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Educação Moral e Religiosa Católica Ensino Secundário

Unidade Letiva 08

A Comunidade de
Crentes em Cristo
www.educris.com
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EDIR5 HE cDa ses f


ao D E U .

EElEfEEZPEES
EDI 1E 51-01,11111E
rurmio no
t u r v e ESTIMO.

A Comunidade de Crentes
em Cristo
Manual do Aluno - EMRC - Ensino Secundário
COORDENAÇÃO GERAL E DE CICLO
Cristina Sá Carvalho
AUTOR
José Eduardo Borges de Pinho
REVISÃO GRÁFICA
Isa Dora Lopes
CAPA
Basílica de São Pedro, Roma, Itália
Sylvain Sonnet/Corbis
DESIGN GRÁFICO
Diagonal - Publicações e Desenho Gráfico, Lda.
ILUSTRAÇÕES
Diagonal - Publicações e Desenho Gráfico, Lda.
CRIATIVIDADE E PAGINAÇÃO
Diagonal - Publicações e Desenho Gráfico, Lda.
www.diagonaldesign.com
IMAGENS A g r a d e c e m o s a todas entidades que nos facultaram
p. 8 C) Câmara Muncipal de Oliveira do Hospital i m a g e n s para publicação.
p. 10, 27, 30, 42, 44, 55, 56, 59, 62, 66, 76,© AlC/AFIK
TIRAGEM
/Corbis/VM1
8 000
p. 17 C/ Hochgeladen von HfrancH /CC BY-SA 3.0
p. 31, 32, 39, 50 C, Scala ISBN
p. 33 C) Sadao Watanabe, Gift of Carol A. Garwood 978-989-8822-02-4
Brauer Museum of Art, 96.14.001
p. 35 ü Alamy DEPÓSITO LEGAL
p. 36 © www.catholicworldart.com 401551/15
p. 37 CD www.Galeria-out-of-Africa.com EDIÇÃO E PROPRIEDADE
p. 43 Cl Fotografia Romulo Fialdini. Acervo Artístico dos Fundação Secretariado Nacional
Palácios do Governo do Estado de São Paulo da Educação Cristã — Lisboa, 2015
p. 46, 56, 62, 77 © Gettylmages
p. 47 C) www.hegiart.com IMPRESSÃO
p. 49 © Point12345/CC BY 3.0 Gráfica Almondina
p. 54 C, Methodist Modern Art Collection_TMCP, APROVAÇÃO
with permission (lhe Methodist Church Conferência Episcopal Portuguesa
of Great Britain)
p. 67 C) Victoria and Aibert Museum, London
p. 73 D a m i r u x / C C BY-SA 3.0 /Taizé
p. 76 (3, 2003 John Nava/The Cathedral of Our Lady
of the Angels
p. 7713 Museu de São Roque, Fotografia de Cintra
& Castro Caldas, Lda.
p. 79 © Sadao Watanabe, Collection of Richard
Oelschlaeger

©Todos os direitos reservados para a FSNIEC

«•-«.•
Cara Aluna, Caro Aluno
Frequentar o Ensino Secundário e matriculares-te em Educação Moral e Religiosa Católica,
diz alguma coisa sobre ti... Talvez tu não tenhas a certeza do que diz, talvez tenham sido os teus
amigos a desafiar-te - e ainda bem - ou porque o professor ou a professora é alguém que tu
aprecias, o que é excelente, ou... e nada disto se exclui, escolheste EMRC porque tens vontade
de pensar, de discutir, de construir novas ideias sobre alguns temas que parecem ser importan-
tes... ou interessantes o u , tu lá sabes!
Nós estamos aqui para isso. Propomos-te um caminho, um Caminho que podes organizar
em conjunto com o teu professor ou professora, passando pelas seguintes dez etapas: UL 1
- Política, Ética e Religião; UL 2 - Valores e Ética Cristã; UL 3 - Ética e Economia; UL 4
- A Civilização do Amor; UL 5 - A Religião como Modo de Habitar e Transformar o Mundo;
UL 6 - Um Sentido para a Vida; UL 7 - Ciência e Religião; UL 8 - A Comunidade dos Crentes
em Cristo; UL 9 - A Arte Cristã e UL 10 - Amor e Sexualidade.
Provavelmente, já tens aulas de EMRC há alguns anos, mas também podes ter acabado de
chegar... Em qualquer dos casos, se deres uma vista de olhos no Programa da disciplina, ficas
a saber que fizemos todo este trabalho tendo uma grande Finalidade em vista: ajudar os alu-
nos, ajudar-te a ti, a «Aprender a posicionar-se, pessoalmente, frente ao fenómeno reli-
gioso e agir com responsabilidade e coerência». A partir desta primeira página do teu manual,
ou melhor, de cada um dos fascículos, que, no todo, constituem o manual de EMRC do Ensino
Secundário, podíamos começar já a explicar-te tudo isso. Mas não. Tu, em conjunto com os teus
amigos, os teus colegas e com a ajuda dos teus professores, é que vais encontrar essa explica-
ção, muitas das explicações que te fazem falta, que queres e que procuras.
Depois, talvez queiras partilhá-las com os outros amigos e - quem sabe? - em tua casa, com
a tua família. E quando for a hora certa, vais ter de começar a fazer algumas escolhas, daque-
las que têm mesmo importância para o resto da tua vida. O ensino secundário tem, por isso,
uma importante componente vocacional, contribuindo para que definas quem é que tu queres
ser e o que é que queres fazer com a tua vida. Nessa altura, esperamos que estes manuais, com
os seus textos, as suas imagens, as suas vozes, as suas sugestões e as suas «janelas» sobre
a realidade próxima e longínqua, te possam ajudar. Entretanto, deixamos a palavra mais impor-
tante para quem sabe mesmo dizer isto, os artistas. Fica connosco, fica com a poesia, fica bem:
EMRC é para ti e para te ,ajudar a escolheres um futuro de beleza, de bondade e de justiça, uma
vida boa e feliz!

Escuto
Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou Deus

Escuto sem saber se estou-ouvindo


O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem


É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

Sophia de Mello Breyner Andresen


Obra Poética I, 1992, Lisboa, Círculo de Leitores.
Geografia, 2004, Lisboa, Editorial Caminho, p. 30.

Com votos de um ótimo trabalho, agradecemos a tua confiança!


A equipa de Autores

1 A Comunidade de Crentes em Cristo


índice
Nota Introdutória
1
4 1 . 1 . Diversidade de perspetivas e de leituras sobre a Igreja
1. A Igreja, realidad4e 5 1 . 2 . O olhar crente sobre a Igreja
presente na sociedade 6 1 . 3 . O lugar da Igreja no Credo

8 8 2 . 1 . A Igreja como realidade histórica


2. O caminhar da Igreja 9 2 . 2 . No Império Romano
na história d i v e r s a s 9 2 . 2 . 1 . Os três primeiros séculos
"imagens" e "modelos" 11 2 . 2 . 2 . O significado da "viragem constantiniana"
da Igreja 12 2 . 3 . Na Idade Média
12 2 . 3 . 1 . A situação de cristandade
13 2 . 3 . 2 . Da luta pela liberdade da Igreja à sua hegemonia
14 2 . 4 . No tempo da Reforma
14 2 . 4 . 1 . O significado da Reforma
16 2 . 4 . 2 . Contra-Reforma e suas consequências
17 2 . 5 . Na modernidade
17 2 . 5 1 Os desafios da modernidade
17 2 . 5 . 2 . Igreja como "instituição" e "sociedade"
19 2 . 6 . Na contemporaneidade
19 2 . 6 . 1 . Elementos de renovação eclesiológica nos séculos XIX e XX
19 2 . 6 . 2 . Impulsos decisivos a caminho do Vaticano II
20 2 . 7 . O Concílio Vaticano
20 2 . 7 . 1 . Aspetos mais significativos da visão conciliar da Igreja
22 2 . 7 . 2 . A receção do Concílio como tarefa atual

E
23 23 3 . 1 . A Igreja preparada na história do Povo de Israel
3. A origem da Igreja na 23 3 . 1 . 1 . A relação particular entre judaísmo e cristianismo
história de salvação 25 3 . 1 . 2 . A Igreja enraizada na experiência crente de Israel
27 3 . 2 . Igreja de Jesus Cristo a origem da Igreja no acontecimento Jesus
i 27 3 . 2 1 A origem da Igreja em Jesus
28 3 . 2 . 2 . O anúncio do Reino de Deus, seus sinais e suas consequências
30 3 . 3 . Igreja, realidade pós-pascal
30 3 . 3 . 1 . O significado dos acontecimentos pascais
33 3 . 3 . 2 . A consciência de ser comunidade definitiva da salvação

35 36
4 . 1 . A Igreja, Povo de Deus na história
4. A reflexão da Igreja 364 . 1 . 1 . "Povo de Deus" como figura fundamental da Igreja
sobre a sua identidade e 374 . 1 . 2 . Povo de Deus e interpelações atuais
missão P o v o de Deus,
Corpo de Cristo, Templo do 38
4 . 2 . A Igreja, Corpo de Cristo
Espírito 38 4 . 2 1 Comunidade de discípulos no seguimento de Jesus
394 . 2 . 2 . Corpo de Cristo —a comunhão existencial com Cristo
41
4 . 3 . A Igreja, Templo do Espírito
414 . 3 1 O Espírito Santo como fundamento permanente da vida da
Igreja
14 2 4.3.2. Igreja na força do Espírito

44 - 45 5.1. A vocação fundamental de todos os batizados


5.Igreja, comunidade de 4 6 5.2. Diversidade de carismas, serviços e ministérios
crentes, na pluralidade 4 8 5.3. O lugar estrutural do ministério ordenado na Igreja
de carismas, serviços e 5 0 5.4. Sinodalidade/corresponsabilidade na vida da Igreja
ministérios
54 55 6 1 Igreja peregrina, sempre necessitada de renovação
6. Igreja que peregrina 55 6 . 1 . 1 . Os "sinais dos tempos" como interpelação à missão da Igreja
na história ao serviço do 57 6 . 1 . 2 . Uma Igreja no mundo e aberta ao diálogo com o mundo
Reino de Deus 58 6 . 1 . 3 . Igreja atenta aos "lugares" de presença de Deus no mundo
59 6.2. A Igreja ao serviço do Reino de Deus
59 6 . 2 . 1 . A Igreja, sacramento universal de salvação
62 6 . 2 . 2 . A Igreja ao serviço da humanização do mundo

67 67 7 . 1 . Os símbolos como expressão-síntese dos conteúdos da fé


7. "Creio na Igreja 70 7 . 2 . A unidade da Igreja como dom e tarefa
una, santa, católica e 70 7 . 2 . 1 . A compreensão católica da unidade da Igreja
apostólica" 71 7 . 2 . 2 . A tarefa da receção do Concílio em termos ecuménicos
74 7 . 3 . Santidade da Igreja e pecado na Igreja
74 7 . 3 1 A santidade como dom irrevogável de Deus à sua Igreja
75 7 . 3 . 2 . O pecado na Igreja e suas consequências
76 7 . 4 . Catolicidade da Igreja como desafio permanente
76 7 . 4 . 1 . Catolicidade e seu sentido
78 7 . 4 . 2 . A tarefa da catolicidade à luz dos seus fundamentos
79 7 . 5 . Igreja fiel a Jesus, assente no testemunho dos apóstolos

82
Bibliografia
1. A Igreja, realidade presente
na sociedade

/05, • 1 1 , t 1 1 , 1 > '

Via de la Conciliazionne, Roma. Uma multidão de fiéis congregou-se junto à Praça de S. Pedro (Vaticano) para acompanhar a canonização dos Papas
João XXIII e João Paulo II. 21 de abril de 2014.

O catolicismo no mundo
De acordo com o Atlas das Religiões, na sua edição
de 2015, em 2012 batizaram-se catolicamente 6,721
milhões de pessoas na América Latina e Caraíbas,
1.1. _ e as 3,83 milhões em África, 2,58 milhões na Ásia, 2,17
milhões na Europa, 960 mil na América do Norte e
de dS S - igren 130 mil na Oceânia. Para uma população mundial
de 7,3 biliões, 2,2 biliões são fiéis que se assumem
como cristãos. Na Europa os crentes somam atual-
Com uma presença mais significativa ou menos visível, conforme as mente 565 milhões, dos quais 262 milhões são ca-
regiões e os países onde o cristianismo tem estado presente ao longo tólicos (100 milhões são protestantes e 200 milhões
dos séculos, a Igreja é uma realidade bem percetível no quotidiano são ortodoxos, na maioria russos).
das pessoas, sobretudo num país de tradição cristã como o nosso. Os países com maior número de crentes católicos
são o Brasil (133.660.000), o México (96.330.000), as
Constituindo neste momento cerca de um sexto da humanidade, a Filipinas (75.940.000), os Estados Unidos da Améri-
Igreja católica é uma instituição não só extremamente significativa em ca (74.470.000) e a Itália (50.250.000). Por seu lado,
termos numéricos, como se apresenta também com importante peso no mais populoso país do mundo, a China, apenas
5% da população é cristã, e desse número (cerca de
nos diversos lugares e circunstâncias da vida em sociedade. Isto não 70 milhões) 13% são católicos. Trata-se, sobretudo,
significa, porém, que haja uma só leitura do que a Igreja é e representa. de uma população urbana e educada. Mas, apesar
Pelo contrário, para quem não é membro ativo da Igreja católica e a das limitações impostas pelo governo, o Institu-
olha de fora, mesmo sendo religioso (isto é, pertencendo a uma outra to Pew Research Center estima que em 2030, ao
ritmo atual de conversões, o número de cristãos
Confissão cristã ou a outra religião), a realidade da Igreja católica nas pode atingir a soma de 247 milhões.
situações concretas em que ela está presente é vista e avaliada de Ainda segundo o Atlas (2015), em Portugal uma lar-
maneiras diversas. ga maioria das pessoas define-se como católica,
embora 7% dos portugueses se declarem sem reli-
Para uns, é uma instituição bem organizada, donde resulta toda a sua gião. Estes últimos situam-se sobretudo nas zonas
força, designadamente pela sua unidade centrada no bispo de Roma de Lisboa (12%) , Alentejo e Algarve (9%).
L'Atios des Religions, Édition 2015, Le Monde-La Vie,
(Papa). Outros apreciam a sua atividade social e caritativa, tanto no Hors-Série.
quotidiano da vida das pessoas como em situações de emergência, O Anuário Pontifício de 2014 refere os dados re-
e olham para ela mais como uma útil, até indispensável, Organização colhidos pela Santa Sé em 2012, segundo os quais
1.228 milhões de pessoas são fiéis católicos espa-
lhados por quase todos os países do mundo.

Morai e
Não Governamental (ONG). Outros ainda admiram o seu património histórico e cultural, visível no
que tem deixado ao longo dos séculos como marcas de relevo na história. Outros manifestam
ceticismo quanto às suas intenções verdadeiramente religiosas, avaliando antes o seu enqua-
dramento político, social ou económico. E assim por diante.
Estes olhares e estas leituras, não correspondendo embora ao que a comunidade dos cren-
tes pensa sobre si mesma, não deixam de conter alguns aspetos (ainda que parcelares) de ver-
dade. Constituída por pessoas que, na sua humanidade e na sua cidadania, não se distinguem
das outras, a Igreja é uma realidade social e cultural que pode ser analisada do ponto de vista
sociológico, histórico, organizacional, psicológico, etc. Essas leituras, mesmo que incomple-
tas e porventura até completamente inadequadas, podem, no entanto, ajudar os crentes a per-
ceberem melhor a sua própria realidade, mareada também por limites, deficiências e ambigui-
dades: por exemplo, no modo como os católicos lidam com o poder, na transparência que dão
ou não à sua presença e ação na sociedade, na credibilidade que merece a sua identidade de
comunidade religiosa.

1 O olhar crente 3 b r e a ' .eje

«Caminho da Cruz», Henri Matisse (França, 1869-1954) Chopelle du Rosaire, Vence.

Todavia, a experiência crente vivida de forma consciente tem uma visão diferente, mais pro-
funda e consentânea com o modo como a Igreja se entende a si mesma. Para o cristão, a
Igreja tem de ser vista, simultânea e estruturalmente, como realidade que é fruto da inicia-
tiva salvadora de Deus e como resultado da liberdade humana, isto é, como comunidade em
cuja existência se unem, de modo misterioso mas verdadeiro, a ação de Deus e a dimensão
humana de pessoas livres e responsáveis. Tal como a adesão da fé cristã, que está na ori-
gem da comunidade crente, é dom de Deus e resposta livre de cada pessoa, a Igreja é "misté-
rio de fé", ela só é compreensível dentro de uma história de salvação onde os dons de Deus e
a resposta humana, historicamente contextualizados, se entrelaçam. A palavra "mistério" quer
dizer aqui isso mesmo: uma realidade humana que, em última análise, só é compreensível no
seu sentido à luz da fé.
Pressupor um olhar de fé não significa sublinha-se de novo q u e se possa prescindir tam-
bém, para uma análise de aspetos concretos da vida da Igreja, de uma leitura baseada num
conhecimento de tipo empírico-racional (mormente de ordem sociológica), em ordem a cap-
tar a realidade humana da Igreja da forma o mais completa possível. Uma visão da Igreja que
olhasse só para os seus fundamentos divinos, que ignorasse e não fosse capaz de integrar as
suas dimensões humanas, seria uma visão idealista, desajustada para a compreensão do agir

5 /-\ r r i u e m
de Deus na história. Mas se, por outro lado, na consideração da Igreja a pessoa não se abrir a
um entendimento crente, não integrar no mesmo olhar o elemento divino e a vertente humana,
cai inevitavelmente numa visão redutora da Igreja, fixando-se unilateralmente nos seus aspetos
humanos. A compreensão católica da Igreja caracteriza-se precisamente por este esforço
de manter unidas, num equilíbrio de tensão, a origem divina e a configuração humana da
Igreja, a sua dimensão espiritual e a sua expressão visível, sendo certo que na origem e na quo-
tidiana vida da Igreja cabe uma inquestionável prioridade à iniciativa e aos dons de Deus.
[Texto Complementar 1]

O que se acaba de referir permite compreender o lugar que a Igreja ocupa no Credo, na pro-
fissão de fé dos cristãos. Como é sabido, a fé cristã é uma entrega confiante de toda a vida
ao Mistério de Amor que chamamos Deus, que se nos manifestou definitivamente em Jesus
Cristo e nos é dado continuamente na força do seu Espírito, que é também o Espírito do Pai.
Em sentido estrito e absoluto, fé cristã só pode referir-se a Deus, é uma relação pessoal, uma
entrega radical de confiança e de amor ao Deus Uno e Trino.
Compreende-se assim que a Igreja, obra de Deus configurada pela liberdade humana, não é,
não pode ser "objeto de fé" nesse sentido estrito e absoluto. A Igreja entra na adesão pessoal
de fé e pertence ao Credo fundamentalmente em razão do agir amoroso de Deus acolhido
na existência crente. Dentro da estrutura trinitária do Credo (Creio em Deus Pai C r e i o em
Jesus Cristo... Creio no Espírito Santo) a profissão de fé na Igreja está em relação com a fé na
ação do Espírito Santo como dom de Deus à comunidade dos que acreditam em Jesus Cristo,
como prolongamento da ação de Cristo na história, como agir continuado de Deus na história
humana e no coração das pessoas. Isto é, a Igreja não é um objeto de fé em si mesma, isola-
damente; a Igreja faz parte do objeto da fé enquanto é fruto da ação de Deus em Jesus Cristo
e vive na força do seu Espírito. Na linguagem tradicional, a diferença aqui referida traduz-se na
distinção entre credere Deo (crer em Deus: dativo em latim, complemento indireto, entrega de
confiança a alguém) e credere Ecclesiam (crer a Igreja: acusativo em latim, complemento direto,
algo que se crê em razão de Outro). Acreditar na (a) Igreja é crer na ação de Deus e na inde-
fectível promessa do Espírito que a sustenta no seu viver e na verdade da fé, não obstante
as fragilidades e incertezas do seu caminhar histórico.
Mas, reconhecida a distinção que se tem de fazer entre "crer em Deus" e "crer na (a) Igreja", há
que tirar todas as consequências do facto de que a Igreja é "um fruto essencial da atuação sal-
v(fica de Deus" e, por isso mesmo, também um conteúdo da fé.

"A palavra reconciliadora de Deus não pode existir a s s i m há que dizê-lo, recolhendo uma famosa
expressão de Lutero — sem povo de Deus, do mesmo modo que tão pouco pode haver povo de
Deus sem Palavra de Deus, pela qual é convocado e em cuja confissão de fé fica unido."
W. KASPER, Lo fe que excede todo conocimiento, Santander 1988, p. 111.

Na sua expressão autêntica, a fé é sempre "credo Deo ia soncto ecclesia" ("creio em Deus den-
tro da santa Igreja": ablativo em latim, lugar onde), no que ressalta com maior ênfase a dimen-
são eclesial que estrutura a fé.
Entende-se melhor, então, porque a Igreja, comunidade de crentes na busca de seguimento
de Jesus, pertence constitutivamente ao acontecimento da revelação, pois só nela e através
dela a revelação de Cristo atinge o seu objetivo. E assim ressalta igualmente que a Igreja faz
parte também, ou até antes de mais, como "sujeito" (não como "objeto") do Credo, isto é,
enquanto comunidade de pessoas que partilham a mesma fé cristã. Cada cristão crê em
Jesus Cristo participando pessoalmente na "fé da Igreja", que é o sujeito que suporta e pro-
fessa a fé. A Igreja, não obstante a distância que a separa do seu Senhor, é para o crente lugar e
mediação da presença de Cristo, é a "mãe" que gera para a fé. [Texto Complementar 2]
Texto Complementar 1
A Constituição Dogmática Lumen Gentium d o Concílio Vaticano II sublinha como perspetiva
fundamental na compreensão da Igreja esta relação entre a dimensão divina e os elementos
humanos que a constituem:
"Cristo, mediador único, estabelece e continuamente sustenta sobre a terra, como um todo visível,
a sua santa Igreja, comunidade de fé, de esperança e de amor, por meio da qual difunde em todos
a verdade e a graça. Porém, a sociedade organizada hierarquicamente e o Corpo místico de Cristo,
o agrupamento visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons
celestes não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única realidade complexa,
formada pelo duplo elemento humano e divino. Apresenta por esta razão uma grande analogia
com o mistério do Verbo encarnado. Pois, assim como a natureza assumida serve ao Verbo divino
de instrumento vivo de salvação, a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura
social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo (cf. Ef. 4, 16)"
LG, no 8.

Texto Complementar 2
"É a Igreja que nos gera, educa, alimenta, corrige, anima e conduz para Deus e para os irmãos. Mas
é importante que esta verdade brote da nossa própria existência de cristãos, não como afirmação
alheia que repetimos, mas como vivência pessoal que expressamos. Só assim amaremos a Igreja
como mãe, s ó assim nos alegraremos com o testemunho de muitos de seus filhos, s ó assim
sentiremos em nós os ataques feitos a ela, só assim sofreremos as falhas humanas que acontecem
em seu interior. Só assim, finalmente, seremos autênticos sujeitos eclesiais"
M. de F. MIRANDA, «É possível um sujeito eciesial?», in Perspectiva Teológico 119 (2011), p. 80.

[Idade
2. O caminhar da Igreja na história
diversas "imagens" e "modelos"
da Igreja
Eciesiologia
(Do grego ekklesia, "assembleia convocada" e logos,
"palavra", "estudo").
Eclesiologia é o tratado teológico sobre a Igreja. Na
história da teologia cristã, trata-se de um tratado
relativamente recente. Isso não quer dizer que na
Bíblia e na tradição patrística não tenha havido re-
flexões significativas sobre a realidade da Igreja.
Essas reflexões ocupam, por exemplo, um lugar im-
portante em:

Santo Inácio de Antioquia (séc. I) - em cujas cartas


encontramos indicações fundamentais sobre a uni-
dade da Igreja e sobre a sua estrutura hierárquica;
Santo ireneu de Lyon (séc. II) - que desenvolve am-
plamente o tema da apostolicidade da Igreja;
Santo Agostinho (séc. IV-V) - que concebe uma
teologia muito elaborada sobre a Igreja, nomeada-
mente na sua atividade homilética e epistolar. O seu
tema característico, de clara inspiração paulina, é o
de Igreja como corpo de Cristo.
Em geral, a eclesiologia dos padres da Igreja ex-
pressa-se sobretudo através de uma multiplicidade
de imagens, das quais se deduz um sentido muito
vivo de Igreja (mãe, esposa, mestra,...).
Posteriormente, o s teólogos começaram a inte-
ressar-se por algumas questões eciesiológicas em
particular: o poder universal do Papa, Vigário de
Cristo (um tema muito desenvolvido pelas ordens
mendicantes) e as relações entre o Papa e o con-
cílio.

Depois da Reforma, altura em que se pôs em causa


•toda a mediação eclesial (papa, bispos, sacerdócio,
tradição, sacramentos), a. eclesiologia caiu sob o
domínio da apologética: do lado católico, insistin-
+ IEMIW
do na dimensão jurídica e visível da Igreja; do lado
protestante, na sua realidade universal e invisível.
Na teologia pós-tridentina (católica) desenvolveu-
-se uma conceção de Igreja como sociedade orga-
Uma inscrição numa pedra remete para o ano 912 a Igreja de São Pedro, em Lourosa, nizada segundo um modelo piramidal (uma societas
Oliveira do Hospital. É uma das mais antigas de Portugal e a única de estilo moçárabe. perfecta).
Com uma quase total ausência de imagens e pinturas, tem arcadas de pedra. No inte-
rior os arcos em ferradura evidenciam o domínio árabe da região entre o século VIII No séc. XIX, a eclesiologia recebe um novo impulso,
e XI. A pia batismal original mantém-se intacta. No exterior as sepulturas nas rochas sublinhando outras linhas de reflexão e recuperan-
também chamam a atenção. do as reflexões eclesiológicas bíblicas e patrísticas,
valorizando a ideia de Igreja como Corpo (místico) de
Cristo vivificado pelo Espírito. Esta ideia, que ainda
não foi assumida reflexamente pelos padres conci-
liares no Vaticano I, seria fundamental no Concílio
Vaticano II. Essas correntes teológicas propunham
Todo o viver humano, também a existência crente, é marcado pelas ainda o abandono do jurisdicismo excessivo, para
circunstâncias da história. O que vale tanto em termos de cada pes- sublinhar a realidade sacramental da Igreja, como
soa como a nível das comunidades. O lugar estrutural que tem a his- instituição simultaneamente divina (carismática) e
toricidade humana na vivência da fé e na vida da Igreja exige que olhe- humana (estrutura visível). Hoje a ideia e a vivência
do que é ser Igreja (comunidades dos crentes em
mos para os diversos rostos e configurações que a mesma e única Cristo, caminhando e fazendo história) devemo-la à
Igreja de Jesus Cristo foi mostrando ao longo dos tempos, em função eclesiologia do Vaticano II, particularmente presen-
das circunstâncias muito diversas de época e de espaço, das diferen- te na Constituição Lumen Gentium (1964).
tes condicionantes de ordem social e política, da inserção cultural nos
contextos diferenciados em que os cristãos foram (e continuam a ser)
chamados a viver. Em inúmeras das suas facetas concretas a Igreja
que hoje conhecemos, mantendo embora uma fidelidade fundamental
à sua origem e à sua razão de ser, só se compreende à luz dos desen-
volvimentos históricos e suas consequências.

Educação Moral e ileligiosa 8


E

É assim que, olhando retrospetivamente, podemos captar, conforme os tempos e as situa-


ções, tendências dominantes diversificadas na vida da Igreja ao longo da história. O que sucede
também no presente que estamos a viver, ainda que, mergulhados nos acontecimentos diários,
nem sempre tenhamos uma visão abrangente e reflexa disso.
Para descrever este facto costuma falar-se de "imagens" e "modelos" de Igreja. Quando fala-
mos de "modelos", não estamos a indicar "formas exemplares" de vida eclesial, mas a desig-
nar "ideias-força" e elementos estruturais que refletem numa determinada fase da histó-
ria o modo como se viveu o mistério da Igreja. Referida ao passado, a expressão "modelo" de
Igreja é a forma (enquanto orientações dominantes, traços marcantes, valores e contravalo-
res...) como ao longo de um determinado período de tempo a Igreja definiu ou procurou concre-
tizar a vida comunitária, os seus elementos institucionais, o relacionamento com a sociedade e
a esfera política, etc. Na perspetiva da experiência eclesial que fazemos no presente, "modelo"
tem naturalmente também, além dos espetos referidos, uma dimensão programática-ideal, isto
é, sinaliza valores que a Igreja é chamada a realizar (isso acontece, por exemplo, quando falamos
de "Igreja como comunhão" ou de Igreja como "família de Deus no mundo").
A expressão "imagens" pode ser entendida aqui também num
sentido muito semelhante: aquilo que resulta do modo como a
Igreja se situa e configura numa determinada época da história.
Mas de si mesmo o termo sublinha igualmente uma outra faceta:
aponta para a perceção dominante que as pessoas num dado
momento tiveram ou têm da Igreja. Por exemplo, e isso tanto
para o passado como para o presente, pode perguntar-se pela
"imagem" que ressalta hoje da vida da Igreja tanto a nível univer-
sal como nacional (por exemplo: uma Igreja sensível aos proble-
mas das pessoas, com um discurso atualizado em termos de lin-
guagem, etc.?).
Este percurso pela história, ainda que muito sintético, parcelar
e algo simplificado, estimula-nos a compreender melhor a reali-
dade da Igreja, tal como ela é percetível hoje na realidade quoti-
A 11 de fevereiro de 2013 o Papa Bento XVI anunciou peran-
te o consistório que renunciava ao ministério de Pedro. Es-
diana dos cristãos e das comunidades eclesiais. O passado está
tando «bem consciente da seriedade desse ato, com total de algum modo sempre presente na realidade atual da Igreja que
liberdade» explicou que sentia «falta de forças» para pros- conhecemos e de que fazemos parte. Em cada tempo e lugar nunca
seguir as reformas necessárias à Igreja. A sede papal ficou há um único e exclusivo "modelo" de Igreja (isso também acon-
vazia a 28 desse mesmo mês e Bento XVI tornar-se-ia Papa
Emérito aquando da eleição do seu sucessor. tece hoje!), antes coexistem vários "modelos" a i n d a que um seja
porventura dominante n o mesmo espaço cultural e no mesmo
tempo histórico. A realidade concreta da Igreja é tecida por situa-
ções diversas em termos de pessoas e grupos, culturas e condi-
Escatologia cionamentos sociais, idades e sensibilidades eclesiais diferentes,
1.0 termo 'escatologia', de origem grega, significa discurso
(Logic) sobre o que é final, definitivo (Eschaton) para o ho-
mem e para o mundo. O definitivo é Deus. Ele é o Escathon,
e a morte, a ressurreição do Filho eterno de Deus e o envio No Impê o Romano
do Espírito Santo trouxeram à humanidade e ao cosmos a
possibilidade de esperar, nesta história, e mesmo depois
dela, algo de definitivo. Até aos anos 70 do século XX, a Es- .2.2.1. O t r ê s primPiros sériJlos
catologia, designada, em latim e no plural, De Novissimis,
era o tratado sobre as realidades que existiam depois da Os três primeiros séculos da Igreja caracterizam-se pela cons-
morte: juízo, purgatório, inferno e paraíso. Essa reflexão não ciência viva de que a Igreja, fruto do plano salvífico de Deus para
estava isenta de precisões coisificadas que popularmente a humanidade, é "mistério da fé" (of. Ef 5,32). Três condicionantes
se comunicavam com grande carga imagética.
2. O centro da.Escatologia é o mistério pascal de Cristo. É básicas marcaram de forma predominante este período da Igreja
porque Ele morreu por nós e nos deu uma vida nova na Sua nascente, minoritária na sociedade, durante alguns períodos for-
Ressurreição que podemos aceitar viver, já na história, cen- temente perseguida: uma intensa consciência escatoiágica (a
trados no definitivo (o Escathon) cristológico e pneumato-
lógico, e esperar permanecer nesse definitivo para além da
consciência de que, com Jesus Cristo, chegaram os tempos defi-
história, na comunhão dos santos." nitivos da salvação), o que fomentou alguma relativização das
tarefas e questões temporais; o sentido da dimensão comuni-
M. MANUELÀ DE CARVALHO, Escatologia, in Enciclopédia tária da vivência da fé cristã num mundo globalmente adverso;
Verbo Luso-Brasileira de Cultura — Edição Século XXI, 10,
Lisboa-São Paulo 1999, 687 s. a importância da decisão pessoal na base da adesão à fé e da
pertença à comunidade eclesial.
Neste contexto a Igreja é mais existencialmente "vivida" do
que teoricamente "refletida" em termos teológicos. Isso explica a
prevalência que cabe às imagens bíblicas para expressar a expe-
riência crente comunitária: "Povo de Deus", "Corpo de Cristo",
"Templo do Espírito Santo". Do mesmo modo fala-se da Igreja

9 A comunidade de crentes em cristo


sobretudo através de símbolos e alegorias, na medida em que essa linguagem simbólico-me- 1
tafórica se apresenta como mais adequada para dizer uma realidade que não se deixa abarcar
pelo mero esforço de compreensão racional: a Igreja é mysterium lunoe (mistério da lua, que
não tem a luz por si própria, mas recebe-a de Cristo); é a arca (de Noé) que salva da morte do
dilúvio; é a barca (de Pedro) onde se viaja através das ondas, por vezes alterosas, do mar; é a
Mãe que gera para a vida e sustenta na verdade (a Igreja é "coluna e sustentáculo da verdade"—
cf. 1 Tm 3,15).

«Sombra e Escuridão - o Anoitecer do dilúvio», Joseph Mallord William Turner (Inglaterra, 1775-1851), Tate Gallery, Londres.

Mistério de fé, a Igreja entende-se, primordialmente, como communio sanctorum (comu-


nhão dos santos). Esta é a fórmula mais antiga que mostra como a Igreja é vista à luz da fé. Com
esta expressão (sonctorum, genitivo em latim, pode ser genitivo masculino ou neutro) dizem-se
duas coisas: a Igreja é communio nas sancta (genitivo neutro: comunhão nas realidades san-
tas —a Palavra de Deus, os Sacramentos e, em particular, a Eucaristia; mas é também commu-
nlo dos sanou (genitivo masculino: comunhão dos santos), isto é, comunhão pessoal daque-
les que foram santificados (escolhidos, chamados, eleitos) por Deus em Cristo e na força do seu
Espírito, sem que isso signifique ignorar a realidade do pecado na Igreja.

Educação Moral e Religiosa católica Ho


Este sentido e exigência de comunhão exprime-se não apenas a nível
pessoal mas também na relação entre comunidades. A única Igreja de
Jesus existe, de facto, em Igrejas locais, que atualizam cada uma por
si a realidade essencial do seu mistério. Do mesmo modo que cada
Igreja local é uma comunhão (communio) de crentes, assim também as
diversas Igrejas locais, conscientes da pertença à mesma Igreja, vivem
da comunhão na única Palavra, na única mesa eucarística, no único
amor fraterno: a Igreja de Jesus é vivida como comunhão de Igrejas
(communio eclesiorum), o que se exprime nalguns sinais visíveis (por
exemplo, a ajuda fraterna material — cf. 1 Cor 16,1-4; 2 Cor 8-9; Rm
15,25-33 — ou, mais tarde, a participação dos bispos das Igrejas locais
vizinhas na ordenação de um novo bispo).

«Todos o s Santos», Wassily Kandinsky (Rússia,


1866-1944, França), Stãcitische Galerie im Lenba-
chhaus, Munique, Alemanha.

Com o século IV inicia-se um novo período que, a pouco e pouco, século após século, vai con-
figurar a Igreja de modo muito diferente. Em 311, um édito de Galero, augusto do Oriente, que até
então perseguia os cristãos, permitia a religião cristã, desde que ela não fosse contra a disciplina
do império. Em 313, Constantino e Licínio, pelo rescrito de Milão, concediam a todos os súbditos
1
do império a liberdade de religião e de culto. Este acontecimento, ligado à vitória de Constantino
sobre Licínio e designado como "viragem constantiniana", trouxe uma profunda transformação
do lugar do cristianismo na sociedade. Da situação de religião parcialmente tolerada ou perse-
guida, dispersa e sem legitimidade política, o cristianismo passa em poucas décadas a religião
dominante no Império — nos fins do século, numa população duns 50 milhões de habitantes, os
cristãos seriam já uns 7 a 10 milhões') e a Igreja torna-se "Igreja do Império" ("Igreja de Estado").
Isto repercute-se não só nos modos de pensar, mas também na orga-
Imperador Constando()
(+/-272-337) nização institucional da Igreja, que adota as divisões administrativas
Flávio Valéria Aurélio Cons- do Império e assume modos de agir moldados no contexto imperial. A
tantino nasce na atual Sér- partir daqui, num muito longo período de tempo que atravessa toda a
via. Recebe uma educação
esmerada e cedo começa a
Idade Média e vai até à Reforma protestante do século XVI, o "modelo"
fazer parte da elite romana de Igreja que prevalece, apesar de situações muito diversas, é a visão
tendo desempenhado fun- e prática da Igreja como "poder espiritual à imagem do império".
ções militares importantes.
Aclamado "Augusto" pelas Situados agora num ambiente favorável, vendo neste novo contexto
tropas, governou o império de existência a implementação do Reino de Deus na terra, os cristãos
romano reforçando as suas
estruturas políticas e sociais.
assumem uma outra atitude relativamente ao seu modo de estar no
Adepto do culto solar monoteísta, converteu-se mundo: a consciência escatológica atrás referida passa a segundo
e professou a religião cristã. Pelo Édito de Milão, plano em favor de uma progressiva identificação da Igreja com o
equiparou a religião cristã aos demais cultos pa- mundo, tido ou esperado como cristão. Progressivamente e em cada
gãos dando, assim, aos cristãos a possibilidade le-
gal de professarem a sua religião. vez maior número nasce-se cristão no seio do povo cristão como
Ordenou a abolição da crucificação, concedeu aos meio social de suporte: a adesão à fé deixa de ter de ser uma decisão
clérigos cristãos as mesmas isenções dos demais tomada na consciência das suas exigentes consequências. A relação
servidores dos cultos pagãos permitindo-lhes re- entre autoridade política e autoridade religiosa cruza-se muitas vezes
ceber doações e instituiu o domingo como dia festi-
vo. Na colina Vaticana, sobre o túmulo de S. Pedro, até ao ponto da (quase) identificação. Entramos numa "situação de
mandou construir a primeira Basílica de S. Pedro. cristandade", em que o "populus christianus" (povo cristão) se torna
Refundou Constantinopla (antiga cidade de Bizán- essencialmente num conceito sociológico, cultural e político.
cio e atual Istambul) em 330, tornando-a sua resi-
dência, e chamando-a Nova Roma. É venerado, no
oriente, como um santo, o "décimo terceiro após-
tolo". A ele se atribui o Cristograma (letras gregas
do Xr--qui e P...rô: as duas primeiras letras da palavra
Cristo) e a frase "In hoc signo vinces" (com este sinal
vencerás).

' Cf. M. CLEMENTE, A Igreja no tempo. História breve


da Igreja Católica, Lisboa 1978, p. 17 s.
2.3. Na idade Média
2_3.1. A &4-- - ã o de cristandae -
As grandes invasões dos séculos IV e V vieram transformar profundamente o mundo romano
em processo de cristianização. E, desde logo, a situação de cristandade nascente adquire
fisionomia própria diferenciada com a divisão do Império em Império Romano do Oriente e do
Ocidente e com a queda deste último em 476.

Império Romano do Ocidente

Império Romano do Oriente


Partilha do Império em 395
41h • Áreas germânicas e suas rotas migratórias
BRITÂNIA
Vândalos
Francos Suevos

Gépidas
OCEANO Lutécia • Alamanos Hunos

ATLÂNTICO GÁLIA/ PANÔNIA Hér—'dos


.Lyon Ostrogodos
Milão• Visigodos

Massilia
• ( v e
MAR
CÁLJCASO
TRÁCIA NEGRO
Tarragona • ' f r MESIA Constantinopla
MAR
HISPÁNIA -J F ks • (Bizâncio)
CÁSPIO
, • '
• Mérida • Nicómédia IMPÉRIO
Sicília SASSANIDA
. . - Cartago. PONTO

MAR MEDITERRÂNEO
• Jerusalém
4 4//4 Alexandria
ÁFRICA
EGITO
A Divisão do Império Romano (Cf. Georges Duby, Atlas historique, Paris, Larrousse, 1987).

Depois da morte do imperador Teodosio 1(395), o Oriente segue o seu


Papa Gregário VII
próprio caminho, marcado por uma teologia e uma espiritualidade pró- (1020-1085)
prias, assentes em pressupostos sociais e culturais diferentes. A ele- Nascido em França, foi mon-
vação de Bizancio-Constantinopla ("Nova Roma") a capital e residência ge beneditino no mosteiro
imperial vem acompanhada pela importância progressiva do seu bispo de Cluny. Conselheiro de vá-
rios papas sempre afirmou a
e pela autoridade exercida pelo imperador na linha de um crescente autonomia da Igreja perante
cesaropapismo (para o imperador, a existência da Igreja é parte inte- os reis e os príncipes. Como
grante da realidade do Império), chegando à teocracia (autoridade polí- papa foi um grande reforma-
dor da Igreja. Centralizador
tica e religiosa) do imperador Justiniano I (527-565). e obstinado, considerava o
No Ocidente a decadência do poder do Estado (culminada na refe- poder espiritual acima dos
poderes temporais. As suas ideias poderão resumir-
rida extinção do Império) era acompanhada pela ameaça proveniente -se nestes pontos principais: o Papa é senhor abso-
da migração dos povos bárbaros, provocando também a decadência luto da Igreja, estando acima doéfiéis, dos clérigos e
das cidades e a ida para os campos. Nessas circunstâncias, os bis- dos bispos, das Igrejas locais, regionais e nacionais,
e acima, mesmo, do concílio; o Papa é senhor único
pos e, de modo particular, o bispo de Roma viram-se cada vez mais na e supremo do mundo, todos lhe devem submissão
necessidade de assumir tarefas político-administrativas, ao ponto incluindo os príncipes, reis e imperadores. Deter-
de a Igreja aparecer como sucessora e herdeira do Império Romano. minado exigia, assim, a liberdade para a Igreja e a
A tarefa evangelizadora dos diversos povos europeus na segunda emancipação do poder temporal dos reis e senhores
feudais. Em litígio com o imperador Henrique IV da
metade do primeiro milénio é suportada também pela convicção Alemanha é obrigado a fugir de Roma e as suas últi-
do papel unificador imprescindível da religião. Nesse sentido se mas palavras foram "Amei a justiça e odiei a iniquida-
entende também a ligação dos papas com os Carolíngios e, mais tarde, de. Por issd morro no exílio". Foi canonizado em 1606
e a sua memória litúrgica é celébrada a 25 de maio,
no século VIII, com o reino dos Francos, conduzindo à constituição do dia da sua morte.
Estado eclesiástico. Estes desenvolvimentos favorecem o progressivo
alheamento entre o Oriente e o Ocidente, até à cisão definitiva de 1054.

Educação Moi ã1
São Bento No seio da cristandade ocidental emerge cada vez mais a questão
(480-547) da relação entre os domínios temporal e espiritual, a luta pela supe-
Nasce em Núrcia, Itália. Vi- rioridade entre o imperador e o papa, entre o poder temporal (regnum)
veu em Roma e, desejoso e o poder espiritual (socerdotium). Também na sua versão ocidental,
de uma verdadeira vida de
perfeição, torna-se eremita. o cesaropapismo manifestava-se como pretensão do poder político
Reunindo outros monges em a integrar em si a Igreja, os hierarcas tornavam-se quase funcioná-
redor de si, fixa-se no Monte rios políticos, o cristianismo era valorizado sobretudo como força de
Cassino e ali estabelece uma
vida comunitária centrada
coesão social. Nesta situação, que predomina no período que vai dos
na regra Ora et Labora. Este séculos IX ao XI, a cristandade ocidental apresenta-se subjugada pelo
objetivo d e vida torna-se poder político e, muitas vezes, ao seu serviço.
o mais importante conjunto de deveres e normas
estruturantes da vida monástica, adotadas por ou-
tras ordens religiosas, nomeadamente a Ordem de
Cister e a ordem de Cluny. Os eixos sobre os quais
2 ) a luta !Dei; - d a d a da e ï sua
gira toda a vida em comum, segundo S. Bento, são a
oração, a obediência e o trabalho. A primeira exige do
monge silêncio e a segunda muita fé, muita humilda- Sujeita à preponderância do poder político (imperador e príncipes),
de e liberdade interior. Do superior da comunidade, suas tentações e seus tentáculos, a Igreja sente a necessidade de se
muita caridade e muita prudência. O trabalho pode
ser espiritual e manual. Trabalho interior da própria libertar em busca da sua verdadeira identidade. Este esforço de liberta-
alma e acompanhamento espiritual dos irmãos e tra- ção da tutela feudal, este movimento de libertação do espiritual face
balho exterior (literário, campestre, artístico). A vida ao predomínio do político, desencadeia-se sobretudo no século XI
monacal beneditina marcou a Europa nas artes, na
agricultura, na liturgia, na educação. Em 1964 o papa
com a reforma de Cluny pelo Monge Hildebrando, que viria a ser o Papa
Paulo VI proclama S. Bento patrono da Europa, pelo Gregário VII (eleito papa em 1073). A luta pela liberdade espiritual da
contributo da sua obra na formação da civilização e Igreja contra a intromissão dos chefes temporais vai delinear-se em
da cultura europeia. A sua memória litúrgica celebra- expressões marcantes da cristandade medieval e conduzir à afirma-
-se a 11 de julho.
ção do primado do poder espiritual sobre o temporal, à prevalên-
Papa Inocênclo III cia do Sacerdotium sobre o Imperium, do papado sobre os detento-
r--- (1161-1216) res do poder político.
Lotado t o r n o u - s e p a p a
Inocência III em 1198, e é Há, sem dúvida, a preocupação pela libertação da decadência moral
considerado um dos papas e religiosa em que se encontrava a cristandade (renovação da vida
mais eminentes da história.
Com uma formação teológi-
monástica nos séculos X e XI, através da restauração do genuíno ideal
ca notável e com um lúcido monástico segundo a regra de São Bento). Mas, em termos de clarifi-
discernimento da realidade cação do poder e desenvolvendo a teoria das duas espadas (pretensa-
social e religiosa, convocou mente com base em Lc 22,38 e segundo o pensamento do Papa Gelásio
o IV Concílio de Latrão. Este
concílio da Idade Média, teve 1,492-496), o poder espiritual afirma-se cada vez mais como superior
grande importância teológica para a pureza da fé e ao poder temporal, ou seja, o poder do papado situa-se acima da fun-
dos costumes; afirmou a doutrina da transubstan- ção imperial ou do poder político em geral. A afirmação da supremacia
ciação (o pão e avinho tornam-se corpo e sangue de
papal é feita em termos cada vez mais absolutos de soberania ilimitada:
Jesus Cristo na eucaristia); definiu a necessidade da
confissão e comunhão no tempo pascal, e proibiu os o Dictatus Popoe de Gregário VII fala do papa como "origem, cabeça e
matrimónios secretos. Defensor do primado papal, raiz" de todo o poder; o Papa Inocêncio III (1189-1216) afirma que "o
estava convencido da origem divina da vocação para Papa é menos que Deus, mas mais que um homem"; Bonifácio VIII,
o papado. Chamou-se a si mesmo "servo de Deus" e
"representante de Cristo" a quem fora transmitida a
com a Bula Unam Sonctom (1302), entende o seu primado universal
plenitude do poder. Foi o papa que aprovou a ordem como contendo a exigência de sujeição universal ao Papa, e isso como
dos Franciscanos e dos Dominicanos. condição para a salvação. No século XIII a sociedade medieval mar-
cada pela ideia de cristandade e sua força de coesão atinge o seu
cume. Eram percetíveis ao mesmo tempo profundas transformações
Papa Bonifácio VIII verificadas na visão da Igreja e sua missão.
(1235-1303)
Bento Gaetani é eleito papa Assim, por exemplo, a visão sacramental-eucarística da Igreja, que
em 1294. Homem de grande
inteligência e com grande
predominava nos primeiros séculos (uma visão assente na importância
capacidade de liderança é crucial do batismo e da eucaristia como expressões dos dons de Deus
um defensor da supremacia e fontes de vivência eclesial), cedeu lugar a uma visão mais jurídica
papal. Advogava a superiori- e centralizada da Igreja como instituição de direito divino, em que
dade do poder espiritual so-
bre o temporal entrando, por os elementos institucionais prevalecem sobre os aspetos sacramen-
isso, em divergência profun- tais-espirituais. Nessa linha, impulsionada pela canonística nascente
da com os reis e senhores (a partir do século XII), aparece em primeiro plano uma compreensão
da época medieval. Afirmava corporativa-sociológica da Igreja, ou seja, a Igreja é vista sobretudo
que o poder papal é superior
a qualquer poder secular e que a Igreja tem uma só como corpo social organizado.
cabeça: Cristo e o seu representante, o papa. De-
fendia que a Igreja detém, em si, o poder temporal Paralelamente vai-se perdendo também o sentido primitivo da
e o poder espiritual e que a obediência ao vigário de ligação estreita entre ministério e comunidade. A ordenação/con-
Cristo, o papa, é necessária para a salvação de cada sagração aparece como um poder que o ministro recebe pessoal-
ser humano. No ano de 1300 instituiu o primeiro jubi-
leu cristão concedendo uma indulgência a todos os
mente e que é chamado a exercer independentemente da comuni-
que fizessem uma peregrinação a Roma (ao túmulo dade. Consequentemente, a vida da Igreja é marcada pela progressiva
de S. Pedro).

13 A Comui.., d , - „ . n t e s em Cristo
divisão entre clérigos e leigos. A antiga tensão entre Igreja e mundo
São Francisco d e A s s i s
desloca-se agora para o interior da própria Igreja: os clérigos estão por (1182-1226)
cima dos leigos, ocupados com as coisas do mundo. A Igreja, instituição Filho de um rico mercador
de direito divino fundada uma vez por todas por Cristo, é representada de têxteis, foi militar na ju-
ventude. Feito prisioneiro e
sobretudo pelos clérigos, a quem cabe o verdadeiro poder espiritual. após uma grave doença, vive
A identificação entre Igreja e hierarquia (clero) vem acompanhada uma profunda crise exis-
pela acentuação da dimensão jurídica do ministério e seu poder. tencial. Confrontado com o
apelo de Jesus aos discípu-
A vida da Igreja não se esgotava certamente nos aspetos acabados los de serviço aos pobres,
de referir. A já referida renovação da vida monástica, a fundação das sai de casa dos pais, renun-
cia ao conforto físico e, juntamente com um grupo
ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos) no século XIII e os de companheiros, vive a pobreza voluntária numa
diversos movimentos místicos na Idade Média tardia procuravam sub- obediência libertadora à Igreja (num tempo em que
linhar, de diversos modos, a identidade radical da Igreja como Igreja alguns membros da Igreja viviam no luxo e na opu-
pobre e servidora, centrada numa espiritualidade de seguimento de lência). Adota como regra de vida "viver o Evange-
lho de Nosso Senhor Jesus Cristo, dedicando-se à
Jesus. No entanto, prevalece globalmente neste longo período a ima- pregação itinerante, seguindo Cristo de modo pobre,
gem imperial da Igreja como instância de domínio e de poder. casto e obediente". Amante e admirador da natureza
e de todas as criaturas, tinha um carinho muito es-
pecial pelos pobres, pela paz e por uma vida assente
na simplicidade e na fraternidade.
2. N o i m p o da 1:kr, Jrm_ A festa litúrgica de S. Francisco é a 4 de outubro.

São Domingos de Gusmão


2.4.1. O significado da Reform- (1170-1221)
Nascido em Espanha, filho
O final do século XV e os princípios do século XVI representam o de uma família da pequena
nobreza castelhana torna-
dealbar de um período novo, normalmente caracterizado como sendo -se padre. Inquieto perante o
o início da Idade moderna. Como principais transformações verifica- desconhecimento da mensa-
das e fatores condicionantes dessas transformações podem apontar- gem cristã tornou-se para ele
-se os seguintes: a dissolução da "cristandade medieval" à volta do um imperativo a evangeliza-
ção, nomeadamente daque-
papado, não só em razão da quebra da unidade cristã pela Reforma les povos e grupos que an-
protestante mas também pela progressiva dissolução da unidade davam "afastados da Igreja". Juntamente com Outros
entre religião e sociedade (na sequência do Iluminismo) e pelo nasci- companheiros frades, hoje -conhecidos como Domini-
mento progressivo de particularismos nacionalistas (a rivalidade dos canos, pregava aos chamados hereges usando o seu
exemplo de vida e apresentava com clareza a Palavra
reinos sucede à relativa unidade dos tempos anteriores); o desper- de Deus. Os padres pregadores, conhecidos como ho-
tar do movimento laical em diversas expressões, também no âmbito mens sábios, pobres e austeros, formam a ordem dos
político (reis, imperadores e príncipes seculares); a emancipação do Dominicanos, que é aprovada pelo papa inocêncio III.
S. Domingos é celebrado no dia 8 de agosto.
"sujeito", do indivíduo, com um novo sentido da liberdade pessoal e
a consequente possibilidade de exercício de uma atitude crítica (cf.,
por exemplo, a figura de Erasmo de Rcterdão); o Renascimento e o
Humanismo com o seu voltar-se para a antiguidade que se redescobre
1,2•••p>,-•
de novo, dando origem a uma nova ordem de valores (uma nova antro- 02.,‘ x f o l . " ( r r til•-1.x-rst •
pologia); a Reforma protestante do século XVI (Lutero: 1483-1546; •I f o T o ( f k _ n m i r " L f IN.Trusfrx , , , r r CL C L u . inC r1:11..•
Calvino: 1509-1564; Zuínglio: 1485-1531) como o acontecimento por- .11 1 . . . 1 I N A r r ,17,1e-re- er- , , 1 •

ventura mais determinante pela dissolução que ela significou da Igreja l i ' ,2_.1 I i n 7 • c r i . ; ”Ift-norrr,,,,d,rf •

medieval e pelas profundas transformações que trouxe no processo C,1" A c t , f r , L , 1 1 : r 1 , , , í r “ •


o o j Abl.c7orf
de identificação pessoal dos cristãos e na própria valoração das estru-
.11,J1,, I 1 c 1 , 7 1 0 1 4 , / . 1 r / f . , 7 t " .
turas eclesiais. illt• n 0 , - C / I r r t - t e • nOILIf L'Tfw-r.clert- •

Globalmente pode dizer-se que a Reforma, na sua intenção primeira n o t u f r i c k f cm,p-r,-,k,rr- • • < • . , - - c o n

11, • •):Drre I n o u f ,,,,,rr- •


de renovar à luz do Evangelho a Igreja face às desordens e abusos
ciif",hrfroíf‘t c n I - L s r w l :
que se verificavam, significou um confronto com o sistema religioso pcdcf JtYrr
de então, assente na necessidade de muitas "obras" para alcançar a Q . 11 . r r r r , r , 1 - •
salvação. De há muito era notória a necessidade de uma revitaliza-
ção espiritual da Igreja. Os apelos e iniciativas reformistas surgiam um
tII t tcrxr Át kde •Usfel. ,wreirmTre rosrl-rtr-cr—ort7nnfmc.,,rt•--:
pouco por todo o lado: basta lembrar John Wycliffe (1324-1384), na .A111.1 Q.....1•Ir 0,7;1 er41-4 c I r P e í r 0.11C,t1 O r d b 1 • 1 7 , - - :
Irlanda, e Jan Hus (1369-1415), na Boémia (este último reabilitado, em Itt. c r 4 - j 7 J fed n rmtrrArt•-•
palavras do Papa João Paulo II, quanto à intencionalidade evangélica cf, n f n 4 , J • • •

das suas preocupações). l t 3LíC • - • c r y r r 1-Inf,t,43cr silcr,"!roo,--,r1 •


, , 023 ,,,,Ih7
Nessa linha, a compreensão da Igreja no movimento da Reforma
caracteriza-se pela acentuação do elemento espiritual, interior, em tta,1 fmtcnn.,11[,,,r l p f r on-r2iurn
f:»1,4( Trrr.-,11,r
detrimento dos aspetos visíveis, vistos por vezes de forma caricatural
..,cytttad C 7 . 1 1 , 9.1-C z t i L . 111 . - 1 . 1 ) C , T 1 7 •
e polémica, tendo como referência o modo como eles se concretiza-
ram na Igreja medieval e sob o domínio ilimitado do papado. aj. ,nrAiort:f c ç ,-.14-0,myrcci; i c b c . n z •
ecce, oun.,111-r ,Trluct 41c-c1r1147eruil. f c r i r r t r n ,
Na Confissão de Augsburgo, VII, do ano 1530 (Confessio Augustono),
oferece-se uma descrição concisa da identidade da Igreja: Dictatus
• _ Papae, manuscrito. Arquivos Vaticano.

1 14
Educa(„,,
Erasmo de Roterdã°
(1466-1536)
Erasmo de Roterdã° foi um "A Igreja é a assembleia dos crentes, na qual o Evangelho
teólogo e humanista holan-
dês. As suas ideias deixaram é ensinado de forma pura e os Sacramentos administrados
marcas importantes no pen- de forma recta [em conformidade com o Evangelho]".
samento liberal e progres-
sista do Renascimento. Afir-
mou-se como um pregador
da retidão e da paz.
Adotou u m a posição i n -
termediária entre a fidelidade e a crítica à igreja
romana. O seu profundo humanismo conciliatório
opõe-se radicalmente a todas as formas de violên-
cia, O desejo de uma reforma e de uma fé esclareci-
da, levou-o a dar passos importantes em direção à
Reforma. Fez a defesa da liberdade humana no seu
tratado sobre o livre arbítrio. Condenou comporta-
mentos impróprios dos líderes religiosos da época
reagindo contra os abusos de poder e de corrupção
IF de alguns cristãos.

Martinho Lutar°
(1483-1546)
Principal impulsionador da
Reforma Protetante, Mar-
tinho Lutero, monge agos-
tiniano, publicou, em 1517,
95 teses contra a prática
das indulgências. De início
não era seu objetivo instituir
uma nova tradição religiosa.
A sua intenção era modificar
aquilo que estava errado. Sentiu como uma expe-
«Entrega das Confissões ao Imperador Carlos V na Dieta de Augsburgo» (1530), por
riência pessoal, baseada no texto da carta de São
Andreas Herneisen (Alemanha, 1538-1610), Landschaftsmuseurn.
Paulo aos Romanos, que a salvação de Deus se co-
municava pela fé e não por meio das obras, que de-
correm da natureza humana corrompida pelo peca- Consequentemente, para a verdadeira unidade d a Igreja basta
do original. Dessa conceção fundamental - "só a fé"
- deduziu aos poucos, segundo as controvérsias ou estar de acordo com a doutrina do Evangelho e a administração dos
as circunstâncias políticas, o conjunto do seu pen- Sacramentos (entendendo-se comummente q u e aqui e s t á impli-
samento. Esta nova doutrina viria a ter como pontos citamente admitido também o ministério eclesial). Na Apologia da
centrais: a justificação de Deus só pela fé e o acesso
ao sacerdócio para todos os fiéis. Nega o valor dos
Confissão de Augsburgo, VII, do ano de 1531, explicita-se:
sacramentos (conservando o Batismo e a Eucaristia)
e o culto dos santos. Afasta por completo a autorida-
de e a hierarquia da Igreja e do Papa. Nega também
que o homem seja livre para praticar o bem e o mal. A "Mas a Igreja não é só uma comunidade de coisas e ritos
excomunhão por parte de Roma e a proteção que lhe
dispensaram alguns príncipes alemães impeliram
exteriores, como outros Estados, mas sim essencialmente
Lutar° à rutura. Outro grande princípio da Reforma é uma comunidade da fé e do Espírito Santo nos corações,
o da "só a Escritura". Apresenta a Bíblia, interpretada que todavia t e m sinais exteriores para q u e s e possa
individualmente à luz do Espírito Santo, como única
fonte de autoridade na comunidade cristã. reconhecê-la, a saber, a doutrina pura do Evangelho e a
administração dos sacramentos em conformidade com o
João Calvin° (1509-1564)
Evangelho de Cristo. Esta Igreja é chamada, pois, Corpo
Professor e teólogo cristão, de Cristo, o qual Cristo renova, santifica e conduz pelo seu
Calvin°, nascido em França, Espírito
foi fundamental no proces-
so da Reforma protestante,
principalmente na Suíça. Pre-
conizava que a Salvação só é
atingida através da Fé, sendo
Insiste-se, pois, na dimensão espiritual, invisível da Igreja, em
concedida por Deus somente
para algumas pessoas elei- contraponto à s s u a s expressões visíveis, consideradas c o m o
tas (teoria da predestinação). estruturas humanas, e assim também relativizáveis.
A doutrina sobre a predestinação, a severa disciplina
imposta na sua conceção teocrática da cidade-igreja Como é conhecido, a Reforma protestante significou uma altera-
e o governo presbiteral das igrejas, constituíram, de ção profunda do modo como o cristianismo se passou a apresentar
facto, o que se chamou de segunda Reforma.
Calvin° considerava o cristão livre de todas as proi-
na Europa e no mundo. Para além das guerras religiosas subsequentes
bições não explicitadas nas Escrituras, o que torna e suas consequências para a valoração da realidade cristã, o cristia-
as práticas do capitalismo lícitas, em especial a usu- nismo não mais aparece como uma unidade, mas surge, a partir daí
ra, condenada pela Igreja Católica. De acordo com e até hoje, marcado por perspetivas confessionais, por determina-
a teoria da predestinação, em que Deus concede a
salvação a poucos eleitos, o homem deve buscar o das formas de professar a fé e de a viver de acordo com a comunidade
lucro por meio do trabalho e da vida regrada. confessional a que se pertence. Fala-se assim de "Igreja como con-
Publicou em 1535 Christianae religionis institutio fissão": Igreja católica romana, Igreja luterana, Igreja reformada ou cal-
(Instituições da religião cristã), que se tornou o pri-
meiro catecismo da Reforma.
vinista, etc. Isso não tinha sido sentido assim na cristandade aquando

A Comunida(* em Cristo
Uldch Zuínglio (1484-1531)
da rutura entre o Oriente e o Ocidente no século XI: certamente em Humanista e padre suíço,
razão das distâncias geográficas, históricas e culturais existentes, mas este reformador fundâu, em
não menos pelo facto de que permanecia substancialmente a afirma- Zurique, uma teocracia que
se estendeu a Berna, Basileia
ção comum da mesma fé, o que é reconhecido ainda hoje. e Estrasburgo. Apelando ao
regresso da Igreja à simpli-
cidade original, a sua doutri-
2.4.2. Contra-, _,,,forma e suas conseq,_ j a s na teológica radicalizou-se mais do que a de Lutero,
especialmente ao negar a presença de Cristo na Eu-
Na sua resposta ao questionamento protestante, uma resposta que caristia. Os anabatistas, assim chamados por defen-
deve ser entendida como busca de renovação mas também de Contra- derem um novo batismo para os adultos, já que as
crianças não podiam receber a graça que só se trans-
-Reforma, a Igreja católica desenvolve-se a partir do Concílio de Trent° mitia pela fé, vincularam-se às doutrinas de Zuínglio.
(1545-1563) com um determinado perfil anti-reformador: privilegia-se
progressivamente a visibilidade institucional da Igreja (a Igreja como Concílio de Trent° (de 1545 a 1563)
uma realidade social tão visível e organizada corno a sociedade política No início do séc. XVI, Martinho Lutero lança uma
de então); põe-se em primeiro plano o aspeto hierárquico em relação dura crftica à Igreja, que se debatia, desde. há muito,
com uma longa crise moral interna, bem expressa
com o ministério ordenado (em contraste com a insistência luterana no Cisma do Ocidente e nas tendências conciliaris-
no sacerdócio comum dos fiéis e o questionamento do significado do tas do séc. XIV. A essa crítica luterana importa ainda
ministério ordenado); valorizam-se particularmente as realidades acrescentar tensões de caráter político que amea-
çavam a unidade da cristandade. Só um concílio po-
sacramentais (em contraposição à acentuação protestante da Palavra deria resolver problemas tão graves.
de Deus, em conjunto com a crítica do "sacramentalismo" tradicional). Apesar dos muitos pedidos, provenientes de várias
Esta acentuação do momento institucional na compreensão e prática partes, o papa Paulo 111 (1534-1549) tinha receio de
da Igreja, com a concomitante sobrevalorização do lugar da hierarquia, convocar um concílio. Fé-10 contudo em 1537, para
a cidade de Mântua (e, um ano depois, para Vicen-
levou a que se chegasse a dizer que a eclesiologia foi substituída pela za), mas a falta de adesão dos protestantes alemães
"hierarcologia". obrigou a um adiamento. Entretanto, o imperador
Carlos V tentou salvar a unidade da cristandade
A expressão mais nítida desta conceção eciesiológica encontramo- através de encontros informais, que se revelaram
-Ia nas Controvérsias (1576-1588) de S. Roberto Belarmino (1542-1821) infrutíferos. O concílio foi então novamente convo-
e sua descrição da Igreja: cado em 1542, para a cidade de Trent°. No entanto,
este não começaria antes de 1545.
Em Trent°, os trabalhos decorreram durante dois
anos (sessões 1 a 8), tendo sido depois suspensos,
devido a uma epidemia, e trasladados a Bolonha,
"Comunidade d a s pessoas ligadas pela profissão d a onde se realizaram algumas sessões esporádicas
mesma fé e comunhão dos mesmos sacramentos, sob o entre 1547 e 1549 (sessões 9 a 11). Os trabalhos em
Trent° seriam retomados em 1551, sob o pontifica-
regime de legítimos pastores e principalmente do único do de Júlio 11 (1550-1555), mas durariam apenas um
vigário de Cristo, o pontífice romano". ano (sessões 12 a 16), sendo interrompidos devido à
guerra entre as tropas imperiais e os protestantes,
então aliados com França. O concílio só viria apenas
a concluir os seus trabalhos em 1562-1563 (sessões
17 a 25), durante o pontificado de Pio IV (1559-1565).
E noutro passo explicita-se: O Concílio de Trent° teve, fundamentalmente, dois
objetivos. O primeiro de caráter dogmático: respon-
der sistematicamente aos desafios e posições teoló-
gicas (heréticas) dos protestantes, nomeadamente a
"A Igreja é uma comunidade de pessoas humanas tão questão da justificação pela fé, a autoridade da Bíblia
e a teologia sacramental (sobretudo em relação à Eu-
visível e palpável como a comunidade do povo romano ou caristia). O segundo, pastoral e disciplinar (a "reforma
o reino de França ou a república de Veneza". católica" propriamente dita): reforma da Cúria roma-
na, obrigação de residência por parte dos bispos,
citação segundo H. FRES, «Modificação e evolução histórico-dogmática formação do clero (criação de seminários'), criação
da imagem da igreja», in J. FEINER - M. LÕHRER (ed.), Mysterium Solutis. de sínodos diocesanos, reforma do culto e da liturgia.
compêndio de Dogmática Histórico-Solvifica, Petropolis 1975, p. 36. Os resultados mais duradoiros do concílio triden-
tino prendem-se com a teologia fundamental e a
pastoral. Na teologia fundamental, o concílio fixa
definitivamente o cânon bíblico e os sacramentos.
Mas mais importante é o estabelecimento de uma
A Igreja define-se, pois, pela sua visibilidade institucional, pela tradição normativa (patrística e conciliar) para a in-
objetivação dos conteúdos da f é e dos sete sacramentos, pelo terpretação da Bíblia, num claro posicionamento
governo através dos legítimos pastores. contra a sola scripturo protestante. Impõe-se deste
modo a "tradição" como segunda fonte da reflexão
Seria injusto ver aqui uma maneira de conceber a Igreja exclusi- teológica. Os anos posteriores ao concílio são de
uma grande riqueza a nível pastoral. A "cura de al-
vamente a partir dos seus elementos visíveis, exteriores. Como não mas" assume claramente um papel central na vida
podem desvalorizar-se os enormes impulsos de renovação eclesial da Igreja católica, sendo favorecida pela reforma
provenientes do Concílio de Trent°. Mas, nesta orientação global de litúrgica. A pregação adquire um novo dinamismo e
oposição à Reforma protestante, caiu-se inevitavelmente numa hiper- a formação sacerdotal torna-se central. Uma nova
geração de bispos-pastores testemunha o cuidado
trofia do momento institucional, da dimensão hierárquica e da pers- pastoral desejado por Trento. O dominicano portu-
petiva papal-romana como elementos nucleares da Igreja de Jesus guês Frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590) teve
Cristo, exclusivamente identificada com a Igreja católica romana. E a uma participação notável neste concílio. Bispo de
Braga, aplicou na diocese as decisões conciliares,
partir daqui a vivência "confessional" da fé aparece como contraposi- preparou um catecismo para as pessoas e fundou
ção, como negação da outra maneira de ser cristão (ser católico signi- um seminário para a formação do clero.
fica, antes de mais, não ser protestante e vice-versa). Bibliografia: J. Wicks, (1992) "Trento", in René Latou-
relle-Rino Fisichella (eds.), Diccionorio de Teologia
Fundamental, San Pablo, Madrid.

E d u c a c . ) Morai e k e i i g i v a
São Roberto Belarmino
Padre e Cardeal jesuíta, teve um
importante papel na aplicação
Na modernidade
das inovações d o Concílio d e
Trento, ajudando na formação
apologética dos teólogos e pre- 2.5.1 'r)s d e s p ' d e --loc,---,dade
gadores responsáveis pela de-
fesa da fé. S. Roberto Belarmino Os tempos modernos revelam-se como profunda interpelação à
distinguiu-se pelas suas críticas Igreja, suas convicções e sua organização. O processo de secula-
aos erros das doutrinas refor- rização trouxe a progressiva libertação das instituições da tutela
mistas. Pela qualidade dos seus
escritos, destacando-se os livros "Controvérsia" e "Ca- eclesial. Por outro lado, na sequência da mentalidade humanista
tecismo", foi considerado Doutor da Igreja. O dia litúrgico emergente a partir do século XVI e da consciência da liberdade
é 17 de setembro. individual que a própria Reforma protestante assumiu e desenvol-
veu, a cultura europeia vem a ser decisivamente marcada pelo
Paz de Vestfália: Conjunto de tratados assinados em
1648 que colocaram o fim à Guerra dos Trinta Anos e re-
Chamado "Iluminismo" (Aufkãrung) nas suas várias e prolongadas
definiram o mapa e a balança de poder na Europa. Os tra- expressões e consequências (séculos XVII a XIX).
tados foram negociados durante três anos por Católicos
e Protestantes — as duas partes envolvidas na Guerra O Iluminismo tinha a pretensão básica de libertar o ser humano
dos Trinta Anos —em duas cidades distintas: os protes- da sua menoridade, estimulando o uso da própria razão e a pro-
tantes reuniram-se na cidade de Osnabrück e os católi- gressiva autonomia das pessoas face à autoridade eclesial. Ao
cos na cidade de Münster, ambas na atual Alemanha. A
Paz de Vestfália é considerada o marco da diplomacia
mesmo tempo, o insucesso das discussões doutrinais na perspe-
moderna, pois, pela primeira vez, é reconhecido o prin- tiva de uma possível reunião dos cristãos e, sobretudo, as sangren-
cípio da soberania de cada Estado envolvido. Para além tas guerras de religião (terminadas com a Paz de Vestfália, 1648)
disso, afirmou a supremacia do poder político nos Esta- mostravam empiricamente a conveniência, se não mesmo a neces-
dos e a diminuição da presença da Igreja nas monarquias
europeias ao mesmo tempo que concedia o mesmo re- sidade, desse uso da razão na busca daquilo que é ou pode ser
conhecimento às religiões católica, luterana e calvinista. comum, sobretudo em termos éticos, independentemente da con-
fissão religiosa a que se pertencia ou da visão do mundo que se
Iluminismo: Movimento intelectual, político, económico,
social e cultural que surgiu na Europa no século XVII e se
tinha. A afirmação de valores e atitudes básicos comuns, que ser-
prolongou até ao século XIX, tendo tido o seu expoente vissem de fundamento para uma convivência pacífica entre as pes-
máximo em França durante o século XVIII (que ficou co- soas e os povos, só podem ser encontrados — pensa-se — de forma
nhecido como o Século das Luzes). O liuminismo surgiu racional na própria pessoa humana e sua natureza, sem qualquer
como forma de reação da burguesia às características
absolutistas do Antigo Regime, nomeadamente o abso- intromissão do factor religioso-confessional (aspiração a uma reli-
lutismo monárquico e a autoridade da Igreja Católica. Os giosidade natural que unisse para lá das diferentes confissões).
pensadores iluministas defendiam o uso da Razão e o Tudo isto encontrou particular expressão social, política e cultural
progresso da ciência em contraponto aos valores basea-
na Revolução francesa (1789) e suas consequências.
dos nas tradições e na fé, que, segundo eles, bloquea-
vam a evolução do Homem. O liuminismo foi, assim, um Caminhou-se assim para a (indispensável) separação entre
período de transformações na estrutura social da Euro-
pa, onde os temas se centravam em conceitos como a poder espiritual e poder temporal, mesmo que a pretensão da
Liberdade, o Progresso e o Antropocentrismo (Homem no Igreja nesta matéria (por exemplo, a afirmação da manutenção de
centro). um "poder indireto sobre as coisas temporais") permanecesse para
Revolução Francesa: Movimento político que derrubou a
além do que o próprio poder político aceitava e do que a missão
monarquia absolutista do Rei Luís XVI e proclamou a Re- específica da Igreja exigia. De facto, só muito tarde, já em pleno
pública em França. No século XVIII a sociedade francesa século XX, é que se conseguiu chegar a uma perceção justa da rea-
era constituída pelo clero, a nobreza e o terceiro estado lidade, a partir da compreensão do sentido mais original e profundo
(formado pelo povo e a burguesia). O descontentamento
social do terceiro estado devido à degradação das con- da missão especificamente religiosa da Igreja e do respeito pela
dições de vida do povo, à falta de liberdade a nível polí- legítima laicidade do Estado.
tico e económico da burguesia e ao pagamento de altos
impostos, que serviam para manter os hábitos de luxo da
nobreza e do clero, levaram a que a população se revol- 2,r 2. igrr), , d i s t i t u i ç o " e "sociedP-'e"
tasse. Sob o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade",
o momento decisivo do início do processo revolucionário Como se percebe, estes e outros desafios foram entendidos glo-
ocorreu a 14 de julho de 1789, com a Queda da Bastilha balmente como questionamento da Igreja, da sua autoridade, do
(prisão política símbolo do absolutismo). Com a Revolu-
ção Francesa foram traçadas as bases de uma socieda- seu lugar na sociedade. Emergiu assim a exigência de uma resposta
de burguesa e capitalista. da Igreja, que se julgava dever passar por um reforço da sua coe-
são interna, com base em critérios e atitudes fortalecedoras da
Johann Adam Mãhler sua presença e organização institucionais. A imagem que guiava a
(1796-1838)
Teólogo católico de nacionalida-
Igreja ia no sentido de se entender a comunidade eclesial como
de alemã. Foi professor na pres- uma instituição moral e uma sociedade perfeita, hierarquica-
tigiada Universidade de Tubinga e mente bem estruturada, completa na sua capacidade de se orga-
estabeleceu uma acesa polémica nizar nos diversos domínios de uma sociedade análoga ao Estado.
com os teólogos protestantes, fru-
to das ideias que explanou na sua Nesta ordem de ideias considera-se que é contra a essência da
obra "The Simbolik". Igreja pensar-se que ela precisa de reforma, como se a Igreja esti-
vesse exposta a deficiências que necessitariam de ser corrigidas
(assim pensava Gregorio XVI, 1831-1846). A acentuação hierárquica
expressa-se particularmente no facto de que o clero constitui o ver-
2Cf. PIO X, Encíclica Vehementer Nos, no 22. dadeiro "sujeito" da Igreja que, em última análise, é "uma sociedade
de desiguais"2. São célebres as palavras de Johann Adam Móhier
(1796-1838) como síntese desta visão da Igreja:

A Comunidade de Crentes em Cristo


3Esta afirmação do centralismo romano surge tam-
bém como resposta contra tendências eplscopa-
"Deus criou (no princípio) a Hierarquia, e a Igreja se vê listas, marcadas genericamente pela afirmação da
autonomia própria das Igrejas em contexto nacio-
suficientemente garantida até ao fim do mundo". nal, mais ou menos em estreita ligação com o poder
Cit. segundo H. FRIES, Modificação e evolução histórico-dogmática, p. 41 s. político local. São exemplos disso, nos séculos XVII
e XVIII - assinalam-se apenas expressões e datas
mais significativas"- o galicanismo (1682), o febronia-
nismo (1763) e o josefinismo (1768). A reação a estas
tendências, em particular ao galicanismo, vai estar
Naturalmente, na complexidade e diversidade que apresentavam, os presente no próprio Concílio Vaticano 1(1869/1870).
desafios e interpelações da modernidade suscitaram também reações Vaticano I (1869-1870)
diversas, por vezes mesmo marcadas por alguma tensão e contradi- O Concílio Vaticano I, anunciado e convocado (Bula Ae-
ção dentro da própria Igreja. Se em termos culturais a absolutização da temi Patds, de 29 de junho de 1868) pelo Papa Pio IX,
razão vai suscitar e favorecer como resposta a emergência do roman- realizou-se entre 8 de dezembro de 1869 e 20 de ou-
tubro de 1870, altura em que as tropas italianas in-
tismo, se as novas ideias encontravam algum eco em expressões de vadiram Roma e o concílio teve de ser interrompido.
liberalismo católico, a contestação laicista da Igreja, seus princípios O objetivo expresso deste encontro de bispos, era
e seu papel na sociedade vai impulsionar o surgimento da contra-re- o combate aos principais erros da modernidade:
ateísmo, materialismo, panteísmo, agnoscitismo,
volução católica e de tendências restauracionistas no próprio seio da racionalismo e fideísmo. Durante os trabalhos, po-
Igreja. rém, os bispos presentes no concílio manifestaram
a sua preocupação pelos efeitos político-sociais da
No movimento restauracionista, de que é exemplo marcante o cha- negação da autoridade divina, pedindo uma formu-
mado "ultramontanismo" (para além das montanhas, isto é, dos Alpes, lação mais positiva da doutrina cristã, em vez de se
em direção ao Papa), manifestavam-se sintomas de reação defensiva limitarem a condenar os erros modernos. Essa preo-
cupação ficou bem espalhada nas duas únicas cons-
face a pretensões absolutistas que ameaçavam não respeitar a plena tituições dogmáticas aprovadas: a Dei Filius, sobre
liberdade na vivência comunitária da fé católica na sociedade moderna. a revelação (fontes da revelação e necessidade de
Acentuava-se assim, como resposta, uma visão da Igreja restaura- uma revelação sobrenatural) e a fé (relação entre fé
dora da velha ordem da cristandade medieval, centrada à volta do e razão, necessidade dos motivos de credibilidade
e liberdade de assentimento aos mistérios da fé
papa, como uma espécie de fortaleza contra as confusões e os erros revelada), e a Pastor Aetemus, sobre o primado do
do tempo. A Igreja é entendida prioritariamente como uma instituição Bispo de Roma (a sua instituição por Cristo, a sua
visível de salvação, ordenada hierarquicamente e dirigida pelo papa. continuidade na história, a sua jurisdição suprema e
universal e, enfim, o caráter infalível das suas defini-
Esta acentuação unilateral da perspetiva papai, hierárquica, centrali- ções ex cathedra - quando fala sob determindadas
zadora, tem como pressuposto complementar a nível de pensamento condições formuladas pelo concilio - em matéria de
teológico o esforço de restauração da escolástica (neoescolástica).3 fé e de costumes).
Os resultados mais evidentes do Concílio Vaticano I
O Concílio Vaticano I surge com a pretensão de unir o mundo cató- são, por um lado e graças à Constituição Dogmática
lico numa demonstração poderosa contra o s erros do tempo que Pastor Aetemus, uma resposta corajosa às tendên-
cias teológicas do conciliarismo (um tema que vinha
se opõem à verdade cristã (condenados por Pio IX, já em 1864, no já da Idade Média) e do galicanismo, ainda que a
Syllobus errorum, catálogo de oitenta afirmações mais ou menos libe- autoridade do Papa sobre os bispos tenha sido so-
rais que acompanhou a publicação da Encíclica Quanto Curo) e tornar brevalorizada e seja necessário esperar pelo Con-
a Igreja mais capaz de responder às novas condições da sua presença cílio Vaticano II para encontrar um novo equilíbrio;
por outro lado, e graças à Constituição Dei Fillus, o
na sociedade. Para isso era fundamental a unidade da Igreja sob concílio dá uma resposta equilibrada aos desafios
um só comando, e esse comando devia estar dotado da capacidade do racionalismo e do fideísmo, tendo grande impac-
de afirmar, com autoridade inequívoca, a doutrina da Igreja. Estavam to nos tratados de teologia fundamental elaborados
posteriormente, até ao Concílio Vaticano
assim criadas as condições para a afirmação do primado de jurisdi-
ção universal do bispo de Roma e para o reconhecimento da possi- Podes aprofundar em: M. Chappin, (1992) "Vaticano I",
bilidade do exercício infalível do seu magistério (ensino) em deter- in René Latourelle-Rino Fisichella (eds.), Diccionario
minadas circunstâncias. de Teologia Fundamental, San Pablo, Madrid.

Mesmo assim, dada a interrupção prematura do Concílio (devido à • •


invasão dos Estados Pontifícios pelas tropas italianas, na sequência Papa Pio IX (1792-1878)
João Ferretti nasce na Itá-
da guerra franco-prussiana), é de admitir que alguma unilateralidade lia e em 1846 é eleito papa.
temática e de pensamento que caracteriza o Vaticano I em termos Pertence-lhe, a t é hoje, o
eclesiológicos poderia ter sido atenuada se o Concílio seguisse o seu pontificado mais longo da
história depois de S. Pedro.
percurso normal. A visão da Igreja subsequente ao Concílio Vaticano Entre as realizações do seu
I ficou mamada, em consequência de todo este contexto, por uma pontificado destacam-se: a
mentalidade fortemente apologética, que se opõe ao espírito da definição solene, a 8 de de-
época do mesmo modo e na medida em que este contradiz a fé e a zembro de 1854, do dogma
da Imaculada Conceição e a
Igreja. É inegável que, nesta mentalidade defensiva e reativa, há tam- celebração do Concílio Ecu-
bém pouca capacidade para o reconhecimento dos próprios limites ménico Vaticano I.
de pensamento e de prática, bem como para uma perceção mais pro- Em 1870 as tropas italianas ocupam Roma e termi-
funda de interpelações que necessitavam de uma maior reflexão e de na o poder temporal dos papas. Soube ser firme na
condenação dos erros e fiel à tradição na moderni-
uma mais ampla abertura de espírito. Isso pôde observar-se ainda com dade do seu tempo.
Pio X (1903-1914) e sua condenação do "modernismo" (1907) como
sendo o "recetáculo de todas as heresias".

Educação Moral e Religiosa católica 18


Papa São Pio X (1835-1914)
"Um simples pároco do cam-
2.6. Na contemporaneidade
po". Era assim que o papa
São Pio X s e gostava d e
caracterizar. "Nasci pobre,
2.6.1. Elementos de renovação eclesiológica nos
vivi pobre e desejo morrer
pobre", eram as palavras ini-
séculc " X ' ' X
ciais do seu testamento. A renovação eclesiológica que amadureceu no século XX é fruto
Reformador dentro da Igreja, de alguns impulsos que se fizeram sentir já no século XIX, em grande
criou bibliotecas eclesiásti-
cas e efetuou reformas nos parte sob o influxo do espírito do romantismo, com o seu sentido
seminários. Renovou a mú- dos organismos vivos, com a atenção às dimensões do sentimento e
sica sagrada. Permitiu que os fiéis pudessem rece- do coração, com o reconhecimento da importância da tradição e da
ber a comunhão diária autorizando, também, que a
primeira comunhão fosse ministrada às crianças a
história, com a valorização do comunitário, com a ideia da vida como
partir dos 7 anos de idade. Instituiu o ensino do cate- movimento total que une a diversidade na unidade. Nalguns contextos
cismo em todas as paróquias e para todas as idades, de pensamento teológico, isso permitiu ultrapassar uma visão unilate-
como caminho para recuperar a fé. ralmente jurídico-institucional da Igreja, e reabrir caminhos para uma
consideração da Igreja mais claramente numa perspetiva teológica
Escola Romana
Designação relativa a um grupo de teólogos que teve e sobrenatural. Johann Adam ~ l e r , da "Escola de Tübingen", é um
um importante papel no desenvolvimento da ecle- dos nomes incontornáveis: impulsionou uma visão da Igreja como rea-
siologia, no século XIX, bem como na elaboração dos lidade fundamentada na encarnação do Filho de Deus e no envio do
documentos eclesiológicos do Concílio Vaticano
Pertenciam sobretudo à Universidade Gregoriana: os
Espírito, como misteriosa união do divino e do humano, segundo uma
italianos G. Perrone (1794-1876) e os seus discípulos, estrutura de encarnação. Em Itália, a chamada "Escola Romana" refle-
C. Passaglia (1812-1887) e J. B. Franzelin (1816-1886) tiu globalmente no mesmo sentido dos teólogos de Tübingen e reco-
e o alemão P. Kleutgen (1811-1883). A ação destes nheceu também a necessidade de se acentuar o aspeto místico e vital
teólogos constituiu um renovamento na eclesiologia
católica, anteriormente muito centrada na apologéti- da Igreja. Assim, nos finais do século XIX, estavam abertas vias de pen-
ca, particularmente graças à sua insistência e clarifi- samento teológico no sentido de ver a Igreja como "Corpo Místico de
cação dos conceitos bíblicos e patrísticos. Cristo", comunidade na qual Cristo se torna visível no mundo e realiza
no presente a sua obra redentora. A Igreja é assim entendida como o
Romano Guardini prolongamento de Cristo, animada por Ele e pelo seu Espírito, a Igreja
(1885-1968) é como que a "encarnação continuada".
Padre e teólogo católico,
Romano Guardini f o i u m De qualquer modo e em termos maioritários, pode dizer-se que, no
prestigiado professor d e dealbar do século XX—e isso mantém-se praticamente até ao Concílio
Teologia nas Universidades
Católicas de Tubinga e Muni- Vaticano II - , a eclesiologia católica apresentava-se mais como
que. O papa Bento XVI (seu fruto de reações e de atitudes defensivas face a diversas posições
aluno e admirador confesso) "adversárias" ou, pelo menos, consideradas inadequadas ao longo
afirmou a seu respeito, ser de séculos do que propriamente como uma visão própria positiva,
um homem a quem apenas
interessava alcançar a ver- equilibrada e completa do mistério da Igreja. No seu cerne e não
dade de Deus e a verdade obstante os princípios de renovação apontados, a conceção da Igreja
sobre o homem. Sofreu a perseguição aos católicos que prevalecia era marcadamente "cristomonista": privilegiando os
por parte dos nazis. Teve uma especial importância
na reforma litúrgica da primeira metade do séc. XX,
aspetos cristológicos da Igreja (por exemplo, na ideia de "encarnação
graças à sua obra magistral "O espírito da Liturgia". continuada") tendia a acentuar a sua dimensão visível, institucional,
sociedade organizada e dotada de particular autoridade, não con-
seguindo formular um anúncio teologicamente mais positivo e mais fun-
4 Cf. H. MIES, Modificação e evolução histórico-
-dogmática, p. 49. damentado do mistério da Igreja.

q.? I m n i r
Não obstante a originalidade criativa que marcou a reflexão eclesiológica do Concílio Vaticano II,
essa reflexão não se compreende sem algumas expressões de renovação teológica e eclesial
emergentes na primeira metade do século XX.
Desde logo, os desafios da chamada "crise modernista", ainda que com unilateralidades e
desvios, despertaram a consciência católica para o problema real da relação entre a vivên-
cia da fé e as transformações culturais nas circunstâncias da história. Simultaneamente, foi
crescendo a perceção de que urgia uma renovada tomada de consciência da dimensão sobre-
natural da existência crente e da vida da Igreja, de que pode ser exemplo a intensificação da
piedade eucarística (impulsionada particularmente por Pio X).
É entre as duas Guerras, após duras experiências de tragédia humana e de desmoronamento
da sociedade, que se dá uma nova descoberta da Igreja como grandeza viva e realidade signi-
ficativa para a vida das pessoas. Neste contexto se enquadra a célebre afirmação de Romano
Guardini, vinda a público em 1921 (aliás, de algum modo em paralelo com uma outra seme-
lhante da autoria do protestante Martin Dibelius) e que apontava para um "despertar da Igreja
nas almas'''.

19 A Comunidade de Crentes em Cristo



Patrística
Mas determinantes para a renovação da vida e da conceção da Tem por objeto os textos literarios cristãos dos primei-
Igreja na primeira metade do século XX, com importância decisiva ros séculos, principalmente nos domínios dogmáticos
e doutrinais, escritos pelos Padres da Igreja. Sucede ao
para o acontecimento conciliar, foram diversos movimentos de tempo dos Apóstolos e acaba com o aparecimento da
renovação teológica que, sentindo as limitações do pensamento Escolástica. Traduz a relação entre estes Padres (ver-
neoescolástico, procuraram ir de novo às fontes da grande tradição dadeiros Pais) e a igreja dos primeiros séculos, na orga-
cristã. Destacam-se aqui o movimento litúrgico em suas diversas nização e na elaboração da doutrina cristã, ajudando a
comunidade dos cristãos a afirmar-se nos diversos con-
expressões, os esforços de refontalização bíblica e patrística, os textos em que esta se queria inculturar.
primeiros passos da receção católica do movimento ecuménico
nascido no seio do protestantismo. Refontalização bíblica e patrística
Assenta na proposta de regresso às fontes (bíblicas e
Significado extremamente relevante, porque realidade presente patrísticas). Este regresso às origens torna-se necessá-
ao nível da vida concreta das pessoas e das comunidades católi- rio num tempo em que o cristianismo se vê interpelado
pelos "ventos" da secularização, dos novos movimentos
cas, foi a acentuação do papel ativo do laicado, particularmente religiosos (new age, por exemplo). Procura recentrar-nos
através das diversas expressões da Ação Católica (Pio XI, Quas na fundamentação bíblica, mas também nos ensinamen-
Primos, 1925). Exprime-se aqui não só uma nova consciência do tos dos Padres da Igreja, na história da teologia e da espi-
ritualidade que séculos de vida cristã nos legaram, numa
que significa ser membro da Igreja, mas igualmente um modo global leitura criativa que podemos e devemos fazer neste tem-
de ser Igreja e de entender a sua presença no mundo: ultrapassa-se po em que vivemos.
uma atitude meramente defensiva para se apelar ao envolvimento
ativo e construtivo nos diversos âmbitos da sociedade. AÇÃO CATÓLICA
A Ação Católica é uma forma organizada de apostolado
Estes diversos estímulos — teológicos e prático-existenciais — dos leigos católicos, de modo a torná-los participantes
do apostolado da Igreja e foi instituída pelo papa Pio XI
conduziram a um questionamento mais incisivo duma compreen- (1922-1939) através da Encíclica Ubi Arcano Dei Consilio
são da Igreja em que os elementos societários e jurídicos per- (1922).
maneciam predominantes. Neste contexto, emergem como poios As raízes da Ação Católica estão nos movimentos cató-
principais de reflexão a relação da Igreja com o mistério da encar- licos dos séculos XVIII e XIX, que procuravam libertar a
Igreja das tendências revolucionárias iluministas e, ao
nação e a consideração da Igreja como "Corpo místico de Cristo". mesmo tempo, dar resposta aos problemas sociais colo-
Esse processo de renovação eclesiológica exprime-se a nível de cados pela Revolução Industrial. Foi assim que surgiram,
magistério na encíclica Mystici Corporis (1943) do Papa Pio XII. Na em muitos países europeus, associações e obras católi-
cas que integravam objetivos temporais e fins espirituais
Igreja, Corpo místico de Cristo, a dimensão invisível (espiritual) e e eciesiais. A função da Ação Católica é a evangelização
a dimensão visível (institucional) são indissociaveis. Não se pode e santificação das pessoas, para a qual os leigos têm
separar a c e n t u a a encíclica a Igreja institucional e juridicamente um papel específico e uma responsabilidade própria na
constituída e a Igreja como busca da vivência comunitária do amor transformação cristã do mundo.
Graças ao seu caráter laical, a ação católica é capaz de
(surpreende positivamente neste texto pontifício o papel dado ao proporcionar à Igreja uma visão do mundo e um contri-
Espírito Santo e aos carismas). buto fundamental, na afirmação de princípios religio-
sos e morais. Por outro lado, em função do seu caráter
Ao mesmo tempo, na sequência da refontalização bíblica e patrís- eclesial, ela pode transmitir ao mundo uma visão cristã
tica, a reflexão teológica tinha começado a propor a noção de "povo transformadora ajudando as pessoas a realizar plena-
de Deus" como sendo o conceito mais abrangente e mais próximo mente as suas tarefas e a viver a própria vocação. Po-
des conhecer mais com A. MATOS FERREIRA- P. F. de O.
da realidade no que concerne à visão da Igreja. Esta nova sensibili- FONTES (2000), "Acção Católica Portuguesa", in Carlos 0
dade para o sentido da Igreja como Povo de Deusa para a dimensão M. Azevedo (dir.), Dicionório de História Religiosa de Por-
histórico-salvífica do acontecimento da revelação e da vida eclesial tugal, vol. 1 (A-C), Círculo de Leitores, Lisboa, pp. 9-19.
vai marcar a visão eclesiológica conciliar.

2.7, O C A i o J c a n o II
2.7.1. Aspetos mais significativos da visão
c o - , ' " l r da 11-r&-•--- Papa Pio XII (1876-1958)
Nasceu em Roma e em 1939 ao ser eleito papa esco-
Nunca é demais sublinhar a importância transcendente que o lhe como lema "A paz é obra da justiça". Assumiu a li-
Concílio Vaticano II tem para a compreensão e a vida da Igreja no derança da Igreja católica num momento crítico para
nosso tempo, uma importância que se concretiza em afirmações e a humanidade: o início de um novo confronto entre os
países europeus, a Segunda Guerra Mundial. Com uma
orientações pontuais concretas, mas que assume sobretudo signi- longa carreira diplomática procurou, de todas as formas,
ficado na sua globalidade como "acontecimento" de renovação e evitar o flagelo da guerra, porém sem sucesso. Passou
de criatividade. A intencionalidade fundamental que lhe foi dada os anos do conflito tentando alcançar a paz e condenou
pelo Papa João XXIII no sentido de vir a ser um concílio pasto- (escrevendo palavras duras a Hitler e a Mussolini) a per-
seguição aos judeus, Quando os nazis invadiram Roma,
ral, quer dizer, preocupado com o modo como a Igreja é chamada abriu os espaços do Vaticano para os refugiados e con-
a anunciar o Evangelho aos homens e mulheres do nosso tempo, cedeu cidadania a muitos milhares de pessoas. Solicitou
deu-lhe um impuIso e um alcance renovadores que, à partida, não ainda que as igrejas e conventos, do mundo inteiro, aco-
lhessem os perseguidos e as vítimas do conflito mun-
era previsível e que torna a sua receção um processo por vezes
dial. Proporcionou um serviço de procura e recolha de
complexo, mas de enorme significado para o futuro da Igreja. informação para prisioneiros de guerra, desaparecidos,
feridos e realojaclos. Tem uma visão universal da Igreja e
Em breve síntese podem delinear-se os aspetos principais da efetivou uma progressiva abertura para o mundo.
renovação conciliar em termos eclesiológicos.

Educaç LJI V J U i L . , 1 . 1 ( J 1 J b d
20
1
a) O sentido do mistério da Igreja
Como ponto de partida fundamental para a sua compreensão (capítulo I da Lumen Gentium " O mistério da
Igreja"), a Igreja é vista à luz do Mistério do Deus Trinitário e do seu agir amoroso numa história de salvação.

b) A visão da Igreja como "povo de Deus"


Foi de capital importância a decisão, tomada no decurso do próprio processo conciliar, de antepor a visão global
da Igreja como "Povo de Deus" (capítulo II), à reflexão sobre a constituição hierárquica da Igreja e, em especial, do
episcopado (capítulo III).
1
c) Eclesiologia de comunhão
Na reflexão conciliar foram lançadas as bases de uma eciesiologia de comunhão, nas diversas dimensões e
nos vários níveis que tal comporta. Uma das várias consequências práticas daqui decorrentes é a afirmação da
í
igualdade fundamental de todos os crentes (cf. LG, no 32).

d) O lugar e o papel dos fiéis leigos


Salienta-se igualmente a dimensão eminentemente positiva com que se passa a ver o fiel cristão na Igreja (cf. LG,
nOS10-12; 30-38), sublinhada pela afirmação (cf. o capítulo V da Lumen Gentium) da vocação universal à santidade.

e) Compreensão sacramental do episcopado


Pela primeira vez, em termos de magistério, o episcopado é entendido como sendo a plenitude do sacramento da
ordem (cf. LG, no 22). Esta clarificação possibilita uma mais consistente fundamentação do lugar do bispo dentro
do colégio episcopal e na presidência duma Igreja local (Igreja Particular, Diocese).

f) A cole gialidade episcopal


O Concílio sublinha o sentido e o caráter estrutural da colegialidade episcopal, corrigindo uma concentração
exclusiva no lugar do papa e seu primado, tal como de certa forma decorria do Concílio Vaticano 1. O papa é visto
como cabeça do colégio episcopal, não se situa por cima e à margem dele (cf. LG, nos 18-29, especialmente 22 e 23).

g) A importância das Igrejas locais


Em ligação com isto e embora se trate ainda de uma reflexão incipiente, valoriza-se de forma inovadora (mas na
linha da tradição original da Igreja) a consistência teológica e prático-pastoral das Igrejas Locais ou Particulares
(Dioceses), "formadas à imagem da Igreja universal, das quais e pelas quais existe a Igreja católica, una e única"
(LG, no 23; cf. ainda LG, n°' 13 e 26 e também Christus Dominus, no 11).

h) A Igreja como sacramento universal da salvação


Superando definitivamente a maneira de pensar contida no axioma "fora da Igreja não há salvação", o Concílio
apresenta a Igreja como "sacramento universal de salvação" (LG, n°s 1, 16 e 48; OS 22).

i) Abertura ao diálogo ecuménico e inter-religioso


Dentro duma atitude dialógica global (cf. GS, no 92), o Concílio distingue-se pela abertura ecuménica, que coloca
explicitamente sob outros horizontes a relação da Igreja católica com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais
(cf. LG, no 8 e no 15 e UR, no 3), e pela afirmação de uma nova atitude face às diversas religiões (Declaração Nostro
Aetote).

j ) 0 reconhecimento da liberdade religiosa


Na Declaração Dignitotis Humonoe o Concílio reconheceu, em razão da dignidade inalienável da pessoa humana,
o direito social e civil à liberdade religiosa (liberdade de coação em matéria religiosa, tanto no que respeita à
vivência religiosa como relativamente à possibilidade de não aderir a qualquer religião). É com base na liberdade
religiosa que a Igreja passa a entender a sua inserção na sociedade humana e procura dar um testemunho crível
da verdade do Evangelho.

I) Igreja aberta ao mundo e em solidariedade com o mundo


Finalmente, emerge no conjunto do pensamento conciliar — particularmente na Constituição Pastoral Goudium et
Spes a consciência de uma Igreja que procura estar em solidariedade com o mundo em que vive e de que faz parte.

i l ~ 11 ~ § 1 E . - - 1 1 1 1 1 ~

A Comunidade de Crentes em Cristo


2.7.2. A re,--?ção do Concilio comr +arefa atual Kari Rahner (1904-1984)
Sacerdote Jesuíta e brilhan-
A receção de um Concílio é um processo muito longo no tempo e te pregador, Karl Rahner foi
sempre inevitavelmente marcado por tensões, conflitos de interpreta- um dos grandes teólogos do
ção, avanços e recuos. O que vale também, obviamente, para a rece- século XX. Autor de vários
ensaios de antes e depois
ção do Concílio Vaticano II. O pós-Concílio que estamos a viver é um das sessões conciliares do
"período de aprendizagem" (Christoph Theobald), uma aprendizagem Vaticano II, do qual fez parte,
que continua e que tem a ver decisivamente com a instituição de uma contribuiu teologicamente
nova figura do catolicismo, interpelado progressivamente no tempo e para a s Constituições Lu-
men Gentium, Dei Verbum e
nos diversos espaços por novos desafios (muitos deles ainda imprevi- Gaudium et Soes. Foi apeli-
síveis na altura do Concílio). [Texto Complementar 3] dado de "teólogo do Concílio".
De origem alemã, foi discípulo de Heidegger e um
No Vaticano II, a Igreja católica tornou-se verdadeiramente, pela pri- brilhante professor de Teologia Dogmática, em vá-
meira vez na sua história, uma Igreja mundial (Karl Rahner). É normal, rias universidades europeias.
pois, que novas interpelações e tarefas surjam, tais como as tensões Em 1960, foi nomeado consultor da comissão pre-
paratória do Concílio Vaticano II, sendo escolhido
entre o âmbito local e o nível universal, as dificuldades de viver pratica- por João XXIII para integrar o grupo de 195 peritos
mente a unidade na diversidade, as várias consequências do desloca- conciliares.
mento do peso, dentro da Igreja, do mundo ocidental europeu para os Desenvolveu a ideia de que a Igreja deve reconhecer
que esta nova fase da história já não é de cristanda-
países da América Latina, da África e da Ásia. Na receção do Concílio, de, mas de diáspora, isto é, de minoria. Tal condição
os problemas complexos da globalização do mundo são também, ine- desafia-a a encontrar novas formas de propor a sua
vitavelmente, os problemas da Igreja. mensagem de salvação.
Entre os conceitos que elaborou destacam-se os de
Nesse sentido algumas das aquisições conciliares precisam de ser «existencial sobrenatural» e «Cristãos anónimos»,
explicitadas e concretizadas na vida das Igrejas locais espalhadas pelo com que expressa a sua fundamental preocupação
em afirmar que a revelação e a salvação operadas
mundo. A "eclesiologia de comunhão" carece de implementação em Jesus Cristo não são extrínsecas ao ser humano,
efetiva tanto na vida das comunidades como na relação entre Igrejas mas correspondem a um anseio essencial para a sua
locais. A consciência da identidade e do papel dos fiéis leigos está autocompreensão.
longe de ser assumida por uns (os leigos) e reconhecida por outros (os
que exercem o ministério ordenado) em todas as suas potencialidades.
A sinodalidade (o saber caminhar em conjunto) em todos os níveis da Christoph Theobald (1946)
Teólogo jesuíta, é um espe-
vida da Igreja ainda é um desiderato sem correspondência coerente e cialista de Teologia Dogmá-
constante na vida eclesial. Apesar de todos os avanços verificados em tica, Teologia Sistemática
termos teológicos e práticos, a relação entre a colegialidade dos bis- e d e Estética. Redator da
revista Conciliam d u r a n -
pos e o primado do bispo de Roma continua a ser um problema pen- te 11 anos é redator-chefe
dente nalgumas das suas vertentes (cf. Evangelli Gaudium, no 32). As da revista "Recherches de
questões colocadas pela abertura ecuménica e pelo diálogo inter- science religieuse" e autor e
-religioso tornaram-se, entretanto, das mais incisivas na vida dos consultor da revista "Étude".
É investigador e especialista
crentes, umas vezes pelo reconhecimento da sua urgência e prioridade da temática do Concilio Vaticano II. Redigiu contribu-
em termos existenciais e de evangelização, outras vezes pela dificul- tos significativos sobre a receção do Concílio, espe-
dade real de tornar percetível ao comum dos cristãos o que verdadei- cialmente da Dei Verbum, incidindo sobre a questão
da identidade do Concilio e sua receção entre uma
ramente está em causa na tarefa de busca da unidade da Igreja e nos hermenêutica da continuidade e uma hermenêutica
desafios colocados pelo diálogo inter-religioso. da rutura.

i l i i i e r n i ~ 11 ~ 11111 ~
Texto Complementar 3
Em termos eclesiológicos, o Vaticano II foi naturalmente palco também de um certo confronto de
tendências, que se manifestariam nalgumas tensões e buscas de equilíbrios. Isso pode observar-se
em algumas matérias nos próprios textos finais. "O Concílio Vaticano II é, pois, o ponto de partida para
a eclesiologia, mas deve ter-se em conta que nele 'confluem' duas orientações, dimensões ou acentos
eciesiológicos que de alguma maneira resumem os dois milénios da história da Igreja. Por um lado,
parte-se da eclesiologia da unidade da Igreja universal, comum durante o segundo milénio e forjada
particularmente em chave apologética e jurídica, que teve os seus inícios com os primeiros tratados
autónomos sobre a Igreja (século XIV) e chegou ao seu cume no Concílio Vaticano I com a definição
dos dogmas papais; e, por outro, recupera-se de forma inovadora a eclesiologia sacramental da Igreja
como comunhão de Igrejas locais, que foi a mais comum durante o primeiro milénio, durante a etapa
da Igreja indivisa (ano 1054), e que se alarga até à grande escolástica"
S. PIÉ-NINOT, Eciesiologla. La socromentalidad de Ia comunidad cristiona, Salamanca 2007, p. 27.

Educação Moral e Religiosa católica 22


3. A origem da Igreja na história
cfrt salvação
- • dia •
• it *

«Pensando em Chartres», José Escada (Portugal, 1934-1980), Centro de Arte Jorge de Brito, °eiras.

3.1_ A Igreja prepa, .,,da na ó . .J do Povo de Isr.i


3.11. A relação particular entre pHaísmo e cr;stianisrr-
A Igreja só se compreende à luz duma história de salvação que
Deus quis e quer concretizar na história d a humanidade. Nesta
O reconhecimento da relação particular do cristia-
nismo com o judaísmo traduz-se, do ponto de vista perspetiva histórico-salvlifica reside, possivelmente, o aspecto
institucional, no facto de a "Comissão da Santa Sé mais determinante da renovação d o Concílio Vaticano II e m ter-
para as relações religiosas com o Judaísmo" estar mos de visão da Igreja. Como já se apontou, o Capítulo 1 da Lumen
integrada no 'Conselho Pontifício para a Promoção
da Unidade dos Cristãos" (e não no "Conselho Pon- Gentium " O mistério da Igreja" — sinaliza isso mesmo: "mistério"
tifício para o Diálogo inter-religioso", como acontece (do grego, mysterion) aponta para o plano salvífico escondido em
com as outras religiões). Deus e que se revela na história humana, de forma plena e definitiva
em Jesus de Nazaré. Como se sublinha logo em LG, no 2, a Igreja,

"prefigurada já desde o princípio do mundo e admiravelmente preparada na história do povo de Israel


e na Antiga Aliança, foi constituída no fim dos tempos e manifestada pela efusão do Espírito, e será
gloriosamente consumada no fim dos séculos".

A Comunidade de Crentes em Cristo


Assim, a origem da Igreja tem de ser situada no conjunto da Revelação de Deus Uno e Trino,
ou seja, na eleição de Deus que escolhe o povo de Israel, na história de Jesus, que é a definitiva
manifestação do mesmo Deus, e na ação do Espírito Santo, que atualiza o significado e a força
salvíficos do acontecimento Jesus no início da Igreja e ao longo da história.
Daqui ressaltam dois aspetos, ambos interligados entre si. Por um lado, Deus, Criador e
Salvador, dirige-se no seu agir salvífico a cada pessoa, mas sempre integrada numa dimensão
comunitária, num povo (cf. LG, no 9). Por outro, resulta daqui uma ligação única, indissolúvel,
da igreja à história de Israel, ponto de referência originário dessa história especial de salvação
(cf. Nostro Aetote, no 4) [Texto Complementar 4]
Reconhece-se assim a importância do Antigo (ou Primeiro) Testamento para a compreen-
são do mistério da Igreja e a existência de uma particular relação entre o judaísmo e o cris-
tianismo. Uma relação particular que, não obstante todas opacidades e contradições da histó-
ria, se mantém hoje como desafio e interpelação. Como ponto de partida neste âmbito - e este
é um aspecto de consciência renovada no campo católico nas últimas décadas - há a necessi-
dade de manter expressamente a especificidade dessa história da salvação e o significado reli-
gioso permanente do judaísmo. A aliança de Deus com o povo judeu, fruto de uma eleição nos
seus desígnios insondáveis, não foi anulada (cf. Rm, 11-13).
A consciência disto obriga a repensar o modo como se entende a Igreja na sua relação com
o povo de Israel. Não se pode dizer, pura e simplesmente que a Igreja, "novo" povo de Deus
substituiu ou absorveu o "antigo" Povo de Deus. Há uma continuidade, uma complementaridade
que precisa de ser respeitada. Certamente, essa relação com Israel não pode ignorar a rutura
sinalizada pela rejeição da pessoa de Jesus e sua mensagem. E permanece intocável a preten-
são cristã de que em Jesus Cristo se realizou o acontecimento culminante e definitivo da mani-
festação do amor de Deus pela humanidade. Mas há que olhar para a unidade do plano salví-
fico de Deus, atravessado pelas circunstâncias reais de uma história da salvação, na qual
está necessariamente implicada a liberdade humana, com tudo o que isso significa de possibi-
lidade de acolhimento ou de rejeição.
Em síntese, é importante reconhecer, por um lado, que à essência da fé cristã e da Igreja per-
tence necessariamente um relacionamento positivo com o judaísmo, diferente do que acontece
com outras religiões. De facto, a Igreja tem a sua raiz no judaísmo, e sem essa raiz não seria
Igreja: Jesus era judeu, os fundadores apostólicos das primeiras comunidades cristãs eram
judeus, os Escritos Sagrados do judaísmo pertencem à Sagrada Escritura do cristianismo. Mas
à essência da fé cristã e da Igreja pertence, por outro lado, também uma diferença fundamen-
tal em relação ao judaísmo: na cruz de Jesus Cristo ultrapassa-se a separação entre judeus e
não judeus, de modo que todos os povos do mundo têm agora a possibilidade de ser introduzi-
dos no novo "povo de Deus" (cf. Rm 9-11; Dl 2-3).

«America Windows», Marc Chaga° (Lituânia, 1887-1985, França), Art in,stitute cif Chicago, 1977

Católica 24
3.1.2. A igreja enraizada na experiência crente
dr' '
Na sequência do que se acaba de referir e olhando a experiência
crente de Israel, encontramos elementos fundamentais para a com-
preensão da Igreja e de diversos aspetos estruturantes da sua reali-
dade ao longo dos tempos, também no nosso. Destacam-se aqui seis
aspetos. [Texto Complementar 5]

a) A consciência de ser "povo de Deus"


Na consciência de ser "povo de Deus" exprime-se um traço nuclear da
identidade de Israel, o próprio coração da fé israelita: "Eu sou o vosso
Deus e vós sereis o meu povo" (cf., por exemplo, Ex 6,7; Jr. 7,23). "Povo
de Deus" é, no Antigo Testamento, uma expressão central que inte-
gra e sublinha a identidade mais profunda do povo eleito. Isso encon-
tra correspondência na própria singularidade da expressão hebraica
—lam 'Elohim — que a Versão dos Setenta traduziu sistematicamente
por loas tõu Theõu (povo de Deus). Ou seja, na maioria dos casos, a
palavra hebraica 'em (povo, comunidade populacional) é reservada
para a designação do povo de Israel (os povos pagãos são designados
Versão ou tradução dos setenta por goj/gojrm, termo que o grego traduz por 'éthnos/'éthnê)5.
(tradução grega do Antigo Testamento)
Refere-se à tradução grega da Bíblia Hebraica. Na consciência que aqui se manifesta, "povo de Deus" não é um mero
Segundo uma versão lendária esta tradução resul- conceito "sociológico", mas é um conceito eminentemente "teoló-
taria do trabalho de setenta e dois sábios (seis por
cada tribo de Israel), que o rei Ptolomeu (285-247 a.c.) gico". Isto é, exprime-se deste modo a realidade de um povo escolhido
fizera deslocar da Palestina para Alexandria (Egip- por Deus no meio dos outros povos, um povo que, por isso mesmo, não é
to), realizando essa tradução em setenta e dois dias. definido tanto por aspetos de ordem sociológica, cultural, étnica, etc., mas
É uma tradução que tem uma enorme importância
para as comunidades cristãs num período posterior
por uma identidade própria radicada no agir salvífico soberano de Deus.
em que a Bíblia foi traduzida para o latim (vulgata). Isso vale também de modo eminente para a Igreja: A Igreja, "povo de
Sublinhe-se ainda que, sobre o cânon cristão do An-
tigo Testamento, a maior parte dos Padres Apostóli- Deus", só existe e tem razão de ser como comunidade de crentes que
cos utilizavam o Antigo Testamento como constava tem a sua identidade a partir da iniciativa de Deus e que existe ao ser-
nos "Setenta". viço do amor salvífico de Deus por toda a humanidade.
No que se refere à sua importância histórica, e como 13) Uma relação particular entre Deus e Israel
testemunha o prólogo do Livro Ben Sirá, no Perío-
do Ptolomaico, as comunidades judias presentes no Se Israel é "povo de Deus" no sentido referido, isso deve-se ao facto
Egipto, sentiram a necessidade de uma tradução que
lhes permitisse ler a Bíblia na língua que usavam dia-
de viver uma relação particular com Deus, por eleição do mesmo
riamente. Essa tradução, que inicialmente se cingia Deus. Assim, na linguagem bíblica, Israel é, antes de mais, propriedade
ao Pentateuco, foi alargada sucessivamente aos res- de Deus, ou seja, vive para o seu Deus porque existe graças ao agir
tantes livros da Bíblia Hebraica. Embora o judaísmo de Deus que o escolhe e salva, libertando-o da escravidão do Egipto
não reconheça a canonicidade de alguns dos livros
contidos na "Tradução dos Setenta", por considerar (cf. Is. 43,21; Os 11,1.4; Dt 4,20; Lv 20,26). O que se fundamenta no
que não se incluem na lista dos livros inspirados, a facto de Israel ser, devido à sua eleição, parceiro duma aliança com o
mesma contém diversas variantes do texto original, mesmo Deus, que se traduz num amor e num compromisso recípro-
que a tradição cristã reconhece como importante
para a compreensão do Antigo Testamento.
cos, na obrigação de mútua lealdade e solidariedade. No meio das infi-
delidades do povo israelita, o próprio Deus tornará possível a reno-
Do ponto de vista cultural, a diáspora judia é ela vação dessa aliança, de modo que o povo de Deus possa finalmente
própria profundamente mamada pelo ambiente he- corresponder à sua vocação, à sua missão (Ez 36,26 s.; Jr 31,31-34).
tenista em que vive. A tradução da Bíblia em grego
permite fazer frutificar o diálogo com a cultura e con- Israel é, enfim, santuário de Deus. Deus manifesta-se e torna-se pre-
tribuirá para aprofundar a relação judeo-helenista. sente no seu povo, que é, de certo modo, o lugar primeiro, privilegiado,
Em termos religiosos, a "Tradução dos LXX" também da presença de Deus neste mundo (Ex 29,45 s.; cf. Lv 26,11).
torna presente o texto bíblico do Antigo Testamen-
to na primeira pregação cristã dirigida ao mundo À identidade da Igreja pertence nuclearmente a consciência de
grego. De facto, a comunidade cristã conheceu um
grande desenvolvimento no âmbito da "diáspora" e
uma relação particular com Deus, tornada possível pelo próprio
eram poucos aqueles que podiam compreender a Deus. Diversas imagens, utilizadas para o entendimento do mistério da
língua hebraica: a igreja primitiva falava, escrevia e Igreja (cf. a este propósito LG, no 6), traduzem esta pertença da Igreja a
celebrava em grego, incluindo as citações do Novo Deus, sublinhando que tudo na Igreja se decide pela abertura aos dons
Testamento. A sua importância regista-se sobretudo
ao nível litúrgico. de Deus e seu senhorio.
c) Israel como comunidade cultual
5 Cf. particularmente N. FOGLISTER, «Formas de
existência cristã da ekklesia do Antigo Testamento», Não obstante a diversidade dos escritos do Antigo Testamento, com
in J. FEINER — M. LOHRER (ed.), Mysterium Solutis. tendências teológicas diferentes, ressalta a convicção fundamental de
Compêndio de Dogmática Histórico-Solvítico, IV/1, que Israel vive e exprime a sua identidade sobretudo como comuni-
Petrópolis 1975, pp. 12-15. Todo este texto (11-78) é
um estudo valioso sobre o tema aqui em análise.
dade religiosa-cultual, como comunidade na qual ocupa lugar central

iL1 H - 1 Cristo
-

a celebração da fé. A assembleia do Sinai aparece como o protótipo da comunidade cultual. No cami-
nho do deserto, o povo das doze tribos, ordenado à volta da Tenda da Reunião, encontrando assim
as forças necessárias para prosseguir o seu caminho em direção à terra prometida, lembra e atualiza
o acontecimento da primeira Páscoa, em que Israel se tornou povo da aliança e comunidade cultual.
Na celebração da fé, a "comunidade" renova a sua consciência de que deve a sua existên-
cia à convocação de Javé. Este é o significado bíblico originário da expressão clahol, que a
Versão dos Setenta traduz sistematicamente por ekklesía - Igreja. Reunida na presença de Javé
(cf. Nm 16,1-20), a comunidade escuta a proclamação da Palavra de Deus como realidade fun-
damental para a sua vida, para o seu caminhar na fé.
A centralidade desta dimensão cultual vale para a Igreja, que encontra na celebração da fé -
agora à luz de Jesus e do significado dos acontecimentos pascais - um elemento estruturante
do seu viver: o Senhor convoca e reúne sempre de novo a sua comunidade, torna-se pre-
sente nela para lhe comunicar a sua Palavra e oferecer os Sacramentos da salvação como sinais
mais densos da sua presença e ação. Não é por acaso que o uso cristão da palavra 'ekklesia/
/Igreja' tem mais a ver com a sua utilização na tradução grega do Antigo Testamento (versão dos
Setenta) do que com a etimologia grega, que aponta para a assembleia dos "cidadãos" reunidos
para discutir e decidir os assuntos da "cidade". Na versão dos Setenta, a palavra 'ekkiesía' apa-
rece cerca de 100 vezes e quase sempre para traduzir precisamente o conceito hebraico da
gabai Yahwe, entendida como a comunidade convocada por Deus.
d) Uma comunidade organizada, estruturada em diversos serviços e funções
O povo de Israel vive uma unidade e solidariedade fundamentais em termos jurídicos e de
comunidade religiosa, mas não é uma comunidade indiferenciada, antes apresenta-se como uma
corporação ordenada. Dentro dessa solidariedade orgânica de comunidade - todo o povo é cha-
mado a viver as dimensões profética, sacerdotal e real/servicial da sua existência crente -, há
uma diferenciação de funções e tarefas específicas individualmente assumidas e realizadas.
Esses diferentes serviços e funções concretos (hoje diríamos "ministérios") aparecem em
grande parte configurados pelas épocas e situações históricas que a comunidade vive. Mas,
tanto na sua expressão plural como na relação de tensão polar que os caracteriza, apontam
para algo de estrutural em toda a comunidade crente. Encontramos, assim, serviços institu-
cionais (o rei e o sacerdote) e serviços carismáticos (o condutor do povo, o profeta); serviços
marcados por uma tarefa governativa/pastoral (o rei) e serviços orientados para o anúncio
da Palavra e a celebração da fé (serviços proféticos e sacerdotais); serviços de tipo monár-
quico-patriarcal (exercidos pelo chefe de família, da tribo ou do povo - o rei) ou colegiais (o
grémio dos anciãos que dirigem colegialmente a tribo e a comunidade sinagogal).
A Igreja de Jesus conhece também uma diferenciação de carismas, serviços e ministérios.
Mais basicamente ainda, entende-se como uma comunidade com uma dimensão profética,
sacerdotal e real que, não obstante essa diferenciação, é vocação para cada membro do povo
de Deus, chamado a ser profeta, sacerdote e rei/servidor na sua existência concreta de pessoa
chamada por Deus a ser membro da Igreja.
e)A missão de Israel
A pergunta pela identidade e missão da Igreja é também prefigurada e iluminada pelo modo
como o povo de Israel foi percebendo, aliás de forma não linear, no meio de situações e posi-
ções contrastantes, em momentos de consciência diferenciados e até de alguma tensão, a sua
identidade e missão.
Antes de mais, naturalmente, Israel vive e percebe-se como um povo entre outros povos. Apesar
de tendências particularistas, baseadas no facto de se saber um povo escolhido entre outros povos,
Israel percebe progressivamente que, na sua eleição, não se trata de algo que acontece com signifi-
cado exclusivo para si, mas tem relevância para os outros povos. Nesta linha, Israel entende-se como
um povo intermediário: a eleição nunca é um fim em si mesmo, mas acontece a favor dos outros
povos. Mesmo que não seja claro o que tal significa exatamente e como é que isso se realiza, Israel
entende que tem uma missão salvífica a favor dos outros povos e vai tomando consciência dos
caminhos possíveis por onde passa essa missão. Assim, pela sua simples existência, Israel é motivo
de interpelação e de bênção para os outros povos (cf. Gn 1-12; Gn 12,2 s.); é mediação salvífica no
plano de Deus para a humanidade (Dn 7,13 s.; Is 53,3 ss; Is 42,6 ss; livro de Jonas; Ex 19,5 s.); mais
ainda, na certeza de que o Criador de Israel é o Criador de todos os outros povos, no horizonte final da
esperança de Israel está presente uma perspetiva universalista: a eleição de Israel é um meio ao ser-
viço dessa ação salvífica universal de Deus. Nessa linha e como horizonte final emerge a esperança
escatológica da peregrinação dos povos para o Monte de Sião, a esperança de uma orientação última
dos povos para o Deus de Israel acolhido como salvação definitiva da humanidade (Is 2,2 s.; Mq 4,1).

Educação Moral e Religiosa Católica 1 2 6


À semelhança da experiência de Israel, a Igreja de todos os tempos confrontou-se, em con-
textos sociais e culturais diversos, com a questão do seu papel ao serviço do amor saivífico
de Deus por toda a htbrnanidade. No Concílio Vaticano II formulou-se a identidade e missão da
Igreja como "sacramento universal da salvação".

3.2. Igreja J e s u s Cristo - a origem da igreja no


acontPciménto Jes


«Adoração do Menino», Gerard (Gerrit) van Honthorst (Holanda 1590-1656), Galeria Uffizi, Florença.

3.. o J, s
Preparada na história de Israel, a Igreja tem a sua origem no acontecimento Jesus, encontra
o seu fundamento na vida, morte e ressurreição de Jesus. Esta relação estrutural entre a pes-
soa de Jesus e a Igreja não se entende adequadamente se nos fixarmos apenas em determina-
dos gestos ou palavras testemunhados pelos Evangelhos, vistos como atos fundacionais con-
cretos da Igreja. Para se perceber profundamente a relação da Igreja com Jesus, é preciso olhar
numa perspetiva de globalidade. Essa perspetiva não ignora o significado singular de determi-
nados gestos e acontecimentos para o (futuro) aparecimento da Igreja, mas considera, antes de
mais, a vida de Jesus no seu conjunto, consumada e iluminada pela sua morte e ressurreição.
A esta luz, entende-se que a Igreja é fruto de um processo histórico-salvífico que se rea-
liza em diversas fases. A origem da Igreja tem de ser situada no conjunto da Revelação de Deus
Uno e Trino, ou seja, na eleição de Deus que escolheu o povo de Israel, na história de Jesus,
que é a definitiva manifestação do mesmo Deus, e na ação do Espírito Santo, que atualiza o sig-
nificado e a força salvíficos do acontecimento Jesus nos inícios da Igreja e ao longo da histo-

27 A comunidade de crentes em cristo


1
ria. Não há outra Igreja senão a Igreja de
Jesus Cristo. Mas a Igreja constitui-se,
em definitivo, com a entrada dos pagãos
na comunidade do novo povo de Deus. No
sentido rigoroso dos termos, a Igreja é uma
realidade pós-pascal

ncio do Ruim.,
d, l i s sinais e suas
c(
Nos Evangelhos — e este dado reforça o
que se acaba de referir o termo "Igreja" só
aparece três vezes, concretamente em dois
versículos bem próximos do Evangelho de
Mateus (em 16,18 e, duas vezes, em 18,17).
Em contrapartida, a expressão mais usada
por Jesus — aparece mais de cem vezes no
conjunto dos quatro Evangelhos — é "Reino
de Deus/dos Céus" (ou, numa melhor tra-
dução, "Reinado d e Deus"). Não h á q u e
fazer oposição entre estas duas realida-
des (Reino de Deus e Igreja), mas o sentido
é claro: o anúncio do Reino de Deus cons-
titui o centro da mensagem de Jesus, a
razão de ser da sua vida, o pressuposto
fundamental que motiva as suas palavras e
as suas ações, o elemento determinante do
seu agir livre e do seu horizonte de futuro.
O sumário de Mc 1,15 (cf. Mt 4,17 e Lo 4,18)
resume de forma programática o essen-
cial da mensagem de Jesus:
Está a q u i u m d a d o inquestionável: a
Igreja só se entende à luz do anúncio do
Reino de Deus.

'se o tempo e o
está próximo: arrependei-
ngel ho". «Cristo Pantocrator», Altar-mor da Igreja de Ribamar, Lourinhã, Portugal, D. João Marcos
(Portugal, 1949).

"É uma representação de Cristo glorioso, cabeça e esposo da assembleia que ali se reúne
para celebrar a fé, consolidar a esperança e alimentar a caridade e se tornar assim sacra-
mento de salvação no meio do mundo. Pela sua temática e pelo lugar que ocupa, esta
Com o anúncio d o "Reino/Reinado d e imagem sublinha a centralidade de Cristo Ressuscitado na vida da Igreja e de cada cris-
Deus" Jesus não está a falar de uma região tão". O autor explicou que a pintura tem dois objetivos: ajudar a encontrarmo-nos com
ou de um lugar, de algo delimitado e fixo no Cristo Ressuscitado e incentivar-nos a participar na missão evangelizadora da Igreja. Ela
anuncia-nos a Boa Nova da Salvação e apela à urgência da sua proclamação. Na pin-
tempo, mas de uma realidade em movi-
tura vemos um círculo negro, símbolo da morte, sobre o qual se manifesta uma explo-
mento, de um acontecimento. É o acon- são de vida que vai em todas as direções como um carro de fogo transportando a luz e a
tecimento do agir de Deus que constrói a vida vencedora sobre as trevas e a morte, Jesus Cristo Ressuscitado. A Igreja existe para
sua soberania, que age como Senhor e Rei. anunciar o Evangelho que é Jesus Cristo vitorioso sobre a morte.
Reino/Reinado d e Deus (poderia tradu- O pintor explicou que, no quadrado, aos quatro cantos, vemos "os quatro seres vivos
zir-se por "Deus chegou") fala da sobera- em que a tradição cristã vê simbolizados os quatro evangelistas: Mateus com o rosto
nia salvífica, amorosa e misericordiosa humano, Marcos com o leão, Lucas com o touro, e João com a águia. De facto, falando
de Deus, é o conceito-síntese do dom da simbolicamente, há evangelizadores que pela sua altíssima compreensão e grande vivên-
cia do mistério de Cristo são comparáveis à águia de olhar penetrante e de grandes asas
salvação no presente e na sua dimensão que a elevam às alturas do céu... Nas outras quatro pontas, entre as figuras dos animais,
escatológica (definitiva), exprime a v o n - vemos as rodas do carro de fogo que se movem simultaneamente em quatro direções.„
tade salvífica radical e universal de Deus. (cf. Ez 1,20-21). Estas rodas representam hoje, para nós, as comunidades cristãs. É nelas,
nessas rodas em movimento, que está o Espírito Santo que suscita os profetas, os envia
Jesus interpreta a certeza do dom da sal- e os fortalece na sua missão evangelizadora..., as comunidades cristãs de que eles são
vação futura e definitiva como algo que, a boca, pés, asas, mãos, olhos e rosto.
partir desse futuro esperado, diz respeito
já à situação presente deste mundo, à vida Encontras estas e outras explicações em faroldeluz.wordpress.com

1 28
das pessoas e suas esperanças, à possível renovação das estruturas deste mundo. O Reino de
Deus é, pois, acontecimento de salvação, "Boa Nova" para os seres humanos pecadores que
entrem numa atitude de abertura radical a Deus e seu amor (metanála —conversão). Dele se fala
em parábolas que mostram o que acontece quando se acolhe a soberania amorosa de Deus. Em
causa está a consistência, a verdade, a plenitude de qualquer vida humana.
O Reino de Deus é, assim, algo que simultaneamente está para vir (Mt 4,17; 6,10) e já se
encontra no meio de nós (Mt 12,28; Lc 17,21; Mc 9,1). É, ao mesmo tempo, uma realidade cole-
tiva e algo que tem a ver com a decisão radical de cada pessoa no mais profundo da sua liber-
dade e na abertura a novos critérios de vida (cf. as bem-aventuranças em Mt 5,1-12; LC 6,20-23).
O acolhimento do Reinado de Deus não fica apenas no íntimo do coração, mas tem visibilidade.
Sinais do Reino são o perdão e a reconciliação, a disponibilidade para o serviço, a abertura de
coração, a atitude de simplicidade e de dependência amorosa da criança (Mt 18,2 s.), a solidarie-
dade para com todo aquele que necessita de nós (Lc 10,29-37), o amor concreto que se estende
mesmo àqueles que são nossos inimigos (Mt 5,38-48; Lc 6,27-36; Jo 13,34). O Reino de Deus
tem, assim, a ver com a conversão do coração e a transformação das estruturas, concreti-
za-se já neste mundo, apesar de todos os limites das realizações humanas, em expressões de
liberdade, justiça, amor, verdade e paz (cf. Prefácio da Missa de Cristo Rei).
É à luz do anúncio e do testemunho atuante do Reino de Deus, da soberania amorosa e salva-
dora de Deus que quer reunir e renovar definitivamente o seu povo, que devem ser lidos alguns
momentos mais significativos da vida de Jesus. A Igreja, surgida após a Páscoa na sequência
da recusa de Israel, está em relação profunda com o sentido nuclear dessa mesma vida consa-
grada ao anúncio do Reino.
a) Desde logo, a mensagem do Reino de Deus anunciada e testemunhada por Jesus, dirigida
embora a Israel na sua totalidade, traduz-se, de facto, na chamada e na formação de um grupo
de discípulos como candidatos a acolherem o Reino de Deus que se manifesta já nas suas pala-
vras e ações. O grupo dos discípulos que se abrem ao acolhimento do Reino e procuram seguir
Jesus pode, deve ser visto como a comunidade (embrionária) da futura Igreja. Ou seja, há no
agir do Jesus terreno uma preparação em ordem à comunidade messiânica definitiva, chamada
a ser plenamente realizada no Reino de Deus.
b) Dentro do conjunto dos discípulos, a eleição e missão do grupo dos doze exprime a von-
tade de Jesus de reunir de novo e definitivamente o conjunto do povo das doze tribos. Embora
com este significado simbólico no tempo de Jesus, indicativo de que a missão de Jesus se
dirige a todo o Israel, os doze serão as "colunas" da Igreja após a sua morte e ressurreição.
c) As refeições constituem j u n t a m e n t e com os sinais e prodígios realizados por Jesus —
um dos gestos mais expressivos do que significa o acontecimento da vinda do Reino de Deus.
Estas refeições de Jesus com os pecadores e com os seus discípulos devem ser vistas como
ações simbólicas, como sinais eficazes da presença ativa do Reino que se espera e que é,
antes de tudo, graça e perdão. Nessas refeições Jesus ultrapassa as barreiras estabelecidas
pela religião judaica, sinalizando o amor salvífico universal de Deus que não se deixa demarcar
pelos critérios humanos, mesmo que sob a forma religiosa.
d) Na última ceia Jesus afirma a sua convicção crente de que a comunhão com os discípu-
los não será rompida pela morte que está iminente (Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,15-20;
Jo 6,51-59; 1 Co 11,23-26). Antes, a morte fará parte do caminho seguido por Jesus na sua fide-
lidade a Deus, reconhecido e amado como Pai, e à concretização do seu plano salvífico para a
humanidade, apesar das e através das circunstâncias de pecado e de maldade que condicio-
nam e afetam o viver humano na história. Um caminho que, atravessado pelo sofrimento e ape-
sar de toda a opacidade da morte, é passagem à glorificação final, escatologica: "Em verdade
vos digo: não voltarei a beber do fruto da videira até ao dia em que o beba, novo, no Reino de
Deus" (Mc 14,25). Nas palavras e nos gestos da sua ceia de despedida Jesus olha para o Reino
de Deus, isto é, Jesus espera que, com a sua morte e como fruto dela, o Reino de Deus,
atuante na sua palavra e no seu modo de viver, se manifeste agora na sua plena verdade e
força salvíficas. A entrega da sua vida como consequência do seu anúncio do Reino de Deus
entende-a Jesus, assim, como última oferta de aliança por parte de Deus a Israel (e, assim, a
toda a humanidade).
A recusa da pessoa e mensagem de Jesus, culminada na sua morte, vai criar uma nova situa-
ção que se revela no seu pleno sentido apenas no acontecimento da Páscoa. A Igreja nasce,
pois, a partir do grupo de discípulos constituído como fruto do anúncio que Jesus faz do Reino
de Deus. O movimento pré-pascal de reunião de discípulos feita por
6 S. WIEDENHOFER, Das katholische Kirchenvers- Jesus é "a pré-história imediata e a condição histórica, sociológica
tandnis. Em Lehrbuch der Ekidesiologie, Graz-Wien- e teológica da Igreja pós-pascal"6.
-Küln 1992, p. 75.

ente C r i s t o
3.3. Igreja, realidade pós-pascal

«Ressurreição de Cristo», Fresco, Saia dei Battuti, Francesco Figini Pagani, dito Francesco da Milano (Itália; ativo entre 1502 e 1548).

O
Embora os fundamentos da Igreja se situem no tempo histórico de Jesus, na sua mensagem e
em todo o seu viver, nos sinais que deixou e na preparação que fez dos discípulos, em sentido
rigoroso a Igreja só surge a partir do acontecimento da Páscoa, na sequência da recusa da
pessoa de Jesus por parte da maior parte de Israel. Como os Evangelhos deixam claro, o acon-
tecimento da morte de Jesus e suas circunstâncias não foram de leitura fácil para os discípulos,
antes apontavam para o fracasso da pretensão de Jesus e do seu anúncio do Reino de Deus. Só
a fé na ressurreição é que permite encontrar uma resposta positiva e iluminadora sobre o sen-
tido da sua vida e sobre a própria pessoa de Jesus.

Educação c a t o , 1 , , , a 0 1
Os fenómenos de visão, as aparições do Senhor Ressuscitado
(primeiramente, na Galileia, para onde os discípulos de Jesus terão
fugido, receosos de que lhes acontecesse o mesmo destino de Jesus
—cf. Mc 14,27; 16,7; Jo 16,32) e a notícia do túmulo vazio (os discípu-
los regressam a Jerusalém, impulsionados pela crença judaica de que
os acontecimentos finais tinham de ter como centro a cidade santa)
convergiram na indicação de que a morte não foi a última palavra
de Deus sobre a vida de Jesus: pelo contrário, emerge a experiência
e a certeza da fé de que o Senhor está vivo. A fé que reúne os discí-
pulos de Jesus é a fé na ressurreição. É a partir dessa experiência do
Senhor como Aquele que vive, uma experiência suportada pela ação
do Espírito, que é o Espírito de Jesus ressuscitado, que a Igreja vai
começar a existir 7.
Na leitura crente que os discípulos de Jesus fazem dos aconte-
cimentos da Páscoa, vem ao de cima a certeza de que foram cumpri-
das em Jesus, sua vida, morte e ressurreição, as promessas de Deus
(At 2,22-24; 3,18; 13,32 s.; cf. ainda 8,26-38; Lc 24,25 ss). Dois sinais
que só podem vir de Deus convergem no mesmo sentido, indicando
e confirmando que essas promessas se cumpriram:
- a ressurreição de Jesus "conforme a promessa feita pelos profe-
tas" (cf. Jo 20,9; Lc 24,44; At 2,24; 13,22; 1 Cor 15,4), ou seja, o sinal por
excelência do cumprimento total das promessas;
- a difusão do Espírito (JI 3,1-5, citado em At 2,16-21), visto por sec-
tores do judaísmo como um fenómeno dos últimos tempos: Deus tinha
prometido renovar o espírito e o coração do seu povo (Ez 36,26; cf. Jr
«O Cristo Ressuscitado», Bartolomeo Suardi, dito
Bramantino (Itália, 1455-1530), Museo Thyssen-
31,31-34). Até então — como se lê nos Atos dos Apóstolos — o Espírito
-Bomemisza, Madrid. não tinha ainda sido dado:

7 Cf. G. LOI-IFINK, Der ~ o u t . der Osterereignisse •orça, a do Espí S a n t o , -


und die Antkinge der Urgemeinde, in Theologische reis minhas testemunhas ern
Quartalschrift 160 (1980) 162-176 [tradução algo udeia e Samaria e até aos confins
sintetizada em língua espanhola: El desarrollo de
los acontecimientos pasci:lies y los comienzos de
la comunidad primitiva, in Selecciones de Teologia
At 1,8.
81 (1982) 17-25]; A. BARBI, Ascensão e Pentecos-
tes. Etapas significativas na história da salvação, in
Communio 18, 2 (2011) 147-166; S. WIEDENHOFER,
Das katholische Kirchenverstãndnis, 82-87.

[Texto complementar 6]
A Igreja nascente proclama, pois, que a ressurreição de Jesus é não só o regresso de Jesus
à vida nova junto de Deus pela vitória sobre a morte, mas o sinal de que estão chegados os
últimos tempos e de que a esperança de todo um povo é realizada no dom do Espírito. Sob o
pano de fundo das promessas de Israel, os discípulos de Jesus eram interpelados a compreen-
der (em certo sentido, "tinham de" compreender) esta nova experiência do poder de Deus e da
sua força recriadora de nova vida como expressão da difusão escatológica do Espírito Santo.
Convém sublinhar que estes dois sinais — o da ressurreição e o do Espírito — estão estreita-
mente unidos e reforçam-se mutuamente: a Igreja nascente proclama "Senhor" a Jesus Cristo
ressuscitado e glorificado (Rm 10,9), mas não o pode fazer senão pela ação do Espírito Santo
(1 Cor 12,3).

1
31 A comunidade de crentes em Ci-sto
Os acontecimentos da Páscoa, dizendo respeito à pessoa de Jesus, significam também o dom
definitivo do Espírito. Estamos perante uma nova autocomunicação salvífica de Deus no seu
Espírito, quer dizer, um modo novo de Deus Uno e Trino se manifestar no seu ser e no seu
agir na comunidade crente. A ressurreição de Jesus é a fonte do Espírito para a comunidade:
os discípulos fizeram a experiência do Crucificado Ressuscitado como Aquele que está intei-
ramente na dimensão de Deus, participando no seu poder criador de vida, e como Alguém que
entra novamente na sua história, fundando uma nova comunidade, renovando as suas vidas e
dando força à sua esperança. No encontro com Cristo ressuscitado acontece, assim, simulta-
neamente, uma nova revelação de Deus e uma nova experiência dos discípulos consigo pró-
prios: a experiência de ser transformados interiormente, tornados novas criaturas, capazes de
serem testemunhas do amor salvífico, libertador de Deus.

eia de Emans», Caravaggio (Itália, 1571-1610), National Gallery, Londres.

No plano salvífico de Deus para a humanidade inicia-se um novo tempo, o "tempo da Igreja",
que é também o "tempo do Espírito" (de Jesus e do Pai), como sinaliza o Livro dos Atos dos
Apóstolos (chamado, por vezes, o "Evangelho" da Igreja ou o "Evangelho" do Espírito Santo).
O Espírito Santo, Deus na sua relação interior e imediata ã nossa consciência pessoal, pode
ser descrito como a presença permanente na história da ação salvífica de Deus em Jesus.
O Espírito Santo é Aquele que, como mediação permanente da ação do Pai e do Filho, realiza e
torna eficaz essa ação ao longo de toda a história da salvação, interioriza e universaliza a reve-
lação histórica de Deus em Jesus Cristo'.
A esta luz percebe-se como a vida de Jesus na sua totalidade e a
8Cf. TH. SCHNEIDER, Das BËkenntnis zum Heiligen
efusão do Espírito não podem ser considerados simplesmente como Geist ais Rede von der Kirche. Zum theologiscen Ort
dois momentos sucessivos e sem relação íntima um com o outro, der Kirche im Glaubensbekenntnis, in Una Soneto 36
antes constituem a expressão, mutuamente dependente nos seus dois (1981) 216.
aspetos, do único agir salvífico de Deus que se dirige aos seres huma- 9Cf. Y. CONGAR, Je crois en l'Esprit-Saint, II — « II
nos, os congrega no novo povo e os envia em missão. O Espírito Santo est Seigneur et II donne Ia vie », Paris 1980, 13-24.
é— como exprime incisivamente Y. Congar — "co-fundador" ("co-ins- Cf. ainda LG, n994 e 5.
tituant") da Igreja, ou seja, ele não é simples vigário de Cristo, mas
a Igreja e as suas estruturas fundamentais são fruto permanente da
unção do Espírito'.

Educação Moral e Religiosa Católica 32


_2. A consciência de ser comunidade
iitiv
Os acontecimentos da Páscoa são compreendidos como sinal ante-
cipador da soberania amorosa de Deus (Reino de Deus) já presente em
Jesus. Isto é, os discípulos entendem que na pessoa de Jesus e por
Jesus a salvação definitiva atinge já a todos os que o acolhem. Ao com-
preenderem a sua existência pessoal e a sua experiência comunitária
como fruto do dom escatológico do poder de Deus criador de vida, os
seguidores de Jesus percebem igualmente o caráter definitivo do
dom que receberam: a comunidade dos discípulos é a comunidade
salvífica dos últimos tempos, é aquela comunidade na qual a sobera-
nia amorosa de Deus é particularmente sinalizada e está significativa-
mente presente nas circunstâncias da história, como interpelação de
Deus ao coração das pessoas e possibilidade de um mundo diferente.
A consciência, por parte dos primeiros discípulos de Jesus, de serem
a comunidade definitiva do Ressuscitado e objeto da eleição de Deus,
emerge nalguns aspetos já referidos: a concentração em Jerusalém; a
experiência do Espírito como realidade vinculada aos últimos tempos;
a importância que se dá aos "doze" como representantes do Israel
escatológico autêntico. Mas essa consciência manifesta-se de modo
«Pentecostes», ícone.
expresso e inovador nalguns sinais que ganham forma identificadora da
Igreja na vida das primeiras comunidades cristãs: o batismo como rito
de purificação e incorporação na comunidade escatológica, separada
de Israel; as refeições comunitárias (fração do pão) celebradas em
ambiente de alegria; as orações e súplicas de claro conteúdo esca-
tológico (o uso da expressão "Morono tho": "Vem, Senhor" — cf. 1 Cor
16,23); a utilização de termos como os "santos" ou os "santificados"
(At 9,13.32.41; 26,10; Rm 1,7; 1 Cor 1,2; Ef 1,4 s.), os "eleitos" (Mc 13,22.27;
Cl 3,12) para falar dos primeiros cristãos (cf. At 11,26); sobretudo, a desig-
nação da comunidade cristã como "Igreja de Deus" — ekklesfo tou
Theõu —(cf. GI 1,13; 1 Cor 15,9; H 3,6; 1 I s 2,14; At 8, 1.3; 15,4.22; 18,22),
expressão que manifesta a pretensão da comunidade cristã primitiva de
ser a verdadeira assembleia de Deus, chamada a congregar todos quan-
tos acreditavam em Jesus e aderiam ao seu Evangelho; enfim, a deci-
são, tomada em fidelidade ao Espírito de Jesus, de não se impor a
circuncisão aos pagãos que aderiam à fé (cf. At 15,28).
A consciência de ser "Igreja" —o verdadeiro povo de Deus dos tem-
«Última Ceia», Sadao Watanabe (Japão,1913-1996).,
Brauer Museum ofArt. pos definitivos pelo cumprimento das promessas de Deus, a comuni-
dade separada de Israel em razão do acontecimento Jesus e aberta
aos pagãos — não foi algo de imediato, mas exigiu um processo de
amadurecimento que durou o seu tempo. Não é por acaso que, nos
Atos dos Apóstolos, Lucas utiliza a palavra 'ekklesío pela primeira vez
em At 5,11, ou seja, antes da viragem que representa a narração de
Estêvão, e pela segunda vez em At 8,1, isto é, depois desta narração
e antes da perseguição que caiu sobre a Igreja de Jerusalém, apare-
cendo depois com certa regularidade.

33 A Comunidade de Crentes em Cristo


Texto Complementar 4
MEM
"Sondando o mistério da Igreja, este sagrado Concílio recorda o vínculo com que o povo do Novo
Testamento está espiritualmente ligado ã descendência de Abraão.
Com efeito, a Igreja de Cristo reconhece que os primórdios da sua fé e eleição já se encontram,
segundo o mistério divino da salvação, nos patriarcas, em Moisés e nos profetas. Professa que todos
os cristãos, filhos de Abraão segundo a fé, estão incluídos na vocação deste patriarca e que a salvação
da Igreja foi misticamente prefigurada no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão. A Igreja não
pode, por isso, esquecer que foi por meio desse povo, com o qual Deus se dignou, na sua inefável
misericórdia, estabelecer a antiga Aliança, que ela recebeu a revelação do Antigo Testamento e se
alimenta da raiz da oliveira mansa, na qual foram enxertados os ramos da oliveira brava, os gentios.
Com efeito, a Igreja acredita que Cristo, nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os gentios, de
ambos fazendo um só, em Si mesmo"
Nostro Aetate, no 4.

1111_ 1 1 1 ~

Texto Complementar 5
111111111111•11
"Em todos os tempos e em todas as nações foi agradável a Deus aquele que O teme e obra justamente
(cfr. At. 10,35). Contudo, aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída
qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse
santamente. Escolheu, por isso, a nação israelita para Seu povo. Com ele estabeleceu uma aliança;
a ele instruiu gradualmente, manifestando-Se a Si mesmo e ao desígnio da própria vontade na sua
história, e santificando-o para Si. Mas todas estas coisas aconteceram como preparação e figura da
nova e perfeita Aliança que em Cristo havia de ser estabelecida e da revelação mais completa que
seria transmitida pelo próprio Verbo de Deus feito carne. Eis que virão dias, diz o Senhor, em que
estabelecerei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova aliança... Porei a minha lei nas suas
entranhas e a escreverei nos seus corações e serei o seu Deus e eles serão o meu povo... Todos me
conhecerão desde o mais pequeno ao maior, diz o Senhor (Jer. 31,31-34). Esta nova aliança instituiu-a
Cristo, o novo testamento no Seu sangue (cfr. 1 Cor.11,25), chamando o Seu povo de entre os judeus e
os gentios, para formar um todo, não segundo a carne mas no Espírito e tornar-se o Povo de Deus. Com
efeito, os que crêem em Cristo, regenerados não pela força de germe corruptível mas incorruptível
por meio da Palavra de Deus vivo (cfr. 1 Ped. 1,23), não pela virtude da carne, mas pela água e pelo
Espírito Santo (cfr. Jo. 3,5-6), são finalmente constituídos em «raça escolhida, sacerdócio real, nação
santa, povo conquistado... que outrora não era povo, mas agora é povo de Deus» (1 Ped. 2,9-10)"

Lumen Gentium, no 9.

Educaçao Moral e Religiosa Catóiica 34


E -

4. A reflexão da Igreja sobre a sua


identidade e missão - Povo de Deus,
Corpo de Cristo_ Temolo do Espirito
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Jesus Cristo, detalhe da tapeçaria de Graham Sutherland (Inglaterra, 1903-1980), Catedral de Coventry, Inglaterra.

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4.1.2. Povo de Deus e interpelações

A redescoberta da noção de "povo de Deus" no Concílio


Vaticano II como perspetiva eclesiológica centrai significou
—desde logo pela já referida inversão, no âmbito do debate
conciliar, da ordem dos capítulos II e III — uma profunda
mudança de paradigma que custou, custa ainda a assimilar
por muitos crentes. Mais do que uma imagem entre outras,
"povo de Deus" constitui, como se acaba de sugerir e até em
razão do seu enraizamento histórico-salvífico, uma descrição-
-síntese particularmente apta para pôr em evidência progra-
maticamente alguns aspetos fundamentais do seu mistério.
Ao ver a Igreja, antes de mais, como povo de Deus, o
Vaticano II convida a que olhemos, em primeiro lugar, para
o que é comum a todos os crentes e valoriza assim deci-
sivamente o dom e a vocação fundamentais que a cha-
mada de Deus a ser cristão em Igreja representa. A per-
tença comum ao mesmo Povo de Deus é o elemento basilar
do fiel cristão, dal resultando uma igualdade fundamen-
tal de todos os crentes, na diversidade de dons, serviços
e ministérios. Nessa convocação pessoal de Deus dentro de
uma comunidade crente radica que cada um seja chamado
(como dom e como dever) a ser "sujeito ativo" da sua fé,
numa história única, irrepetível, de vida. Compreende-se, por
isso, que a visão da Igreja como povo de Deus tenha sido
elemento catalisador do processo de renovação eclesial na
sequência do Concílio (pense-se, por exemplo, na revaloriza-
ção do laicado ou no desenvolvimento das formas de corres-
ponsabilidade eclesial).
É certo que, na receção do Vaticano II, esta figura da Igreja
«As máscaras caem», Rafly Okefolahan, Porto Novo, 1979. foi objeto também de alguns equívocos: por vezes, opôs-se
Galeria out of Africa, Barcelona. os leigos — superficialmente identificados sem mais com o
"povo de Deus" — à hierarquia (como se os ministros ordena-
dos não fossem, antes de mais e sempre, também membros
do único povo de Deus); mais grave ainda, foi a tendência, nalguns setores eclesiais e âmbitos
geográficos, a olhar para a noção de "povo" (de Deus) numa linha marcadamente sociológica e
ideológica, com traços de pensamento marxista, então (anos setenta) ainda com significativa
influência planetária.
Perante esses riscos, surgiram algumas reservas face ao uso preponderante da noção de
"povo de Deus", aplicada à Igreja. Isso explica que o Sínodo Extraordinário dos Bispos, realizado
em 1985 para avaliar e fomentar o acolhimento do Concílio, tenha optado por fazer a receção
da doutrina eclesiológica conciliar através do uso preferencial da linguagem da Igreja como
"mistério de comunhão", deixando novamente, de certa forma, na penumbra a noção de povo
de Deus.
Todavia, a conceção da Igreja como mistério de comunhão, por mais central que seja, cor-
reria o risco de se tornar uma visão abstrata-idealista, não adequadamente traduzida em
pressupostos, estruturas e práticas eclesiais correspondentes, se não tivesse como uma das
suas referências fundamentais a noção de povo de Deus e tudo o que ela implica. É verdade
que a ideia de povo de Deus, pertencendo a um enquadramento especificamente teológico,
não se pode associar, imediatamente e sem sentido crítico, às modernas conceções sociopolí-
ticas centradas no conceito de "povo". Sem dúvida, a Igreja como "povo de Deus" não é lugar
da "soberania do povo" (democracia como forma de organização política da sociedade e do
Estado). Mas a Igreja não é também uma "monarquia" ou uma "aristocracia": antes, deve
concretizar a sua vida interna como "espaço de comunhão" em modos de agir e estruturas
de fraternidade, liberdade, participação, diálogo (o que, na linguagem e na experiência atuais,
sugere aspetos humanamente relevantes da democracia como "forma de vida").
É assim fundamental reconhecer que, apesar de todos os equívocos e riscos sempre pos-
síveis, a noção de povo de Deus, pela sua fundamentação teológica e pela sua relevân-
cia prática pastoral, possui validade permanente e não pode ser ignorada na sua força
fundamental de impulso de fidelidade evangélica e de renovação eclesial. Sem a sensibili-

37 ,,,rentes em CrisL,

dade constante a esta imagem central e aos indicativos nela contidos a Igreja perderia um ele-
mento referencial extremamente importante como lembrança das suas raízes, do seu caminhar
na história, da sua indispensável inserção nas realidades concretas deste mundo. "Povo de
Deus" sugere e exige todo um programa de vida e de estruturação da Igreja em que o sen-
tido da própria vocação, a corresponsabilidade ativa, a dimen-
são comunitária têm de marcar a consciência dos crentes e o
ritmo dos processos eclesiais.

4.2 • C o r n o r
No conjunto dos escritos do Novo Testamento, a relação da Igreja,
de cada um dos cristãos, a Jesus é expressa sobretudo, em duas
grandes figuras: a Igreja como comunidade de discípulos que são
chamados a seguir Jesus; a Igreja como Corpo de Cristo no mundo
pela ligação profunda e vital dos cristãos a Jesus Cristo.

,2.1_ ComunidaL ,• de discípul


no seguimento do Jesuo
«A Última Ceia de Cristo», Andre Derain (França, 1880-
Considerar a Igreja como a comunidade dos discípulos cha- -1954), Art Institute of Chicago, Chicago.
mados a seguir Jesus é a visão decisiva que ressalta dos qua-
tro Evangelhos. Como é conhecido, os Evangelhos foram escritos
não com o objetivo de uma mera reconstrução histórica dos acontecimentos relacionados com
Jesus, mas são sobretudo releituras da vida de Jesus feitas depois da Páscoa com a finalidade
de testemunhar o significado único da pessoa de Jesus, sua vida e mensagem para os cren-
tes. Desse modo diz-se aos primeiros cristãos quem eles verdadeiramente são: discípulos de
Jesus. A realidade da Igreja consiste, antes de mais e sempre, em ser a comunidade dos discí-
pulos de Jesus.
Compreende-se assim também que, nos textos evangélicos, seja dado relevo a situações
que pertencem ao essencial do ser cristão e que aparecem já de certa forma antecipadas ou
desenhadas na relação de Jesus com os seus primeiros discípulos. Desde logo, a chamada e
a vocação dos discípulos está intimamente ligada com a chamada à fé e ao seguimento de
Jesus que são agora pedidos aos crentes. O ensino feito aos discípulos deixa transparecer,
em muitas situações, que os verdadeiros destinatários das palavras de Jesus são os primei-
ros cristãos, que olham já para Jesus e vivem a sua experiência crente à luz do mistério pascal
(cf., por exemplo, a explicação da parábola do semeador — Mc 4,13-20). As disputas de que os
Evangelhos nos dão conta revelam frequentemente muito mais as dúvidas e discussões das pri-
meiras comunidades pós-pascais do que conflitos reais no tempo histórico de Jesus (por exem-
plo, a questão do imposto a César). No envio dos discípulos associa-se provavelmente a situa-
ção histórica do tempo de Jesus com as circunstâncias da missão nos inícios da Igreja. Nos
Evangelhos, sobretudo em Marcos, salienta-se em particular que o seguimento de Jesus,
acompanhado por perseguições, eventualmente até à morte (cf. Mc 8,34-38; Mt 16,24-28;
Lc 9,23-27; Jo 12,25), é um motivo fundamental de todo o verdadeiro discipulado. A existên-
cia cristã emerge, assim, globalmente como seguimento, como caminho de busca de fidelidade
ao que Jesus ensinou, ao modo como viveu e às razões fundamentais que conduziram à sua
morte, modulada por cada evangelista dentro do contexto específico do seu texto.
Em Marcos, por exemplo, a chamada e o seguimento dos discípulos são apresentados de
forma exemplar a toda a comunidade para que o seu caminho de vida cristã siga passos seme-
lhantes (cf. Mc 1,16-20). Em Mateus, a Igreja aparece como discipulado de Jesus num horizonte
universal, aberta a todos os homens, constituída pelo batismo e pelo ensino dos apóstolos com
base no mandato do Ressuscitado (Mt 28,16-20). Na sua identidade mais profunda a Igreja é,
para Mateus, uma comunidade na qual há certamente disputas e rivalidades, mas em que a ver-
dadeira grandeza, cruzando todas as estruturas de autoridade hierárquica, é o estar ao ser-
viço dos outros (Mt 2026, s . ) , é a vivência da fraternidade: "irmãos" são os discípulos em razão
da sua comum relação com Jesus (Mt 23,8-12). Nos escritos lucanos (Evangelho e Atos) pre-
tende-se apresentar o lugar da Igreja no quadro da história da salvação e sublinham-se as tare-
fas que ela tem a cumprir, segundo a vontade salvífica de Deus, neste tempo intermédio que vai
da obra histórica de Jesus à parusia (fim dos tempos). Como já se apontou, Lucas reconhece o
tempo da Igreja — desde a ascensão de Jesus até à parusia c o m o o tempo da atuação eficaz
do Espírito. Finalmente, também para o Evangelho de João, a Igreja é a comunidade dos discí-
pulos de Jesus, o Revelador divino. Há uma unidade profunda entre Jesus Cristo e a comunidade

1
Educação Morai e Religiosa Católica 38
1
crente, uma unidade assente numa relação muito íntima e profunda com Jesus, o fundamento
do seu viver (cf. a parábola do bom pastor em Jo 10,1-30 ou a alegoria da videira em sio 15,1-8).
Em síntese: à luz dos Evangelhos, ser cristão é procurar seguir a Jesus nas possibilidades
reais e nas circunstâncias próprias de cada história de vida. A abertura aos apelos de Deus
no concreto histórico, a fidelidade à própria consciência, os critérios das bem-aventuranças, a
disponibilidade para aceitar o mistério da cruz como dinamismo existencial de vida cristã, eis
alguns dos indicativos que não podem deixar de delinear os caminhos da existência cristã, qual-
quer que seja a modalidade de vida em que ela se concretize.

4.2.2. Corpo , ,:;risto - a comur o existenciai - i s t o

«O sermão da montanha», Cosimo Rosselli (Itália, 1439-1507), fresco da Capela Sistina, Vaticano.

Perspetiva paranatica A apresentação da Igreja como Corpo de Cristo enraíza-se


Parenética ou oratória sacra, designa o ato de tornar a na teologia paulina, constituindo mesmo uma nota caracterís-
mensagem da salvação compreensível e eficaz. Veiculada tica da linguagem de Paulo sobre a Igreja. Enquanto em 1 Cor
pela pregação religiosa (meio de comunicação de massas)
12,12-30 e Rm 12,3-8 ressalta o uso da imagem com uma inten-
socorre-se da retórica para exortar/mover e deleitar pela
palavra, envolvendo os ouvintes. cionalidade parenética (de exortação), em 1 Cor 6,12-20 e 1 Cor
A linguagem parenética socorre-se da vivacidade da ima- 10,16 s. sobressai o nexo sacramental (eucarístico) desta ima-
gem e da exemplaridade do que se deve imitar. S. Paulo, o gem. A expressão "Corpo de Cristo", literalmente em si mesma,
"Apóstolo da Palavra", é disso um exemplo: serviu-se fre-
quentemente da linguagem parenética como caminho para
só nos aparece uma vez: em 1 Cor 12,27 ["Vós sois o corpo de
o aprofundamento da fé, designadamente através da ima- Cristo e coda um, pelo suo porte, é um membro"]. De resto, fala-
gem da Igreja como corpo de Cristo. As cartas de Paulo não -se sobretudo de um "corpo" ou de um "corpo em Cristo".
foram enviadas para ser lidas em particular, por uma pes-
soa, mas para serem lidas e explicadas numa comunidade Na perspetiva parenética, de exortação a um modo de agir
reunida para escutá-las. Nelas, o acontecimento unitário da cooperante e aberto às necessidades de toda a comunidade,
morte e ressurreição de Cristo representa o fundamento de
toda a eciesiologia. Ao fazer a difusão da Palavra de Deus
Paulo utiliza uma imagem usual na antiguidade, que via a orga-
peio imenso corpo da Igreja, Paulo exorta os fiéis a renova- nização do Estado e da sociedade como um organismo, como
rem-se no Espírito, a deixarem o Homem velho para reves- um corpo que tem muitos membros. No próprio sentido da ima-
tirem-se do Homem novo e a fortalecer na fé os que vivem gem, mas agora em termos eclesiais, sublinha-se assim a mútua
desanimados. Usando a totalidade dos sentidos a perspe-
tiva parenética faz uma interpelação constante à conver- interdependência que existe entre uns e outros na diversi-
são do coração e a viver de acordo com a condição própria dade de serviços e funções, bem como a necessidade de coo-
dos cristãos: de filhos da luz, redimidos por Cristo e ama- peração e de integração de todos os membros numa ação uni-
dos pelo Pai.
tária comum.
Mas é evidente também que a expressão tem, inequivocamente, em Paulo (nas Cartas autenti-
camente paulinas) um sentido teológico mais profundo (cf. particularmente 1 Cor 12,12; Rm 12,4 s.).
Paulo parte da convicção de que o corpo de Cristo constituído pela Igreja não é outro senão o
corpo do Senhor crucificado e ressuscitado. Isto é, a palavra "corpo" é utilizada em relação a

39 11 A Comui iii,Júde de Crentes em Cristo


Cristo não num mero sentido metafórico, mas de forma bem realista, ou seja, como a cor-
poreidade do Crucificado e Ressuscitado que se manifesta na Igreja, que é assim visibili-
dade histórica de Jesus Cristo. A inserção neste corpo acontece de modo sacramental, ou
seja, pelo batismo e pela eucaristia (cf. Rm 6,3-6; 1 Cor 12,13; 10,16). Assim, a Igreja pode ser
vista como expressão visível do corpo crucificado e ressuscitado de Jesus em toda a sua ampli-
tude comunitária, ou seja, a Igreja-corpo de Cristo é o âmbito existencial de vida no qual se
manifesta e torna eficaz o acontecimento da cruz e da ressurreição de Jesus Cristo.
Nesta maneira de pensar ultrapassa-se, pois, o nível da simples comparação, para se atingir
uma compreensão mais profunda da relação Cristo-igreja, tal como Paulo a pretenderá suge-
rir. Na visão do apóstolo, estabelece-se entre Cristo e os cristãos uma união íntima, espiri-
tual, ontológica (constitutiva do ser cristão), e não simplesmente uma relação jurídica, social
ou moral'''. Ou seja: o Senhor Ressuscitado aparece como o fundamento pessoal da vida e
da unidade eclesial, a realidade originária que nos é dada previamente, suporta e dá vida à
existência cristã. Não são os crentes que, pela sua associação, cons-
tituem a igreja, mas é o corpo de Cristo preexistente em relação aos ict Cf. J. RIGAL, Le mystère de l'Éghse. Fondements
seus membros que cria espaço para uma tal realidade e unidade. Os théologiques e t perspectives pastoreies, Paris
cristãos são, a partir de Cristo, um corpo: 1992, p. 158.

[Textos Complementares 7 e 8]
1

"O enraizamento cristológico deste modelo eclesiológico permite compreender — escreve J. Gnilka
—a comunidade como algo que é dado de antemão, como algo gratuito. Se há comunidade, isso
não se baseia em atividades humanas, mas acontece sim porque Cristo acolheu seres humanos em
comunhão consigo — no seu corpo".
J. GNILIKA, Paulus von Torsus. Apostei und Zeuge, Freiburg in Breisgau 1997, p. 272.

Texto Complementar 7
"A comparação da Igreja com um corpo lança uma luz particular sobre a ligação íntima existente
entre a Igreja e Cristo. Ela não está somente reunida à volta d'Ele: está unificada n'Ele, no seu Corpo.
Na Igreja, Corpo de Cristo, são de salientar mais especificamente três espetos: a unidade de todos os
membros entre si, pela união a Cristo; Cristo, Cabeça do Corpo; a Igreja, Esposa de Cristo".
Catecismo da Igreja Católica, 789; cf. para todo este tema 787-796.

Texto Complementar 8
"A unidade de Cristo e da Igreja, Cabeça e membros do Corpo, implica também a distinção entre
ambos, numa relação pessoal. Este aspeto é, muitas vezes, expresso pela imagem do esposo e da
esposa. O tema de Cristo Esposo da Igreja foi preparado pelos profetas e anunciado por João Baptista.
O próprio Senhor Se designou como «o Esposo» (Mc 2,19). E o Apóstolo apresenta a Igreja e cada fiel,
membro do seu Corpo, como uma esposa «desposada» com Cristo Senhor, para formar com Ele um
só Espírito. Ela é a Esposa imaculada do Cordeiro imaculado que Cristo amou, pela qual Se entregou
«para a santificar» (Ef 5,26), que associou a Si por uma aliança eterna, e à qual não cessa de prestar
cuidados como ao Seu próprio Corpo".
Catecismo da Igreja Católica, 796.

Educação Moral e Religiosa Católica 40


4.3. A Igreja, Templo do Espirito
43.1. O Espírito Santo como fundamento
permanE' 'te dE, • i g r e j a
Na sua identidade mais profunda de comunidade no seguimento
de Jesus e de testemunha da sua mensagem de salvação, a Igreja
é constituída verdadeiramente pelo envio do Espírito, que é o seu
princípio de vida. É no Espírito - como já se sublinhou - que acon-
tece a relação crente a Jesus Cristo (cf. 1 Cor 12,3; Ef 2,8), é Ele que
torna possível a perceção crente do acontecimento Jesus: "E poro
que sem cessar nas renovemos n'Ele (cf. Ef 4,23), deu-nas da seu
Espírito, o qual, sendo um e a mesmo na cabeça e nos membros, uni-
fica e move o carpa inteiro, a ponto de os Santos Podres compara-
rem a suo ação à que o princípio vital, ou alma, desempenho no corpo
humano" (LG, no 7). O Espírito Santo é, assim, o princípio animador
da vida da Igreja, é condição fundamental e fonte permanente da
existência crente e da vida eclesial em todos os seus aspetos.
Nada de eclesiologicamente relevante pode ser pensado sem essa
referência estrutural ao Espírito Santo (ao dom de Deus que vem ao
nosso encontro e nos salva em cada tempo e lugar).
Desde logo e basicamente, a existência "em Cristo" é aconteci-
mento no Espírito, que é concedido a cada um dos membros da
comunidade crente, capacitando-nos para sermos "filhos no Filho"
Vitral do Altar-Mor da Basílica de São Pedro, no Vati-
cano, obra de Gian Lorenzo Bernini (Itália,1598-1680). (cf. Rm 8,14-17; cf. ainda 1 Cor 3,16; 6,19; 2 Cor 3,6; a 5,25; 1 Cor
12,13; At 2,3 e 33-39). Sob a ação do Espírito, o Senhor Ressuscitado
ganha corpo, ganha expressão histórica na comunidade dos que o
procuram seguir. O Espírito Santo emerge, assim, como "graça" que possibilita a fé comum,
como o dom e a força de Deus que dá identidade à existência cristã pela fidelidade a Jesus (cf.
LG, no 14). [Texto Complementar 9]
No caminho da existência crente, o Espírito Santo é a força que dá eficácia aos sinais cris-
tãos. É graças à ação do Espírito Santo que, na liturgia da Igreja e em particular nas ações sacra-
mentais, se cumpre o que a Palavra anuncia. Todos os sacramentos são, assim, "sacramentos do
Espírito Santo", o amor de Deus personificado que se dá para nos pôr em comunhão com a vida
divina trinitá ria.
Na perspetiva da vida comunitária, o Espírito Santo é o princípio estruturador da comuni-
dade eclesial enquanto origem e fonte dos carismas e ministérios. A ação do Espírito faz-se par-
ticularmente notar nos carismas que são dados para o serviço e a construção da comunidade.
É o Espírito Santo ainda que, obviamente através de mediações humanas, garante a fideli-
dade à verdade da fé e a permanência nela (cf 1 Cor 12,3; Jo 14,16 s.; 14,26; 16,13 s.; 1 Jo 2,20-
27; cf. ainda Jo 3,5; 1 Jo 5,5-8). Certamente, o Espírito Santo não é portador de uma nova reve-
lação independente do Verbo de Deus encarnado, mas só Ele possibilita o aprofundamento, a
plena compreensão, a assimilação existencial fiel e mais autêntica do significado do aconteci-
mento Jesus na diversidade de tempos e de espaços, ao longo da história.
O Espírito Santo é, por isso mesmo e enfim, fonte de comunhão, criador da unidade na diver-
sidade. A ação do Espírito na vida da Igreja manifesta-se basicamente como uma experiência de
comunhão, como participação na própria comunhão que Deus é no seu Mistério trinitário e como
nova relação de comunicação e amor mútuos entre os crentes (cf. Rm 8,14-17; Ef 4,4-6). Mas o
Espírito Santo une diversificando, fazendo ressaltar a identidade e a vocação próprias de cada um.

41 A Comunidade de Crentes em Cristo


-
Texto Complementar 9
"A garantia decisiva de que a Igreja primitiva, na atualização crente da mensagem de Jesus após
a sua morte, não se desviou das suas intenções fundamentais permanece no Espírito Santo. Por
ele acreditamos nós que ele é o mesmo em Cristo e nos cristãos e que, por isso, ele os capacita
para anunciarem sempre de novo em liberdade e, ao mesmo tempo, em fidelidade a mensagem de
Jesus do Reino de Deus e a corporificá-la também em novas formas estruturais comunitárias. Onde
falta esta confiança básica no agir histórico e presente do Espírito Santo, em última análise a pessoa
torna-se dependente de hipóteses que surgem sempre de novo acerca do 'autêntico' Jesus históricilcie)11
ou acerca da 'verdadeira' Igreja primitiva".
M. KEHL, Dia Kirche. Eino kotholische Ekklesiologie, Würzburg 2/1993, p. 279; tradução em língua espanhola:
Lo Iglesio. Eclesiología católico, Salamanca 1996, p. 254.

MO&
4.3.2. igreja na força do Espirito

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, - l;•l:- i'
« Descida do Espírito Santo», Igreja de Nossa Senhora da Assunção, Cordon, Saboia, Franca.

A consciência desta presença e ação do Espírito na vida da Igreja ao longo da história tor-
nou-se de novo mais viva nas últimas décadas. É um fruto do processo de receção do Concílio,
ainda que estimulado pela própria experiência e vida prática dos cristãos (por exemplo, nas
expressões de "renovamento carismático").
Esta nova consciência do lugar do Espírito Santo na experiência pessoal de fé e na vivência da
comunidade eclesial convida, antes de mais, a superar um certo "cristomonismo" que tem afe-
tado a tradição teológica e a prática eciesial ocidentais. Basicamente, o "cristomonismo" con-
siste em ver de forma unilateral a Igreja em relação com o mistério da encarnação, de algum
modo como seu prolongamento, sem inserir plenamente a dimensão pneumatológica (essa
presença viva do Espírito Santo) na compreensão da Igreja, com todas as consequências que
daí resultam tanto em termos teóricos como práticos. Uma delas - como já se sugeriu - condu-
ziu a que se acentuasse de forma unilateral os aspetos institucionais da Igreja e, ao mesmo tempo,
o lugar excessivamente preponderante do ministério ordenado como elemento essencial da insti-
tuição eclesial. Escreve H. J. Pottmeyer:

Luucação Moral e Religiosa


"Cristomonista - pode ser chamada a eclesiologia p o r causa da sua fundamentação e visão
unilateralmente cristológicas da Igreja. O Espírito Santo atua sobretudo pela via hierárquica e na
obediência dos fiéis relativamente à hierarquia. O papa é o representante de Cristo, a cabeça visível
da Igreja. Da visão cristomonista decorre uma quíntupla ordem de prioridade: a prioridade da Igreja
universal sobre a Igreja local, do ministro sobre a comunidade, da estrutura monárquica sobre a colegial,
do ministério sobre os carismas e, finalmente, da unidade sobre a diversidade. A isso corresponde
uma comunicação de sentido único de cima para baixo".
H. J. POTTMEYER, Die Rolle das Popsttums im dritten Jahrtausend, Freiburg-Basel-Wien 1999, p. 121.

Como correção das unilateralida-


des dessa visão, torna-se necessá-
rio ter sempre presente que a Igreja
encontra a sua origem fundante em
Jesus Cristo, mas só existe como
realização histórica na força do seu
Espírito, que é também o Espírito do
Pai. Por isso mesmo, se a Igreja está
concreta e irrevogavelmente ligada à
sua origem no acontecimento Jesus,
só pode ser fiel na força e na liber-
dade da ação do Espírito que a capa-
cita para uma atualização histórica
criativa em fidelidade ao Evangelho.
Tudo o que a Igreja transporta con-
sigo — palavra, sinais, estruturas, ins-
tituições... — só encontra o seu sen-
tido na medida em que é presença
atualizadora eficaz e forma de exis-
tência histórica crível do Espírito de
Jesus Cristo.
A Igreja é construção de Deus pelo
seu Espírito, é criação d o Espírito
(cf. LG 4 e 6). Há uma anterioridade
e prioridade da ação do Espírito na
«Religião do Brasil», Tarsila do Amaral (Brasil, 1886-1973). Acervo Artístico dos Palácios do vida da Igreja que deve ser reconhe-
Governo do Estado de São Paulo. cida como um elemento fundamen-
tal da consciência cristã e da prática
eclesial. Para a existência crente indi-
vidual e comunitária decorre daqui uma sensibilidade espiritual aberta à dimensão criativa,
inovadora, da vida quotidiana da Igreja, nas suas diversas expressões. Na Igreja há necessa-
riamente lugar para a liberdade criativa, traduzindo a indispensável fidelidade ao Evangelho na
busca de respostas mais adequadas conforme os lugares, as épocas e as culturas.
Ver a Igreja como "criação do Espírito" é, pois, uma atitude fundamental para se compreen-
der e aprofundar a vida da Igreja na sua constante necessidade de renovação e na sua busca
de resposta aos "sinais dos tempos". De certa forma, a Igreja nunca está totalmente feita, está
a fazer-se num caminho que só termina no fim da história. Obviamente, não se trata nunca de
"inventar" a Igreja —há valores evangélicos, princípios, estruturas, orientações fundamentais de
que não se pode abdicar -, mas tem de haver capacidade criativa para se poder responder
de modo mais autêntico aos desafios de cada situação e às interpelações das pessoas em
cada época. Trata-se de inovar na fidelidade ao único e mesmo Evangelho, e isso tanto no que
respeita à linguagem da fé como às estruturas eclesiais, tanto no que se refere às formas de tes-
temunho como às estruturas de ordem pastoral. A abertura à novidade criativa é, assim, con-
dição de fidelidade.

43 I A Comunidade de Crentes em Cristo


5. Igreja, comunidade de crentes,
na pluralidade de carismas,
serviços e ministérioF

«O Batismo de Cristo», Guído Rení (Itália, 1575-1642), Kunsthistonsches Museum, Viena, Áustria.

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-ação fr----Err---"." d e - - ' o r s 1:0-4-riz--1-s
Convocada por Deus em Jesus Cristo e na força do seu Espírito para ser seu Povo — isto é,
para ser comunidade de fé, de esperança e de amor peregrinando na história ao serviço do
Reino de Deus e a caminho da sua realização definitiva -, a Igreja é chamada a viver esse dom
e essa responsabilidade em todos os seus membros e em todas as situações humanas (cf. Ef.
4,7, Fl 4,3; Rm 16,3 ss, 1 Cor 12,4-31). Toda a Igreja é chamada a acolher e a anunciar — pela
palavra e pela vida, nas pessoas e nas comunidades — o amor salvador de Deus como espe-
rança e sentido definitivo de vida para os seres humanos e para a humanidade no seu conjunto.
Quando se fala de Igreja, a comunidade fraterna dos crentes na sua totalidade ocupa, assim,
o primeiro plano. Todos os membros da Igreja — configurados a Cristo pelo dom do seu Espirito
no batismo e no crisma (a raiz do sacerdócio comum de todo o cristão) são convocados para
serem, por sua vez e em atitude de fidelidade, "sujeitos" ativos da sua fé: no processo de matu-
ração da fé como projeto pessoal de vida, na consciência da sua dignidade e autonomia pró-
prias, na afirmação da liberdade cristã.
Esta visão da Igreja como toda uma comunidade que acolhe e pro-
clama os dons de Deus para salvação do mundo pressupõe o reco-
nhecimento basilar de que há - como já se referiu - uma igualdade
fundamental de todos os crentes, não obstante a diversidade dos
carismas, serviços e ministérios nela existentes (cf. LG 42). O dom
e a tarefa que representam a chamada e a pertença a este Povo de
Deus dizem respeito a todos, e nenhum cristão — sempre pressuposto
um adequado crescimento e amadurecimento da sua fé em liberdade
e responsabilidade pessoais — pode considerar-se menos abrangido
por esta convocação pessoal de graça ou eximir-se a esta responsa-
bilidade indeclinável. Há, pois, uma corresponsabilidade que inter-
pela cada cristão e que se tem de expressar numa participação ativa,
consciente e criativa em todos os domínios da vida e missão ecle-
siais: no anúncio e testemunho do Evangelho, na celebração comuni-
tária da fé, na construção da vida comunitária, no serviço comum aos
outros, no esforço quotidiano no sentido de transformar o mundo à luz
do Evangelho.
A vocação d e todos o s batizados — participação no sacerdócio
comum dos fiéis — concretiza-se, explicita-se, antes de mais e global-
mente, em três grandes modalidades de vida que sinalizam dimen-
sões nucleares da identidade e missão da igreja. São vocações que
— podemos designar de "típicas" porque, constituindo a base das con-
«Batismo», Antonio Donghi (Itália, 1897-1963), Gol- cretizações individuais em cada história pessoal de vida, traduzem
leria Civica d'Arte Moderna Contem poranea, Tonna
dimensões essenciais da identidade e missão da Igreja. Trata-se da
situação laical, do ministério ordenado e da vida consagrada (tradi-
cionalmente designadas como "estados de vida").
Cada uma destas modalidades de vida tem, de facto, um significado teológico em relação
com a identidade e missão da Igreja, diz algo sobre o que a Igreja é e é chamada a viver. Assim,
o ministério ordenado, na continuidade do ministério apostólico, exprime institucional e exis-
tencialmente a memória fundante da Igreja como dom salvador de Deus à humanidade, ou
seja, lembra donde o Igreja vem ("ministério da memória"). Por sua vez, a vida consagrada põe
em relevo a dimensão escatológica da existência cristã e da vida eclesial: sinaliza poro onde
o Igreja vai, lembrando que está a caminho da eternidade. Por seu turno, a modalidade de vida
laical (vivida pela esmagadora maioria dos cristãos) diz e procura concretizar o que a Igreja
é chamada a ser e a fazer neste mundo, ou seja, lembra a toda a Igreja onde elo está (tem de
estar) e que ela existe para a libertação, a salvação deste mundo.
Não se trata aqui, obviamente, de uma divisão de funções em jeito de compartimentos
estanques, mas sim de tendências ou modalidades vocacionais básicas de vida cristã com
específico sentido teológico-eclesial (expressões de uma realização vocacional significativa
para a Igreja e para o mundo). Na vocação cristã de cada pessoa em concreto podem cruzar-
-se duas ou até as três tendências dominantes referidas. Por outro lado, o significado teológico-
-eclesial destas modalidades, dentro da globalidade da vocação e missão de todo o Povo de
Deus, exige que não se atribua a nenhuma delas uma primazia absoluta, antes se reconheça
que cada uma, sob determinado ponto de vista (a sua razão de ser eclesial), tem prioridade sobre

A comunidade de crentes em cristo


as outras. Se cabe ao ministério ordenado a prioridade em termos de anúncio do Evangelho com


autoridade, se os consagrados são testemunhas qualificadas da esperança escatológica pela
vivência radical dos conselhos evangélicos, os fiéis leigos são os primeiros agentes e testemu-
nhas do significado concreto do Evangelho para a vida da sociedade e sua configuração estru-
tural mais conforme ao plano de Deus para a humanidade. [Texto Complementar 101.
A esta luz percebe-se melhor o sentido positivo da identidade laical, o significado indispen-
sável que tem para a missão da Igreja a vida do fiel cristão leigo, afinal a situação mais comum
do ser cristão. Enraizada no batismo e na confirmação como expressões sacramentais do dom
que é a fé, da chamada a ser membro ativo do Povo de Deus, dos dons que o Espírito concede
para o serviço dos outros, a vocação e missão dos fiéis leigos entende-se, antes de mais, como
expressão e modo de realização da única vocação e missão da Igreja: serem testemunhas do
Deus vivo, seguindo a Jesus nas possibilidades reais e nas circunstâncias próprias de cada
história de vida. O cristão (neste caso, o fiel leigo) sabe-se participante da mesma missão de
Jesus de testemunhar Deus pela palavra e pela vida (missão profética — cf. LG, nos 12 e 35), de
fazer de toda a sua existência espaço disponível para Deus e para os homens (missão sacerdo-
tal — cf. LG, no 10), de agir quotidianamente a favor de condições de vida e estruturas mais cor-
respondentes ao plano de Deus e, assim, mais humanas (missão real ou servicial — cf. LG, no 36).
1
Na concretização desta vocação e missão, a existência laical caracteriza-se normalmente
pelo empenhamento direto, imediato e envolvente de toda a sua existência nas tarefas quo-
tidianas da construção do mundo (cf. LG, no 31; ChL, n°s 15-17). A especificidade secular dos
cristãos leigos consiste precisamente em ser testemunha mais direta e instrumento mais apto
ao serviço da humanização deste mundo na força e à luz da salvação oferecida por Deus. Nesta
perspetiva — que não indica algo de absolutamente exclusivo (os ministros ordenados e os con-
sagrados também vivem no mundo e têm significado para a salvação deste mundo) — o cristão
leigo é, na sua forma mais comum de existência, o "caso típico", a "situação-modelo" da con-
creta inserção da Igreja no mundo, do anúncio do Evangelho como força transformadora nas
diversas situações reais do viver humano. Nesse sentido, a identidade laical traz consigo a exi-
gência fundamental de os fiéis leigos entenderem e realizarem a sua vocação como os primei-
ros evangelizadores, os transmissores e tradutores mais imediatos do Evangelho na sua rele-
vância para a vida do mundo.

Oiver I e carismas, serviços e ministérios

rd •
«A Árvore da Vida», Gustav Klimt (Áustria, 1862-1918), mural do Palais Stociet, Bruxelas.

1 46
Educação Moral e ReIlL C a t ó l i c a

1
De qualquer modo, não obstante o lugar singular, estrutural, do
ministério ordenado na Igreja, é de enorme importância que haja
ministérios batismais/laicais no âmbito das três funções funda-
mentais da Igreja (anúncio do Evangelho, celebração da fé, serviço
fraterno dentro da Igreja e no mundo). Os ministérios indicam, sina-
lizam, coordenam, realizam, potenciam o que todos são chamados
a fazer na sua situação, ao seu nível, dentro das suas capacidades,
como realização quotidiana da sua vida cristã.

5.- e s t r u t • n i n i Q t 4 r i n
nrirO« r !orei;
O ministério ordenado situa-se na continuidade d o ministé-
rio apostólico que nos surge íntima e indissoluvelmente ligado ao
acontecimento Jesus, sua vida, morte e ressurreição. O ministé-
rio apostólico tem as suas raízes certamente no tempo histórico
de Jesus, mas constitui-se verdadeiramente com o envio dos
apóstolos e m missão pelo Senhor Ressuscitado e pelo dom
do Espírito que os fortalece e torna testemunhas. O anúncio do
Evangelho assenta em testemunhas, e esta dimensão não pode
terminar com a morte dos primeiros apóstolos: é necessário que
outros continuem esta missão, que haja pessoas que atualizem a
missão apostólica através dos tempos.
Assim, a missão de Jesus como Cabeça e Pastor da sua Igreja
—uma missão e uma autoridade que, a partir da sua Páscoa, Ele
não exerce mais de maneira imediata e visível — continua de forma
«Madona com o Menino e S. Pedro e S. Paulo», Giu-
particular ao longo dos tempos a ser sinalizada e concretizada seppe Cesari, dito Cavaliere d'Arpino (Itália, 1568-1640),
pelo serviço particular de alguns. Este ministério não dispensa a Nelson-Atkins Museum, Kansas City, Missouri.
resposta de seguimento e de anúncio do Evangelho por parte de
todos os cristãos, mas situa-se precisamente em função de que tal
sempre aconteça em condições de fidelidade e de autenticidade.
O ministério na continuidade do ministério apostólico é verda-
deiramente "ministério da memória", por isso mesmo elemento
estrutural irrenunciável da Igreja de Jesus e sinal de uma reali-
dade a atualizar sempre de novo ao longo dos tempos.
Nesta ordem de ideias e antes de mais, o ministério ordenado apa-
rece como sinal instituído da anterioridade e gratuidade do dom
da salvação. Nessa sua referência original ao Senhor Ressuscitado
e ao dom do Espírito, o ministério ordenado é chamado a testemu-
nhar a prioridade da iniciativa divina no acontecimento da sal-
vação, é o sinal estruturai permanente de que a salvação é dom de
Deus e não conquista humana, é expressão institucional da depen-
dência da Igreja em relação a Jesus Cristo.
Ao mesmo tempo, o ministério ordenado entende-se e realiza-
-se como serviço de mediação em representação de Cristo e em
representação da igreja. Por um lado, como ministério na conti-
nuidade do ministério apostólico está dotado, ao serviço da única
mediação de Cristo, d e uma particular representatividade d e
Jesus Cristo (representação simbólico-sacramental d e Jesus
Cristo): os bispos, como sucessores dos apóstolos em sentido
pleno, e os presbíteros, como cooperadores do ministério episco-
pal, agem assim, como representantes do próprio Cristo em pes-
soa; através do serviço apostólico Cristo está presente e expri-
me-se n o anúncio autorizado d o Evangelho, na presidência da
celebração da fé, na direção da comunhão e no serviço fraterno.
Por outro lado, enquanto membro da comunidade eclesial e ao seu «S. António de Lisboa na Missa dedica a sua vida a
serviço, o ministro ordenado é também representante da Igreja: Deus», Maestro dell'Osservanza (pintor cujo nome se
desconhece, mas que deve a designação ao trabalho
nele concentra-se de forma mais densa e expressiva aquilo que realizado na Basílica de l'Osservanza, em Siena), (Itália,
toda a comunidade é chamada a ser, a viver e a fazer (ele pre- 1430-1450), Gemaidegalerie, Berlim.
side à eucaristia, mas é toda a comunidade que celebra). O minis-

Educação Moral e Religiosa Católica 48


interior da igreja da Transfiguração, que fica no centro da Comunidade de Jesus, uma comunidade monástica ecuménica
de Tradição Beneditina. Rock Harbor, Orieans, Massachussets, Estados Unidos da América.

tério ordenado emerge, pois, como sinal sacramental daquilo que cabe a todos os crentes, ou
seja, a tarefa de atualizar o serviço salvífico de Cristo no concreto das circunstâncias históricas
do viver humano. Entende-se, então, que o ministério ordenado situa-se "em relação", é de
alguma maneira "subordinado": existe ao serviço do sacerdócio de Cristo e ao serviço do
sacerdócio comum. Ele é participação ao nível sacramental no sacerdócio de Cristo e, assim,
serviço de mediação a favor do sacerdócio comum dos fiéis.
Na linha do que se acaba de referir, o ministério ordenado está situado, simultaneamente, na
comunidade e face à comunidade. Por um lado, em razão da sua origem, que o coloca numa
referência particular a Jesus Cristo, o ministério ordenado na Igreja encontra-se foce à comuni-
dade: o ministro ordenado não é um mero delegado da comunidade, mas serviço com auto-
ridade fundado no próprio acontecimento Jesus em todas as suas consequências. Mas, por
outro lado, esta posição específica do ministério ordenado não elimina a sua inserção no comu-
nidade, antes a razão de ser do ministério ordenado é o serviço na e para a comunidade.
Finalmente, e de certo modo numa síntese de ordem existencial dos aspetos referidos, o
ministério ordenado é estruturalmente marcado por uma tríplice dimensão: pessoal, comu-
nitária e colegial. No seu exercício está envolvida de modo marcante a dimensão pessoal da
existência, estamos diante de um ministério que é assumido pela pessoa num compromisso
total da sua vida. Mas no ministério sacerdotal está também estruturalmente implicada uma
dimensão colegial: a pessoa exerce este ministério fazendo necessariamente parte de um
corpo ministerial (o bispo faz parte do colégio episcopal, o presbítero do colégio presbiteral).
Mais ainda, o ministério ordenado possui uma dimensão comunitária essencial para a sua
identidade: o múnus do ministro ordenado está estruturalmente inserido na vida da comuni-
dade, à qual procura servir. Os ministros ordenados não podem cumprir a sua vocação e mis-
são independentemente da comunidade, antes só a podem realizar nela e para ela.

49 I 1 A Comunidade de Crentes em Cristo

1
5.4. Sinodalidadeicorresponsabilidade
vi( d a Igreja

f;',•1',3' •

"'Whk

GIL".
Miniatura do Livro das Horas de Étienne Chevalier, manuscrito obra de Jean Fouquet (Franca, 1420 a 1478 ou 1481),
realizada entre 1452 e 1460. A iluminura mostra S. Hilário no Concílio de Constantinopla. S. Hilário foi bispo na cidade
romana de Pictávio, na Gália, atual Poitiers, França, e é um dos Doutores da Igreja.

Educação Moral e Religiosa Católica 50


E
1

A diversidade de carismas, serviços e ministérios entende-se e é chamada a praticar-se numa


Igreja que procura viver a sua realidade fundamental de comunhão ao serviço da missão. A
consciência disto tem de se traduzir num sentido de responsabilidade comum por parte dos
crentes. Isso pede um espírito de corresponsablildade eclesial a todos os níveis bem como a
existência e o bom funcionamento de estruturas que concretizem e fomentem a corresponsa-
bilidade dos fiéis.
Na tarefa de concretizar esse sentido de responsabilidade comum e de fomentar indispensá-
veis formas de participação na vida da Igreja, a via sinodal, quer dizer, a busca de condições,
métodos, expressões institucionais, etc., que favoreçam o "caminhar em conjunto" (este
o sentido básico da palavra "sínodo") apresenta-se como exigência iniludível e de primordial
importância. Trata-se, nomeadamente, de associar e articular equilibradamente a autoridade
própria dos pastores e a participação o mais ampla e consciente possível da comunidade no
sentido de se fomentar diversos níveis de participação, de encontrar modos de proceder mais
adaptados à sensibilidade atual e ao sentido da responsabilidade das pessoas.
1 O caminho de renovação da tradição sinodal da Igreja (particularmente, da Igreja antiga)
posto em marcha neste aspeto pelo Concílio Vaticano II — e traduzido não só na realiza-
ção de sínodos de âmbito universal mas também, num movimento progressivo e variável
segundo as regiões, de sínodos diocesanos, regionais ou de um país, com ampla e determi-
nante participação de cristãos leigos — precisa de ser aprofundado nos seus pressupos-
tos e desenvolvido na sua prática efetiva. Isto vale para todos os níveis em que a Igreja
se realiza, desde o âmbito universal ao nível da mais pequena comunidade cristã local
(Conselho Pastoral Paroquial e Assembleia Paroquial). Se forem concretizadas adequada-
mente, as estruturas sinodais dão lugar a uma participação representativa dos fiéis, conse-
guem uma articulação equilibrada dos diversos serviços e ministérios, favorecem formas de
diálogo vivo e fomentam a liberdade de debate, estão abertas à presença de pessoas com
sensibilidades diferentes, ampliam o grupo de pessoas qualificadas para analisar os proble-
mas pendentes, possibilitam assim uma visão mais profunda das questões em análise, esti-
mulam uma cultura d e corresponsabilidade dos crentes na vida e na missão d a Igreja.

Papa Francisco discursa durante a primeira etapa do Sínodo Extraordinário dos Bispos sobre a Família, em outubro de
2014, no Vaticano.

Sinodalidade como esforço de "caminhar em conjunto" exprime o modo como a configura-


ção comunional da Igreja se tem de realizar na comum escuta do Espírito, no testemunho ativo
da fé, na corresponsabilidade de todos os membros e comunidades, na articulação dos diver-
sos carismas e ministérios. Importante é perceber que a sinodalidade como atitude espiritual
e prática é uma dimensão estrutural da vida duma Igreja que se sabe "mistério de comunhão",
na consciência da prioridade da missão, ou seja, na perceção de que a Igreja não vive para si
mesma, mas para ser testemunha credível do Evangelho junto dos homens e mulheres de cada
tempo. [Texto Complementar 131

51 A comunidade e n t e s em cristo
Texto Complementar 10
"Na Igreja-Comunhão o s estados d e vida encontram-se d e tal maneira interligados que são
ordenados uns para os outros. Comum, direi mesmo único, é, sem dúvida, o seu significado profundo:
o de constituir a modalidade segundo a qual se deve vivera igual dignidade cristã e a universal vocação
à santidade na perfeição do amor. São modalidades, ao mesmo tempo, diferentes e complementares,
de modo que cada uma delas tem uma sua fisionomia original e inconfundível e, simultaneamente,
cada uma delas se relaciona com as outras e se põe ao seu serviço.
Assim, o estado de vida laical tem na índole secular a sua especificidade e realiza um serviço
eclesial ao testemunhar e ao lembrar, à sua maneira, aos sacerdotes, aos religiosos e às religiosas,
o significado que as coisas terrenas e temporais têm no desígnio salvífico de Deus. Por sua vez, o
sacerdócio ministerial representa a garantia permanente da presença sacramental de Cristo Redentor
nos diversos tempos e lugares.
O estado religioso testemunha a índole escatológica da Igreja, isto é, a sua tensão para o Reino de
Deus, que é prefigurado e, de certo modo, antecipado e pregustado nos votos de castidade, pobreza
e obediência.
Todos os estados de vida, tanto no seu conjunto como cada um deles em relação com os outros,
estão ao serviço do crescimento da Igreja, são modalidades diferentes que profundamente se unem
no «mistério de comunhão» da Igreja e que dinamicamente se coordenam na sua única missão".
Christifideles Loici, n. 55.

Texto Complementar 11
111111111111111111
"Deve-se particularmente a S. Paulo esta consciencialização do que significa a ação do Espírito no
crente, traduzida como seu efeito em dons que capacitam o cristão para servir a comunidade. De
facto, o termo charisma (de charis g r a ç a ) é uma criação neotestamentária, mais concretamente
um conceito paulino, que nos aparece 17 vezes no Novo Testamento: 14 na Carta aos Romanos e
as três restantes em textos de influência paulina — 1 Tm 4,14; 2 Tm 1,6; 1 Pe 4,10. Os carismas são
expressão do poder da graça de Deus no Espírito, que chama alguém para um determinado serviço
na comunidade e, ao mesmo tempo, capacita a pessoa para esse serviço. Trata-se de dons diversos
que podem ocasionalmente ter um caráter extraordinário, mas que, mais habitualmente, são dons
ordinários, comuns, sendo certo que o dom mais sublime é a caridade (cf. 1 Cor 12,4-11-28-31; Rm 12,6-
8; Ef 4,11 s.; 1 Cor 1,7; 7,7; 12,7; 13,1-13; 14,1-40; 1 Tm 4,4; 2 Tm 1,6; 1 Pe 4,10). Os carismas emergem,
pois, como a manifestação da plenitude e diversidade do dom do Espírito à comunidade eclesial e da
forma como essa ação do Espírito se concretiza a favor da sua edificação. «O carisma é um dom de
Deus, correspondente a uma aptidão profunda (mesmo desconhecida pelo sujeito), que é posta, deste
modo, ao serviço de todos. É o Espírito que é dado e que faz que tal ou tal cristão ponha em ação
como dom de Deus e ao serviço de todos, esta ou aquela possibilidade, este ou aquele talento, esta
ou aquela competência»".
POR UMA EQUIPA DE TEÓLOGOS, O Reino já está entre nós, Apelação 2012, 120 - Reedição pela PAULUS Editora de textos publicados
inicialmente em 1975; originai francês de 1974. Cf. ainda Cie 799-801.

•ucação Moral e Religiosa Católica 52


Texto Complementar 12
Num texto de 1989, os bispos portugueses escreveram:
"Entre nós, deveremos dar novos passos na instituição dos ministérios de leitor e de acólito, mesmo
a candidatos que não se destinam ao presbiterado nem ao diaconado. Será preciso garantir-lhes uma
formação específica e pensar na sua intervenção pastoral. Trata-se de dois ministérios que se inserem
em duas coordenadas decisivas da nossa ação pastoral: a da evangelização e a da ação litúrgica.
Para além destes dois ministérios instituídos, e enquanto não vêm da Santa Sé as novas normas
prometidas, poderemos cultivar alguns serviços permanentes da comunidade, exercidos por leigos e
que são, por natureza, funções laicais, isto é, atribuições que decorrem da própria qualidade batismal.
Alguns desses serviços permanentes poderão, um dia, desabrochar em ministérios instituídos. E-nos
possível identificar, desde já, certas áreas onde esses serviços laicais se situam: a da catequese,
a da pastoral sociocaritativa, a da música litúrgica, a do acolhimento, a da administração dos bens
eclesiásticos. Em todas estas áreas poderão um dia surgir ministérios laicais instituídos, confirmando
numa função aqueles que se preparam para esses serviços permanentes da comunidade e que estão
dispostos a exercê-los de forma estável e duradoura.
É também importante que apareçam algumas dessas funções permanentes no âmbito da presença
da Igreja no mundo. Áreas como a da assistência aos doentes e marginais, da informação, compreendida
como um serviço, do ensino, da solidariedade, etc., são propícias a fazer surgir funções eclesiais com
identidade própria".
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Carta Pastoral "Os cristãos leigos na comunhão e missão da Igreja em Portugal",
Edição do Secretariado Geral do Episcopado, Lisboa 1989, 13,12 18.

1
111:
Texto Complementar 13
"A estrutura da Igreja é sinodal, colegial e primacial. Na harmonia e equilíbrio entre esses níveis
e dimensões joga-se em grande medida a articulação que acompanhe a figura de Igreja que há de
evangelizar a civilização mundial do terceiro milénio".
E. BUENO DE LA FUENTE, Panorama de ia eclesiología actual, in Burgense 47 (2007) p. 55.

53 A Comunidade de Crentes em Cristo

1
6. Igreja que peregrina na história ao
serviço do Reino de Deu

, 4 , •
«Crucified Tree Farm - The Agony», Theyre ( I n g l a t e r r a , 1903-1988), Igreja Metodista, Inglaterra.

Educação Morai e • s i o s a Cs: a 5 4


6.1. igreja peregrina, sempre necessitada de
renovação
6.11. Os "sinais dos tempos"
co- i r ,rpelacão m i s s ã o da igreja
Um dos elementos fundamentais da renovação eclesial posta
em relevo pelo Concílio Vaticano II foi a perceção de que a Igreja,
peregrina na história, vive inserida nas circunstâncias do mundo,
com suas mudanças e evoluções, e assim está sujeita também
necessariamente aos condicionamentos, limites e fragilidades
do tempo que passa (cf. LG, no 48). Nesta nova consciência da
historicidade do caminhar na fé e do viver eclesial não se põe mini-
mamente em causa aquilo que identifica a Igreja e é a sua razão
de ser. Simplesmente, entende-se que, na busca permanente de
fidelidade ao Evangelho, a Igreja tem de estar disponível para
analisar e rever o seu viver quotidiano, para ir atualizando as
formas como transmite e testemunha a mensagem evangélica,
para depurar as suas expressões institucionais e examinar as
suas prioridades pastorais. Ou seja, ao contrário do que se che-
gou a pensar noutros tempos, em que se tinha por absurda qual-
quer ideia de "reforma" da Igreja, há agora a consciência de que
só no reconhecimento dos seus limites e falhas e num esforço
constante de renovação é que a Igreja pode cumprir a sua missão.
O testemunho autêntico do Evangelho de Jesus não passa, pois, «O Regresso do Filho Pródigo»,
por uma atitude fixista e imóvel, voltada simplesmente para o pas- FrankWesley(!ndio,1923-2002).
sado, mas exige a disponibilidade mental, espiritual e prática para
uma atitude de "contemporaneidade" com o tempo (J. B. Metz),
sem que isso signifique uma simples "adaptação" ao tempo,
isto é, um deixar-se levar por correntes e tendências conjunturais
do viver humano na história.
É neste contexto que se entende a afirmação do Concílio Vaticano II de que a Igreja tem de
estar atenta aos "sinais dos tempos", isto é, àqueles acontecimentos e transformações na
sociedade que podem ser não só indicativos de profundas e legítimas aspirações humanas,
mas também expressões sinalizadoras do plano de Deus para a humanidade. Trata-se de pres-
tar atenção a acontecimentos marcantes da história, suscetíveis de impulsionar mudanças pro-
fundas do viver humano (em termos sociais, culturais, etc.) e que se manifestam como sinais
interpelativos e pontos de orientação para a Igreja no anúncio do Evangelho. A leitura dos
"sinais dos tempos" acontece na consciência crente da interdependência mútua entre his-
tória humana e história da salvação, procurando descobrir nos movimentos históricos e nos
problemas e esperanças da humanidade que se manifestam através desses acontecimentos
traços do agir salvífico de Deus a favor dos seres humanos. Como afirma a Goudium et Spes,
a missão eclesial de proclamar "a sublime vocação do homem" à luz de Deus, de atualizar em
cada situação histórica o amor de Deus pela humanidade e ajudar a construir "a fraternidade
universal" exige essa atenção permanente aos sinais dos tempos:

"Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja


investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e
interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa
responder, de modo adaptado em cada geração, às
eternas perguntas dos homens acerca do sentido da
vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É,
parisse, necessário conhecer e compreender o mundo
em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o
seu caráter tantas vezes dramático".
Goudium et Spes, 4.

«O Filho Pródigo», Auguste Rodin (França, 1840-1917), Museu Rodin, Paris.

55 A Cornu; de crentes em cristo


1
99 eo!1,22,9 es3!9re,d
A leitura crente dos sinais dos tempos como escuta da ação do Espírito na história não é
tarefa fácil em termos imediatos, já que os acontecimentos históricos são ambíguos e de inter-
pretação complexa, vêm habitualmente acompanhados por aspetos de tendência diversa ou
até contraditórios, com sinais de esperança mas também com marcas de risco ou negatividade.
Nestas circunstâncias, a resposta da fé exige um trabalho árduo e longo de discernimento, a
busca corajosa de fidelidade aos critérios evangélicos, o esforço de perceber os verdadei-
ros sinais do Reino de Deus no meio da complexidade da história humana. Mas não há outro
caminho na busca de fidelidade a Jesus:

"É dever de todo o Povo de Deus e sobretudo dos pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito
Santo, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julga-las à luz da
palavra de Deus, de modo que a verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida,
melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente".
Gaudium et Spes, 44.

A Igreja sabe que este caminho de busca, mesmo cheio de dificuldades, é acompanhado pelo
Espírito de Deus que funda e anima o nosso caminhar na fé.

6.1.2. Jn g r e j a no mundo o e r l _4o díálog m r undo


Pressuposto fundamental nesta consciência da importância da atenção a prestar aos "sinais
dos tempos" é o modo como a Igreja compreende a sua relação com o mundo, o seu situar-se
de Igreja no mundo. Neste aspeto a visão conciliar caracteriza-se, antes de mais, pela superação
de uma perspetiva simplesmente negativa sobre o mundo (na catequese tradicional insistia-se
nos três inimigos da alma: "o mundo, o demónio e a carne"), para, à luz da sua fé em Deus Criador e
Salvador, assumir uma consideração positiva do mundo e do viver cristão nas circunstâncias
do mundo. Ultrapassa-se assim, também, uma certa tendência a considerar "a fuga do mundo"
como perspetiva única ou, pelo menos, predominante, para, em última análise, se poder preservar
a identidade e a autenticidade cristãs. Nesse sentido o Concílio sublinha mesmo:

"O cristão que descuida os seus deveres temporais falta aos seus deveres para com o próximo e até
para com o próprio Deus e põe em risco a sua salvação eterna".
Gaudium et Spes, 43.

Sem negar o mal e o pecado que envolvem o viver humano no mundo, mas iluminados e for-
talecidos pela sua fé no mistério da encarnação como o "sim" definitivo de Deus ao mundo e à
história (2 Cor 1,18-20), os crentes consideram o mundo criado por Deus como uma realidade
principialmente boa (Gn 1,10) e chamada à salvação pelo mesmo Deus. Uma realidade que, no
desenvolvimento das suas potencialidades, interpela o compromisso cristão na colaboração
com Deus Criador e Salvador (cf. GS, no 34) e que se apresenta como tarefa à liberdade e res-
ponsabilidade humanas (visão teológico do expressão
t O RV.N1+1 I m u n d o

A partir desta visão do mundo como realidade criada e


salva por Deus, há mesmo lugar para uma legítima auto-
nomia das realidades terrestres, as quais têm as suas
leis próprias (cf. GS, nos 36, 41 e 55; AA 7). Isto é, reconhe-
ce-se a legítima secularidade deste mundo ("mundanei-
dade do mundo" — dirá J. B. Metz), percebendo que não
é a tutela religiosa por si só que dá consistência e quali-
dade humanas às coisas. O mundo como realidade criada
'w
por Deus é certamente lugar de possível e real recusa do
'':"•4»» I mesmo Deus (não se nega, pois, a "opacidade" do mundo,
a presença e as consequências do "pecado" existentes
na vida humana), mas na fé em Jesus Cristo sabemos
Postal comemorativo dos 50 anos da abertura do li Concílio do que ele já está radicalmente salvo por iniciativa do pró-
Vaticano. prio Deus (Cl 1,15-20: Ef 1,3 ss).
1
57 I A Coou i
-

Neste modo de pensar, a Igreja conciliar percebe que não está simplesmente diante do mundo,
mas que ela também vive no mundo, é parte do mundo como o quadro indispensável de vida
e de ação da humanidade (sentido descritivo, fenomenológico, da palavra "mundo"). Nesta pers-
petiva, a Igreja diferencia-se do mundo enquanto parte da humanidade que tem consciência do
amor concreto de Deus pelos seres humanos numa história de salvação, culminada em Jesus
Cristo. Mas a Igreja, comunidade de pessoas situadas no tempo e no espaço, vive no mundo e
é condicionada pelas circunstâncias concretas de cada tempo e lugar. Estabelecem-se assim
o princípio e a necessidade de um diálogo constante entre a Igreja e o mundo. A Igreja não só
tem algo a ensinar ao mundo, mas também aprende na sua relação com o mundo, aprende do
caminhar histórico do viver humano. Lê-se na Gaudium et Spes, no 44:
IMIEN~ 1 1 1 1 . I 1 1 1 ~ ~ ~ 1 P o L l ~

«Assim como é do interesse do mundo que ele reconheça a Igreja como realidade social da história
e seu fermento, assim também a Igreja não ignora quanto recebeu da história e evolução do género
humano». O que vale, inclusive, face aos questionamentos e interpelações dos que não acolhem a
missão da Igreja: «Mais ainda, a Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar da própria
oposição daqueles que a hostilizam e perseguem».
Gaudium et Spes, 44.

A necessidade de assumir uma mentalidade e uma atitude transparentes de diálogo torna-


-se, assim, caminho irrecusável para a Igreja no nosso tempo em ordem ao cumprimento da sua
missão. "A Igreja — formulou programaticamente Paulo VI na Encíclica Ecciesiam Suam, no 67
—deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se men-
sagem, faz-se colóquio". O que acontece — sublinhe-se — não apenas nem decisivamente em
razão da pluralidade da sociedade moderna e seus pressupostos. A atitude dialógica da Igreja
e dos seus membros brota de algo muito mais profundo, tem a ver com a compreensão de ele-
mentos fundamentais da revelação e da fé: desde o próprio Mistério de Deus, que é comu-
nhão dialogai, ao acontecimento da revelação, acontecimento de diálogo entre Deus e os seres
humanos, à vida quotidiana da Igreja, chamada a ser comunidade de diálogo aos seus mais
diversos níveis. Como se sublinha, num texto notável, no penúltimo número (no 92) da Goudium
et Spes, a atitude de diálogo atravessa nuclearmente o processo da identidade cristã e todos os
caminhos da missão eclesial. [Texto Complementar 14]

6.1.3. !grei._ _ , J S , g a r e s " de presença de


r---3 no
Na atitude estrutural e prática de diálogo não se trata, para a Igreja e
para cada cristão, de uma mera maneira externa de agir, mas de um modo
de viver aberto e sensível aos "lugares" diversos, muitas vezes ines-
perados, de presença concreta de Deus no nosso mundo. A igreja sabe
que, por iniciativa e dom de Deus, no horizonte do plano salvffico universal
do mesmo Deus, a sua identidade e missão está relacionada com toda a
humanidade, mesmo não crente: "Ao novo Povo de Deus todos os homens
são chamados..." (LG, no 13; cf. ainda n°s 14-17). Traduz-se assim a cons-
ciência de que Deus está presente na nossa história, dá sinais do seu
amor e da sua presença na vida das pessoas, tanto em termos de atitu-
des praticadas como de valores afirmados no concreto viver humano. Por
isso, a Igreja procura estar aberta a todos os homens e mulheres de boa
vontade, na convicção de que, desse modo, não só cumpre a sua missão,
mas também encontra o Deus Criador e Salvador em que acredita.
Entre os muitos "lugares" de real e possível presença de Deus no meio
do concreto viver humano emerge a busca humana de sentido para a
vida, expressa em termos religiosos (as diversas religiões do mundo) ou
traduzida na existência daquelas pessoas que, mesmo na ignorância do
Evangelho de Jesus e do papel da Igreja, "procuram, contudo, o Deus com
coração sincero, e se esforcem, sob o influxo do graça, por cumprir o Sua
vontade, manifestada pele ditame da consciência E...]"(LG, no 16). A cons-
ciência pessoal " o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual
se encontra a sós com Deus" — é lugar privilegiado e intocável de pre- O Papa Francisco ergue o Evangeliá rio durante a
sença de Deus: Eucaristia. Catedral de S. Pedro, outubro de 2015.

E d L i C a y d U ; \ O L J 6 1 ( J ‘ , , , , L u i J
58
E

"Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de
buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social".
Gaudium et Spes, 16.

Colaborando com todos os homens e mulheres na construção humana do mundo e esfor-


çando-se por tornar a vida mais humana, emergem como interpelação para os crentes outros
inúmeros "lugares" da presença de Deus na história do mundo. Isso acontece nas circunstân-
cias comuns da vida, nas quais se geram frutos de justiça, de caridade e de paz (GS, no 36),
na luta contra tudo o que fere a dignidade humana (GS, rics 12 ss), no combate à pobreza, ã
doença, às tribulações e sofrimentos que atingem o viver humano (cf. GS, no 41), na atenção
e doação a todo aquele que, na sua situação de dificuldade ou de necessidade, se tornou pró-
ximo de nós (cf. GS, no 27). O amor ao próximo é, de facto, lugar essencial de descoberta de
Deus e de verdadeira realização humana à luz de Deus.

[O Verbo de Deus] "revela-nos que 'Deus é amor' (1 do. 4,8) e ensina-nos ao mesmo tempo que a lei
fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo, é o novo mandamento
do amor. Dá, assim, aos que acreditam no amor de Deus, a certeza de que o caminho do amor está
aberto para todos e que o esforço por estabelecer a universal fraternidade não é vão. Adverte, ao
mesmo tempo, que este amor não se deve exercitar apenas nas coisas grandes, mas, antes de mais,
nas circunstâncias ordinárias da vida".
Goudium et Spes, 38.

6. r e . 1 e r v i ç o d e i n o d, ) e u s
6.2.1. A 15reja, sacramento universal de salvação

Procissão Corpus Domini, Sicil ia, Itália. Fotografia de Antonino Bartuccio/SOPA RE

IlUJUL;
-

Inserida no mundo e colaborando na construção do mundo à luz do seguimento de Jesus,


a Igreja entende toda a sua vida e todo o seu agir como testemunho e serviço do Reino de
Deus. Numa das suas grandes intuições em termos de perceção global do mistério da Igreja,
sua identidade e missão, o Concílio Vaticano II relaciona a Igreja com a missão de Jesus Cristo
e o Reino de Deus por ele anunciado sob a linguagem de "sacramento". Isso é referido logo no
início da Lumen Gentium, onde se diz que, sendo Cristo a luz dos povos, a Igreja é, em Cristo,
"como que o sacramento, ou sinal e o instrumento da íntima união com Deus e do unidade de
todo o género humana ( L G , no 1; cf. ainda nos 8, 9, 48 e 59; Sacrosanctum Concillum, n°s 2,
5 e 26; Ad Gentes, n"s 1 e 5; GS, n°s 43 e 45). A palavra "sacramento" (tradução latina da pala-
vra grega mysterion, que também foi vertida para o latim por misterium/mistério), faz referên-
cia ao plano salvífico de Deus e sua visibilidade numa história de salvação. Mysterion/sacra-
mento é, na linguagem paullna, o plano de salvação escondido em Deus e que se manifesta
visivelmente na história humana, particularmente em Jesus Cristo, que é assim "sacramento do
encontro com Deus" (E. Schillebeeckx). [Texto Complementar 15]
Na visão da Igreja como mistério-sacramento está um dos pontos-chave da intencionalidade
renovadora do Concílio Vaticano II. Indo para além duma visão eclesial predominantemente ins-
titucional ou jurídica, sublinha-se a primazia de Cristo e da ação do
seu Espírito sobre a Igreja: em toda a sua existência a Igreja "é sinal " W. KASPER, Lo iglesio de Jesucristo. Escritos de
que remete, para além de si mesma, para Jesus Cristo e é instru- Eciesiologio, p. 1 (Obra completa de Walter Kasper,
mento nas mãos de Jesus Cristo, que é o verdadeiro sujeito de toda Vol. 11), Santander 2013, 312.
a ação salvífica na Igreja".
Acentua-se, assim, o caráter relacional, servida!, d a Igreja: a
Igreja "relativiza-se" a si mesma, colocando-se mais transparentemente em relação a
Jesus Cristo, sacramento primordial da salvação. Tanto as suas estruturas como as diversas
expressões do viver da Igreja encontram-se, assim, sob a exigente tarefa de serem sinal credível
do amor de Deus para com a humanidade. Enfim, a Igreja nunca pode pensar-se ou agir como
se fosse um fim em si mesma, esquecendo que está ao serviço do Espírito que dela se serve
numa missão universal que a ultrapassa: o anúncio e o testemunho do Reino de Deus que vai
irrompendo neste mundo.
Deste modo o Concílio veio a exprimir, de maneira mais adequada e clarificadora, o papel que
a Igreja é chamada a desempenhar em ordem à universalidade da salvação. Com esta visão fun-
damental, o Vaticano II superou de vez a perspetiva negativa, redutora e exclusivista do
axioma "fora da Igreja não há salvação", para afirmar positivamente o papel da Igreja como
"sacramento universal de salvação". Ou seja, mantém-se a convicção de que há uma relação
indissolúvel entre a Igreja e a salvação, isto é, de que a Igreja tem como identidade e missão sinali-
zar, servir de mediação, oferecer a toda a humanidade a salvação que nos é dada em Jesus Cristo,
pelo que ela é necessária para a salvação. Mas, com a ideia de "sacramentalidade" quer-
-se dizer, justamente, que a Igreja não se identifica sem mais com a salvação e o Reino de
Deus, que ela não é simplesmente "o lugar" da salvação (só se salvaria quem entrasse cons-
ciente e formalmente nela!), mas sim sacramento, isto é, sinal e instrumento da salvação que é
sempre dom de Deus e, assim, realidade sempre mais ampla que ela. Não obstante toda a afini-
dade existente, há uma diferença a salvaguardar entre Igreja e salvação, entre Igreja e Reino de
Deus. Escreve W. Kasper:
MIO

"A Igreja é só sacramento, não é idêntica sem mais com o espaço da realidade e da atividade do
Espírito de Cristo. A realidade e atividade do Espírito de Cristo é mais do que a Igreja. A Igreja pode e
deve contar tranquilamente com o facto de que o Espírito sopra também fora dos seus muros, onde
e como quer. A Igreja tem que ser Igreja aberta, e estar atenta aos 'sinais dos tempos', para, por eles,
entender mais profunda e amplamente a sua própria mensagem".

W. KASPER, "Unicidad y universalidad de Jesucrist", in A. VARGAS-MACHUCA (ed.), Jesucristo en la historio y en Ia te.


Semana internacional de Teologia, Salamanca 1977, p. 273.
11111111111111111111.1.4N

[Texto Complementar 16]

Educação Moral e Religiosa Católica 0


Foi um verdadeiro passo de gigante o caminho aberto pelo Concílio nesta matéria e assu-
mido pela reflexão teológica das últimas décadas neste ponto. Um passo Pujas consequên-
cias ainda estão longe de ser assimiladas e explicitadas em termos de consciência individual,
de ação evangelizadora, de diálogo inter-religioso, de perceção dos caminhos insondáveis do
encontro salvífico de Deus com cada ser humano. Ao situar a mediação eclesial no registo da
sacramentalidade, a consciência eciesial emergente no Concílio apontou critérios decisi-
vos para se enquadrar mais conscientemente a missão da Igreja a favor da salvação da
humanidade.
Assim, a Igreja - e este é o ponto de partida e a perspetiva fundamentais n ã o se anuncia a
si mesma, mas está ao serviço da vontade salvífica universal de Deus (1 Tm 2,4; Jo 3,16 s.).
A função histórica salvífica da Igreja é, precisamente, ser o sinal, a servidora e o instrumento
do plano salvítico de Deus para a humanidade manifestada em Jesus Cristo. Nesta ordem de
ideias, a função da Igreja como comunidade querida por Deus ao serviço da sua vontade salví-
fica universal é essencialmente uma função de ordem representativa, não exclusiva, isto é,
a Igreja não é tudo nem é chamada a ser tudo, mas é para todos12.
Ao mesmo tempo, a Igreja sabe que só é, só pode ser "sacramento universal de salvação"
pela força do Espírito Santo. É pelo Espírito - aliás, tanto dentro como fora do espaço visí-
vel da Igreja - que Cristo atinge os seres humanos para os pôr em relação salvífica com Deus
(cf. CS. no 38). Só o Espírito de Cristo (e do Pai) pode tocar o coração de cada ser humano
que, nas circunstâncias concretas da sua vida, se dispõe a uma atitude de acolhimento das exi-
gências profundas da sua consciência, de abertura ao Mistério que suporta a sua existência e
que o impulsiona ao dom de si mesmo aos outros.
A esta luz, a missão específica e indispensável da Igreja pode ser caracterizada como sendo
a tarefa de sinalizar e de atualizar "a formo evangélico da salvação"13, dando rosto visível e
eficácia histórica ao dom definitivo de si mesmo que Deus nos faz em Jesus e na força do seu
Espírito. Eia própria fruto da ação redentora de Jesus Cristo, a Igreja articula, nomeia, teste-
munha o caminho da salvação que o Evangelho de Jesus ilumina e possibilita. Isto é, com a
sua existência e no cumprimento da sua missão, a Igreja afirma e tes-
12Cf. J. RATZINGER, O novo Povo de Deus, São Paulo
temunha que a salvação é dom gratuito de Deus, oferecido a todos
1974, p. 331 s.; S. WIEDENHOFER, Das katholische os homens e mulheres da nossa história, possibilidade real na histó-
Kirchenverstándnis, p. 285 s. ria de vida de cada pessoa a caminho da eternidade. A fé cristã diz-
-nos igualmente que, na força do Espírito de Jesus (e do Pai), é possí-
12POR UMA EQUIPA DE TEÓLOGOS, O Reino está
entre nós, Apelação 2012, p. 37 ss. vel a todo o ser humano fazer uma experiência gratuita de filiação
e entrar em relação com o sentido mais profundo do seu viver e do
seu morrer, associando-se desse modo, ainda que de uma forma só
de Deus conhecida, ao seu mistério pascal (cf. GS, no 22; LG, no 16).
Fundamental é aqui relembrar o que constitui o cerne do Evangelho
de Jesus: no duplo mandamento do amor de Deus e do próximo
como duas dimensões inseparáveis da mesma atitude fundamen-
tal está a síntese nuclear e programática do Evangelho de Jesus.
Como nos testemunham várias passagens do Evangelho, o verdadeiro
cumprimento da vontade de Deus, o caminho que conduz à salva-
ção passa, decisivamente, pelo amor e serviço aos outros, especial-
mente para com aqueles que estão em maior necessidade e precisam
da nossa ajuda (Lc 10,29-37; Lc 15,11-32; Mt 12,28-34; M t 22,36-40;
Mt 25,31-46). A missão da Igreja, sacramento do encontro com Deus
•da . 1 e da fraternidade humana, consiste em procurar ser lugar privile-
«A Barca de Pedro», Igreja de St. Peter's by the Sea, giado do anúncio e testemunho do amor de Deus e ao próximo, do
Provincetown, Massachusetts, Estados Unidos da significado e das repercussões que o Evangelho tem para a vida
América. New England Stained Glass, 2011.
humana na sua totalidade.

61 A comunidade de crentes em cristo


- 2.2. A igreja ao serviço da humar a ç ã o do mundc

Estando ao serviço do Evangelho de Jesus, a missão específica da Igreja é de ordem reli-


giosa, isto é, tem a ver com a salvação da humanidade, com a realização plena do viver humano
pessoal e coletivo, iniciado já nos limites e condições frágeis desta história, mas a ser consu-
mado no encontro definitivo com Deus. No entanto, na convicção crente, essa missão espe-
cífica de ordem religiosa representa um contributo de enorme significado para a humani-
dade dos seres humanos e para a humanização deste mundo. Goudium et Spes lembra isso
mesmo:

Tf

"Aparecerá então mais claramente que o Povo de Deus e o género humano, no qual aquele está
inserido, se prestam mútuo serviço; manifestar-se-á assim o caráter religioso e, por isso mesmo,
profundamente humano da missão da Igreja".
Goudium et Spes, 11.

Educação Morai e Religiosa católica 62


Ao acentuar-se o caráter religioso da missão da Igreja está a dizer-se que a Igreja não tem,
própria e diretamente, uma missão de ordem social, cultural, económica ou política. A Igreja
não tem nem pode ter, como é óbvio, a mesma missão que o Estado, um partido político, uma
organização social. Mas quer-se dizer também que o específico da missão da Igreja não se
esgota no aspeto, pura e formalmente, "religioso" (entendido como um setor delimitado do viver
humano, ligado a determinadas práticas cultuais). Na sua conceção autêntica, a fé cristã e a
missão da Igreja que a suporta e realiza têm que ver com a vida toda da pessoa e das comu-
nidades humanas. Essa missão específica de ordem religiosa não se reduz, pois, à "salva-
ção das almas", mas refere-se à salvação da pessoa toda, na totalidade das suas dimensões
e dos seus relacionamentos como ser histórico. Dito de forma positiva, a missão religiosa da
Igreja pode ser caraterizada como sendo uma missão nuclear de salvação, mas por isso mesmo
essa missão tem repercussões em todos os âmbitos da vida humana. A salvação que a Igreja
é chamada a sinalizar e a testemunhar como núcleo essencial da sua missão, dando expres-
são histórica ao amor misericordioso de Deus, refere-se à salvação como expressão plena
da realidade humana liberta por Deus e, consequentemente, também à tarefa da constru-
ção de um mundo mais livre, mais justo e mais fraterno. [Textos Complementares 17 e 181
A partir desta convicção crente a pergunta que se coloca é a de saber como é que a missão
religiosa da Igreja se pode tornar realmente, em concreto, fonte de humanização. Nesse sen-
tido podem apontar-se algumas indicações fundamentais:

-WEINERIL-

a) A Igreja contribui para a humanização do mundo, testemunhando que o sentido último da


vida (individual e coletivo) depende do acolhimento de Deus e da sua oferta de salvação. A Igreja
apresenta-se aqui como instância de orientação e de oferta de sentido. Por isso, apela à abertura do
ser humano à transcendência; lembra que o ser humano não pode salvar-se a si mesmo nem construir
um mundo verdadeira e plenamente humano simplesmente a partir das suas próprias forças; anuncia e
testemunha que a existência humana é uma resposta (responsabilidade) diante de Deus (e dos outros,
do mundo, da natureza, das gerações futuras); procura ajudar, de diversas formas, a que se possa aceitar
e viver que mesmo a negatividade do sofrimento e da morte não precisam de ser, necessariamente,
total ausência de sentido, lugar de total ausência de esperança. Neste manter viva a questão do sentido
É último da vida e da história, testemunhando existencialmente o que significa a compreensão do homem
à luz da fé, abrindo o seu coração às dificuldades e aos dramas do viver humano, está certamente o
grande serviço à humanização do homem e do mundo que a Igreja pode e deve prestar.

b) Nesta ordem de ideias, o essencial que a Igreja tem a dizer e a testemunhar consiste no anúncio
do amor gratuito e misericordioso de Deus (cf. Christifideles Laici, no 34). O cristianismo nunca pode
ser confundido com uma filosofia mais ou menos complexa, com um conjunto de dogmas de fé ou de
normas de comportamento, com a simples prática de gestos e ritos religiosos enquanto tais. No seu
núcleo essencial a fé cristã representa uma experiência do amor incondicional de Deus e o testemunho
quotidiano desse amor.

11 c) O contributo da Igreja para a humanização deste mundo passa pelo testemunho libertador e
interpelativo dos valores evangélicos. A Igreja sinaliza que esses valores, essas atitudes fundamentais
de vida n o espírito das Bem-aventuranças, podem transformar a pessoa humana e dar-lhe a
possibilidade de uma realização plena da sua existência: o amor a Deus e ao próximo; o dom gratuito
de si; o testemunho do misericórdia e a possibilidade do perdão; a capacidade de ultrapassar barreiras
humanamente inultrapassáveis, como o amor aos inimigos; a dignidade insondável de ser "filho/filha de
Deus", uma dignidade que não pode ser sequer abolida pela religião (cf. Mc 2,27).

- 1 ~ ~ ~ E M E N E

k-4,3 A comunidade de crentes em Cristo


d) Neste contexto importa ressaltar o contributo que é dado pelo testemunho do valor
incondicional da pessoa humana. A Igreja é chamada a afirmar o valor absoluto da pessoa humana
à luz de Deus: isso passa, por exemplo, pela afirmação de uma igual dignidade das pessoas, como
criaturas e imagens de Deus, na diversidade das culturas, das línguas, raças e na diferença de sexos
ou perante novos desafios de ordem ética, etc. Nesse testemunho do valor incondicional da pessoa
humana em todas e quaisquer circunstâncias, a Igreja emerge d e forma não exclusiva, mas muitas
vezes com um caráter verdadeiramente profético c o m o "sinal e salvaguarda da transcendência da
pessoa humana" (GS, no 76).

e) O contributo humanizador da missão religiosa da Igreja passa pela defesa corajosa e constante
dos mais pobres. A Igreja é chamada a ser sinal de uma opção privilegiada pelos mais pobres (nos
II
mais diversos aspetos), e isso como condição de credibilidade do seu anúncio de Deus. Está aqui uma

1
prioridade absoluta para os cristãos, interpelando a sua consciência de fidelidade ao Evangelho, a sua
espiritualidade, o seu compromisso público, a ação pastoral da Igreja, a reflexão teológica e as próprias
opções no governo da Igreja.

f) Com o seu viver a Igreja procura favorecer o sentido do Bem Comum e a afirmação dos

1
fundamentos da convivência humana em sociedade. Trata-se de contribuir para o reconhecimento
coletivo e progressivo das condições de uma convivência humana unida e em fraternidade, o que só
pode acontecer com base num mínimo de valores comuns, de convicções fundamentais aceites por
todos.

g) O contributo dos cristãos e da Igreja passa ainda pela apresentação de propostas de uma
maneira diferente, mais humana de viver, ajudando a construir—de certa forma como consciência
crítica e profética da sociedade—alternativas para as atuais formas de viver humano em sociedade.
Trata-se, assim, de ser testemunha de uma esperança que, indo para além da história, se mostra
significativa para o agir presente. A esperança cristã é força que nos impulsiona a trabalhar corajosa e
II persistentemente a favor de um mundo mais justo e de uma humanidade mais fraterna, na certeza de
que não são vãs as nossas lutas e os nossos esforços e de que permanece na sua validade tudo quanto
de bom formos fazendo nesta terra a favor da construção dum mundo mais de acordo com o plano de
Deus para a humanidade.

Diz Gaudium et Spes:


1
- - M P E L W . 1 1 1 1 1 1 W I F E I N E M • M m f f i l l l

"A expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes ativar a solicitude em ordem
a desenvolver esta terra, onde cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar
uma certa configuração do mundo futuro". E o texto prossegue: "Todos estes bens da dignidade
humana, da comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os
termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a
encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo
entregar ao Pai o reino eterno e universal: 'reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça,
reino de justiça, de amor e de paz' ".
Gaudium et Spes, 39.

Educação Moral e d o s a Católica 64


-

Texto Complementar 14
"Em virtude da sua missão de iluminar o mundo inteiro com a mensagem de Cristo e de reunir sob
um só Espírito todos os homens, de qualquer nação, raça ou cultura, a Igreja constitui um sinal daquela
fraternidade que torna possível e fortalece o diálogo sincero.
Isto exige, em primeiro lugar, que, reconhecendo toda a legítima diversidade, promovamos na própria
Igreja a mútua estima, respeito e concórdia, em ordem a estabelecer entre todos os que formam o
Povo de Deus, pastores ou fiéis, um diálogo cada vez mais fecundo. Porque o que une entre si os fiéis
é bem mais forte do que o que os divide: haja unidade no necessário, liberdade no que é duvidoso, e
em tudo caridade.
Abraçamos também em espírito os irmãos que ainda não vivem em plena comunhão connosco, e as
suas comunidades, com os quais estamos unidos na confissão do Pai, Filho e Espírito Santo, e pelo
vínculo da caridade, lembrados de que a unidade dos cristãos é hoje esperada e desejada mesmo
por muitos que não creem em Cristo. Com efeito, quanto mais esta unidade progredir na verdade e
na caridade, pela poderosa ação do Espírito Santo, tanto mais será para o mundo um presságio de
unidade e de paz. Unamos, pois, as nossas forças e, cada dia mais fiéis ao Evangelho, procuremos, por
modos cada vez mais eficazes para alcançar este fim tão alto, cooperar fraternalmente no serviço da
família humana chamada, em Cristo, a tornar-se a família dos filhos de Deus.
Voltamos também o nosso pensamento para todos os que reconhecem Deus e guardam nas suas
tradições preciosos elementos religiosos e humanos, desejando que um diálogo franco nos leve a
todos a receber com fidelidade os impulsos do Espírito e a segui-los com entusiasmo.
Por nossa parte, o desejo de um tal diálogo, guiado apenas pelo amor, pela verdade e com a necessária
prudência, não exclui ninguém; nem aqueles que cultivam os altos valores do espírito humano, sem
ainda conhecerem o seu autor; nem aqueles que se opõem à Igreja, e de várias maneiras a perseguem.
Como Deus Pai é o princípio e o fim de todos eles, todos somos chamados a ser irmãos. Por isso,
chamados pela mesma vocação humana e divina, podemos e devemos cooperar pacificamente, sem
violência nem engano, na edificação do mundo na verdadeira paz".
Goudium et Spes, 92.

= 1 1 . 1 1 1 1 n 1 ~

Texto Complementar 15
Há aqui um uso analógico (contendo algo de semelhante, mas em maior grau diferente) da palavra
"sacramento". Antes d e mais, a expressão "sacramento" utiliza-se e m relação a Cristo c o m o
sacramento original, primordial, da salvação. Utiliza-se, depois, em relação à Igreja como sacramento
fundamental. A Igreja é a representação, a manifestação visível da presença ativa e em mistério de
Cristo; ela é o símbolo real, o sacramento fundamental da automunicação gratuita de Deus ao homem
e ao mundo em Jesus Cristo, e cada sacramento é um aspeto dessa manifestação. Finalmente, no
uso aliás mais comum, a palavra utiliza-se referida aos sete sacramentos como sinais atualizadores
da graça e da presença de Jesus, dom do Pai, pela ação do Espírito, celebrados na Igreja, comunhão
de batizados. Esta consciência do uso analógico da expressão ajuda a compreender que não há lugar
para aplicar a Cristo e à Igreja como "sacramentos" todos os traços que se verificam em concreto nos
sete sacramentos.

65 I A Comunidade de Crentes em Cristo

1
ar
Texto Complementar 16 1 1 1 1 1 1 1 1 . 1 1 . 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 . 1 1 . 1 1
"A universalidade da salvação em Cristo não significa que ela se destina apenas àqueles que, de
maneira explícita, creem em Cristo e entraram na Igreja. Se é destinada a todos a salvação deve ser
posta concretamente à disposição de todos. É evidente, porém, que, hoje como no passado, muitos
homens não têm a possibilidade de conhecer ou aceitar a revelação do Evangelho, e de entrar na Igreja.
Vivem em condições sacio culturais que o não permitem, e frequentemente foram educados noutras
tradições religiosas. Para eles, a salvação de Cristo torna-se acessível em virtude de uma graça que,
embora dotada de uma misteriosa relação com a Igreja, todavia não os introduz formalmente nela,
mas ilumina suficientemente a sua situação interior e ambiental. Esta graça provém de Cristo, é fruto
do Seu sacrifício e é comunidade pelo Espírito Santo: ela permite a cada um alcançar a salvação com
a sua livre colaboração".
Redemptoris Missio, 10.

Iffir i ' M E E I
Texto Complementar 17
"Certamente, a missão própria confiada
por Cristo à sua Igreja não é de ordem
política, económica ou social: o fim que
lhe propôs é, com efeito, de ordem reli-
giosa. Mas dessa mesma missão reli- á
giosa deriva um encargo, uma luz e uma
energia que podem servir para o esta-
belecimento e consolidação da comu-
nidade humana segundo a lei divina. E
também, quando for necessário, tendo
em conta a s circunstâncias d e tempo
e lugares, pode ela própria, e até deve,
suscitar obras destinadas ao serviço de
todos, sobretudo dos pobres, tais como
obras caritativas e outras semelhantes"
Goudium et Spes, no 42; cf. ainda GS, no 40;
Evongelii Nuntiondi, n " 18 e 31; Redemptoris Missio, n " 11;
C o t o s in Veritote, no 11; A p o s t o u = Actuositotem, n " 2 e 5.

OTexto
r " Complementar
i l l i l l . 18
"Com a mensagem evangélica, a Igreja
oferece u m a força libertadora e cria-
dora d e desenvolvimento, exatamente
porque leva à conversão do coração e
da mentalidade, faz reconhecer a digni-
dade de cada pessoa, predispõe à soli-
dariedade, ao compromisso e ao serviço
dos irmãos, insere o homem no projecto
de Deus, que é a construção do Reino de
paz e de justiça, já a partir desta vida". «A Primeira Comunhão». Pablo Picasso pintou, em 1896, um momento da euca-
Redemptoris Missio, 59. ristia em que a sua irmã Lola comungou pela primeira vez. Picasso tinha, então,
quinze anos. A obra encontra-se no Museu Picasso, em Barcelona.

Educação Moral e Religiosa Católica


1

7. "Creio na Igreja una, santa, católica


e apos4-5Iíca"

. 111 = M I L
«Regresso do Batizado», Hubert Salentin (Alemanha, 1822-1910), Vistoria and Albert Museum, Londres.

sc o e x . J 0 - ,
r úcl(
Desde os primeiros tempos, e sobretudo em relação com a celebração do batismo, os discípu-
los de Jesus procuraram expressar e transmitir o essencial da sua fé em fórmulas breves, com
valor normativo para a comunidade dos crentes:

67 1 A Comunidade de Crentes em Cristo


"A comunhão na fé tem necessidade duma linguagem comum da fé, normativa para todos e a todos
unindo na mesma confissão de fé".
Catecismo da Igreja Católica, n. 185.

Estas "profissões de fé" (a fé que os cristãos


professam), "símbolos da fé"14 (expressões que
exprimem a identidade dos crentes e criam liga-
ção entre eles) ou "Credos" (aquilo que cada
cristão e todos acreditam em comum) surgiram
em diversos contextos históricos até aos nos-
sos dias (por exemplo, o Credo do Povo de Deus
de Paulo VI, em 1968). Mas dois Credos — pela
sua antiguidade e força expressiva como síntese
da fé — adquiriram e mantêm particular signifi-
cado: o Símbolo dos Apóstolos (o antigo sím-
bolo batismal da Igreja de Roma, considerado
o resumo fiel da fé dos apóstolos) e o Símbolo
de Nicela-Constantinoplo (proveniente d o s
dois primeiros Concílios ecuménicos N i c e i a ,
em 325, e Constantinopla, em 381 —, símbolo No final da celebração da Profissão de Fé, Paróquia de S. Miguel, Quejas, Patriar-
cado de Lisboa.
ainda hoje comum a todas as grandes Igrejas
do Oriente e do Ocidente e, de um modo geral, 14Cf., para todo este ponto dos símbolos da fé, CIC 185-196.
a todas as Comunidades eclesiais que se desig-
nam como cristãs). [Texto Complementar 19]
Olhando mais de perto para estes Símbolos, verifica-se que a expressão fundamental da fé, 1
enquanto sentido e projeto de vida ã luz da revelação de Deus em Jesus Cristo e na força
do seu Espírito, se articula num "Credo trinitário", a partir de uma história de salvação em
que se manifesta o que Deus fez por nós (economia da salvação) e, assim também, quem Deus,
no seu Mistério, é para nós. Há, por conseguinte, nestas expressões sintéticas da fé da Igreja
um claro enraizamento histórico: o Credo cristão não é um credo abstrato, feito de verda-
des teóricas, é um "Credo histórico", isto é, fala de acontecimentos na nossa história em
que emergiu o agir salvífico de Deus.
Essa experiência reflexa de um agir salvífico de Deus acontece já na história do Povo de Deus
do Antigo Testamento (cf. Dt 26,5-10). Algo de similar acontece no início dos Atos dos Apóstolos,
quando Pedro proclama o que Deus fez em Jesus e o significado que isso tem para a nossa sal-
vação (cf. At 2,22-24.32 s.). Do mesmo modo, o Credo formulado pela Igreja primitiva — é exem-
plar nesse aspeto, até por ser mais sintético, o Símbolo dos Apóstolos - mantém essa estru-
tura nuclear histórica: 1
1

"Creio em Deus Pai todo poderoso, Criador do Céu e da Terra. E em Jesus Cristo, seu único Filho,
Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu
sob Pdricio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao
terceiro dia, subiu aos Céus, está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso, donde há de vir julgar
os vivos e os mortos. Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja católica, na comunhão dos santos, na
remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna".

Falamos de Deus, pois, a partir da experiência da sua própria autocomunicação numa


história de salvação, de uma relação fiei, misericordiosa e salvífica que culminou em Jesus
Cristo, a "imagem do Deus invisível" (Cl 1,15; cf. Jo 1,18) e que continua no dom e pela ação do
seu Espírito como interpelação renovadora e atualização santificadora no coração das pes-
soas, na vida da Igreja e na história do mundo. Enraizada em experiências humanas vividas em
circunstâncias concretas da história, o núcleo da fé cristã concentra-se nos acontecimen-
tos pascais (morte e ressurreição de Jesus), que permitem reconhecer quem é, em definitivo,
a pessoa de Jesus e o Mistério de Deus que nele se revela e que continua atuante na força do

Educação Moral e Religiosa Católica


E

Espírito Santo. Estamos assim diante da estrutura essencialmente trinitária do Credo. Tendo em
conta essa estrutura trinitária, podemos sublinhar em termos confessionais (de conteúdo da
confissão de fé) como elementos nucleares, essenciais, os seguintes:
a) Cremos em Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo e que na sua dedicação amorosa
à humanidade se manifestou de forma plena e definitiva no Filho, Jesus de Nazaré. Quando
dizem acreditar em Deus Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra, os cristãos não falam
de um Deus distante e separado do mundo e da sua vida, por mais transcendente que Ele seja
face à realidade do mundo e à nossa condição de criaturas, mas do Mistério d'Aquele que
como Criador e Salvador é o fundamento primeiro da nossa vida, um Deus que se mani-
festa nos acontecimentos da história e que se revela num agir iluminado pela sua Palavra.
Em Jesus, Deus é verdadeira e definitivamente o Deus connosco, um "Deus humaníssimo"
(E. Schillebeeckx), um Deus que nos quer definitivamente como "filhos no Filho" (cf. Rm 8,14-17).
b) A fé não é um acreditar vago, geral, em determinados conteúdos, mas, antes de mais, ade-
são a uma Pessoa, Jesus Cristo como revelação do amor definitivo e salvador do Deus Uno
e Trino:

"Nós cremos no amor de Deus - deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamentai da sua
vida. No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um
acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo".
Bento XVI, Deus Caritos Est, 1.

Assim, os cristãos não só falam de um "Deus pessoal", mas percebem que o seu falar de Deus
tem que ver decisivamente com uma história de relação, com a descoberta e o acolhimento de
Alguém que instaura uma relação dialógica connosco na história que vivemos, a nível pessoal e
comunitário, um Deus a quem Jesus chama "Pai".
c) Para entendermos e expressarmos melhor quem é verdadeiramente Deus no seu Mistério e
qual é o sentido do viver humano à luz da fé temos de ir ao Evangelho de Jesus, que nos indica
como determinante a relação indissolúvel entre o amor a Deus e ao próximo. O autêntico amor
a Deus não pode realizar-se à margem do concreto amor ao próximo (cf. 1 Jo 4,19-21). Passa
por aqui p o r fazer a vontade de Deus na atenção dedicada ao outro — o caminho decisivo da
salvação como dom de Deus e realização de vida humana feliz.
d) Acreditamos que Deus é Pai e Criador de todos os homens e mulheres que vieram e vêm
a este mundo. O Deus em que os cristãos acreditam não é realidade exclusiva deles, mas um
Deus que, no seu Mistério de Amor, abraça toda a humanidade e se dirige a ela. Na força do
Espírito de Jesus (e do Pai) é possível a todo o ser humano entrar em relação autêntica, no aco-
lhimento do sentido mais profundo do seu viver e do seu morrer, com o Mistério que nós cha-
mamos Deus (cf. OS, no 22).
e) Dentro da estrutura trinitária já assinalada, a terceira parte do Credo afirma especifica-
mente a nossa fé nos frutos da ação renovadora e transformadora do Espírito Santo no
mundo e no coração das pessoas, com horizontes de eternidade. A Igreja é posta em rela-
ção com o Espírito Santo e sua ação na história, do mesmo modo que o batismo, o perdão dos
pecados e a ressurreição dos mortos. Tem-se em vista o acontecimento de vida que é a ação
do Espírito Santo em todas as suas consequências.
f) Na formulação do Credo Niceno-Constantinopolitano (381) professamos, neste contexto, a
nossa fé na Igreja una, santa, católica e apostólica. Trata-se de uma das maneiras mais den-
sas de falar do mistério da Igreja. Nestas quatro "notas" da Igreja emergem aquelas caracterís-
ticas ou dimensões da Igreja, nas quais se manifesta a relação estrutural da Igreja com o misté-
rio de Cristo que está na sua origem e a sustenta. Por isso mesmo, elas constituem realidades
intimamente unidas entre si e interdependentes. Por outro lado, estas dimensões aparecem,
simultaneamente, como dom ligado ao próprio acontecimento da Igreja enquanto fruto do
agir salvífico de Deus e como tarefa a cumprir ao longo da história em termos de fidelidade
na existência dos crentes e no modo como a Igreja no seu conjunto se estrutura e procura
viver. São, assim, realidades simultaneamente presentes e, ao mesmo tempo, sempre também
objeto de esperança escatológica no que se refere à plenitude da sua realização15.

15Cf. CIO 811-870.

69 A Comunidade de Crentes em Cristo


- — -

7.2. A unidade da igreja como dom e tarefa


7.2.1. A compreensão católica da unidade da

A confissão de fé na Igreja una afirma nuclearmente que há uma só


Igreja de Jesus Cristo, e isto como pressuposto óbvio, só indireta-
mente refletido nos textos do Novo Testamento face a concretos pro-
blemas de ameaças de divisões nas comunidades primitivas. Mesmo
assim, lê-se em Ef. 4,4-6:

Habemus Papam: 13 de março de 2012, o recém


nomeado Papa Francisco assoma à Loggia do Palá-
cio Apostólico, onde é aguardado p o r milhares
de fiéis do mundo inteiro. O Arcebispo de Buenos
Aires, Argentina. Jorge Mario Bergoglio vem «do fim
do mundo» para assumir a liderança da Igreja cató-
lica sob o nome de S. Francisco de Assis.

Esta convicção de fé de que há uma só Igreja de Jesus Cristo é-nos


indicada desde logo também pelas principais figuras da Igreja: Povo de Deus, Corpo de Cristo,
Templo do Espírito. O motivo mais profundo da unidade e da unicidade da Igreja reside, pois, no
próprio Mistério de Deus, na fé em Jesus Cristo como único Mediador e Salvador, no reconhe-
cimento da ação do único Espírito.
Nesta ordem de ideias, a fé católica professa a unidade e a unicidade da Igreja, vendo nela
o "lugar" do encontro com Jesus Cristo, que é o caminho, a verdade e a vida na busca humana de
abertura ao verdadeiro Deus. Assim, é convicção católica que, apesar das divisões ocorridas
ao longo dos séculos, a unidade da Igreja nunca se perdeu completamente, ao ponto de não
existir mais ou não ser percetível na história. Pelo contrário: a Igreja de Cristo existe e é identi-
ficável nesta história, eia não se compreende como uma realidade que é meramente objeto de
desejo e de procura por parte das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais atualmente existen-
tes e divididas. Um dos princípios católicos do ecumenismo, enunciado pelo Concílio Vaticano II,
é precisamente que a unidade concedida por Cristo à sua igreja é algo que nunca pode perder-
-se, pois subsiste na Igreja Católica:

"Esta unidade, desde o início Cristo a concedeu à sua Igreja. Nós cremos que esta unidade subsiste
inamissível na Igreja católica e esperamos que cresça de dia para dia até à consumação dos séculos".
Unitatis Redintegratio, 4.

A unidade da Igreja é vista, pois, como dom irrevogável que permanece apesar da e para além
da realidade das divisões cristãs, dom ligado ao caráter definitivo do acontecimento Jesus
Cristo e ao significado que a Igreja tem nesse acontecimento.
Isso não quer dizer que a divisão dos cristãos não questione a consciência católica e não afete
a sua vivência da unidade (cf. UR, nos 3 e 7). Essa divisão constitui mesmo uma "ferida" que afeta
a plenitude da universalidade que a igreja católica crê possuir e que é chamada a viver e a tes-
temunhar. Trata-se, no entanto, de uma "ferida", não no sentido de que ela esteja privada
completamente da sua unidade, mas de uma realidade que constitui obstáculo para a rea-
lização plena da sua catolicidade. Por isso, a partir desta identificação substancial entre Igreja
de Jesus Cristo e Igreja católica, a Igreja católica nunca se compreendeu teologicamente como
uma "Confissão" cristã entre outras, antes entende-se a si própria como sujeito histórico con-
creto da Igreja de Jesus Cristo.
Naturalmente que esta autoconsciência católica de ser a verdadeira Igreja de Jesus
Cristo nas circunstâncias da história não é uma afirmação exclusiva sua. Com a mesma
intensidade isso acontece, por exemplo, por parte das Igrejas ortodoxas. E mesmo nas outras
Comunidades eclesiais, por mais que esta questão possa ser enquadrada num horizonte de

Educação Moral e Religiosa católica


E

compreensão algo diferente (ou seja, a acentuação da legítima pluralidade de diversas Igrejas e
Comunidades eclesiais a partir do próprio testemunho do Novo Testamento), há certamente a
convicção, pessoal e comunitária, de se estar a seguir o caminho mais adequado em termos de
verdade e de fidelidade ao Evangelho.
É preciso admitir, pois, que há neste aspeto elementos subjetivos da experiência pessoal
na vivência da fé. Isso é, a questão da verdadeira Igreja não é totalmente dirimível à margem da
própria confissão de fé e da consumação escatológica dessa mesma fé, Há aqui uma preten-
são que precisa de ser bem entendida: uma vez que, nesta matéria, entra sempre um elemento
subjetivo da experiência e história pessoais de vida eclesial e da confissão de fé, a convicção de
que na Igreja a que pertencemos se encontra a verdadeira Igreja que Deus quis realizada nesta
nossa história não é exclusiva da Igreja católica.

/- r P f r Concíli( 1 terrnoF
Sem pôr em causa a convicção católica acabada de referir o u seja, a consciência de uma
identidade substancial entre Igreja de Jesus Cristo e Igreja católica -, o Concílio Vaticano II
trouxe aqui uma nova perspetiva, ao afirmar, em LG, no 8, que a Igreja de Cristo "subsiste" na
Igreja católica:

"Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como


sociedade, é na Igreja católica que se encontra [subsistit
in Ecclesia catholica — subsiste, está presente na Igreja
católica], governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos
em união c o m ele, embora, fora d a s u a estrutura, s e
encontrem muitos elementos de santificação e de verdade,
que, p o r serem d o n s pertencentes à Igreja d e Cristo,
impelem para a unidade católica".
O Papa João XXIII recebe em audiência o s 39
Lumen Gentium, 8.
peritos observadores não católicos d o Concílio
Ecuménico Vaticano II, 11 de outubro de 1962.

De facto, uma versão primeira do texto da Lumen Gentium repetia, sem mais, a posição tradi-
cional, colocando "est" (a Igreja de Cristo "é" a Igreja católica) onde na redação final se lê agora
"subsistit" (a Igreja de Cristo "subsiste", "encontra-se" na Igreja católica). Com esta formula-
ção o Concílio procurou superar uma identificação pura e simples, exclusiva, entre Igreja
de Jesus Cristo e Igreja católica (romana). A reafirmação da unidade de princípio entre a
Igreja de Jesus Cristo e a Igreja católica permanece, mas esta convicção não impede o
simultâneo reconhecimento dos valores de eclesialidade presentes nas outras Igrejas e
Comunidades eclesiais. A mudança na formulação foi precisamente justificada com a neces-
sidade de fazer concordar a afirmação da identidade entre a Igreja de Cristo e a Igreja católica
com a existência, fora da sua estrutura, de elementos eclesiais de santificação e de verdade nas
Igrejas e Comunidades cristãs separadas.
O Concílio reafirmou, assim, a convicção do papel singular da Igreja católica, mas superou
uma visão que excluía toda a eclesialidade fora do seu espaço. Tornou, assim, plausível em ter-
mos redacionais, a convicção tradicional católica (identidade substancial entre Igreja de Cristo
e Igreja católica) com a existência, fora dela, de muitos bens e riquezas da vida cristã e ecle-
siai. Tratou-se, pois, de reconhecer a presença, nas Igrejas e Comunidades cristãs não católi-
cas, de elementos eciesiais próprios da Igreja de Cristo, pelo que — como se veio a exprimir pos-
teriormente a Ut Unum Sint, no 13 — fora da Igreja católica não existe o "vazio eclesial" (cf. ainda
UUS, no 11).
A mudança de visão aqui sinalizada tem sido objeto de uma difícil receção dentro da
Igreja católica, pois há aqui um verdadeiro desenvolvimento dogmático, ainda que em con-
tinuidade com a doutrina precedente: a convicção católica não é abandonada, mas adro-
fundada à luz de novos dados, redimensionada, expressa de uma forma mais complexa, mas
também mais precisa, justa e verdadeira no que respeita à compreensão da eclesialidade das
Comunidades cristãs separadas. Com esta fórmula, o Concílio quis dizer que só na Igreja
católica a Igreja de Cristo continua a existir, em plenitude:

71 A comunidade de crentes em cristo


"com todas aquelas propriedades e aqueles elementos
estruturais que não pode perder". Mas, ao mesmo tempo,
"reconheceu que, fora da Igreja católica, não há simplesmente
'elementos eciesiais' dispersos, mas 'Igrejas particulares',
nas quais se constrói a Igreja de Deus graças à celebração
da eucaristia, e há também Comunidades eclesiais que são
análogas às Igrejas particulares católicas, enquanto que
a única Igreja de Cristo está d e algum modo presente e
operante nelas para a salvação dos seus membros". «Missa do Galo», cena popular em postal comemo-
F. SULLIVAN, "El significado y Ia importancia dei Vaticano II de decir, a propósito de ia rativo do Natal, Portugal. Coleção Ano Português
Iglesia de Cristo, no "que ella es", sino que ella "subsiste en" ia iglesia católica romana", (dezembro), do ilustrador Alfredo de Moraes (Por-
in R. LATOURELLE (ed.), Vaticano b a l a n c e y perspectivas. Veinticinco ados después tugal, 1872-1971).
(1962-1987), Salamanca 1987, p. 607.

A Encíclica Ut unum sint formula assim esta perspetiva:

obe,
"Os elementos d e s t a Igreja, j á presente, existem,
incorporados na sua plenitude, na Igreja católica e, sem tal
plenitude, nas outras Comunidades, onde certos aspetos
do mistério cristão têm sido, por vezes, mais eficazmente
manifestados".
unum sint, 14.

Está claro, pois, que a pretensão de plenitude por parte da Igreja


católica s e refere s ó à dimensão sacramental-institucional (aos
meios de salvação, particularmente a nível dos sacramentos e dos
ministérios) da vida da Igreja: não representa uma qualquer reivindica-
ção de monopólio da salvação, nem está aqui em causa o acolhimento
efetivo do dom da salvação na vida de cada um dos crentes. Pelo con-
trário, não se exclui a existência, fora das estruturas visíveis da
Igreja católica, de cristãos que procuram ser fiéis ao Evangelho,
antes reconhece-se também a ação do Espírito Santo e a exis-
tência de frutos de santidade nas outras Igrejas e Comunidades
eclesiais (cf. UR, no 3). De facto, pelos próprios limites e pecados dos ,
cristãos católicos, alguns aspetos constitutivos do ser Igreja podem Peregrinação, Diocese de Aveiro.
realizar-se em maior fidelidade evangélica noutros cristãos e noutras
Igrejas e Comunidades eclesiais.
Na consciência de tudo isto e do questionamento da verdade e da
credibilidade da Igreja que a divisão dos cristãos inevitavelmente traz
consigo, a Igreja católica tem reafirmado desde o Concílio Vaticano
—através de palavras e gestos dos diversos Papas e de muitas outras
iniciativas oficiais - que a tarefa ecuménica, a busca da unidade visí-
vel da Igreja é uma opção prioritária e irreversível. Mas o debate
ecuménico acerca do que é exigido para a unidade da Igreja que é pos-
sível realizar na história — e isso a nível de confissão de fé, de realida-
des sacramentais e ministeriais, de estruturas da Igreja — prossegue
com grandes dificuldades.
O caminho percorrido até agora, apesar de todos os limites e obstácu-
los, assinala avanços significativos nos últimos 50 anos. O diálogo teo-
lógico da Igreja católica com as diversas Igrejas e Comunidades ecle- Festas de Nossa Senhora da Agonia, Viana do Cas-
telo, Cartaz de 1994.
siais tem dado frutos assinaláveis, ainda que careçam de uma ampla
receção tanto por parte das autoridades eclesiais como dos fiéis das
diversas Confissões. É importante sublinhar também que, da parte da
Igreja católica, se abandonou uma visão uniformista e absolutista da

Educação Moral e Religiosa Católica 72


unidade da Igreja (no fim de contas, um simples "regresso a Roma"), para se falar de uma "uni-
dade na diversidade" (cf. UUS, nos 50, 54, 55, 56, 60, 61; cf. também UR, n°s 17) e da "unidade
necessária e suficiente" (cf. At 15,28, UR, n°s 4 e 18) que importa concretizar em fidelidade
básica ao Evangelho e à tradição original e vinculativa de testemunho do mesmo Evangelho.

Comunidade Ecuménica de Taizé, França.

«Penso que, desde a minha juventude, nunca perdi a intuição de que uma vida em comunidade pode ser um sinal dg que Deus é amor; só amor.
Pouco a pouco crescia em mim a convicção de que era essencial criar uma comunidade de homens decididos a dar toda a sua vida, e que procu-
rassem sempre compreender-se mutuamente e reconciliar-se: uma comunidade onde a bondade do coração e a simplicidade estivessem no cen-
tro de tudo.» Irmão Roger, Deus só pode amar, pág. 40.

Igualmente são de assinalar os progressos ecuménicos globais havidos nas últimas déca-
das no sentido de se pensar inequivocamente a unidade futura da igreja como uma uni-
dade visível que se tem de expressar em elementos doutrinais e institucionais básicos reco-
nhecidos e vividos em comum, ou seja, uma unidade na mesma fé, no reconhecimento mútuo
de ministérios, na celebração comum da eucaristia, no serviço fraterno que decorre das
exigências do Evangelho. Mas nunca se pode esquecer que a unidade da Igreja nas circuns-
tâncias deste mundo e como tarefa concreta vivida por pessoas e comunidades é um processo
histórico e uma grandeza diversificada e cheia de tensões, no qual a ação do Espírito emerge
no meio dos limites e falhas, avanços e retrocessos, buscas de fidelidade e infidelidades, por
parte dos crentes.

À comunidade de crentes em cristo


7.3. Santidade da igreja e pecado na igreja
-ntidade co d ável de DE sua Igreja
A afirmação crente da santidade da Igreja radica nos frutos da ação do Espírito Santo e cons-
titui, desde os primeiros séculos, um dos dados basilares da visão da Igreja, sublinhada de novo
pelo Concílio Vaticano II:

• 1 1 . 1 1 1 1 1 5 • . 1 ~ 11
"A nossa fé crê que a Igreja, cujo mistério o sagrado Concílio expõe, é indefetivelmente santa."
Lumen Gentium, 39.

Santidade" é o mais antigo predicado da Igreja t e s t e m u n h a d o em Inácio de Antioquia,


Pastor de Hermas, Hipólito de Roma e nos símbolos batismais d o mesmo modo que, como já
foi referido, uma das designações primeiras dos cristãos foi precisamente a denominação "os
santos" (ou "santificados"). Estamos a falar, pois, de uma realidade que diz algo de muito impor-
tante sobre a identidade da Igreja.
De facto, a afirmação do Credo na "santa Igreja" quer dizer, fundamentalmente, que a Igreja
é santa e que os cristãos são santos por obra de Deus, enquanto santificados pelo amor
de Deus que os escolheu para uma missão. Santidade é, por isso mesmo e antes de mais, uma
afirmação sobre a realidade de Deus e sua ação numa história de salvação: a Igreja é santa pela
eleição de graça e pela fidelidade de Deus, que constitui a Igreja em nação santa e povo seu
(1 Pe 2,9), pela obra redentora de Cristo que se entregou por ela (Jo 17,19; Ef 5,25), pela ação do
Espírito Santo que habita os fiéis como num templo e os santifica e capacita com os seus dons
(1 Cor 3,16; 6,11.19; Rm 15,16; 1 Cor 12; Ef 4,11 s.; GI 5,22).

"Na medida em que a santidade da Igreja se enraíza em permanência na santidade do Deus Uno e
Trino - assinala um texto do diálogo católico-luterano -, nós confessamos em conjunto que a Igreja é
indestrutível na sua santidade".
COMMISSION INTERNATIONALE CATHOLIQUE-LUTHÉRIENNE, "Eglise et justification. La compréhension de l'Église à la lumière de la doctrine de la
justification — 1993", in La Documentation Catholique 2101 (1994) no 149, p. 833.

Na afirmação da santidade da Igreja prevalece,


pois, a sua dimensão objetivo: a Igreja é santa
naquilo que a constitui estruturalmente, como
resultado da revelação de Deus, da sua iniciativa
salvadora culminada no acontecimento Jesus Cristo
e no dom do seu Espírito. Trata-se de uma santi-
dade percetível nos frutos desse acontecimento: a
Palavra de Deus escrita e proclamada, o depósito
da fé, os sacramentos, os ministérios, etc. Nessa
mesma ordem de ideias, a santidade da Igreja radica
e manifesta-se na indissolubilidade da sua ligação
a Jesus Cristo, com todas as consequências que
daí decorrem: por dom de Deus a Igreja é indefe-
tível (ela permanece estruturalmente fiel à sua rea-
lidade original segundo o plano de Deus, não sendo
destruída pelo pecado e pela maldade humanos) e
é infalível (ela não pode errar naquilo que é o fun-
damental do Evangelho, mas permanece essencial- -
mente fiel à verdade e ao dom da salvação que deve Celebração «Rezar com os Pastorinhos» para as crianças da Catequese da
testemunhar e realizar). Infância, diocese de Évora.

Educação Moral e Religiosa c a t ó l i c a


Mas a santidade da Igreja tem, obviamente, também uma dimensão subjetiva, ela traduz-se e
frutifica na apropriação por parte dos crentes dos dons de Deus. A Igreja é também Igreja dos
santos, ela produz, suporta e continua a gerar santos no seu seio. Isso mesmo é uma realidade
verificável ao longo de dois mil anos de história da Igreja e na vida de muitos crentes nos dias
de hoje, apesar de todas as fragilidades e pecados que os afetam. A afirmação crente de que a
Igreja é santa lembra, por isso e de modo particular, a chamada de todos os crentes à santi-
dade como dado basilar para o entendimento da existência cristã e seu processo de maturação,
na busca de seguimento de Jesus (cf. LG, Cap. V e a Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte,
no 30). Esta chamada universal à santidade ultrapassa, aliás, as fronteiras da Igreja católica,
pelo que importa também acolher e reconhecer os frutos de santidade existentes nas outras
Igrejas e Comunidades eclesiais e seu significado ecuménico na busca da unidade da Igreja.

7.3.2. O pec J na s e j a s q u ê
Reafirmando embora sem qualquer reserva a fé na santidade da Igreja, o Concílio Vaticano
mostrou-se, no entanto, mais consciente de que, na situação de peregrinação que a Igreja vive
a caminho da eternidade, a santidade é sempre uma santidade "imperfeita". Lê-se em Lumen
Gentium, no 48:

"Enquanto não se estabelecem os novos céus e a nova terra em que habita a justiça (cf. 2 Pe 3,13),
a Igreja peregrina, nos seus sacramentos e nas suas instituições, que pertencem à presente ordem
temporal, leva a imagem passageira deste mundo e vive no meio das criaturas que gemem e sofrem
as dores de parto, esperando a manifestação dos filhos de Deus (cf. Rm 8,19-22)".

Mais ainda, reconheceu que a Igreja, contendo pecadores no seu seio, "simultaneamente
santa e sempre necessitada de purificação, exercito continuamente o penitência e a renovação"
(LG, no 8). O Concílio sublinhou, consequentemente, que a Igreja peregrina é chamada por Cristo
a uma "reforma perene":

'MEM
"Toda a renovação da Igreja consiste essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação.
Esta é, sem dúvida, a razão do movimento para a unidade. A Igreja peregrina é chamada por Cristo
a essa reforma perene [perennis reformatio]. Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita
perpetuamente desta reforma"
Unitotis Redintegrotio, 6.

É assim claro que falar da santidade da Igreja não é negar a existência de infidelidades e
de pecado no seu seio. A afirmação da fé não consiste em proclamar de forma "idealista" que
a Igreja é santa, alheando-se da facticidade histórica e dos dados empíricos quotidianos, mas
engloba, com realismo, o reconhecimento de que ela é ao mesmo tempo Igreja constituída por
pessoas pecadoras. Essa tensão dialética entre a santidade como dom vivido na fragilidade
de pessoas livres e nem sempre fiéis traduziu-se na expressão "Igreja santa dos pecadores"
(K. Rahner). É uma expressão que tenta manter a presença simultânea dos dois elementos (san-
tidade e pecado na Igreja), ainda que não estejam situados exatamente ao mesmo nível (há sem-
pre a prioridade do agir santificador de Deus sobre a ação pecadora dos seres humanos).
Sem deixar de ter presente esta prioridade, na receção do Concílio e num processo de ama-
durecimento da fé em termos de consciência histórica, tem vindo a verificar-se uma perceção e
uma sensibilidade mais apuradas para o facto de que a realidade da Igreja, sendo fruto da ação
de Deus e da liberdade humana, constituída por autênticos "santos" mas também por pessoas
pecadoras, não pode ser absolutizada nos seus elementos institucionais, nas suas realizações
práticas, na globalidade dos comportamentos dos seus membros, mesmo dos que exercem fun-
ções de maior responsabilidade. Antes, tudo nela está sujeito à "reserva escatológica" (ao juízo
definitivo de Deus) que abarca todo o existir crente, individual e comunitário. Nessa linha têm
surgido afirmações do magistério que chamam a atenção para as falhas e pecados cometidos
pelos membros da Igreja ao longo da história, com consequências que marcam profundamente
a Igreja e perduram no tempo (cf., por exemplo, a Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente,

Comunidade de Crentes err


nc's 34 e 35, ou a Encíclica Ut Unum Sint, no 34). Particularmente signifi-


cativos têm sido os diversos pedidos de perdão por parte dos Papas
nas últimas décadas, desde Paulo VI ao Papa Francisco. São gestos
que sinalizam uma atitude de veracidade, um esforço de autenticidade,
uma consciência crente realista do que a vivência do mistério da Igreja
na história significa.
Nesta consciência, a reflexão teológica mais recente, na atenção aos
acontecimentos da vida real e também desperta pelo diálogo ecumé-
nico com as Igrejas e Comunidades eclesiais do Ocidente, fala mesmo
de "Igreja santa e pecadora". Com isso, mais uma vez, não se está
a faiar de duas dimensões iguais ou equivalentes. Pretende-se, sim,
sublinhar, com todo o realismo e verdade, que o pecado dos mem-
bros da Igreja afeta a própria Igreja: na sua credibilidade, na auto-
ridade com que fala, no testemunho da santidade de Deus que dela
brota (ou não!). Mais ainda: reconhece-se que também na igreja, e
como fruto dos pecados pessoais ao longo dos tempos e nos nossos
dias, há "pecados estruturais", isto é, realidades de pecado que nos
condicionam, que afetam o rosto da Igreja e que não somos capazes
de superar de forma linear e efetiva (por exemplo, o problema da divi-
são dos cristãos). Com isso acentua-se de modo incisivo que o "indica-
tivo" da santidade concedida gratuitamente por Deus anda associado
ao "imperativo" constante do apelo à santidade (1 I s 4,3-7; 2 Cor 7,1)
e que a Igreja tem constantemente necessidade de penitência, de
purificação e de renovação.

da Igreja corno

7.4.1. Cat' ' e seu F.l o


A expressão "católica", referida à Igreja, n ã o aparece n o Novo
Testamento, mas encontramo-la já em Inácio de Antioquia (morto por
volta do ano 110) para designar a Igreja inteira, em diferenciação das
Igrejas locais episcopais, e na obra "Mortyrium Policorpi" (do ano 156).
No uso da palavra não se tem em vista apenas a universalidade geo-
gráfica, mas também a plenitude de verdade e de salvação que
brota da ação redentora de Jesus Cristo, testemunhada na vida da
comunidade eclesial. Ainda que progressivamente, em particular no
confronto com as seitas e as heresias, se apele ao significado rele-
vante de a Igreja ser uma realidade com uma extensão geográfica "uni-
versal" (dentro dos parâmetros de então) frente a comunidades mais
delimitadas localmente, prevalece de um modo geral o sentido pri-
meiro e mais denso, que vê "Igreja católica" como expressão sinó-
nima de Igreja "verdadeira", "ortodoxa", "completa", "íntegra", na
qual se manifesta a plenitude de graça e de verdade que nos foi dada
em Jesus Cristo.
Nesta ordem de ideias, no uso sucessivo da expressão, ainda que
não se deixe de valorizar a dimensão "quantitativa" do conceito (seja
em termos geográficos, históricos, numéricos ou sociológicos), ao
ponto de os dois aspetos aparecerem frequentemente unidos, perce-
be-se como determinante o "sentido qualitativo" da palavra. Isto é,
procura traduzir-se assim a consciência de se estar perante a verda-
deira Igreja espalhada pelo mundo ou da comunidade local em união
com ela.
No Concílio Vaticano II, a dimensão da catolicidade da Igreja emerge
na Lumen Gentium intimamente ligada à legítima diversidade e à
riqueza de expressões teológicas, litúrgicas, espirituais e canóni-
cas da fé católica no seio das Igrejas particulares:

Educação Moral e Reiigiosa (.;atáli 76


"Em virtude desta mesma catolicidade,
cada uma das partes traz às outras e a
toda a Igreja os seus dons particulares, de
maneira que o todo e cada uma das par-
tes aumentem pela comunicação mútua
entre todos e pela aspiração comum
plenitude n a unidade". Reconhece-se
assim que "na comunhão eclesial exis-
tem legitimamente Igrejas particula-
res com tradições próprias, sem detri-
mento do primado da cátedra de Pedro,
que preside à universal assembleia da
caridade, protege as legítimas diversida-
des e vigia para que as particularidades
ajudem a unidade e de forma alguma a
prejudiquem".
Lumen Gentium, 13; cf. também no 17.

No Decreto Ad Gentes, a dimensão de catoli-


cidade traduz-se, para a Igreja, na necessidade
de encarnar nas condições sociais e culturais
dos diversos povos, de modo a poder oferecer
a todos o mistério de salvação e a vida trazida
por Deus (AG, no 10; cf. ainda no 22). No Decreto
Unitatis Redintegratio, no 4, no contexto do pro-
blema ecuménico, entende-se a catolicidade da
Igreja como vivência da comunhão que procura
guardar "a unidade nas coisas necessárias",
conservando ao mesmo tempo "o devida liber-
dade tanta nas vários formos de vida espiritual e
de disciplino, como no diversidade de ritos litúrgi-
cos e até mesmo no elaboração teológica do ver-
dade revelada". (Cf. ainda Ad Gentes, n"s 4 e 15;
Evangelli Nuntiandi, nos 62-64).

«Batismo de Cristo», El Greco, Museu do Prado, Madrid. «Batismo de Cristo», Santa Casa da Misericórdia de Lisboa/
Museu de São Roque.

A C o m u n i , i e de Crentes em
'- tar- ' - a ' 1 F - ' à ' . doF
Dom de Deus e tarefa humana (pessoal e eclesial) como as outras notas da Igreja, a catolici-
dade fundamenta-se, antes de mais, no mistério de Deus Uno e Trino (comunhão plural) e no
plano salvífico único e universal de Deus, manifestado em Jesus Cristo a favor de toda a huma-
nidade (1 Tm 2,1-6; cf. Rm 3,29 s.; 10,12; Ef 4,4 ss). A Igreja está ao serviço desta vontade salví-
fica universal de Deus que, em Jesus Cristo, encontrou a sua expressão plena e definitiva e que
está presente e atuante no mundo pela ação do Espírito.
A catolicidade da Igreja é a expressão histórica de que o Espírito Santo, fonte de unidade
e de diversidade, constrói a comunhão assumindo, sem as destruir, as diversidades espe-
cíficas, as particularidades concretas da vida dos seres humanos no seu contexto existen-
cial próprio. Pela ação do Espírito Santo cruzam-se, assim, a base da catolicidade que brota
da pluralidade real das pessoas, com suas culturas, histórias e desafios próprios, com a fonte
primeira da catolicidade, enraizada na iniciativa livre e gratuita de Deus que chama as pes-
soas e as comunidades de acordo com as suas situações singulares. A catolicidade acontece
e exprime-se, pois, no encontro da plenitude dos dons salvíficos que nos são dados em Jesus
Cristo com a enorme amplitude de possibilidades que existem nos seres humanos, pessoas
interpeladas por situações histórico-culturais muito concretas e diversificadas.
Na vivência da catolicidade, como dom e tarefa que é, estão envolvidos diversos registos ou
dimensões. Catolicidade pede, antes de mais, busca permanente de fidelidade à identidade
da Igreja de Jesus Cristo no meio dos desenvolvimentos históricos, sentido da identidade
cristã mais plena face às nossas próprias realizações pessoais e comunitárias. Esta preocupa-
ção pela autenticidade fiei da Igreja na sua totalidade, esta referência à plenitude da existên-
cia cristã em Igreja, qualifica todos os níveis do viver eclesial: a catolicidade é tanto tarefa da
Igreja universal como da Igreja local, cada realização de Igreja e cada existência pessoal
têm de trazer em si a atitude mental e prática de abertura à catolicidade.
Catolicidade como fruto da ação do Espírito exige, ao mesmo tempo, sensibilidade atenta e
aberta às riquezas diversas que tecem o viver humano, tanto a nível individual como comu-
nitário. A capacidade de comunhão no meio das diversidades legítimas é uma das expres-
sões indispensáveis de autêntica catolicidade.
A catolicidade apresenta-se também como tarefa ecuménica. A experiência da divisão
confessional mostra que todos os cristãos, também os católicos, são afetados na possibilidade
de uma vivência mais autêntica e plena da catolicidade: com a realidade das divisões atuais per-
demos ou não conseguimos realizar coerente e convincentemente elementos importantes da
mais plena identidade da Igreja.
A Igreja é chamada, ainda e decisivamente, a ser católica no modo como entende a inten-
cionalidade fundamental da sua razão de ser e da sua missão. O testemunho do Evangelho
como proposta de salvação tem um horizonte universal, destina-se a ser concretizado em
todos os tempos e lugares, na transparência da sinalização do amor de Deus para com todos os
seres humanos. A catolicidade aparece assim como uma expressão e uma exigência da tarefa
missionária da Igreja.
A catolicidade tem de ser vivida, enfim, como afirmação da esperança cristã que aponta
para um horizonte final de comunhão e de reconciliação de toda a humanidade junto de
Deus. A Igreja é católica na medida em que traz consigo a esperança e a promessa de contri-
buir para a unidade de todo o género humano por caminhos de fraternidade, de justiça e de paz.
r-

17.5. Igreja fiel a Jesus, assente no testemunho dos


apóstolo
A Igreja está para sempre ligada ao testemunho original,
fundante, dos apóstolos [Texto Complementar 20]. A apos-
tolicidade é a qualidade da Igreja que procura viver em fide-
lidade à sua origem apostólica e ao testemunho dessa sua
origem transmitido de geração em geração. Lê-se num texto
do diálogo ecuménico:

"A tradição apostólica n a Igreja implica a


continuidade n a permanência d a s caracte-
rísticas da Igreja dos apóstolos: testemunho
da f é apostólica, proclamação e interpreta-
ção renovada d o Evangelho, celebração d o
batismo e da eucaristia, transmissão das res-
ponsabilidades ministeriais, c o m u n h ã o n a
oração, no amor, na alegria e no sofrimento,
serviço junto d o s doentes e necessitados,
unidade das Igrejas locais e partilha dos bens
que o Senhor deu a cada um".
CONSELHO PORTUGUES DAS IGREJAS CRISTÃS (ed.), Baptismo, eucaristia
e ministério — Convergência da fé, Coimbra 1983, no 34, p.59 s.

«Os discípulos no barco», Sada° Watanabe, (Japão, 1913-1996),


Collection of Richard Delschlaeger.

Entendida assim como fidelidade a o testemunho e à doutrina dos apóstolos, percebe-


-se bem que toda a Igreja é chamada a viver a apostolicidade, a ser fiel a o Evangelho
testemunhado pelos apóstolos. Toda a Igreja, todos os membros da Igreja estão envol-
vidos nessa tarefa d e fidelidade e na responsabilidade d e testemunho da f é apostólica.

[O batismo] "marca a entrada de cada cristão na vida e na fé apostólicas da Igreja e a apropriação


destas. Enquanto elemento essencial na vida de toda a Igreja e de todo o cristão, a apostolicidade não
está, pois, absolutamente reservada ou limitada à esfera do ministério hierárquico. Porque do mesmo
modo como, pelo batismo, temos parte no sacerdócio real e profético, do mesmo modo, por esta
confissão batismal, tornamo-nos, nós também, portadores da apostolicidade da Igreja".
"L'apostolicité c o m e don de Dieu dans Ia vie de l'Église. Déciaration commune de Ia Commission consultative catholique-orthodoxe des États-Unis",
ia La Documentation Catholique 1946 (1987) p. 872.

Isto nada retira ao lugar específico, ao significado único, do ministério apostólico, do minis-
tério na continuidade do ministério dos apóstolos. De facto, na continuidade do testemunho
dos apóstolos e ao serviço da tradição apostólica há a sucessão no ministério apostólico,
sucessão em termos de ministério e missão (sucessão em sentido estrito). A sucessão epis-
copal histórica — sucessão dos bispos na continuidade do ministério apostólico — está ao ser-
viço da apostolicidade de doutrina, do testemunho verdadeiro do Evangelho em todas as suas
dimensões.

79 I A comunidade de crentes em cristo


A sucessão histórica no episcopado integra-se, pois, numa realidade mais ampla, ela está
ao serviço da apostolicidade de toda a Igreja e de todos os seus membros. Assim, a sucessão
apostólica não se pode separar completamente da apostolicidade de toda a Igreja, mas condi-
cionam-se, garantem-se mutuamente. Escreve a Comissão Teológica Internacional:

"A sucessão apostólica é, portanto, este aspeto da natureza e da vida da Igreja que mostra a
dependência atual da comunidade em relação a Cristo através dos seus enviados. O ministério
apostólico é, assim, o sacramento da presença atuante de Cristo e do Espírito no meio do Povo de
Deus, sem que seja minimizada por isso a influência imediata de Cristo e do Espírito sobre cada fiel".
COMMISSION THÉOLOGIQUE INTERNATIONALE, "Lapostolicité de l'Église et Ia sucession apostolique", in Ia Documentation Cotholique 1657 (1974), p. 617.

Na perspetiva católica, a sucessão apostólica ministerial só é plenamente realizada pela


sucessão no ministério episcopal, pois só ao bispo é dada — pela consagração episcopal, rea-
lizada pela imposição das mãos com a invocação do Espírito Santo (cf. LG, no 21) a plenitude do
sacramento da ordem. Nessa visão da importância estrutural da sucessão apostólica no minis-
tério episcopal concordam com a Igreja católica também as Igrejas ortodoxa, anglicana e
veterocatólica. A sucessão apostólica no ministério episcopal não consiste, todavia, simples e
primeiramente numa cadeia ininterrupta de bispos ordenados sucessivamente, mas sim numa
sucessão no ministério de presidência de uma Igreja (local) que se encontra na continuidade da fé
apostólica e sobre a qual o bispo vigia, para a manter na comunhão da Igreja católica e apostólica.
Com a ordenação episcopal cada bispo passa a ser membro do colégio dos bispos (cf. LG,
no 22), que, em continuidade com a missão dos apóstolos, tem a missão de conservar na sua
integridade a verdade da fé e a comunhão das Igrejas locais e da Igreja inteira. Segundo a con-
vicção católica, o episcopado como um todo, em união com o Romano Pontífice, sucessor
de Pedro, mantém-se fiel à verdade fundamental do Evangelho. Neste sentido a Igreja cató-
lica entende a sucessão apostólica no ministério episcopal (a sucessão ininterrupta dos bispos
no ministério) como sinal e serviço da apostolicidade da Igreja (apostolicidade de doutrina) e
como garantia, sob a condução do Espírito Santo, da permanência na mesma fé ao longo
dos tempos e em todos os lugares. A sucessão episcopal histórica apresenta-se, assim, como
um elemento estrutural, inalienável da vida da Igreja, como a forma indispensável para a trans-
missão da sucessão apostólica, em ordem a que a Igreja persevere na fidelidade ao Evangelho
e na vivência da comunhão na mesma fé.

Texto Complementar 19
"A palavra grega «symbolon» significava a metade dum objeto partido (por exemplo, um selo), que
se apresentava como um sinal de identificação. As duas partes eram justapostas para verificar a
identidade do portador. O «símbolo da fé» é, pois, um sinal de identificação e de comunhão entre os
crentes. «Symbolon» também significa resumo, coletânea ou sumário. O «símbolo da fé» é o sumário das
principais verdades da fé. Por isso, serve de ponto de referência primário e fundamental da catequese".
CIC 188.

"Foram numerosas, ao longo dos séculos, e correspondendo sempre às necessidades das diferentes
épocas, as profissões ou símbolos da fé: os símbolos das diferentes Igrejas apostólicas e antigas (7), o
símbolo «Quicumque», chamado de Santo Atanásio (8), as profissões de fé de certos concílios [(Toledo
(9); Latrão (10): Lião (11) Trent° (12)] ou de certos papas, como a «Fides Damasi» (13) ou o «Credo do
Povo de Deus», de Paulo VI (1968)".
CIC, no 192.

:ucacão Moral e Religiosa Católica


Texto Complementar 20
No Novo Testamento, o termo "apóstolo" não é totalmente unívoco, tem alguma diversidade de
sentidos. Designadamente, não se pode fazer uma identificação pura e simples entre "Os Doze" e
os "Apóstolos". De "apóstolos" em sentido rigoroso do termo só se pode falar depois da ressurrei-
ção e engloba-se dentro desta expressão u m conjunto diversificado d e pessoas enviadas pelo
Senhor Ressuscitado como suas testemunhas. Além do grupo mais restrito dos discípulos de Jesus
e do Grupo dos Doze, o termo no Novo Testamento engloba todo um conjunto de missionários do
Evangelho. De resto, na caracterização do que é "ser apóstolo" do conceito de apóstolo Paulo e Lucas
não coincidem totalmente. Para Paulo, apóstolo é aquele que é testemunha da ressurreição (após-
tolo é aquele a quem o Senhor crucificado se revelou como o Senhor vivo — para o seu caso é funda-
mental a chamada de Damasco - cf. GI 1,15-17) e que foi enviado pelo Senhor para o anúncio missio-
nário (GI 1,15-17; 1 Cor., 1,1.12; 1 Cor 9,1 s.; 15,7-11). Na perspetiva de Lucas (conceção institucional de
"apóstolo") apóstolo é aquele que é testemunha de Jesus terreno e testemunha da sua ressurreição.

Mas essa diferença não toca


em nada de essencial: na lin-
guagem e na mentalidade da
Igreja primitiva, q u e r consi-
derado c o m o embaixador e
representante de Cristo (con-
ceção d e Paulo), quer como
testemunha da vida de Jesus
(conceção de Lucas), o após-
tolo mantém uma relação de
fidelidade p a r a c o m aquele
que o encarregou de o repre-
sentar e do qual dá testemu-
nho. Em síntese, pode dizer-
-se que ser apóstolo, à luz do
conjunto do Novo Testamento
e no seu significado perma-
nente para o futuro da Igreja
(nomeadamente para a carac-
terização f u n d a m e n t a l d o
«Cristo e os apóstolos», Georges Rouault (França, 1871-1958), Metropolitan Museum of Art,
ministério ordenado na c o n -
Nova York. tinuidade do ministério apos-
tólico), se caracteriza por três
elementos fundamentais: o
facto d e s e r u m a testemu-
nha qualificada d o aconteci-
mento Jesus; o anúncio d o
Evangelho c o m autoridade;
a f u n d a ç ã o e direção d a s
comunidades cristãs.

A Comunidade de Crentes em Cristo


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