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201 pata De Chocolat colocar em discussdo situagées entio vividas pelos negros ao serem preteridos e a suas culturas, em favor do imigrante. As referéncias desta pega teatral a produtos acentuadamente negro-africanos como os verdadeiros representantes da alma nacional evidencia a participagio de segmentos populares nos debates em tomo da pretendida construgdo de um povo, uma identidade e uma cultura para a nagio (NEPOMUCEND, 2008 p. 2. E importante destacar, ainda, que os espetaculos da Companhia Negra de Revista foram vistos por intelectuais, artistas e politicos de diferentes matizes. Entre eles, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Mario de Andrade, Prudente de Morais Neto, Villa- Lobos, Tarsila do Amaral, além de Carlos de Campos, presidente da provincia de So Paulo, ¢ do ex-presidente da Repiblica, Venceslau Bras. A troupe foi aclamada em todas as cidades em que se apresentou e praticamente nenhum dos jornais em circulagdo na Capital Federal, naquele segundo semestre de 1926, deixou de fazet-lhe mengao (NEPOMUCENO, 2008, p. 28). Pelo que se apreende da singularidade do espetéculo Tudo Preto, os temas abordados, a legitimidade étnica e social de seus representantes no meio artistico e cultural da época, bem como do universo sociocultural representado pela confluéncia de interesses entre os intelectuais e as classes populares na construgio de uma identidade “genuinamente” brasileira, podemos inferir que as “vozes étnicas” do espetaculo ecoaram, juntamente com o relato de Pixinguinha, “fadista de profissio”, e as demais fontes, em Macunaima e na elaboragao estética do ritual carioca do capitulo “Macumba”. Sabe-se que, por essa ocasiio, Mario de Andrade ja estava envolvido com suas pesquisas etnogrificas ¢ reunia diversas anotagées e bibliografia sobre a cultura negra e os rituais de feitigaria. E importante destacar ainda que a Companhia Negra de Revistas se apresentou em Sao Paulo em novembro de 1926 e Mario de Andrade “iniciou” Macunaima em dezembro do mesmo ano: ste livro de férias escrito no meio de mangas abacaxis e cigarras de Araraquara, um brinquedo. Entre alusdes sem malvadezas [...] onde a gente no escuta as proibigdes, os temores, os sustos da ciéncia ou da realidade [...] (ANDRADE, Preficio, 19 de dezembro de 1926, MA-MMA, 061, félio, 5O- IEB/USP, Anexo 20), 202 5.2-“MACUMBA” NO PENSAMENTO SOCIO-ESTETICO DE MARIO DE ANDRADE. Do ponto de vista do conjunto dos pressupostos analitico-interpretativos elencados até aqui, Macunaima se aproxima muito mais de uma nogdo desconstrutivista do discurso literdrio, Como narmativa, a obra consiste em interpretagZo que sublinha as tendéncias conflitantes em textos e contextos que desafiam as tentativas de representar a realidade em termos de coeréncia e objetividade. Nesse sentido, Macunaima se inscreve na linhagem dialégica e representa o ponto extremo do conflito, cuja ago se projeta em dois planos simulténeos: 0 da atragio pelo mundo civilizado (Europa) da cultura erudita e o da fidelidade ao Brasil, com suas diferengas ¢ dilemas, satirizando um estado de coisas sem apontar uma solugio. A partir desse eixo, que se desdobra na elaboragdo dos capitulos, a “Macumba” “desgeograficada” estaria inscrita no microcosmo simbélico fiel 4 brasilidade pelo seu carter &tnico primordial na formagao do “heréi de nossa gente”. Assim, 0 capitulo se insere nas ambivaléncias de um campo de resisténcia cultural em que se confrontam 0 jogo satirico da alegoria desierarquizada da linguagem literaria e a critica cultural apreendida no universo sonoro- musical da época. Nesse sentido, Pixinguinha é Ogi no ritual, mediador entre 0 profano ¢ o sagrado, mas também “fadista de profissio”, misico popular vinculado ao espago do entretenimento, cuja expresso simbélica do nacional-popular de nossa brasilidade, de sentido unificador, abarca a dimensdo particular de nossas manifestagdes artisticas para atingir a dimensdo universal da cultura brasileira, em suas conexGes/interagdes com as demais culturas. Gilda de Mello e Souza (1979, p. 37) afirma que “Macumba” é uma variacdo (a exemplo do processo de criagiio do populario) do tema central e the disputa a primazia na compreensio geral do enredo. Por sua vez, Haroldo de Campos (2008, p. 195.) considera 0 capitulo como um sintagma disjuntivo, digressio “necessiria” ao sintagma de base da fabula, constituindo parte importante do processo de criagdo da rapsédia. Conforme analisa Suzana Camargo (1977, p. 35.), “Macumba” é a caracterizagao ritual da carnavalizago e da parédia literdria, cuja expresso desierarquizada das ambivaléncias também perpassa toda trama. Apesar dessas afirmagdes e consideragdes, mesmo tendo tais estudos objetivos enfoques tedricos distintos, no geral, o tratamento analitico do capitulo “Macumba” (com excegdo de Suzana Camargo) se fixou em seu papel periférico na rapsédia. Assim, tanto 0 rico jogo satirico © alegérico que estabelece na natrativa, como as marcas sociossimbélicas da 203 cultura popular apresentadas e reelaboradas esteticamente (com recursos litero-musicais), ndo foram objeto de muita atengdo da critica. Sabe-se que “a feitigaria nacional”, no ritual sincrético da macumba, & a expresso da fusio de rituais de pajelangas, de candomblés e outras feitigarias. Trata-se de pritica sociossimbélica do povo negro ¢ mestigo e também de muitos brancos, como ironiza 0 autor no capitulo, A feitigaria é, portanto, uma forte expresso das raizes étnicas de nossa brasilidade, entronizada no imagindrio mistico popular, ¢ esta entre os focos principais do interesse etnogrifico sobre a formagio da identidade nacional nos estudos de Mario de Andrade, Nesse diapaso, pensamos, entio, ser pertinente especular sobre as relagdes do didlogo io de Andrade estabele cultural (interartes) que M: ao trazer Pixinguinha como fonte de eu processo de criagdo (0 informante) e como personagem de sua rapsédia. Assim, o artista figuraria como a representagdo de uma sintese étnica e popular portadora de brasilidade: negro, macumbeiro, membro ativo da Pequena Africa carioca, misico popular, j4 naquele éncias culturais tempo tido como virtuose e “genial” instrumentista, ligado também as eferve emergentes no circuito do entretenimento da época. Ancorados nesse eixo analitico-interpretative, poder-se-iam relacionar outros elementos, marcas sécio-histéricas na composigao simbélica da narrativa, como por exemplo: os papéis sociais de Ogd e da mae de santo no comando do ritual, que corresponderiam a0 papel social de Pixinguinha ¢ tia Ciata na formagdo de uma tradigio musical popular como resultado de uma nova organizagao das classes populares, em vista dos deslocamentos social ¢ espacial ¢ das demandas culturais, de certo modo favoraveis 4 insergo social dos artistas populares, provocados pelo processo de modernizagio. Ainda seria possivel identificar uma alegérica critica cultural na representagdo literdria das personagens articuladas com elementos musicais, em que se evidenciam a resisténcia da tradigo (Tia Ciata/melodia), a mediagdo/afirmagao dos artistas (Ogi/ritmo), a infiltragdes das modas internacionais (Polaca/harmonia) no universo musical popular da época. Esses aspectos simbolicamente representados sob diversas formas no transcurso da narrativa pelas vias polifonicas da obra e do autor, simultaneamente, desierarquizam no s6 os recursos literérios e “os sentidos” de cada micleo narrativo em relacdo ao todo, mas também dos niicleos entre si, tal qual 0 processo compositivo popular da rapsédia musical Com efeito, na intengdo de redimensionar esses dados, parece-nos relevante ampliar a escuta desse didlogo cultural, subvertendo a relativizagdo do menos visivel 4 fortuna critica, e compor um quadro do que identificamos fortemente representado no capitulo, quando 204 projetamos em nossa andlise o didlogo com outras fontes ¢ elementos que se entrecruzam na criagdo da rapsédia Nesse sentido, destacamos a claboragdo artistica literéria e musical embaralhando as fronteiras entre 0 erudito © 0 popular, bem como o didlogo entre literatura e misica na io de um ritual etnograficamente primordial ¢ particular que, enquanto um dos ethos de identidade do povo negro e mestigo, se universaliza na cultura brasileira, Permeando, ainda, esses aspectos, identificamos os pressupostos tedricos do musicélogo na representagZo do elemento musical intrinseco ao ritual de feitigaria com seu poder socializador, hipnético dianamogénico na dramaticidade mistics A exemplo disso, em Miisica de Feitigaria no Brasil, Mario de Andrade registra suas consideragdes sobre a estreita relagdo entre a miisica e os rituais de feitigaria, e como ele mesmo se viu envolvido pela forga hipnética dessa parceria: [.] feitigaria e misica sempre andaram fundidas uma na outra [...] sempre inda se tomou incontestével que a misica é um parceira instintiva, imediata, © necesséria, tanto das priticas da alta magia das civilizagdes espirituais, como da baixa feitigaria das civilizagdes naturais [...] [...] 0 ritmo do refrdo, a monotonia das cantigas molengas, o chique-chique suave do maraca, jd principiavam a me embalar, a mmisica me extasiava. Aos poucos meu corpo se aquecia numa entorpecedora musicalidade ao mesmo tempo que gradativamente me abandonavam as forgas de reagao intelectualf...]. E esse é justamente 0 destino principal da miisica que a torna companheira insepardvel da feitigaria; a sua forga hipnética (ANDRADE, 1983, p.23, p. 37) Destacamos de sua critica cultural sobre as também, na andlise do capitulo, 0 vié ameagas 4 autenticidade da cultura popular pairando no universo musical urbano da época, Inicialmente, conformando algumas considerages de estudos criticos” sobre as rela € 0 movimento artis -historicas e politicas entre o processo de modemizs modemista na configuragdo do emblemético quadro cultural das décadas iniciais do século XX, tem-se que a problematizag%io do nacional e do popular nas diversas esferas sociais, especialmente, no circuito intelectual hegeménico da época, embora de tendéncia fortemente a diversidade de nossas raizes culturais e de unificadora, acaba por colocar em evidén nossa pluralidade social. *” Trata-se de O mistério do Samba, Hermano Vianna, 2004; Tia Ciata e a Pequena Africa no Rio de Janeiro, Roberto Moura 1995; Pequena Historia da Missica Popular- da modinha ao tropicalismo, José Ramos Tinhorio 1986; A Literatura como Missdo, 1983 e Orpheu estitica na Metrépole, 2009 Nicolau Seveenko; O coro das contrarias, José Miguel Wisnik, 1977; O Nacional e 0 Popular na Cultura Brasileira-Miisica. José Miguel Wisnik e Enio Squeff, 1982. 205 ‘Assim, as confluéncias entre 0 momento sécio-histérico © as expresses attisticas, notadamente a literatura e a misica, articuladas a identidade brasileira, mediando os ideais nacionalistas, convergem para a politizagdo do projeto estético dos intelectuais modemistas, Por um lado, a ciso dos valores estéticos sociais da elite intelectual e politica, por outro, as formas de organizago nio institucionais da populagdo abriam brechas de interagdo para as camadas populares da sociedade. A inserg&o social através da arte, em particular, de um contingente da populagdo negra e affodescendente no circuito do entretenimento ¢ de sua representacdo no universo artis ico (literatura, artes plasticas e musica), passa a operar tanto como estratégia de afirmagdo dos marginalizados da sociedade, quanto como elemento estético produto e produtor de significados no idedrio nacionalizante das vanguardas modernistas. importante observar a constante representagdo desse segmento popular em diversas obras modemistas: em musicas de Villa-Lobos ¢ Camargo Guarnieri; em pinturas de Di Cavalcante, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Anita Malffati, Cicero Dias; e nas obras de Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, todos com presenga marcante na Colegio de Partituras, Colegdo de Artes Plasticas e na Biblioteca de Mario de Andrade. As inimeras fontes usadas por Mario de Andrade ao colecionar motivos para a construgdo de Macunaima podem ser encontradas nos arquivos ¢ na biblioteca pessoal do autor, bem como nos ricos estudos da fortuna critica da obra, que identificam, em maior ou menor ordem de importincia, obras de Koch Griimberg, Capistrano de Abreu, Couto de Magalhaes, Barbosa de Magalhaes, Silvio Romero ¢ tantos outros autores, Além disso, um vasto ¢ rico acervo de notas de trabalho, fichas com registros e recolhas sobre cultura popular alimentaram 0 processo de criagiio de Mario de Andrade. Mantidos inéditos, os preficios ¢ anotagGes feitos por Mario de Andrade nao foram Publicados nas edigdes de Macunaima e elucidam muitas das intengdes concepgdes do autor sobre essa obra da literatura brasileira ainda hoje polémica. No preficio escrito logo apés a primeira versio, Mario de Andrade indica alguns caminhos para a compreensio de Macunaima, expressando em tom de blague sua preocupagio em entender a “entidade nacional dos brasileiros”: Este livro carece dumas explicagdes pra nao iludir nem desitudir os outros. Macunaima ndo é simbolo nem se tome os casos dele por enigmas ou fabulas. E um livro de férias escrito no meio de mangas abacaxis e cigarras de Araraquara; um brinquedo, Entre alusdes sem malvadezas ou sequéncia desfatiguei o espirito nesse capoeirdo de fantasia onde a gente nao escuta as proibigdes, os temores, os sustos da ciéncia ou da realidade — apitos dos 206 policiais, breques por engraxar. Porém imagino que como todos os outros o meu brinquedo foi stil. Me diverti mostrando talvez tesouros em que ninguém ndo pensa mais, O que me interessou em Macunaima foi incontestavelmente a preocupagao em que vivo de trabalhar ¢ descobrir 0 que mais possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que parece certa: o brasileiro néo tem carter [1 (ANDRADE, MA-MMA-061, folio 39, IEB/USP; cf. Anexo 20). A falta de carater identificada por Mario nos brasileiros esta eivada de complexidade, jé observada por ele, nessa “entidade” tanto psicologicamente como sociologicamente: no mesmo prefiicio registra: “[...] nossa gatunagem sem esperteza (honradez. elistica), 0 desaprego @ cultura verdadeira, 0 improviso, a falta de senso étnico nas familias, uma J” (ANDRADE, MA-MMA-061 folio s/n- IEB/USP, cf. Anexo 21). Para ele, Macunaima nao pode ser reduzido a um simbolo de existéncia (improvisada) no expediente enigmas ou fabulas, mas é brinquedo, um exercicio de liberdade criativa que, pelas vias de um poema her -cémico, ecoa as vozes, as marcas da “entidade nacional dos brasileiros”. Indicando onde “topou com Macunaima”, anuncia sua fonte no alem’o Koch- Grunberge € no aproveitamento de outras lendas, casos ¢ costumes brasileiros. Explica também 0 estilo adotado da “fala simples, sonora ¢ musical do rapsodismo popular”, bem como a sensualidade do livro, justificando-se ironicamente de que seria hipocrisia podar do livro 0 que é abundancia das nossas lendas indigenas, ja registradas por diversos autores. Interessantes nesse registro, ainda, so suas observagdes apostas ao final do pref das quais destacamos: (Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia ¢ a fauna ¢ flora geograficas. Assim desgeograficava o mais possivel a criagdo © ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogénea = um conceito étnico nacional geografico).(ANDRADE,1928, MA-MMA-061- folio.50.IEB/USP)™. Essas observagées nos remetem a integragio entre o “artista que cria” ¢ 0 “intelectual que concebe”, formula, constroi ¢ dissemina ideias. A despeito da visio homogeneizadora, hoje discutivel, o que se sobrepde é um sentido de construgio, de referencia da “entidade nacional”, pelas vias literdrias. Esse aspecto se reforga ainda mais no segundo preficio: ** Transcrigdo do registro entre paréntese, abaixo do término do Prefiicio. MA-MMA.061- félio.50, IEBY feita no transcurso da pesquisa. 207 Este livro de pura brincadeira, escrito na primeira redagdo em seis dias, ininterruptos de rede cigarros ¢ cigarras na chacra de Pio Lourengo perto do ninho da luz que é Araraquara afinal resolvi dar sem mais preocupagao [...] Ora este livro que no passou dum jeito pensativo ¢ gozado de des rias, relumeante de pesquisas e intengdcs, muitas das quais s6 se tornavam conscientes no nascer da escrita, me parece que vale um bocado como sintoma de cultura nacional. Me parece que os milhores elementos duma cultura nacional aparecem nele. Possui psicologia prépria © maneira de expresso propria. Possui uma filosofia aplicada entre otimismo ao excesso € pessimismo ao excesso dum pais bem onde o praceano considera a Provi- déncia como sendo brasileira e o homem da terra pita 0 conceito da pachorra mais que fumo. Possui aceitago sem timidez nem vangléria da entidade nacional e a concebe to permanente e unida que o pais aparece desgeograficado no clima na flora na fauna no homem, na lenda, na tradigo historica até quanto isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo |...) (ANDRADE, 1928, MA-MMA-061, folio 21; ef. Anexo 22) Essa ambiguidade entre a arte-divertimento, fruigao desinteressada, ¢ a arte interessada, ‘em sintonia com o “jeito gozado” instintivamente satirico de Macunaima, Mario a caracteriza como intoma de cultura nacional”, algo ainda em definigdo e, nas anotagdes para o prefacio, cexplicita sua concepgdo a respeito: Sintoma de cultura Uma colaboragio pontual do nacional ¢ 0 internacional onde a fatalidade daquele se condimenta com uma escolha discricionéria ¢ bem a propésito deste. O que dé o tom sendo pois um universalismo constante ¢ inconsciente que é porventura o sinal mais evidente da humanidade enfim concebida como tal. Coisa que a gente jé pode sentir. Macunaima: me servindo aliés sem —conseiéncia preestabelecida disso, por instinto, duma alégica sistemética, embora satirica ou coisa que o valha, 0 cariter religioso do livro ficou acentuado, (ANDRADE, 1928, MA-MMA-061, folio14,IEB/USP; cf. Anexo 23). No capitulo “Macumba”, ha inter-relagdes com fontes bibliograficas” conhecidas sobre religides brasileiras, notas marginais e destaques diversos: 0 volume As religiées do Rio, de Joo do Rio, edigio de 1906; o capitulo “O candomblé” da Revista da America Latina, n° 1 de 1919, ¢ 0 romance O feiticeiro, de 1922, ambos de Xavier Marques; obras de Nina Rodrigues e de Manuel Querino, todos esses elementos conformando a mistura em sinctese com o relato oral (Pixinguinha ¢ outros informantes de pajelangas paraenses) ¢ a invengao criadora do autor. » Fontes relacionadas em Macunaima - 0 heréi sem nenhum cariiter, edigio critica coordenada por Telé Porto Ancona Lopez, Colegio Archivos, 1996, p. XXXIX-XL. 208 Certo & também que 0 processo rapsédico de Macunaima se utilizou da criativa indole dialégica de Mario de Andrade, em que se entrelagaram o interesse etnografico por praticas sociossimbélicas da cultura popular e seus atores, 0 pensamento poético-musical ¢ a critica cultural na expressio iréni a e parodistica de sua linguagem literéria, além de suas inter- Reforga de modo singular a premissa dialégica dessas relagde: no potencial poético- musical do capitulo macumba, uma carta de Villa-Lobos! dirigida a Mario de Andrade nos fins de 1928, por ocasiéo de sua leitura de Macunaima, na qual o maestro expressa a fertilidade estética dessa manifestagdo da cultura popular. ‘Meu grande Mario: Li teu colossal Macunaima, E mais que formidavel. D. Olivia poderd dizer-te 0 meu entusiasmo. Talvez a alegria de um exilado que Ihes tenham lembrado a terra. Ha mais de um ano comecei a escrever um bailado, saudoso da misica fetiche dos nossos fantasticos makumbeiros. Nao havia meio de me ir um titulo, nem me sentia com coragem de escrever um argumento, Eis que recebo 0 teu tiltimo livro e logo devoro suas paginas com meus olhos contentes. Uma ideia me veio. O meu bailado chamar-se~ a Macunaima e seu assunto sera de Mario de Andrade, extraido do capitulo Makumba. Serve? Ja tenho me servido de tua poesia para completar minhas ideias sonoras. “A menina ¢ a cangao” a Iara, o Pai do Mato, ¢ a Viola Quebrada. Mas, tu és grande e cada vez cresces mais. Por conseguinte, desta vez sitvorme de um dos teus gigantescos poemas, que é 0 capitulo Makumba, [...] (VILLA-LOBOS, Heitor. Paris, 25 de dezembro de 1928. MA-C-CPL n°6994. ARQUIVO IEB/USP; cf. Anexo 42), Ao configurar a alegoria do capitulo, pelo viés poético-musical (melopostica tematica ¢ formal), com um ritual de nossa tradigdo popular, as resisténcias, mediagdes ¢ transformagGes ali simbolizadas legitimam uma manifestagdo étnica importante na formagdo da cultura nacional em tenso com as ameagas das “modas intemacionais”. Nesse sentido, pode-se identificar o capitulo “Macumba”, dentre outros que disputam a primazia na narrativa, como um microcosmo em que se revelam singularidades no proceso de criagdo ¢ um deslocamento na alegoria da obra. Assim, tanto 0 aproveitamento ¢ a ‘ Também nesta carta, Villa-Lobos declara sua intengio de entregar ao musicélogo 0 acervo folelérico sob sta ‘guarda, cuja denominagio Fundos Villa-Lobos foi dada por Mario de Andrade posteriormente. Cf. Anexo 42 209 reelaboragao das fontes, como a articulagdo das representagdes socioestéticas do ritual e das personagenss no terreiro de Tia Ciata (espaco social e etnicamente determinado), conformam uma alegérica critica cultural como produtora de significados de “brasilidade”, Retomando os escritos para os prefacios, nas anotagées neles registradas, identificamos elementos que destacam a importincia do capitulo ¢ das fontes utilizadas para © autor; Evidentemente nao tenho a pretensio de que meu livro sirva pra estudos ciemtificos de folclore. Fantasie’ quando queria e sobretudo quando carecia pra que a invencao permanecesse arte e néo documentagao seca de estudo. Basta ver a macumba carioca desgeograficada com cuidado, com elementos dos candomblés baianos e das pagelancas paraenses. Com elementos dos estudos jd publicados, elementos colhides por mim dum ogan carioca "hexiguento ¢ fadista de profissio" ¢ dum conhecedor das pagelancas, construi 0 capitulo a que ainda ajuntei elementos de fantasia pura. Os meus livros podem ser resultado dos meus estudos porém ninguém nao estude nos ‘meus trabalhos de ficedo, leva fubeca(ANDRADE, MA-MMA, 061, folio 17, ARQUIVO IEBIUSP; grifo nosso; cf. Anexo 24), Nos estudos criticos in ‘is sobre Macunaima, nao havia informagées precisas sobre quem seria o informante, 0 “ogan da macumba carioca ‘bexiguento e fadista de profissio”. Posteriormente, quando dos estudos mais aprofundados dos arquivos de Mario de Andrade pelo IEB/USP, foram encontrados os registros em “sete folhas de caderneta pequena” entre suas fichas e notas de trabalho, contendo as informagées do misico carioca, e inseridas nos estudos de Miisica de Feitigaria no Brasil”, cujo titulo indica na ficha “Ceriménias de Macumba” (Pixinguinha). (ANDRADE, MA-MMA-070-ARQUIVO IEB/USP; cf. Anexos: 25 a 38). Além disso, em entrevista ao jornal O Globo, Rio de Janeiro, em 1977, concedida a Frederico Morais, Anténio Bento de Araijo Lima'”’, critico de arte estudioso da cultura brasileira e grande amigo de Mario de Andrade, informa ter a parcela do terreiro da macumba em Macunaima vindo de informagdes de Pixinguinha. O informante era crente e frequentador assiduo da macumba, no zungu da Tia Ciata na Pequena Africa carioca, reduto das priticas sociossimbélicas — rodas de samba, choro, rituais religiosos, culindria, dangas — dos negros e mestigos no Rio de \Tratasse de Anténio Bento Araijo Lima, critica de arte © amigo de Mario de Andrade que, em 1926, apresentou o eseritor ao misico Pixinguinha. (LOPEZ, 1998, p. XL.) 210 Segundo Anténio Bento, Mario conhecera Pixinguinha em 1926, quando 0 misico apresentava, com a Companhia Negra de Revistas, 0 espetéculo Tudo Preto, no qual atuava como diretor musical, regente da orquestra e também como compositor. Sua misica “Urubu”™, inspirada em tema de bumba-meu-boi, foi uma das composigdes apresentadas na revista e muito apreciada pelo musicdlogo, merecendo registro em seu Ensaio sobre a misica brasileira [..] A forma da Variagio muito comum no populétio. [...] Ela ocorre de ‘maneira curiosa nos maxixes ¢ valsas cariocas, sobretudo na maneira de tratar a flauta. O “Urubu, sublime quando executado pelo flautista Pixinguinha, afinal de contas no passa de um tema com variagdes (ANDRADE, 1962, p. 66). F, ainda, em seu Diciondrio Musical Brasileiro, no verbete “Choro”, citando discos da discografia nacional: [..] Outro disco a citar € © “Urubu”, maravilhosamente executado por Pixinguinha, uma das exceléncias da discoteca brasileira, (Ver se este é também rapidissimo e implica solista tinico) Pode-se lembrar aqui que tais choros ( quero dizer, tais agrupamentos) so a equivaléncia do hot-jazz, que também tantas vezes ja & puro gozo instrumental , mesmo quando unido vor, © duma violéncia de movimento verdadeiramente dionisiaca...] (ANDRADE, 1989, p. 136; MA-MM.-O55, folios s/n. ARQUIVO IEB/USP; ef. Anexo 10). O capitulo “Macumba” esta inserido na obra como uma das micronarrativas que compdem a rapsédia, uma variago do micleo-base da narrativa, a perda ¢ a busca do muiraquitd. Pode-se estabelecer, assi |, uma relago andloga com o cancioneiro popular, cujo processo de variag , na conceituag%o do autor, consiste na “repeticio dum motivo, dum membro de frase, Ihe varia levemente a apresentago e pelo acrescentamento dum som ou modificagio ritmica” (ANDRADE, 1983, p. 42). 5.3-DO RELATO A ALEGORIA DA MACUMBA CARIOCA, A produgdo intelectual de Mério caracteriza-se por uma busca incessante de compreensio do sentido da arte, da cultura e do Brasil, através da constituigiio do que poderia Samba do Urubu, composigio de Pixinguinha, interpretada pelos Oito Batutas, considerada uma das interpretages assinaladas por virtuosismo, de sua fase mais criativa, em que incorpora diferentes sonoridades & sua obra (BESSA, 2010, p. 304). 2u ser denominado um pensamento polifonico. Os estudos e ensaios sobre miisica, ao lado de uma profunda inquietagdo antropolégica e etnogrifica, deixaram marcas definitivas em sua atividade fi ional e poética Assim, fazendo um pequeno paralelo entre as anotagées do relato de Pixinguinha e capitulo da obra, em que se entrelagam elementos pesquisados por Mario de Andrade e sua “invengio pura”, podemos identificar e analisar a reelaboragdo literdria da macumba, considerando aspectos intimamente relacionados, que se integram na abrangente rapsédia andradiana. Nesse sentido, as relagdes entre as fontes e 0 proceso de criagdo (sobretudo a intersegdo entre Mario e Pixinguinha), 0 resultado estético-dialogico das aproximagdes entre a literatura e a misica — a melopoética — ¢ o pensamento polifénico do autor conformam uma alegérica critica cultural quando incorporam as representagdes de uma pritica sociossimbélica etnografica ¢ atores sociais importantes, inseridos no complexo contexto de uma época mediada por apropriagdes ¢ tensdes na esfera cultural, Esses elementos configuram 0 erudito e popular, a tradiggo e 0 modemo, a nacionalizagio e a internacionalizagio dos bens culturais, na conformagao da identidade brasileira Para tanto, relacionamos o registro do relato em unidades de significados que, reelaboradas literariamente, sugerem afinidades estruturais. em um conjunto de representagdes coletivas no capitulo. No ritual desgeograficado, 0 relato do informante carioca, os elementos de pajelanga paraense, os estudos etnogrificos ¢ a fantasia pura do imultaneidade de “vozes” sociais imisciveis na autor constituem um acorde polifénico (a conjungio do todo) que conjugam a suite ¢ a variagdo do nicleo-base do capitulo (a tentativa de vencer Paiamé através do ritual de feitigaria ¢ resgatar o muiraquitd). Esse proceso de construir recheando 0 nicleo basico de elementos subsidiérios, de unir em um todo mais complexo varios elementos de forma e cariter as vezes distintos, & proprio do proceso de composigdo do cantador e das dangas dramaticas brasileiras. Assim, podemos entender que, pela recriagdo literdria, Mario de Andrade opera com a representagdo de Macunaima, Tia Ciata, Ogi, Polaca e a assisténcia socialmente diversificada para compor, pelo poderoso elemento unanimizador dos individuos que ¢ a misica ¢ o ritual, uma metafora da entidade nacional. Sabe-se que o sentido estruturador de Macunaima & a raps6dia mitica: a “misturada” de elementos heteréclitos da cultura brasileira em um poema herdi-cémico “desgeograficado”. Sensivel ao pensamento de Freud, de Frazer ¢ de outros tedricos ¢ fildsofos, Mario de Andrade compreende a importincia do mito como elemento estruturador da obra de arte, repensando-o em uma ética no ocidental. 212 Em Macunaima, ficgio mitopoética, 0 autor mergulha antropologicamente no “larguissimo Brasil”, buscando entender a alma nacional e retrata o “heréi sem nenhum carater”, “her6i de nossa gente”, com suas ambivaléncias e contradi . Em seu percurso na busca do amuleto perdido, o herdi se desloca no tempo e no espago e vai parar na “Macumba” carioca, um entrelugar sincrético, mitico e mistico da tradigo popular e, ao mesmo tempo, um reduto identitario das comunidades negras ¢ mestigas que estio a margem da sociedade da época, O ritual de dimensGes dramética, musical, religiosa ¢ social configura-se em um. locus privilegiado para levantar as camadas textuais (texto como o que produz significados), que distendem as ligagdes intimas com o texto tradicional (erudito) nas alegorias que apresenta, Passando em revista 0 pensamento musical de Mario de Andrade ¢ seu papel de articulador do Modernismo, identifica-se que a intemacionalizagdo, a industrializagdo e a comercializagdo de bens culturais foram aspectos que instigaram sua critica € a sua criagdo artistica. No campo musical, Mario de Andrade somou a isso 0 pensamento etnolégico modemo, que atentava para os perigos da extingdo de culturas locais, buscando em sua musicologia valorizar a permanéncia de procedimentos autéctones de composigao. Nas alegorias de Macunaima, inseridas no projeto estético modemista, em especial na alegoria da “Macumba”, 0 autor problematiza simbolicamente os efeitos da industrializagao (infiltragdes internacionais em nossa cultura, especialmente a musica industrializada) nas manifestagdes populares. Desse modo, a alegoria incorpora a valorizagdo de um tipo especifico de cultura popular = o culto popular, urbano e sinerético do Rio de Janeiro, escolhido pelo herdi para realizar sua vinganga contra o gigante industrial estrangeiro Piaima Dessa leitura na interpretagdo da alegoria do capitulo, entendemos que o didlogo entre literatura e misica, a aproximagdo entre Pixinguinha e Mario de Andrade e a polifonia cultural representada em suas produgdes artisticas © pragméticas possibilitam a associagio entre a ficgZo e o ensaio etnografico-musical, problematizando tanto a estrutura musical do capitulo, quanto a representagiio sociossimbélica do ritual ¢ das personagens, como catalisadores de uma critica cultural e de uma combinagio de elementos heterogéneos da cultura brasileira para a configuragao de um idedrio nacional-popular. Retomando o que nos apresenta o estudo de Gilda de Mello Souza (1979, p. 34), em Macunaima, Mario de Andrade subverte 0 processo de criagao literaria da época, pautando-se no processo compositivo musical da variagio, presente no improviso do cantador nordestino no prinefpio rapsédico da suite, cujo exemplo era encontrado no bailado popular do bumba- meu-boi. Essas manifestagdes da cultura popular brasileira revelam-se, na estrutura da obra, 213 como um acorde, combinando o oral ¢ 0 escrito, o popular ¢ o erudito, o europeu, o indigena e © negro na composigao do todo e no um mero produto de actimulo desconexo de partes. Assim, ao fazermos um pequeno paralelo entre as anotagdes do relato de Pixinguinha feitas por Mario de Andrade ¢ seu aproveitamento na narrativa, observamos que 0 trinémio msica-etnografia-religiosidade se articula como suporte estruturante do capitulo, reverbera em sua reelaboragdo estética e literéria € expde parte do universo tedrico construido pelo autor, influenciado pelo contexto das discussdes etnolégicas da époc Vejamos o paralelo: ANOTAGOES DO RELATO DE PIXINGUINHA CAPITULO VII- “MACUMBA” 1- Consideragdes da pesquisa: Contextualizando as motivagdes de Macunaima, observamos que 0 “heréi sem cardter” usa um recurso muito comum do comportamento popular brasileiro de se socorrer de “soluges miégicas”, em special a feitigaria, diante de obstaculos reais dificeis ou impossiveis de enfrentar. Macunaima toma consciéneia da sua falta de forca, confirmando isso com 0 “preceito pra quem é frouxo”, © desloca seu desconsolo para o senso comum popular, expresso nos ditos ¢ provérbios: da dor da topada “viu estrela” © “quando mingua a Luna nfo comeces coisa alguma”, justificando sua fraqueza. Resolve, entio, socorrer-se do Exu, diabo na macumba I-Macunaima estava muito contrariado ndo conseguiu reaver a muiraquita e isso dava édio. O mithor era matar Piaima Entao saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar forca. Campeou légua e meia € afinal enxergou uma peroba sem fim. Enfiou 0 braco na sapopemba e dew um puxiio pra ver si arrancava 0 pau mas sé 0 vento sacudia a folhagem na altura porém "Inda nio tenho bastante forca nio", Macunaima, refletiu. Agarrou num dente de ratinho chamado cra, fez uma bruta incisao na perna, de preceito pra quem é frouxo € voltow sangrando pra pensio. Estava desconsolado de nao ter forca ainda e vinha numa distragao tamanha que dew uma topada, Entéo de tanta dor 0 herdi viu no alto as estrelas e entre elas enxergou Capei minguadinha cercada de névoa. “Quando mingua a Luna néo comeces coisa alguma’’, suspirou, E continuou desconsolado, No outro dia o tempo estava inteiramente frio e 0 heréi resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra esquentar. Porém por causa de néo ter forca tinha ‘mas era muito medo do gigante. Pois entéo resolvew tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer de Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.

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