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SER
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
1 de Junho
Dia Mundial da Criança
1
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Minutos depois, mais um senhor curioso fez a pergunta
do costume, precisamente na altura em que uma banda de
rock pum-tá-tchim-pum se exibia na televisão. O Joca
respondeu:
– Músico.
Mudaram de canal, por coincidência, quando o locutor
gritava, a meio de um desafio de futebol:
– Goooooolooooo!
E o Joca também gritou:
– Futebolista.
Nova mudança de canal, para uma correnteza rápida de
notícias, entre as quais um desfile militar, o que fez com
que o Joca logo mudasse de opinião e dissesse:
– Soldado.
Na tribuna de honra, um respeitável senhor de cabelos
brancos perfilava-se, diante das tropas em parada. O Joca
não hesitou mais e disse:
– Presidente da República.
Bombeiro, aviador, músico, futebolista, soldado,
Presidente da República... Em que ficamos Joca?
– Agora vou brincar – disse o Joca, cansado de ter
passado por tantas profissões, em tão pouco tempo.
Neco, o primo mais novo, seguiu-o a correr.
– Ao que vamos brincar, Joca? – quis saber o Neco, que
era muito bem mandado em coisas de brincadeira.
– Vamos brincar aos bombeiros – decidiu o Joca.
– Com ambulâncias, carros encarnados, mangueiras?
– Vamos – entusiasmou-se o Neco.
Mas o Joca interrompeu-lhe os planos.
– Vamos antes brincar aos aviadores – resolveu ele.
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– Com aviões, aeroportos, para-quedas? Vamos –
entusiasmou-se o Neco.
Nova interrupção do Joca:
– Vamos antes brincar aos músicos.
E por aí fora, por aí fora, sem se decidir por uma
brincadeira... Em que ficamos, Joca?
Se ele aqui estivesse e lhe apetecesse responder, talvez a
resposta lhe saísse em verso, em forma de canção ou pouco
mais ou menos.
Cantiga do Joca
FIM
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NA TERRA
DOS
PINGUINS
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
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Da Amazónia, no Brasil, uma maravilha de terra...
– Mas Vossa Excelência veio-se embora... –
interrompeu, timidamente, o Urso.
– Por causa dos papagaios, amigo. Há lá papagaios a
mais. Papagaios, araras, catatuas, periquitos... Muita
concorrência, sabe! Além disso, gosto de viajar. Mas, irra,
que já tenho os pés frios de estar sempre no mesmo sítio.
Vamos dar uma voltinha?
Foram. O papagaio à frente, aos saltinhos, o urso atrás,
pesadamente.
– Não há mais bichos nesta terra pasmada? - perguntou
o papagaio.
– Há pinguins - informou o urso. – Milhares de pinguins.
– Apresente-me esses tais pinguins, que devem ser
bacanas.
Muitos pinguins juntos fazem um bocado de impressão.
Mas o papagaio não se impressionou. Quando eles o viram,
rodearam-no, cheios de curiosidade.
– É um pinguim às cores - disse um dos pinguins.
Os outros repetiram:
– É um pinguim às cores.
O urso ia explicar que se tinham enganado, mas o
papagaio abafou-lhe as palavras, com um discurso
improvisado:
– Sim, amigos, sou dos vossos. Vim procurar a vossa
companhia para vos explicar as cores e para vos ensinar a
comportarem-se como pinguins do nosso tempo. Muito
têm a aprender comigo. Para começar, vou ensinar-vos a
voar.
Foi uma aclamação geral. O urso que tinha adormecido,
entretanto, acordou sobressaltado e perguntou a um
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pinguim que agitava desesperadamente as asas minúsculas:
– O que aconteceu? Foi choque de icebergues?
– Nada disso. O pinguim colorido está a ensinar-nos a
voar. Vamos proclamá-lo rei, rei dos pinguins.
Aquilo já não interessava ao Urso Branco. Virou-se para
o outro lado e voltou a fechar os olhos. Mas, antes de
adormecer, ainda sentenciou:
– Em terra de pinguins pretos e brancos, qualquer
fruta-cores é rei.
E adormeceu, definitivamente.
FIM
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A BONECA DA
MADRINHA
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
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da madrinha ou a irmã da madrinha estavam sempre a
dizer-lhe:
– Cuidado, Mariana, que a boneca é de loiça e parte-se.
Ela sabia. Então não havia de saber? Mais cuidadosa do
que ela ninguém no mundo. A Mariana era capaz de
oferecer a sua própria vida para que a boneca nunca as
partisse.
Tocava-lhe ao de leve. Calçava-a e descalçava-a, vezes
sem conto. Dava-lhe beijos nas bochechas e nos olhos
pestanudos. Nunca sequer se atrevera a penteá-la, para não
lhe desmanchar os caracóis loiros.
O que a Mariana mais gostava era de vê-la, passear-lhe
os olhos do chapelinho à ponta dos botins, reter tudo, sem
que escapasse um único pormenor, para se lembrar, depois,
quando voltasse a casa.
As visitas à madrinha só aconteciam, de longe em longe,
mas eram sempre uma festa antecipada.
– Hoje vamos a casa da madrinha, Mariana – dizia-lhe a
mãe.
Que bom! Que bom, por causa da boneca. Não que a
madrinha não fosse uma senhora simpática. Chamava-se
Mariana, não tinha filhos, mas, em compensação, muitas
afilhadas, todas Marianas como ela.
– Eu não sei se elas vêm cá para visitar a madrinha ou
para brincar com a boneca da madrinha... - dizia a D.
Mariana, a sorrir.
Não era um grande sorriso o de D. Mariana, mas um
sorrisinho frisado, miudinho, que lhe apertava os olhos e
enrugava o queixo. "Um sorriso para dentro", pensava a
afilhada Mariana. Nada que se parecesse com o sorriso da
boneca, quase a estalar em riso, quando via mais aquela
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afilhada (dela? de D. Mariana?) aproximar-se do toucador,
de olhos a brilhar...
– Mariana, são horas de nos irmos embora – chamava-a
a mãe. - Despede-te da madrinha.
E ela, com um grande beijo de saudade, despedia-se
primeiro da boneca...
Mariana vai fazer sete anos e a madrinha avisou que,
desta vez, também ia à festa.
– Caso para admirar... Merece foguetes - comentou o pai
da Mariana.
– É porque tem uma rica prenda para a afilhada e quer
ser ela a dá-la - explicou a mãe, com ar misterioso.
"Uma rica prenda?", interrogou-se a Mariana. Seria a
boneca? A boneca de chapeuzinho à banda e botas de pôr e
tirar? A sua boneca? Podia lá ser outra coisa!
Enquanto a Mariana desembrulhava a grande caixa, que
guardava uma qualquer coisa pesada, que balançava lá
dentro, o coração bateu-lhe no peito que nem tambor em
batuque. À volta, as pessoas crescidas, entre as quais a
madrinha, sorriam, embevecidas.
Ela a destapar a caixa e uma morena vistosa, de saia
encarnada e laçarote à cintura, a olhar para ela. Boneca e
menina fitaram-se, surpreendidas. Afinal não era a boneca
da madrinha.
– Gostas? - perguntou D. Mariana a Mariana.
– Gosto, sim, madrinha. Obrigada, madrinha.
E a menina abalou para o seu quartinho, com a caixa, a
boneca e o papel do embrulho a arrastar. No segredo do
quarto, chorou lágrimas sentidas, agarrada à boneca que
não era dos seus sonhos.
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Entretanto, a boneca gemeu. Era das que choram,
quando se lhes carrega na barriga. Um mecanismo como
outro qualquer.
Mariana, só um bocadinho interessada por esta
habilidade da sua nova boneca, olhou pela primeira vez
para ela, com olhos de ver. Olhou e abismou-se.
A boneca chorava de verdade. Duas grossas lágrimas
corriam-lhe pela face. Estava visivelmente triste, muito
triste por ter desgostado a menina. Ela que apenas queria
agradar e dar prazer, trouxera desilusão. Por isso chorava.
Mariana enterneceu-se e limpou as lágrimas da boneca e
as suas próprias lágrimas. Ou as lágrimas da boneca
também eram da menina? Pouco importa. Esta história tem
mais que se lhe diga.
– Não chores, que gosto muito de ti – disse a menina,
apertando a boneca nos braços.
E ficaram para sempre muito amigas.
FIM
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UM MURO
SEM
HISTÓRIA
António Torrado
escreveu e
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Vieram operários da cidade ajudar à construção. Carros
de bois trouxeram, custosamente, pedregulhos das
montanhas longínquas.
Pedreiros partiram os pedregulhos em blocos e
começaram a levantar as paredes.
O homem que queria levantar ali, no meio da planície,
uma casa igual à do rei aparecia muitas vezes, para visitar
as obras. Gritava com os operários, zangava-se com o
encarregado, exigia pressa e perfeição.
Se ele mandara estender a estrada até àquele lugar, se ele
mandara cavar um poço, donde rompia a água que iria
regar os futuros jardins à volta da futura casa, só faltava
estar a casa pronta, para poder inaugurá-la com uma grande
festa, cheia de amigos, música e foguetes.
Mas as obras arrastavam-se. Também seria culpa do
homem, que umas vezes queria uma coisa, outras queria
outra. Uma torre, à esquerda da entrada, devia, vendo bem,
ficar melhor, à direita. Onde estava previsto o salão ia ficar
a cozinha ou talvez fosse melhor desfazer as paredes dos
quartos para alargar o salão... Levantava-se, deitava-se
abaixo. O encarregado da obra andava atordoado.
– O homem deve estar louco - dizia ele, em voz baixa. –
Está a gastar uma fortuna e nunca mais vê a casa pronta.
Foi o que aconteceu. Com os pagamentos atrasados, os
operários abandonaram o trabalho.
Tempos depois, silvas e mato tomaram conta das
paredes. Muitos anos correram. Chuvas, cheias, vendavais
arrasaram o que restava da casa inacabada.
Resistiu o muro coberto de musgo e hera.
– Conta a minha história - suplicava-me o muro.
Mas como é que eu posso contar a história de um muro?
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Os muros, as paredes, as ruínas não têm histórias
nenhumas para contar. Ou têm?
FIM
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QUEM SABE É
O JARDINEIRO
António Torrado
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5 de Junho
Dia Mundial do Ambiente
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Estava, um dia, o rei a mostrar o pomar a uns primos,
príncipes de reinos vizinhos, quando viu, caídos de um
pessegueiro uns tantos frutos meio apodrecidos.
Mandou logo chamar o chefe dos jardineiros e
perguntou-lhe, muito irritado:
– Explique-me este desleixo. Quem é o responsável?
– Foram os pássaros, Majestade, que bicaram os frutos
mais apetitosos – explicou o jardineiro.
– Pássaros? – exclamou o rei. – Como se atrevem a
entrar nos meus domínios e a bicar as minhas riquezas?
– Os pássaros têm asas e não conhecem muros –
respondeu o jardineiro.
– Pois vou eu ensiná-los – indignou-se o rei. – Que
podem os pássaros contra mim?
E o rei foi para o palácio, onde ditou um decreto para ser
espalhado pelo reino, em que mandava matar todos os
pássaros, passarinhos e passarocos, sem escapar um. As
ordens do rei tinham de se cumprir. Foi uma mortandade.
No ano seguinte, realmente, já não havia pássaros
atrevidos a bicar nos frutos do pomar real. Mas, em
contrapartida, uma praga aflitiva de lagartas e insectos
destruiu as colheitas, minou os frutos, empobreceu o reino.
– Como se explica isto? – perguntou o rei ao jardineiro.
– Depois de guerrearmos os pássaros, temos agora de
guerrear os mosquitos e as lagartas. Como se dá batalha às
lagartas?
Sorrindo, o velho jardineiro respondeu:
– Para guerrear as lagartas, temos de nos aliar aos
pássaros. São eles que as comem, mais às larvas e a todos
os bichinhos miúdos da natureza.
– Podias ter explicado isso mais cedo – comentou o rei,
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fazendo-se esquecido.
Logo ali mandou anular o decreto, que tinha apagado as
asas dos céus do reino. Os pássaros já podiam, de novo,
voar livremente. E poisar onde lhes apetecesse.
Assim é que estava certo.
FIM
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SORTE PARA O
PINTASSILGO
António Torrado
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O lenhador, que conhecia a floresta de lés a lés, nunca
vira um gnomo nem, a bem dizer, acreditava que a história
correspondesse à verdade.
– Invenções para entreter meninos. E velhos... – dizia ele
de si para si, com um sorriso desencantado.
Mas não é que, um dia, descobriu mesmo um gnomo?
Um gnomo a dormir, de boca aberta, junto à raiz de um
pinheiro da floresta, era uma descoberta fantástica.
O lenhador agarrou-o pela cintura como quem agarra um
gafanhoto e gritou-lhe:
– Afinal, sempre é verdade. Agora, só falta saber o
segredo do tesouro dos gnomos...
O homenzinho, preso entre o polegar e o indicador do
homenzarrão, debatia-se e protestava que nunca tinha
ouvido falar em tal tesouro.
– Se não me dizes, onde o esconderam, aperto-te a
barriga, que nem tempo tens para dizer "Chega" – ameaçou
o lenhador.
E era bem capaz... A possibilidade imprevista de vir a
ficar rico, riquíssimo, quase o enlouquecia.
– Diz-me onde está o tesouro ou esborracho-te – insistiu
o lenhador.
O gnomo, não tendo outra alternativa, acabou por
apontar uma árvore, confessando que, debaixo da raiz da
árvore, numa loca, estava, agasalhado entre musgos, o
maior tesouro do mundo.
– Já vamos saber se é como contas – disse o lenhador.
Mas entardecia. Era Inverno, estação do ano em que,
como se sabe, a noite cai cedo e depressa. O lenhador,
contrariado por ter de guardar para o dia seguinte o que
queria resolver naquele dia, fez uma cruz a canivete, no
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tronco da árvore indicada, e disse:
– Amanhã voltamos cá e, pelo seguro, tu hoje à noite
vais ficar hospedado em minha casa.
Maneira de dizer... Hospedado no casebre, isto é,
prisioneiro na gaiola, donde despejou um pintassilgo. Sorte
para o pintassilgo.
O lenhador, nessa noite, dormiu mal. Quanto ao gnomo,
nunca saberemos se dormiu bem ou não, visto que, na
manhã seguinte, o lenhador deu com a gaiola vazia.
– Mas o tesouro há-de estar onde ele apontou – animou-
-se o lenhador.
De enxadão ao ombro, avançou para a floresta.
– Cá está a árvore que eu marquei – exclamou.
Efectivamente, a árvore tinha uma cruz, no tronco,
riscada a canivete. Mas outras árvores perto e outras longe
tinham uma cruz igual. Não havia uma única árvore da
imensa floresta que não exibisse uma cruz, em cheio, no
dorso do tronco.
Os gnomos, pela calada da noite, tinham trabalhado
bem.
O lenhador, a sentir-se ainda mais velho e ainda mais
cansado, deixou o enxadão encostado a uma das árvores, e
voltou para casa, de cabeça baixa. Nada ganhara e até o
pintassilgo da gaiola ele tinha perdido...
FIM
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O LAVRADOR
TOMÉ E O SACO
DAS LIBRAS
António Torrado
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O senhor Tomé esteve quase para ir chamar um médico
que consertasse a pouca memória do estalajadeiro. Depois,
pensando melhor, achou que o caso era mais da conta de
um bom advogado do que da medicina. Consultado o
doutor jurista, disse-lhe este assim:
– Tenha paciência, meu amigo, mas só vejo uma
solução. Manhosos destes tratam-se com a pele das suas
manhas. Portanto, vá ter com o estalajadeiro, fale-lhe com
bons modos e peça-lhe desculpa. Diga-lhe que se
esquecera de que as tais cem libras tinham ficado ao
cuidado de outra pessoa de confiança...
– Mas não ficaram – atalhou o senhor Tomé. – Se ainda
agora disse ao senhor doutor que foi esse malandro que se
governou com elas.
– Deixe-me acabar e não perca a cabeça – aconselhou-
-lhe o advogado. – Vai ver que, guiando-se pelos meus
planos, o dinheiro há-de voltar-lhe às mãos. Depois de lhe
pedir desculpa pelo engano, volte lá com um amigo, como
testemunha, e entregue outras cem libras ao estalajadeiro.
– Que é lá isso?! Assim se paga aos ladrões nesta terra?
Está o mundo avariado.
O advogado não se ofendeu e mais miudamente explicou
a armadilha que queria armar ao estalajadeiro desonesto.
Ainda que com má vontade, o senhor Tomé resolveu-se a
seguir o conselho.
Procurou na feira um amigo endinheirado, que lhe
emprestasse cem libras e que se dispusesse a acompanhá-
-lo à estalagem. Encontrada a testemunha, levou-a consigo,
pedindo-lhe segredo do que se estava a tramar.
– Desculpe, mas há bocado pensei mal de si – disse o
senhor Tomé ao estalajadeiro. – Foi tudo um engano meu,
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porque o dinheiro que eu procurava tinha-o eu deixado
noutra parte. Guarde-me agora estas cem libras, que,
depois, lhas peço.
E os dois, o senhor Tomé e o amigo, despediram-se do
estalajadeiro, que ficou de boca aberta.
– E agora? – perguntou o senhor Tomé, passado tempo,
ao advogado.
– Agora volte à estalagem e peça só as cem libras.
– Levo o meu amigo?
– Não, vá sozinho. Estas não pode ele recusar-lhas, pois
havia testemunha para provar a verdade.
O lavrador assim fez e o estalajadeiro prontamente lhe
entregou as cem libras.
Foi o lavrador, pulando de contente, a casa do advogado:
– Estas já cá estão! Só faltam as outras cem.
– Também virão, descanse – tranquilizou-o o advogado.
– Passe por lá agora com o seu amigo, que as viu
depositar.
Não é preciso dizer que o estalajadeiro se viu apanhado
e não teve outro remédio senão dar as outras cem libras ao
lavrador.
FIM
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O LEOPARDO,
A GIRAFA E O
ELEFANTE
António Torrado
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– Molengão.
– Paspalhão.
– Mas é bom, um bonzão – concluiu a macaca velha.
Nisto estão todos de acordo. O elefante pode não ser
bonito, segundo as normas de beleza dos macacos, mas não
molesta ninguém. Essa é que é essa.
– Vê-lo a ele muito gordalhufo, ao lado da
espirra-canivetes da girafa, dá-me cá uma vontade de rir...
– e o chimpanzé que isto diz ri-se, mostrando os dentes
amarelos.
– Protege-a, desde pequena. Os pais da girafa foram
apanhados numa cilada de caçadores e ele tomou-a à sua
conta. Dizem que tem feito muito por ela – explica outro
macaco.
Divertido com a conversa, um saguim intervém:
– Quem não deve gostar nada dessa amizade é o velho
leopardo malhado e pelado. Se não fosse o medo que ele
tem ao elefante, já a girafa, a estas horas, era um monte de
ossos para os chacais roerem...
Nestas e noutras conversas gasta a macacaria o seu
tempo. Depois digam que são os papagaios os palradores...
Na verdade, há muito que o leopardo espiava a girafa e
o elefante.
De uma vez que viu a girafa no riacho, junto à cascata, a
tomar banho, enquanto o elefante, perto da margem,
cabeceava de sono, o leopardo aproximou-se dele e falou
assim:
– Ah, meu amigo! O seu bom coração quase pesa tanto
como o seu corpo todo. A girafa deve-lhe tudo. O meu
amigo amparou-lhe os primeiros passos, abrigou-a,
acarinhou-a e, graças a si, ela fez-se a linda girafa, que
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ambos contemplamos, enternecidos. Belo exemplo, meu
amigo, para toda essa bicharia perversa.
Isto declamava, numa voz comovida, o leopardo. Para
fazerem uma ideia, basta que vos diga que a cada vírgula
corresponde um soluço. Farsante!
– Só é de lamentar que não saiba agradecer os seus
sacrifícios com idêntica generosidade... – sussurrou o
leopardo.
Neste passo da conversa, o elefante, que tudo ouvira sem
manifestar grande interesse, levantou a tromba em ponto
de interrogação:
– Que quer dizer? Fale com mais clareza, criatura.
Deu dois passos em frente o leopardo e segredou:
– Andam para aí a murmurar...
E o leopardo tentou convencer o elefante, por meias
palavras, de que a girafa, nas suas costas, o tratava por
"paquiderme", palavra muito ofensiva entre os elefantes.
– Não acredito.
Acreditasse ou não, o elefante nunca mais voltou a
correr ao lado da girafa. Certo era que ela também deixara
de correr. Sem a companhia do seu amigo de sempre, que
graça tinham as correrias?
Isto constou na selva e espicaçou a curiosidade dos
macacos, de tal forma que resolveram mandar um
emissário convocar os dois amigos desunidos, a fim de
tirar mais informações.
– Vejo-os muito tristes e cada um para seu lado – disse o
macaco emissário, assim que os juntou. – Que se passa?
A girafa, coitada dela, não sabia. Muito amuado, o
elefante acabou por confessar:
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– Calcula que, nas minhas costas, andam a chamar-me
"paquiderme" – e olhou de lado para a girafa.
O macaco não ficou espantado:
– Bem sei. Do leopardo tudo se deve esperar...
– Do leopardo? – estranhou o elefante.
– Pois claro. O leopardo, de há uns tempos para cá, tem
vindo a espalhar que o nosso estimável amigo elefante é
um "paquiderme" da pior espécie e que, por esse motivo, a
girafa já cortou relações consigo – explicou o macaco.
– Eu nem sei o que é um "paquiderme" – disse a inocente
girafa.
Estava desfeito o engano e esclarecidos os escondidos
intentos do leopardo intriguista.
– Vou dar-lhe uma lição – exclamou o elefante,
escavando com as patas na terra e chicoteando o ar com a
robusta tromba . – Faça constar entre os macacos e a
restante bicharada que, realmente, eu e a girafa nos
desentendemos de vez e que cada um foi para seu lado.
Estava o leopardo a afiar as garras, quando ouviu o que
na selva se contava.
– Desta (retirar "vez") não escapas, girafinha! –
assobiou ele, de bigodes eriçados.
Ele é que não escapou, ai não, porque a cólera do
elefante, animal paciente até onde se pode ser, não perdoa.
Lançado a muitos quilómetros de distância, o leopardo não
ganhou para o susto nem para os curativos.
De aí em diante passou a andar sempre sozinho e nunca
sai senão de noite, quando os elefantes dormem.
FIM
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UM PEIXE NA
SALA
António Torrado
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– Deita-se o peixe para o tanque do quintal – decidiu um
e os outros concordaram.
O peixinho vermelho com riscas azuis foi parar a um
tanque de águas profundas. Podia nadar à vontade, pelo
meio das sombras e dos lodos, que já ninguém o via.
Foi então e só então que o peixe vermelho começou a
sentir saudades do tempo em que todos olhavam para ele.
FIM
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OS DOZE DE
INGLATERRA
António Torrado
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10 de Junho
Dia de Camões
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Foi o que elas fizeram, na mais elegante das caligrafias
e com as mais sedutoras e doces palavras. Candidatos
portugueses não faltaram, mas só podiam ir doze a
Inglaterra, senão despovoava-se o reino.
Embarcaram os jovens portugueses na foz do Douro
com seus aprestos e cavalos. Todos menos um, o tal
Magriço, que preferiu viajar, montado no seu cavalo e já de
lança e armadura, como se Inglaterra fosse ali adiante.
– Olha que não chegas a tempo – lembraram-lhe os
companheiros. – Vê no que te metes!
Mas o Magriço fez de conta que enjoava a viagem por
mar e enfiou pela terra adiante. Um estirão.
Os onze cavaleiros portugueses atravessaram de barco o
Mar do Norte e desembarcaram em Inglaterra, onde foram
muito amimados pelas damas ofendidas. Só uma estava
triste, a que, em sorte, iria ser defendida pelo pouco
pontual Magriço.
Contra os doze ingleses se apresentaram os onze
portugueses. Aquilo não era um desafio de futebol, mas
torneio em campo aberto, com elmos, grevas e arneses e
lanças e espadões. Um caso sério.
Na tribuna das damas, a menina Magriça (chamemos-lhe
assim, por comodidade...) chorava a sua solidão.
Mastigam os cavalos os freios, escumando e raspando o
chão, empunham os soldados as trombetas, para dar
começo à liça, refulgem ao Sol as lanças de aço e as
armaduras de ferro e, onze contra doze, vai começar a luta
de vida ou de morte.
Repentinamente, levanta-se nas tribunas o povo, em
grande alvoroço. Todos viram o rosto, à procura da causa
do reboliço. É Magriço, pronto para o combate, que chega,
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envolto numa nuvem de pó.
A Magriça inglesa sustem as lágrimas e sorri como um
arco-íris, depois da tempestade.
Ao som das tubas, largam rédeas, esporeiam os cavalos,
baixam lanças e "fere a terra fogo".
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Parece que o Magriço se demorou mais uns tempos e não
regressou com os companheiros. Já era mania...
FIM
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TINTIM POR
TINTIM
António Torrado
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Silêncio entre os dois. E o rapazinho sempre a folhear
este e aquele, numa grande indecisão.
Neste ponto, o bibliotecário resolveu ir mais longe:
– Para que queres, então, um livro de cozinha?
Aqui, o rapazinho esclareceu, um pouco embaraçado:
– Queria estrelar um ovo e não sei se hei-de deitar
primeiro, na frigideira, o ovo ou a margarina...
O bibliotecário fez um "Ah" de admiração e aprontou-se
a responder:
– Primeiro deitas a margarina e esperas que ela derreta.
E cuidado com o bico do gás. Lume brando. Só depois é
que deitas o ovo.
– Ah! – foi, agora, a vez de fazer o rapazinho.
Largou os livros de cozinha e já se ia embora, quando o
bibliotecário lhe perguntou:
– Não queres, então, levar outro livro? Um livro de
histórias, por exemplo?
– Só se for com histórias pequenas – disse o rapazinho.
O bibliotecário emprestou-lhe um livro, onde esta e
outras histórias que tais bem podiam estar e a nossa
pequena história talvez acabasse aqui.
Não acaba, porque o rapazinho não conseguiu estrelar o
ovo, apesar de ter seguido à risca as recomendações do
bibliotecário: lume brando, margarina a derreter-se... ovo,
no fim.
Mas como o rapazinho deitou o ovo inteiro, com casca e
tudo, para dentro da frigideira, o cozinhado não ficou
grande coisa.
Em certas ocasiões, tem de se explicar tudo, tintim por
tintim.
FIM
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LAURA E O
PAPAGAIO
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
FIM
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QUEM AJUDA O
PARDALITO?
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
FIM
2
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UM SONHO
DO JOCA
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
1
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Seria difícil repararem nele, com tantas bicicletas
paradas e empilhadas, à roda da estátua. Em vez de um
parque de estacionamento de automóveis, o Terreiro do
Paço tinha-se transformado num parque de estaciona-
mento de bicicletas. Pequena diferença, afinal.
Onde se estranhava mais a diferença era no movimento
do Tejo. Dantes, os cacilheiros atravessavam-no de lado a
lado. Agora, no meu sonho, grandes "gaivotas" de pedais,
com dezenas de passageiros pedalantes, andavam de cá
para lá, de lá para cá.
– Estou com umas dores na barriga das pernas que mal
me tenho em pé – queixava-se uma senhora, ao
desembarcar de um dos tais cacilheiros de pedais. – É que
há uns que pedalam e outros que fazem de conta...
Os comboios partiam ao sinal de uma pistola de
fulminantes, empunhada pelo chefe da estação. Cada
passageiro, no seu respectivo lugar, punha-se então a
pedalar com toda a força, como se estivesse numa corrida
de bicicletas. Mas, neste caso, chegaram todos à meta ao
mesmo tempo.
– Ainda há lugares? – perguntou um passageiro, na
paragem seguinte.
– Se não vier muito carregado e se for enérgico de perna,
pode entrar para o pelotão – respondia-lhe um senhor
magrinho, montado num dos lugares-bicicleta.
E já com o comboio a deslizar sobre os carris, este
senhor contava para os companheiros de viagem:
– Na semana passada, fui a Leiria, mas caí na asneira de
entrar num comboio quase vazio. Demorei três dias a
chegar.
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– Estes comboios estão cada vez piores – comentaram
em volta.
– Eu cá não me queixo – continuou o senhor magrinho.
– A paisagem ao longo da linha é muito bonita e eu
emagreci quinze quilos.
Via-se.
– Fiz esta viagem por recomendação do médico. Eu
estava um bocado gordo. Mas acho que exagerei.
Os restantes passageiros também acharam, enquanto,
suando, pedalavam juntos, a caminho de Sintra.
O país de Norte a Sul era uma permanente volta a
Portugal em bicicleta. Auto-estradas, estradas, ruas,
pontes, caminhos, cheios de ciclistas pedalando...
Uma bicicleta por cada português. Ou mais. Assim que
uma criança deixava de andar de gatas, passava a andar de
triciclo. Algumas, só depois é que aprendiam a andar em
cima dos seus próprios pés.
Nunca vi tantas bicicletas juntas como no meu sonho.
Mal acordei, fui logo contá-lo aos meus pais, que
estavam a tomar o pequeno-almoço. Um sonho tão lindo
tinha de ser partilhado.
O meu pai, depois de me ouvir, poisou a chávena de café
e olhou para mim, muito sério.
– Queres, então, que eu te compre uma bicicleta, para as
próximas férias, é? – perguntou ele sorrindo.
Como é que o meu pai tinha adivinhado este meu
secreto desejo, nunca revelado a ninguém?
FIM
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UM A NO PEITO
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
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– Não.
– Álvaro?
– Não.
– Ah! Pois claro. Chamas-te André!
– Não.
– Agostinho?
– Não.
– Almiro?
– Não.
– Alfredo?
– Não.
– Alípio?
– Não.
– Albano?
– Não.
– Não é possível! Então como é que tu te chamas?
– Timóteo.
– Timóteo? Mas não tem A. Espera: estás a usar uma T-
shirt emprestada?
– Não.
– Nesse caso o A é nome de família... Chamas-te
Timóteo Alves? Almeida? Amorim? Andrade? Antunes?
Não havia meio de acertar.
Só então é que a T-shirt se explicou:
– Não gosto que me tratem por T-shirt. Chamo-me
Camisola de Manga Curta e de Algodão. O A de algodão é
nome de família.
Foi a partir desta altura que as outras peças de roupa
passaram a exigir, bem assinaladas, as respectivas letras
iniciais do apelido. L de lã para as meias. S de seda para as
blusas. F de feltro para as calças.
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E se não fizermos a vontade, a roupa já disse que deixa
de nos servir.
Que transtorno, ehm!? Principalmente no Inverno...
FIM
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MAIS UM
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
FIM
NEM TANT
ASSIM
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilust
FIM
QUEDA PARA
NEGÓCIO
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
FIM
CHUVA
ALGUR
António Tor
escreveu e
Cristina Malaquias
Dia E
FIM
O CAVALO
CABEÇ
António Tor
escreveu
Cristina Malaquia
FIM
DOIS GRÃOS DE
AREIA
António Torrado
escreveu e
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não era praia que ele conhecesse, nem procurou pelo
colega, com quem há muito tempo tinha estado à conversa.
Alguém poisou o relógio sobre a superfície da areia. O
peso inesperado sobressaltou milhares de grãos, que
acorreram ao tic-tac. Um deles, por acaso ou curiosidade,
insinuou-se por um buraquinho e entrou dentro do
maquinismo. Era o nosso grão, o que quase dera a volta ao
mundo.
– Este relógio não anda a trabalhar bem – disse, tempos
depois, não sei quem. – Tenho de levá-lo ao relojoeiro.
E levou. O relojoeiro abriu a caixa do relógio e, de lupa
assestada no olho esquerdo, debruçou-se para os rodízios,
que pulsavam nervosamente.
– Tem um grão de areia na alma, a travar o mecanismo.
Isto disse o relojoeiro, como se fosse um cirurgião e o
relógio um doente. Com uma pinça desalojou o grãozinho.
O relógio voltou a marcar ajuizadamente o tempo.
O grão de areia rolou. Pisado por muitos pés, andou aos
baldões. Era um grão de areia resistente, que já
experimentara muita vida. Até, uma vez, quase parara o
tempo...
Foi ter a um canto de pó.
– Olá, colega – saudou-o uma voz. – Se não me engano,
já nos conhecemos, ou não?
Era o outro grão do princípio desta história. Há coisas
que até custam a crer...
– Por onde é que andou?
– Por aí, um pouco ao acaso – respondeu o grãozinho
recém-chegado.
– Eu também – respondeu o mais velho no lugar. – Mas
já descansei. Tão sozinho que estava, já me sentia mal.
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Ainda bem que veio.
Ficaram a contar um ao outro as respectivas aventuras.
Como nós já as conhecemos, podemos ficar por aqui.
É que se não acabamos, mais dia menos dia, os dois
grãos vão separar-se outra vez e voltar a correr mundo.
FIM
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ERA PARA SER
António Torrado
escreveu e
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Já não metiam medo. Quanto muito, metiam dó.
– Prestamos para nada – dizia um gigantão, com um olho
só, no meio da testa. – É que ninguém, ninguém, ninguém
nos liga.
E tinha razão o ciclope. Limpou uma lágrima que lhe
escorria do olho único e fungou, que nem um menino
amuado.
Como os monstros não se assustam uns aos outros, que
préstimo tinham, ali acocorados, de cabeça baixa, a
limparem as unhas, feitos monos?
– Só se fizéssemos um concurso. Elegíamos a Miss ou o
Mister Monstro, que tinha de ser o mais feio de nós todos
– sugeriu um lobisomem horrendo, com uma secreta
esperança de ganhar. – Convocávamos a televisão e
fazíamos um grande desfile.
Em resposta, um ogre, que estava perto, fez uma
pavorosa careta de incredulidade.
– Concursos só se forem de beleza. A televisão não se
interessa por concursos de fealdade.
Enganava-se. Este ogre estava pouco a par da
programação televisiva. Não há nada mais na moda do que
concursos de monstros e de monstruosidades.
Houve logo uma estação que pegou na ideia. E exigiu
exclusivo.
– Preparem tudo em segredo, para que não haja fuga de
informações nem copianços – recomendou o director do
canal televisivo.
– Mas isso não era possível, porque estamos cá todos.
Não há mais monstros por fora – disseram os monstros.
– Vocês esquecem-se de que a concorrência é terrível e
bem capaz de inventar um concurso de falsos monstros –
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lembrou o director da estação, que sabia do que falava.
Mas, afinal, não chegou a haver concurso, para grande
desolação dos monstros concorrentes. Sabem porquê?
Porque não se conseguiu juntar um júri à altura.
Os jurados ou se amedrontavam ou desatavam a rir, para
não se amedrontarem. Vieram levas sucessivas, à
experiência, de óculos escuros, sem óculos escuros, de
lenço ao pescoço, sem lenço ao pescoço, e ninguém ficou
para as provas finais.
Em conclusão: os monstros voltaram ao mesmo
desânimo. Se os deixassem passear, nem que fosse só um
bocadinho, entrada por saída, vou ali e já venho, pelas
histórias donde tinham sido expulsos, talvez arribassem,
ganhassem melhor parecer, mais verdes, mais escamosos,
mais peludos...
Qual quê! Ninguém os pode convidar para semelhante
passeio. Até eu, que, às vezes, tenho ganas de contar
histórias de monstros, sou sempre obrigado a desistir.
Como agora.
Em segredo, aqui para nós, talvez volte a tentar, lá mais
para diante.
FIM
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AQUI NÃO VOLTO
António Torrado
escreveu e
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Comecei a não sentir-me à vontade. Que desconforto. O
que é que eu teria que chamasse tanto à atenção?
Ao passar por um espelho de um dos salões do hotel,
mirei-me, para me certificar se estava compostinho. Podia
por distracção estar desabotoado ou trazer uma serpentina
presa a um sapato...
Isto da serpentina tem razão de ser. Uma vez, terei
pisado uma pastilha elástica que se agarrou ao resto de uma
serpentina, deixada no passeio (estava-se em período
carnavalesco) e eu entrei numa cerimónia muito grave e
distinta com um resto de serpentina atrás de mim. Quando,
pelos olhares de reprovação à minha volta, dei por mim,
tentei desembaraçar-me da longa e comprometedora fita de
papel presa a um dos pés, mas com tanto azar que perdi o
equilíbrio, logo na ocasião em que se dirigia a mim, para
cumprimentar-me, o presidente da cerimónia. Caí-lhe nos
braços, para grande surpresa do senhor, que não esperava
tal efusão da minha parte e, quando ele se virou, vi que,
sem querer, lhe tinha prendido a pastilha elástica e a
serpentina às costas. Que desastre. Nem me quero lembrar,
que me arrepio todo.
Desta feita não havia nenhuma serpentina que chamasse
a atenção sobre mim. Então, do que seria?
A caminho do almoço, voltei a passar por senhoras e
senhores, alguns gordíssimos, metidos em fatos de treino
do tamanho extra, e outros apenas gordos, mas que ao lado
dos mais volumosos quase pareciam elegantes.
Todos me observavam de alto a baixo, com uma
indiscrição quase afrontosa. Comecei a sentir-me
incomodado.
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No restaurante do hotel, era o único comensal. Mesas
todas vazias, cada uma com uma jarrinha florida ao meio,
e quatro cadeiras de espaldar alto à volta.
Ao ocupar uma delas, sob a vigilância dos criados
perfilados, perguntei ao chefe, que acorrera a empurrar-me
a cadeira:
– Cheguei cedo demais para o almoço?
– Não. Nada. Perfeitamente – enquanto me estendia o
menu.
– Então cheguei tarde?
– Não. Nada. Perfeitamente – repetiu, puxando de um
bloco de notas, para assentar a encomenda.
Eu é que não desistia:
– E os outros hóspedes?
– Comem na piscina – esclareceu o chefe de mesa, com
um sorrizinho de condescendência.
Estranhei. Quem se mete na água, seja em piscina, seja
no mar, só deve fazê-lo depois de feita a digestão. É uma
regra de ouro.
Como não tencionava ir nadar, comi bem e fartamente.
Caldeirada, cabrito assado e bolo de bolacha. Desculpem
se arrotei.
Felizmente que a comida não me pesa. Digiro bem,
desgasto muito e continuo tão magro como na minha
adolescência. Na escola chamavam-me o "Chico Fininho",
menos por ser Francisco de nome do que seco de carnes.
Para desmoer, fui dar um passeio até à piscina do hotel.
O espectáculo que se me deparou, nunca o esquecerei. A
piscina até era grandinha, mas transbordava, inundando o
relvado à volta. Pudera. Cheia de gordos, gordinhos e
gordíssimos que tentavam nadar, sem se empurrarem uns
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aos outros... A piscina era um festival de barrigas.
As senhoras e os senhores pararam de esbracejar,
quando me viram. Senti-me nu, eu que era o único mais
vestido de todos. E fugi, fugi, em direcção à recepção, para
perguntar ao recepcionista, razoavelmente gordinho, o que
se passava.
– Há algum congresso no hotel de pesos pesados?
Finalmente, fui esclarecido. O hotel, na época baixa, a
menos frequentada por turistas, promovia uns programas
de emagrecimento, para quem necessitasse de derreter uns
quilos. Constava o programa de exercícios físicos, rigorosa
dieta, saladinhas e sumos de fruta e repouso e concursos
semanais, com prémios de bolinhos secos e bolachas
dietéticas, para os que mais se tivessem esforçado e
adelgaçado.
Agora, eu compreendia o olhar que me deitavam. Era de
inveja, de profunda e desabrida inveja, por saberem que o
"Chico Fininho" não tinha de sujeitar-se a estas torturas da
fome.
Aterrorizado, pedi a conta e saí do hotel nesse mesmo
dia.
Tenho de começar a ponderar melhor o que e quanto e
quando como. À cautela. É que, ontem, precisei de atrasar
um furo à fivela do meu cinto. Devo estar a ganhar
barriga. Ou terá sido mau olhado, lançado pelos hóspedes
do hotel?
FIM
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O LEÃO E O
MOSQUITO
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
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balançou-se como se o vento a impelisse, enquanto o
mosquito, agarrado a ela, rindo-se, pedia:
– Mais, mais. Que belo baloiço!
O rei dos animais não podia suportar tanto
descaramento. Abrindo a bocarra, fez menção de engolir o
mosquito, mas o insecto, ligeiro, escapou-se a tempo e só a
folha entrou, inteirinha, na garganta do leão... O rei dos
animais engasgou-se e tossiu:
– Ah! Hoc! Ah! Hoc! Hoc!
Entretanto, o mosquito fora alojar-se, sabem onde?
Numa das narinas da fera, nem mais nem menos. As
cócegas e as picadas puseram o rei dos animais a espirrar
que não tinha fim:
– Atchim! Atchim! Larga-me, deixa-me... Hoc! Ah! Eu
abdico... Atchim! Faço-te rei dos animais... Hoc! Atchim!
Faço-te rei, se me deixares em paz!
Ao ouvir isto, o mosquito abandonou a narina do leão,
que se pôs a correr pela floresta fora, tossindo ainda,
atordoado e vencido.
– Escutem todos – zumbia o impertinente insecto,
alertando a noite num voo desordenado. – Agora eu é que
mando. Sou eu o rei dos animais. Esta floresta e as outras
florestas pertencem-me. Os bichos que as povoam devem-
-me obediência, porque eu sou o rei. Eu sou o rei dos
animais! O REI!
E seria, de facto, o rei dos animais, se não tivesse
esbarrado numa enorme teia de fios invisíveis, tecidos pela
gulosa aranha das oito patas...
E lá se acabou o reinado do rei mosquito.
FIM
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O BOM
GIGANTE
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
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Deixou de aparecer. Fechou-se no seu palácio de gigante
e nunca mais pôs um pé fora de casa. Mas um gigante
escondido, que de um momento para o outro pode
aparecer, aterroriza ainda mais a vizinhança do que se
andasse sempre na rua.
– Vou mudar de terra – decidiu o desgostado gigante.
Andou por vários reinos, sempre precedido pela sua
fama.
– Vem aí o gigante – gritavam.
E todos fugiam.
Até que foi ter a uma terra de gigantes. De gigantões.
Todos muito maiores do que ele.
– Aqui é que me convém ficar a viver – disse o gigante.
– Ninguém vai reparar em mim.
Por acaso reparavam. Chamavam-no, nessa terra, de
gigantões matulões, chamavam ao gigante desta história de
"pitorro", "badameco", "homenzinho", "pigmeu"... Mas
ele, que tinha muito bom feitio, não se importava.
FIM
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VIVA O
NATÉRIO
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
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Até que, um dia, o Natério, um dez-réis de gente, mas
muito vivaço e destemido, resolveu dar a volta à história.
Naquele estado de pavor geral é que as coisas não podiam
continuar.
Antes de o ladrão ir ter à casa onde se acoitava,
costumava passar por perto de um poço da aldeia. Quando
lhe adivinhavam a sombra, as mulheres que vinham buscar
água fugiam e até bilhas e celhas deixavam na borda.
Desta vez, o malfeitor encontrou um rapaz, que chorava
baba e ranho, à beira do poço. Era o Natério.
Não que se impressionasse com as lágrimas, mas por
curiosidade, o ladrão perguntou qual a razão da choradeira.
– Trazia uma pesada taça de prata, que a minha mãe
tinha areado, a mando do senhor padre...
– Era pesada a taça, disseste tu? – interessou-se o
maganão, de olhos a luzir.
O rapaz fez que sim e continuou o seu relato:
– Debrucei-me para o poço, à caça de uma lagartixa, e a
taça caiu-me lá dentro. Uma desgraça! O que é que eu vou
dizer à minha mãe? E ao senhor prior?
Como se temesse as respostas, o rapaz voltou ao
berreiro.
– Deixa estar que eles escusam de saber – disse o ladrão,
escarranchado no bordo do poço. – Eu trago-te a taça, não
tarda.
Enfiou pelo poço abaixo, que era fundo e estava menos
de meio.
– Não encontro a taça – dizia ele.
A voz ecoava na abóbada do poço. Era assustadora.
– Procure o senhor do seu lado direito, que ela caiu mais
para esse lado.
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O ladrão, que se segurava por uma corda presa à cintura,
desceu mais um tanto, agarrado às paredes do poço.
Valente era ele.
– Ainda não achei – dizia.
– Mas achámo-lo nós – gritou-lhe de cima o Natério.
Dos pinhais ao redor romperam mulheres e homens, à
chamada do rapaz. Agarraram todos uma enorme pedra e
puseram-na a tapar a boca do poço. O bandido gritou, mas
de nada lhe valeu.
Já outros da aldeia tinham ido à cidade chamar a guarda.
Dias depois, foi removida a pedra e o ladrão saiu a
praguejar da armadilha que lhe tinham pregado. Chegando
ao cimo, calou-se. Tinha guarda de honra à espera, uma
fieira de canos de espingarda apontada para ele.
Os guardas levaram-no e nunca mais se soube do
brutamontes.
O poço ganhou nome. Passou a ser conhecido pelo poço
do Natério. E se, um dia, andarem por terras monfortinhas,
a caminho de Castelo Branco, talvez ainda haja quem saiba
dizer onde fica.
FIM
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O CORVO
António Torrado
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Cristina Malaquias ilustrou
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lançado em altos voos.
Pois sim, mas... Há sempre um "mas" arreliador, ao cabo
destas histórias.
Alguém lhe lançou uma rede, enquanto ele se aturdia, no
meio dos seus sonhos. Alguém o meteu num saco. Alguém
o levou a uma feira. Alguém o expôs de pernas para o ar,
presas com um atilho. Alguém o vendeu por pouco
dinheiro.
– Quer que lhe corte as asas? – perguntou esse alguém
ao comprador.
– É mais prudente. Assim já não pode fugir.
Umas tantas tesouradas riparam-lhe as penas mais
compridas das asas. Para sempre.
O corvo trabalha agora num armazém de carvão. Faz de
guarda. Usa uma corrente comprida presa à pata e grasna,
a dar sinal, à presença de qualquer estranho.
Os corvos são muito bons nisso.
FIM
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POR BEM
António Torrado
escreveu e
Cristina Malaquias ilustrou
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– E o meu dizia que eu estava velho e ia mandar-me
abater – disse o burro.
– Mas comigo ainda podes – disse o polícia, saltando-lhe
para os costados.
Presa a cada mão, trazia o pato e a galinha. Salvara-se o
cão, que o polícia não teve maneira de prender.
– Toca a andar para a esquadra – comandou o polícia. –
Vai tudo preso.
O burro, habituado a obedecer, obedeceu. Mas o cão,
que se safara, é que não se conformou. Deu uma valente
mordidela numa das patas do burro, que escoiceou. O
polícia caiu ao chão e largou a galinha mais o pato.
Correram os bichos. Mal refeito da queda, o polícia não
teve forças para persegui-los.
– Desculpa a dentada – disse o cão ao burro, quando se
viram a salvo. – Mas foi por bem.
– Não tem importância – respondeu o burro, a mostrar os
grandes dentes, num riso de felicidade. – Há coisas que
ardem, mas curam.
FIM
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