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ANNALS, Ignasi de Solà-Morales

Este segundo número da atual etapa dos Anais é dedicado a Ignasi de Solà-Morales (Barcelona, ​24
de agosto de 1942 / 12 de março de 2001). Ele começa com um artigo inédito de sua autoria, parte
de seu próximo livro (Territórios) que será publicado em breve pela Editorial Gustavo Gili.
Agradecemos a todos que aqui contribuíram. Agradecemos a Ignasi por sua vida e obra.
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Paisagens

"Embora eu esteja aqui, no centro do mundo, estou fora dele e me sinto feliz tentando ficar ileso.
Tenho aqui meu próprio reino, rico e povoado: minha paisagem e minhas criaturas.”
(John Constable. Carta a John Fisher, 9 de maio de 1823)

Estar e não estar no centro do mundo. Estar no reino produtivo e povoado. Mas ao mesmo tempo
estar no privado, meus filhos, minhas criaturas, e no separado, a paisagem.
Primeiro a introdução da noção de paisagem para descrever a relação com os espaços naturais, com
o processo da sua domesticação, através da jardinagem, pintura ou poesia; mas também a noção de
paisagem como premonição da nossa relação com a cidade é um ponto de vista próprio da
experiência do natural e do urbano no homem moderno. A noção de espaço público corresponde à
tradição greco-latina da cidade. Público é um adjetivo de raiz latina e tem a ver com a concepção de
respública, a coisa pública, o que se relaciona com o populus, a comunidade articulada de cidadãos
através do direito e da cidade.
Pensar, projetar o espaço público, pressupõe a existência de um grupo que compartilha identidade e
dignidade em seus direitos e deveres. Mas se a etimologia do público nos remete às noções de
pertencimento a um grupo e de participação em um sistema de convivência aceito e assumido, a
etimologia de paisagem nos remete a áreas de significação muito diferentes. Certamente paisagem
deriva também de uma forma latina do baixo império, pagus, que designa o território onde se habita.
Paisano, payés, é aquele que habita em um lugar e mais precisamente aquele que estabelece nesse
pedaço de território uma moradia. O país e, portanto, a paisagem não delimitam a esfera de
convivência com os outros, nem a experiência dessa organização civil, mas, sobretudo, um tipo de
relação muito mais individualizado derivado do fato de se assentar, de construir a casa. Se hoje
vivenciamos a cidade como paisagem não podemos atribuí-la apenas a um modo de ver, uma vez
que esse modo de ver está relacionado à nossa experiência de habitar.
A cidade não é mais experimentada como uma estrutura articulada na qual o que nos é comum e
próprio está disponível e da qual somos parte ativa, participantes. Pelo contrário, vivemos em
cidades que, como nas paisagens, o que tentamos fazer é construir o nosso território, um lugar
seguro, intacto, onde seja possível viver conosco e com os nossos.
A noção de paisagem desmonta a relação de pertencimento a uma polis cujas raízes devem ser
buscadas na cultura urbana do mundo antigo e medieval para substituí-la por uma relação muito
menor, de sobrevivência gratificante, no campo da expansão individual.
John Constable está satisfeito em viver na Inglaterra, no centro do mundo, mas ao mesmo tempo
fora dele, em um universo separado imerso na imprevisibilidade do território natural mas construído
com seu próprio esforço, minhas criaturas.
É difícil explicar em poucas palavras a condição do homem moderno na cidade e no campo
justamente em um momento em que essa distinção não é mais relevante.
A tradição da paisagem é a do exercício estético do olhar a partir de fora. Sabemos como, na pintura
da paisagem natural, os primeiros pintores paisagistas se serviam do famoso espelho de Claude.
Supunha-se que Claude Lorrain, o pai de todo o pintoresquismo, utilizava um pequeno espelho para
demarcar sua visão da paisagem ilimitada. O espelho retrovisor era útil para organizar a visão e
encontrar modos diferentes dos da perspectiva geométrica para captar a casualidade e a ordem
fortuita dos acidentes na paisagem natural. O espelho, eventualmente, ao gosto do pintor, demarcava
um conjunto de acidentes, encaixando-os na geometria do quadro. De fora, o olhar do pintor tinha a
intenção de apropriar-se dessa acumulação de objetos e episódios que o olhar captava para
torná-los seus, para que se sentisse seguro frente a eles, dominando-os e compreendendo-os, em
uma apropriação ativa que muito tinha a ver com a experiência colonizadora de viver por si mesmo.
A partir da visão paisagística, tal como se desenvolve na tradição pictórica, jardineira e também
poética ou musical é importante destacar três características formais que a diferenciam radicalmente
da visão civil e urbana.
A primeira tem a ver com como estabelecer os limites dessa visão e, por extensão, da noção de país,
de paisagem. Não se trata apenas dessa ser uma delimitação artificial, não determinada previamente
pelo que está fora do indivíduo, mas por ser uma determinação casual, subjetiva, fruto de uma
decisão nascida do observador, do colono, do passear errático do caminhante.
Joachim Schneider destacou a relação entre essa experiência de caminhar e de deambular e de
deriva dos situacionistas. De fato, se algo caracteriza a maneira como os autores situacionistas
vivenciam a cidade, é sua vontade radical de não estabelecer limites, nenhum plano prévio, nenhuma
hierarquia visual estabelecida, mas apenas a produção subjetiva de uma experiência particularmente
visual. Ausência de limite previamente estabelecido.
A segunda característica da paisagem é sua condição superficial. Certamente a palavra superficial
não é usada aqui no sentido de algo que não tem valor, que é trivial ou banal. "E eu sou o que
pareço" é a afirmação contundente de um autor barroco como Baltasar Gracián ao aconselhar, em El
Criticón, como se comportar em relação aos outros. Essa frase, retomada com fruição por Gilles
Deleuze, revela que é na superfície visível, tangível, transitável das coisas e das pessoas onde
encontramos nosso entorno, nosso vizinho (nosso próximo), nosso mundo. A percepção da
superfície nos confronta com o que nos é acessível e faz do conhecer, acima de tudo, um
reconhecimento. É a forma sensível pela qual o sujeito é capaz de assumir o controle do mundo ao
seu redor, experimentando-o no espaço e no tempo.
Porque a terceira característica do paisagismo, natural ou urbano, não há diferença, é a de incorporar
o tempo e o movimento a experiência do espaço. Como atributos essenciais da experiência
paisagística vamos nos movendo porque os acidentes naturais ou a multiplicidade de estímulos,
mensagens, formas que nos bombardeiam em nosso movimento pela cidade, ocorrem de forma
temporária, inevitavelmente vinculada a experiências de deslocamento, deambulação, transladação
por passeios e visadas mutáveis , surpreendidos pela constante inovação do que está diante dos
nossos olhos.
A cidade contemporânea, a metrópole, a megalópole difusa, sem limites, em permanente processo
de formação e de devastação não é mais compreensível através de uma visão que encontra na
ordem dos traçados o suporte de uma inteligibilidade estável. Todavia, a cidade do século XIX, com
suas ruas e avenidas, praças e jardins, tinha uma forma compreensível, geral, permanente. Mesmo a
cidade do Movimento Moderno pretendia, através da centralidade, da definição de áreas e de
infraestruturas de transporte, ser reconhecida como uma estrutura simples e apreensível.
Os edifícios da cidade burguesa do século XIX ou os da Groꞵstadt de Hillberseimer foram marcos na
formação de estruturas cuja legibilidade deveria se basear em uma forma predeterminada pelo
planejamento e design urbano.

Em uma situação de contínua construção e destruição, de permanente crescimento e renovação, de


mutação e obsolescência, a condição casual de imprevisibilidade da cidade se converte em seu
verdadeiro modo de exposição. A cidade atual internaliza sua energia, mas também seus conflitos
sociais, geológicos e ambientais, aceitando com fatalismo conviver com eles.
A arquitectura desta situação individualista, cujo espaço público tende a converter-se em paisagem,
tem características muito precisas.
A arquitetura e as cidades espanholas não são alheias a esses processos. É ingênuo pensar que a
Ecology of Fear ( a Ecologia do Medo) seja algo exclusivamente atribuído a Los Angeles. O best
seller de Mike Davis faz de Los Angeles um paradigma das arquiteturas e cidades do mundo. Não
surpreende, portanto, que uma seleção de valiosa arquitetura espanhola registre a forma de
aproximação paisagística da cidade e seus edifícios como uma forma emergente. Limite,
artificialidade do efeito de superfície e movimento instável são três características que encontramos
nas oito obras selecionadas para esta seção da exposição.
Se nos fixarmos para o modo de produção da quadra de tênis e Peine de los Vientos, de Luís Peña
Ganchegui e Eduardo Chillida, encontraremos uma paisagem da mais evidente natureza romântica.
O mar infinito, em movimento, as ondas explodindo incessantemente contra as rochas e a metáfora
das duras superfícies de pedra desafiando o movimento do mar se encontram, como num raio
instantâneo que explode, naquele ponto preciso formalizadas pela peça escultórica de Chillida. O
limite entre a terra e o mar, o céu e as brumas, o fim da vegetação convertida apenas em mineral, é
sinalizada através de um gesto aberto, açoitado pelo vento e pelas ondas. Os dois ganchos
engastados nas rochas são um dispositivo. Arcaico, signo indecifrável de um sinal que aponta para o
limite. O traçado dos degraus, a fuga ao infinito das arestas, a escala abstrata das formas de pedra e
ferro diante do horizonte ilimitado são uma tentativa de designar um ponto sem retorno, o controle do
infinito experimentado como sublime.
Nos projetos para Ullastret e Ciutat de Palma, de Josep Lluís Mateo e Elías Torres e José Antonio
Martínez Lapeña, a técnica de intervenção paisagística é um pouco diferente. Opera-se com
superfícies. Abstratos tapetes desdobravam-se ao longo de percursos não determinados por uma
estrutura urbana previamente existente e reconhecível. O pavimento, os pavimentos de variadas
texturas e peças, criam a imprevisível surpresa das suas mudanças, das suas voltas, dos seus
encontros. A pavimentação da cidade tradicional estabelece relações precisas entre a rua e os
edifícios, explicando a indiscutível dialética entre o público e o privado, entre o construído e o vazio.
Porém, talvez, não seja mais construído ainda, mimado com deleite lúdico, este espaço
convencionalmente estabelecido das rotas?
A inovação proposta por esses projetos tem a ver com a ruptura da relação orgânica entre as ruas e
os edifícios. Os limites um do outro flutuam, deixam lacunas, tornam-se autônomos. O pavimento é
um extenso tapete, rico em decoração e engenhosidade, que convida a passar, a olhar, a acumular
vistas surpreendentes de uma parte da cidade que, como em um jardim, será captada como
paisagem. Olhares, sucessões, surpresas, viradas bruscas, multiplicação.
São limites propostos pelo arquiteto em uma pessoal apropriação visual dos acidentes, dos pontos
de destaques, dos recantos e reentrâncias ou das perspectivas distantes. Da mesma forma que
"Capability", Brown nos oferece rotas para desfrutar dos prazeres de sua natureza controlada em
forma de pequenos bosques, riachos, pequenas construções e trilhas, também aqui nos é proposto
olhar à deriva, caminhando sem rotas excessivamente determinadas, oferecendo uma sequência de
explorações visuais.
Quando Albert Viaplana e Helio Piñon propuseram a chamada Plaza de Sants, em Barcelona,
​estavam se voltando para o neotradicionalismo com o qual foi enfrentada a maior parte da
remodelação dos espaços públicos na Barcelona dos anos oitenta.
A reconstrução da cidade era o mot d’ordre, uma ideia que muitas vezes significava que a cidade
tinha que recuperar seus espaços degradados, limpando-os das excrescências acumuladas ao longo
da gestão urbana sem uma compreensão de conjunto dos espaços urbanos.
A Plaza de Sants partiu, por outro lado, da desolação. Literalmente da ausência de solo, de cidade.
Só um fotógrafo como Francesc Català-Roca faria da Plaza de Sants uma leitura cidadã, com as
pessoas sentadas em bancos e as crianças brincando com água. Suas belas fotografias são uma
grande anomalia. Tentam nos contar uma cidade pública em um lugar sem entorno, sem habitantes,
vazio.
A Plaza de Sants é o jogo solene e magnífico de superfícies de pedra e metal que se cruzam no
espaço, com luz diurna e noturna projetando grandes planos de sombra.
Na cidade das bordas, dos objetos arquitetônicos sem relação, chamar essa engenhosidade visual
de praça não pode ser nenhuma analogia. Não tem centro, não tem prédios que a contornem. É uma
superfície que narra bem seus limites, estendendo-se a algumas direções que lhe conferem função e
dinamismo.
Eduard Bru na sede olímpica de Vall d'Hebron também pensou em uma paisagem feita a partir de
superfícies. Antecipando ao fascínio que nos últimos tempos tem gerado a forma infinita da faixa de
Moebius, as ruas, encontros e cruzamentos, superfícies para tráfego ou pedestres são dispostas
como fitas sem fim que correm entre si fechando-se sobre si mesmas em uma espécie de tapis
roulant interminável. Aqui, também, as superfícies são autônomas. Se flexionam, se deformam,
produzem geometrias regradas de surpreendente fascínio. É como se a área de tráfego desta seção
do equipamento olímpico, mais do que ser um serviço aos diversos prédios, tivesse se tornado a
emocionante sequência de montanhas-russas ou os intermináveis ​corredores, ora macios, ora
ásperos, ora estreitos, ora largos, de nossos passeios infantis pelo percurso mágico de um castelo
encantado.
Que da superfície como limite se passe para a experiência do tempo e do movimento, resulta quase
em um corolário.
As veduttes paisagísticas são um instante, congelado na retina do pintor, de um fluir de nuvens,
águas, pastores ou camponeses que trabalham lenta mas inexoravelmente no campo.
Que a pintura de paisagem constituiu a conquista da temporalidade é o tema fundamental das
reflexões de Payne Knight sobre o pitoresco.
Paisagem do escritório é como tem sido chamado, nos últimos tempos, um modo de ordenar os
espaços de trabalho em um interior tentando eliminar as divisões e limites, multiplicando os pontos
de vista, as variedade e a surpresa de qualquer um que se mova neste espaço de trabalho, que quer
fugir da rigidez estática das divisões convencionais.
Na sua Biblioteca del Estado, em Murcia, José Mª Torres Nadal quis levar esta experiência ao limite.
No interior de um edifício deliberadamente mítico, com planta livre e superfícies horizontais
contínuas, quis introduzir uma importante dose de aleatoriedade e movimento.
As colunas convertidas em surpreendentes formas inchadas, retorcidas, cheias de cores nada mais
são do que um primeiro sistema de pontuação de espaços rodopiando em direção a um dos flancos,
abrindo passagens como caminhos estreitos, produzindo curvaturas e frações inesperadas,
deslocando com aparente aleatoriedade o mundo do trabalho e do estudo de uma biblioteca. A
confrontação da rígida disposição convencional do contorno do edifício, convertida num espaço
plástico maleável no interior, a biblioteca de Múrcia leva a sensibilidade paisagística à tensão
máxima, na qual hoje devem coexistir formas de perceber a cidade e os espaços públicos de forma
contraditória.
O projeto de Alejandro Zaera-Polo e Farshid Moussavi para o terminal de passageiros de Yokohama
explora os mecanismos espaço-temporais pelos quais hoje é possível produzir formas a partir de
diagramas.
Em suma, também um interior que produz apenas o exterior do edifício como um reverso, como
contrapeso a um processo de modelagem apertado em que os fluxos de passageiros e seu
movimento são a verdadeira substância formal do edifício. Como uma concha mole que adere a esse
trânsito anônimo de quem vem e vai da balsa, o projeto de Zaera-Polo e Moussavi desdobra a
condição fluida e temporária de todo e qualquer processo no suporte de sua arquitetura. Quanto ao
projeto do Parlamento de Edimburgo de Enric Miralles e Benedetta Tagliabue, podemos falar de
processos geomórficos como aqueles que John Ruskin tanto se interessou em capturar em seus
Modern Painters (os pintores modernos). Da mesma forma que para Ruskin, a pintura de JM William
Turner era a paisagem geográfica e os acidentes geológicos, as montanhas e lagos, mas também as
falhas, geleiras, brumas e luzes filtradas por elas, formando um todo ao mesmo tempo que continuo,
cheio de fraturas, acidentes, acontecimentos, também o projeto para Edimburgo parece brotar,
crescer, colidir, retroceder e reativar através de um encontro anônimo, geológico, urbano, figurativo,
pelo qual as formas de arquitetura vão ocupando suas posições em um processo nunca acabado e
que mostra o projeto como uma fotografia instantânea, uma foto fixa de um sistema múltiplo de
movimentos.

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