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arquivo em cartaz

ISSN 24474177 Ano 1 - Nº 1 | Arquivo Nacional | Novembro de 2015


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Edição e revisão de textos
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Pesquisa de imagens e legendas
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Projeto gráfico
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Diagramação
Giselle Teixeira (supervisão) • Alzira Reis • Tânia Bittencourt
Digitalização de imagens
Flávio Lopes (supervisão) • Adolfo Celso Galdino • Agnaldo Santos • Cícero Bispo • Janair Magalhães • José Humberto •
Rodrigo Rangel
Agradecimentos
Cinemateca Brasileira • Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro • Mauro Domingues
novembro | 2015

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Apresentação 2
Antonio Laurindo

Carmem Santos, Estrela do Brasil 5


Renata dos Santos Ferreira

Preservação audiovisual no século XXI:


avanços e desafios no Brasil 7
Laura Bezerra

A formação de acervos audiovisuais 18


Mauro Domingues

A vez do Rio: a criação da Cinemateca do Museu


de Arte Moderna do Rio de Janeiro 24
José Quental

Carmen Santos e o cinema brasileiro:


trajetórias indeléveis 35
Ana Pessoa

Argila, um filme, uma mulher, uma nação 44


Mauricio R. Gonçalves

O projeto de Francisco Serrador


e a invenção da Cinelândia 51
Jonas Abreu

Revista Cinearte, cartografia e testemunho


do cinema brasileiro 63
Taís Campelo Lucas

Cineclubismo à brasileira: as contribuições do


Chaplin Club para a crítica cinematográfica 68
Julio César Lourenço e Franciele Alves

Cidade das sombras: o espaço urbano carioca


e a memória de seus cinemas de rua 78
Márcia Bessa

Programação 91
Apresentação

Arquivo em Cartaz surge vocacionado do acervo de imagens em movimento do


para divulgar e incentivar a realização de Arquivo Nacional para que novas produ-
filmes com imagem de arquivo e para de- ções, sob a batuta do cineasta Joel Pizzini,
bater e refletir a preservação de acervos pudessem ser realizadas durante a Ofici-
cinematográficos. Os filmes propriamen- na de Criação Lanterna Mágica.
te ditos e seus documentos relacionados,
Diante da importância de se preservar
como roteiros, críticas, memórias, fotos e
a história do cinema mediante os seus do-
cartazes, ganham destaque em diferentes
cumentos, Arquivo em Cartaz fomenta a
iniciativas. Não se trata do lançamento de
capacitação e formação. Especialistas re-
mais um evento de cinema, mas de um
nomados disponibilizaram parte do seu
espaço permanente de exibição, debate,
tempo para compartilhar conhecimentos
formação e capacitação.
preciosos e específicos com profissionais,
Trazemos luz e projeção para os arqui- estudantes e interessados em geral na
vos e cinematecas, que lutam incansavel- conservação de fotografias, películas ci-
mente para preservar e difundir uma par- nematográficas e fitas videomagnéticas.
cela da história cinematográfica brasileira.
Tirar os filmes das prateleiras para co-
Arquivo em Cartaz se apresenta como um
locá-los nas telas é Arquivo em Cartaz. O
instrumento de fortalecimento de laços
belo conjunto arquitetônico do Arquivo
institucionais e profissionais, por isso, as
Nacional abrigará a Mostra Competitiva
principais instituições brasileiras da área
de filmes realizados com imagens de ar-
audiovisual estarão presentes na mesa
quivo, Mostra Rio em Movimento com
de debates “Por dentro dos arquivos ci-
filmes hors concours em sessões de pré-
nematográficos – desafios para a gestão,
estreias, Mostra Oficina de Criação Lan-
preservação, conservação e acesso aos
terna Mágica, Mostra Arquivo Faz Escola
acervos de cinema”.
e Mostra Arquivos do Amanhã. Conjun-
Arquivo em Cartaz incentiva a pesqui- tamente, o Espaço BNDES, Escola Técnica
sa, o uso e a criação. Disponibilizou parte Estadual Adolpho Bloch, Cine Arte UFF e

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Como parte das homenagens, teremos a
fortalecem o objetivo de levar os filmes mesa de debates “Memórias audiovisuais
dos arquivos e cinematecas para outras – o fato, o tempo e o lugar da história”,
telas. O debate sobre as produções com que destacará os pioneiros do cinema na
imagens de arquivo também terá um es- cidade do Rio de Janeiro, abordando a
paço privilegiado na mesa “Visões e re- importância das salas de cinema de rua
visões – materiais de arquivo nas produ- e sua extinção nas últimas décadas e a
ções documental, ficcional e jornalística”.trajetória de Carmen Santos. Além disso,
será lançado o “Prêmio Jurandyr Noro-
Uma Mostra Competitiva com filmes
nha de melhor utilização de material de
realizados a partir de materiais de arqui-
arquivo” para um dos filmes da Mostra
vo contribui para a reflexão sobre toda
Competitiva.
a cadeia que envolve a preservação au-
diovisual, formada por teorias, técnicas, A programação de estreia do Arqui-
equipamentos e artefatos. Pensando nis- vo em Cartaz relaciona-se intimamente
so, o Arquivo em Cartaz vai oferecer às com o lançamento da primeira edição da
melhores produções feitas com imagens Revista Arquivo em Cartaz. A publicação
de arquivo o Prêmio Batoque. É a peça congrega artigos que vão desde a história
cilíndrica conhecida como batoque que do cinema na cidade do Rio de Janeiro,
garante a sustentação e a firmeza do rolo destacando a trajetória da homenageada
de película cinematográfica, funcionando Carmen Santos, até chegar nas discussões
como o seu núcleo. A partir dessa repre- sobre a preservação do patrimônio audio-
sentação, o Arquivo em Cartaz abre espa- visual e o uso de imagens de arquivo em
ço para pensar a preservação e o acesso, novas produções. Revista Arquivo em Car-
exibir filmes com imagens de arquivo, taz já nasce como uma importante fonte
promover capacitação e fomentar a for- teórica de referência para os interessados
mação de público. nos temas já listados.

Personalidades relevantes para o cine- As possibilidades de um arquivo não


ma brasileiro serão evidenciadas nas nos- se esgotam. Ainda há muito que se fazer
sas homenagens. Carmen Santos, atriz, e discutir. Arquivo em Cartaz 2015 nasce
diretora e produtora, e Jurandyr Noronha, com a missão e o desejo de promover
pesquisador escritor e cineasta, estarão mais encontros, de projetar mais filmes e
presentes na grande noite de abertura de ganhar mais telas.
do Arquivo em Cartaz por meio da cele-
bração de suas obras. O encontro entre a
artista e seu grande admirador poderá ser Antonio Laurindo
visto durante a projeção do documentá- Curador

rio Inconfidência mineira – sua produção.

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Carmem Santos, Estrela Renata dos Santos Ferreira
do Brasil Editora

Esta edição da Revista Arquivo em em artigo de Maurício R. Gonçalves,


Cartaz é dedicada a uma das mais in- além de Sangue mineiro (1929), Favela
fluentes personalidades do cinema bra- dos meus amores (1935) e Cidade mu-
sileiro, que durante as primeiras déca- lher (1936). Apesar de sofrer alguns re-
das do século XX simbolizou o glamour vezes em sua trajetória, nunca deixou
e a determinação feminina no momen- de acreditar em sua missão − fundou
to em que se começava a transgredir a Brasil Vita Filmes, defendeu e traba-
velhos padrões de comportamento. lhou pelo desenvolvimento do cinema
Enquanto Theda Bara, Louise Brooks e nacional, contra todas e tão poderosas
Francesca Bertini seduziam multidões resistências, especialmente no período
com suas personagens ousadas e apai- de transição do cinema silencioso para
xonantes nas telas do mundo, no Brasil o falado. Apenas três dos filmes que
brilhava a estrela de Carmen Santos, a Carmen estrelou sobreviveram até os
moça de origem humilde que chegou dias de hoje, Limite, Sangue mineiro e
aqui ainda criança, vinda de Portugal. Argila. De Inconfidência mineira (1948),
A jovem que desde cedo chamava a que produziu e dirigiu, restam alguns
atenção pelo seu carisma e beleza não fragmentos.
media esforços para realizar o sonho O tempo em que Carmen viveu suas
de preencher o imaginário popular com glórias e desventuras, entre as décadas
suas heroínas românticas, porém for- de 1920 e 1940 (faleceu em 1952, aos
tes e decididas, que muito tinham a ver 48 anos), merece ser lembrado como
com seu jeito arrojado de ser. um período de formidáveis iniciativas
Carmen, ou melhor, Maria do Car- em prol do desenvolvimento do cinema
mo Santos, sempre queria mais: numa brasileiro e da formulação de um pensa-
época em que as mulheres tinham pou- mento sobre a atividade no país. Nesta
co espaço fora da vida doméstica, foi edição, analisamos iniciativas como o
muito além daquilo que inicialmente Chaplin Club − o primeiro cineclube es-
imaginara para sua carreira no cinema truturado no Brasil, formado em 1928
e acumulou também as funções de pro- por intelectuais que entendiam o ci-
dutora e diretora. Associou-se a nomes nema como arte e que, além de exibir
como Mário Peixoto (Limite, 1931) e filmes, promoviam debates que rever-
Humberto Mauro, que a dirigiu em Ar- beravam num círculo cultural na cidade
gila (1940), filme que destacamos aqui do Rio de Janeiro − e a revista Cinear-

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te, que, capitaneada pelos jornalistas Mas, devido a razões econômicas,
Adhemar Gonzaga e Mário Behring, per- os antigos cinemas de rua do Rio de Ja-
mitiu a partir de 1926 a articulação de neiro, ambientes de socialização e con-
diferentes grupos e opiniões em torno vivência cultural, acabaram perdendo
da produção cinematográfica nacional. espaço no decorrer do tempo, o que
Adhemar mais tarde fundaria a Cinédia favoreceu o crescimento dos multiple-
e se tornaria um dos mais respeitados xes localizados em shopping centers
produtores do Brasil. que, além de proporcionar a comodida-
Homenagear Carmen Santos é uma de dos grandes centros comerciais, são
forma de celebrar os 450 anos da cida- mais compatíveis com a realidade de in-
de do Rio de Janeiro, origem de muitos segurança da cidade.
projetos cinematográficos nacionais. A Revista Arquivo em Cartaz se pro-
As primeiras três décadas do século põe a ser um espaço de discussão sobre
XX concentraram esforços para tornar preservação audiovisual. Neste número,
a cidade um polo cultural, a começar homenageamos a Cinemateca do Mu-
pela transformação da Praça Floriano, seu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
no Centro, em Cinelândia, parte de um que completa sessenta anos em 2015. O
plano de transformação e moderniza- leitor terá a oportunidade de conhecer
ção arquitetônica e cultural capitane- um pouco sobre outras instituições de
ado pelo empresário Francisco Serra- guarda de acervos de imagens em movi-
dor, inspirado no modelo da Broadway mento, em especial o Arquivo Nacional.
em Nova York, segundo artigo de Jonas Conhecer a história do cinema brasi-
Abreu. O hábito de ir ao cinema, lazer leiro e lembrar aqueles que o tornaram
sem distinção de classes sociais, com o possível é uma maneira de preservar a
passar dos anos, tornou-se elemento memória, de registrar para as próximas
integrante da paisagem urbana. Novas gerações o empreendedorismo de ho-
salas de exibição espaçosas e confortá- mens e mulheres que acreditavam na
veis, algumas delas verdadeiros palá- arte do cinema. E, principalmente, acre-
cios em estilo art déco, foram inaugu- ditavam que o Brasil deveria ser não só
radas em bairros das zonas Norte e Sul um mero consumidor da sétima arte,
do Rio já nos anos 1930, diminuindo a mas também um produtor com talentos
distância entre o público espectador e diversos, que não poderiam se conten-
seus ídolos na tela grande. Márcia Bessa tar em permanecer na obscuridade da
é quem nos introduz neste tema. História. Boa leitura!

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Preservação audiovisual Laura Bezerra
no século XXI: avanços Professora de Política e Gestão da Cultura no Centro
e desafios no Brasil de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Presidente da Associação Brasileira de Preservação
Audiovisual (ABPA), coordenadora da Filmografia Baiana
e pesquisadora do Centro de Estudos Multidisciplinares
em Cultura da UFBA

O campo da preservação audiovisu- em movimento, mas também dos cur-


al vive, no Brasil contemporâneo, um sos de história ou cinema (onde foram
momento de intensas transformações desenvolvidas algumas reflexões sobre o
e amadurecimento, como demonstram, tema), a preservação audiovisual começa
por exemplo, a criação da Associação Bra- a interessar também a disciplinas como
sileira de Preservação Audiovisual (ABPA); o direito,5 a ciência da informação6 e as
a recomendação de inclusão da preserva- artes visuais.7 Ao mesmo tempo em que
ção no currículo dos cursos de cinema;1 o comemoramos a existência dessas teses
aumento do número de filmes restaura- e dissertações, que refletem e contribuem
dos;2 a criação de uma Câmara Técnica de para o amadurecimento do setor, obser-
Documentos Audiovisuais, Iconográficos vamos que as instituições detentoras de
e Sonoros no Conselho Nacional de Arqui- acervos audiovisuais dispersas pelo Brasil
vos;3 ou ainda o surgimento crescente de têm histórias marcadas por crises suces-
trabalhos acadêmicos na área.4 sivas, causadas pela situação de penúria
Ultrapassando não apenas os muros crônica e extrema fragilidade institucional
das instituições detentoras de imagens em que se encontram. As circunstâncias

1 Resolução nº 10/2006 do Conselho Nacional de Educação, que prevê a inclusão da preservação audiovisual
como conteúdo obrigatório no currículo dos cursos de cinema.
2 BUARQUE, Marco Dreer. Entre grãos e pixels, os dilemas éticos na restauração de filmes: o caso de Terra em
transe. Dissertação (Mestrado em História Política e Bens Culturais), Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro,
2011.
3 Criada através da Portaria nº 90, de 27 de maio de 2010. Cf. o site do Conarq, <http://www.conarq.arquivo-
nacional.gov.br/ cgi/cgilua.exe/sys/start.htm>. Acesso em: mai. 2012.
4 Sílvia Franchini elaborou uma lista de teses e dissertações sobre o tema, disponível no blog Nitrato, Aceta-
to e Poliéster, organizado por Lila Foster (<http://nitratoacetatopoliester.wordpress.com/2010/12/02/teses-e-
dissertacoes/>). A listagem foi atualizada na minha tese de doutorado.
5 REISEWITZ, Lúcia. O acervo cinematográfico brasileiro como recurso ambiental: direito à preservação da
memória, ação e identidade do povo brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito), Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2000.
6 COSTA, Alessandro Ferreira. Gestão arquivística na era do cinema digital: formação de acervos de docu-
mentos digitais provindos da prática cinematográfica. Tese (Doutorado em Ciência da Informação), Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
7 Cf., por exemplo, as dissertações do Mestrado em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFMG.

arquivo em cartaz 7
político-culturais desta situação, entretan- função política, sendo, portanto, ele pró-
to, não foram analisadas pelos trabalhos prio, um intenso campo de disputas. Como
acadêmicos referidos, que tratavam princi- disse Jacques Le Goff9 “a memória coletiva é
palmente de questões históricas, técnicas não somente uma conquista, é também um
e éticas. Num movimento de dupla exclu- instrumento e um objeto de poder” e, neste
são, as análises da preservação audiovisual contexto, nos parece apropriada a sugestão
não se aproximam das políticas públicas; os de Néstor García Canclini10 de pensarmos
estudiosos das políticas públicas, por sua patrimônio em termos de capital cultural,11
vez, sequer perceberam a preservação au- o que teria “a vantagem de não representá-
diovisual como tema. Cabe, ainda, salientar lo como um conjunto de bens estáveis e
que dentro das intensas discussões sobre o neutros, com valores e sentidos fixos, mas
patrimônio cultural no Brasil, não se consti- sim como um processo social”.
tuiu um espaço para as questões referentes Historiadores, assim como museus,
ao patrimônio audiovisual.8 arquivos e cinematecas, exercem um
Compreendemos o patrimônio cultural papel ativo de seleção do que sobrevi-
como um recurso simbólico que tem uma verá, do que estará disponível para as

8 Cf. a tese de Renata Soares, Em territórios do patrimônio cinematográfico: cinema, memória e patrimoniali-
zação. Dissertação (Mestrado em Memória Social), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2014.
9 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. p. 477.
10 CANCLINI, Néstor García. O patrimônio cultural e a construção do imaginário nacional. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 23, p. 95-115, 1994. p. 97.
11 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011; ______. Escritos
de educação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

8 arquivo em cartaz Preservação audiovisual no século XXI


gerações futuras, ou seja: do que será A preservação audiovisual nas políticas
lembrado ou esquecido.12 Nesse sen- de cultura do Brasil
tido, como pontuou José Quental,13 as
cinematecas são “espaços de disputa, Entendemos a preservação audiovisual
negociação e interação singulares do como o:
meio cinematográfico” e seu trabalho
é basilar para a constituição das cine- conjunto dos procedimentos, princípios, técni-
matografias nacionais – por um lado, cas e práticas necessários para a manutenção
porque é através da preservação e a da integridade do documento audiovisual e ga-
consequente possibilidade de acesso rantia permanente da possibilidade de sua ex-
aos filmes produzidos no país que se periência intelectual. [...] A preservação engloba
constrói uma história comum; por outro, a prospecção e a coleta, a conservação,14 a dupli-
visto que o contato com diferentes épo- cação,15 a restauração,16 a reconstrução (quando
cas e vertentes do cinema, do país ou de necessária), a recriação de condições de apre-
fora dele, influencia a própria produção sentação, e a pesquisa e a reunião de informa-
local. Interessante perceber, neste con- ções para realizar bem todas essas atividades.17
texto, que a salvaguarda do patrimônio
audiovisual nacional é tema praticamen- Ao definir preservação na sua tese de
te inexistente nas políticas de proteção doutoramento, Carlos Roberto de Souza
ao patrimônio cultural no Brasil – e isso sublinha um aspecto fundamental:
não foi modificado nos dez anos em que
a Cinemateca Brasileira passou vincula- A preservação não é uma operação pontual,
da à Fundação Nacional Pró-Memória mas uma tarefa de gestão que não termina
(FNpM) e ao Instituto do Patrimônio His- nunca. A manutenção a longo prazo da inte-
tórico e Artístico Nacional (Iphan). gridade de um registro ou de um filme de-

12 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982; LE GOFF, Jacques.
História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.
13 QUENTAL, José Luiz de Araújo. A preservação cinematográfica no Brasil e a construção de uma cinemateca
na Belacap: a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Comunica-
ção), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. p. 44.
14 Segundo Souza (SOUZA, Carlos Roberto de. A Cinemateca Brasileira e a preservação de filmes no Brasil. Tese
(Doutorado em Ciência da Comunicação), Universidade de São Paulo, 2009. p. 6, grifos do texto): “A conservação
engloba todas as atividades necessárias para prevenir ou minimizar o processo de degradação físico-química de
um artefato, seja ele produzido pelo arquivo ou um objeto anteriormente existente, incorporado pelo arquivo
com possíveis sinais de dano ou instabilidade”. Fernanda Coelho (COELHO, Maria Fernanda Curado. A experiência
brasileira na conservação audiovisual: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em Ciência da Comunicação),
Universidade de São Paulo, 2009. p. 14) incluiu aqui a expressão “ou sem” ficando, então “incorporado pelo
arquivo com [ou sem] possíveis sinais de dano ou instabilidade”.
15 “A duplicação é um conjunto de práticas relacionadas à criação de uma réplica de uma obra audiovisual,
seja uma cópia de segurança a partir do original ou de elementos de preservação existentes, ou como forma de
possibilitar o acesso à obra.” SOUZA, Carlos Roberto de, op. cit., p. 7.
16 “A restauração abrange procedimentos técnicos, editoriais e intelectuais realizados com o objetivo de com-
pensar a perda ou a degradação do artefato audiovisual, devolvendo-o ao estado mais próximo possível de suas
condições originais quando criado e/ou exibido.” Idem.
17 Idem.

Laura Bezerra arquivo em cartaz 9


pende da qualidade e do rigor do processo de articular os diferentes elos do processo
preservação executado ao longo das décadas, produtivo do audiovisual. Nesse sentido,
não importa sob quais regimes administrati- foram integradas à SAv organismos dis-
vos, até um futuro indeterminado. Nenhum persos como a Ancine, o Centro Técnico
filme está preservado; na melhor das hipó- Audiovisual (CTAv) e a Cinemateca Brasi-
teses, ele está em processo de preservação.18 leira, que estavam vinculados respectiva-
mente à Casa Civil, Funarte e ao Iphan. O
Pensar a preservação audiovisual como “Programa Brasileiro de Cinema e Audio-
tarefa que exige continuidade, implica na visual: Brasil, um país de todas as telas”,
necessidade de políticas setoriais está- lançado neste mesmo ano, abriu espaço
veis. Nossa análise das políticas de preser- para três áreas que até então eram trata-
vação audiovisual no Brasil desde a déca- das apenas esporadicamente: formação,
da de 1930 até 2010, entretanto, mostra política externa e preservação.
apenas ausência, ou seja: uma situação Entre as recomendações do relatório
completamente avessa às necessidades.19 final do Censo Cinematográfico Brasileiro
A partir do ano 2000, projetos como constava a necessidade de esboçar uma
o Diagnóstico e o Censo Cinematográfi- política de preservação do acervo audio-
co Brasileiro colocaram a preservação visual do país. Também o documento,
audiovisual, mesmo que de maneira pactuado com os representantes da so-
acanhada, na agenda político-cultural do ciedade civil,21 trazido por Orlando Senna
Governo Federal. A mudança nos para- ao assumir a Secretaria do Audiovisual e
digmas de atuação do Ministério da Cul- que, em grande parte, norteou as ações
tura a partir de 200320 trouxe novidades da pasta, tematizava a preservação au-
às políticas de audiovisual. Na gestão diovisual referindo-se especificamente ao
de Orlando Senna apostou-se em uma imperativo estabelecimento de uma polí-
maior amplitude das atividades da Secre- tica setorial, com a criação de legislação e
taria do Audiovisual (SAv) e, ao mesmo destinação de recursos específicos.
tempo, em uma maior integração entre Conforme consta no Relatório de Ativi-
suas áreas de atuação. A cadeia produti- dades da Cinemateca Brasileira de 2004,
va do audiovisual começou a ser pensada o projeto “Cinema Brasileiro: prospecção
como um todo e houve uma tentativa de e memória” previa a criação do Sistema

18 Idem.
19 BEZERRA-LINDNER, Laura. Políticas para a preservação audiovisual no Brasil (1995-2010). Tese (Doutorado
em Cultura e Sociedade), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
20 Nas gestões de Gil e Juca tiveram início mudanças fundamentais nas políticas culturais brasileiras, quando o
MinC começou a operar com a ideia da cultura como um direito, defendendo a necessidade de retomar o papel
ativo do Estado na formulação e implementação de políticas culturais, agora pensadas como política pública
focada na sociedade como um todo, e não apenas nos artistas. Estas mudanças, por sua vez, trouxeram à tona
questões complexas como a necessidade de territorialização das políticas culturais e de criação de instâncias de
participação que permitam efetivamente a definição de políticas democráticas.
21 Seminário Nacional do Audiovisual. Relatório do Seminário Nacional do Audiovisual, Rio de Janeiro, 3 e
4 de dezembro de 2002. Disponível em: <http://www.cinebrasiltv.com.br/pdf/relatorio.pdf>. Acesso em: jun. 2010.

10 arquivo em cartaz Preservação audiovisual no século XXI


Brasileiro de Informações Audiovisuais dependentes de um projeto (ou seja:
(SiBIA), com o objetivo de coletar infor- algo com duração limitada), o Banco de
mações sobre os acervos de cinema e Conteúdos Culturais (BCC), que não era
vídeo dispersos em todo o país, reuni-las sequer gerido pela própria instituição,
em um banco de dados e disponibilizá-las mas sim pela Cinemateca Brasileira. Ao
na internet. Em carta de março de 2006 fim do projeto, segundo Dahl em sua úl-
convocando a Diretoria de Audiovisual tima fala pública em uma mesa de deba-
(Dimas) da Fundação Cultural do Estado tes durante 6º CineOP, haveria a possibi-
da Bahia a vincular-se ao Sistema, Orlan- lidade de todo o sistema de preservação
do Senna afirmava que, “através do SiBIA, desenvolvido no CTAv ser interrompido
a Secretaria do Audiovisual acredita po- bruscamente, pondo em risco não so-
der constituir uma base sólida para o es- mente a melhoria alcançada na gestão
tabelecimento de um Plano Nacional de do acervo, como também dispersando o
Preservação do Patrimônio Audiovisual know how desenvolvido pelo Centro Técni-
Brasileiro”. Este plano, meta definida pela co nos últimos anos. Foi exatamente o que
própria SAv, até os dias de hoje (abril de aconteceu: em 2013, após o congelamento
2015) não foi sequer delineado. dos recursos destinado à Sociedade Ami-
A Cinemateca Brasileira (CB) viveu, gos da Cinemateca Brasileira e a demissão
neste período, um processo de valori- de mais de cinquenta funcionários que
zação sem precedentes na sua história. atuavam em diversos projetos, entre eles
Aumentaram os recursos orçamentários o BCC, a equipe de preservação do CTAv foi
e extraorçamentários, houve melhoria desmanchada. A reserva técnica foi inau-
da infraestrutura, compra de equipa- gurada em agosto desse ano, mesmo sem
mentos etc. Ao mesmo tempo, no âmbi- uma equipe disponível para operá-la. Mais
to interno da CB, percebia-se uma grave um exemplo da inexistência de uma políti-
fragmentação entre os departamentos e ca de preservação audiovisual até mesmo
as instâncias organizacionais e mesmo o para as instituições do próprio MinC.
enfraquecimento das atividades básicas Lembremos que, desde 2000, diversos
de preservação em um momento de au- documentos apontavam a necessidade
mento orçamentário exponencial. Este é de definição de uma política de abran-
um paradoxo que desafia o bom senso e é gência nacional para o setor, a exemplo
fruto da ausência de uma definição clara das resoluções do VIII Congresso Brasi-
da política institucional. leiro de Cinema e Audiovisual (2010) ou
No Centro Técnico Audiovisual (CTAv), o documento final do Seminário Nacio-
na gestão de Gustavo Dahl, foi elaborado nal de Audiovisual (2002), que se referia
um plano de preservação do acervo, que à necessidade de “ações que possibili-
incluía a construção de um espaço clima- tem e incentivem a criação e o financia-
tizado com 800m² planejado de acordo mento de órgãos de guarda regionais
com as mais atuais recomendações téc- que se encarreguem da preservação de
nicas, e diversas ações foram empre- filmografias locais e de difusão do acervo
endidas. Entretanto, estas ações eram existente”.

Laura Bezerra arquivo em cartaz 11


Como já dito, nas gestões dos minis- assim conquistar um espaço no seio da
tros Gilberto Gil e Juca Ferreira houve cultura. Considerada “arte impura” por
um esforço em prol da descentralização sua “contaminação” com as outras artes,
das políticas culturais. A própria Secre- mais “impuro” ainda ele é como parte da
taria do Audiovisual tem exemplos que indústria cultural e do mundo mercanti-
apontam neste sentido, como o DocTV; lista do entretenimento. Na sua ambigui-
o Revelando os Brasis; as ações de estí- dade ontológica,22 o cinema permanece
mulo ao cineclubismo e à criação de uma um híbrido entre avançada forma artís-
rede de difusão alternativa; a tentativa tica e produto comercial (um produto
de implantação de Núcleos de Produ- como outro qualquer, como defendiam
ção Digital em diversas regiões do país diversas instâncias na Organização Mun-
ou ainda a criação de um Centro Técnico dial de Comércio). Mais precário ainda é
Audiovisual do Norte e Nordeste (Canne) o lugar do cinema brasileiro, que inúme-
em Recife. ras vezes teve que ser descoberto e re-
No caso da preservação audiovisual, descoberto, afirmado e reafirmado atra-
as coisas se deram de forma diferente: a vés da dupla negação que o perpassa(va)
SAv promoveu uma forte concentração – não se constituir enquanto indústria,
de verbas e ações na Cinemateca Bra- nem alcançar qualidade artística e, desta
sileira, que, por sua vez, mostrava uma maneira, não existir.23
(também forte) propensão a centralizar Frágil é também o lugar das políticas
as ações na área. Interessou-nos enten- de cultura num país marcado, ele próprio,
der o que permitiu tamanho hiato entre pela instabilidade das instituições, pelo
as políticas do MinC no geral e as ações autoritarismo e pelas desigualdades. Na
da SAv na preservação audiovisual em história da política nacional de cultura, a
particular. Importante esclarecer que proteção ao patrimônio sempre teve lu-
percebemos o Estado e a sociedade civil gar de destaque, desde os anos 1930. O
como grupos não apenas distintos entre patrimônio, entretanto, era pensado de
si, mas que comportam grandes diferen- maneira restrita (e restritiva) dentro das
ças no seu próprio interior, abrindo es- categorias histórica e artística, onde não
paço para os mais diversos embates. Foi havia lugar para o cinema. Anos depois,
neste contexto de disputas por direitos quando vinculada às instituições de me-
e por recursos, que encontramos o lugar mória, a Cinemateca Brasileira permane-
da preservação audiovisual nas políticas ceu um corpo estranho, “filho enjeitado”
do Ministério da Cultura. das políticas de patrimônio. Também nas
O cinema travou uma longa luta para políticas de audiovisual o foco esteve dis-
obter reconhecimento enquanto arte e tante da preservação. Seu objetivo maior

22 PESCETELLI, Marco. The art of not forgetting: towards a practical hermeneutics of film restauration. Ph.D.
Thesis, University College of London, 2010.
23 AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. Tese (Doutorado em Multimeios), Uni-
versidade Estadual de Campinas, 2004.

12 arquivo em cartaz Preservação audiovisual no século XXI


sempre foi o fomento à produção24 e da sociedade civil, que nortearam estra-
somente nos últimos anos começa a se tégias e ações desenvolvidas em outras
fortalecer a percepção de que a preser- áreas do Ministério da Cultura.
vação é um dos elos da cadeia criativa e Cabe, ainda, salientar que as disputas
produtiva do audiovisual. Rio-São Paulo são tão acirradas e totali-
A preservação audiovisual ocupa, por- zantes que por muito tempo dificultaram
tanto, o lugar de “periférico do periférico a visão da possibilidade efetiva de um pro-
do periférico” – se me permitem a licen- jeto nacional de preservação audiovisual.
ça poética. Que, nesse contexto, o Brasil Somente com a formação de uma rede de
tenha efetivamente uma história da pre- pessoas e instituições e sua articulação
servação audiovisual deve-se em grande para alcançar objetivos comuns (para o
parte a esforços isolados; ela foi sendo que contribuíram os Congressos Brasilei-
construída, num processo de grande des- ros de Cinemas, o SiBIA, mas principal-
continuidade, por indivíduos e pequenos mente os Encontros Nacionais de Acervos
grupos apaixonados, comprometidos, ob- e Arquivos Audiovisuais) – materializado
cecados pelo tema, e se constituiu basica- na criação da Associação Brasileira de
mente em função dos esforços de atores Preservação Audiovisual – é que a pres-
singulares. Esta, entretanto, é uma base são por uma política de alcance nacional
de atuação instável e precária. adquire força e alcança um novo patamar.
Vinculada a este espaço frágil e precá-
rio, corresponde à preservação audiovisu- Desafios da preservação audiovisual
al uma posição desvantajosa nas lutas por no século XXI
recursos. Pode-se mesmo dizer que o ne-
cessário processo de valorização da Cine- O processo contemporâneo de conver-
mateca Brasileira ocorreu em detrimento gência tecnológica, no qual os meios de
de uma política nacional de preservação comunicação de massa, as telecomunica-
audiovisual, num governo que investiu na ções e a internet estão reciprocamente
descentralização das políticas de cultura. enlaçados, trouxe mudanças significativas
É significativo que exatamente nesse se- para o audiovisual. As novas tecnologias
tor as relações de força vigentes tenham digitais vieram reforçar a fome de expres-
possibilitado apenas uma política auto- são e consumo audiovisual, e é tamanha
centrada e marcada por ações centraliza- a multiplicidade de plataformas e janelas
doras, que não apenas eram contraditó- de exibição, que, atualmente, o acesso
rias, mas mesmo opostas aos conceitos, parece ser limitado apenas pela imagina-
como a descentralização e a participação ção. É necessário, neste novo contexto,

24 Jean Claude Bernardet (Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedagogia. 2. ed. São
Paulo: Annablume, 2008. p. 26) afirma que “esse predomínio da produção orientando o discurso histórico pode
ser encontrado em vários signos que constituem uma mentalidade cinematográfica” e chama a atenção para os
cartões comemorativos da Cinemateca Brasileira; para ele, “não deixa de ser significativo que dois cartões do que
se entende por ‘90 anos’ de ‘cinema brasileiro’ se refiram exclusivamente à câmera e ao diretor”.

Laura Bezerra arquivo em cartaz 13


refletir sobre as formas de produção da mente padrões seguros de preservação
memória e dos conhecimentos específi- digital; as mídias digitais são vulneráveis,
cos do audiovisual, assim como sobre o não somente pela fácil degradação dos
papel dos arquivos de filmes nesse novo bits, como também em função da rápi-
“tempo de compartilhamento”.25 da e constante obsolescência dos hard e
Repensar seus conceitos básicos, suas softwares indispensáveis para acessar os
diretrizes, sua missão, seus objetos, o conteúdos.27 Sendo assim, um arquivo di-
acesso, as articulações possíveis e neces- gital precisa investir em uma permanente
sárias etc. representa um enorme desafio transposição dos materiais para novos su-
para as instituições detentoras de acervos portes e formatos, sob pena de perda total
audiovisuais – especialmente na precária do acervo – o que é problemático especial-
situação em que se encontram. Desafio é mente na situação precária em que se en-
também enfrentar o “dilema digital” no contram as instituições brasileiras.
que se refere às inseguranças na conser- Além disso, é fundamental lembrar
vação de longo prazo e à complexificação que a preservação audiovisual envolve
da formação do preservador audiovisual. mais que a preservação do conteúdo. Na
Importante salientar que o restauro de palestra inaugural do 8º Encontro Nacio-
filmes é elemento importante da preserva- nal de Arquivos e Acervos Audiovisuais
ção, é também seu braço mais visível e va- (Ouro Preto, 2013), intitulada “Balanço
lorizado, mas é um elemento entre outros. de um campo: a arquivística audiovisual”,
Pensar na preservação audiovisual como Ray Edmondson ressaltou a importância
“tarefa de gestão”, implica em pensar um de se garantir o acesso à experiência ori-
todo, no qual restauro e difusão são ape- ginal com os filmes, quando sublinhou a
nas partes. Especialmente no quadro de íntima conexão entre “suporte, conteúdo
emergência das tecnologias digitais, diver- e contexto” de recepção. No mesmo sen-
sas questões precisam ser equacionadas tido expressou-se Enno Patalas, preserva-
cuidadosamente.26 Importante é não per- dor e restaurador do Münchner Filmmu-
der de vista que até o presente momento seum (Museu do Cinema de Munique), ao
as tecnologias digitais (pelo menos ainda) ressaltar que os preservadores não estão
não são uma solução para a preservação apenas salvando o material físico, mas o
audiovisual nem apresentam respostas imaginário do cinema, que inclui o filme,
para assuntos intensamente discutidos no as condições e o contexto de exibição,
setor. Lembremos que não existem atual- bem como os espectadores.28

25 HEFFNER, Hernani. Tempo de compartilhamento. Catálogo do CineOP, n. 8, 2013. p. 98-101.


26 KLIMPEL, Paul; KEIPER. Jürgen (orgs.). Was bleibt? Nachhaltigkeit der Kultur in der digitalen Welt. Berlim:
Internet & Gesellschaft Collaboratory e. V., 2013; BUARQUE, Marco Dreer, op. cit.; PESCETELLI, Marco, op. cit.
27 SCIENCE AND TECHNOLOGY COUNCIL. O dilema digital: questões estratégicas na guarda e no acesso a mate-
riais cinematográficos digitais. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2009; SAYÃO, Luís Fernando. Preservação digital
no contexto das bibliotecas digitais: uma breve introdução. In: MARCONDES, Carlos H. et al. (orgs.). Biblioteca
digital: saberes e práticas. Salvador; Brasília: UFBA; Ibict, 2005. p. 113-143.
28 Apud PESCETELLI, Marco, op. cit., p. 15.

14 arquivo em cartaz Preservação audiovisual no século XXI


As tecnologias digitais são uma rea- pensamos em políticas públicas ancora-
lidade, mas as instituições precisam de das nos direitos culturais, como determi-
conceitos claros para nortear suas ações. na a Constituição, é porque elas são con-
Elas não podem perder de vista que pre- sideradas vitais para o desenvolvimento
servação audiovisual implica sempre em humano e social. A cultura é, atualmen-
pensar no todo: em pesquisa, prospec- te, fortemente pautada pelos fenômenos
ção, conservação, restauro, duplicação, midiáticos e pelas indústrias culturais,29 e
digitalização e difusão; em como estas o audiovisual ocupa uma posição central
ações devem estar articuladas; e no de- nesse cenário. A preservação de diferen-
senvolvimento das ações a longo prazo. O tes modos de expressão audiovisual é es-
ponto de partida deve ser um diagnóstico sencial para o compartilhamento de uma
claro, que permita a definição de priorida- usina de símbolos, que forma a base para
des, visto que os recursos são limitados. a construção, desconstrução e reconstru-
E, neste sentido, gostaria de tecer al- ção de redes de significados. Também no
gumas considerações sobre o restauro de contexto de ampliação do faturamento
filmes. Tendo em vista que o restauro é um das chamadas indústrias criativas no mer-
processo caro e complexo, é fundamental cado internacional, processo marcado por
que se pense prioritariamente na conser- forte desigualdade – EUA, Grã-Bretanha
vação dos filmes, ou seja, nas medidas e China produzem quase a metade dos
necessárias para prevenir ou minimizar o bens culturais negociados mundialmente
processo de deterioração dos filmes – o –, seria estratégico preservar o acervo de
que não se faz sem espaços e equipamen- imagens em movimento do Brasil.
tos adequados, sem planejamento e sem Esse contexto internacional, conjugado
profissionais capacitados. A restauração é ao processo de amadurecimento da polí-
uma importante medida, desde que este- tica cultural brasileira e da própria área da
ja conectada com as diversas outras ações preservação audiovisual é propício a mu-
que constituem a preservação audiovisual. danças. Entretanto, é preciso enfrentar as
Os novos (e os antigos) desafios trazem dificuldades e responder às questões que
consigo muitas possibilidades. O aumento se colocam. A primeira delas: se é de inte-
da importância do audiovisual torna ne- resse público preservar o acervo audiovi-
cessário e urgente que se estabeleça o va- sual brasileiro, a quem compete fazê-lo?
lor social e estético das imagens em mo- Como articular os trabalhos de institui-
vimento, como enfatizou João Luiz Vieira ções públicas e privadas? Como promo-
em fala durante o 8º CineOP (2013). Nes- ver a sinergia entre as ações promovidas
te contexto, manifestam-se fortes justifi- pelas instâncias municipais, estaduais e
cativas para a preservação audiovisual. Se federal? Como conectar a preservação

29 RUBIM, Antonio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: Eduf-
ba, 2007; RUBIM, Albino. Dilemas para uma política cultural na contemporaneidade. In: LEITÃO, Cláudia (org.).
Gestão da cultura: significados e dilemas na contemporaneidade. Fortaleza: Banco do Nordeste, 2003. p. 89-104;
______. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil. Salvador: Edufba, 1995.

Laura Bezerra arquivo em cartaz 15


audiovisual nas suas dimensões locais, re- Fundamental seria também fortalecer
gionais, nacionais, transnacionais? o processo de institucionalização da pre-
Em primeiro lugar é fundamental rea- servação audiovisual como área específi-
lizar um trabalho amplo e de longo prazo ca. A publicação Filosofia e princípios da
em prol do reconhecimento público e da arquivística audiovisual30 representa uma
valorização da preservação audiovisual. base valiosa. Enquanto área específica,
Instituições públicas e privadas, principal- ela tem necessidades próprias, inclusive
mente as da cultura e educação, precisam de infraestrutura (determinados equipa-
atuar conjunta e transversalmente nesse mentos poderiam, por exemplo, ter as ta-
sentido. A preservação audiovisual é um xas de importação reduzidas) e materiais,
processo e é necessário investir na cons- alguns dos quais parecem um tanto exó-
cientização da preservação como parte ticos, o que traz dificuldades para que as
constituinte da cadeia do audiovisual. instituições públicas possam comprá-los
Este processo de reconhecimento da área dentro dos limites da burocracia estatal.
deve começar nos cursos de audiovisual; As resoluções da ABPA e dos CBCs apon-
diretores, produtores e técnicos precisam tam a necessidade de se constituir um
entender que “todo nosso árduo trabalho grupo de estudo para aperfeiçoamento e
e nossos esforços criativos de nada valem atualização da legislação. Diversas ques-
porque nossos filmes estão desaparecen- tões precisam ser definidas, como os direi-
do” – como afirmou Martin Scorcese em tos das instituições em relação aos acervos
1989, no seu manifesto Tudo o que faze- sob sua guarda, relevantes para a reali-
mos não significa nada!. zação de ações de preservação, ou ainda
O setor precisa avançar no seu processo para as já citadas questões de tutela.
de organização, superar as divergências e O financiamento setorial precisa ser
atuar unido para que a preservação audio- negociado politicamente, para que a
visual, área profundamente multidiscipli- preservação não seja sempre o perde-
nar, seja reconhecida como tema relevante dor nas lutas redistributivas.31 A ideia de
nos diferentes setores: audiovisual, patri- criação de um fundo específico para a
mônio, educação, comunicação, indústria, preservação audiovisual aparece no Se-
economia, direito, ciência e tecnologia etc. minário Nacional de Audiovisual de 2002
A criação de um grupo de trabalho especí- e retorna, ainda sem resposta dez anos
fico para traçar diretrizes para uma política depois, na Carta de Ouro Preto de 2011,
de preservação audiovisual no Estado do que exige uma distribuição equânime de
Rio de Janeiro, no contexto de elaboração recursos públicos para o setor audiovisu-
do Plano Estadual de Cultura, aponta cami- al. A Carta de Ouro Preto 2013 repete a
nhos de articulação política. reivindicação ao pleitear uma linha espe-

30 EDMONDSON, Ray. Filosofia e princípios da arquivística audiovisual. Rio de Janeiro: ABPA; Cinemateca do
MAM-RJ, 2013.
31 Políticas redistributivas são aquelas que alteram a repartição de recursos e de direitos.

16 arquivo em cartaz Preservação audiovisual no século XXI


cífica para a preservação dentro do Fun- ções pessoais; é preciso haver um de-
do Setorial do Audiovisual. Necessário, terminado nível de ação que permaneça
para tanto, que exista espaço para uma independente dos gestores transitórios.
representação do setor nas instâncias Isso só será possível quando, por um lado,
decisórias, como o Conselho Consultivo os poderes públicos e a sociedade civil
da SAv e o Conselho Superior de Cinema; conjuntamente definirem e implemen-
importante também que a comunidade tarem uma política nacional para a área.
se mobilize e se organize para levar de- Por outro lado, as instituições detentoras
legados defendendo estas bandeiras nas de acervos audiovisuais precisam de uma
diversas instâncias de participação cria- política interna clara, definida de acordo
das a partir de 2003. com suas especificidades, mas ancorada
Um ponto central é a valorização das na política nacional, que garanta a con-
instituições detentoras de acervos de tinuidade das ações independentemen-
imagem em movimento, o que passa pela te das pessoas responsáveis pela gestão
definição de uma política institucional num determinado momento.
(política de acervo, de acesso etc.), que, Algumas experiências dos últimos
entre outras coisas, estabeleça um lugar dez anos, como a parcial dissolução do
adequado para seus técnicos. Não exis- acervo da Cinemateca do MAM-RJ, o
te a possibilidade de reconhecimento da desmonte da CRAv de Minas Gerais, o
importância da preservação audiovisual e longo impasse em torno da Cinemateca
de suas instituições sem a valorização dos Capitólio em Porto Alegre e os recentes
profissionais que nelas trabalham. Esta é eventos na Cinemateca Brasileira, exem-
uma questão relevante e premente para o plificam as perdas causadas pela fragili-
setor em geral, não só no Brasil; o já cita- dade institucional e pela instabilidade
do livro de Edmondson, por exemplo, foi político-cultural. Eles indicam a urgência
escrito com a finalidade de estabelecer na definição de uma política nacional de
um corpo teórico documentado para fun- preservação audiovisual que considere
damentar a profissão. O reconhecimento a complexidade e heterogeneidade do
da profissão implica em uma área de for- setor: são diversas as necessidades nas
mação específica, o que abriria caminho diferentes regiões do país, assim como
para a imprescindível abertura de cargos o perfil dos acervos (são distintas as
específicos nas instituições. competências e infraestrutura necessá-
Finalmente, a consolidação da preser- rias para a conservação de filmes, para
vação audiovisual precisa ser entendida o restauro ou para o trabalho com a
como parte do processo de fortalecimen- documentação correlata, por exemplo).
to institucional da cultura. Se o sucesso Ela precisa considerar ainda que a des-
das ações empreendidas na preservação centralização de acervos é não apenas
audiovisual exige continuidade, então o tecnicamente sensato, mas também po-
setor não pode ser dependente da sen- lítica e eticamente apropriado ao pacto
sibilidade de indivíduos; as políticas não federativo brasileiro e às afirmações da
podem depender de amizades e inclina- Constituição Federal de 1988.

Laura Bezerra arquivo em cartaz 17


Itens do acervo de imagens em movimento do Arquivo
Nacional. Foto: Agnaldo Santos/AN
A formação de
Mauro Domingues
acervos audiovisuais Coordenador-Geral de Processamento e Preservação
do Acervo do Arquivo Nacional.

O cinema como conhecíamos até Quando produzíamos imagens e sons


pouco tempo já não é mais o mesmo! baseados no registro em um suporte fí-
Nos últimos anos, observamos algumas sico que determinava inclusive questões
alterações significativas nos meios de como estética e qualidade, também havia
produção, com o surgimento e desapa- a obsolescência e a substituição. Mas es-
recimento de tecnologias que se tornam sas mudanças ocorriam de forma muito
obsoletas cada vez mais rápido, forman- lenta. Ao verificarmos que o filme 35 mm
do um legado que nos deixa com muitas foi durante muito tempo o formato mais
dúvidas sobre sua permanência. utilizado para registro de imagens, pode-
Isso não é nenhuma novidade e é uma mos constatar que o suporte já foi o nitra-
característica dos tempos atuais. Qualquer to, acetato e poliéster. Até hoje é possível a
atividade baseada em tecnologia sofre des- convivência quase pacífica entre eles. São
te mal, produzindo objetos cada vez mais mudanças importantes, mas não alteraram
inacessíveis. Em algumas atividades, com significativamente a maneira de conservar-
o advento da tecnologia digital, podemos mos estes registros. Alguns outros forma-
observar uma obsolescência programada. tos foram utilizados e caíram em desuso,

18 arquivo em cartaz
mas isso não mudou em nada a maneira e profissionais, estes documentos são
de preservá-los, já que todos estes forma- trazidos à tona. Cabe lembrar que os
tos possuíam algumas características co- primeiros arquivos audiovisuais, que
muns. Ainda hoje podemos encontrar for- não tinham esta denominação na épo-
matos de filmes que não vingaram. Cabe ca, foram reunidos, tratados e preser-
lembrar que também não conseguimos vados por fãs apaixonados pelo cinema.
preservar grande parte do acervo produzi- No Brasil, em 1936, durante o gover-
do neste período, ou seja, não soubemos no do presidente Getúlio Vargas, com a
como fazê-lo durante muito tempo. criação do Instituto Nacional de Cinema
O que podemos chamar de acervos Educativo – INCE pelo então ministro da
audiovisuais do início do cinema foram Educação e Saúde, Gustavo Capanema
formados graças à iniciativa de colecio- (1900-1985), o antropólogo, cientista e
nadores e fãs. Aqueles apaixonados pelo professor Edgar Roquette-Pinto (1884-
cinema começaram a colecionar filmes 1954) é convidado para dirigir o instituto.
de acordo com seu gosto pessoal, muitas Roquette-Pinto já tinha experiência com o
vezes motivados por uma atriz, por um di- cinema, pois iniciou, em 1910, a filmoteca
retor ou qualquer coisa que diga respeito do Museu Nacional, com filmes científi-
ao mundo do colecionador. cos. No INCE, Roquette-Pinto convidou o
O cinema nascido como uma invenção cineasta mineiro Humberto Mauro para
sem futuro, em seus poucos mais de cem dirigir filmes científicos e didáticos, já que
anos, desde a sua primeira projeção em sua ideia era promover e orientar a utili-
1895, em Paris, transformou-se não só em zação do cinema como auxiliar do ensino,
uma indústria que movimenta milhões de utilizando-o como instrumento voltado
dólares no mundo inteiro, como também para a educação popular. Mais de trezen-
uma ferramenta eficaz para o uso cientí- tos filmes foram produzidos. Atualmente,
fico, como imaginavam os irmãos Lumiè- uma parcela destes filmes está na Cine-
re. Além disso, o cinema, apesar do não mateca Brasileira, em São Paulo.
reconhecimento imediato, se tornou uma O Arquivo Nacional, criado em 1838,
ferramenta eficaz para o registro das di- possui em seu acervo audiovisual ex-
versas atividades desenvolvidas na socie- pressivos registros da história social,
dade, o que o tornou também um docu- cultural, política e administrativa do
mento de arquivo. Brasil, da década de 1920 aos dias atu-
Os filmes nem sempre foram consi- ais. São cerca de sessenta mil rolos de
derados documentos de arquivo. Ainda filmes e cinco mil fitas videomagnéticas
hoje, durante visitas realizadas em ar- de diferentes formatos.
quivos públicos de diversos municípios, O acervo é composto por filmes produ-
é comum observarmos estantes com la- zidos pelo Estado brasileiro − como os ci-
tas de filmes, algumas delas não identi- nejornais da Agência Nacional −, acervos
ficadas, e geralmente são objetos estra- privados que foram doados, documentá-
nhos às equipes. Muitas vezes, a partir rios, obras de ficção, peças publicitárias,
da curiosidade de alguns pesquisadores gravações de eventos, vinhetas, produções

arquivo em cartaz 19
institucionais, registros familiares e cortes

Itens do acervo de imagens em movimento do Arquivo


Nacional. Foto: Agnaldo Santos/AN
de filmes censurados durante a ditadura
militar (1964-1985). O Arquivo Nacional
possui também filmes depositados em re-
gime de comodato, entre eles as obras de
Nelson Pereira dos Santos, LC Barreto, RF
Farias, Isaac Rozemberg, Ruy Guerra, Luiz
Carlos Lacerda, Murilo Salles, Darcy Ribei-
ro, Hugo Carvana, entre outros.
Em 2014, o Arquivo Nacional inaugu-
rou a sua sala cofre, com todos os requi-
sitos de segurança, destinada à guarda e
preservação de acervos digitais, voltada cer também as exibições, muitas delas
neste primeiro momento para a conser- acompanhadas de música ao vivo.
vação de representantes digitais de seu A Cinemateca Brasileira em São Pau-
acervo textual, iconográfico e cartográfi- lo, fundada em 1940 a partir da criação
co, além de documentos natos digitais. do Clube do Cinema, tem como funda-
Já em 2015, o Arquivo Nacional fina- dores Paulo Emílio Sales Gomes, Décio
lizou um projeto de construção de uma de Almeida Prado e Antônio Cândido de
área destinada à guarda de longo prazo Mello e Souza.
de suas matrizes (filmes, negativos foto- O Clube foi fechado pela polícia do Es-
gráficos, microfilmes, vídeos, documen- tado Novo. Após várias tentativas de se
tos sonoros etc.), denominado Banco de organizarem cineclubes, foi inaugurado,
Matrizes, que poderá ampliar de maneira em 1946, o segundo Clube de Cinema de
considerável o espaço existente hoje. Este São Paulo. Seu acervo de filmes constituiu
projeto necessita de recursos financeiros a Filmoteca do Museu de Arte Moderna
para sua implantação. (MAM), que viria a se tornar uma das pri-
A Cinemateca do Museu de Arte Mo- meiras instituições de arquivos de filmes
derna do Rio de Janeiro – MAM/RJ foi a se filiar à FIAF − Fédération Internatio-
fundada em julho de 1955 – sessenta nale des Archives du Film (www.fiafnet.
anos em 2015 – com a finalidade de in- org), em 1948. Em 1984, a Cinemateca foi
corporar o cinema às suas exposições. incorporada ao governo federal como um
Hoje, a Cinemateca está estruturada em órgão do então Ministério de Educação e
arquivo de filmes, departamento de do- Cultura (MEC), e hoje está ligada à Secre-
cumentação e sala de exibição. taria do Audiovisual.
A Cinemateca do MAM não cumpriu A mudança da sede para o espaço do
apenas o seu papel como arquivo de fil- antigo Matadouro Municipal, cedido pela
mes, mas como um local destinado ao Prefeitura da cidade, ocorreu a partir de
debate, à finalização de filmes, à resis- 1992. Seus edifícios históricos, inaugura-
tência em tempos difíceis, à formação dos no século XIX, foram tombados pelo
de público e profissionais, sem esque- Condephaat – Conselho de Defesa do Pa-

20 arquivo em cartaz A formação de acervos audiovisuais


tivos, falta ainda a formação de uma polí-
tica de Estado voltada para a preservação
audiovisual, que permita a continuidade
da atividade, independente da variação
de humor de dirigentes e políticos, já que
a manutenção desta atividade está direta-
mente ligada às verbas públicas, com al-
guns esforços privados bem significativos,
mas ainda dependente de verbas públicas,
como é a atividade audiovisual no Brasil. É
fundamental que o produtor audiovisual
também se torne um elemento participa-
trimônio Histórico, Arqueológico, Artísti- tivo nessa cadeia da preservação.
co e Turístico do Estado de São Paulo, e Carecemos também de uma rede que
restaurados pela entidade. permita um acesso rápido às informações
O Centro Técnico Audiovisual – CTAv, existentes nos diversos acervos audiovi-
criado em 1985 dentro da estrutura da suais espalhados pelo Brasil. Atualmente
Empresa Brasileira de Filmes S.A. – Em- existe tecnologia capaz de propiciar esta
brafilme, alimenta desde a sua criação a rede, com custo extremamente baixo, mas
iniciativa da preservação audiovisual. Seu que esbarra no antigo conceito do colecio-
acervo é basicamente formado por filmes nador, que entende seu acervo como obje-
de curta e média metragem produzidos tos de uma coleção particular, não permi-
pelo INCE, pelo Instituto Nacional do Ci- tindo o acesso amplo a estas informações.
nema – INC, pelo Departamento do Filme Infelizmente, ainda convivemos com esta
Cultural – DFC e pela diretoria não comer- maneira de gerenciar acervos, e isso fun-
cial da Embrafilme, e estão armazenados ciona como um elemento prejudicial à
em depósitos climatizados, elaborados preservação, já que a falta de informação
especialmente para este fim. Trinta anos dificulta muita vezes a tomada de decisões
depois de sua fundação, o CTAv segue sua em projetos de restauração de filmes.
tradição e inaugura em 2015 o mais mo- Hoje, além do grande desafio de man-
derno espaço para a guarda a longo prazo ter acervos audiovisuais com películas
de acervos audiovisuais no Brasil. cinematográficas, utilizadas durante mais
Ao verificarmos a situação do Brasil na de cem anos, surge a questão da chega-
preservação de acervos audiovisuais des- da definitiva da tecnologia digital. Este
de os anos de 1980 até hoje, fica nítida a processo, que teve início há alguns anos,
evolução, tanto no que diz respeito à es- impõe de maneira incisiva alterações con-
trutura necessária para a guarda, ao reco- ceituais na formação e gerenciamento de
nhecimento da importância da atividade, acervos audiovisuais. A informação digital
à formação de profissionais e ao debate não depende mais do objeto onde está
sobre o tema em festivais e outros fóruns inserida, diferentemente do que conhecí-
de discussão. Apesar de avanços significa- amos há pouco tempo.

Mauro Domingues arquivo em cartaz 21


Durante muitos anos, manter acervos reservada para poucos eventos. A proje-
audiovisuais em locais frios e com índices ção se dá hoje pelo DCP (Digital Cinema
de umidade relativa do ar em torno de Package), que são arquivos digitais em-
50% era uma meta das mais difíceis, não balados em um pacote, e se configura
só pela questão financeira, mas também como um padrão de distribuição e exi-
pela falta de tecnologia no mercado que bição do cinema digital. O DCP segue
possibilitasse alcançar a condição imagi- normas de qualidade estabelecidas pela
nada ideal. Mexer o mínimo possível no SMPTE (Society of Motion Pictures and
acervo também era quase um dogma. Television Engineers). Esta etapa seria o
O objeto audiovisual era o mais impor- que poderíamos chamar de processo fi-
tante. Acreditávamos que mantê-lo signi- nal da digitalização do cinema, ou seja,
ficava salvá-lo e garantir sua eternidade. a exibição, já que a captação se dá por
Mas nos enganamos, porque não há como meio digital, e a película cinematográfi-
garantir a eternidade de um objeto que tem ca não faz mais parte do negócio. Todo
na sua estrutura elementos orgânicos. Po- o processo de pós-produção também é
demos adiar seu fim, mas ele virá. A saída digital até chegarmos à exibição, que
então era transferir a informação presente hoje, ressalto, se dá por meio do DCP. E
nos objetos para um novo suporte, também o que vem para os arquivos?
com elementos orgânicos, que deveria ser Sobra para os acervos audiovisuais o
o mais próximo do original. Conseguimos DCP, como se fosse uma cópia 35 mm,
em muitos casos, no entanto, sempre ha- que normalmente chega desgastada após
verá perdas significativas, especialmente as exibições? O DCP não sofre este tipo de
no Brasil e em outros países onde não há desgaste físico comum em cópias 35 mm,
uma indústria audiovisual consolidada, mas depende de sistemas de projeção
nem acesso aos melhores materiais e pro- específicos e são codificados, ou seja, de-
cedimentos. Ainda predomina, por parte da pendem de códigos do distribuidor para
sociedade e do Estado, a falta de reconhe- sua exibição. E as matrizes que deram
cimento da importância deste patrimônio. origem aos DCPs? E as famosas sobras
Acumular filmes empilhando-os em de negativo que são consideradas verda-
estantes era uma saída bastante razoá- deiras relíquias em acervos audiovisuais?
vel. E hoje, com os objetos que armaze- Existe algo semelhante nesse mundo di-
nam informações digitais? Uma diferen- gital? É claro que sim! Sobras são aquilo
ça sensível é que a informação digital que não foi utilizado na montagem, mas
não possui nenhuma relação intrínseca que o diretor e o montador optaram por
com o objeto que a armazena. Este ob- guardar. Como as receberemos? Como
jeto, na verdade, é algo como um invó- as descobriremos daqui a vinte, trinta
lucro, um pacote ou uma embalagem. anos ou mais? Isso me faz recordar de
Se antes deveríamos mexer pouco, ago- dona Lúcia Rocha, mãe do cineasta Glau-
ra devemos mexer sempre. ber Rocha e responsável pela criação do
A exibição de filmes feita em cópias Tempo Glauber, quando no final do sécu-
35 mm está bem próxima do fim e será lo passado chegou ao CTAv com algumas

22 arquivo em cartaz A formação de acervos audiovisuais


Itens do acervo de imagens em
movimento do Arquivo Nacional.
Foto: Agnaldo Santos/AN

caixas de madeira repletas de filmes. Ao aparatos tecnológicos, entre outras carac-


me procurar, ela diz algo mais ou menos terísticas, poderá se tornar eterno?
assim: “Aqui estão as sobras de Terra em Segundo Walter Benjamin,1 “a repro-
transe. Isso é outro filme!” dutibilidade técnica do filme tem seu
Dezenas de latas de negativos e copi- fundamento imediato na técnica de sua
ões 35 mm resistiram ao tempo graças ao produção. Esta não apenas permite da
fotógrafo Mário Murakami, que as levou forma mais imediata a difusão em massa
para Belo Horizonte, e à incansável busca da obra cinematográfica, como a torna
de dona Lúcia. O que aconteceu daí em obrigatória”. Acervos audiovisuais digitais
diante faz parte de outra história, mas foi possuem também características de re-
possível ver o que seriam as sobras de produtibilidade – talvez o termo correto
Terra em transe muitos anos depois. não seja esse – ou a possibilidade de ge-
Não há como considerar a formação rar réplicas idênticas aos originais, o que
de acervos com a simples guarda de pa- significa não perder qualidade a cada ré-
cotes digitais em DCP, fitas LTO (Linear plica gerada, isso sem levar em considera-
Tape-Open), HDs ou qualquer outro pa- ção o pacote, que funciona apenas como
cote com arquivos digitais embalados, uma simples embalagem.
empilhados em armários, estantes ou Informações digitais devem ser ge-
em uma gaveta. renciadas desde o seu nascedouro. De-
Diante desse quadro que a princípio vem ser armazenadas em sistemas de
nos parece caótico, existe uma perspec- storage seguros, replicados em pacotes
tiva, que, em tese, poderá nos levar à dos mais diversos e atualizados cons-
questão que sempre buscamos, ou seja, a tantemente. Devem ser exibidos nas
preservação definitiva. Como algo tão su- múltiplas plataformas que já existem
jeito à obsolescência, tão dependente de hoje. É, não será tão fácil!

1  BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. Magia e técnica,
arte e política. Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1989.

Mauro Domingues arquivo em cartaz 23


Convite para a
abertura do Festival 10
Anos de Filmes Sobre
Arte, 1955. Acervo
Cinemateca
do MAM

A vez do Rio: a criação


José Quental
da Cinemateca do Pesquisador associado à Cinemateca do MAM-RJ.
Museu de Arte Moderna Doutorando na Université Paris 8 e associado ao Institut
d’Histoire du Temps Présent – IHTP/CNRS.
do Rio de Janeiro Bolsista Capes.

Introdução

Neste ano de 2015 em que celebra- Desde a sua criação, em 1955, sob o
mos os 450 anos da cidade do Rio de Ja- nome de Departamento de Cinema do
neiro, a Cinemateca do Museu de Arte Museu de Arte Moderna do Rio de Ja-
Moderna do Rio de Janeiro (Cinemateca neiro, a Cinemateca desempenha um
do MAM) comemora seu sexagésimo papel imprescindível na preservação
aniversário. Instituição dedicada à con- do patrimônio cinematográfico brasi-
servação e à valorização do patrimônio leiro. Preservação aqui entendida num
cinematográfico, a Cinemateca do MAM sentido amplo, como um conjunto de
tornou-se, ao longo das últimas seis dé- “procedimentos, princípios, técnicas e
cadas, um ator central da cultura cine- práticas”2 que participam tanto da con-
matográfica e da história do cinema em servação, quanto da restauração e da
nosso país. Um lugar de memória1 in- valorização deste patrimônio. Por meio
contornável para cineastas, críticos, his- de diferentes ações que vão desde a for-
toriadores, pesquisadores e cinéfilos. mação de uma coleção, da restauração

1 NORA, Pierre (dir.). Les Lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984.


2 CHERCHI USAI, Paolo. Silent cinema: an introduction. London: BFI, 2000.

24 arquivo em cartaz
de filmes, da promoção de cursos, ou ca contida nesse empreendimento, que,
ainda da manutenção de um centro de acredita-se, pode ser reconstituída por
documentação e pesquisa até a digitali- meio das ações e iniciativas organizadas
zação e a disponibilização de acervos, a naquele período.
Cinemateca do MAM vem contribuindo
para a preservação desse patrimônio. Preservação cinematográfica,
Em contraste com a diversidade, a im- alguns antecedentes
portância e a duração dessas ações, ob-
serva-se uma escassez de trabalhos dedi- Invenção do final do século XIX, o ci-
cados à trajetória dessa instituição ou das nema registrou e representou as trans-
pessoas que a construíram. É importante formações sociais ao longo dos últimos
sublinhar, entretanto, que esta carência 120 anos, tornando-se um arquivo privi-
de pesquisas não é privilégio da Cinema- legiado das sociedades contemporâneas.
teca do MAM ou da história da preserva- Fonte de valor inestimável para a história
ção de filmes no Brasil. Ao contrário, ela e para a memória, o cinema passou por
é constitutiva do campo da preservação um longo, dramático e desigual processo
audiovisual, cuja história, como bem ob- de patrimonialização. Da luta pela valori-
servou Caroline Frick, “em grande parte zação do cinema como arte e objeto de
ainda não foi escrita”.3 Neste contexto, cultura, passando por sua incorporação a
o presente artigo pretende somar-se aos coleções públicas e privadas, até o seu re-
recentes trabalhos dedicados à preserva- conhecimento como objeto de valor his-
ção audiovisual no Brasil,4 contribuindo tórico digno de participar das coleções de
assim para a escrita desta história. museus, arquivos e outros espaços patri-
Analisando os primeiros anos da Ci- moniais, a história da preservação audio-
nemateca, entre 1955 e 1958, perío- visual é marcada pela perda e destruição
do em que seu projeto foi concebido e de grande parte deste patrimônio.
consolidado, o trabalho empenha-se em Se em 1896 Boleslaw Matuszewski já
circunscrever e problematizar esta inicia- defendia a salvaguarda das imagens em
tiva, sublinhando seu contexto e alguns movimento, em particular daquelas que
de seus antecedentes. Em particular, ob- possuíam um “valor histórico”,5 foram
jetiva-se explicitar a ideia de cinemate- necessárias ainda três décadas para que

3 FRICK, Caroline. Saving cinema: the politics of preservation. New York: Oxford University Press, 2011. p. 5.
4 Dentre outros, podemos citar: SOUZA, Carlos Roberto de. A Cinemateca Brasileira e a preservação de filmes
no Brasil. Tese (Doutorado em Comunicação), Universidade de São Paulo, 2009; COELHO, Maria Fernanda. A
experiência brasileira na conservação de acervos audiovisuais: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em
Comunicação), Universidade de São Paulo, 2009. CORRÊA JÚNIOR, Fausto Douglas. A Cinemateca Brasileira: das
luzes aos anos de chumbo. Assis: Unesp, 2010; POUGY, Alice. A cinemateca do MAM e os cineclubes do Rio
de Janeiro: formação de uma cultura cinematográfica na cidade. Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1996; QUENTAL, José Luiz de Araújo. A preservação cinematográfica no
Brasil e a construção de uma cinemateca na Belacap: a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
(1948 – 1965). Dissertação (Mestrado em Comunicação), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
5 MATUSZEWSKI, Boleslaw. Uma nova fonte histórica. Trad. Daniel Caetano. Disponível em: <http://www.
contracampo.com.br/34/frames.htm>. Acesso em: 12 mai. 2015.

arquivo em cartaz 25
instituições que traziam o cinema para matographiques Suisses (1943), Ceskos-
o centro de um discurso patrimonial lovensky Filmovy Ustav de Praga (1945),
fossem estruturadas. Esta transforma- a Filmoteca do Museu de Arte Moderna
ção que buscou romper com “um con- de São Paulo (1946),8 o Gosfilmofond
ceito de cultura restrito e elitista”6 no em Moscou (1948) e a Cinemateca Uru-
qual o cinema era entendido como um guaya (1952).
produto menor da sociedade industrial, A criação da Cinemateca do MAM
encontrou na defesa do cinema como participa deste segundo momento. Mas,
arte seu principal vetor. Datam deste se por um lado é justo situar sua forma-
momento a criação de alguns dos prin- ção no seio deste movimento mais am-
cipais arquivos de filmes do mundo, plo de uma história do patrimônio e da
como por exemplo, o Reichsfilmarchiv preservação cinematográfica, por outro
de Berlim (1934), a National Film Library nos parece importante compreendê-la
do BFI de Londres (1935), a Film Library dentro de uma dinâmica e conjuntura
do MoMA de Nova Iorque (1935) e a Ci- locais. Conjuntura esta marcada por um
némathèque Française de Paris (1936). amplo e profundo processo de transfor-
Estas quatro instituições fundariam em mação do campo cultural e cinemato-
1938 a Fédération Internationale des gráfico brasileiro.
Archives du Film (FIAF). O período do pós-guerra no Brasil se
Contudo, se essas primeiras “cinema- caracteriza pela consolidação das bases
tecas modernas”7 datam dos anos de de sua indústria cultural. Podemos su-
1930, é no pós-guerra que este gênero blinhar três fatores que contribuíram de
de instituição patrimonial vai conhecer maneira decisiva para o seu desenvolvi-
uma verdadeira expansão. Passado o mento. Em primeiro lugar, a ampliação
conflito mundial, no qual a destruição do circuito comercial de filmes, sobre-
atingiu seu paroxismo na história da hu- tudo com a construção de novas salas
manidade, um discurso patrimonial en- de exibição, fomentada pelo capital es-
trou na ordem internacional, sendo um trangeiro.9 Em segundo, a fundação de
dos seus marcos a criação da Unesco grandes companhias de produção cine-
em 1945. No campo do patrimônio ci- matográfica – Atlântida, Vera Cruz, Ma-
nematográfico, assistimos ao surgimen- ristela etc. –, que constituiu um período
to de inúmeras cinematecas e arquivos, de inflexão definitivo desta indústria.10
como, por exemplo, os Archives Ciné- E, em terceiro lugar, o crescimento do

6 BEZERRA, Laura. A Unesco e a preservação do patrimônio audiovisual. Anais do V Enecult – Encontro de


Estudos Multidisciplinares em Cultura, Salvador, UFBA, 2009.
7 BORDE, Raymond. Les Cinémathèques. Lausanne [Paris]: l’Âge d’homme, 1983. (Cinéma vivant).
8 A Filmoteca do MAM se tornaria a Cinemateca Brasileira em 1956 ao se desligar do Museu de Arte Moderna
de São Paulo. Ver as discussões em torno de sua data de fundação em SOUZA, Carlos Roberto de, op. cit., p. 11.
9 GATTI, André Piero. A distribuição cinematográfica. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2008.
10 KEHL, Maria Rita. Um só povo, uma só cabeça, uma só nação. In: CARVALHO, Elisabeth; KEHL, Maria Rita;
RIBEIRO, Santuza Naves. Anos 70: televisão. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980.

26 arquivo em cartaz A vez do Rio


mercado editorial, com o aparecimento O cinema no museu
de publicações especializadas e a am-
pliação do espaço dedicado ao cinema O dia 7 de julho de 1955 é celebrado
nos grandes veículos de comunicação. como marco de fundação da Cinemateca
De forma concomitante e conecta- do MAM. Naquele dia, ainda sob a deno-
da a essa oxigenação do campo cine- minação de Departamento de Cinema, foi
matográfico, ocorre a emergência do realizada sua primeira sessão de filmes na
movimento cineclubista, em particular sede da Associação Brasileira de Imprensa
na região sudeste do país. Em 1946, (ABI), na Rua Araújo Porto Alegre. Em um
são criados o Clube de Cinema de São cartão com breve texto contendo o pro-
Paulo e o Clube da Faculdade Nacional grama inaugural e informações práticas,
de Filosofia no Rio de Janeiro. No ano os organizadores convidavam os sócios
seguinte, o Clube de Cinema de Belo do museu a comparecerem ao evento. No
Horizonte; em 1948 foi a vez do Círculo programa, três filmes sobre arte, a saber:
de Estudos Cinematográficos (RJ), do Escultura holandesa do fim da Idade Mé-
Clube de Cinema de Santos, do Clube dia, A janela aberta (evolução da paisa-
de Cinema de Fortaleza e do Clube de gem do séc. XV ao séc. XX) e Van Gogh.11
Cinema de Porto Alegre. Estes são al- Sete anos antes, em 1948, o Museu
guns exemplos que demonstram a ex- de Arte Moderna do Rio de Janeiro havia
pansão desta prática que acompanha sido criado. Sua primeira atividade públi-
o retorno e a ampliação de manifesta- ca, entretanto, só foi realizada no ano se-
ções associativas que haviam sido limi- guinte, com a inauguração da exposição
tadas desde o final dos anos 1930 pela Pintura Europeia Contemporânea.12 Fun-
ditadura Vargas. dado como uma Sociedade Civil sem fins
É neste processo de transformação do lucrativos e de caráter privado, o MAM
cinema, do lugar ocupado pela arte cine- tinha em sua base empresários, banquei-
matográfica na sociedade brasileira, que ros, industriais, artistas e altos funcioná-
podemos situar a criação da Cinemateca rios do Estado brasileiro. Essa elite políti-
do MAM. Além disso, esta nova institui- ca, econômica e social era composta por
ção cultural se associa a um outro movi- nomes como Gustavo Capanema, Ray-
mento de renovação ligado às artes plásti- mundo Ottoni de Castro Maya, Walther
cas e à arquitetura que ganhou corpo com Moreira Salles, Niomar Moniz Sodré, Pau-
a formação do Museu de Arte Moderna lo Bitencourt, Rodrigo de Mello Franco,
do Rio de Janeiro. Foi no seio deste novo Mário Pedrosa, Manoel Bandeira e Oscar
museu e de seu modelo museográfico Niemeyer. Castro Maya, importante in-
que a Cinemateca se constituiu. dustrial, empresário e figura proeminente

11 MAM. Convite da sessão inaugural do Departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna do Rio de Janei-
ro. Julho de 1955. (Acervo Cinemateca do MAM).
12 SANT’ANNA, Sabrina Marques Parracho. Construindo a memória do futuro: uma análise da fundação do Mu-
seu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2008. p. 17.

José Quental arquivo em cartaz 27


que abrigaria sua sede, o MAM procu-
rou elaborar uma certa representação
dessa modernidade.
Já o cinema, fosse como manifestação
Capa do artística moderna ou como ferramenta
boletim da de divulgação e mediação cultural, parti-
Cinemateca do cipava neste projeto como um apêndice.
Museu de Arte
Moderna do
Ainda que na ata de fundação do MAM
Rio de Janeiro, estivesse registrada a possibilidade de se
fevereiro “organizar filmoteca” e de se “promover
de 1958.
exibição de filmes de interesse artístico-
Acervo
Cinemateca do cultural”,14 podemos dizer que o cinema
MAM não fazia parte do programa de ações e
atividades consideradas prioritárias pela
direção do museu. Antes, a presença do
cinema naquele documento parecia ser
apenas mera referência à instituição que
da sociedade carioca, foi o primeiro presi- serviu como modelo para o museu cario-
dente do museu. Ele ocupou o cargo até ca, a saber, o Museu de Arte Moderna de
1952, sendo sucedido por Niomar Moniz Nova Iorque (MoMA).15
Sodré, jornalista e esposa de Paulo Biten- No seio do MoMA funcionava, desde
court, dono do jornal Correio da Manhã. 1935, a Film Library, uma das mais pres-
Como nos ensina Sabrina Sant’Anna, tigiadas cinematecas do mundo. A incor-
este projeto, levado a cabo por um se- poração do cinema ao projeto do MoMA
tor da elite brasileira, buscava construir foi resultado de um profundo trabalho
uma certa imagem de modernidade levado a cabo por Alfred Barr e Iris Barry.
para o país – e para ela mesma – a partir A Film Library constituiu-se como um es-
de uma nova perspectiva museográfica. paço privilegiado de interação, até então
A sociedade brasileira era entendida inédito, entre o museu de arte e o cine-
“como matriz geradora de modernida- ma. Por um lado, o cinema começava a
de” e o museu “como lugar de novas ganhar espaço e reconhecimento como
ações e intervenções nesse mundo”.13 uma arte moderna e, por outro, ele se
Por meio de seu projeto museográfico, estabelecia como uma potente ferra-
da concepção de suas exposições, da menta de mediação e interação. Rapi-
formação de sua coleção, bem como do damente, a Film Library passou a ser um
próprio projeto arquitetural do prédio departamento de destaque na estrutura

13 Ibidem, p. 18.
14 MAM. Ata da Constituição do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 3/5/1948. Livro de Atas do Museu
de Arte Moderna. (Acervo MAM).
15 SANT’ANNA, Sabrina Marques Parracho, op. cit., p. 18

28 arquivo em cartaz A vez do Rio


do MoMA, cumprindo um importante nome Ruy Pereira da Silva. No início de
papel na missão institucional da entida-
1955, introduzido pelo ex-diretor Castro
de. Dentro do que Haidee Wasson deno- Maya, Pereira da Silva procurou a direto-
mina “mass museology”,16 o cinema de- ria do museu para apresentar seu projeto
sempenhava uma função de ligação, de de inclusão do cinema entre as atividades
ponte entre o museu e o público, entre a
desenvolvidas pela entidade. Persuadida
sociedade nova-iorquina e o MoMA. pela proposta, mas sobretudo pela reco-
Porém, como veremos, ao contrário mendação de Castro Maya, a então dire-
de sua congênere americana, o desen- tora do museu, Niomar Moniz Sodré, in-
volvimento do setor de cinema do MAM dicou um dos conselheiros do MAM para
não foi resultado de um processo inter-supervisionar o projeto, Antônio Moniz
no. No seio de nossa elite econômico- Vianna, o então mais notório crítico ci-
cultural, uma elite supostamente escla-nematográfico do país. Quando se fala
recida e engajada em um novo projeto da história da criação da Cinemateca do
de modernidade, o cinema ainda não MAM, é muitas vezes o nome de Moniz
era imbuído de um reconhecimento cul- Vianna que é lembrado, porém sua par-
tural capaz de inscrevê-lo nos campos ticipação neste primeiro momento é me-
de ações privilegiadas pelo museu. nos relevante que a de Pereira da Silva.
Ainda que a arte cinematográfica esti- Segundo o próprio Pereira da Silva,17
vesse começando a ocupar um novo lugar foi justamente frequentando a Film Li-
brary do MoMA e a Cinémathèque Fran-
na sociedade brasileira, sua valorização
como objeto digno de ser exposto ou in-çaise durante uma grande viagem feita
aos Estados Unidos e à Europa que ele
corporado a um museu foi construída len-
tamente. A percepção do cinema como descobriu o universo das cinematecas.
um mero produto industrial, sem valor Lá, ele pôde ver como eram desenvol-
artístico e historicamente compreendi- vidos os trabalhos de programação e de
do como uma diversão menor, perdurou formação de público realizados por essas
ainda por algum tempo. E, justamente, ainstituições, bem como as atividades de
criação da Cinemateca do MAM consti- manutenção e conservação de uma cole-
ção. Mas, especialmente, Pereira da Sil-
tuiu um passo importante para a transfor-
mação desta perspectiva. va foi cativado pela dimensão pública da
atividade, pelo alcance que essas duas
Um fundador esquecido cinematecas tinham em suas respectivas
comunidades. Estas experiências trans-
O processo de incorporação do cinema formaram profundamente o jovem bra-
ao projeto museográfico do MAM entrou sileiro que retornou ao Brasil tendo duas
em pauta com um jovem cineclubista de ambições, o “Itamaraty” e o cinema.

16 WASSON, Haidee. Museum Movies: the Museum of Modern Art and the birth of art cinema. Berkeley; Los
Angeles: University of California Press, 2005.
17 Depoimento de Ruy Pereira da Silva ao autor. Brasília-DF, 30 e 31 de março de 2010.

José Quental arquivo em cartaz 29


Se a carreira na diplomacia brasileira oferecido de forma gratuita. Outro ele-
não teve continuidade, o cinema passou mento importante era que a ABI abrigava
a ocupar um lugar importante na vida neste mesmo auditório diferentes tipos
de Ruy Pereira da Silva. Seu envolvimen- de manifestações culturais, dentre elas
to mais direto com a área se deu justa- cineclubes, o que para os organizadores
mente a partir da aproximação com o era visto como um facilitador para atrair
Museu de Arte Moderna, onde buscou e encontrar seu público.
emular aquilo que tinha visto e aprendi- Ao longo dos primeiros meses de ati-
do no exterior. Em um primeiro momen- vidade, foram apresentadas seis sessões
to, sua proposta de juntar o museu de regulares no auditório da ABI. Nestas
arte moderna e o cinema se concretizou projeções, que contaram com o apoio
pela sugestão da organização de proje- de consulados e embaixadas estrangei-
ções cinematográficas que aproximasse ras e da Filmoteca do MAM de São Pau-
os dois universos e que criasse um pon- lo, foram exibidos filmes documentários
to de encontro entre os interessados. e algumas animações. Além da primeira
Proposta esta que muito se assemelha- sessão com os filmes já mencionados,
va à organização de um cineclube. foram apresentadas as seguintes obras:
Pen point percussion (Norman McLaren,
O Festival 10 anos de filmes de arte 1951), Dots (Norman McLaren, 1940),
Loops (Norman McLaren, 1940), Ge-
Antes de ocupar o belo edifício proje- orges Braque (André Bureau, 1950), A
tado por Afonso Eduardo Reidy no Ater- esperança é eterna (Marcos Margulies,
ro do Flamengo, o MAM funcionou de 1954), Marcha do cinema (produção da
forma provisória em dois endereços. Em Film Library?) e O homem de Aran (Ro-
primeiro lugar no edifício Boavista, na Av. bert Flaherty, 1934). Esta programação
Presidente Vargas, e, posteriormente, na evidenciava, por um lado, a priorização
então sede do Ministério da Educação e de filmes que abordassem temas da his-
Cultura, o palácio Gustavo Capanema. tória da arte e, por outro, uma tentati-
Quando se iniciaram as atividades do va de estabelecer uma rede de relações
novo setor de cinema, era neste segun- com órgãos e entidades que possuíam
do local que o museu funcionava. Po- ações culturais na cidade.
rém, não havia ali espaço e condições Paralelamente às sessões, foi organi-
para abrigar o novo departamento. Por zado, em parceria com a Filmoteca de
esta razão, buscou-se outro local para as São Paulo, um amplo festival de filmes.
projeções de cinema. Como vimos, foi na O Festival 10 anos de filmes de arte exi-
ABI que Pereira da Silva encontrou este biu mais de 120 filmes de quase duas
espaço. A escolha do auditório da ABI foi dezenas de países e representou um
condicionada por diversos fatores, den- ponto importante dentro da estratégia
tre eles a proximidade com o Palácio Ca- de Pereira da Silva de legitimar o setor
panema, a existência de condições téc- de cinema do MAM e no processo de
nicas para exibição, além de ele ter sido construção das bases da cinemateca.

30 arquivo em cartaz A vez do Rio


Com a realização deste festival, Pe- trução da cinemateca. Acreditando no
reira da Silva perseguia três objetivos.modelo de uma programação diferencia-
Primeiramente, o de traçar uma linha da, defendeu junto à diretoria do museu
de distinção em relação aos programas a organização de uma “programação ex-
apresentados em cineclubes e outros es- clusiva de filmes primitivos, clássicos e ex-
perimentais”.18 Apesar de essa proposta
paços culturais da cidade. Pois, se era be-
néfico dividir o espaço da ABI com cine-configurar o que seria uma programação
típica de uma cinemateca, uma vez que
clubes, Pereira da Silva entendia que era
preciso criar uma identidade e oferecer privilegiava filmes silenciosos, clássicos
algo que os mesmos não podiam. Desta da história do cinema e filmes alternati-
vos e experimentais, ela implicava uma
forma, o segundo objetivo foi o de desta-
car este novo espaço como um ponto de grande dificuldade para sua execução: o
encontro na construção de uma cultura acesso às copias desses filmes.
cinematográfica da cidade que reunisse Na medida em que um filme perdia seu
valor comercial, fosse por não encontrar
tanto os cinéfilos e cineclubistas, quanto
um público que estaria mais interessado mais espaço no mercado, fosse por ter
na temática dos filmes. E, por último, seus direitos de exploração encerrados,
num plano institucional, evidenciar paraacabava sendo vendido como matéria-
a direção do MAM o lugar que o cinema prima para outras indústrias ou destruí-
podia cumprir tanto na dinâmica culturaldo. Neste sentido, o acesso aos chama-
da cidade, quanto na atração de novos dos filmes “primitivos” ou “clássicos”
públicos para o museu. podia ser bastante complicado, depen-
Essa função de vitrine para novos dendo da manutenção de boas relações
públicos foi bem sucedida e resultou com as distribuidoras de filmes no país e
na renovação do apoio da diretoria da parceria de outras instituições como
do MAM a Ruy Pereira da Silva e num embaixadas, arquivos e cinematecas es-
maior investimento no novo departa- trangeiros, além de colecionadores. O
mento. Com este investimento, foi pos- mesmo para os filmes experimentais cuja
sível ampliar o número de sessões, que circulação restrita a poucas cópias dificul-
passaram a ser quinzenais, e multiplicartava enormemente o acesso.
os títulos apresentados, que assumiram Tendo consciência dessas dificuldades
o formato de ciclos retrospectivos. e empenhado em resolvê-las, Ruy Pereira
da Silva defendeu uma renovação do pro-
A consolidação do projeto: a vez do Rio jeto museográfico do museu, no qual o
cinema obteria mais espaço e investimen-
Aproveitando-se desse contexto favo- to. Esta renovação passava, sobretudo,
rável, Ruy Pereira da Silva empenhou-se pela possibilidade do setor constituir uma
em dar continuidade ao projeto de cons- coleção de filmes e, consequentemente,

18 SILVA, Ruy Pereira da. Relatório de atividades cinematográficas do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, 17 set. 1956. (grifos no original) (Acervo Cinemateca do MAM-RJ).

José Quental arquivo em cartaz 31


ter uma estrutura para sua guarda e exi- Flávio Manso Vieira se juntariam à Ruy
bição. Ou seja, Pereira da Silva desenhava Pereira da Silva neste processo.
ali a efetiva transformação do departa- Porém, se a alteração do projeto arqui-
mento em uma cinemateca, que seria en- tetônico, a publicação do boletim e o for-
tão batizada de Cinemateca do Museu de talecimento da equipe constituíram ações
Arte Moderna do Rio de Janeiro. importantes na construção da cinema-
Para além de uma mudança de deno- teca, duas outras iniciativas foram ainda
minação, a transformação se concretizou mais essenciais.
em diferentes ações que ampliaram e A primeira delas foi a filiação da Ci-
aprofundaram as atividades que vinham nemateca do MAM à Federação Inter-
sendo desenvolvidas. Estas mudanças de- nacional de Arquivos de Filme (FIAF).
ram corpo para aquilo que Pereira da Silva Além do prestígio que agregava a par-
entendia por cinemateca, que abarcaria ticipação em uma entidade internacio-
desde práticas de conservação até ativi- nal, a vinculação à FIAF simbolizava um
dades de valorização e difusão de filmes. reconhecimento pelos pares do projeto
Por exemplo, o projeto arquitetônico que ganhava forma no Rio de Janeiro.
do prédio sofre uma importante alte- Igualmente, participar deste circuito
ração: a planta original do edifício que de cinematecas significava ter acesso a
seria erguido no Aterro do Flamengo foi uma rede internacional de troca de fil-
acrescida de um auditório, uma bibliote- mes que, como nos explica Caroline Fri-
ca e uma área para a guarda e conser- ck, era um dos “principais benefícios”19
vação de uma futura coleção de filmes. procurados pelas cinematecas ao asso-
Outra ação importante é a criação de um ciarem-se àquela entidade.
boletim mensal específico para a área A segunda proposta foi a organização
de cinema do museu, cuja publicação da 1a Mostra Internacional da Arte Cine-
cumpria uma dupla função: por um lado, matográfica − Festival História do Cinema
servir como um informativo acerca das Americano. Realizado entre julho e agos-
atividades da cinemateca e, por outro, to de 1958, o festival contou com ampla
ocupar um espaço de revista especiali- cobertura da mídia e um grande sucesso
zada que tratava de questões de crítica, de público, sobretudo pela participação
estética e história do cinema. de diversas celebridades do mundo do
Neste mesmo momento, uma parce- cinema. Se alguns veículos da imprensa
ria com o Centro de Cultura Cinemato- falavam da “maior mostra cinematográ-
gráfica resultou na incorporação desse fica no Rio”,20 dando destaque aos filmes
cineclube e de seus organizadores para projetados, a maior parte preferiu desta-
o quadro da Cinemateca. Carlos Amaral car o glamour e a presença de algumas
da Fonseca, Armando Arêas Coimbra e estrelas de cinema: “Pré-estreia mundial

19 FRICK, Caroline, op. cit., p. 106.


20 OTONNI, Décio Vieira. A maior mostra cinematográfica no Rio. Diário Carioca, 9 mar. 1958.

32 arquivo em cartaz A vez do Rio


Festival A História do
Cinema Americano. Na
foto, Antônio Moniz
Vianna, José Sanz,
Margareth Herrick e Ruy
Pereira da Silva. Rio de
Janeiro, 1958. Acervo
Cinemateca do MAM

vai trazer Hollywood ao Rio”21 ou “Artis- mateca, que iam desde a programação
tas de Hollywood deverão visitar o Brasil de filmes e a concepção de uma expo-
durante o Festival de Cinema”.22 sição até a preservação do patrimônio.
A ideia do evento surgiu dos contatos No que toca à programação, o festival
estabelecidos com a Embaixada dos EUA concebeu duas linhas de filmes. Em pri-
e com as empresas norte-americanas de meiro lugar, uma retrospectiva histó-
distribuição de filmes que atuavam na ci- rica, que permitiu a construção de um
dade do Rio de Janeiro, e sua realização panorama histórico da produção cine-
contou com o apoio direto da Motion matográfica norte-americana desde o
Pictures Association of America e da Film início do cinema. Em segundo lugar, um
Library do MoMA. ciclo de pré-estreias que serviu como
Esta primeira mostra23 articulava di- espaço para a apresentação de novos
versas faces da atividade de uma cine- filmes das companhias americanas que

21 Pré-estreia mundial vai trazer Hollywood ao Rio. Última Hora, 24 mai. 1958.
22 Artistas de Hollywood deverão visitar o Brasil durante o Festival de Cinema. Correio da Manhã, 15 jun. 1958.
23 Duas outras mostras foram realizadas seguindo esse mesmo modelo: o Festival A História do Cinema Francês
em 1959 e o Festival A História do Cinema Italiano em 1960.

José Quental arquivo em cartaz 33


apoiavam o evento. Ao lado das proje- Se a realização desse festival represen-
ções foi organizada uma ampla exposi- tou a materialização da cinemateca ide-
ção que completou o panorama histó- alizada por Pereira da Silva, ela marcou
rico construído pelos filmes através de também o fim de seu período à frente do
fotografias, objetos, aparelhos cinema- projeto. Pouco depois do encerramento
tográficos, desenhos, figurinos, livros, do festival, Ruy Pereira da Silva e a pri-
revistas, programas etc. meira equipe da cinemateca deixariam a
A problemática da preservação de entidade. Embora soubesse que sua rela-
filmes foi diretamente abordada em ção com o crítico e conselheiro do museu
um seminário dedicado exclusivamen- Moniz Vianna e com a própria diretoria
te a essa discussão. O encontro inédito do MAM vinha apresentando desgastes,
contou com a participação de diversos sobretudo durante a fase de organiza-
especialistas, cineastas e produtores, ção do festival, Pereira da Silva não es-
dentre eles o conservador-chefe da Film perava a notícia de seu desligamento da
Library do MoMA, Richard Griffith, o Cinemateca. Inclusive, ele teria tomado
cineasta italiano Roberto Rossellini, o conhecimento do fato por meio de uma
conservador-chefe da Cinemateca Bra- nota publicada no Correio da Manhã do
sileira, Paulo Emílio Salles Gomes, e o dia 28 de outubro de 1958.
pioneiro produtor Adhemar Gonzaga. Entretanto, a saída de seu idealizador
Em A vez do Rio,24 Paulo Emílio Sal- e de seus colaboradores mais próximos
les Gomes fez uma análise do festival não significou a interrupção das ativida-
e sobre “o desejo do grupo carioca de des ou uma alteração profunda de dire-
criar uma cinemateca”. Para o diretor cionamento da entidade. Ao contrário, a
da Cinemateca Brasileira, depois de São nova equipe, encabeçada pelo veterano
Paulo era a vez do Rio desenvolver uma crítico de cinema José Sanz, reafirmou
cinemateca e contribuir para a preser- muitos dos compromissos já estabeleci-
vação de filmes no Brasil e para forma- dos e empreendeu um aprofundamento
ção de uma cultura cinematográfica. do projeto inicial da cinemateca.
Com isso, ele entendia que “em matéria Desta forma, se os primeiros três anos
de cinematecas”, o Brasil estava próxi- de atividade possibilitaram a construção
mo aos outros países, o que não signi- e a consolidação de um projeto, a história
ficava que o trabalho estava terminado. da Cinemateca do MAM teve ainda muito
Ao contrário, Salles Gomes sabia que capítulos, repletos de percalços, de muita
ainda existia muito a ser feito para que luta e criatividade em prol da preservação
o cinema deixasse de ser “corpo estra- de filmes no Brasil. Hoje, com sessenta
nho” no universo dos museus e demais anos, a Cinemateca segue viva e atuante. E
instituições de guarda. sua história precisa continuar a ser escrita.

24 GOMES, Paulo Emílio Salles. A vez do Rio. In: Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e
Terra; Embrafilme, 1981. v. 1.

34 arquivo em cartaz A vez do Rio


Carmen Santos, ao
contrário das atrizes
da sua época, não
se contentava em
aparecer apenas na
frente das câmeras.
Sua carreira como
produtora incluiu

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filmes de Humberto
Mauro como Favela
dos meus amores
(1935), Cidade Mulher
(1936), Argila (1940),
além de Inconfidência
Mineira (1940), que
protagonizou, produziu
e dirigiu. Correio da
Manhã

Carmen Santos e Ana Pessoa


o cinema brasileiro: Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade
trajetórias indeléveis Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora da Fundação
Casa de Rui Barbosa e autora de Carmen Santos: cinema
dos anos 20 (Aeroplano, 2002), entre outros livros.

Carmen Santos permanece, transcor- gráfica nacional e sua adesão pública pela
ridos 63 anos de sua morte, em setem- inserção feminina na sociedade.
bro de 1952, uma referência indelével da Ela atuou em sete filmes no período
trajetória do cinema brasileiro, merece- silencioso – Urutau (1919), de William
dora de reiteradas recordações e home- Jansen, A carne, de Leo Marten (1924,
nagem. Sua contribuição teve início em inacabado), Mademoiselle Cinema, de
1919, como atriz, mas Carmen Santos não Leo Marten (1924, inacabado), Sangue
se deixou restringir ao papel de musa e mineiro (1929), de Humberto Mauro, Li-
se engajou na construção de uma ativa mite (1931), de Mário Peixoto, Onde a
carreira de cineasta. Por mais de trinta terra acaba, de Mário Peixoto (1931, ina-
anos, ela atuaria diretamente na realiza- cabado), e Onde a terra acaba (1933), de
ção de seus filmes, escolhendo projetos, Otávio Gabus Mendes. Já na fase sonora,
estrelando, contratando diretores, pro- ela protagonizou e produziu três filmes
duzindo, gerenciando companhias e até dirigidos por Humberto Mauro – Fave-
mesmo dirigindo um filme. Somam-se a la dos meus amores (1935), Cidade mu-
essas iniciativas sua atuação política pela lher (1936) e Argila (1940). Além disso,
consolidação de uma indústria cinemato- ela empenhou-se na construção de um

arquivo em cartaz 35
grande estúdio, a Brasil Vita Filmes, pro- duras jornadas nos ateliês de costura e
tagonizou, produziu e dirigiu Inconfidên- balcões dos magazines para, amparada
cia mineira (1948), um ambicioso filme pela paixão de um jovem empresário, se
histórico, além da idealização de um sem tornar uma estrela do incipiente cinema
número de projetos. silencioso brasileiro. Por essa ocasião, Car-
Em consequência da perda da maio- men conheceu Antonio Lartigau Seabra,
ria desses filmes, em desastres e extra- jovem de família de origem portuguesa,
vios, os testemunhos cinematográficos de empresários do setor têxtil. Nove anos
de sua atuação se restringem a Sangue mais velho, educado na Europa, sportman
mineiro (1929) e a uma breve participa- apaixonado por cavalos, carros, barcos e
ção em Limite (1931) e Argila (1940).1 aviões, Antonico se tornaria o principal in-
Contudo, por intermédio de farto mate- centivador e patrocinador dos projetos da
rial publicitário e jornalístico sobre suas atriz. Apesar da objeção dos Seabra, e a
iniciativas, divulgados em revistas e jor- consequente estigmatização de Carmen,
nais, é possível resgatar muito dessa pe- o relacionamento perduraria: eles teriam
culiar trajetória. dois filhos e se casariam na maturidade.
Nascida em 1904, em Vila Flor, Portu- É nessa circunstância do namoro com
gal, a pequena Maria do Carmo emigrou Antonico que, em junho de 1920, Palcos
com a família para o Brasil aos oito anos. e Telas apresenta, com o título “Uma fu-
Em 1919, ela foi selecionada, dentre ou- tura estrela: Carmen Santos”,2 a entrevis-
tras dezenas de jovens que atenderam à ta com uma jovem esfuziante que se diz
chamada para testes, para ser protagonis- predestinada para o cinema: “Nasci para
ta da primeira produção da Omega Filme, o cinema; parto para os Estados Unidos, a
Urutau (1919), sob a direção de William cumprir o meu destino”.3 Maria do Carmo
Janssen, um americano de passagem Santos ou Carmen Santos, nome que ado-
pelo Brasil, que conquistou a adesão de tara para sua carreira artística, impressio-
comerciantes para criar a companhia. O na o redator:
filme, apesar de elogiado em sessões es-
peciais para jornalistas, no Rio de Janeiro [...] Bonita, “mignone”, senhora de lindos
e em São Paulo, não conseguiu espaço no olhos expressivos, que possuem o mesmo
circuito de exibição, já agendado pelas encanto quando se mareiam de pranto e
companhias estrangeiras. A produtora foi quando brilham com provocante malícia,
fechada e a única cópia do filme desapa- a senhorita Carmen Santos fala com volu-
receu com o seu diretor. bilidade e não pode estar quieta. Durante
Determinada a seguir sua carreira no cerca de uma hora nos deleitou com a sua
cinema, Carmen escapa ao destino das alegria picante, sua natural petulância, suas

1 Fragmentos de Onde a terra acaba, de Mário Peixoto, e de Inconfidência Mineira, de Carmen Santos, foram
utilizados em documentários como Panorama do cinema brasileiro e Carmen Santos, de Jurandyr Noronha, O
homem do Morcego, de Ruy Solberg, e Onde a terra acaba, de Sérgio Machado.
2 PALCOS E TELAS. Rio de Janeiro, ano III, n. 116, 10 jun. 1920.
3 Idem.

36 arquivo em cartaz Carmen Santos e o cinema brasileiro


ideias e seus projetos traçando de si mesma seus projetos e iniciativas, para a qual
um endiabradíssimo retrato moral.4 conta com o interesse das revistas ilus-
tradas, assinalando uma profunda cum-
A matéria é ilustrada com poses da plicidade entre os veículos e as iniciativas
jovem representando os tipos femininos cinematográficas nacionais. Dentre as re-
em voga no cinema silencioso: a jovem in- vistas, se destacam Para Todos e Selecta,
trépida e aventureira, de calça comprida em que os repórteres-redatores Adhemar
e chapéu; a sonhadora, de vestido e guar- Gonzaga e Pedro Lima, respectivamente,
da-sol brancos; e a sedutora, com um mo- eram grandes incentivadores das realiza-
derno pijama e pose lânguida. Ela conta ções locais e da implantação de uma in-
sua estreia e seu empenho em continuar dústria de cinema no país.
a carreira cinematográfica: A produção nacional de cinema daque-
le momento tinha como veio principal o
Fechada a Omega, não me conformei em registro de fatos políticos e sociais: par-
não ser estrela. Resolvi partir para os Esta- tidas esportivas, paradas militares, lan-
dos Unidos. Vou só e tenho tanta vontade çamentos de navios, inaugurações, cons-
de triunfar que creio firmemente no meu truções de estradas, e mesmo revoltas e
triunfo. Ah! Não faz ideia como tenho trei- revoluções são captadas pelas câmeras;
nado [...]. Em casa, até mesmo na rua, re- major Thomaz Reis e Silvino Santos fil-
presento a cada instante. [...] sigo o meu mam hábitos e costumes da Amazônia, a
destino, que nasci para o cinema e de nada Exposição de 1922 provoca a encomenda
mais quero saber. [...] Parto só, aos 16 anos de filmes sobre fazendas e a riqueza de
falando quase nada o inglês [...] Logo que seus rebanhos e plantações, assim como
me faça compreender entrarei para um es- de fábricas e seu processo de produção.
túdio a dentro, digo ao que vou e o que que- A produção de filmes de ficção, por outro
ro e hei de ser aceita em qualquer deles.5 lado, ainda é ocasional. Em São Paulo, al-
guns cineastas como Gilberto Rossi e José
Carmen adota o discurso do estrelismo Medina realizam alguns filmes posados,
e recria os fatos de sua vida pessoal e pro- que no Rio são realizados por Luiz de Bar-
fissional, ocultando sua origem humilde e ros. A partir de 1923, a atividade se am-
assumindo modos segundo o ideário dos plia. Surgem focos de criação em diversos
anos 1920 – da jovem livre, arrojada, es- pontos do país: filma-se em Campinas,
portiva, que quer conquistar por si mes- Recife, Belo Horizonte, no interior de Mi-
ma seus desejos e aspirações. nas Gerais e do Rio do Grande do Sul.
A viagem anunciada na entrevista não É nesse período que Carmen cria a
se concretiza e, a partir da década de Film Artístico Brasileiro (FAB) e ocupa as
1920, Carmen retoma sua carreira e dá páginas das principais revistas para di-
início a uma permanente divulgação de vulgar dois polêmicos projetos: A carne,

4 Idem.
5 Idem.

Ana Pessoa arquivo em cartaz 37


de Júlio Ribeiro, e Mademoiselle Cinema, Pode trabalhar. A curiosidade cresceu, mul-
de Benjamin Costallat, romances sobre tiplicou-se. Com o corpo quase abstrato, os
jovens envolvidas com o desabrochar do vestidos idem, idem, de bengala e Abdulla n.
sexo, considerados excessivamente las- 5, Carmen Santos, cocaína disfarçada em ma-
civos para os padrões da época. Apesar riposa, tem conseguido, só de passar pelas
das filmagens não progredirem, a atriz ruas, a melhor publicidade das suas fitas...6
mantém o interesse dos leitores por
meio da publicação insistente de notas e Após um período de recolhimento,
de fotografias em poses sensuais e pro- quando nasce sua primogênita, Carmen
vocantes. Essa estratégia lhe vale uma se associa ao grupo de Cataguases para
popularidade até então incomum para as estrelar, sob a direção de Humberto
atrizes brasileiras. As produções, porém, Mauro, Sangue mineiro (1929), no pa-
não chegaram a ser concluídas. pel de uma jovem ingênua e sofredora.
Em 1925, ainda que não tenha sido A experiência a entusiasma a desenvol-
vista na tela, Carmen Santos é uma ce- ver com Adhemar Gonzaga o projeto
lebridade do cinema nacional. Em artigo Lábios sem beijos, mas as filmagens são
na revista Para Todos, Álvaro Moreira lhe interrompidas, e o filme, sob a direção
rende uma homenagem: de Mauro e novo elenco, é concluído
sem Carmen.
É o tipo da fotogênica. Quem lhe vê, nas re- Em 1930, após o nascimento de seu se-
vistas, os retratos de cabeça julga que Car- gundo filho, a atriz posa para um peque-
men Santos tem, pelo menos, a altura de no teste para Mário Peixoto, que acabaria
Nita Naldi. Pois é do tamanho de Mary Pick- sendo agregado à versão final de Limite
ford, e mais magra. Toda magra. Pedacinho (1930). Em seguida, Carmen e Mário se
de mulher. Às vezes, parece uma ponta de ci- unem para realizar um roteiro que ele de-
garro, desses que ela traz quando surge por senvolvera para ela, Onde a terra acaba.
aqui, com pétala de rosa príncipe-negro na O argumento narra a história de uma es-
biqueira. Outras vezes, nos dias em que deixa critora amarga e decidida que se refugia
mais cedo o estúdio, dá vontade de aspirá-la, em uma ilha para escrever, quando rece-
tanto se assemelha aos pequenos vidros de be o apoio desinteressado de um jovem
perfumes espalhados no mundo pelo sírio simples e dedicado, por quem se apaixo-
Bichara... Foi para ela que inventaram, há na. A temporada é perturbada pelo seu
muitos anos, o qualificativo de “feixe de ner- ex-amante; Eva deixa a ilha e, tempos
vos”. E existe outra palavra que a define de depois, lança um livro narrando a expe-
cima a baixo: teimosa. Entendeu de fazer a riência. Com locação no extremo de um
cinematografia brasileira. É muito capaz de istmo, a paradisíaca Marambaia, a produ-
fazê-la. Eis aqui os seus últimos propósitos: ção exigia um complexo esquema de pro-
– Estou cansada de ouvir os outros. De agora em dução para a acomodação e manutenção
diante, não escuto mais ninguém. Vou trabalhar. da equipe. Alguns meses depois de ini-

6 MOREIRA, Álvaro. Carmen Santos. Para todos, Rio de Janeiro, ano VIII, n. 321, 7 fev. 1925.

38 arquivo em cartaz Carmen Santos e o cinema brasileiro


ciada, entre atrasos e contratempos, a
filmagem é interrompida em consequên-
cia de desentendimentos entre a atriz-
produtora e o diretor. Anos mais tarde,
eles cogitam em retomar o projeto, mas
Mário jamais realizaria outro filme.
Carmen, com o apoio do estúdio de
Adhemar Gonzaga, a Cinédia, prepara
um projeto substituto, baseado em Se-
nhora, de José de Alencar, mas manten-
do o título da produção anterior, que já
fora intensamente veiculado na impren-
sa. O novo filme é dirigido por Otávio Ga-
bus Mendes e tem cenários e fotografias
primorosos, mas sua sonorização ainda
é apenas musical, com os diálogos ins-
critos em cartelas. Onde a terra acaba
estreia em 1934 e é recebido com indi-
ferença pelo público, já cativado pelas
produções sonoras americanas. O insu-
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cesso, porém, não a desestimula.


O cinema entrara na pauta do gover-
no instituído pela Revolução de 1930,
tanto por viés educativo como veículo
de divulgação de valores nacionais. Em
1932, foi realizada a I Convenção Cine-
matográfica Nacional, promovida pelos
Parte do elenco do cultuado filme Limite, exibidores para estabelecer uma pau-
de Mário Peixoto, Carmen atuou em oito
filmes no total. Rio de Janeiro, 11 de ta de reivindicação. Em sua interven-
dezembro de 1935. Correio da Manhã ção, Carmen Santos, a única produtora
a participar – porque o evento é visto
com reserva pelos demais produtores –,
conclama pelo reconhecimento da tra-
jetória do cinema produzido no país:

Quero falar do seu passado heróico! Por-


que cinema brasileiro tem o seu passado!
Tem a sua história − história de sofrimentos
obscuros e sacrifícios anônimos... Cinema
brasileiro não é obra de improviso, como se
julga. Tem anos de trabalho, anos de luta,

Ana Pessoa arquivo em cartaz 39


anos de abnegação! Nasceu do nada, do prios filmes sem caráter cientifico são tam-
esforço próprio, quase sobre-humano, tem bém instrutivos. Educam o bom gosto e re-
vivido de um grande ideal e progredirá com velam a geografia e os costumes de povos
a própria evolução do Brasil! [...] diversos. Mostram a vida das grandes cida-
[...] o cinema brasileiro existe, e existirá, des e dos diferentes centros sociais. Um fil-
livre e independente, enquanto existir um me é sempre uma lição. Lição de psicologia.
punhado de lutadores infatigáveis, cuja te- Lição de moral. Todo filme tem um fim ho-
nacidade se fortaleceu no próprio sofrimen- nesto: civilizar, instruir, educar. Os próprios
to. Cinema brasileiro é uma questão moral, filmes de enredo demonstram a vitória so-
e não material. Cinema brasileiro é pobre, bre o vício. O Brasil precisa dos filmes edu-
é livre e independente! Há de ser rico e cativos para a instrução de seu povo.9
poderoso, mas pelo seu trabalho, pelo seu
próprio esforço! Cinema brasileiro quer ter Em outubro de 1934, motivada pelas
a honra de trabalhar pelo Brasil desinteres- novas perspectivas de incentivo gover-
sadamente como bom brasileiro! namental ao cinema brasileiro, Carmen
Cinema brasileiro só precisa do estímulo do funda uma nova companhia, a Brasil Vox
povo brasileiro!7 Filme – mais tarde, Brasil Vita Filmes,
tendo Humberto Mauro como colabora-
Ela participaria também da criação dor técnico. A empresa produz, de ime-
da Associação Cinematográfica dos Pro- diato, alguns complementos nacionais,
dutos Brasileiros (ACPB), em 1934, e do atendendo à oportunidade surgida com
movimento, liderado pelo antropólogo a obrigatoriedade de exibição de com-
prof. Edgar Roquette-Pinto,8 para a cria- plementos nacionais, recém-instituída, e
ção do cinema educativo. Em entrevista logo recebe seus equipamentos para gra-
para a Rádio Sociedade, dirigida pelo vação de filmes sonoros.
professor, ela diz: Em busca da conquista de público,
Carmen Santos orienta seus projetos,
O cinema é o livro do futuro. assim como os demais produtores na-
Ganha-se mais vendo um filme do que len- cionais, tendo como referência os mo-
do uma biblioteca. E nem todos têm tempo delos consagrados do cinema americano
para ler. E as bibliotecas não só estão fora do – musicais cômicos e ligeiros, dramas ro-
alcance fácil do povo como a aquisição de li- mânticos, adaptações literárias e recons-
vros se torna proibitiva às classes pobres. [...] tituições históricas – na expectativa de
Um filme é uma lição que fica gravada sem viabilização de uma produção contínua
esforço na memória do espectador. Os pró- de filmes de enredo.

7 CINEARTE. Rio de Janeiro, ano VII, n. 308, p. 8, 20 jan. 1932.


8 Edgar Roquette-Pinto (1884-1954) foi antropólogo, ex-diretor do Museu Nacional, onde organizou coleção
de filmes científicos, membro da Academia Brasileira de Letras, ensaísta e fundador, em 1923, da primeira emis-
sora de rádio do Brasil.
9 A SCENA MUDA. Rio de Janeiro, ano 11, n. 571, p. 8, 1 mar. 1932.

40 arquivo em cartaz Carmen Santos e o cinema brasileiro


Favela dos meus amores (1935) é o uma olaria em um ateliê de cerâmicas ar-
primeiro longa-metragem da nova fase, tísticas. Na busca de um sentido para sua
com um enredo romântico a partir de ar- vida e seduzida pela arte do artesão, ela
gumento de Henrique Pongetti, e direção conquista o homem e o transforma, sem
de Humberto Mauro, números musicais e perceber que o estaria afastando de seu
ambientação em uma favela da cidade, “e meio social e afetivo. Ao final, ela, sacrifi-
mostra o Rio pela face pitoresca e quase cando seus sentimentos, o rejeita.
desconhecida da vida humilde e dolente Com roteiro de Brasil Gerson, segundo
do ambiente onde nasce o samba [...]”. sugestões de Carmen para a definição da
Carmen é uma abnegada e elegante pro- protagonista, e o apoio da câmera sutil de
fessora da favela que desperta o amor de Edgar Brasil para as sequências oníricas,
dois homens: o estudante, que ali monta- o filme inova na representação feminina
ra um cabaré, e o sambista. O filme é um no cinema brasileiro. Como síntese dessa
sucesso, e dá impulso à realização de uma inovação, tem-se a cena em que Luciana,
nova produção: um filme musical. subvertendo a tradicional prerrogativa
Cidade mulher (1936) tem ainda uma masculina da conquista, rouba um beijo
vez argumento de Henrique Pongetti e de Gilberto – o que seria destacada no
direção de Mauro. Carmen interpreta a cartaz de divulgação.
filha de um empresário teatral falido, que Nesse meio tempo, Carmen conclui a
pede ajuda a seu namorado, um talentoso construção, em um amplo terreno na Rua
compositor, para produzir uma revista de Conde de Bonfim, do estúdio da Brasil Vita
sucesso. A música título é de Noel Rosa, Filmes, com modernas instalações e novos
cantada por Orlando Silva, e o elenco equipamentos para atender às exigências
reúne comediantes experientes e belas técnicas dos filmes sonoros. Com isso, a
bailarinas, como as Irmãs Pagãs. Os cená- companhia se consagra como uma das
rios, armados no porão do Teatro Cassino principais produtoras de cinema do país.
Beira-Mar,10 reproduzem lugares emble- Carmen dá, então, início à preparação de
máticos da cidade, como a praia de Copa- um ambicioso projeto: a realização de uma
cabana e a Lapa. A sequência final, fiel à fiel reconstituição cinematográfica do epi-
estrutura dos musicais, é uma “apoteose” sódio histórico da Inconfidência Mineira.
“ a bordo” do navio SS Saudade, tendo ao Para a preparação de Inconfidência
fundo o Pão de Açúcar. Mineira, ela se cerca de consultores e es-
A parceria de Carmen e Humberto Mau- pecialistas para garantir a fidedignidade
ro produz ainda Argila, realizado de 1938 a do enredo, cenários e figurinos. Carmen
1940, mas lançado somente em 1942. Car- irá interpretar Bárbara Heliodora, espo-
men interpreta Luciana, uma viúva seduto- sa do inconfidente Alvarenga Peixoto e,
ra que se apaixona por Gilberto, talentoso ainda que o filme tivesse o compromisso
artesão, e se engaja na transformação de de não adulterar a verdade histórica a

10 O Teatro-Cassino Beira-Mar, também chamado de Beira-Mar Cassino, funcionou no Passeio Público de 1922
a 1937, quando foi demolido. Em suas instalações funcionava um teatro e um cabaré.

Ana Pessoa arquivo em cartaz 41


favor de sua personagem,11 esta ganhará feias, frias, insensíveis e inadaptáveis a tudo
o perfil de heroína trágica, como a des- quanto se relacione com as coisas subtis e
creve Brasil Gerson, autor do argumento: agradáveis que Deus inventou...”12

Bárbara Heliodora foi a mulher mais bonita, Ela, porém, irá assumir também a di-
mais amorosa, mais culta do Brasil do sécu- reção do filme, com a ajuda do fotógrafo
lo XVIII e, no entanto, nada disso a impediu Edgar Brasil. A decisão de estrear na dire-
também de ser uma heroína, dedicada de ção em seu mais ambicioso projeto não
corpo e alma a uma grande causa coletiva, foi tomada sem hesitações, mas, diante
uma revolucionária que amou, fez versos, da recursa de outros diretores, ela aca-
teve quatro filhos e se sacrificou pela liber- bou por se reunir a Cleo de Verberena,
tação de seu povo. diretora de O mistério do domingo ne-
Nada mais falso, portanto, do que se dizer gro (1930), e a Gilda de Abreu, diretora
que as mulheres que se esquecem de si de O ébrio (1946) e Pinguinho de gente
mesmas para se dedicar a empreendimen- (1947),13 na até então restrita galeria de
tos tidos como privativos dos homens são mulheres diretoras de cinema.

Carmen Santos
fundou a Brasil Vox
Filmes em 1933,
transformada em
Brasil Vita Filmes
em 1935. Correio
da Manhã
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11 CARMEN Santos e a “Inconfidência Mineira”. Cinearte, ano XIII, n. 492, p. 10-11, 1 ago. 1938.
12 BRASIL, Gerson. No seu estudio novo Carmen Santos vae fazer o film “Inconfidencia Mineira”. Carioca, Rio de
Janeiro, n. 75, p. 23, 26 mar. 1937.
13 Gilda dirigiria ainda Coração materno (1951), em que foi também atriz e roteirista, e Chico Viola não morreu,
documentário sobre a vida e músicas de Francisco Alves.

42 arquivo em cartaz Carmen Santos e o cinema brasileiro


As dificuldades na concretização do qualidade da reconstituição histórica,
projeto, contudo, a levam a escrever, não esconde a decepção com suas de-
de próprio punho, carta enviada ao ficiências, em especial sobre a falta de
presidente Vargas em 1939, quando estrutura narrativa e o artificialismo
Carmen expõe como a sua condição fe- da interpretação.
minina impede a real compreensão de Com os recursos técnicos da Brasil
sua atuação pelo meio cinematográfi- Vita Filmes, Carmen se associa a no-
co. Ao relatar suas dificuldades em ob- vos projetos propostos por diretores,
ter créditos para Inconfidência Mineira como o veterano Lulu de Barros, com
e reclamar por leis reguladoras da ati- quem coproduz O cavalo 13 (1947), O
vidade, ela comenta: malandro e a granfina (1947), Inocên-
cia (1948) – codirigido por Fernando de
No Cinema Brasileiro, eu ficaria profun- Barros –, Era uma vez um vagabundo
damente magoada se me dessem o títu- (1952) e O rei do samba (1952).
lo de “estrela” – eu sou um cérebro que Carmen morreu, precocemente, aos
trabalha desabaladamente [sic] das oito 48 anos, vítima de câncer, a 24 de se-
às 24 horas, que luta pela organização da tembro de 1952, quando, no Rio de Ja-
indústria cinematográfica em nosso país neiro, estava sendo realizado o I Con-
com a máxima sinceridade e, por isso, gresso do Cinema Nacional, no período
quase sempre, sozinha [...] quero é traba- de 22 e 28 de setembro de 1952, que
lho, produção conscienciosa; é cinema na lhe prestou reconhecida homenagem.
nossa língua; costumes, ambientes, técni- Ela se tornou uma personalidade
ca, tudo brasileiro; absolutamente, essen- permanente dentre os construtores do
cialmente brasileiro. 14 cinema brasileiro e, referência inarre-
dável junto às cineastas femininas. Ao
A complexidade do projeto e as res- longo dos anos, seu nome vem sendo
trições trazidas pela Segunda Guerra conferido a prêmios e editais, como o
Mundial dificultam a finalização da Prêmio Carmen Santos do extinto Insti-
produção, provocando comentários tuto Nacional de Cinema e, mais recen-
jocosos na imprensa. Quando Incon- temente, ao edital voltado para a pro-
fidência Mineira finalmente é exibi- dução de curtas-metragens dirigidos
do, em abril de 1948, o público não o por mulheres, o Edital Carmen Santos
prestigia e a crítica, apesar de reco- Cinema de Mulheres, da Secretaria do
nhecer o empenho da produtora e a Audiovisual, Ministério da Cultura. 15

14 Carta de Carmen Santos ao dr. Getúlio Vargas. Arquivo CPDOC-FGV.


15 Referências bibliográficas: PESSOA, Ana. Carmen Santos: cinema dos anos 20. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002;
______. Argila, ou falta uma estrela... és tu! Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, ano III, v. 3, n. 1, jan.-fev.-
mar. 2006. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF6/15%20-%20DOSSIE%20-%20ARTIGO%20-%20
ANA%20PESSOA.pdf>; SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Unesp, 2004.

Ana Pessoa arquivo em cartaz 43


Carmen
Santos estrela
Argila, filme
de Humberto
Mauro, rodado
nos estúdios

Acervo particular Mauro Domingues


da Brasil Vita
Filmes, de
propriedade de
Carmen

Argila, um filme, uma Mauricio R. Gonçalves


mulher, uma nação Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade
de São Paulo, professor e pesquisador. Autor do livro
Identidade nacional e cinema no Brasil 1898-1969
(LCTE, 2011).

“Tudo é assim mesmo. Tudo é barro, argila.”


(fala de Gilberto, personagem de Celso Guimarães, em Argila.)

Argila estreou em 28 de maio de 1942, do; e ainda contava com a colaboração de


no Cine Capitólio, Rio de Janeiro − Capi- Edgar Roquette-Pinto, como argumentis-
tal Federal. Tratava-se de um empreen- ta e consultor não creditado e como res-
dimento cinematográfico envolvendo ponsável pela musicalização do poema de
alguns dos maiores nomes do mundo do Olavo Bilac, Canção de Romeu, com par-
cinema e da cultura nacionais do período: titura musical de Radamés Gnattali. Além
Humberto Mauro assinava a produção, destes, ainda participaram Edgar Brasil,
direção, argumento e roteiro; Carmen creditado apenas com o primeiro nome,
Santos era a estrela e dona da Brasil Vita como técnico de luz, e Brasil Gerson, cor-
Filmes, estúdio em que o filme foi roda- responsável, não creditado, pelo roteiro.1

1 Sobre a participação do jornalista comunista Brasil Gerson na construção do roteiro de Argila, Ana Pessoa cita
recibo de quitação de dívida da Brasil Vita Filmes com Gerson: “Recibo no valor de Rs 1:250$000, ‘saldo da importância
de dois contos de reis, que me devia Humberto Mauro pela minha colaboração como autor dos respectivos diálogos,
no argumento cinematográfico Argila, podendo a sra. Carmen Santos cobrar do sr. Humberto Mauro a referida impor-
tância [...]’. Brasil Gerson, 18 jan. 1940. Arquivo Jurandyr Noronha. MIS/RJ”. PESSOA, Ana. Argila, ou falta uma estrela...
és tu! Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, ano III, v. 3, n. 1, p. 15, jan.-fev.-mar. 2006. Disponível em: <http://
www.revistafenix.pro.br/PDF6/15%20-%20DOSSIE%20-%20ARTIGO%20-%20ANA%20PESSOA.pdf.>.

44 arquivo em cartaz
O enredo de Argila desenvolve-se em gunte-me outra cita Argila e Inconfidên-
Correias, localidade de Petrópolis, interior cia Mineira como “os dois filmes da atriz
do estado do Rio de Janeiro, onde Luciana que estavam por estrear”.2 Ainda segundo
(Carmen Santos), uma jovem e rica viúva, Aguiar, “o projeto de produção de Argila
promove atividades que enaltecem e esti- parece ter sido abandonado nos meses
mulam as produções da cultura nacional, seguintes”. A próxima referência de Cine-
especialmente a arte marajoara. Em seu arte ao filme se dará apenas em “março de
castelo, no interior fluminense, ela reúne 1940, numa nota rápida que destacava Cel-
amigos burgueses da capital federal que so Guimarães como o novo galã da fita”.3
entre audições de peças de Villa-Lobos, Ana Pessoa informa, em seu artigo Argila,
poemas de Olavo Bilac, exaltações da arte ou falta uma estrela... és tu!, que ainda em
da Grécia Antiga e sofisticadas festas juni- 1940, “para desmentir o clima de aparente
nas, dividem opiniões sobre o interesse da paralisia da produção nacional, Cine-Rádio
anfitriã pela arte nacional. Dona de uma Jornal noticia a realização de dois filmes
cerâmica que, quando pertencia a um em- nos estúdios da Brasil Vita Filmes: Inconfi-
presário português, produzia bilhas e fil- dência Mineira, por Carmen Santos, e a fil-
tros de barro, ela redireciona a produção magens de cenas de Celso Guimarães para
para objetos artísticos com o objetivo de Argila, por Humberto Mauro”.4
incentivar a produção cultural brasileira. Esse período de “realização” de Argi-
Envolve-se sentimentalmente com Gilber- la (1938-1942) também foi um período
to (Celso Guimarães), um ceramista seu bastante agitado para o Brasil. Ainda em
empregado, paulista hábil na produção da 10 de novembro de 1937, instaurou-se o
cerâmica de Marajó, que lhe corresponde Estado Novo, com o golpe que garantiria
o interesse romântico, embora já fosse noi- a permanência de Getúlio Vargas no po-
vo de Marina (Lídia Mattos), uma garota da der. Dois anos depois, criou-se o DIP – De-
região, de origem humilde como a dele. partamento de Imprensa e Propaganda,
Apesar de lançado em 1942, o filme responsável pelo controle e organização
como projeto, produção e realização da- das atividades culturais e de informação
tava de alguns anos antes. Cláudio Aguiar no país. Há uma constante priorização
Almeida, em seu livro O cinema como “agi- da cultura brasileira, de caráter naciona-
tador de almas”: Argila, uma cena do Es- lista, visando a construção de elementos
tado Novo, dá conta de que as primeiras que representassem as matrizes de uma,
referências a Argila já são encontradas na cada vez mais valorizada, brasilidade. Ge-
edição de 15 de outubro de 1938 da revista túlio Vargas, com a paulatina criação de
Cinearte. A uma pergunta sobre a carreira uma legislação trabalhista, vai construin-
de Carmen Santos, o cronista da seção Per- do sua imagem de “pai dos pobres”, junto

2 ALMEIDA, Cláudio Aguiar. O cinema como “agitador de almas”: Argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo:
Annablume, 1999. p. 172.
3 Ibidem, p.172.
4 PESSOA, Ana, op. cit., p. 6.

arquivo em cartaz 45
às classes populares. Para Cláudio Aguiar órgão vinculado ao governo federal, que
Almeida, o cinema − pensado como um atuava na produção, distribuição e exibi-
agente pedagógico no aprimoramento ção de filmes educativos e documentais
do povo brasileiro ou como instrumen- como um instrumento auxiliar de ensino
to de propaganda política de um regime e como meio de educação popular. Em
autoritário − ocupou lugar de grande des- Argila, além de ser corresponsável pelo
taque no projeto de criação de um ‘Bra- argumento e pela orientação sobre o
sil Novo’. Almeida identifica, no Estado conteúdo referente à cultural nacional,
Novo, “um projeto que buscou educar as Roquette-Pinto participa ainda de outras
massas por meio do cinema, conseguindo formas. Sheila Schvarzman, em seu livro
sua adesão voluntária à grande obra de Humberto Mauro e as imagens do Brasil,
construção de uma nova nação”. Aponta, cita um depoimento de José Mauro, irmão
também, nos filmes do período, “alguns de Humberto, sobre o envolvimento de
dos componentes ideológicos que norte- Roquette-Pinto e do INCE: “o dr. Roquette
aram o projeto estadonovista, destacan- era muito bom para o cinema brasileiro,
do, dentre outros, aqueles que expressam ele emprestava filme virgem para d. Car-
a ideia/imagem de uma sociedade una e men, deixava fazer revelação, depois eles
harmoniosa, organizada do alto pela ação acertavam, ela devolvia o filme”.6
de um Estado representado na figura do Roquette-Pinto valorizava, do ponto de
líder/pai”.5 Foi nesse ambiente, e com vista educativo, juntamente com Hum-
esse pensamento, que se deu a união de berto Mauro, seu grande colaborador
Humberto Mauro, Roquette-Pinto e Car- no INCE e diretor de centenas de filmes
men Santos para a realização de Argila. documentais-educativos, o chamado “ci-
O envolvimento de Edgar Roquette- nema de espetáculo”, considerando-o,
Pinto com o cinema remonta à década de segundo Almeida, “até mais educativo
1910, quando o antropólogo trouxe de que os curtas-metragens produzidos pelo
Rondônia os primeiros filmes dos índios Instituto Nacional de Cinema Educativo”.7
nambiquaras que foram projetados na Bi- Em Argila, a arte marajoara promove a
blioteca Nacional, além de organizar um aproximação entre os protagonistas, Gil-
serviço de assistência ao ensino, no Mu- berto e Luciana, vindos de universos so-
seu Nacional, dispondo de uma coleção ciais distintos, levando-os à “construção
de diapositivos e todos os filmes Pathé- de uma arte de raízes genuinamente na-
Enseignement. Criou, em 1936, o INCE cionais”.8 Mais do que aproximar os dois
(Instituto Nacional de Cinema Educativo), protagonistas ou caracterizar-se como a
dirigindo-o durante os 11 anos seguintes, arte nacional por excelência, são essas

5 ALMEIDA, Cláudio Aguiar, op. cit., p. 25 e 101.


6 Depoimento oral de José Almeida Mauro, de 1997, citado por SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as
imagens do Brasil. São Paulo: Unesp, 2004. p. 289.
7 ALMEIDA, Cláudio Aguiar, op. cit., p. 169.
8 Ibidem, p. 182.

46 arquivo em cartaz Argila, um filme, uma mulher, uma nação


raízes nacionais representadas pela arte se, ceramista paulista de mãe mineira, fes-
marajoara que amarram, em Argila, os ta de São João) e, através das articulações
elementos da cultura regional brasileira, do discurso fílmico de Argila, assumiu o
presentes em situações e personagens, papel de representante da identidade na-
acabando por promover a criação de um cional. Há, em Argila, outros elementos
discurso fílmico de identidade nacional. que contribuem para a tecedura da iden-
Temos a arte marajoara sendo promovida tidade nacional; a presença de alimentos
em Petrópolis, longe de seu território de típicos nacionais (como a broa de milho
origem. Ela está sendo produzida pelos e o doce baba de moça), o modo de fa-
habitantes da região, capitaneados por lar dos personagens, a música de Heitor
Gilberto, ceramista paulista de competên- Villa-Lobos na trilha sonora ou a exibição
cia na produção da cerâmica marajoara, de uma coreografia inspirada nas danças
de mãe mineira que, segundo ele, “gos- indígenas da região norte do país, durante
tava muito de fazer broa de fubá e vivia a Festa de São João no castelo da viúva.
sempre cantando e cantava umas can- Trata-se do cinema como “livro de
ções muito bonitas”. Motivos geométri- imagens luminosas”, fazendo a integra-
cos marajoaras também estão presentes ção das diferentes regiões do país, atra-
na decoração de um balão que será solto vés da cultura e da brasilidade inerente
na festa de São João (um motivo indígena a todos os brasileiros, como pretendia
no elemento de uma manifestação cultu- Getúlio Vargas.9
ral trazida pelos colonizadores europeus), Certamente que Argila não faz a re-
e também, durante o desenvolvimento presentação de cada um desses perso-
do enredo, percebemos a crença desses nagens da cultura nacional, citados por
habitantes de Petrópolis no poder de um Vargas. Mas a fita de Mauro articula, em
objeto indígena místico (o maracá), neste seu discurso fílmico, elementos ampla-
caso, um maracá vindo da Ilha de Marajó. mente reconhecíveis como produtos das
Assim, o que era regional “espalhou-se” culturas específicas desses personagens.
para outros integrantes da nação (imagi- E no reconhecimento da ligação que essa
nário dos habitantes de cidade fluminen- articulação promove, esses personagens

9 Atentemos para este trecho de discurso de Getúlio Vargas, proferido ainda em 1934, citado por Anita Simis,
em seu livro Estado e cinema no Brasil, p. 30, 31, 43 e 44: “O cinema será, assim, o livro de imagens luminosas, no
qual as nossas populações praieiras e rurais aprenderão a amar o Brasil, acrescentando a confiança nos destinos da
Pátria. Para a massa dos analfabetos, será essa a disciplina pedagógica mais perfeita, mais fácil e impressiva. Para os
letrados, para os responsáveis pelo êxito da nossa administração, será uma admirável escola. Associando ao cinema
o rádio e o culto racional dos desportos, completará o Governo um sistema articulado de educação mental, moral e
higiênica, dotando o Brasil dos instrumentos imprescindíveis à preparação de uma raça empreendedora, resistente
e varonil. E a raça que assim se formar será digna do patrimônio invejável que recebeu [...] Ele aproximará, pela
visão incisiva dos fatos, os diferentes núcleos humanos, dispersos no território vasto da República. O caucheiro
amazônico, o pescador nordestino, o pastor dos vales do Jaguaribe ou do São Francisco, os senhores de engenho
pernambucanos, os plantadores de cacau da Bahia, seguirão de perto a existência dos fazendeiros de São Paulo e
de Minas Gerais, dos criadores do Rio Grande do Sul, dos industriais dos centros urbanos: os sertanejos verão as
metrópoles, onde se elabora o nosso progresso, e os citadinos, os campos e os planaltos do interior, onde se caldeia
a nacionalidade do porvir”. SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996.

Mauricio R. Gonçalves arquivo em cartaz 47


do discurso presidencial acabam por Depois de ouvir os motivos da visita de
reconhecer-se ligados, aproximados “no João Antônio, Luciana o dispensa, dizendo:
território vasto da República” realizando “E vá descansado, eu cuido de Gilberto, eu
a comunidade nacional imaginada. cuido de vocês todos. Só quero que vocês
Argila nos possibilita perceber algu- todos voltem a ser felizes”. Luciana toma
mas articulações da personagem vivida para si a tarefa de cuidar das populações
por Carmen Santos (Luciana) que esta- mais carentes, fazendo promover as po-
belecem ainda outras relações com a re- líticas de Estado para transformação do
alidade do Estado Novo e seu projeto de povo brasileiro − e aqui, pode-se recorrer
nação. Já proprietária da cerâmica que novamente ao discurso de Vargas, citado
antes pertencera ao português explora- acima, no trecho em que fala sobre “uma
dor da mão de obra operária, Luciana, raça empreendedora, resistente e varonil”.
depois de admirar o produto do trabalho Não se trata apenas de atitudes no âm-
de seus empregados, vira-se para seus bito da cultura, mas também de cunho tra-
convivas, em seu castelo, e dispara: “Vou balhista, como melhoria de salário e con-
dar um impulso extraordinário à arte dições gerais de trabalho. O que Luciana
brasileira. Fundar uma escola de pintu- está propondo é o aprimoramento da edu-
ra para os filhos dos operários, organizar cação do filho dos operários para que eles
exposições, mandar vasos e pratos para continuem operários, mas se qualifiquem
o estrangeiro”. Em outro momento, mais para as inovações que a indústria nacional
para o final do filme, quando João Antô- requer: eles aprenderão pintura, mas ela,
nio, futuro sogro de Gilberto e também como patroa, mandará os vasos e pratos
funcionário da cerâmica e, portanto, de para o estrangeiro; eles aprenderão dese-
Luciana, a ela diz que “... a senhora tem nho na nova escola, mas certamente para
sido uma patroa com quem dá vontade planejarem melhor os produtos de sua ce-
de trabalhar. Nem se compara com o Sei- râmica. Era a “cooperação entre indústria e
xas. Vivemos agora como gente”, Luciana Estado” instaurada por lei, como acontecia
reage, mostrando o que havia sobre uma no Estado Novo de Vargas.
escrivaninha em sua sala: Se Luciana é a empresária que, segun-
do Schvarzman, “age de forma responsá-
Está vendo? Tudo isso aqui são plantas. É vel e altruísta, fazendo o capital cumprir
outra coisa que eu quero lhe ajudar: uma es- sua função social, valorizando a criação
cola de desenho para os filhos dos operários nacional”,10 é também o Estado que toma
aqui da redondeza. Gilberto será um dos pro- decisões em áreas como educação e polí-
fessores. Eu quero que vocês sejam felizes e tica trabalhista, definindo a vida das po-
possam subir. E você? Está ganhando pouco? pulações sob seu comando. Ela não ape-
Fale João Antônio, diga o que pensa. nas executa; também planeja e coordena;

10 SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Unesp, 2004. p. 292.

48 arquivo em cartaz Argila, um filme, uma mulher, uma nação


funções que são assumidas pelo Estado ele simplesmente não soube responder.
depois dos acontecimentos de 1930. Se a Há as exceções, como o músico que toca
implementação do projeto estatal ficou, Villa-Lobos e compõe sob inspiração de
a princípio, a cargo das elites nacionais poema de Olavo Bilac, ou o pintor que se
(pensemos na face empresarial de Lucia- dedica à pintura de mulatas. Não se trata,
na), não era sua a exclusividade nessa em- portanto, de um grupo irremediavelmen-
preitada. Durante a Era Vargas, assistimos te alienado. É passível de convencimento
à participação direta do Estado na produ- e de integração naquela sociedade har-
ção, com a criação de empresas estatais moniosa e sem conflitos, preconizada
nos mais diferentes campos e, portanto, pelo Estado Novo e delineada por ele
na implementação desse projeto, fruto de como a nação brasileira.11
seu planejamento e coordenação. O interesse de Carmen Santos por Ar-
A complexidade da personagem de Lu- gila construiu-se gradualmente, uma vez
ciana se dá, também, pelo fato dela não que, no final dos anos 1930, ela parecia
precisar abandonar suas ligações com a estar mais envolvida em seu projeto de
elite que lhe dá origem, para atuar junto filmagem de Inconfidência Mineira que,
às camadas populares e à cultura nacio- além de produzir e interpretar o papel
nal. Ela leva consigo, para o castelo de de Bárbara Heliodora, também dirigiria.
Correias, e para a proximidade com a na- Decisivas para sua adesão foram as par-
ção brasileira em seu entorno, os repre- ticipações de Roquette-Pinto – que tam-
sentantes do grupo social de sua origem. bém incentivara Carmen a desenvolver
Ao mesmo tempo em que a personagem Inconfidência Mineira, facilitando a par-
executa uma tarefa de convencimento, da- ticipação de intelectuais e especialistas
quela classe social, da importância da arte que assegurassem isenção ideológica e
popular e da importância de seu trabalho credibilidade cultural ao projeto12 − e
junto à população local – nos diálogos, de Humberto Mauro, por quem ela já
nas festas e reuniões que promove –, dá tinha sido dirigida em Sangue mineiro
oportunidade, com isso, para que o filme (1929), Favela dos meus amores (1935)
apresente toda uma crítica a essa mesma e Cidade mulher (1936), além de terem
camada social, mostrando-a superficial, trabalhado juntos na Brasil Vita Filmes,
ligada a estrangeirismos (Tarzan, cultura o estúdio de Carmen. Segundo Ana Pes-
grega) e, na verdade, desconhecedora soa, o impulso final deve ter sido o de-
do que está falando: há uma sequência creto-lei nº 1949, de 30/12/1939, que
em que Luciana pergunta a Barrocas – um possibilitava “condições mais favoráveis
ex-diplomata que vivia exaltando a arte de exibição dos filmes nacionais”. Ainda
da Grécia antiga – quem fora Pitágoras e segundo Pessoa, “associando-se a Mau-

11 A interpretação do personagem de Luciana é baseada em texto de Mauricio R. Gonçalves em seu livro Iden-
tidade nacional e cinema no Brasil 1898-1969. São Paulo: LCTE, 2011.
12 PESSOA, Ana, op. cit., p. 6.

Mauricio R. Gonçalves arquivo em cartaz 49


ro, a Brasil Vita Filmes retomaria suas que luta pela organização da indústria cine-
atividades, paralisadas desde Cidade matográfica em nosso país com a máxima
mulher (1936), agora já contando com sinceridade e, por isso, quase sempre, so-
a infraestrutura do estúdio recém-con- zinha [...] quero é trabalho, produção cons-
cluído enquanto que Carmen poderia cienciosa; é cinema na nossa língua; costu-
atuar, sem desviar-se de seus esforços, mes, ambientes, técnica, tudo brasileiro;
para a realização de seu projeto princi- absolutamente, essencialmente brasileiro.15
pal”, Inconfidência Mineira.13
Durante a década de 1930, Carmen ma- Segundo Mário Peixoto, realizador de
nifestou-se diversas vezes, dizendo o que Limite (1931), Carmen lhe disse, ao pre-
pensava sobre cinema, sobre seus papéis sentear-lhe com os trezentos metros de
nos filmes e sobre como queria direcionar filme que restaram, com fragmentos da
seu trabalho à frente de filmes brasileiros. filmagem inacabada que fizeram juntos,
Em entrevista à edição de O Jornal, de 29 de Onde a terra acaba (1932): “Não me
de junho de 1936, citada por Ana Pessoa, conformo quando dizem que o que vai
ela diz: “Pelo meu temperamento cigano ficar de mim é o papel que fiz em Limi-
e romântico, pelo que tenho sofrido, pela te. O papel pra mim seria o da mulher de
minha maneira de compreender a vida, só Onde a terra acaba. Aquilo que era tem-
os papéis fortes para as grandes emoções peramento de mulher que sempre me in-
é que me satisfazem”.14 Não estranha Car- teressou”.16 Apesar de Carmen pouco ter
men Santos exercer papel, quase inédito falado sobre sua personagem em Argila,
para a época, de mulher independente Luciana não deixa nada a dever àquela
em sua vida pessoal, empreendedora que teria sido a personagem preferida de
como atriz, diretora e produtora de fil- Carmen, correspondendo a muito do que
mes, dona de um estúdio, e participar da “a dama” − como Carmen era chamada
linha de frente nas reivindicações, junto por muitos − protagonizou como mulher
ao Estado, de condições satisfatórias para e profissional. Multifacetada, Luciana, de
o desenvolvimento do cinema brasileiro. seu castelo em Correias, apresentava a
Numa carta enviada ao presidente Getú- possibilidade de uma mulher determina-
lio Vargas, em 1939, ela diz: da, empreendedora, ciente de seu papel
e responsabilidade sociais, engajada na
No Cinema Brasileiro, eu ficaria profunda- transformação de um povo e de uma na-
mente magoada se me dessem o título de ção e que, ao mesmo tempo, lidava com
“estrela” – eu sou um cérebro que trabalha os conflitos impostos pelas questões do
desabaladamente [sic] das oito às 24 horas, desejo e do coração.

13 Idem.
14 Ibidem, p. 9.
15 Citada por Ana Pessoa. Ibidem, p. 13.
16 Do documentário Onde a terra acaba, realizado em 2001, por Sérgio Machado.

50 arquivo em cartaz Argila, um filme, uma mulher, uma nação


Francisco Serrador
e o ator Charlie
Chaplin. A Cia.
Cinematográfica
Brasileira, do
empresário
espanhol, era

BR_RJANRIO_FF_JF_2_0_5_15
proprietária de
inúmeras salas de
exibição no Brasil
nas primeiras
décadas do século
passado. Fevereiro
de 1936. Acervo
Família Ferrez

O projeto de Jonas Abreu


Francisco Serrador Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela
e a invenção da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Produtor
de eventos culturais e professor de pós-graduação e
Cinelândia graduação de Turismo e Marketing da Universidade
Estácio de Sá e do curso de pós-graduação em
Planejamento Estratégico de Eventos da Universidade
Veiga de Almeida – Rio de Janeiro. Autor dos livros
Rio partido: a batalha das identidades (2014) e Como
produzir eventos sem medo (2008).

A partir da década de 1910, o cinema cia americana nos costumes foi possível
passava a fazer parte do cotidiano da perceber certo padrão na estratégia dos
vida social na América Latina reordenan- empreendedores que tentavam capturar
do a geografia de lazer, ao mesmo tem- o magnetismo hollywoodiano na Amé-
po em que impunha novos códigos de rica Latina, de modo que as imagens de
comportamento. A experiência industrial Hollywood influenciavam o vestuário,
de Hollywood inspirava diversos empre- cortes de cabelo, maquiagem e até as for-
sários do entretenimento na Argentina, mas de namorar e beijar.
Brasil e México, entre outros países, no No Rio de Janeiro, esta influência foi
sentido de propagar os comportamentos se consolidando concomitantemente
e o modo de vida americano nas cidades aos novos contextos de representação
latinas. Com o crescimento da influên- cultural e urbana que foram organiza-

arquivo em cartaz 51
dos no início do século XX na busca por conduzir estas elites ao contato com os ci-
uma identidade civilizatória para a ci- nemas da Praça Floriano. Assim, o hábito
dade. Uma vez combinados, estes pro- de frequentar o cinema criaria a oportuni-
cessos permitiram na década de 1920 dade para seus usuários desfilarem as no-
a harmonização dos interesses dos vas modas e costumes na Cinelândia, que
empresários da indústria cultural e dos a partir da década de 1920 passa a ser o
agentes do poder público. novo footing chique da cidade.
O empresário espanhol Francisco Serra- As mudanças aconteciam em meio
dor foi o principal agente desta transforma- ao contexto de transformações socio-
ção na paisagem cultural da cidade quan- culturais que ocorriam paralelamente
do da sua tentativa de recriar a atmosfera ao desenvolvimento da indústria cine-
da Broadway na Praça Marechal Floriano. matográfica e correspondiam tanto à
A articulação que ele desenvolveu junto atualização das identidades dos espa-
às forças políticas e aos patrocinadores de ços como à reconstrução da sociabili-
sua empreitada para alcançar os fins pla- dade urbana em torno destes ambien-
nejados cruzou diversos interesses antes tes, mas sempre tendo como base os
de a praça ser conhecida por Cinelândia. novos códigos de representação social.
Estas relações alteraram o patrimônio ma- A recriação da Broadway por Francisco
terial e imaterial daquele local, na medida Serrador se enquadra como um projeto
em que esta convergência de propósitos de redesenho do espaço físico, mas tinha
era ajustada em um sistema ambivalente profundas implicações na transformação
para acomodar os objetivos da prefeitura e da paisagem cultural. Em relação ao dese-
da iniciativa privada nas suas intervenções. nho arquitetônico, os edifícios construídos
Antes de prosseguir, é preciso ressal- por Serrador e seus parceiros ainda des-
tar que as mudanças operadas no Rio de frutavam de certa influência da estrutura
Janeiro pela introdução de um padrão de do “Pentágono das Artes” construído duas
consumo baseado na experiência ameri- décadas antes. Os cinco prédios do pentá-
cana não se iniciaram com o cinema, mui- gono e os demais que os acompanhavam
to menos pode ser apontado no projeto em toda a extensão da Avenida Rio Bran-
de Serrador a gênese histórica de um pos- co foram construídos predominantemente
sível processo de “americanização” da ci- numa combinação de estilos que variava
dade-capital. Mas é inegável, como ates- entre o ecletismo e o neoclassicismo duran-
tam vários historiadores e sociólogos, que te a reforma do prefeito Pereira Passos. No
as décadas de 1920 a 1950 foram marca- caso dos prédios de Serrador, embora tenha
das pela crescente influência americana prevalecido para as fachadas certo prota-
na sociedade brasileira, notadamente gonismo do formato art déco da Escola de
nas classes média e alta. Esses grupos Chicago, foram mantidos detalhes ecléticos
sociais estariam sendo acionados pelas visando, em alguns casos, criar um ambien-
empresas de publicidade e pelas revistas te para espetáculo nos moldes dos teatros
ilustradas brasileiras que, espelhadas nos líricos ou reproduzir os modelos dos edifí-
grandes conglomerados americanos, vão cios europeus do final do século XIX.

52 arquivo em cartaz O projeto de Francisco Serrador...


O vereador Ricardo Maranhão utiliza em local, seguiria modelando esta parte do
seu livro Retorno ao fascínio do passado1 a centro da cidade, reforçando a linha de
expressão “Pentágono das Artes” para dis- interpretação da urbanista.
tinguir estas cinco edificações que foram A Broadway, via larga em inglês, exis-
construídas no entorno da Praça Floriano, tente antes mesmo do Commissioner’s
entre a reforma urbanística do prefeito Plan de 1811,3 não obedece à malha vi-
Pereira Passos (1902-1905) e a Comemo- ária ortogonal original da cidade de Nova
ração do Centenário da Independência em Iorque. Este corredor que atravessa a Ti-
1922. A seleção das cinco instituições in- mes Square, centro financeiro da cidade,
clui o atual Centro Cultural da Justiça Fede- é uma referência internacional desde os
ral (ex-sede do Supremo Tribunal Federal), anos 1920 pela formação de uma rede de
inaugurado em 1907; o Museu Nacional teatros ao longo de sua via expressa, com-
de Belas Artes (ex-Escola Nacional de Belas posta por dezenas de unidades teatrais
Artes), aberto em 1908; o Teatro Municipal agregadas no Circuito Broadway.
(1909); e a Biblioteca Nacional, inaugurada Neste período que marcou a transição
em 1910. A última construção do “Pentá- das óperas e operetas para os espetácu-
gono”, datada de 1922, é o Palácio Pedro los musicais, o empresário Francisco Ser-
Ernesto, sede do poder legislativo local, rador, que esteve por três anos nos Esta-
uma construção em estilo Luís XVI. dos Unidos, teria completado em 1925 um
A respeito destas transformações sim- ciclo de conhecimento e estudo tanto em
bólicas nos espaços públicos, a arquiteta Hollywood como na Broadway, que deve
e urbanista Evelyn Lima2 ressalta que a ter inspirado uma melhor compreensão
praça é um local de reunião, um “nó urba- do projeto original que queria instalar no
no na legibilidade da cidade” destacando Rio de Janeiro. A concepção deste plano
o fato de que a memória coletiva se apega para a Praça Floriano teria sido planejada
aos espaços e aos símbolos físicos garan- por Francisco Serrador e seus parceiros
tindo certa continuidade no uso que as para um trecho ocupado até 1911 pelo
diversas camadas sociais projetam sobre Convento da Ajuda, compreendido entre o
o tecido urbano. Precisaremos conhecer a Bar Amarelinho e o Centro Cultural Odeon.
Broadway, a mais famosa avenida por en- Foram necessários 14 anos entre a demoli-
tre os arranha-céus de Nova Iorque para ção do convento, a compra do terreno pela
entender o espírito contido na intenção e Light & Power, a transferência do terreno
no propósito do espanhol que, articulado para a empresa cinematográfica de Serra-
com os novos sentidos sugeridos para o dor e a construção dos quatro primeiros

1 MARANHÃO, Ricardo. Cinelândia: retorno ao fascínio do passado. 3. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2003.
2 LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Arquitetura do espetáculo: teatros e cinemas na formação da Praça Tiraden-
tes e da Cinelândia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000.
3 O Commissioners’ Plan of 1811 foi um plano urbanístico da Cidade de Nova Iorque. No início foi muito
críticado pelo excesso de ortogonalidade gerando uma possível sensação de monotonia, em comparação com
padrões das malhas urbanas menos regulares de cidades mais antigas. Fonte: <https://www.library.cornell.edu/
Reps/DOCS/nyc1811.htm.

Jonas Abreu arquivo em cartaz 53


Obras na região
da Cinelândia
permitiram a
ampliação da área
onde Serrador
instalou salas
de exibição que
BR_RJANRIO_FF_LF_1_0_1_22_21

revolucionaram o
conceito de cinema
à época. 1921-1927.
Acervo Família
Ferrez

cinemas: Capitólio, Glória, Império (1925) como o rádio e cinema, surgidos no início
e Odeon, em 1926. As edificações que do século XX, narravam essa realidade
abrigaram estes cinemas no andar térreo material e simbólica de um modo que in-
tinham de oito a 12 andares e passaram a teressava aos agentes da indústria cultural
ser chamadas de “arranha-céus”. emergente. Por outro lado, esta ficção po-
Embora estas exterioridades da trans- tencializada pelos meios de comunicação
formação do espaço físico sejam relevan- desempenhava um papel preponderante
tes para identificar a evolução arquitetu- quando capturada pelos detentores de ca-
ral da Praça Floriano, durante a transição pital político interessados em projetar um
do neoclássico europeu estabelecido com mapa mental na vida social dos habitantes
o Pentágono das Artes para o ambiente de uma nação ou de uma cidade.
art déco nova-iorquino, a principal trans- Estávamos diante de um novo locus
formação ocorreu no papel simbólico que para a cidade, sem que ele tenha se des-
a indústria cinematográfica desempe- locado para outro lugar, em vez disso,
nhou na herança histórica da Cinelândia. transformou-se no seu próprio habitat
Nossa hipótese a respeito disso é que o original. De fato, nas décadas anteriores,
verdadeiro fascínio do projeto de Serrador o cenário paisagístico da Rua da Ajuda
estava contido no tipo de experiência cole- e adjacência, centrado nos símbolos
tiva que ele queria importar. Essa constru- monárquicos, foi substituído pelo Pen-
ção imaginária vai sendo atualizada pelos tágono das Artes para ser o símbolo da
processos modernizadores suscitados pela república cosmopolita afrancesada pro-
urbanização e industrialização da cultura, posta pela prefeitura. Agora, na década
originando novas referências de identifica- de 1920, a cidade via novamente a sua
ção coletiva. Os veículos de comunicação praça principal transformar-se para in-

54 arquivo em cartaz O projeto de Francisco Serrador...


corporar o “Quadrilátero dos Cinemas”, tradas práticas em mutação nas quais o pa-
em referência ao projeto de Serrador, pel do Estado nestas intervenções não foi
desta vez comprometida com uma pai- o de protagonista ou principal idealizador,
sagem cultural mais “americanizada”. mas de parceiro. Neste espaço, nos anos
Para que esse novo locus pudesse se 1920, os aparatos do governo e da inicia-
instalar, conjugou-se um jogo de interes- tiva privada transformaram a cidade na
ses inspirado nas utopias urbanas do se- metáfora da vida moderna, e o desejo de
tor público e na lógica capitalista do setor se destacar pela indumentária, pelo com-
privado. A sintonia das mentalidades de portamento e posteriormente pelo ato de
cada uma destas instâncias ajustou-se às frequentar o cinema marcaria um referen-
novas configurações cosmopolitas que cial físico e afetivo na Praça Floriano.
seguiam o padrão americano em substi- O antropólogo Nestor Canclini talvez
tuição ao modelo europeu de civilização. possa nos ajudar a entender melhor este
Deste modo, o espetáculo cinematográfi- quadro. Ele entende que a cultura nacional
co ocupou a partir dos anos 1920 um lugar muda de acordo com a época, portanto o
fundamental na nova cultura urbana, sub- território, a população e os costumes se-
traindo certa quantidade de autonomia da riam as partes formadoras de uma nação,
classe política carioca, uma vez que esta mas esta é uma construção imaginária.
deveria pautar seus projetos nacionais em Assim, o modelo ideal de nação é tanto
conformidade com as forças de mercado. resultado de fatos altamente significativos
Reconhece-se, portanto, que no espaço ocorridos no meio social quanto da matriz
conhecido hoje por Cinelândia foram regis- idealizada por quem elabora o sentido da

Construído em 1925,
o Capitólio foi um dos
empreendimentos de

BR_RJANRIO_FF_LF_1_0_1_26_29
Francisco Serrador
na Cinelândia.
Naquele ano também
foram inaugurados
os cinemas Glória
e Império, aos
quais se juntariam
o Odeon (1926)
e o Pathé (1928),
transformando a
região e atraindo um
público elegante.
Rio de Janeiro, 15
de junho de 1927.
Acervo Família Ferrez

Jonas Abreu arquivo em cartaz 55


nação. A concepção coletiva então é con- peito das críticas a Serrador quanto ao
duzida pelo discurso político a partilhar fato de abrir as portas “afrancesadas” do
valores que se constituem em patrimônio.4 Rio de Janeiro, uma cidade tão arraigada
Não é difícil perceber nas palavras às tradições europeias, à cultura ameri-
do autor a articulação entre os serviços cana, traduz também as novas intenções
públicos e os interesses privados na con- do poder público, preocupado com a
dução dos processos de identificação da valorização imobiliária daquele trecho e
cultura nacional. Ocorre que quando a potencializando a especulação imobiliá-
prefeitura lidava com o projeto de Ser- ria que valorizou o preço do metro qua-
rador não havia nas negociações a busca drado, estimulando de forma definitiva a
por um sentido de nacionalidade para a nova centralidade da cidade.
nossa cultura, como havia ocorrido anos Ainda segundo Evelyn Lima,5 o objetivo
antes com a construção do Pentágono principal de Francisco Serrador era transfor-
das Artes. Segundo Evelyn Lima, a agi- mar o terreno do antigo Convento da Ajuda
lidade com que transcorreu o trâmite no maior centro de diversões da América
para aprovação do edifício Capitólio, que Latina. O seu verdadeiro sonho teria sido a
abrigaria o primeiro cinema de Serrador, criação de um centro comercial que fizesse
pareceu indicar o interesse por um sta- o deslocamento comercial de luxo da Rua
tus que o prédio poderia conferir à Praça do Ouvidor, uma área em processo de ob-
Floriano. Então, a tecnologia do cinema solescência, para a Praça Floriano, tendo
pressionava os aspectos construtivos que como principal fator de atração os cinemas
dependiam da prefeitura e possibilitaram instalados na base dos “arranha-céus”.
aos empresários do cinema uma maior Serrador, quando indagado sobre
independência em relação ao Estado. O como conseguiria persuadir os lojis-
máximo que se pode ressaltar em ter- tas e profissionais liberais a saírem da
mos de defesa de algum valor nacional Rua do Ouvidor para o novo comple-
pode ser visto na aprovação da Câmara xo inspirado na Broadway, teria dito
dos Vereadores de um projeto que mini- que o seu plano não era inaugurar ca-
mizava os tributos das salas de cinemas sas ou teatros adaptados aos cinemas,
que exibissem também peças teatrais, como que se referindo aos cinemató-
com a alegação de proteger o teatro na- grafos da Avenida Rio Branco da déca-
cional, que estaria ameaçado pelo cine- da passada. Sua visão está estampada
ma na sociedade. O prefeito Prado Júnior na declaração de que seus cinemas são,
não somente vetou o projeto, como de- na verdade, cineteatros que reprodu-
cretou que quando fossem exibidos dois ziam o que de melhor ele teria visto na
tipos de espetáculos, o empresário teria Broadway e em Hollywood, com os requi-
que desembolsar taxas maiores. A des- sitos da técnica mais moderna da época.

4 CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006 [1995]. p. 98-99.
5 LIMA, Evelyn Furquim Werneck, op. cit., p. 258.

56 arquivo em cartaz O projeto de Francisco Serrador...


Que requisitos seriam esses que teriam deixar de ser comentado. Como na Bro-
motivado Serrador? De início, as operetas adway, o público era levado mais para
de Sullivan e Gilbert estavam na moda em perto dos cinemas através dos inúme-
Nova Iorque no período em que Serra- ros teatros, restaurantes, bares e cafés,
dor morou nos EUA, tendo contato com organizava-se um sistema integrado de
o modo de vida americano. No teatro consumo. Sobre este aspecto, James P.
Ziegfeld ou no Niblo’s Gardens, sucedem- Woodard6 lembra que esta integração de
se musicais como Tip Toes, Oh...Kay, No, serviços pode ser descrita como “cultura
no Nanette, cuja ênfase nos atores, atri- de consumo”.7 O autor associa este termo
zes, performances e canções populares a “consumismo” e “cultura consumista”,
era a tendência dos autores teatrais. que seriam concretizados mais tarde, até
Serrador teria lutado desde o começo meados do século XX em organizações,
por um projeto que ajudasse a levar o como shoppings, lojas de departamentos,
público mais para perto de seus cinemas. supermercados, agências de publicidade,
Quando esteve na Broadway deve ter organizações de marketing e redes de
compreendido que de alguma maneira o emissoras de rádio e televisão.
modelo europeu para o teatro e a ópera Estabelecemos aqui a comparação para
estavam sendo substituídos por padrões identificar as grandes corporações de cine-
híbridos, como as operetas vistas como ma e as companhias de teatro profissional
uma experiência de consumo cultural nos que se organizaram nas décadas de 1920
espetáculos da rua mais famosa do mun- e 1930. Conforme preconizado por Woo-
do. Já na Califórnia, ele teria tido contato dard, entendemos que Serrador assimila-
com o modelo comercial do cinema in- ria e tentaria expandir no Brasil esta expe-
dustrial de Los Angeles. Em outras pala- riência bidimensional, válida na indústria
vras, ao longo de suas observações entre cultural americana e que estaria se tornan-
1922 e 1925, tempo em que morou nos do modelo para a América Latina.
EUA, ele pôde perceber algumas das insti- Mesmo que no primeiro momento
tuições e práticas da cultura de consumo direcionada à classe média carioca, é
que ele introduziria no Brasil. comum na historiografia aceitar-se que
Um desses requisitos teria motivado a construção da Cinelândia pode se en-
Serrador a importar não apenas os cine- caixar como típico produto da crescente
mas, mas um modelo mais calculado de “cultura de massas” e da indústria do
progresso e modernidade que não pode “espetáculo-negócio”.8 Pesquisadores

6 WOODARD. James P. O consumo do consumismo: publicitários, empresários e outros aliados para o progres-
so. IV Simpósio Internacional de História do Brasil, Rio de Janeiro, BRASA/CPDOC/FCRB, Fundação Getulio Vargas,
12-13 jun. 2008.
7 Este conceito foi extraído do paper de James P. Woodard, da Montclair St University (EUA) no IV Simpósio
Internacional de História do Brasil, op. cit.
8 Expressão utilizada por Roberto Moura no artigo “A indústria cultural e o espetáculo-negócio no Rio de Ja-
neiro”, incluído na obra de LOPES, Antonio Herculano (org.). Entre a Europa e África: a invenção carioca. Rio de
Janeiro: TopBooks, 2000.

Jonas Abreu arquivo em cartaz 57


como Evelyn Lima e João Máximo9 exa- comum e homogêneo estão interligadas
minaram em diferentes momentos os desde as primeiras décadas do século XX.
aspectos arquitetônicos, culturais e his- Por ser produto de uma indústria de
tóricos que envolveram a introdução do porte internacional, a cultura reproduzida
cinema no Brasil, e são unânimes em en- pelo cinema americano vai se ligar aos in-
focar esta característica, com maior ou teresses do capital industrial e financeiro.
menor intensidade. Estes se interessam por uma massifica-
A partir desta avaliação é possível cons- ção cultural para melhor servir aos seus
tatar que as discussões sobre cultura de propósitos de expansão comercial. Neste
massa que começam a crescer durante sentido, o cinema se organiza ao final da
as décadas de 1920 e 1930 são úteis para década de 1920 como um produto para as
compreender melhor o fenômeno do pla- camadas mais numerosas da população,
no de Serrador. Este conceito começou a e sua rápida expansão em Nova Iorque
ser discutido no período da formação da e Los Angeles é prova disso, simbolizada
Cinelândia, ocasião em que as característi- pela Broadway e Hollywood.
cas do projeto pareciam apontar para uma O crescimento dos meios de comunica-
possível submissão a uma cultura hegemô- ção conduzia a uma massificação cultural
nica, neste caso, a cultura americana. e aumentava o interesse pela compreen-
Sob pena de sermos reducionistas, são da cultura de massa, no momento em
vamos chamar de cultura de massa toda que o cinema e o rádio ganhavam dimen-
cultura produzida para a população em sões “populares”. Esta acepção é importan-
geral, a despeito de particularidades so- te porque envolve o debate sobre cultura
ciais, étnicas e psicológicas. Os meios de popular. Não vamos aqui discorrer sobre a
comunicação de massa como o rádio e o origem e o significado de um dos conceitos
cinema são os primeiros indutores deste mais contraditórios das ciências sociais, mas
fenômeno produzido para o conjunto das procurar obter uma pista que correlacione a
camadas mais numerosas da população, convivência do cinema como experiência de
isto é, o grande público. massa e as diversas manifestações culturais
A inquietação que a cultura de massa “populares” que serviam de opção à popu-
trouxe foi a mudança identificada no com- lação nas décadas de 1920-30.
portamento dos consumidores, que agora Em princípio, podemos admitir que cul-
podiam dentro da ótica liberal consumir tura popular é toda manifestação cultural
os produtos que desejassem. De uma for- produzida fora de contextos institucio-
ma ou de outra, categorias como cultura nalizados ou mercadológicos e à qual se
nacional, equivalente aos componentes atribuiu um significado que tanto podia
da identidade de um povo, ou cultura de abranger a população em geral como ser
massa, tratada com o sentido de uma sub- aplicado a uma cultura que nascia espon-
missão das demais culturas a um projeto taneamente das próprias massas.

9 MÁXIMO, João. Cinelândia: breve história de um sonho. Rio de Janeiro: Salamandra, 1997.

58 arquivo em cartaz O projeto de Francisco Serrador...


Ginzburg10 aprofundou uma questão orientada para a comercialização profis-
que se torna fundamental para o presen- sional que ganhava o espaço público e os
te estudo, a relação entre a cultura das locais noturnos de entretenimento.
classes subalternas e a das classes domi- A abertura de salas fixas abertas para
nantes. Os limites de subordinação não fi- categorias sociais cada vez mais heterogê-
cam claros e a cultura popular talvez nem neas pode ser compreendida pela oportu-
seja alternativa devido às circularidades nidade de explorar não somente a popula-
e sincretismos culturais e religiosos. Não ção local que passava a ter “tempo livre”
há dúvida de que temos aqui um impor- depois do expediente das fábricas e do co-
tante ponto de reflexão quando se estuda mércio como também atrair o contingente
o crescimento dos cinemas de Serrador crescente de trabalhadores e imigrantes
como fenômeno comercial voltado para o que acorriam à cidade. Configurava-se, se-
grande público do Rio de Janeiro. gundo Moura, a busca por diversão numa
O cinema de forma geral pode ser con- época em que a transição do estado aris-
siderado uma ferramenta da cultura de tocrático e feudal para o estado nacional
massas, mas pode lidar com produtos in- desvinculava os artistas dos mecenas e os
seridos na cultura popular. No contexto da liberava para contratos com empresários
comercialização dos espetáculos, aquilo em busca de expansão de seus negócios
que poderia ser classificado como “cinema por meio da venda de ingressos.11
popular” porque vindo da cultura popular, Não cremos que se possa desprezar a
talvez não seja “popularizado”, isto é, não equação que se monta no início do século
tenha rendido bons resultados comerciais. XX, quando a “cultura popular” e a “cultura
Por outro lado, passa-se também a perce- de massas”12 passam a ser expressões uti-
ber filmes “popularizados” que não sejam lizadas para o entendimento de modelos
“populares”, ou seja, são bem-sucedidos comerciais globais, como o cinema, identi-
comercialmente na cadeia produtiva da in- ficando a sua matriz exportadora originária
dústria cultural, mas possuem uma origem tanto na Broadway como em Hollywood.
mais seletiva ou elitista. Vamos avançar um pouco mais nessa re-
Para Roberto Moura, a experiência de flexão para constatar o papel do cinema
popularização da cultura conduzida pelo como veículo da cultura de massas.
estabelecimento de um mercado consu- No contexto da indústria cultural que
midor tem origem na França. Remeten- se formava com o disco e o cinema, e mais
do-nos ao século XIX e mais precisamente tarde com o rádio, os conceitos de “popu-
à legendária Paris, a capital cultural que lar” e “popularizado” poderiam ser classi-
se universalizava, ele constatou a organi- ficados como distintos. De fato, o grau de
zação de um centro de produção artística disseminação do bem cultural não depen-

10 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
11 MOURA, Roberto, op. cit., p. 129-130.
12 Ver GINZBURG, Carlo, op. cit.

Jonas Abreu arquivo em cartaz 59


Nos anos 1970,
embora não
mais tivesse
o glamour
de outrora,
a Cinelândia
mantinha
grandes salas
de exibição
como o Odeon,
o Palácio e o
Império. Rio de
D_797_FOTOGRAMA_03

Janeiro, 1977.
Fundo Brasileiro
de TV Educativa

dia mais no início do século XX de sua clas- códigos culturais que classificavam os
se de origem para ser aceito por outra. gostos em eruditos ou populares, por-
Antes do advento do cinema falava-se que simplesmente os transformava em
de cultura popular em oposição à cultura mercadoria. Em parte, por causa disso,
erudita das classes aristocráticas. Ginz- explica-se a tenacidade de Francisco Ser-
burg introduz posteriormente a ideia de rador em procurar direcionar para cada
que a cultura popular traz embutidas as um de seus cinemas um tipo de público
conexões mais ou menos heterodoxas mais ou menos diferenciado.
que constroem um tecido interativo, as- Esta matriz de negócios ganharia
sociado a uma base multicultural. A in- um termo próprio, “indústria cultural”,
dústria cinematográfica que se organiza- cunhado pelos filósofos e sociólogos ale-
va em Hollywood está ancorada em um mães Theodor Adorno e Max Horkheimer
sistema que agrega diversas categorias e utilizado no livro Dialética do esclare-
sociais como alvos comerciais. Em de- cimento (1947). As primeiras empresas
terminado local pode atender especial- cinematográficas de origem americana já
mente as elites, em outros às camadas operavam desde a década de 1910 com
mais populares. Seu comprometimento as ferramentas que seriam padronizadas
principal era expandir-se como comércio posteriormente quando se consolidaria
cultural voltado para públicos heterogê- o conceito. De acordo com os autores, a
neos dispersos nas grandes cidades. Este criação deste marco teórico serve para
modelo não estava preocupado com os definir a conversão da cultura em merca-

60 arquivo em cartaz O projeto de Francisco Serrador...


doria, observando nas possibilidades ex- utilizada permite ao consumidor pensar
ploradas pelos veículos de comunicação que ela é sua, um sujeito sem ser, pois
(jornal, rádio e TV), os portadores desta o consumidor funcionaria como receptá-
produção cultural guiada pelo consumo. culo de necessidades institucionalizadas.
Embora este debate possa ajudar a iden- Apesar das críticas que se fazem ao
tificar as formas de estandardização do estudo de Adorno, entendemos que a in-
gosto público, as imposições de estereóti- dústria cinematográfica americana pode
pos e a qualidade dos produtos, é a ênfa- ser compreendida através de vários pre-
se adorniana na questão comportamental ceitos que se encaixam no formato teóri-
que nos interessa aqui. O autor afirma que co pretendido aqui por Adorno. Também
não se pode estudar o comportamento por esta via, a tendência americana para
dos ouvintes [telespectadores] sem levar o formato exclusivamente cinematográ-
em conta que seja resultante de amplos fico das salas de exibição, ao contrário da
projetos de comportamento social condi- experiência europeia de adaptar teatros e
cionados pela estrutura da sociedade. cinemas em um ambiente único, configu-
Também por essa via, o indivíduo não rava um tipo de espetáculo aberto aos no-
é mais soberano como a indústria cultu- ticiários, desenhos animados e longas-me-
ral parece supor, não é o seu sujeito, mas tragens, que insere um tipo de influência
seu objeto. Seguindo este raciocínio esta- semelhante àquela discutida por Adorno.
ríamos na situação de conferir ao sujeito A tendência à padronização e à diversifica-
que entra em contato com o produto cul- ção direcionava o Quadrilátero do Cinema
tural o papel de recebedor de ordens, in- proposto por Serrador para um público de
dicações, proibições ou restrições. massas, porém mais heterogêneo. Havia
Theodor Adorno, da segunda fase da um processo de inserção social cuja pro-
Escola de Frankfurt,13 desenvolve essa posta girava em torno da criação de novas
construção analítica considerando que cosmologias e práticas sociais urbanas.
estes fenômenos são atribuídos às forças
sociais que os originam. A indústria cul- Conclusão
tural é um parâmetro teórico que Adorno
utiliza para explicar como os empreende- A partir dessa avaliação, procuramos
dores culturais determinam o consumo elucidar como os cinemas que foram
excluindo tudo que é novidade perifé- inaugurados a partir de 1925 na Cine-
rica, o risco inútil, e impõe uma adesão lândia poderiam ser descritos como pro-
acrítica aos valores emitidos. Num con- dutos culturais popularizados, ou seja,
sumo como esse, o tipo de linguagem frequentados por um vasto leque de ca-

13 A Escola de Frankfurt (Institut fur Sozialforschung) propõe uma teoria social como um todo. Um dos objetivos
principais da Escola era o de explicar como se dava a organização e a consciência dos trabalhadores industriais, com
aplicações na Comunicação Social, Psicologia e Antropologia. Além de Adorno e Horkheimer, destacam-se neste
grupo de pesquisadores Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Jürgen Habermas, Thomas Mann, entre outros.

Jonas Abreu arquivo em cartaz 61


tegorias sociais. Entretanto, as salas de feridos das elites chiques que faziam o
espetáculo direcionam-se para públicos- footing da cidade, mas também estas se
alvo específicos. Por exemplo, no caso dos cruzavam com os transeuntes da Avenida
cinemas de Serrador, enquanto o Capitó- Rio Branco. Os lambe-lambes espalhados
lio e o Odeon atraíam predominantemen- por toda a praça fotografavam este des-
te a classe média da Zona Sul, o cinetea- file de “melindrosas e almofadinhas”,14
tro Glória combinava teatro e cinema, o em meio aos estrangeiros, comerciantes,
Palácio da Rua do Passeio configurava-se profissionais liberais e trabalhadores, to-
como referência em teatro-cassino e o dos consumidores de cinema.
Pathé-Palácio de Marc Ferrez, junto com Nos anos 1940, o cinema que em anos
os cinemas da Rua Álvaro Alvim, atraíam anteriores havia capturado para a Praça
as camadas mais populares. Floriano o locus da cidade estaria sendo
Os quatro cinemas originais de Serrador superado por novas forças emergentes
(Capitólio, Glória, Império e Odeon) eram da indústria cultural. A gênese de Ser-
na verdade cineteatros com fossos de or- rador começou a ser ultrapassada pelos
questra, por onde passaram musicais de night-clubs, como Casablanca, Night and
revista batizados como revuette no melhor Day e Montecarlo. Assim a Cinelândia
estilo francês, mas o cinema tinha “sota- deixava de ser a terra dos cinemas, para
que americano”, como revela João Máxi- ser apenas a “Cinelândia” – um local de
mo. Como na Broadway, Serrador atraía o novos encontros e novos sentidos.
público para mais perto de seus cinemas Quando chegamos à década de 1950,
com os cafés, restaurantes, casas de chá, o termo Cinelândia já não se apresen-
confeitarias e bares. Foi Serrador quem tava como associado aos cinemas de
trouxe o hot dog e as pipocas dos cinemas Serrador, mas tomava o sentido de uma
americanos para o Rio de Janeiro. praça que, remodelada com vários pré-
Dos Estados Unidos chegavam versões dios demolidos e reconstruídos, prepa-
de Os dez mandamentos, Sangue e areia rava a cena urbana para novos signifi-
e Rei dos reis. Nomes como Charles Cha- cados que envolveriam o local como
plin, Buster Keaton, Tom Mix − o caubói, síntese da política regional nas décadas
além de Greta Garbo, Boris Karloff e Ro- seguintes. A cidade buscava outras cen-
dolfo Valentino “circulavam” pelo novo tralidades, o locus da cidade traçava
centro cultural e de consumo da cidade, seu rumo à Copacabana, pois ele jamais
deslocado para o Bairro Serrador. permanece de forma duradoura nos
Até a década de 1930, a Praça Floriano espaços. Mas isso será objeto de outra
e a Rua do Passeio tornam-se locais pre- história, outro artigo.

14 Personagens do desenhista J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha). A melindrosa representava a imagem fiel
da carioca da época: curvilínea, magra, elegante, vestido leve, justo e curto, com chapéu cloche, quase até os
olhos, de onde saiam cabelos em mechas encaracoladas, flanando nunca sozinha e nunca com o namorado. O
almofadinha tinha um maneirismo quase feminino, “mais para dandy do que para Gilbert ou Barrymore” (MÁXI-
MO, João, op. cit., p. 84).

62 arquivo em cartaz O projeto de Francisco Serrador...


Acervo RSF
Revista Cinearte nº 219, Revista Cinearte nº 265, Na edição de nº 390, de
5 de maio de 1930. Na 6 de março de 1931. O 9 de maio de 1934, o
capa, a atriz brasileira de ator britânico Dennis King destaque foi para a atriz
origem francesa Nita Ney ilustra a capa americana Clara Bow

Revista Cinearte, Taís Campelo Lucas


cartografia e Doutora em História pela Universidade Federal do Rio
testemunho do Grande do Sul e mestre em História pela Universidade
Federal Fluminense.
cinema brasileiro

No Brasil, o cinema transformou-se por indivíduos em sociedade, cientes de


em prática social ao longo dos anos, du- que viviam o novo.
rante os quais o espaço urbano adaptou- As primeiras “imagens animadas” apor-
se gradativamente para receber, nas tam no Rio de Janeiro em julho de 1896. Os
áreas centrais das grandes cidades, a po- cinquenta anos iniciais do desenvolvimento
pulação de elevado nível socioeconômi- do cinema no país receberam estudos pro-
co. Signos da modernidade se chocavam venientes de diferentes áreas de conheci-
com epidemias, greves e revoltas popu- mento e, na área da História, passa a desta-
lares nessa República jovem, marcada car-se a partir da década de 1990, quando
pela clivagem social e pela busca de uma os primeiros trabalhos são apresentados
identidade própria. Tal como no Renasci- aos cursos de pós-graduação, introduzindo
mento, as capacidades de percepção hu- elementos teórico-metodológicos da histó-
mana foram redimensionadas, transfor- ria social e da história cultural nas análises
mando as experiências compartilhadas sobre a história do cinema brasileiro.

arquivo em cartaz 63
É necessário apontar aqui o desapare- estratégico cenário que exige que a política
cimento da palavra ideologia das análises recupere sua dimensão simbólica – sua ca-
mais recentes. O conceito permanece pacidade de representar o vínculo entre os
presente, indiretamente, como “proces- cidadãos, o sentimento de pertencer a uma
so material geral de produção de ideias, comunidade – para enfrentar a erosão da
crenças e valores na vida social”, asseme- ordem coletiva [...].2
lhando-se à noção ampla de cultura.1 No
entanto, sua força reside na capacidade Essa reflexão conduz ao próprio modo
de enfatizar as lutas de poder centrais na sobre como o cinema deve ser pensado
sociedade, de modo politicamente eluci- enquanto prática social no Brasil. Em pri-
dativo. Talvez falte a nós, historiadores, meiro lugar, altera-se a noção de audiên-
destacarmos a centralidade do cinema cia, vista agora como um grupo com opi-
nos processos políticos. nião própria, que pode ser influenciada
Ao reconhecer os meios de comunica- em suas decisões, porém não “cooptada”
ção como espaços-chave de condensação e “manipulada”, no sentido pejorativo de
e intersecção de múltiplas redes de poder que a “massa” irracional não possui ca-
e de produção cultural, Jesús Martin-Bar- pacidade de escolha. A participação dos
bero aponta que processos de constitui- atores sociais possui um sentido político,
ção do massivo devem ser investigados que não se limita ao modo linear e previsí-
observando a articulação entre sujeitos, vel da história analisada sob o viés de ma-
práticas de comunicação e sua mediação triz estruturalista. Em segundo, é ingênuo
com os movimentos sociais. Isso significa – pensar que o investimento inicial em uma
novamente pensando as contribuições da indústria cinematográfica brasileira foi
história política renovada pelas questões condicionado apenas por fatores externos
culturais – deslocar o lugar das perguntas. (“imitações de Hollywood”) ou por em-
preendimentos individuais “sonhadores e
Se falar de cultura política significa levar irrealistas”. A criação artística, voltada para
em conta as formas de intervenção das lin- um público em larga escala, demandou a
guagens e culturas na constituição dos ato- organização de complexas estratégias e re-
res e do sistema político, pensar a política des de sociabilidade para sua viabilização
a partir da comunicação significa pôr em no mercado capitalista. Torna-se necessá-
primeiro plano os ingredientes simbólicos rio questionar as formas de construção da
e imaginários presentes nos processos de memória cinematográfica nacional.
formação do poder [...] Na antiga capital federal, o mercado
Então, mais do que objetos de políticas, a cinematográfico desenvolveu-se, nos pri-
comunicação e a cultura constituem hoje meiros anos, fortemente apoiado pelos lu-
um campo primordial de batalha política: o cros do jogo do bicho. As ligações entre os

1 EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Ed. Unesp; Boitempo, 1997. p. 38.
2 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ, 2001. p. 115.

64 arquivo em cartaz Revista Cinearte...


empresários das “diversões públicas” com atualidades, que sustentarão as poucas
o jogo são bastante conhecidas,3 indicando produções de ficção.
a origem dos capitais investidos na abertu- Após esse período, as películas feitas
ra das salas exibidoras e na produção ar- a partir de encomendas institucionais,
tesanal das primeiras películas. Até 1907, publicitárias ou de exaltação de perso-
a filmagem brasileira restringia-se aos cha- nalidades – a chamada “cavação” – per-
mados filmes naturais e de atualidades, mitiram a sustentação das produções
imagens “não posadas”, que poderiam cinematográficas brasileiras. A amplia-
ser classificadas como não ficção ao con- ção no número de filmes de não ficção
trapor-se aos filmes de enredo. Jogos de incrementa a produção dos de ficção,
futebol, funerais de figuras de destaque, mantendo as condições para a criação de
construções de estradas, vistas da cidade, filmes de enredo, majoritariamente de
revoltas, operações cirúrgicas, crimes eram curta-metragem, além de possibilitar a
assunto para as filmagens. Os “naturais” ti- abertura de produtoras em todo país e o
nham uma boa demanda de público, que desenvolvimento da linguagem cinema-
irá expandir-se ainda mais com a produção tográfica. Observando a continuidade das
dos primeiros “posados” nacionais. realizações no período, pode-se questio-
Entre 1907 e 1911, a denominada bel- nar a noção de “ciclos” cinematográficos
le époque do cinema nacional significou no país, desde que sejam considerados
um período mais artesanal de produção filmes de não ficção e a produção de fora
cinematográfica, com clara vinculação do eixo Rio-São Paulo.5 A produção não
entre o produtor e o exibidor das pelícu- desapareceu, como se afirmara anterior-
las e com o mercado internacional sem mente; conforme destaca Jean-Claude
o grau de monopolização que adquiriria Bernardet, tal engano resulta da tendên-
após a Primeira Guerra Mundial.4 Entre- cia em “aplicar ao Brasil, sem crítica, um
tanto, o panorama favorável declinou modelo de história elaborado para os
ao início da era do longa-metragem no países industrializados em que o filme de
cinema internacional. A mudança para ficção é o sustentáculo da produção”.6
um caráter industrial de produção teve Um dos reflexos dessa posição está na
reflexos imediatos no Brasil, com perda noção corrente de que o pensamento ci-
de espaço para a produção local. Ao final nematográfico crítico desenvolveu-se, no
dessa “época de ouro”, o cinema brasilei- país, pautado ora pela importação de ideias
ro fica reduzido aos naturais e jornais de “do mundo desenvolvido”, ora pelas “ideias

3 MAGALHÃES, Felipe Santos. Ganhou, leva... Do vale o impresso ao vale o escrito: uma história social do jogo
do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960). Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2005. p. 82-84.
4 XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 120-121.
5 PÓVOAS, Glênio. Histórias do cinema gaúcho: propostas de indexação. Tese (Doutorado em Comunicação),
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. p. 47.
6 BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979. p. 28.

Taís Campelo Lucas arquivo em cartaz 65


fora do lugar”, que explicariam o fracasso de de ideias sobre criação e incentivo ao de-
uma cinematografia nacional. Para Ismail senvolvimento do cinema brasileiro. Mais
Xavier, o debate político sobre o cinema que um espaço de sociabilidade, Cinearte
surgirá apenas na medida em que os euro- apresentou-se como a principal engrena-
peus passaram a se preocupar em proteger gem de articulação do meio intelectual e
seus mercados cinematográficos frente artístico nacional para a questão do cine-
à expansão norte-americana.7 Ao buscar ma durante o governo Vargas.9
compreender a formação da autoimagem Literato, historiador, engenheiro, buro-
da nação através dos filmes realizados nos crata, jornalista, crítico de cinema, Behring
anos de 1930 e 1940, entre o cinema conce- foi diretor e fundador de três grandes pe-
bido pelos realizadores e o filme pronto re- riódicos no Rio de Janeiro – Kosmos, Para
side o vácuo entre o sonho e a frustração de Todos... e Cinearte – e sintetiza uma gera-
um cinema apenas “possível”.8 O fracasso ção de intelectuais polígrafos, intelectuais-
enquanto chave de leitura para análise da artistas, como ressalta Angela de Castro
produção cultural no Brasil não se sustenta, Gomes, “doublé de teórico da cultura e de
servindo apenas como reforço às teses so- produtor de arte, inaugurando formas de
bre colonialismo cultural e falta de autenti- expressão e refletindo sobre as funções e
cidade da criação local. desdobramentos sociais que tais formas
O Rio de Janeiro, Distrito Federal, con- guardariam”.10 Gonzaga era desde jovem
tava à época com 76 espaços de exibição um entusiasta da cinematografia e cola-
para uma população que já era um pou- borava com diversos jornais e revistas na
co maior de um milhão de habitantes. A capital com artigos sobre os lançamentos
constituição de cineclubes e a publicação recentes. Em suas 561 edições, Cinearte
de revistas especializadas contribuíram traria de forma permanente uma seção
para a criação de um movimento cine- dedicada com exclusividade ao cinema
matográfico por todo o país. Nascida de brasileiro sob o nome de “Filmagem Bra-
um espaço dedicado à cinematografia no sileira”, “Cinema Brasileiro” ou “Cinema do
interior da revista Para Todos..., é pelas Brasil”. Mais que um espaço de divulgação,
mãos de Mário Behring (1876-1933) e essas páginas marcariam o engajamento
Adhemar Gonzaga (1901-1978) que sur- da revista pelo reconhecimento do cinema
ge a revista Cinearte em 3 de março de nacional junto ao público e junto às auto-
1926. Durante seus 16 anos de existência, ridades, reivindicando o recebimento de
foi o locus privilegiado para o encontro incentivos e de regulação.

7 XAVIER, Ismail, op. cit., p. 173.


8 LINO, Sônia Cristina da Fonseca Machado. História e cinema: uma imagem do Brasil nos anos 30. Tese (Dou-
torado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1995.
9 Salvo quando indicado, as análises sobre a revista Cinearte a seguir são fruto da minha pesquisa de mestrado,
defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em 2005. LUCAS, Taís
Campelo. Cinearte: o cinema brasileiro em revista (1926-1945). Dissertação (Mestrado em História), Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2005.
10 GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio... Modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999. p. 13.

66 arquivo em cartaz Revista Cinearte...


A revista atuava como um catalisador nematográfica brasileira. Segundo a autora,
de ideias, estabelecendo “pontes” entre a estratégia de uma política cultural voltada
os diferentes grupos envolvidos com o para a propaganda nacionalista contribuiu
cinema no país, como produtores cine- para que o cinema nacional não tenha se
matográficos, educadores, jornalistas e organizado autonomamente.11 De fato, é
representantes do governo. A mediação evidente a intenção do governo de aliar o
cultural exercida por Behring, Gonzaga e cinema ao projeto de construção da Nação,
Pedro Lima (1902-1987), responsável pela aliança defendida por Cinearte. Estado, in-
seção “Cinema Brasileiro” entre fevereiro telectuais e produtores cinematográficos
de 1927 e março de 1930, permitiu a ar- colocam-se no papel de educadores do es-
ticulação de iniciativas conjuntas, como a pectador, aspirando à união entre imagem
realização do Convênio Cinematográfico. cinematográfica e identidade nacional.12 A
Reunindo jornalistas, educadores, cine- imagem do Brasil mostrada nas telas era
astas, membros do governo, exibidores, uma preocupação da revista, que defendia
representantes dos governos estaduais e que o cinema apresentasse um país belo e
intelectuais, teve como objetivo discutir moderno, assim como a influência dos fil-
as propostas para formulação de políticas mes sobre os espectadores. As possibilida-
públicas para a área cinematográfica no des pedagógicas do cinema educativo eram
Brasil. Os resultados dos debates repercu- frequentemente debatidas em Cinearte,
tiram no decreto nº 21.240, de 4 de abril que apoiou a criação do Instituto Nacional
de 1932. As principais mudanças estabe- de Cinema Educativo (INCE) em 1936.
lecidas foram: a nacionalização do serviço Para Cinearte, estava claro que o filme
de censura dos filmes exibidos no país, nacional só não fazia sucesso porque não
solicitado a partir do pagamento da “Taxa era visto, posto que era menosprezado pe-
cinematográfica para educação popular”; los donos das grandes salas de cinema, afi-
a obrigatoriedade de incluir, na progra- liadas diretas dos estúdios cinematográficos
mação de cada sessão, filmes curtos que de Hollywood. Em sua campanha pelo cine-
fizessem divulgação de conhecimentos ma brasileiro, a revista declarava em quase
científicos, motivos artísticos, divulgação todo exemplar o lema “todo filme brasileiro
cultural ou que revelassem aspectos da deve ser visto”. Engajada, a moderna crítica
natureza; a implantação de uma cota fixa realizada em Cinearte transformou o pensar
mínima para exibição de filmes nacionais e o fazer cinema no Brasil. Seu resgate em
nas salas de cinema; e a redução das tari- pesquisas recentes reafirma sua importân-
fas de importação do filme virgem. cia como registro das relações entre cinema
Simis enfatiza a relação de mecenato es- e política nos anos Vargas e os esforços de
tabelecida com os produtores na ação esta- homens e mulheres pelo desenvolvimento
tal para o desenvolvimento da indústria ci- da Sétima Arte nos trópicos.

11 SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996.


12 SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.

Taís Campelo Lucas arquivo em cartaz 67


O Rio de Janeiro
nas primeiras
décadas do
século XX.
A capital se
modernizava,
reafirmando-se
como referência
cultural do
país. Vista da
Lapa, a partir
BR_RJANRIO_FF_LF_1_0_1_2_175

do Morro de
Santo Antônio,
antes da sua
demolição
parcial. Rio de
Janeiro, [192-].
Acervo Família
Ferrez

Cineclubismo Julio César Lourenço


à brasileira: as Doutorando em Sociologia pela Universidade
contribuições do Chaplin Federal do Paraná (UFPR).

Club para a crítica Franciele Alves


cinematográfica Mestre em Educação pela Universidade Estadual
de Maringá (UEM), Socióloga/Analista Socioambiental da
Companhia Paranaense de Energia (COPEL).

Produto das transformações tecno- sua invenção, tornou-se referência em


lógicas que estavam ocorrendo no final diversos países, inclusive no Brasil, à
do século XIX, o cinema se difundiu ra- medida que proporcionava movimento
pidamente pelo mundo como um meio à vida cultural nos grandes centros ur-
extraordinário de circulação de conhe- banos. O cinema chegou cedo ao Brasil,
cimento, difusão de novas experiências a primeira exibição de cinema por aqui
do viver urbano e valores culturais na ocorreu no Rio de Janeiro, aproximada-
modernidade. O êxito da técnica cine- mente seis meses após a apresentação
matográfica foi tamanho que, logo após dos irmãos Lumière,1 na Europa.

1 Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862-1954) e Louis Jean Lumière (1864-1948), os irmãos Lumière,
foram os inventores do cinematógrafo (cinématographe), sendo frequentemente referidos como os pais do cine-
ma (Auguste Lumière. Internet Movie Database. Disponível em: <http://www.imdb.com/name/nm0525908/>.
Acesso em: 26 mai. 2015.

68 arquivo em cartaz
De entretenimento popular e bara- a modernidade como uma experiência
to, como era considerado nas primeiras existencial e íntima. Observa Gonzaga5
décadas do século XX, o filme cinema- que, em 1900, havia no Rio de Janeiro
tográfico logo se transformou numa duas salas de cinema; em 1910 já exis-
instância formativa poderosa, criando tiam 72, em 1920, 85, e em 1928, 104.
novas práticas e ritos urbanos. Rapida- Em vista desse contexto, é possível
mente se tornou um amplo empreendi- dizer que a consolidação do movimen-
mento comercial e industrial, que envol- to cineclubista é inseparável da conso-
via revistas, moda, produtos estéticos e lidação da cultura cinematográfica. Ele
discos, e infundia estilos de vida.2 é resultado de basicamente dois mo-
No Brasil, assim como nos Estados vimentos: a afirmação do cinema en-
Unidos e na Europa, as salas de cinema quanto arte e uma trajetória histórica
nas primeiras décadas do século XX se de formação e organização de um públi-
multiplicaram rapidamente e tornaram- co. Nos anos 1920 já existia no Brasil um
se cada vez mais presentes na vida das comportamento de consumo habitual
pessoas, não só pela arte, mas também de cinema, a consolidação de obras e di-
pelo fácil acesso. O cinema desbancava retores e a discussão destas produções
os circos, os cafés-concerto, os teatros, em revistas e jornais, porém, de forma
os serões. A esta altura, já era a mais ainda casual e informal. Logo, para su-
importante das diversões das cidades.3 prir esse vazio, os cineclubes surgiram
A cidade do Rio de Janeiro, então ca- do trabalho de cinéfilos que, unidos em
pital do país, pode ser considerada um torno da paixão pela arte cinematográ-
importante palco de desenvolvimento fica, lutavam para difundir seus princí-
da atividade cinematográfica no Bra- pios estéticos e apontar os filmes que
sil. A capital, como mostra Sevcenko,4 mereciam ser consagrados ou, pelo me-
ditava não apenas as novas modas e nos, debatidos.
comportamentos, mas, acima de tudo, Historicamente, as ações cineclubis-
os sistemas de valores, o modo de vida, tas se caracterizam pela exibição, em
a sensibilidade, o estado de espírito e lugares os mais diversos possíveis, de
as disposições pulsionais que articulam filmes considerados não comerciais ou

2 O cinema, naquele momento, como um mero veículo de diversão não se propunha modernista, sequer se
percebia como sétima arte. Sem uma produção sistemática e uma preocupação da intelectualidade por sua lingua-
gem, não figurou na Semana da Arte Moderna de 1922, marco do lançamento público do Modernismo Brasileiro.
Os artistas que lá exibiam suas obras tinham como objetivos a ruptura com as tradições acadêmicas, a atualização
das artes e da literatura brasileiras em relação aos movimentos de vanguarda europeus e o encontro de uma lin-
guagem autenticamente nacional. A ideia era atualizar culturalmente o Brasil, trazendo as influências estrangeiras,
colocando-o ao lado dos países que já haviam atingido sua independência no plano das ideias, das artes plásticas,
da música e da literatura (Semana de Arte Moderna: o que foi? Disponível em: <http://www.puc-campinas.edu.
br/centros/clc/jornalismo/projetosweb/2003/Semanade22/oquefoi.htm>. Acesso em: 10 dez. 2010).
3 GONZAGA, Alice. Palácios e poeiras: 100 anos de cinemas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Record; Funarte, 1996.
4 SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: ______ (org.). História da vida
privada no Brasil – República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3. p. 522.
5 GONZAGA, Alice, op. cit., p. 337. A autora considerou apenas os espaços de exibição comercial e regular.

arquivo em cartaz 69
contrários à lógica mercantil norte-ame- ga, Álvaro Rocha, Paulo Wanderley, Pe-
ricana,6 de forma privada ou pública, dro Lima e Edgar Brasil, na cidade do Rio
tendo como objetivo central promover de Janeiro. Porém, o primeiro cineclube
a discussão sobre a inserção do cinema de atividade sistemática sem dúvida foi
na sociedade. Desde a sua origem, por- o Chaplin Club, formado em 13 de junho
tanto, os cineclubes se destacam como de 1928, na mesma cidade, por Plínio
agentes propositores de novos paradig- Sussekind Rocha, Otávio de Faria, Almir
mas para a atividade cinematográfica, Castro e Cláudio Mello.9
bem como de ações que visam alcançar Em consonância com os primeiros ci-
tais paradigmas.7 neclubes europeus, o Chaplin Club logo
As atividades dos clubes de cinema cedo teve caráter bem definido quanto
foram importantíssimas para que os aos seus objetivos: exibir e promover
filmes começassem a ser concebidos debates de filmes; refletir e entender
não só como um instrumento lúdico, o processo da produção cinematográfi-
mas também como uma obra de arte, ca e se inserir no conhecimento dessa
suscetível de várias interpretações, ob- arte. A partir dele, as exibições e discus-
jetos de fruição estética, de análises e sões de filmes se tornaram regulares e
de discussões. As ações coletivas dos ganharam repercussão no meio cultural
cineclubes estabelecerem experiências do Rio de Janeiro, embora nessa primei-
compartilhadas e criaram um espaço ra fase ainda se restringisse a um pe-
coletivo de discussão e construção de queno grupo de intelectuais.
um saber cinematográfico mais plural, Faria, Rocha, Mello e Castro decidi-
participativo e aberto. ram fundar o Chaplin Club para aban-
Segundo Gatti,8 no Brasil, a atividade donar as discussões das mesas de café
teve início por volta de 1917, de forma e se reunirem em clube de formato
ainda não estruturada com o cineclube acadêmico a fim de debaterem suas
Paredão, formado por Adhemar Gonza- divergências, formalizando com maior

6 O cinema comercial tem uma propriedade muito forte que é a busca incessante pelo lucro, ou seja, a partir
do momento em que é mercadoria de uma indústria que produz e reproduz a arte e a cultura, padrões estéticos,
ideológicos e políticos já estão impregnados nesta forma de cinema. Logo, os primeiros cineclubes surgiram com
uma proposta de reação à intensa padronização que o monopólio do cinema americano estava estabelecendo.
Não obstante, já nasceram como uma organização sem fins lucrativos − o que os separava de forma significativa
dos valores de mercado −, baseados em uma estrutura coletiva e democrática (em maior ou menor grau, mas
sempre democrática) e com uma aberta disposição de se contrapor ao poder monopolizador e alienador do
cinema comercial, valorizando as obras que não encontravam distribuição no mercado comercial ou que eram
rejeitadas por motivos estéticos, políticos, econômicos, entre outros. MACEDO, Felipe. Cinéma du Peuple, le
premier cinéclub. The Cineclub’s Review, n. 1, p. 77-90, 2010.
7 MACEDO, Felipe. Movimento cineclubista brasileiro. São Paulo: Cineclube da Fatec, 1982. Além da exibição,
os clubes têm também como proposta a produção e exposição de estudos sobre a arte cinematográfica, a orga-
nização de mostras e eventos, a busca pela ampliação da programação cultural e a inclusão cultural de inúmeros
agentes nos espaços em que atuam. É um movimento que pretende intervir “social e esteticamente” na vida
cultural dos agentes.
8 GATTI, André. Cineclubismo, cinematecas, entidades culturais cinematográficas: os casos de São Paulo e Rio
de Janeiro (1928-2008). Plano B, n. 3, p. 38-41, outono de 2009. p. 38.
9 Idem.

70 arquivo em cartaz Cineclubismo à brasileira...


seriedade seus estudos e discussões. indiferente à estética do cinema. Foi,
Se nas salas tradicionais de cinema em parte, um esforço de alinhar o cine-
não era exigido do público um conhe- ma brasileiro com os primeiros debates
cimento mais vasto sobre o cinema, no sobre estética cinematográfica de seu
Chaplin Club saber a que experiência tempo. É um registro pioneiro de uma
estética ele pertencia era sempre esti- nascente crítica, 11 desvinculada do ca-
mulado. E a ideia de debater um filme ráter comercial de revistas como Scena
não era somente conhecer sobre sua Muda 12 e Cinearte. 13
produção, seus diretores e atores, mas Neste processo, o Fan nasceu como
buscar compreender como ele dialoga- o primeiro periódico dedicado inteira-
va com outras cinematografias e pers- mente à discussão estética no Brasil,
pectivas cinematográficas. afirmando o projeto do Chaplin Club de
Além dos debates promovidos nos promover a percepção do cinema como
encontros do grupo, o cineclube ma- uma forma de expressão sofisticada,
terializou suas discussões na revista O autônoma e moderna. Destaca-se como
Fan,10 que os integrantes editaram en- uma das virtudes do Fan, ao abrir uma
tre 1928 e 1930. A revista, que teve ao pauta para a crítica cinematográfica, tri-
todo nove edições dispersas ao longo lhar um caminho que ainda não havia
de dois anos, foi fundamental para o sido feito, fazer a intelectualidade bra-
clube expor suas reflexões para outros sileira, a elite aristocrática, conserva-
pesquisadores e também para a socie- dora, discutir e analisar algo que, para
dade. O Fan em muito contribuiu para ela, não passava naquele momento de
formar o gosto de uma elite, até então entretenimento barato e popular.14

10 Todos os números de O Fan foram digitalizados recentemente pela Cinemateca Brasileira e estão disponíveis
publicamente para consulta em sua página na internet: <http://www.cinemateca.gov.br/jornada/2008/coleco-
es_fan.html>. Acesso em: 26 mai. 2015.
11 MENDES, Adílson Inácio. Vanguarda sem retaguarda: o caso Chaplin Club. 2008. Disponível em: <http://
www.cinemateca.gov.br/jornada/2008/filmes_chaplin_texto1.html>. Acesso em: 13 nov. 2008.
12 A revista Scena Muda circulou entre 1921 e 1955, sendo a primeira publicação do país especializada no
tema. Ela foi mais americanizada e mais duradoura que Cinearte, e deu menor atenção ao cinema brasileiro. A
biblioteca Jenny Klabin Segall, do Museu Lasar Segall, em parceria com a Cinemateca Brasileira, a Cinemateca
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a Biblioteca Municipal Mário de Andrade e o Museu Histórico
Nacional, realizou em 2006 o projeto de conservação e digitalização das duas revistas. Elas estão disponíveis no
endereço eletrônico <http://www.bjksdigital.museusegall.org.br/>.
13 A revista Cinearte foi editada no Rio de Janeiro entre os anos de 1926 e 1942. Ela é especialmente impor-
tante para a história do cinema no Brasil, já que foi um dos primeiros títulos nacionais inteiramente dedicados
ao tema. A revista é referência essencial às pesquisas sobre a história do cinema no Brasil. Ramos, em relação à
publicação, afirma que sendo mantida principalmente pelos anúncios de agências internacionais – e seu principal
papel era divulgar o cinema norte-americano –, as reivindicações de seus articuladores iam desde a necessidade
de as companhias estrangeiras que operavam aqui desenvolverem “nosso” cinema, até a sugestão de leis que
facilitassem a importação de película ou que garantissem a exibição de filmes brasileiros ao menos “uma vez
por mês”, disposições estas que não deveriam agredir os interesses dos trustes internacionais. A irregularidade
desses jornalistas e sua inconsistência intelectual e política – que por momentos os faz até tomar posições vi-
rulentas contra o governo ou contra as distribuidoras internacionais –, no entanto, não retiram seus méritos e
contribuições. RAMOS, Fernão. História do cinema brasileiro. 2. ed. São Paulo: Art, 1990. p. 57
14 MELLO, Saulo Pereira de. Octávio de Faria, Film Scholar e o Chaplin Club. [s.l.: s.n.], 1996b. p. 4.

Julio C. Lourenço | Franciele Alves arquivo em cartaz 71


A crise do cinema mudo e o debate mais caro e mais pesado) quanto pelas
em torno do filme Aurora incontáveis adaptações de obras teatrais
(aproveitando o amplo repertório de pe-
Surgido exatamente no momento da ças clássicas ou de sucessos contempo-
transição do cinema mudo15 para o cine- râneos), foi apontado um possível “retro-
ma falado, o Chaplin Club se posicionou cesso” de uma linguagem que atingira seu
ferozmente contra o último. Em 1928, o auge no final da década de 1920.
cinema falado estava ganhando espaço Mello17 observa que a imagem cine-
no gosto do público, por parte da críti- matográfica era o que havia de mais im-
ca e rapidamente suplantando o mudo, portante nesta visão de cinema e devia
mesmo tendo naquele momento uma fluir e desenvolver-se continuamente e
qualidade muito inferior. Nesta transição sem interrupções em cena. Porém, com
de estéticas expressivamente diferentes a introdução da fala, a câmera voltava
é estabelecida uma crise na linguagem ci- a se limitar a filmar a “arte dos atores”,
nematográfica, quadro que mobiliza uma não mais fazendo a distinção entre meio
série de campanhas idealistas em defesa de expressão e meio de reprodução. Des-
ou contrária à fala nos filmes. te modo, a introdução da voz dos atores
Com o advento da fala nos filmes, os era considerada como uma “mitificação
intelectuais do Chaplin Club, em conso- da evolução técnica”, pois anulava o efei-
nância com críticos europeus e cineastas, to da visualização uma vez que retirava a
temeram pela volta do “teatro filmado”,16 imagem do centro das atenções.
nos termos dos então condenados films Para o Chaplin Club, não por acaso,
d’art dos primórdios da Pathé Frères. Na os primeiros anos de produção integral-
passagem para o cinema falado, tanto por mente falada, ou sonora, foram conside-
questões técnicas (um maquinário maior, rados anos de completa estagnação para

15 Utilizo neste artigo o termo cinema mudo. Alguns autores, como Mello, preferem a expressão cinema silencio-
so. Porém, o termo é inadequado, o cinema das primeiras décadas do século XX nunca foi silencioso. Foi mudo, pois
o vocábulo aborda sobre aquele que, por algum motivo, não tem capacidade para falar, que não se manifesta, por
gritos, gestos ou palavras. As cenas mudas são aquelas que se passam entre duas ou mais pessoas que exprimem
seus sentimentos apenas por meio de gestos; denominação que se dava ao cinema antes do aparecimento dos
filmes falados. O silêncio pressupõe a ausência de qualquer ruído. Neste sentido, um fator importante a considerar
é que a falta de som mecanicamente sincronizado não significava exibição silenciosa. Para que houvesse entendi-
mento do conteúdo eram introduzidas legendas no filme para esclarecer as situações aos espectadores. O acom-
panhamento musical era feito, normalmente, por um pianista ou pequena orquestra ao longo da exibição do filme,
ocasionando uma “confusão” sonora, composta de música ao vivo, ruídos, locução improvisada, gargalhadas. Os
sons existentes acompanham os movimentos das personagens e suas emoções de forma a transmitir a intensidade
da trama. Desta forma, como contraposição ao cinema mudo, utilizo a expressão cinema falado.
16 Transposição mais ou menos direta de peças vistas em sua versão cênica para o cinema. Segundo James
Andrew, na opinião dos críticos das teorias formativas do cinema, a ideia de “teatro filmado” era uma espécie de
insulto à sétima arte. Ela negaria algo essencial ao cinema, a apresentação de ações pelo jogo entre as imagens, e
colocaria em primeiro plano como produtor de sentido o elemento fundamental do texto teatral, a palavra. Des-
de Griffith, os cineastas tentam encontrar forma puramente cinematográfica para a adaptação de obras teatrais,
investindo quase sempre em uma montagem complexa ou no poder expressivo da fotografia. ANDREW, James
Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
17 MELLO, Saulo Pereira de, op. cit., p. 61.

72 arquivo em cartaz Cineclubismo à brasileira...


o cinema. O peso da nova descoberta, a a arte cinematográfica deveria ser jul-
palavra – a palavra ainda não “assimila- gada.19 Como uma arte independente,
da” pelos novos cineastas –, para eles, o cinema deveria ser julgado pelos ele-
esmagava toda e qualquer possibilida- mentos que o faziam possuir esta especi-
de de criação e asfixiava de tal modo o ficidade, como o ritmo, o corte, o som, a
poder de expressão da imagem que, nos narrativa e a fotografia.
meios culturais, chegou-se até a duvidar No Chaplin Club, boa parte das dis-
do futuro do cinema como arte.18 cussões abordava as obras do diretor
Neste momento, o grande referencial Murnau,20 uma das principais referências
na defesa do cinema mudo responde por do cinema europeu daquele momento.
Chaplin, que foi um dos cineastas que A exibição de seu filme Aurora (Sunri-
mais fervorosamente se contrapôs ao se, 1927)21 no Palácio Theatro, em 28 de
cinema falado e não à toa se tornou pa- maio de 1928, provocou, no primeiro nú-
trono do clube brasileiro. Durante parte mero do Fan, de agosto de 1928, tanto
de sua carreira, o cineasta se recusou ve- uma crítica contundente de Rocha, como
ementemente a aceitar o cinema falado, uma defesa entusiasmada de Castro ao
justificando que ele atacava as tradições filme e a Murnau. Os conflitos internos
da pantomima que fora estabelecida na do grupo eram, no entanto, claramente
tela com dificuldade e a partir das quais apenas um pretexto para que os amigos-

18 FARIA, Octávio de. A história do cinema: uma pequena introdução. Rio de Janeiro: Ediouro, 1964. p. 29.
19 Embora o cinema falado naquele momento estivesse se tornando padrão dentro do meio cinematográfico,
este recurso fora incorporado na obra do cineasta apenas a partir de O grande ditador (1940).
20 Friedrich Wilhelm Plumpe, que mais tarde passaria a assinar F.W. Murnau, nasceu em Bielefeld, Alemanha, em
28 de dezembro de 1889. Estudou literatura, filosofia, música e história da arte nas universidades de Heidelberg
e Berlim. Por volta de 1910, aproximou-se do diretor teatral Max Reinhardt e colaborou em diversos filmes de
propaganda durante a Primeira Guerra. Sua carreira como diretor de cinema teve início em 1919 com Satanás,
hoje considerado perdido. O reconhecimento viria com os filmes Fantasma (1922), Nosferatu (1922) e, princi-
palmente, com A última gargalhada (1924), que o transformaram em celebridade na Alemanha. Convidado por
William Fox para trabalhar em Hollywood, partiu para os EUA em 1926. No ano seguinte, realizou para os estúdios
da Fox aquela que é considerada por muitos sua obra-prima: Aurora (1927), com roteiro de Carl Mayer e cenários
de Rochus Gliese. Embora o filme não tenha sido um sucesso de bilheteria, recebeu três prêmios na primeira
cerimônia de premiação da Academia de Artes e Ciências de Hollywood, em 1929: melhor atriz (Janet Gaynor),
melhor fotografia (Charles Rosher e Karl Struss) e melhor qualidade artística. Conhecido em Hollywood por seus
hábitos excêntricos, Murnau ainda faria mais dois filmes para a Fox, mas, após um desentendimento, lançou-se
em um projeto independente ao lado dos irmãos Robert e David Flaherty: o filme Tabu (1931), realizado no Taiti.
Murnau morreu em 1931, num acidente automobilístico na Califórnia, dias antes de lançar seu último filme. Quase
esquecido por muitos anos, foi reabilitado pela crítica Lotte Eisner quando esta lançou sua biografia, na década de
1960. Então, foi finalmente reconhecido como o grande mestre das paisagens poéticas, permanecendo como um
dos personagens mais geniais e misteriosos do cinema alemão. CÁNEPA, Laura Loguercio. Expressionismo Alemão.
In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006. p. 84-85.
21 Aurora é um dos mais importantes filmes da cinematografia mundial, e naquele momento era a mais cara
produção lançada pela Fox Film Corporation. Em 1929, o filme foi laureado com três estatuetas do Oscar, o
prêmio mais importante do cinema (fotografia, melhor atriz e produção cinematográfica única e artística). Em
1967, a revista Cahiers du Cinema escolheu Aurora como “a maior obra-prima da história do cinema”. Recebeu,
em 1989, a classificação de significância histórica, estética e cultural pela Biblioteca do Congresso dos Estados
Unidos e foi selecionado para preservação pelo British Film Institute. Numa pesquisa feita entre críticos para este
mesmo instituto, Aurora foi considerado o sétimo maior filme da história do cinema, ao lado de O encouraçado
Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925), do cineasta soviético Serguei Eisenstein (Sunrise. Internet Movie Data
Base. Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt0018455/>. Acesso em: 26 mai. 2015).

Julio C. Lourenço | Franciele Alves arquivo em cartaz 73


adversários aprofundassem vários pon- uma oportunidade para o aprendizado da
tos controversos que já existiam entre crítica. Elaborá-las ou recebê-las, apren-
eles, mesmo antes da fundação do clube. der a debatê-las, aceitá-las ou refutá-las
O que estava no centro do debate são passos importantes para uma efeti-
era o encontro das novidades estéticas va participação social. E o grupo crescia
do cinema europeu representado por com a divergência, pois tão importante
Aurora, marcado pelas cenas mais lon- quanto propor ideias era defendê-las. A
gas e com poucos cortes, personagens possibilidade da réplica era o momento-
densos e narrativas complexas, com a chave das conversas e significava um es-
tradição do cinema americano repre- tímulo para responder aos desafios co-
sentado por A turba (King Vidor, 1928), locados. Movimento que corresponde a
de cenas rápidas e interativas e uma uma prática que só poderia se realizar a
narrativa mais fluída e marcada com partir de uma coletividade.
começo, meio e fim. Nestes encontros Oriundo da elite carioca e com acesso
eram discutidos os diversos pontos em a publicações americanas e europeias,
que as duas correntes se complemen- o quarteto do Chaplin Club buscava ao
tavam ou se divergiam: principalmente longo de sua atividade se atualizar com
no uso dos letreiros, na continuidade da o que estava sendo produzido de inova-
imagem envolvendo o movimento de dor dentro desta linguagem. Suas fon-
câmera ou a tomada fixa e o corte, no tes principais de informações eram as
ângulo, na decoração, na luz e na dire- revistas francesas e americanas: Liam
ção. E, disperso por todo o debate, mas Photoplay, Picture Play, Motion Pictu-
subentendido a ele, a discussão sobre res, Classic, Cinéa Cine Pour Vous, L´Art
a função do cinema, que era, afinal, o Cinématographique, Monde e números
mais importante de tudo. especiais sobre cinema publicados por
O debate não era apenas bem-vindo, revistas como os Cahiers du Mois ou Le
era a própria essência do clube. A dinâ- Rouge et le Noir. Conheciam livros de Ca-
mica da performance coletiva favorecia a nudo, Delluc, Epstein e Moussiac; textos
construção e elaboração das ideias. Por de Gance, Dulac, L’Herbier e outros.22
isto, a apresentação de trabalhos escri- Porém, pode-se observar que as teorias
tos, sua leitura e discussão eram costu- cinematográficas desenvolvidas no Cha-
mes nas sessões do Chaplin Club. Nestas plin Club possuíram elementos e temáticas
cerimônias era simbolizado o tipo de próprias. O acesso a uma ampla bibliogra-
continuidade pretendida pelos artifícios fia e a distância em relação aos polos de
desta política cultural. produção cinematográfica favoreciam uma
Ao mesmo tempo, a exposição pública relativa independência ao debate do gru-
de um trabalho servia como um elemen- po. E o Fan, por sua vez, concretizou estas
to a mais de motivação, e era sempre contendas em letra escrita, opiniões que

22 XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 220.

74 arquivo em cartaz Cineclubismo à brasileira...


eram antes debatidas nas sessões do ci-
neclube. Foi o melhor que, tanto o clube
quanto a revista, produziram.
A saída para a polêmica cinema mudo
versus falado por parte do Chaplin Club
foi impor que a fala não seria compatível
de nenhuma maneira com a imagem ci-
nematográfica, essa estética sequer era
considerada como cinema, e não houve
qualquer disposição de explicar concre-
tamente por parte do grupo os motivos
desta classificação. Para eles, o real obje-
tivo no estudo da sétima arte era discutir
sobre aquilo que seria mais específico na
linguagem cinematográfica e os rumos
que esta deveria tomar nos anos que se
seguissem. Assim, estudaram os cinemas
de vanguarda europeus e seus reflexos no
arquétipo do cinema clássico americano.
Inicialmente, o tema parecia abranger
apenas o filme de Murnau, Aurora. De-
pois, este tema evoluiu para a oposição
Murnau X King Vidor; Aurora X A turba;
Capa do primeiro número da revista O Fan,
forma expressionista alemã X forma clás- de agosto de 1928, editada pelos membros
sica americana/griffithiana e, finalmente, do Chaplin Club. Acervo Cinemateca
polemizou-se qual deles seria referência Brasileira/SAv/MinC
para os filmes futuramente. Consequen-
temente, problematizou-se sobre o que
era o cinema e suas funções.23 chamento de vários outros. A falta de
Porém, na medida em que a extensão domínio técnico do som e sua inadequa-
de revelações da força do cinema falado da utilização, do que resultava visível (e
se aproximava, a nostalgia antecipada audível) a precariedade dessa produção,
tomava conta do clube. Com a chegada foram superadas anos mais tarde. O Cha-
e consolidação do cinema falado, mui- plin Club podia não gostar da novidade,
tas mudanças ocorreram principalmen- mas sem o falado não haveria o cinema
te na própria forma de se fazer e pensar radiofônico de Orson Welles e nem sua
cinema. Ele abriu uma série de novos obra-prima, Cidadão Kane (1941), o divi-
caminhos tendo por consequência o fe- sor de águas do cinema contemporâneo.

23 MELLO, Saulo Pereira de, op. cit., p. 3.

Julio C. Lourenço | Franciele Alves arquivo em cartaz 75


Ao final da polêmica, não houve ven- o clube, o filme se apresentava como a
cedores no debate e nem era este o primeira produção nacional de vanguar-
objetivo, o problema era partilhar a dis- da e, em tese, ele conseguiria contem-
cussão, justificá-la, uma vez que as con- plar todos os elementos de um filme
versas tinham o intuito de esclarecer os experimental e artístico.
pontos obscuros das análises dos inte- Em Limite, Peixoto juntou a imagem
grantes. Todos os participantes apren- refinada de extração murnausiana ao
deram bastante com as discussões, que Murnau não possuía, o domínio da
revisitaram com as provocações seus montagem e a direção de sutileza griffi-
pontos de vista, aceitaram novas pers- thiana. E o filme correspondeu a todas as
pectivas. Assim, mais importante que expectativas do grupo. O diretor fez um
procurar vencedores é entender os mo- dos filmes experimentais mais expressi-
vimentos do debate, quais foram os ru- vos da história do cinema brasileiro.
mos tomados pelas discussões, mostrar Embora não tenha sido distribuído
a evolução e a força dos argumentos comercialmente, Limite conquistou nas
construídos, em que pontos os autores sessões especiais em que costuma ser
tiveram que ceder e em quais mantive- exibido um grupo de cinéfilos fiéis que
ram suas considerações. Por tudo isto, o mantém vivo até hoje. Produzido no
o Chaplin Club abriu novas formas de momento em que o cinema falado ia
apreciar, pensar ou simplesmente dis- aceleradamente substituindo o filme
cutir um filme. mudo e se firmando no mundo inteiro,
Com a generalização desta então Limite foi o primeiro filme brasileiro a
nova estética, o Chaplin Club se autodis- alcançar um indiscutível sucesso de crí-
solveu, e o Fan deixou de ser publicado. tica, figurando hoje ao lado dos grandes
Os integrantes do clube se profissiona- clássicos da cinematografia mundial.
lizaram em outros campos, se dedica- Ainda que pouco visto, tornou-se men-
ram a novos trabalhos, tornando claro ção obrigatória na história do cinema.
um dos maiores problemas que vários
cineclubes enfrentam, que é o caráter À guisa de conclusão: horizontes
diletante da atividade. desenhados
Os resultados dos debates e os argu-
mentos trocados nas sessões do Chaplin Os movimentos do Chaplin Club pro-
Club aliados à vontade de profissiona- curaram notabilizar a atividade cinema-
lizar a atividade no Brasil por parte do tográfica, encarar o cinema como um
grupo de Cinearte foram duas experiên- produto da modernidade, uma experi-
cias que geraram as condições neces- ência urbana e uma expressão artística
sárias para a realização do filme Limite elevada, própria para o consumo de eli-
(Mário Peixoto, 1931). Na última edição tes cultas, e não apenas ou não mais um
do Fan foi publicado um trecho de Li- divertimento popular. Permitiram anali-
mite, obra considerada pela publicação sar as singularidades do modo como a
como a “grande surpresa do ano”. Para intelectualidade brasileira viu e discutiu

76 arquivo em cartaz Cineclubismo à brasileira...


o cinema e também como a cultura ci- O clube, ao se fazer reconhecido
nematográfica chegou e foi interpreta- como espaço legítimo de cinema e dis-
da no Brasil. cussão, transpôs uma atitude mera-
Há muito que se ler ainda, e prazero- mente contemplativa para se aventurar
samente, nos inúmeros artigos, ensaios em estudos mais aprofundados, densos,
e entrevistas que compõem O Fan. As complexos, iniciando a crítica cinemato-
contribuições do cineclube correspon- gráfica brasileira. Fato que acompanha-
deram ao amadurecimento da refle- va o movimento do cinema brasileiro
xão teórica brasileira sobre o cinema, que caminhava, mesmo que a passos
sendo um grande passo inicial para a lentos, em direção a algo maior, uma al-
construção da cultura cinematográfica mejada profissionalização.
e, consequentemente, da formação do O horizonte que se abriu com o Cha-
cinema brasileiro e das formas de cons- plin Club influenciou vários intelectuais
ciência que esse cinema tem de si mes- e clubes que vieram depois dele (Paulo
mo. Representou ainda um esforço de Emílio Salles Gomes, Saulo Pereira de
alinhar os debates sobre o cinema na- Mello, Vinícius de Moraes, Paulo Cezar
cional com os estudos mais modernos Saraceni, todo o movimento cineclubis-
do cinema europeu, bem como a busca ta nacional, entre outros). Pelo ineditis-
desesperada de uma identidade cultu- mo do trabalho, é creditado ao clube o
ral e social. primeiro capítulo do pensamento cine-
Mesmo com todas as dificuldades, matográfico brasileiro, e sua influência
devaneios e incoerências, o Chaplin na formação da cultura cinematográfica
Club finalizou com grande êxito a par- no Brasil foi fundamental. Assim, mes-
ticipação brasileira no cinema mudo,24 mo de curta duração, a atuação do Cha-
resistindo o quanto pôde ao impacto plin Club, para além de uma agremiação
das falas nos filmes. A riqueza teórica de amigos, se constituiu, por intermé-
dessas discussões travadas nas sessões dio da atividade cineclubista, como gru-
do clube e depois materializadas nas po cultural e social, contribuindo para
páginas do Fan foi, sem dúvida, dos de- abertura de novos caminhos para as
bates mais importantes e de maior re- pesquisas, reflexões e debates que se
percussão já travados no Brasil sobre a desenharam no horizonte da cinemato-
arte cinematográfica.25 grafia brasileira.

24 A discussão entre o cinema mudo e falado, no entanto, foi retomada de forma breve e anacrônica por Viní-
cius de Moraes entre os anos 1941 e 1942 no jornal carioca A Manhã. Ver CATANI, Afrânio Mendes. Vinícius de
Moraes, crítico de cinema. Perspectivas, São Paulo, n. 7, p. 127-147, 1984.
25 MELLO, Saulo Pereira de, op. cit.

Julio C. Lourenço | Franciele Alves arquivo em cartaz 77


Cidade das sombras: o
espaço urbano carioca Márcia Bessa
e a memória de seus (Márcia C. S. Sousa)

Doutora em Memória Social pela Universidade Federal


cinemas de rua do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora-residente da
Fundação Biblioteca Nacional.

“Esse Rio de Janeiro!


O homem passou em frente ao Cinema Rian,
na Avenida Atlântica, e não viu o Cinema Rian.
Em seu lugar havia um canteiro de obras.
Na Avenida Copacabana, Posto 6, o homem passou pelo Cinema Caruso.
Não havia Caruso. Havia um negro buraco, à espera do canteiro de obras.
Aí alguém lhe disse: ‘O banco comprou’”
(Carlos Drummond de Andrade, poeta e cronista, 1986)

A cidade do Rio de Janeiro já con- tras nasceram já nas últimas décadas do


tou mais de 1701 salas de exibição ci- século passado – período de potenciali-
nematográfica em funcionamento nas zação de crise do mercado exibidor bra-
calçadas de suas vias públicas (ruas, sileiro – num conceito híbrido entre rua
praças e avenidas). Hoje, damos conta e centro comercial. Outras ainda, indo
da existência de somente oito2 daque- na contramão do confinamento dos
les tradicionais cinemas de rua3 na ca- shopping centers, insistiram em marcar
pital fluminense. E, destes, apenas um4 território nas ruas da cidade como no-
mantém a macroestrutura original de víssimas salas. Os poucos cinemas ain-
quando foi inaugurado e dois5 nasceram da em funcionamento nas ruas cariocas
exclusivamente no século XXI. Algumas representam suportes de uma memória
dessas salas de exibição cinematográfi- dos cinemas de rua, o que insere essas
ca estão em funcionamento apesar de salas no rol de espécimes em processo
fechamentos, reformas e ameaças. Ou- de extinção.

1 Em meados da década de 1950. GONZAGA, Alice. Palácios e poeiras: 100 anos de cinema no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Record, 1996.
2 CCLSR/Odeon (2015), Cinecarioca Nova Brasília (2011), Espaço Itaú de Cinema (2011), Cine Santa Teresa
(2003/2005), Estação Net Rio (2000), Estação Net Botafogo (1995), Leblon (1951) e Roxy (1938). Não contamos
as salas com programação erótico-pornográfica, por estarem fora do circuito exibidor comercial.
3 Chamamos cinema de rua a sala de espetáculos cinematográficos cuja localização privilegia as calçadas ur-
banas, tendo suas fachada e entrada ocupando diretamente esses passeios públicos; categoria que começa a
operar precisamente quando surgem cinemas em centros comerciais (na década de 1950).
4 O Cine CCLSR/Odeon (2015) ainda funciona em regime de sala única.
5 Cinecarioca Nova Brasília (Complexo do Alemão) e Cine Santa Teresa (Santa Teresa).

78 arquivo em cartaz
BR_RJANRIO_FF_JF_2_0_5_16_8

Plateia no
Pathé-Palace
na estreia
do filme de
Walt Disney,
Fantasia, em
agosto de
1941. Acervo
Família Ferrez

O cinema surgiu como um entreteni- rua podem ser encarados assim como
mento de apelo essencialmente popular formas espaciais de apropriação da pró-
e urbano. Dos primeiros locais impro- pria cultura carioca, onde tais estruturas
visados para a exibição de imagens em materiais assumem, no decorrer de sua
movimento até os palácios cinemato- trajetória de existência, as feições de
gráficos que dominaram a paisagem ur- objetos humanizados; gerando implica-
bana por muitas décadas do século XX, ções significativas sobre a memória e a
o espaço do cinema se solidificou como vida de comunidades. A permanência de
uma atividade de preços acessíveis e algumas dessas salas de exibição urba-
muito próxima do espectador. Ir ao ci- nas nas vias públicas citadinas atestam
nema tornou-se um hábito, sobretudo o nível de participação desses cinemas
entre as décadas de 1920 e 1950. O cine- de rua na evolução de frações do espaço
ma passou a ser uma opção de lazer de urbano e na oferta de entretenimento e
acesso universal, totalmente integrada cultura vivenciada no Rio de Janeiro.
à vida urbana e sensível às (re)organiza- Partindo dos estabelecimentos de pro-
ções do espaço público. O processo de jeções cinematográficas ainda existentes
edificação, sustentação, reformulação e (e em funcionamento) no presente, po-
destruição dos cinemas de rua na cidade demos pensar o processo de eventual
do Rio de Janeiro evidencia as possíveis transformação desses espaços de exibi-
relações estruturais estabelecidas entre ção de filmes em patrimônios culturais.
determinadas disposições físicas e mo- Os cinemas de rua podem encenar pa-
delos de frequentação. Os cinemas de péis sociais e simbólicos na vida cotidia-

arquivo em cartaz 79
na, ao mesmo tempo em que também treias, das mentes dos espectadores e da
podem evidenciar capacidades de agen- história da cidade certamente eles não
ciamento, motivando efeitos expressivos saem. A memória, quanto aos cinemas de
sobre os sentimentos de pertencimento rua, é mesmo uma ilha de edição, como
e autoconsciência individual e coletiva. profetizou o poeta Waly Salomão (2001)...
Os cinemas de rua não são simplesmen- Com todos os recursos possíveis.
te salas de projeção. São espaços de so-
cialização comunitária, de construção da Construindo memórias dos cinemas
cidadania e de coexistência da diversida- de rua cariocas
de. Com o desaparecimento do circuito
exibidor das vias públicas interditam-se SALÃO DE NOVIDADES –
lugares vitais de lazer e cultura citadinos, Rua do Ouvidor nº 141.
de um regime de convivência urbana. ANIMATOGRAPHO LUMIÈRE, a última palavra
Elimina-se assim um ponto de encontro, do engenho humano!
um local de discussão, um espaço de vi- A mais sublime maravilha
vência genuinamente coletivo. de todos os séculos!
A biografia de inúmeras dessas salas, Pinturas moverem-se, andarem, trabalharem,
ao longo da história da exibição cinema- sorrirem, chorarem,
tográfica nas ruas do Rio de Janeiro, nos morrerem, com tanta perfeição e nitidez,
mostra o quanto sua existência pode ser como se homens, animais e coisas naturais
efêmera. A especulação imobiliária, a fossem; é o assombro dos assombros!
falta de segurança urbana, o trânsito au- Salve Lumière!
tomobilístico caótico, o número reduzido (Gazeta de Notícias, 1897)
de vagas para estacionamento, as (re)or-
ganizacões urbanas dentre tantas outras As primeiras salas de cinema do Rio de
batalhas travadas pelas grandes cidades Janeiro possuíam duas características bá-
contemporâneas – além, é claro, dos sicas: a simplicidade e a inconstância. A
problemas inerentes à própria indústria maior parte dos exibidores não se fixava
cinematográfica nacional – podem acar- e seguia levando o aparelho de imagens
retar o fechamento dos cinemas de rua animadas a diferentes casas e lugares. A
num curto período de tempo. Nesse pro- primeira sala fixa inaugurada em 1897,
cesso desaparece também um outro tipo na Rua do Ouvidor, 141 – por Paschoal
de experiência fortemente marcada pelo Segreto e José Roberto Cunha Salles –,
espaço arquitetônico do cinema que de- chamava-se Salão de Novidades Paris no
finia um ritual específico. Rio (a mais antiga sala de exibição do Rio
Histórias, memórias e curiosidades de Janeiro e do Brasil). Inicialmente, as
ainda permanecem em diversos espaços sessões de cinema eram exibidas nos lo-
que se transformaram nos mais variados cais tradicionais de diversão e dividiam
comércios e, sobretudo, em igrejas. E se espaço com outras atrações.
nesses lugares não mais estão os filmes, A partir daí, apareceriam diversas salas
funcionários e cartazes das próximas es- cinematográficas – notadamente no Cen-

80 arquivo em cartaz Cidade das sombras


tro da cidade – em teatros, music-halls e
cafés-concerto. O espetáculo cinemato-
gráfico ainda era tecnicamente deficiente
e apresentava programas exaustivamente
reprisados. O primeiro cinema propria-
mente dito surge na Avenida Central, em
1º de agosto de 1907: o Cinematographo
Chic. Até 1914, mais oito cinemas foram
abertos na mesma avenida. Sofisticaram-
se algumas casas de espetáculos e os hábi-
tos foram distinguidos pelas divisões entre
salas, com usos de toaletes obrigatórias e
ingressos para a primeira e segunda clas-

BR_RJANRIO_FF_LF_1_0_1_30_3
se de acordo com o posicionamento na
plateia. A geografia espacial dos melhores
cinemas também foi marcada pelo uso das
melhores localizações. O lado par da Ave-
nida Central – onde não insidia o sol da tar-
de – era o lugar das salas mais sofisticadas.
O cinema começava a consagrar um tipo
particular de sociabilidade. E agora, uma
sala própria para exibir filmes aguçava ain-
da mais curiosidade do público.
Na década seguinte, o empresário
Francisco Serrador lançaria a “terra dos
cinemas”: a Cinelândia Carioca. A inaugu- Cine Pathé-Palace na
Cinelândia carioca,
ração do Capitólio (1925) abriu caminho
marco da arquitetura
para a concretização do projeto da Cine- art decó, inaugurado
lândia, a afirmação dos primeiros movie em 1928 pela empresa
palaces6 cariocas, o surgimento das pri- de Marc Ferrez. Na
década de 1990, o
meiras salas de cinema art déco e a inau- cinema foi fechado e
guração do Cine Metro (1936). O Odeon deu lugar a uma igreja.
(1926), o Império (1925), o Glória (1925) 1930. Acervo Família
Ferrez
e o Pathé-Palace (1928) – este último in-
troduziu a linguagem art déco – eram os
cinemas de destaque na região. Outras

6 Movie palaces, Picture palaces, Palácios cinematográficos ou palácios de cinema eram salas de exibição ci-
nematográfica erguidas nas calçadas citadinas – em meio às construções urbanas habituais –, que primavam por
apresentar construções arquiteturais com planejamento de luxo e requinte, gigantescos templos com capacidade
para um número maior do que mil espectadores e presença mais marcante na paisagem urbana.

Márcia Bessa arquivo em cartaz 81


salas foram abertas nas adjacências do lo- para o cinema começaram a buscar equi-
cal, notadamente no Passeio Público e na parar-se ao padrão Metro. A atuação dos
Rua Senador Dantas. Entre 1929 e 1932, palácios cinematográficos não se restrin-
inspirados pelo sucesso e pelas mudanças giu às salas do Centro carioca. Os subúr-
que as salas da Cinelândia representa- bios da Central e da Leopoldina também
vam, os antigos cinematógrafos da Ave- ganhariam seus exemplares dessas espe-
nida Central começaram a reprogramar taculares salas de exibição. A Zona Norte
seus espaços. A década de 1930 apre- geraria, principalmente através da funda-
sentou mais de cem cinemas nas ruas da mental participação da Praça Saens Peña
capital brasileira. Acelerado pelo advento (no bairro da Tijuca), um polo exibidor tão
do cinema falado – com a exibição de O importante que ficaria conhecido como a
Cantor de Jazz (1927), nos Estados Unidos Segunda Cinelândia Carioca. Os nobres
– e 11 anos após a inauguração da Cine- bairros residenciais da Zona Sul acolhe-
lândia, o lançamento do primeiro cinema riam uma variedade de salas. De modo
da Metro-Goldwyn-Mayer no Brasil – o geral, eram salas que propuseram uma
Metro-Passeio (1936) – reforçaria os pa- maior sobriedade em sua arquitetura. O
drões e a ideologia do modelo dominante objetivo era manter o conforto e a ampli-
do cinema norte-americano. tude difundida pelos cinemas da Cinelân-
A definição do espaço da Cinelândia dia, porém sem reproduzir sua linguagem
como importante mecanismo de ascen- plástica. As linhas arquitetônicas mais
são da atividade cinematográfica e pro- comedidas e despojadas viabilizaram, ao
pulsor de uma guinada na construção contrário, uma mudança nos rumos esté-
civil na cidade consolidou e permitiu a ticos para salas de cinema mais condizen-
proliferação das salas de exibição por ou- te com os ideais da modernidade.
tros bairros do Rio de Janeiro. O Centro Por aqui, a dispendiosa implantação do
começou a perder sua preponderância no cinema falado só começou nos anos 1930
circuito exibidor em detrimento de uma e ocasionou uma nova remodelação das
pulverização da atividade pelas demais lo- salas que precisaram se adequar à trans-
calidades citadinas. Formaram-se as gran- missão do som ao público. Esse marco da
des cadeias e o exibidor americano en- trajetória do cinema geraria uma crise
trou fortemente no mercado brasileiro. A no nosso mercado cinematográfico. Su-
cadeia de cinemas que a Metro-Goldwyn- biram os preços dos ingressos, surgiram
Mayer construiu no Rio de Janeiro (e Bra- dificuldades na tradução dos diálogos e
sil) estabeleceu padrões e necessidades no tratamento acústico das salas, além
novos para o público, consagrando ainda da defasagem de alguns equipamentos.
mais a noção já cristalizada de que cine- A presença cada vez maior dos lanterni-
ma clássico-narrativo norte-americano nhas, os planos decrescentes de lumino-
era “o verdadeiro cinema”. Pelos bairros sidade no interior dos cinemas e salas
da Zona Sul ao subúrbio carioca diversas e de espera metamorfoseadas em bombo-
importantes salas forma abertas nos anos niéres, bares ou lanchonetes; a inserção
1930. As grandes construções erguidas de novos ingredientes decorativos, a ins-

82 arquivo em cartaz Cidade das sombras


talação de sistemas de ar refrigerado, de to exibidor permanece sempre rondado
confortáveis poltronas estofadas, de uma por fechamentos e aberturas de salas,
excelente visibilidade para a tela e da apa- conformações a novidades técnicas, ar-
relhagem de som da sala foram algumas quiteturais e decorativas e oscilações de
mudanças impetradas entre as décadas frequentação. A sala de cinema passou
de 1930-40. Os cine-teatros foram desa- a ser percebida mais amplamente como
parecendo enquanto os movie palaces se um espaço sociocultural onde diferen-
firmavam no circuito exibidor. Os novos tes conhecimentos e/ou prazeres eram
cinemas resolveram apostar na suntuo- ofertados ao público de forma quase
sidade e na comodidade de suas instala- infindável. A imponência e suntuosida-
ções, acompanhando de perto a disposi- de física, além da raridade estética dos
ção ufanista da época. novos cinemas, conferiam um status de
O mercado parecia, naquele mo- nobreza ao seu frequentador habitual;
mento, estar propício ao desenvolvi- mantendo ainda intacta a relação do es-
mento de quaisquer exibidores que se paço com o imaginário popular.
aventurassem no intento das cadeias A partir daí, nosso parque exibidor
de cinemas. De início, as dispendiosas descobriria sua finalidade estrutural e
e complexas exigências arquitetônicas, sua configuração de maior duração. O
técnicas, estéticas e econômicas não pa- cinema atuou quase que solitariamente
reciam espantar os exibidores de menor como opção de lazer viável para a popu-
porte. Alguns poucos se aventuraram lação de baixa renda. Sendo assim, mes-
na conquista de áreas nobres da cidade. mo com todo o renome e notoriedade
Outros ainda concentraram-se apenas adquirido por Copacabana e seus arre-
em consolidar um comércio lucrativo dores, a liderança no número de bilhe-
e seguro, investindo lenta e cautelosa- tes vendidos nas salas de exibição ainda
mente. A maioria, no entanto, preten- permaneceria por algum tempo com
dia alcançar uma zona da cidade, uma o centro da cidade. As poucas revistas
região, um bairro. Desde a metade dos especializadas em cinema que atuavam
anos 1930, grande parte dos exibidores nessa época, como Cinearte e a Scena
cariocas atuava no que ficou conhecido Muda, assinalaram a definitiva absorção
como “segunda linha” – salas não lan- do cinema como um dos hábitos cotidia-
çadoras e que garantiam a continuida- nos mais enraizados na população dos
de da exibição. Muitos proprietários grandes centros brasileiros. O especta-
das salas de “segunda linha”, tentando dor passava algumas horas fora da sua
aproveitar-se do aumento da frequenta- realidade cotidiana, compartilhando de
ção para sofisticar seus empreendimen- um mundo de ilusões encenado à seme-
tos cinematográficos, foram chamados lhança do real e ao mesmo tempo viven-
de “independentes”. ciando emoções muito particulares. En-
Resolvido o problema do som no ci- tre 1936 e 1954, mais de trinta palácios
nema, o mercado volta a se aquecer cinematográficos foram erguidos e/ou
até os anos 1950. Porém, nosso circui- reformados na cidade do Rio de Janeiro.

Márcia Bessa arquivo em cartaz 83


Desde os anos 1950, e ao longo das Os mais de 170 cinemas de rua que
décadas subsequentes, a presença cada o Rio de Janeiro já abrigou eram distri-
vez maior das novas tecnologias audio- buídos em seu território de forma des-
visuais começou a desfigurar (ou transfi- centralizada, diversificada e pujante.
gurar) as feições, significações e ofertas Mas a partir do final da década de 1970,
de salas de cinema nas ruas, levando à a urbanização acelerada, a carência de
desvirtuação do modelo, à obsolescên- investimentos em infraestrutura urba-
cia de sua estrutura e a uma redução na, a baixa capitalização dos exibidores,
drástica de público. Não podemos dei- as transformações tecnológicas, dentre
xar de salientar que antes da televisão e outros fatores, modificariam sobrema-
do videocassete as salas de exibição ci- neira a topografia do meio exibidor em
nematográfica eram o local (único) para nossa cidade. Em 1995, tínhamos um
se assistir o espetáculo audiovisual. Es- pouco menos da metade daquele mon-
ses, juntamente com outros importan- tante por aqui. Em fins dos anos 1990,
tes fatores – a especulação imobiliária, com a disseminação dos shoppings
os processos de desenvolvimento e ocu- centers, o número de salas de exibição
pação urbanos, a própria mentalidade cresceu; porém, esse crescimento se
dos exibidores e os donos dos imóveis deu de forma escassa e concentrada. As
que abrigavam cinemas, a ausência de faixas menos favorecidas de nossa po-
uma atuação protecionista do Estado e pulação ou foram excluídas do universo
a violência urbana, dentre outros – aca- do cinema ou permanecem sendo mal
baram por levar muitos cinemas de rua atendidas, como é o caso das periferias
a encerrarem suas atividades. urbanas e comunidades carentes.
O processo de extinção dos cinemas O problema não era (ou é) mais pen-
de rua no espaço urbano do Rio de Ja- sar a morte do cinema – como se difundia
neiro convoca e rememora a trajetória nas publicações cinematográficas desde
cíclica do circuito exibidor nacional. Mas meados da década de 1970 –, mas refletir,
a conjuntura crítica que marcou a época compreender e acompanhar as formas de
em que os cinemas de rua começaram sua transformação; além de analisar ma-
a desaparecer por aqui não era só mais neiras de preservar a memória dos meios
uma crise, era uma crise estrutural. A exibidores passados em suas relações
partir dos anos 1980, o parque exibidor com a urbanidade e a frequentação.
nacional sofreria a maior modificação A memória cinematográfica não é ape-
desde os primórdios de sua existência: nas aquela referente aos nossos filmes
a substituição por salas em shopping perdidos, incompletos e deteriorados. É
centers. Nem a simplificação das salas, também aquela alusiva a uma das partes
a divisão de seus espaços internos, as fundamentais de sua plena realização: a
inovações tecnológicas constantes, os exibição. Sem a exibição, a produção e a
fechamentos e as outras formas de uti- distribuição não se efetivam. A indústria
lização dos cinemas de rua poderiam do cinema se concretiza na exibição. E o
prever que eles sairiam das ruas. cinema de rua é elemento indissociável

84 arquivo em cartaz Cidade das sombras


Cinema Olinda, que
funcionou entre
1940 e 1972 na
Praça Saenz Peña,
no bairro da Tijuca,
zona norte do Rio.
Um dos maiores
cinemas do país,
com capacidade
para 3.500 pessoas.
CINEOLINDAPH.FOT.00204.010

Agosto de 1972.
Correio da Manhã

do patrimônio exibidor carioca (e brasi- templando assim noções mais descen-


leiro)... É patrimônio cultural nacional. tralizadoras, amplas e democráticas do
patrimônio cultural carioca (e brasileiro).
A legislação patrimonial nacional con-
Os cinemas de rua sobreviventes
tém um paradoxo, praticamente indisso-
na cidade do Rio de Janeiro
lúvel, no sentido de como registrar mu-
danças e, ao mesmo tempo, garantir a
“Cidade sem cinema é como casa sem janela”
continuidade da forma original do bem.
(Grafite em muro de cinema fechado, 1986). O valor é o que transforma uma coisa em

bem cultural. A Constituição Brasileira


Com o processo de extinção dos ci- (1988) indica que esses valores devem ser
nemas de rua do espaço urbano novas atribuídos pelas práticas sociais e também
possibilidades se abrem para a preser- pelo Estado. No entanto, a desapropria-
vação e transmissão de sua memória. É ção tem sido a única modalidade de tom-
preciso pensar em novas instâncias de bamento concedida para a preservação
patrimonialização e possibilidades para de imóveis de vocação artístico-cultural.
a sobrevivência da memória dessas salas Na prática, o tombamento pode até man-
de exibição, que possam nos libertar das ter boa parte das características físicas da
amarras legais e contribuir para futuras construção, mas não garante o uso que
discussões (e/ou transformações); con- dela se faz. O chamado tombamento de

Márcia Bessa arquivo em cartaz 85


uso não é reconhecido pela União como O reconhecimento de pesquisas, ex-
um instrumento válido de conservação.7 periências artísticas e movimentos ci-
Muitos tombamentos têm se mostrado vis como poderosos instrumentos de
ineficientes na preservação dos cinemas recuperação de memórias, de atitudes
de rua por facilitar a aquisição desses patrimoniais e de reivindicações pre-
bens, sobretudo por igrejas evangélicas servacionistas perante a sociedade e o
– como nos casos dos Cines Palácio Cam- poder público incrementam os debates
po Grande, Santa Alice (Engenho Novo), sobre possíveis formas de salvaguarda
Pathé-Palace (Cinelândia), Cine-Theatro da memória dos objetos urbanos, so-
Realengo e Carioca (Tijuca) –, ou por en- bre mudanças nas políticas públicas de
gessar a estrutura física do edifício invia- preservação e sobre possíveis maneiras
bilizando iniciativas comerciais para sua de revitalizar os edifícios dos cinemas
utilização – como, por exemplo, na situ- de rua que ainda existem em sua for-
ação dos Cines Guaraci (Rocha Miranda), ma original – fechados/deteriorados ou
Beija-Flor (Madureira) e Alfa (Madureira). ocupados por outros usos/pouco modi-
A patrimonialização dos cinemas de rua ficados –; devolvendo-os a suas comu-
no espaço urbano do Rio de Janeiro deve nidades. Hoje no Rio de Janeiro, mui-
ser pensada enquanto práticas criativas de tas salas encontram-se abandonadas.
preservação, que mantenham viva a expe- Esquecidas e largadas à poeira, esses
riência dessas salas no imaginário urbano desertos galpões aguardam seu destino
e possam perpetuar sua memória para incerto. Paradas no tempo, em geral,
gerações futuras. Na contemporaneidade, resta-lhes o flasback, a saudade dos
determinadas estruturas físicas, experiên- frequentadores e as análises críticas
cias artísticas, temas de pesquisas, grupos de pesquisadores da recepção cinema-
de discussões, registros na internet, movi- tográfica. Parte do patrimônio cultural
mentos comunitários e cinemas de rua ain- carioca – que se relaciona, sim, com a
da em funcionamento estão promovendo memória do cinema e da cidade – está
enquadramentos de memória que man- muitas vezes entregue ao descaso.
têm a identificação desses lugares com a Com endereços, arquiteturas, públi-
população e com o imaginário da cidade. cos e estatísticas variadas não podemos
Nesse sentido, acreditamos numa atitude negar que os cinemas de rua viveram
patrimonializadora8 de observar, docu- anos de grande sucesso, sobretudo entre
mentar e rememorar a trajetória de (in) as décadas de 1920 e 1950. Porém, pou-
existência dos cinemas de rua na paisagem co mais de cem anos depois do primeiro
citadina do Rio de Janeiro. estabelecimento exibidor desse tipo ser

7 Segundo Luiz Gonzaga Assis de Luca, a legislação de alguns países europeus prevê o tombamento de uso.
LUCA, Luiz Gonzaga Assis. Mercado exibidor brasileiro: do monopólio ao pluripólio. In: ______; MELEIRO, Ales-
sandra (org.). Cinema e mercado. São Paulo: Escrituras, 2010. p. 53-69.
8 POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do monumento aos valo-
res. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

86 arquivo em cartaz Cidade das sombras


erguido na cidade, podemos contar nos de dois anos. Enquanto isso, a iniciati-
dedos as raríssimas salas dentre as so- va privada – personificada na figura do
breviventes nos passeios públicos urba- empresário Omar Peres – vai inaugurar
nos. Aquelas salas se transmutaram. Ge- no final de 2015 um cinema na Avenida
nericamente, da grandeza de uma única Atlântica, de frente para o mar do Leme.
sala se fizeram multissalas. A arquitetura O novo Rian – em homenagem ao últi-
dos cinemas se modificou drasticamen- mo cinema da Atlântica, que fechou as
te. Um processo de apagamento que traz portas no início da década de 1980 – terá
consequências para a cidade, o patrimô- duas salas de projeção, de aproximada-
nio cultural e o próprio parque exibidor. mente 75 lugares cada.
Alguns têm falado ultimamente num Os planos de retorno de alguns ci-
movimento de retorno dos cinemas de nemas de rua fechados na cidade têm
rua na cidade. Esse fôlego parece estar deixado clara a intenção de que essa
vindo mesmo das novas reestruturações iniciativa será viabilizada notadamente
urbanas, de um Rio de Janeiro que recebe através da transformação desses espa-
grandes eventos mundiais, e que tem jei- ços em centros de cultura e lazer. O re-
to de estar ensejando ainda um aumento gime de funcionamento dos grandiosos
da circulação (e permanência) de pessoas espaços que abrigavam os grandes cine-
nas atividades essencialmente urbanas. mas de rua cariocas – sobretudo no que
Iniciativas de revitalização de espaços, a concerne à exclusividade do produto ci-
força da comunidade local, o potencial nematográfico tradicional e à operação
do comércio próximo, as opções disponi- numa enorme sala única – não apresen-
bilizadas para entretenimento na região, ta viabilidade econômica na contempo-
a intervenção do poder público; esses e raneidade. Em geral, a intenção hoje é
outros fatores devem ser considerados preservar boa parte da arquitetura e da
numa perspectiva de sobrevivência de decoração – desde que estas tenham
determinadas estruturas em detrimen- resistido de alguma forma – dessas sa-
to de outras presentes na malha urbana las a partir do momento em que haja
carioca. A prefeitura do Rio de Janeiro acordos relativos às grandes conces-
chegou a anunciar, em 2012, um progra- sões para a diversidade de atividades e
ma de recuperação de cinco cinemas de formas inerentes às necessidades afina-
rua na Zona Norte – os Cines Rosário (em das com seu novo uso. O modelo de ex-
Ramos), Guaraci (em Rocha Miranda), cinema de rua/negócio cultural/centro
Madureira, Vaz Lobo e Olaria –, mas os cultural tem sido a aposta do momento.
projetos já elaborados pela Riofilme den- Mas o fato mesmo é que hoje soma-
tro da iniciativa CineCarioca aguardam mos apenas oito9 cinemas nas ruas da
sanção do prefeito Eduardo Paes há mais capital fluminense, sendo: dois ex-palá-

9 Importante sinalizar ainda que desses oito cinemas de rua sobreviventes, três nasceram entre 1926 e 1951
e outros três habitam locais que já abrigaram outros cinemas de rua anteriormente... Mas isso é assunto para
outro momento.

Márcia Bessa arquivo em cartaz 87


cios cinematográficos divididos em salas que se render a ingredientes da fórmula
menores – Roxy (Copacabana) e Leblon do multiplex.10 Para acompanhar a ten-
(Leblon); um movie palace recém-rei- dência do mercado cinematográfico, do
naugurado após alguns meses fechado setor de exibição e as exigências dos
para reformas, que funciona em regime novos hábitos do espectador contem-
de sala única, mesmo comportando re- porâneo, a verdade é que raros são os
modelações e acréscimos de serviços – cinemas – como o Odeon11 (hoje CCL-
CCLSR/Odeon (Cinelândia/Centro); dois SR/Odeon), na Cinelândia carioca – que
cinemas de rua inaugurados no século permanecem nas ruas da cidade em sua
XXI – o independente Cine Santa (Santa feição mais ou menos original.
Teresa) e o Cine Carioca Nova Brasília As salas de exibição cinematográfi-
(na comunidade Nova Brasília/Comple- ca ainda em funcionamento enquanto
xo do Alemão); um multiplex da empre- cinemas nas ruas do Rio de Janeiro re-
sa Espaço de Cinemas – Espaço Itaú de sistem nas calçadas da cidade, sobre-
Cinema (Botafogo) e dois mini multiplex vivendo aos impactos das mudanças
administrados pelo Grupo Estação – o que sofreram para se manterem vivas
Estação Net Rio (recém-reformado e na configuração do espaço citadino e
com mais duas salas) e o Estação Net refletindo transformações pelas quais
Botafogo, ambos também em Botafogo. passaram também as ambiências em
Isto quer dizer que ainda há espéci- seu derredor. O Roxy (1, 2 e 3) sofreu
mes raros (em processo de extinção) de reformas e recebeu incrementos téc-
cinemas de rua em funcionamento em nicos nos anos 1990. O Leblon (1 e 2),
algumas calçadas da capital fluminense. após sua divisão, já assistiu a mudan-
Conseguiram manterem-se vivos no es- ça de formato de sua sala de projeção
paço citadino em oposição a uma clara e passou por uma ameaça recente de
tendência nacional de migração para transformar-se em loja de departamen-
o interior de centros comerciais. Não tos. Pretende fechar suas portas para
conseguiram conservar, no entanto, na obras novamente e reabrir ainda como
grande maioria dos casos, sua estrutu- cinema de rua. O empenho da Petrobras
ra física original. A disposição das mul- em reabrir o Odeon BR (2000) pode ser
tissalas venceu essa batalha. O cinema considerado um marco do renascimento
que hoje nasce ou renasce na rua tem de um antigo palácio cinematográfico.

10 Complexos contendo várias salas de exibição – concentrados, principalmente, em shoppings centers. O for-
mato do multiplex ocasionou uma grande modernização do setor exibidor brasileiro, “com uma otimização total
do espaço, oferta múltipla de filmes, economia de escala na administração, projeto inteligente de automação,
oferta de serviços adicionais, além de uma pulverização do risco de fracasso de bilheteria [...] e a alta rotativida-
de entre as várias salas”. ALMEIDA, Paulo Sérgio; BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2003. p. 65.
11 Aberto em 1926 – e reaberto em 2000 (após alguns anos fechado) – o Odeon contou com o decisivo patro-
cínio da BR Distribuidora e da Prefeitura do Rio. Fechado novamente de junho de 2014, foi reaberto em maio de
2015 como Centro Cultural Luiz Severiano Ribeiro.

88 arquivo em cartaz Cidade das sombras


Inaugurado em
1963, o Cine
Veneza ficava
na Av. Pasteur,
CINEVENEZAPH.FOT.00204.015

em Botafogo.
Encerrou as
atividades em
1993. Hoje é um
centro cultural.
8 de fevereiro
de 1972. Correio
da Manhã

O cinema – anteriormente administra- modelo de negócio desenvolvido por


do pelo Grupo Estação – foi fechado estas duas últimas salas – cada uma a
para nova reforma em junho de 2014. seu modo – representa uma revolução
Reinaugurado em 20 de maio de 2015, em nosso mercado exibidor. O Grupo
programa agora uma grande diversifi- Estação, que assinou recentemente um
cação de suas atividades para o Centro acordo de renegociação de suas dívidas
Cultural Luiz Severiano Ribeiro (CCLSR/ e uma parceria com a empresa NET, ad-
Odeon). O CineCarioca Nova Brasília é ministra o Estação Net Botafogo (1, 2 e
a primeira sala de cinema já construída 3) – primeira sala do grupo a ser inau-
em uma favela em todo o mundo. Em gurada, em 1985, ainda como cineclube
parceria com educadores e produtores – e o Estação Net Rio – recentemente
cariocas, o Cine Santa transformou a re- reformulado e agora contendo cinco sa-
lação público/cinema num convívio de las de exibição.
crescimento sociocultural. É necessário Com uma tipologia variada em suas
salientar aqui que como o desequilí- formas arquitetônicas e organizações
brio financeiro do meio exibidor reside espaciais e econômicas, as biografias
em maior escala na operacionalização dos cinemas de rua testemunham his-
das salas, e não em sua construção, o tórias de sobrevivência, fechamentos,

Márcia Bessa arquivo em cartaz 89


reformas, reestruturações e renasci- heterogeneidades e urbanidades dessas
mentos. Envolvem ainda processos de antigas salas opõem-se a linearidade,
produção, circulação e consumo da (e massificação e confinamento de grande
na) vida sociocultural citadina carioca. parte da exibição comercial contempo-
Os cinemas de rua ainda existentes na rânea. Não se trata aqui de negativizar
cidade (e/ou os que ainda por vir por (ou demonizar) a existência dos shopping
aí), além de representarem suportes centers e seus multiplexes, mas sim de
de uma memória da exibição cinemato- procurar um ponto de equilíbrio na co-
gráfica (e do próprio cinema) da capital existência de diferentes tipologias de ci-
fluminense, nos levam a acreditar que nemas, de diferentes opções; de pensar
novas possibilidades de patrimonializa- num projeto de ação que permeie discus-
ção ainda possam viabilizar a preserva- sões e iniciativas que privilegiem a convi-
ção dessas (de algumas dessas) salas de vência de diferentes formatos de exibição
projeções audiovisuais no espaço urba- cinematográfica no âmbito da cidade. A
no do Rio de Janeiro. ideia é não ter que abrir mão definitiva-
As grandes salas dos multiplexes de mente dos cinemas nas ruas... É ainda po-
hoje – que não são tão grandes assim, der “ter e manter” (BLOM, 2003)12 uma
se comparadas a um Cine Olinda (1940- experiência diversa, repleta de nuances,
1972) com seus 3.500 assentos, por charme e glamour não vistos nas salas de
exemplo – não parecem suscitar as afei- exibição dos centros comerciais... Numa
ções semelhantes às dos movie palaces vivência de um tempo, de uma sociedade
cariocas de outrora. Às particularidades, e de uma cidade específicos.13

12 BLOM, Philip. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Record, 2003.
13 Outras referências bibliográficas: LUCA, Luiz Gonzaga Assis. Cinema digital e 35mm: técnicas, equipamentos
e instalação de salas de cinemas. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2011; ______. O futuro do cinema. Filme Cul-
tura: Vanguarda e inovação, n. 54, p. 19-22, mai. 2011; VIEIRA. João Luiz; PEREIRA, Margareth Campos da Silva.
Cinemas da Metro e a dominação ideológica. Filme Cultura, Rio de Janeiro, Ministério da Cultura/CTAv, edição
fac-similar 43-48, p. 491-493, 2010; ______. Cinemas cariocas: da Ouvidor à Cinelândia. Filme Cultura, Rio de Ja-
neiro, Ministério da Cultura/CTAv, edição fac-similar 43-48, p. 457-465, 2010a; ______. O olho na arquitetura das
salas de cinema. Filme Cultura, Rio de Janeiro, Ministério da Cultura/CTAv, edição fac-similar 43-48, p. 514-515,
2010b; ______. Espaços do sonho: cinema e arquitetura no Rio de Janeiro. Pesquisa apresentada à Embrafilme/
Cinetema. Rio de Janeiro, 1983.

90 arquivo em cartaz Cidade das sombras


programação

arquivo em cartaz 91
Mostra
Competitiva

PH_FOT_00229_003

Com o intuito de valorizar as mais nas categorias de melhor filme (lon-


recentes produções cinematográficas ga, média e curta) serão contempla-
que utilizam material de arquivo, en- dos com até dez minutos de imagens
tra em cena a Mostra Competitiva do em movimento do acervo do Arquivo
Arquivo em Cartaz. Em sua primeira Nacional.
edição serão exibidos vinte filmes na- Batizado de Jurandyr Noronha, o prê-
cionais e estrangeiros, entre curtas, mio de melhor utilização de imagem de
médias e longas-metragens. arquivo presta homenagem a uma vida
Aberta a todos os gêneros, do do- dedicada ao cinema. Parceiro do even-
cumentário à ficção, passando pelo ci- to, o Centro Técnico Audiovisual (CTAv)
nema experimental, a mostra funciona também premiará o melhor curta-
como instrumento de reflexão sobre as metragem com serviços de edição de
múltiplas possibilidades de (re)utiliza- imagem.
ção dos arquivos de filmes. As únicas O Júri Oficial conta com a participa-
exigências aos inscritos são: a presença ção da cineasta e atriz Ana Maria Ma-
mínima de 30% de material de arquivo galhães; de Luciana Savaget, escritora,
(imagens em movimento, áudio, foto- jornalista e editora do programa Ar-
grafias, mapas, manuscritos etc.) e a fi- quivo N da GloboNews; além de João
nalização entre os anos de 2012 e 2015. Luiz Vieira, professor titular do Depar-
Os vencedores serão agraciados com tamento de Cinema e Vídeo da Univer-
o Prêmio Batoque, que leva o nome do sidade Federal Fluminense.
artefato em torno do qual a película é
enrolada, seu núcleo, que lhe confere
forma e sustentação. O prêmio sim-
boliza a preservação de filmes, razão Mariana Lambert
primeira do festival. Os ganhadores Pesquisadora do Arquivo Nacional

arquivo em cartaz 93
OFICINA DE CRIAÇÃO DE FILMES
LANTERNA MÁGICA

Na primeira edição da Oficina Lanterna Mágica, o cineasta Joel Pizzini


foi convidado para ministrar aulas teóricas e práticas sobre o processo
de utilização de material de arquivo na realização de filmes. Os alunos
produziram sete curtas-metragens, que concorrerão entre si na Mostra
Competitiva do Arquivo em Cartaz, nas categorias de melhor filme,
direção, roteiro, montagem e júri popular.

Arquivisões: ou projeções oníricas

Joel Pizzini
Cineasta e pesquisador. Autor de Olho nu, 500 almas,
Mr. Sganzerla, Anabazys, entre outros filmes.

“Citar é ressuscitar.”
Jean-Luc Godard

Antes mesmo de me tornar cineasta e materiais de arquivo que, anos mais


pesquisador, não necessariamente nesta tarde, quando estudava jornalismo,
ordem, já manifestava atração pelo mun- teve um viés mais historicista.
do da memória, das imagens amareladas Na sequência, em contraponto à
pelo tempo. A minha avó Abigail Capilé, porção poética, tal obsessão deixou de
intrigada, sempre achava estranho meu ser “sintoma” para tomar uma dimen-
acentuado interesse em “desenterrar de- são pictórica.
funtos”. Só mais tarde compreendi seu Hoje, me alinho mais com a definição
comentário, ao começar a mexer com “arqueólogo de sonhos” atribuída por
cinema, especialmente o chamado docu- Carlos Drummond de Andrade a quem
mentário onde a “morte” simbolicamen- faz cinema, visto pelo poeta como “uma
te é o mote recorrente. fábula de antigamente” (“ontem passou
O meu afã instintivo de folhear ál- a ser antigamente”), pontua.
buns de família sem perceber se des- Apreendi o fetiche pelo grão (o DNA de
dobrara na investigação habitual de um certo cinema), em que o sonho gra-

94 arquivo em cartaz
AGNALDO SANTOS Joel Pizzini (à dir.) posa com a primeira turma
da Oficina Lanterna Mágica

nula a paisagem e cenas gravitam pelas Müller, Alexander Kluge, do norte-ame-


lacunas dos acervos à espera da alquimia ricano Stan Brakhage, do armênio A.
que aspire um lugar e produza um novo Pelechian, dos franceses Agnès Varda e
sentido a partir de velhas imagens. Chris Marker, do holandês Van der Keu-
Aos poucos percebi o risco que ha- ken e, sobretudo, no movimento austrí-
via no culto à nostalgia fílmica e passei aco Reciclagem Histórica, capitaneados
a deslocar o olhar para a sensualidade por Martin Arnold e Peter Tscherkassky.
da matéria, ao conhecer as inter-inven- Atento à dramaturgia formal destes au-
ções das vanguardas que incorporaram tores tomados pelo imaginário pré-exis-
o descarte, as bordas e a ruidagem tente, encontrei uma interlocução in-
para forjar um cinema imperfeito, pre- ventiva para conceber Glauces, estudo
nhe de vida e transcendência. de um rosto e Anabazys, em coautoria
Na direção do filmensaio deflagrei com Paloma Rocha, com quem comparti
então minha pesquisa de linguagem a restauração da obra de Glauber e fei-
à luz da sintaxe dos alemães Mathias tura de DVDs/extras sobre o processo

arquivo em cartaz 95
criativo e o contexto político que engen- taz. Trata-se de um dos maiores desafios
drou sua filmografia. no percurso deste “anarco-arquivista”,
A partir daí, naturalmente, em plena sensível ao potencial onírico do cinema
elaboração de outros filmes, como 500 errante e na ressignificação de materiais
almas, Mr. Sganzerla e Olho nu, surgi- latentes reinventados na montagem.
ram reflexões sistemáticas sobre os li- A imersão na Oficina através da ses-
mites ético/estéticos da “apropriação” são de filmes-chave e leitura de textos
irreverente de “imagens de arquivo” referenciais de autores e teóricos que se
na construção do discurso fílmico, sem nutrem dos arquivos incitaram atalhos
prejuízo ao fluxo rítmico. para a desconstrução da lógica ilustrati-
A relevância que este diálogo com a va, da relação causa-efeito e da hierar-
tradição e as imagens “de época” assu- quização audiovisual que elege a “Voz
miu dentro da minha trajetória resultou de Deus” como fio-condutor que inva-
no convite do Instituto Göethe para uma riavelmente raciocina pelo espectador.
bolsa residência no Kino Arsenal, de Ber- Ao final do intensivo des-curso, fica
lim, um dos maiores arquivos audiovisu- a expectativa de que o risco seja o sal-
ais europeus, no projeto Living Archive, do alcançado pelos grupos que, em sala
que reuniu cineastas de vários países. de aula e de montagem, revelaram uma
No período, realizei, além do mapea- inquietação estimulante, recusando, a
mento da produção latina existente no
priori, facilidades como a tentação ane-
acervo, três projetos, um deles um breve
dótica ou adesão imediata ao videoclipe
ensaio sobre a poética de Alberto Caval-
como aglutinação indutiva do conteúdo.
canti e um projeto de instalação sobre o
Sob a coordenação de Ana Morei-
Muro de Berlim na História do Cinema.
ra (Arquivo Nacional) e orientação de
Na temporada germânica, travei con-
montagem de Jorge Effi, a fase prá-
tato com autores de ponta desde o Ci-
tica do trabalho permitiu uma visão
nema Novo Alemão, assisti a centenas
complementar do processo, já que a
de filmes experimentais e entrevistei
maioria dos alunos, sem a vivência do
Wolfgang Klaue, ex-assistente de Alber-
métier, aprendeu no ato técnicas de
to Cavalcanti e diretor dos arquivos es-
decupagem e princípios de edição e,
tatais da antiga DDR (Alemanha Orien-
sobretudo, meios de interpretação da
tal), precursores da técnica de restauro.
A prospectiva atuação na área, como natureza matérica das imagens.
pesquisador e realizador, ganhou con- Mãos na obra, a turma encarou, sem
tornos efetivos com o convite do Ar- pré-juízos moralistas de registros oficiais
quivo Nacional para ministrar a Oficina dispostos a releituras insuspeitadas.
Lanterna Mágica, para alunos ávidos em Como diz o crítico Alain Bergala, a
recriar o acervo aberto generosamente arte não se ensina, experimenta-se.
pela instituição, na formulação de sete Sentimos o transe neste manejo exaus-
filmes-exercícios, que serão exibidos na tivo de formas perversas, submetidas a
atual edição do festival Arquivo em Car- inversões desconcertantes.

96 arquivo em cartaz
É nessa perspectiva que acendemos Pas de deux
a Lanterna Mágica para iluminar os te- Direção: Ilana Barros, Marcos Mazzaro
souros guardados no Arquivo Nacional, e Yuri Aby Haçan.
que nos reserva inimagináveis surpre-
sas sobre nossa identidade cultural. A vida flui entre o passado, o presente
A expectativa é que estes breves filmes- e o futuro. No entanto, tais tempos não
fagulhas vistos em conjunto agucem o existem. O que há é o sonho da singula-
olhar sobre a memória, arejando a percep- ridade. Mas neste mundo onírico todos
ção do passado, numa mirada descolada, se diluem, querendo ou não, na igual-
que destile a poeira e o ranço que contami- dade. 6 min.
na o acesso aos mistérios da história.
Sincrocinecidades
Direção: Amanda Heloísa Souza Custó-
Filmes produzidos na Oficina de 2015
dio, Maria Byington e Rosale de Mattos
Souza.
Arqui(vi)vos
Direção: Ana Valvassori, O movimento é a marca das cidades,
João H. R. Castro e José Carlos Soares do povo que vai e vem sem cessar, a
escavadeira que revolve as camadas de
Fragmentos de espaço/tempo reorga- memórias. O movimento das ruas, dos
nizados através de um processo de co- trens, dos aviões, das religiões. O mo-
lagem que evidencia a atualidade das vimento entre o sagrado e o profano
questões humanas presentes no mate- pode estar nas religiões, mas também
rial de arquivo. Composto por três nar- nas ruas, de uma forma dialética, repe-
rativas experimentais curtas que con- titiva e circular. Nas ruas solitárias ou
versam entre si, onde o ciclo da vida acompanhadas, os rituais religiosos se
se repete ao longo da história e volta a propagam e se misturam. 7 min.
contar novas histórias em outros espa-
ços, em outros momentos. 7min. Sintonia
Produção: Renata Ramos Andrade
Heráclito Santos
Direção: Josimar Matos de Carvalho, Roteiro e música: Fabio Ilang Nogueira
Pablo Ferraz e Rodrigo Mourelle de Souza Morais
Roteiro e direção: Roberto Honorato
O filme explora o devir heracliteano de Oliveira Jr.
na sua mudança contínua: dos fluxos
viários e comunicacionais aos biopolí- Um casal passa pelo momento mais
ticos. Natureza e cultura navegam no difícil de seu relacionamento. Sintonia
rio da transformação em que ordem e traz o questionamento da relevância
desordem instauram uma integração do cinema de arquivo e seu contraste
dialética. 7 min. impactante. 4 min.

arquivo em cartaz 97
Suor seco Testemunha ocular
Roteiro e direção: Cássia Ferreira e Vi- da história
viane Laprovita Direção: José Carlos Faria, Matheus To-
Cenografia e produção: Keila Machado pine e Telma Barros
Faria e Janaína Damaceno Gomes
Elenco: Mohara Santos e Luís Alberto Quando éramos crianças, eu e meus
Gomes irmãos disputávamos, na frente da TV,
quem encontraria primeiro “o Gordo”,
A pele negra como protagonista. Um personagem que sempre aparecia nos
olhar que busca a desconstrução de es- filmes do Repórter Esso. Para nós, ele
tereótipos, a valorização do negro, sua era, em pessoa, a “testemunha ocular
origem e suas raízes. Um contraponto da história”. 7 min.
ao quadro de ausência e silêncio im-
postos ao negro na narrativa da His-
tória do Brasil. Suor seco representa
as histórias que não foram contadas.
6 min.

O cineasta Joel Pizzini na aula inaugural


da oficina. Maio de 2015
AGNALDO SANTOS

98 arquivo em cartaz
Oficinas técnicas
de conservação
de documentos audiovisuais

Fátima Taranto
Conservadora de filme

Com o objetivo de contribuir para o uso de material audiovisual depositado


aperfeiçoamento das práticas referen- no Arquivo Nacional. Este foi o mote da
tes à conservação de acervos, o Arqui- Oficina de Formação Discente “Quase
vo em Cartaz ofereceu, no período de tudo que você sempre quis saber so-
21 a 25 de setembro de 2015, no Ar- bre as relações entre história e audio-
quivo Nacional, três oficinas gratuitas visual”, com os professores de História
de noções básicas de conservação de: Carlos Eduardo Pinto e Flaviano Isolan,
- Películas cinematográficas resultado de uma parceria entre o Ar-
- Documentos fotográficos quivo Nacional e a Universidade do Es-
- Documentos de imagem e som mag- tado do Rio de Janeiro (UERJ).
néticos A parceria entre as instituições tam-
Os alunos tiveram aulas teóricas e bém deu origem à Oficina de Formação
práticas ministradas por técnicos do Docente “O Rio de Janeiro pelas lentes
Arquivo Nacional e pelos orientadores do cinema: uso pedagógico dos filmes
Fabián Nuñez (professor adjunto do em sala de aula”, com as professoras
Departamento de Cinema e Vídeo da Carina Martins e Vivian Fonseca (UERJ/
UFF), Sandra Baruki (coordenadora do PIBID). A finalidade desta oficina foi
Centro de Conservação e Preservação refletir sobre as potencialidades e os
Fotográfica da Funarte) e Marco Dreer desafios da utilização pedagógica das
(especialista em preservação sonora e fontes audiovisuais depositadas no Ar-
audiovisual). quivo Nacional no ensino de História
As oficinas técnicas funcionam como nos níveis Fundamental e Médio.
um estímulo à capacitação de profis-
sionais de arquivo na implementação
de procedimentos básicos de conser-
vação de acervos audiovisuais.

Oficinas de formação discente


AGNALDO SANTOS

e docente
Refletir sobre o processo de produ-
ção de discursos históricos a partir do

arquivo em cartaz 99
ARQUIVO FAZ ESCOLA

Valéria Morse
Promoção Educativa
Agnaldo Santos
DSC_0012

Seguramente, os irmãos Lumière, que ele poderia vir a ter, seja na edu-
quando criaram o cinematógrafo, não cação, na ciência, na política e ainda
poderiam vislumbrar a dimensão das como fonte de pesquisa dos estudos
potencialidades de seu invento, seja históricos, minimizando desta forma a
como entretenimento ou uso social primazia das fontes textuais.

100 arquivo em cartaz


No Brasil, a utilização do cinema ferramenta de ensino-aprendizagem,
como ferramenta de ensino-aprendi- até hoje esse é um tema que ainda não
zagem começou em 1910, quando foi obteve uma solução satisfatória.
criada a Filmoteca do Museu Nacional. A proliferação de eventos onde
Em 1912, o professor Roquette-Pinto ocorram a reflexão sobre a temática
trazia de Rondônia os primeiros filmes preservação, a difusão de acervos ci-
sobre os índios Nambiquara, abrindo nematográficos e, ainda, o incentivo
um campo fértil para o cinema como para realização de filmes produzidos
instrumento para a pesquisa científica. com imagens de arquivo ou do coti-
A partir dessas experiências, o cine- diano sempre proporcionará maior visi-
ma com fins educativos começou a ser bilidade sobre a matéria e, consequen-
produzido em diversos pontos do país. temente, a criação de novos públicos e
Podemos considerar como um marco novas abordagens pedagógicas.
importante para o incremento do cine- Pensando em aprofundar novas prá-
ma educativo a lei nº 378 de 1937, que ticas e novos saberes, concebemos o
criou o Instituto Nacional de Cinema Arquivo Faz Escola, e para viabilizar
Educativo (INCE): essa abordagem metodológica, elabo-
Fica criado o Instituto Nacional de Cine- ramos as duas atividades principais:
ma Educativo, destinado a promover e
orientar a utilização da cinematographia, Mostra Arquivos do Amanhã
especialmente como processo auxiliar do Realização de mostra de material au-
ensino, e ainda como meio de educação diovisual produzido por crianças e jo-
popular em geral. vens de 8 a 17 anos que documentem
A criação do Instituto Nacional de eventos, fatos, lugares, costumes ou
Cinema Educativo (INCE) assentava-se tradições significativas de seu tempo e
sobre a crença de que a educação era o sirvam como memória audiovisual para
motor da transformação dos homens. os arquivos do futuro.
Ele vinha na esteira das ideias do então
ministro da Educação e Saúde, Gustavo Sessão Arquivo Faz Escola
Capanema, que vislumbrava na cultura Sessões gratuitas para estudantes,
mais do que um instrumento de propa- com filmes e documentários brasilei-
ganda política do Estado Novo, mas a ros, a fim de despertar a consciência
possibilidade de transformar o Brasil do público escolar para a importância
em um país desenvolvido por meio da da preservação da memória cinemato-
educação. gráfica, assim como, promover a utili-
Apesar da existência de legislação zação do cinema como ferramenta de
norteando a utilização do cinema como aprendizado.

arquivo em cartaz 101


Exposição O Rio em movimento
cidade natural, cidade construção

BR_RJANRIO_02_0_FOT_00520_013
Teatro Municipal, Avenida Central. Rio de Janeiro. Coleção Fotografias Avulsas.

A cidade do Rio de Janeiro no acervo de filmes


da Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa (TVE)

Denise de Morais Bastos


Pesquisadora do Arquivo Nacional

Incessantemente construída e re- períodos colonial e imperial. A Avenida


construída, a cidade do Rio de Janei- Central, pedra angular da renovação
ro experimentou, nos seus 450 anos urbana promovida à época da admi-
de existência, variadas remodelações nistração Pereira Passos, só pôde ser
que alteraram de maneira substancial construída a partir da demolição de
sua paisagem. Na primeira metade do centenas dessas edificações. Processo
século XX, após ter sido, desde o pe- semelhante ocorreu quando da abertu-
ríodo colonial, objeto de incontáveis ra da Avenida Presidente Vargas: para
dragagens e aterros, assistiu à abertura realizar a ligação Centro-Zona Norte,
de duas grandes avenidas – Central e os expedientes de derrubada de cons-
Presidente Vargas – que criaram novos truções emblemáticas e expulsão de
corredores de circulação e impuseram- população foram novamente utiliza-
se à memória afetiva dos prédios dos dos. As tentativas de apagar o passado

102 arquivo em cartaz


colonial não foram, contudo, inteira- que permitiam a navegação aérea. Pla-
mente bem-sucedidas, e é assim que nejada para coincidir com os festejos
prédios, monumentos e nomes de ruas do Centenário da Independência na
e espaços públicos subsistem no coti- cidade do Rio de Janeiro, a travessia,
diano da população da cidade até os uma espécie de recriação da viagem
dias de hoje. de Cabral, consumiu 62 horas de voo,
Um dos conjuntos de documentos sendo todavia necessários 79 dias, três
que pode ser utilizado para abordar es- diferentes hidroaviões e inúmeras pa-
sas transformações na configuração ur- radas para empreendê-la. Ao chega-
bana da cidade do Rio de Janeiro, suas rem, uma multidão os aguardava no
rupturas e permanências, é o material cais. Aglomeradas, escalando postes e
fílmico da Fundação Brasileira Centro árvores, as pessoas ansiavam por vê-
de TV Educativa (TVE). O acervo, custo- los desfilarem em carro aberto. Arse-
diado pelo Arquivo Nacional, abrange nal de Marinha, Praça XV, Paço Impe-
o período compreendido entre 1960 e rial são algumas das edificações que é
1980 e é composto de 7.579 filmes ori- possível reconhecer na cidade que, à
ginalmente destinados à radiodifusão época, passava por mais uma violenta
educativa. Nesse universo encontram- intervenção: o arrasamento do Morro
se igualmente filmes de datas ante- do Castelo.
riores a 1960 e que foram recolhidos O filme de Botelho, de 1925, é uma
pela TVE em diferentes oportunidades. ode à cidade. No trecho disponível no
Contendo material sonoro e silencioso, acervo do Arquivo Nacional é feito o
em preto e branco e colorido, a maior registro de um percurso por Santa Te-
parte ainda não telecinada, abriga uma resa, Botafogo, Catete, Lapa, Avenida
pluralidade de temas apresentados sob do Mangue, ressaltando seus prédios
a forma de entrevistas, documentários e monumentos como o Aqueduto da
e cinejornais. Carioca e a Quinta da Boa Vista. Do
Em meio ao acervo destacam-se al- Centro, o filme destaca o Palácio Ita-
gumas preciosidades para o estudo da maraty, o Passeio Público e a Avenida
cidade do Rio de Janeiro: o registro Central, com os prédios dos jornais do
da primeira travessia aérea do Atlân- Comércio, O País e do Brasil, o Thea-
tico Sul, empreendida pelos aviadores tro Municipal e a Biblioteca Nacional,
portugueses Gago Coutinho e Sacadu- além de uma profusão de bondes, car-
ra Cabral, e trechos do documentário ros, carroças e transeuntes. Nas toma-
A cidade do Rio de Janeiro, de Alberto das do Pão de Açúcar, um dos ícones
Botelho. da cidade, as cartelas em italiano des-
A viagem entre Lisboa e Rio de Janei- crevem uma “enorme rocha de granito
ro foi realizada em 1922 e constituiu [que] domina a entrada da belíssima
um marco na aviação: para efetivá-la, Baía de Guanabara” enquanto um bon-
Gago Coutinho e Sacadura Cabral de- dinho de madeira percorre a distância
senvolveram instrumentos específicos entre os morros.

arquivo em cartaz 103


Cenas domésticas no Méier, um fil- Fornecendo elementos de compa-
me de família, constitui outro material ração sobre a evolução dos meios de
rico e diversificado. Filmado na déca- transporte no Rio de Janeiro encontra-
da de 1930, tem a maior parte de suas se a matéria sobre o Museu do Bonde,
cenas protagonizada por crianças, e com imagens dos primeiros que circu-
nele é possível ver-se os membros de laram fazendo trajetos pelas zonas nor-
uma mesma família em festas de ani- te e sul e contribuindo para a expansão
versário, comemorando o Carnaval, da cidade. Outras abordam o transpor-
assistindo a uma apresentação circen- te ferroviário, destacando a Central do
se e visitando a Baía de Guanabara. Os Brasil, com sequências que mostram
adultos comportam-se como se esti- a estação aglutinadora das linhas que
vessem posando para uma fotografia e integram os diversos subúrbios e por
as crianças são o tempo todo estimula- onde circulam, diariamente, milhares
das a interagir com a câmera, algumas de passageiros.
vezes mesmo à custa de um safanão. Avançando no tempo, na segunda
Recupera-se dessas imagens caseiras metade do século XX, foram as obras
várias camadas de informação: vesti- do metrô que rasgaram os subterrâne-
mentas, automóveis, ruas, estação de os e mudaram a aparência de inúmeras
trem, interior de residência − todas vias. Para oferecer ao Rio de Janeiro um
fornecem pistas do cotidiano no bair- meio de transporte rápido e silencioso,
ro do subúrbio e registram uma época proposto em planos de desenvolvi-
distinta. mento urbano desde 1930, foi neces-
Em outras imagens do acervo, um sária a construção de galerias, desvios
tema que se repete são as exposições e verdadeiras trincheiras. Sobre essas
de fotografias do Rio antigo, demar- obras e suas escavações a céu aberto
cando o território das lembranças que recaem várias das imagens do acervo,
se mantêm sobre a cidade. Filmadas com cenas de operários trabalhando,
em detalhes, permitem visualizar o as diversas etapas da construção, a vi-
mar bem em frente ao Passeio Públi- sita da população às estações à medida
co, o antigo Convento da Ajuda ainda que iam ficando prontas e as altera-
de pé, a abertura da Avenida Central e ções provocadas na paisagem.
a configuração hoje não mais existen- Outros dois focos são as entre-
te da Praça Floriano. É da Cinelândia vistas com prefeitos, que discorrem
também uma série de imagens sobre a sobre suas administrações, e as inú-
remodelação ocorrida nos anos 1970, meras matérias sobre o trânsito e os
durante a qual foram preservados vá- engarrafamentos no centro da cidade,
rios de seus monumentais edifícios, acompanhadas de panorâmicas de filas
mas desapareceu o Palácio Monroe. serpenteando e de ônibus apinhados.
Entre cenas de letreiros de cinema e Depoimentos de motoristas de táxi
tomadas dos prédios do entorno, vê-se e arquitetos completam o painel dos
o palácio sendo demolido. sempre atuais problemas de circulação

104 arquivo em cartaz


no Rio de Janeiro. Entremeadas com de 450 anos da cidade e caracteriza
essas imagens estão as de vendedores um dos usos, cada vez mais frequente,
ambulantes de todas as idades que se que a instituição vem fazendo de seu
espalham pelas ruas do Centro com acervo de filmes: a difusão por meio de
seus limões, bilhetes de loteria, bam- exposições. Aproveitando-se da combi-
bolês, amendoins e bijuterias. Rostos nação imagem-som ou só da imagem,
vincados e olhares perdidos sintetizam trechos dos documentos são reunidos
a pobreza e a falta de perspectivas que em novas produções ou fotogramas
também atravessam a cidade. isolados passam a integrar painéis ex-
O carnaval é retratado em um filme positivos, compondo narrativas.
de 1948, com cenas de banho de mar Utilizados como informação ou
à fantasia, desfiles de blocos e foliões como ferramentas de comunicação
se divertindo na Praça Onze. Nos anos para complementar a experiência dos
1970, o tema é retomado em progra- visitantes, os filmes interagem com
mas que esmiúçam a construção dos outros documentos arquivísticos nas
carros alegóricos, os preparativos da exposições, como fotografias, mapas
decoração das avenidas Presidente e manuscritos, produzidos a partir
Vargas e Rio Branco e as apresentações de diferentes linguagens. Amalgama-
das escolas de samba. As sociabilida- dos segundo uma ordem própria que
des que se instalam nos bairros são pode ser temática, cronológica, to-
abordadas em vários programas com ponímica ou seus entrecruzamentos,
imagens gravadas em bares, rodas de são reconstruídos pelo circuito e pelo
capoeira e de aposentados jogando texto, com o intuito de atingir públi-
cartas em praças. cos distintos, podendo ser mais uma
O recorte de pesquisa aqui apresen- vez recriados pelas atividades de guia-
tado foi feito para a exposição O Rio mento. Assim, atravessados por esses
em movimento: cidade natural, cidade diversos filtros, inclusive aqueles apli-
construção, que o Arquivo Nacional re- cados pelos visitantes, os filmes do
aliza como parte integrante do calen- acervo encontram um caminho para
dário de comemorações do aniversário continuarem sendo vistos.

arquivo em cartaz 105


INSTITUIÇÕES
PARCEIRAS

Cinemateca do MAM: 60 anos

No dia 7 de julho de 1955, uma sessão de filmes da Cinemateca Francesa. Logo


organizada pelo setor de cinema do Mu- a instituição tornou-se referência no país,
seu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na desempenhando papel fundamental na
sede da Associação Brasileira de Imprensa formação de um público crítico e de ar-
deu início a uma trajetória de difusão da tistas e profissionais da área, inclusive
cultura cinematográfica na cidade, com apoiando produções nacionais. Entre as
reflexos por todo o Brasil. Poucos anos produções finalizadas com o apoio da
depois, o setor, criado por Antônio Moniz Cinemateca estão Cinema Novo, de Joa-
Vianna e Ruy Pereira da Silva ganharia um quim Pedro de Andrade, A Cinemateca
nome, Cinemateca, e um status que lhe apresenta…, de Lygia Pape, e Cordiais
dava maior autonomia. saudações.
Os primeiros festivais, ainda nos anos Em 1964, a Cinemateca ganha seu pró-
1950, já davam a linha que marcaria as prio espaço de exibição, nas instalações
atividades da Cinemateca, voltadas para do museu. No ano seguinte, assume sua
um público ávido por produções que não direção Cosme Alves Netto, que durante
alcançavam as grandes salas de cine- trinta anos buscou transformar a institui-
ma. Ruy Pereira da Silva e Antônio Mo- ção que dirigia em um marco da cultura
niz Vianna foram buscar os filmes para o cinematográfica brasileira. Ao longo dos
Festival A História do Cinema Americano anos 1960 e 1970, a Cinemateca se con-
(1958) e o Festival A História do Cinema solidou como espaço não apenas de uma
Francês (1959) diretamente nos Estados programação diferenciada, mas como
Unidos e Europa, onde também começa- ponto de encontro de uma variada gama
ram a costurar redes de apoio às ativida- de pessoas envolvidas com o cinema: ci-
des da Cinemateca. Os contatos travados neastas, atores, críticos, estudantes. O
renderam à instituição as primeiras peças sucesso foi tanto que ela começou a re-
do seu acervo, por meio de uma doação alizar mostras em outras salas do Rio de

106 arquivo em cartaz


Janeiro, a exemplo do Cine Paissandu, entanto, só seria reaberta em 1982, junto
que também contava com o apoio da Ci- com o museu.
nemateca em sua programação cotidia- O acervo da instituição foi enriqueci-
na. Para além da disseminação de uma do por doações como as realizadas por
cultura cinematográfica, no decorrer de Alex Viany e Ruy Guerra, e por transfe-
seis décadas a instituição estruturou um rências de instituições públicas ligadas à
arquivo de filmes, o centro de documen- cultura que entraram em violenta crise
tação correlata e sala de exibição audio- no governo Collor, a partir de 1990, o
visual nos diferentes suportes, formatos, que levou o CTAv e a Embrafilme a de-
bitolas e padrões que o cinema e as de- positarem lá seus acervos. A virada do
mais formas de imagens em movimento século trouxe um momento de crise para
assumiram ao longo do tempo, cobrindo a instituição, que se declarou incapaz de
película, magnético e digital. Desenvolveu guardar as matrizes dos filmes brasilei-
durante muito tempo atividades de cole- ros dos quais era depositária. Parte do
ta de filmes, restauração, conservação e material acabou transferida para a Cine-
apoio à pesquisa. Um exemplo de atuação mateca Brasileira e, principalmente, para
marcante para a preservação da memória o Arquivo Nacional, transferência inter-
audiovisual brasileira foi a restauração, rompida pela promulgação da lei 3.531,
em 1973, do nosso filme de ficção mais de 7 de abril, que declarou a Cinemateca
antigo, Os óculos do vovô. A mostra de do MAM patrimônio cultural da cidade
1978, Nosso Cinema: 80 anos, exibiu vá- do Rio de Janeiro.
rios filmes mudos restaurados pela Cine- O quinquagésimo aniversário da Cine-
mateca do MAM. mateca do MAM marca a retomada mais
Embora o incêndio de 1978 não tenha incisiva das atividades de preservação,
atingido o acervo da Cinemateca, des- com a reconstrução da reserva técnica de
truiu boa parte da coleção do museu e matrizes brasileiras, implantação de pro-
também suas instalações físicas, deses- jetos de digitalização do acervo fotográfi-
truturando suas atividades. Em 1979, a co e de duplicação de matrizes brasileiras.
extinta Embrafilme patrocina a reforma e Desde então, retomou as atividades de
reabertura da Cinemateca. Pouco depois, exibição, estabelece unidade de guar-
a instituição capitaneou um projeto de da para as novas mídias óticas e digitais,
repatriação de filmes brasileiros, denomi- além de participar, no Cine Grid 2011, da
nado Filho Pródigo. A sala de exibição, no primeira transmissão 4K online do Brasil.

Cinemateca do MAM
Av. Infante Dom Henrique, 85 − Parque do Flamengo
20021-140 − Rio de Janeiro – RJ – Tel.: (21) 3883-5600

arquivo em cartaz 107


Cinemateca Brasileira

As origens da Cinemateca Brasileira, retoma as atividades: a exibição de filmes


instituição sediada na cidade de São Pau- de todas as épocas e nacionalidades, en-
lo responsável pela preservação da pro- fatizando seu caráter artístico e político,
dução audiovisual brasileira, remontam incentivando a crítica e a discussão. O
aos anos do Estado Novo. Em 1940, alu- acervo de filmes por eles acumulado aca-
nos do curso de Filosofia da Universidade bou por constituir a Filmoteca do Museu
de São Paulo criaram o Clube de Cinema de Arte Moderna (MAM), cuja criação,
de São Paulo. Sob a influência do Chaplin seguindo uma tendência internacional de
Club − criado no Rio de Janeiro por Plínio surgimento de cinematecas, deu-se por
Sussekind, Otávio de Faria, Almir Castro e iniciativa do grupo do clube, que perce-
Cláudio Mello −, Paulo Emílio Salles Go- beu a necessidade de existir uma institui-
mes, Décio de Almeida Prado e Antônio ção oficial que pudesse intercambiar com
Cândido de Mello e Souza, os principais outras instâncias internacionais. A Filmo-
fundadores, passam a se reunir para as- teca-MAM, que acabou por absorver o
sistir filmes que eles mesmos alugavam, Clube de Cinema, viria a se tornar uma
com o intuito de acentuar a percepção das primeiras instituições de arquivos de
crítica do público e disseminar a teoria ci- filmes a se filiar à FIAF − Fédération Inter-
nematográfica. nationale des Archives du Film.
O clube foi fechado pelo Departamen- Em 1984, a Cinemateca foi incorpora-
to de Imprensa e Propaganda (DIP) pou- da pelo então Ministério da Educação e
co depois: ao tentar a liberação junto Cultura, e atualmente está vinculada à Se-
ao órgão, o próprio Paulo Emílio ouviu cretaria do Audiovisual. A partir de 1992,
do responsável pelo setor, Israel Souto, passou a ocupar um conjunto de edifícios
que “essa coisa de intelectuais reunidos históricos construídos no século XIX para
para ver filmes antigos só pode ser coi- sediarem o Matadouro Municipal de São
sa de subversivos”. Claro que o fato de o Paulo. O conjunto foi restaurado e am-
próprio Paulo Emílio e também Antônio pliado para receber a nova instituição,
Cândido serem identificados como comu- abrigando laboratórios de restauro de
nistas não ajudou em nada. Mas, de todo filmes, depósitos, arquivos de matrizes,
modo, a semente do que viria a se tornar centro de documentação, café e salas de
um movimento cineclubista e de incenti- cinema e de eventos.
vo à crítica de cinema estava lançada. Além do trabalho de restauração e pre-
Um novo clube foi reorganizado em servação de cerca de duzentos mil rolos
1946, findo o regime ditatorial. Conso- de filmes, sem mencionar fotografias, ro-
lidado após a experiência com a revista teiros originais e cartazes, a Cinemateca
de crítica teatral e cinematográfica Clima promove ações de pesquisa e também
(editada durante o Estado Novo), o “gru- difusão de acervo através de eventos em
po da cinemateca”, mais amadurecido, sua sede e de projetos como o Banco de

108 arquivo em cartaz


Conteúdos Culturais, em parceria com o a Cinemateca vem estabelecendo parce-
CTAv, que disponibiliza telejornais diários rias com outras instituições de guarda de
da TV Tupi e registros fílmicos brasileiros arquivos fílmicos no intuito de viabilizar a
do período silencioso. Por ter o único la- restauração de obras depositadas em ou-
boratório público de restauração no país, tras entidades.

Cinemateca Brasileira
Largo Senador Raul Cardoso, 207 − Vila Clementino
04021-070 − São Paulo − SP − Tel.: (11) 3512-6111
E-mail: contato@cinemateca.org.br

Centro Técnico Audiovisual – CTAv

O Centro Técnico Audiovisual (CTAv) foi de difusão por meio de apoio a festi-
criado na esteira de uma parceria técni- vais, produção de curtas e médias (mi-
ca entre a Embrafilme e o National Film xagem/utilização de equipamentos)
Board do Canadá. Com o desmonte das e do Prêmio CTAv, que este ano esta-
instituições ligadas ao cinema realizado rá presente no Arquivo em Cartaz. O
pelo governo Collor, o CTAv passa a inte- CTAv abre inscrições anualmente para
grar o Departamento de Cinema e Vídeo a utilização dos seus serviços, inclusive
da Funarte. Nesse período, as atividades o estúdio de edição.
da instituição estão voltadas para o apoio No acervo da instituição, encontram-
a produções nacionais, em especial curtas se matrizes dos filmes de Humberto
e médias-metragens, além da promoção e Mauro e os filmes produzidos pelo Ins-
distribuição das mesmas. tituto Nacional do Cinema, por diversos
Com a criação da Secretaria do Au- cineastas, entre 1966 e 1975. Há uma
diovisual, em 2003, o CTAv passa a in- cabine para projeções em 35 mm/16
tegrar a nova estrutura, diretamente mm e DVD que pode ser agendada por
subordinada ao Ministério da Cultura. aqueles que estiverem interessados em
Atualmente, a instituição integra ações pesquisar o acervo.

Centro Técnico Audiovisual – CTAv


Av. Brasil, 2482 – Benfica
20930-040 – Rio de Janeiro – RJ – Tel.: (21) 3501-7821

arquivo em cartaz 109


Fiocruz – Casa de Oswaldo Cruz

A Casa de Oswaldo Cruz é a unidade A instituição não apenas se responsa-


da Fundação Oswaldo Cruz dedicada à biliza pela guarda e preservação da docu-
preservação da memória da instituição, mentação, mas também realiza ações de
abrigando também atividades de pes- difusão do acervo, objetivando em espe-
quisa, ensino, documentação e divul- cial educar a população acerca da saúde
gação da história da saúde pública no e da história da saúde pública no Brasil,
Brasil. Seu acervo, formado por docu- além de incentivar a pesquisa acadêmica
mentação escrita, fotografias e filmes, na área. Entre essas ações encontram-se
além de peças museológicas e registros o Ciência Móvel (museu itinerante e inte-
orais, refere-se aos processos que envol- rativo), a Revista de Manguinhos e o Mu-
veram a saúde no Brasil. Cientistas que seu da Vida.
marcaram a nossa história, como o pró- Criada em 1986, a Casa de Oswaldo
prio Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Beli- Cruz ocupa instalações no histórico con-
sário Penna têm seus arquivos pessoais junto pertencente à Fiocruz, na Avenida
depositados na instituição. Brasil, em Manguinhos, Rio de Janeiro.

Casa de Oswaldo Cruz


Av. Brasil, 4365 – Manguinhos
21040-900 − Rio de Janeiro – RJ – Tel.: (21) 3865-2121

110 arquivo em cartaz


PROGRAMAÇÃO

Local: Arquivo Nacional Cine Pátio


Cine Teatro e Cine Pátio 19h30
Praça da República, 173 MOSTRA RIO EM MOVIMENTO
Centro – Rio de Janeiro – RJ Pré-estreia nacional
Filme: Eu sou Carlos Imperial (90 min.)

Segunda, 9 de novembro
Quarta, 11 de novembro
Cine Pátio
19h Cine Teatro
Abertura Oficial 8h30
O que é que o arquivo tem? ARQUIVO FAZ ESCOLA
Família movie (10 min.) Filme: Carioca era um rio
Homenagem a Carmem Santos e Jurandyr (Classificação 10 anos)
Noronha
10h30
Filme: Inconfidência Mineira: sua produ-
DEBATE 2
ção (10 min.)
Tema: Visões e revisões
MOSTRA COMPETITIVA
Terça, 10 de novembro 14h Joel e Gianni / Anita / A casa do
Mário (Total: 110 min.)
Cine Teatro 16h15 Vacanze al mare (52 min.)
8h30 17h30 Elena (82 min.)
ARQUIVO FAZ ESCOLA
Filme: Últimas conversas Cine Pátio
(Classificação 12 anos) 19h30
MOSTRA RIO EM MOVIMENTO
10h30
Pré-estreia nacional
Debate 1
Filme: São Sebastião do Rio de Janeiro, a
Tema: Memórias audiovisuais
formação da cidade (90 min.)
MOSTRA COMPETITIVA
14h Mário Lago (93 min.)
16h15 Verão na lata (60 min.)
17h30 Geraldinos (75 min.)

arquivo em cartaz 111


Quinta, 12 de novembro Sexta, 13 de novembro

Cine Teatro Cine Teatro


8h30 8h30
ARQUIVO FAZ ESCOLA ARQUIVO FAZ ESCOLA
Filme: Cartola música para os olhos Filme: Maré, nossa história de amor
(Classificação 10 anos) (Classificação 14 anos)
10h30 10h30
DEBATE 3 ARQUIVOS DO AMANHÃ
Tema: Por dentro dos arquivos cinemato-
MOSTRA COMPETITIVA
gráficos
11h Boogie-woogie na favela / Mi-
MOSTRA COMPETITIVA ragem / Boa morte / Valentina
/ Nessa cidade todo mundo já
14h 1962 − O ano do saque / Eu vi /
bebeu na bica (Total: 90 min.)
A história oculta (Total: 95 min.)
14h Mostra Oficina Lanterna Mágica
16h15 Formato ridotto (52 min.)
Heráclito / Pas de deux / Arqui(vi)
17h30 Tudo vai ficar da cor que você
vos / Sincrocinecidades / Sin-
quer (71 min.)
tonia / Suor seco / Testemunha
Cine Pátio ocular da história (47 min.)
19h30 16h15 Nitrate flames (63 min.)
MOSTRA RIO EM MOVIMENTO 17h30 Tropicália (87 min.)
Pré-estreia nacional
Filme: Paisagem carioca – vista do morro
Cine Pátio
(52 min.)
19h30
Arpoador – praia e democracia (80 min.)
ENCERRAMENTO
Premiação da Mostra Competitiva
Pré-estreia nacional
Filme: Allende, mi abuelo Allende (90 min.)

112 arquivo em cartaz


Local: Espaço BNDES Local: Cine Arte UFF
Avenida República do Chile, 100 Rua Miguel de Frias, 9
Centro – Rio de Janeiro – RJ Icaraí – Niterói – RJ

Terça, 10 de novembro Sexta, 13 de novembro


12h30 MOSTRA HOMENAGEM A CARMEN SAN-
MOSTRA RIO EM MOVIMENTO TOS
Curtas do acervo: Argila
Jornal Carioca (13 min.)
Largo do Boticário (12 min.) Sábado, 14 de novembro
Cidade do Rio de Janeiro (31min.) Mar de fogo / Limite
Fondation Marcel Merieux (12min.)
Família movie (10 min.) Domingo, 15 de novembro
Sangue mineiro
Quarta, 11 de novembro
12h30 Segunda, 16 / Terça, 17 / Quarta,
Eu sou Carlos Imperial (90 min.) 18 DE novembro
Exibição dos filmes vencedores
Quinta, 12 de novembro da mostra competitiva
12h30 do Arquivo em Cartaz 2015
São Sebastião do Rio de Janeiro, a forma-
ção da cidade (90 min.)

Sexta, 13 de novembro
12h30
Paisagem carioca – vista do morro (52 min.)
Arpoador, praia e democracia (80 min.)

arquivo em cartaz 113


Arquivo em Cartaz Presidente da República
9 a 13 de novembro de 2015 Dilma Rousseff
Ficha técnica
Ministro da Justiça
José Eduardo Cardozo

Realização
Arquivo Nacional
Universo Produção

ARQUIVO NACIONAL

Direção-Geral
Jaime Antunes da Silva

Coordenação-Geral
de Administração (COAD)
Renato Diniz

Coordenação-Geral de Acesso
e Difusão Documental (COACE)
Maria Aparecida Silveira Torres

Coordenação-Geral de Gestão
de Documentos (COGED)
Maria Izabel de Oliveira

Coordenação-Geral de Processamento
e Preservação do Acervo (COPRA)
Mauro Domingues

Coordenação Regional
do Distrito Federal (COREG)
Vivian Ishaq
Grupo de Trabalho UNIVERSO PRODUÇÃO
Arquivo em Cartaz

Coordenação Geral de Produção


Coordenação Executiva Raquel Hallak
Rosina Iannibelli Coordenação Adjunta e Logística
Fernanda Hallak
Curador
Coordenação Adjunta e Técnica
Antonio Laurindo Quintino Vargas

Coordenação da Oficina Produção Executiva e Tráfego de Filmes


Lanterna Mágica Cecília Gabrielan
Ana Moreira Produção Executiva e Logística
Nadja Gardin
Coordenação de Oficinas Técnicas
Assistente de Produção
Fátima Taranto Júlia Grasselli
Rômulo Moreira
Coordenação da Mostra Competitiva
Mariana Lambert Design Gráfico
Trina
Promoção Educativa Site
Valéria Morse Agência 51
Fotografia
Pesquisa Leo Lara
Viviane Gouvêa
Assessoria de Imprensa
Universo Produção
Ana Cristina d’Angelo –
Atendimento Nacional
Redes Sociais e Site
Lívia Tostes
Produção Técnica das Projeções Digitais
Em Quadro – Fernando Secco
Legendagem Eletrônica
4Estações
Projeção, Sonorização e Iluminação
Som Melhor
Gestão Administrativo-Financeira
Claudia Ávila
Cristiano Souza
Foto de Flávio Lopes

Pátio interno do
Arquivo Nacional,
no Rio de Janeiro
Copyright © 2015 Arquivo Nacional
Praça da República, 173
20211-350 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Telefones: (55 21) 2179-1253
Presidente da República
Dilma Rousseff
Ministro da Justiça
José Eduardo Cardozo
Diretor-Geral do Arquivo Nacional
Jaime Antunes da Silva

Coordenadora-Geral de Acesso e Difusão Documental


Maria Aparecida Silveira Torres
Coordenadora de Pesquisa e Difusão do Acervo
Maria Elizabeth Brêa Monteiro
Coordenador-Geral de Processamento e Preservação do Acervo
Mauro Domingues
Coordenadora de Preservação do Acervo
Lúcia Saramago Peralta
Coordenador de Documentos Audiovisuais e Cartográficos
Marcelo Siqueira
Editora
Renata dos Santos Ferreira
Edição e revisão de textos
Renata dos Santos Ferreira
Pesquisa de imagens e legendas
Viviane Gouvêa
Projeto gráfico
Alzira Reis
Diagramação
Giselle Teixeira (supervisão) • Alzira Reis • Tânia Bittencourt
Digitalização de imagens
Flávio Lopes (supervisão) • Adolfo Celso Galdino • Agnaldo Santos • Cícero Bispo • Janair Magalhães • José Humberto •
Rodrigo Rangel
Agradecimentos
Cinemateca Brasileira • Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro • Mauro Domingues
arquivo em cartaz

ISSN 24474177 Ano 1 - Nº 1 | Arquivo Nacional | Novembro de 2015

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