seu próprio emprego?"
vimento de setores em liberdade sob vigilância, quer dizer, convidados a auto- Esse slogan nascido num período de desemprego poderia passar por uma brin-
gerar as obrigações que lbes são impostas. Conjunção, então, de um pólo de cadeira de mau gosto. É de fato uma ilustração limite dessa estratégia geral
organização estrita e de um pólo de iniciativas circunscritas. que consiste em mobilizar os indivíduos submetidos às imposições para que
É, sobre o plano de um novo modelo geral de sociedade "dual", a com- tomem eles mesmos o encargo da exigência de regulá-las. É a mesma lógica, de
plementaridade que poderia existir entre um setor econômico altamente com- fato, que vimos operar na reorganização da Ação Sanitária e Social, e que co-
petitivo e submetido às exigências da concorrência internacional e um setor manda uma redefmição das relações do público e do particular, do central e
de serviços coletivos e comunitários, dispensando sobretudo amenidades, onde do local. É ela também que conquista os setores econômicos mais avançados,
a autonomia da sociedade civil seria diz-se preservada.• Mas uma dualidade onde o pessoal é requisitado a levar ele mesmo em conta as exigências draco-
desse tipo, apresentada nesse nível como um grande desígnio, já está realizada nianas da competitividade.
concretamente em alguns setores .da vida social. Assim, nas grandes empresas Assim, em um número crescente de situações, a sustentação da obriga-
de implantação internacional, em que as decisões engajam a política da firma, ção sobre o indivíduo mio passa pela' coerção, mas pela sua mobilização volun-
são tomadas por um número limitado de dirigentes em função de imperativos tária. A alternativa não é se submeter ou se revoltar, mas reunir seu poten-
bancários ou de mercado que permanecem opacos ao conjunto do pessoal, cial pessoal a serviço da tarefa a cumprir, ou ser marginalizado. Uma nova fi.
cuja opinião nem mesmo seria solicitada. Por outro lado, a política da firma a gura da morte social se desenha. Ela não passa pela exclusão brutal, a segrega-
respeito desse pessoal o incita a fazer prova de iniciativa e mesmo de criativi- ção, ela anula os indivíduos desconectando-os dos centros de decisões e·dos
dade, a intensificar seu potencial psicológico e a mobilizar sua espontaneidade circuitos de trocas. É também um modelo possível da sociedade dual: a que
para ser atuante nesse quadro imposto. 5 E não é sem dúvida por acaso ou secreta a morte lenta do desemprego assistido, os impasses existenciais em for-
filantropia que essas empresas estão, através da organização de diferentes está- ma de divagações bucólicas, a divisão entre os que produzem e que decidem,
gios internos ou externos, entre as maiores consumidoras das novas técnicas de um lado, e dos que sobrevivem em novas reservas indígenas, de outro.
psicológicas. Mas as instituições sanitárias e sociais são também convidadas a
funcionar como empresas competitivas e dinâmicas, enquanto que as imposi- Uma tal estratégia implica uma recomposição profunda da função-
ções e os controles se apertam no plano dos objetivos que lhes são assinalados pessoa. Ela a chama para se impor a tecnologias psicológicas diferentes das
( capítulo 3). que prevaleciam até agora.
Este relacionamento de um pólo hiper-racionalizado e controlado e de A pessoa deve viver a exigência do hic et nunc, saber se fazer acolhedora
um pólo onde pode se expandir uma liberdade de bom tom, à condição de à eventualidade e ao acontecimento, estar apta a reagir a isso imediatamente. É
que seja cuidadosamente enquadrada - no final, um casal funcional informa- o perfil psicológico promovido pelos técnicos do "trabalho sobre a normali-
tizaçãa-psicologização - se distingue de formas mais bem analisadas e mais dade", através de sua maneira de instrumentalizar a mudança pessoal. A ana-
freqüentemente criticadas do exercício do poder, pelos quais 1J!llª autoridade logia é pelo menos perturbadora entre esse novo homo psychologicus e a
se impõe do alto reduzindo os alvéolos de liberdade que tentam lbe resistir. mobilidade requisitada de um ser sem história e sem raízes, capaz desse feito
A este último esquema corresponde a problemática da repressão e a, correla- de se reconverter ou de se reciclar a cada instante para responder às exigências
de não importa qual planificação tecnocrática.
4 Idem,p. 115.
Estar sujeito segundo uma tal lógica é igualmente maximizar suas atua-
5 Cf. PAGÊS, Max; BONETTI, Michel; DE GAULEJAC, Vincent & DESCENDRE, Da- ções e reduzir seus afastamentos em relação a uma norma-média. Aqui tam-
niel. O domínio da organização. Op. cit. bém novas tecnologias psicológicas, em particular as do comportamentalismo,

176 177
tornam possível um tal reforço das condutas positivas_ e uma tal eliminação humano em função das figuras novas sob as quais se apresenta a necessidade
dos comportamentos negativos. Não há nem mesmo mais necessidade de su- social.
por uma origem patológica dos sintomas a tratar, já que o que é levado
em conta, é somente a distância dos comportamentos em relação à média. Uma última nota sobre o "pessimismo" dessas análises. Para quê e a
Esse maravilhoso instrumento de consolidação do consenso suscetível a um só quem servem elas se elas nos aparecem sitiadas de todos os lados pelas estra-
tempo de reduzir os afastamentos indeséjáveis e de reforçar as condutas de~e-. tégias todo-poderosas e se volta a afirmar, como dizia Alain, que "o invisível
jáveis não deu ainda sua medida. As críticas do comportamentalismo acentua- nos conduz: os deuses mais terríveis permanecem escondidos"?
ram em geral os métodos de advertir brutais do tipo Laranja mecânica, en- Precisamente para que os novos deuses não fiquem escondidos, e que
quanto que cada vez mais ele funciona melhor a pedido e no contrato do que designando-os se desprenda uma via para dominá-los. Pois não há destino a
na imposição selvagem. Propondo um modelo pedagógico de reforçamento da não ser lá onde não há mais história, e é bem a última implicação desse propó-
normalidade que ultrapassa o modelo clínico de eliminação dos sintomas, as sito. A chegada de fórmulas inéditas de gestão e de manipulação das popula-
terapias comportamentais estão, nisso também, inovando profundamente. ções, o domínio crescente das empresas de programação que culminam no
Da mesma maneira, as novas tecnologias preventivas não se deixam re- projeto de programar a si mesmo, a exigência de relatar o sentido de toda ini-
duzir à função de detectação das anomalias, das deficiências e dos riscos. Elas ciativa a uma rentabilidade imedi,, La, segundo os critérios de eficiência inspi-
poderiam constituir redes para os superdotados, tanto quanto para os seus rados pelos cálculos mercadores, recobriram progressivamente, nestes últimos
contrários, programar circuitos promocionais tão bem quanto segregativos, e anos, os espaços desertados por uma outra concepção da prática pessoal e
até distribuir indivíduos normais-médios segundo itinerários traçados anteci- coletiva.
padamente. Não somente limpar o corpo social arrancando deles as plantas Se continuasse evoluindo assim, logo só haveria otimistas ou imbecis. O
indesejáveis, mas dele fazendo um jardim francês com suas aléias reais e seus que significaria isso? Que a história dos homens se deixou dissolver na glorifi-
becos, seus fluxos de população de circulação variável e os circuitos montados cação da mudança tecno16gica. Mas uma constatação de evolução tendencial
em derivação que levam a ruas sem saída. não significa sua aceitação, e a lição pode da mesma maneira se dar ao contrá-
rio. E se era verdade que nesse momento a vela da história se infla novamente,
A crítica das intervenções médico-psicológicas centrou-se no decorrer isto liberaria oportunidades novas para combater essas orientações, cujo do-
do último decênio na denúncia de seu caráter diretamente coercitivo. Além da mínio se fez cada vez mais válido ao longo dos últimos anos. Para combatê-las
sensibilidade política da época, esse preconceito se deveu ao fato de que as e não para se contentar em assistir ao seu desaparecimento: elas estão tão pro-
práticas tomadas por alvo pertenciam principalmente aos dois grandes dispo- fundamente inscritas nas lógicas de reestruturação das sociedades modernas
sitivos que historicamente se constituíram como paliativos dos disfunciona- que não basta certamente uma mudança de maioria política para torná-las
mentos do consenso social: o modelo segregativo e o modelo assistencialista. caducas.
A exclusão de certas formas de desvio, depois a intervenção in vivo na comu-
nidade para reduzi-las, foram de fato .as principais estratégias da gestão das
populações com problemas que sucessivamente, depois simultaneamente, ocu-
param a frente do palco desde o século XIX. A situação está hoje profunda-
mente modificada em razão da emergência recente de uma terceira estratégia,
cuja vocação poderia ser também global: não se trata somente, mesmo se se
trata ainda, de manter a ordem psicológica ou social corrigindo seus desvios,
mas de construir um mundo psicológico ou social ordenado trabalhando o
material humano; não somente reparar ou prevenir deficiências, mas progra-
mar a eficiência. Tal seria a ordem pós-disciplinar que não passaria mais pela
imposição dos constrangimentos, mas pela mudança e a gerência do fator

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188 189
Índice remissivo

Ação sanitária e social, 17, 50, 60, Antipsiquiatria, desenvolvimento da


101, 116, 119-20, 129-32, 177;ver -, 13, 21, 24-5, 27-8, 81-2; limi-
tambémD.A.S.S., políticas sociais. tes da-, 18, 29-32; efeitos da -,
Administração (papel da -), 32,49- 29-30, 76-7, 91.
50, 51, 59-60, 62, 63-4, 119-21, Anzieu, D., 134.
122, 129-31; relação da- e a prá- Aqui e agora (culto do-), 142, 143,
tica terapêutica, 42, 59-60, 102, 165, 172.
107-10, 112-3, 116-7, 130-1, 175; Asilo, 16, 22; ver também hospital.
ver também Estado, políticas so- A-social-sociabilidade, ver cultura psi-
ciais, pública cológica (autonomização da -),
Alain, 179. psicológica (instalação na -).
Alienação (mental), 69, 72-3, 80-1; Assistência, 15, 51, 62, 69, 71, 76,
ver também loucura; - social, 13, 101, 117-8, 123-4, 175-6.
14, 146, 153, 172-3. Assistencialismo, 36-7, 45, 69, 71-3,
Alienismo, alienistas, 36, 49-50, 59- 170, 178; ver também filantropia.
60, 68, 70-1, 72, 73, 74, 77; ver Associacionismo, 19,118,120,176.
também assistencialismo. Audisio, M., 38, 49.
Althusser, L., 136. Autogestão, 19, 119-20, 157, 173;
Amiel, H.-F., 14, 144. ver também associacionismo.
Análise transacional, 14, 141, 145-6,
148, 149. Baciocchi, M., 74.
Anderson, V., 159. Back, K., 142.
Anomalias, 52, 70-1, 98, 112, 114, Ballly-Salin, J ., 41.
116, 124, 125, 178; ver também Basag]ia, Fr., 31, 48, 55.
desvio, deficiéncia. Bec, C., 34.

191
Beers, CL, 70. Consultante (papel - do psiquiatra), Deleuze, G., 24. 9, 27, 32, 43, 49-51, 62-3, 113-4,
Benevoléncia, ver associacioP..ismo. 46-7, 50, 70. Delors, J., 160. 117-21, 122-4, 131-2, 175-7; ver
Benhaim, S., 58. Continuidade dos cuidados, 15, 4 7, Demay, J., 39. também administração, políticas
Berne, E., 141. 51,68, 70, lOl;vertambémsetor. Demay, M., 39. sociais, pública.
Bioenergia, 14, 140, 141, 148, 149, Contracultura, 63, 120, M5, 155, Descendre, D., 161, 176. Etiologia, 68, 80, 82-3, 98, 177.
152, 172-3. 172-3. Descoberta, 52-3, 114-5, 125-6; ver Etiquetagem (labe/ling), ver diagnós-
Bioquímica, 92-4, 99, 171, 172. Contrato (terapêutico), 107, 138, também prevenção. tico, expertise.
Blanc, J., 102. 177-8. Despsiquiatrização, 87-8, 98, 106. Eugenismo, 92-3, 95; ver também hi-
Bles, G., 65. Controle social, 13, 18-9,42-3,49-50, Desvio, 32, 42-3, 76-7, 116, 124-5, giene social.
Bloch-Lainé, Fr., 102 111,121, 125-6, 131-2, 175-6, 178; 178; ver também anomalias, dife- Exclusão, ver segurança
Bodman, E. de, 160. ver também coerção, segregação, renças, deficiência. Expansionismo (psiquiátrico), 40-4,
Bonetti, M., 161, 176. vigilância, Estado, expansionismo. Devereux, G., 164. 49, 66, 96-7, 128-30, 174; ver
Bonnafé, L., 36, 41, 42, 44, 46, 49, Convivência, 19, 120, 141-2, 165. Diagnóstico, 100-1, 107-8, 110-1, 112, também controle social.
53, 71. Cooper, D., 25. 127; ver também expertise, fieira. Expertise, 16-7, 41, 64-5, 67, 70,
Brisset, Ch., 33, 38, 77. Corpo (técnicas do -), 14, 141-2, Diferenças (tratamento das -), 30, 100, 107-10, 111, 123, 131; ver
146, 166-7, 173-4. 98,112,113,115,124, 178;ver também diagnóstico, fieira.
Crônicas (doenças), 45, 56-7, 70, 71, também anomalias, fragilidades. Extra-hospitalar, 35, 46, 47, 48, 56,
Caillard, V., 94. 76. 57, 59, 61.
Canguilhem, G., li!. Cultura psicológica, 17, 67-8, 89, Ecletismo (terapêutico), 53-4, 55, 98, Ey, H., 33, 34, 35, 41, 53, 54, 88,
Caplan, G., 129. 140-1, 145-6, 157, 171, 172;au- 134, 149, 150. 89, 90.
Carpentier, J., 147, 162. tonomização da -, 133, 139-40, Educação nacional (papel da -), 33,
Carter, R., 62. 151, 153-4, 156, 158-9, 167; ver 34, 44, 51-2, 103-8, 111-2, 136- Falret, J.-P., 69, 98, 128.
Castel, F., 47, 57, 94, 129, 142. também relações, psicológica (ins- 7; ver também psicopedagogia, sis- Família, 53, 87, 96- 7, 108, 135; cri-
Castel, R., 27, 38, 4 7, 52, 57, 69, 84, talação na - ), sociabilidade. tema escolar. se da -, 25, 145-6, 154-5, 157-9,
94, 124, 129,135,142,154, 162. Cultura relacional, ver relações. Empresa, 70, 108-9, 112-3, 118-9, 161, 167, 173-4.
Centros de Ajuda para o Trabalho Cura, 89, 145, 175. 120, 139, 145-6, 151, 159-62;ver Fatores(de riscos), 114, 115-6, 126-
(C.A.T.), ver oficinas protegidas. também gerência, psicologia indus. 7, 133, 177-8; ver também pericu-
Chauviere, M. 53, 1 18. Darwin, Ch., 93. triai. losidade, populações, riscos.
Chesse], P., 103. D.A.S.S. (Direções à Ação Sanitária Empresário, gerente, 146, 147-8, 161, Faure, E., 33, 35.
C.H. U. (Centros Hospitalares Univer- e Social) (papel das-), 50-1, 59, 178. Fenomenologia, 54, 81, 170.
sitários), ver universitária 63-4, 103, 104. Enfermeiros, 57, 79-80; ver também Fieiras, redes, malhas, 14, 65, 104,
C.M.P.P. (Centros Médico-Psicopeda- Daumezon, G., 41,43,44, 45, 54, 85. formação. 112-4, 124, 178.
gógicos), 52, 135. Debray, Q., 94. Equipe (terapêutica), 38, 58, 101, Filantropia, 52, 63, 67, 69, 131-2,
Coerção, 19, 23, 24-5, 28, 40, 50, Debré, Pr., 37, 38. 104. 176.
111, 176-7, 178; ver também re- Décima terceira região ( experiência Escoffier-Lambiotte, Dr., 95. F ollin, S., 53.
pressão, segregação. da-), 38, 42, 85, 86. Espontaneidade, 19, 25, 145, 150, Formação, dos psiquiatras, 34-5, 39,
Comrnunity Mental Health Centers, Deficiéncia, ver anomalias. 162, 172, 176. 58, 77-80, 82-5; dos enfermeiros,
15,47,62, 129. Deficiência, deficientes, 50, 51, 64, Esquema médico, 54, 5 8, 88, 174. 57, 79-80; dos psicólogos, 96, 134-
Comportamentalismo, ver terapias 76, 97-8, 102, 123, 178; nova ges- Esquema de reparação, 16, 89, 106, 6, 148; dos psicanalistas, 82-3,
comportamcn tais. tão da-, 101-5, 107-9, 112-4; - 133,144,151,159,170. 137-8, 139, 148; ver também pro-
Comunidade terapêutica, 44, 48, 86. e doença, 105-6; - e inadaptação, Esquirol, J.E.D., 44, 93. fissionais ( estratégias dos - ).
Consenso, 18, 173, 176- 7. 102, 106;vertambémleide 1975, Estado (papel do aparelho do -), 16- Formação permanente, 150, 161-2.
anomalias, fieiras.
192 193
Foucault, M., 23-4, 126, 136. História, deconstrução da-, 9 9, lOO.
Fousset, J., 113. Kardiner, A., 164. 153,154,155, 167.
!, 106,142,152,171,179. Kennedy, J.-F., 62. Lowen, A., 141, 167.
Fragilidades, 18, 144, 147, 149-50, Hobbes, T., 164. Kernberg, O., 163.
155, 1634, 173; ver também ano- Hospício, 73, 75. Keynes, J.M., 175. Major, R., 139.
malias, diferenças, patológico
( avanço do - ). Hospital psiquiátrico (preeminên . Kittrie, N., 129. Mamelet, M.R., 56.
dei -), 44-8, 55-7, 100, 169.;~~ Koechlin, Ph., 44. Mannoni, M., 27-8.
Freud, S., 16, 29, 82, 134, 135, 136
141,143, 16~ ' relação com o hospital geral, 36_7 • Mao Tsé-Toung, 29.
70-1,. 73: 7; ver também hospício'. La Borde, 83, 85, 86. Marginalização, marginalidade, 19,
pSiquratna (especificidade da -). Laborit, H., 99. 37, 77, 154-6, 176-7; ver também
G.A.M.I.N. (GestãoAutomatizadaem
Lacan, J., 26, 53, 84, 136, 139. anomalias, diferenças.
Medicina Infantil) (sistema -),
Imaginário profissional, 90-2 9g. 9 Lacronique, J.-F., 75. Martin, D., 83.
103, 114-6, 117, 118, 131. 174. ' ' Lacrasse, J.-M., 147, 149, 153, 155, Marx, K., 24, 157.
Gaulejac, V. de, 161, 176.
Inconsciente, 14, 84, 99, 100-J 167 166. Marxismo, 23, 54.
Genética, 92, 171; ver também euge- 171. ' ' Lagache, D., 134, 137. Masson, A., 103, 113.
msrno.
Infância, criança (psiquia !ria da _ ), Lanteri-Laura, G., 54. Medicamentos, 44, 45, 4 7, 56-7, 72-3,
Gentis, R., 148.
39, 51-3, 54, 87; do se encanegar Lapassade, G., 141. 88, 92-3.
George, Fr., 138.
da -, 64-5, 70-1, 96-7; novas polí- Lasch, Ch., 163, 164, 165. Médico-social (setor), 58, 64-5, 117,
Gestalt-terapia, 14, 141, 152.
ticas em relação ã -, 102-5, l08- Le Cerf, J.-F., 52, 135, 154. 118-9.
Gestão'. . ver anomalias, diferenças,
9,_ 112-7; ver também G.A.M.I.N. Legrain, M., 69. Mendel, J.G., 93.
fragilidade, população, riscos; ver
(sIStema), intersetar, psicopedago- Le Guillant, L., 54, 84. Meyer, A., 151.
também administração, Estado,
gra, nscos. Lei de 1838, função da -, 50, 60, Mine, A., 175.
políticas sociais, neoliberalismo;
Informática, informatização 59-60 11 O, 124, 130; crítica da -, 28, Minkowski, E., 81.
ver também controle social, infor- 32, 35, 61, 69; reforma da-, 36-7.
96, 101, 110, 113, 129-32 171' Míses, R., 83.
matização, prevenção, programa.
176, 177. ' ' Lei de 1975 em favor das pessoas de- Morei, B., 93, 128.
ção, segregação.
Glowinski, J., 93. Instituição totalitária, 15 23 24 32 ficientes, 50, 97, 119; funciona- Moscovici, S., 137.
Goffman, E., 23, 157. 86. ' ' ' ' mento da-, 104-14; as Comissões Mudanças (instrumentalização da-),
Internamento, 29, 42-3, 50, 72-3, e a-, 103-5, 107-IO, 111, 114-5; 150, 161, 174, 177; ver também
Green, A., 83.
!00, !03-4, 127. ver também administração, fieira, corpo ( técnicas do - ).
Grito primai, 141.
Intersetar, 53, 61, 64-5. deficiência.
Grupo, terapias de-, 142, 145, 148-
Intimidade, 9-IO, 22, 146, 163-6 Lenoir, R., 103, 118. Nacht, S., 135.
9; instância do--,, 152-4, 157, 164-
167; ver também narcisismo. ' Lévi-Strauss, Cl., 136. Narcisismo, 14, 144, 163-5; vertam-
6, 167; ver também psicossociolo-
Lewin, K., 142, 167. bém cultura psicológica, psicológi-
gia, relações, cultura psicológica.
Guattari, F., 83. Jakins, H., 141. Liberação (problemática da-), 13-5, co (instalação no -), privatização.
James, M., 146. 19, 26-8, 172-3, 176-7. Neoliberalismo, 19,118, 119-24, 171;
Guillemin, R., 95.
Janet, P., 82. Lindeman, E., 129. ver também Estado.
Janov, A. 141. Livre escolha, ver privado. Neurolépticas) ver medicamentos.
Hesnard, A., 81.
Heuyer, G., 52, 70, 71. Jaspers, K., 81. Lipovetsky, G., 163. Neuropsiquiatria, 34, 35, 40, 52, 78n,
Jaureguiberry, J., 118. Localização, ver internamento. 87-8, 149-50.
Hic et nunc (culto do-), ver aqui e
agora. Justiça, 29, 41, 44, 64, !08. Losserand, J., 73. Neutralidade (analítica), 16-22, 28,
Loucura, 21, 24, 29, 30, 72, 80, 81, 32, 122.
Higiene mental, 69, 70, 71, 151.
Kadushin, Ch., 154. 95, 105-6; ver também alienação. Nora, S., 175.
Higienismo, 151, 153.
Kant, E., 156. Lovell, A., 47, 57, 94, 129, 142, 147, Normalidade (trabalho sobre a-), 19,

194
195
67, 89, 133, 143-6, 153-4, 172-3, 129-32, 170, 175; ver também fra- 151, 156, 159-62, 166-7; - da gica, psicológico (instalação no-).
177-8; ver também patológico, gilidades, riscos, fieira, programa- criança, ver psicopedagogia. Repressão, 14, 17, 27, 29, 32, 100,
saúde, cura, terapia para os nor- ção. Psicológico, instalação no -, 13, 19, 126, 127, 132, 176-7.
mais. Positivismo, 67, 69, 80, 90, 91, 92, 133, 134-5, 146, 149-50, 153-4, Responsabilidade, ver assistência, con-
Nosografia, 28, 68, 127. 95, 100, 127, 169-70, 1734; ver 156, 161-2, 163-6, 167; vertam- tinuidade dos cuidados.
também objetivismo. bém cultura psicológica, narcisis- Richard, B., 160.
Objetivismo médico, 18, 45, 67, 71, Pós-cura, 44, 55, 101. mo, relações. Riessman, D., 164.
73, 90, 95, 98-9, 100, 169, 171, Pragmatismo, 99,142,146,171,173, Psicopedagogia, 52, 108-9, 111, 135, Riscos (populações de - ), 17, 1 8,
173-4; ver também positivismo. 174; ver também objetivismo. 144-5, 151,156,167. 101, 114-7, 130-2, 169, 175, 178;
Oficinas protegidas, 104-5, 108, 112, Prevenção, 18, 42, 46, 48, 54, 66, 69, Psicossociologia, 135, 166. ver também administração, pre-
128; ver também produtividade. 101, 115, 117, 127, 133, 144, Psicotecnologias, 14, 15, 18, 19, 97, venção.
Ortodoxia (psicanalítica), 85, 135, 151, 171; novas estratégias da-, 100-1, 140-2, 163-4, 176-7, 178-9. Rouart, S., 53.
137-40, 141-2. 114-7, 124, 125-6, 129-30, 171, Psicoter~pia, 4 7, 79, 82-3, 87, 88, 96- Roucard, L., 71.
Oury, J., 83. 175, 178. .7, 100-1, 140-2, 148-9.
Previdência Social, 59,103,104, 119. Psicoterapia institucional, 45, 83-6,
Pages, M., 161, 176. Prisões, 14, 23, 24, 29. 91. Sartre, J.-P., 14.
Paraterapêutico, 76, 138, 148, 150, Privado (setor), 28, 49-5 l, 52, 53, 62- Psiquiatria, modernização da -, 15, Saúde (explosões do conceito de -),
172; ver também fragilidades, te- 5, 73, 97-8, 149, 150, 171, 176; 16-7, 22, 29-30, 32-40, 59-60, 72- 145-6, 149-50, 151, 166; vertam-
rapia para os normais. ver também administração, pú- 3, 83-4, 85, 86; especificidade da bém cura, normalidade, terapia
Partido comunista, 26, 82. blica. -, 17, 34, 39-40, 45-6, 53-4, 62- para os normais.
Patológico (avanço do-), 67, 89, 98- Privatização, ver intimidade. 3, 65, 73-80, 81-7, 124, 134;per- Schutzenberger, A., 135, 141.
9, 133, 144-5, 149-50, 153-4, 155, Procacci, G., 147. da da hegemonia da -, 55, 61-6, Segregação, 16, 17, 18, 30, 35, 40,
158-9, 162-3, 170, 178; vertam- Produtividade, 104, 106, 1114, 154- 67-8, 72-3, 75-7, 80, 89, 133, 149- 71-2, 73, 95, 103, 109, 127, 170,
bém nonnalidade ( trabalho sobre 5, 159-62, 173, 176-8. 50, 169-70;- comunitária, 15, 28- 177,178.
a -), terapia para os normais.. Profissionais (estratégias dos'--), 33-4, 9, 46, 47, 58, 74, 77, 85, 86, 87, Seguin, 51.
Pedagogia, ver psicopedagogia. 54-5, 60-1, 81-2, 108-10, 121-2, 129, 170; - social, 91, 99, 100-1, Sennett, R., 157, 163, 164, 165.
Perfis, 99, 112-4, 115, 127; ver tam- 134-5, 138. 105-6, 174; - e psicanálise, ver Setor, ideologia da política do-, 16,
bém gestão. Programação, 112-4, 116, 117-8, 119, psicanálise. 28-9, 32, 91, 101, 122, 130; em
Periculosidade, 105-6, l 25-8;ver tam- 124,146,175, 178-9. Público (caráter - dos serviços), 15, lugar do -, 38-40, 73, 87; contra-
bém riscos. Psicanálise, promoção da-, 26-9, 32, 27-8, 40, 62-5, 86, 90, 118-24, dições internas do-, 44-55, 71-2;
Perls, F., 141. 34-5, 44, 48, 53-4, 55, 81-8, 89, 149,150,173, 175-7; ver também balanço do-, 55-60, 61-6, 76, 77-
Piaget, J., 135. 134-40; crise da -, 16-7, 88-92, administração, Estado. 8, 92, 99, 124, 150, 170; ver tam-
Pinel, Ph., 80-1, 105. 95, 98-9, 100-1, 138-40, 145,148; bém psiquiatria comunitária, s0-
Planificação, ver programação. - e psiquiatria, 15, 16, 26-9, 83- Reagan, R., 63. cial, especificidade da -.
Política (redefinição da-), 13-4, 18, 90, 95, 101, 134, 144-5; - e cul- Recamier, P.C., 82, 85. Sistema escolar (como sistema de
22-3, 26- 7. tura psicológica de massa, 26, 28- "Recuperação" ( da psicanálise), 16, nonnas), 104, 105:6, 107-10, li 1-
Políticas sociais, 17, 18-9, 101, 116-7, 9, 134-8, 140-1, 143-5, 149-50, 28, 139, 140. 2, 135, 137-8, 156; ver também
118-24, 130-2, 171, 175-6, 178; 153-4; sociedades de-, 137, 138- Reich, W., 27, 141, 167, 172. educação nacional, psicopedago-
ver também administração, Esta- 40; pós- -, 17, 27, 67, 89, 133, Relações, 54, 70, 78, 80-1, 89, 90, gia.
do, programação. 140-3, 150, 162-3, 166. 92, 98, 101, 134, 136, 145, 147, Sivadon, P. 83.
Populações (gestão das -), 17-8, 49- Psicologia, clínica, 134, 137, 150, 149, 150, 157-8, 159-62, 164-6, Skinner, B.F., 96.
50, 68, 100-1, 110-8, 125, 127, 151,167, 177-8;-industrial, 146, 167; ver também cultura psicoló- Smirnoff, V., 82.

196 197
Sociabilidade, 19, 133, 152-3, 154-5, Toffler, A., 157.
157, 164-6, 168; ver também cul- Tominson, 106.
tura psicológica, relações. Tosquelles, Fr., 84.
Social, redefinição do -, 18, 116, Toulouse, E., 52, 70, 71-2, 75, 77.
133, 1534, 156, 157, 161-3, 163- Toxicomania, 50, 76, 102, 123.
6, 167; ver também cultura psico- Traoalho, ver produtividade.
lógica. Trabalho sobre a normalidade, ver
Soljenitsin, A., 19. normalidade.
Sterlin, e., 42. Trabalho social, 17, 24, 50,145,147,
Stewart, J., 94. 167.
Stora, B., 135, 137. Transferência, 84, 85, 86, 88, 143.
Sujeito, problemática do -, 16, 22, Tratamento moral, 62, 128.
26, 28, 68, 99, 106, 152, 156; dis- Turkle, S., 136, 137.
solução do -, 19, 99, 100, 126, Tutela, 51,123.
130, 170-2, 175; ver também ob-
jetivismo, positivismo, pragmatis- Universitária (medicina -), 34, 52,
mo. 71, 72, 79, 94, 97; ver também
neuropsiquiatria.
Taylor, F.W., 146. Usuário (serviço do-), 49, 50, 59,
Tecnicismo, 32, 45, 67, 91, 95,122, 66, 129.
172, 175, 177-8.
Tecnocracia, 41, 59, 70, 108, 115, Vacher, N., 103.
123,177. Veil, C!., 106, 112.
Terapias comportamentais, 96-8, 149, Visitas a domict1io, 51, 59.
171,174, 177-8.
Terapia familiar, 150, 174. Weber, M. 150.
"Terapia para os normais", 17·9, 89, Welger, C., 98.
98, 144-6; ver também normalida- Wildocher, Dr., 174.
de. Wolpe, J., 96.

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SINTRA GRÃFICA E EOITORA
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com filme, fomeâdcs pelo cdil,(W

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