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CEGUEIRA E BAIXA VISAO NAO SAO DOENGAS NEM DEFEITOS. PELO CONTRARIO, SAO QUALIDADES POSITIVAS: SUPERANDO A HEGEMONIA VIDENTE PARA UMA PRAXIS INCLUSIVA DE ENSINO Eder Pires de Camargo DIDATICA(S) ENTRE DIALOGOS, INSURGENCIAS E POLITICAS Posicionaremo-nos criticamente frente ao fendmeno da deficiéncia visual ao analisarmos os trés principios seguintes: 1) cegueira’ e baixa visio! ndo sdo doengas nem defeitos, mas qualidades positivas; 2) 0 vidente frente ao invidente ou aos que possuem visio reduzida, deve deixar de perceber-se hegem6nico ¢ 3) o vidente, ao perceber o ndo vidente, projeta-se nele, Posteriormente, traremos quatro apontamentos que objetivam contribuir para a promogo de uma praxis" inclusiva no contexto educacional da escola. Aprofundemo-nos. PRINCIPIO 1: CEGUEIRA E BAIXA VISAO NAO SAO DOENCAS NEM DEFEITOS, MAS QUALIDADES POSITIVAS Biologicamente, as caracteristicas fisicas e sensoriais de certo organismo nao se constituirdo necessariamente melhores ou superiores do que as de outro. Elas s6 possuirdo status de vantagem dependendo do ambiente onde foram desenvolvidas, ¢ isso thes atribui, portanto, valor relative. A existéncia majoritaria de cegos ou videntes, quando enfocada segundo a teoria Darwinista, sera 0 resultado da adaptagiio de um desses individuos a um determinado meio fisico. A es denomina-se Selecdo Natural (DARWIN, 2018). e processo hipotético surgimento da Giraffa camelopardalis exemplifica esse argumento. Certo grupo de animais instalara-se num local em que os melhores alimentos localizavam-se no topo das arvores. Para Lamarck, a fim de comé-los, os bichos, cada vez mais, esticavam-se. Ano apés ano, imperceptivelmente, seus pescogos alongavam-se, Seus descendentes, mantendo tal tendéncia, nasceriam com pescogos ligeiramente mais compridos até a ocorréncia de estabilidade. Disso teria resultado o animal que conhecemos hoje como girafa. Para Darwin, a girafa nio se ori 1ou do supracitado proceso evolutivo, Segundo sua teoria, os animais de pescogo um pouco maior comeriam, com mais facilidade, as melhores folhas, enquanto os de menor pescogo possuiriam dificuldade de se alimentarem. Os animais de maior pescogo também levariam vantagem no processo de reprodugdo. Assim, ao longo de muitos anos, 08 bichos pescogudos teriam sido favorecidos pelo ambiente (foram selecionados naturalmente), € ‘os de pescogo pequeno acabariam extintos, ou migrariam para outro ambiente com condigées mai adequadas de alimentagdo e reprodugao, Suponhamos agora que em ver. de animais de pescogos grandes ¢ pequenos houvesse seres com visio e sem visio, ¢ que no lugar de um ambiente com o melhor alimento no topo das arvores existisse um local em que as melhores condigdes para sobrevivéncia (alimentagdo, protegdo contra XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase polticas 351 CEGUEIRA E BAIXA VI (0 NAO SAO DOENGAS NEM DEFEITOS... predadores, etc.) se localizasse no fundo do mar ou no interior de uma grande cavema, Com o passar dos anos, qual dos seres levaria vantagem de adaptagio pelo processo de selegdo natural? Recorramos 4 fiego para responder a esse problema, No filme Bird Box", pessoas videntes cometem suicidio ao verem algo enigmatico. Malorie, personagem interpretada por Sandra Bullock, duas outras criangas encontram uma alterativa para se salvarem: vendar os olhos para realizarem as agdes como deslocamento, procura de alimento etc. No contexto descrito, podemos supor que, com o passar de muitos anos, 0 sujeito que melhor se adaptaré ao ambiente mencionado sera aquele que nio possui a visio. Bird Box mostra um sentido da evolugdo que favorece aos cegos, explicitando que a posigdo de vantagem seri definida pela relagdo dialética entre as condigdes do individuo e do meio. Notemos agora 0 que afirma Darwin sobre animais que vivem em ambientes em que a visio no desempenha papel fundamental: Os olhos das toupeiras © de alguns roedores que vivem em tocas tém tamanhos rudimentares e, em alguns casos, so completamente cobertos por pele e pelos. Isso se deve provavelmente a redugdo gradual causada pelo desuso, mas talvez auxiliada pela selegdo natural. Na América do Sul, um roedor que vive em tocas, 0 teco-teco (ou “fenomys), tem habitos ainda mais subterraneos que a toupeira; ¢ foi-me as egurado por um espanhol que, tendo apanhado muitos deles, notou que eram frequentemente cegos, eu criei um que certamente estava nessa condigao, e a causa, como pareceu pela dissecgdo, foi uma inflamagao da membrana nictitante, J4 que a frequente inflamagio dos olhos deve ser prejudicial a qualquer animal e ja que os othos no so certamente indispensdveis para animais com habitos subterraneos, a redugo de seu tamanho com a adesdo das pilpebras © 0 crescimento de pelos sobre eles seria, neste caso, uma vantagem; e, se assim for, a selegdo natural constantemente auxiliaria os efeitos do desuso (DARWIN, 2018, p. 152), Para a teoria da sclegdo natural, se adaptardo a um determinado meio aqueles que possuirem melhores condigdes de alimentagdo ¢ reprodugio. Essas condigées nao so absolutas, mas dependerdo da relago entre as caracteristicas do individuo e do meio. Ter visio, por exemplo, pode representar vantagem para o desenvolvimento, entretanto, ndo ter também pode, Tudo estard condicionado, em termos biolégicos, a estrutura natural onde o vidente ou 0 invidente vive. Portanto, a visio nao deveria ser interpretada como o resultado da melhora ou do avango do processo de desenvolvimento de homens e mulheres, uma vez que ver e no ver so caracteristicas humanas. Cegueira e baixa visio no sio doengas nem defeitos, so diferengas belas de alguns 352 XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase poltieas DIDATICA(S) ENTRE DIALOGOS, INSURGENCIAS E POLITICAS individuos ¢ que resultam, quando de nascenga, da qualidade positiva de seus desenvolvimentos naturais. Quando adquiridas, implicam numa contingéncia inerente a existéncia humana, Mostramos até aqui que a visio, em termos biolégicos ¢ de forma unilateral, nfo pode ser considerada um atributo de superioridade de um organismo vidente em relagdo ao de um invidente Isto dependera das condigdes ambientais em que este organismo vive. Abordaremos na sequéncia que o ser humano nao se encerra nos seus limites bioldgicos de desenvolvimento. Traremos, para m deficiéneia visual. Argumentaremos que tanto, fatos sociais da relagdo entre pessoas com e essa relagdo & mediada por instrumentos psicolégicos (VIGOTSKI, 1997) que definem padrdes de percepedo, comportamentos ¢ capacidades PRINCIPIO 2: © VIDENTE FRENTE AO INVIDENTE, OU AO QUE POSSUI VISAO REDUZIDA, DEVE DEIXAR DE PERCEBER-SE HEGEMONICO © ambiente ocidental, em que se desenvolvem homens ¢ mulheres, vem favorecendo aqueles que enxergam, Mas, em tese, poderia possuir outra que fosse vantajosa as pessoas cegas € com baixa visio. E o que descreve o fato histérico abaixo: .] 6 0 que revelam estudos sobre 0 Egito Antigo, que ficou conhecido como “Terra dos Cegos”, em virtude dos altos indices de infecgées nos olhos, que levavam a cegueira; ¢ indicam que as pessoas deficientes visuais no softiam quaisquer tipos de discriminagdo, integravam as camadas sociais, recebiam tratamento diferenciado, inclusive em seus funerais (GUGEL, 2007). Esse fato mostra que as pessoas invidentes ou com visio reduzida ndo devem ser percebidas como anmalas, doentes ou defeituosas, pois “assim se apresentam todos os seres, naturalmente heterogéneos, variados, distintos. Se assim 6, entdo ser diferente é natural, e ai esta toda a riqueza humana” (SOUZA, 2014, p. 14). © que se construiu, histérica ¢ culturalmente, no mundo ocidental, foi o conceito de norma, uma ideologia’ que objetivou eliminar as diferengas ¢ criar um sujeito homogéneo e superior que nao reconhece as diferengas biolégicas e sociais como caracteristicas humanas, interpretando pessoas cegas ¢ com baixa visio como andmalas™. A partir de entio, perceberiamos o outro por meio de seus “atributos, ocupago, definindo, portanto, a sua identidade social” (GOFFMAN, 1980, p. 05). Essa construgao simbélica hegemoniza o vidente frente ao invidente, percebendo como indesejadas, frageis, limitadas e incapazes milhdes de pessoas no mundo XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase polticas 353 CEGUEIRA E BAIXA VI (O NAO SAO DOENGAS NEM DEFEITOS... ‘A ideologia do vidente como ser hegeménico frente a0 invidente se justifica e se fundamenta no modelo médico de deficiéncia, que considera doenga a cegueira e a baixa visio e, consequentemente, como doentes, os que as possuem. Notemos suas definigdes Deficiénei perda ou anormalidade de estrutura ou fungdo psicolégica, fisiolégica ou anatémica, temporéria ou permanente. Incluem-se nessas a ocorréncia de uma anomalia, defeito ou perda de um membro, drgio, tecido ou qualquer outra estrutura do corpo, inclusive das fungdes mentais. Representa a exteriorizagio de um estado patoligico, refletindo um distarbio orgdnico, uma perturbagdo no érgio. Incapacidade: restrigo, resultante de uma deficigneia, da habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal para o ser humano. Surge como consequéncia direta ou & resposta do individuo a uma deficiéncia psicolégica, fisica sensorial ou outra. Representa a objetivacdo da deficiéncia ¢ reflete os distirbios da propria pessoa, nas atividades e comportamentos essenciais a vida diéria (WERNECK, 2003, p. 24), Posicionamo-nos contrariamente aos preconceitos que 0 modelo médico visa legitimar, jé que: [...] uma das razes pelas quais as pessoas deficientes esto expostas a discriminagdo & que 0s diferentes sdo freqientemente declarados doentes, Este modelo médico da deficia ia nos designa © papel desamparado e passivo de pacientes, no qual somos considerados dependentes do cuidado de outras pessoas, incapazes de trabalhar, isentos dos deveres normais, levando vidas indteis, como esti evidenciado na palavra ainda comum “invalido” (“sem valor”, em latim) (STIL, 1990, p. 30 apud SASSAKI, 1999, p. 27). © modelo médico sobre deficiéneia negligencia que o ser humano planeja e constréi os contextos onde vive e se desenvolve, no aceitando que homens ¢ mulheres so constituidos por miltiplas diferengas. Representa a fobia que o vidente possui do cego: uma projego a qual busca evitar e fugir, ou 0 antimodelo humano que jamais pretende ser. Legitima o padrao de normalidade, posicionando de forma hegeménica o vidente frente ao invidente, O cego, segundo esse referencial ideoldgico, tem por caracteristicas naturais a fragilidade, a incapacidade e a limitago. Em suma, 0 modelo médico exprime a ideologia de que homens ¢ mulheres sio constituidos pela homogeneidade e que diferengas devem ser evitadas, desconsideradas ¢ eliminadas. Consideremos, ainda, que o ser humano ¢ 0 mundo so 0 produto de um processo dialético de modificagao ¢ formagio social. Homens, mulheres ¢ as estruturas fisicas ¢ simbélicas atuais representam um tipo 354 XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase poltieas DIDATICA(S) ENTRE DIALOGOS, INSURGENCIAS E POLITICAS de desenvolvimento histérico que 0 resultado da ago humana na transformagdo do mundo e da agdo do mundo transformado e em transformago na constituigao humana. Assim [..] © homem é homem ¢ 0 mundo ¢ histérico-cultural na medida em que, ambos inacabados, se encontram numa relagdo permanente, a qual o homem, transformando ‘© mundo, sofre os efeitos de sua propria transformagio. Neste processo histérico- cultural dinamico, uma geragdo encontra uma realidade objetiva marcada por outra geragdo ¢ recebe, igualmente, através desta, as marcas da realidade. Todo esforgo no sentido da manipulagio do homem para que se adapte a esta realidade, além de ser cientificamente absurdo, visto que a adaptago sugere a existéncia de uma realidade acabada, estitica e ndo criando-se, significa ainda subtrair do homem a sua possibilidade e o seu direito de transformar o mundo (FREIRE, 1983, p. 44). Temos aqui as bases teéricas do modelo social de deficiéncia. Segundo o Predmbulo da Convengdo da Organizag3o das Nagdes Unidas sobre os Dircitos da Pessoa com Deficiéneia: “Deficiéncia € um conceito em evolucdo”, a qual “resulta da interagdo entre pessoas com deficigneia ¢ barreiras comportamentais ¢ ambientais que impedem sua participagao plena ¢ eficaz na sociedade de forma igualitéria” (OMS, 2011, p. 4). Sob tal fundamentaco, consideramos que: Deficiéncia nao mais uma simples expresso de uma lesdo que impde restrigdes a participagdo social de uma pessoa. Deficiéncia é um conceito complexo que reconhece © corpo com lesio, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente, Assim como outras formas de opressdo pelo corpo, tais como 0 sexismo ou © racismo, os estudos sobre deficiéncia descortinaram uma das ideologias mais opressoras de nossa vida social: a que humilha e segrega 0 corpo (DINIZ, 2007, p. 9) E na perspectiva histérico-cultural que compreendemos o fenémeno da deficiéncia visual, quer dizer, como resultante da divergéncia entre a estrutura social visuocentrista e as principais caracteristicas sensoriais dos individuos cegos ¢ com baixa visio. Assim, pensar e agir de forma contra-hegeménica ¢ perceber que o desenvolvimento das pessoas cegas ¢ com baixa visio se dé num mundo social que estruturou majoritariamente os processos de aquisigGo de conhecimento observagio, comunicagao, ensino, aprendizagem, locomogio, transporte, trabalho, lazer, ete. em razo da percepedo visual, ou seja, de uma cultura de videntes* (MASINI, 1990). Os seres humanos nunca serdo réplicas, sempre possuirdo, em maior ou menor escala, em relagdo a qualquer caracteristica corporal (fisica, sensorial, intelectual, c.) ¢ culturais diferengas entre si, Segundo essa perspectiva, incapacidades ¢ limitagdes para realizar alguma atividade XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase polticas 355 CEGUEIRA E BAIXA VI (0 NAO SAO DOENGAS NEM DEFEITOS... specifica atribuida aos individuos cegos ¢ com baixa visio devem ter sua responsabilidade deslocada para o meio social, planejado © construido para a atuagdo protagonista, plena e hegeménica do homem ocidental branco, heterossexual, sem deficiéncia e magro, pois a produgio de exclusio das pessoas invisuais e com visio reduzida é um fato socialmente equivalente 4 construgao de exclusdo das mulheres, dos negros e dos indigenas. Na sequéncia, abordaremos a forma do vidente perceber o cego. Argumentaremos que isso ocorre por meio de suas representagdes de senso comum acerca do fendmeno da cegueira, o que, invariavelmente, produz preconceitos ¢ equivocos sobre as condiges sociais, fisicas ¢ emocionais do sujeito invidente. Acompanke. PRINCIPIO 3: © VIDENTE, AO PERCEBER © NAO VIDENTE, PROJETA-SE NELE Analisemos 0 exemplo real ocorrido em janeiro de 2017. Um cego, numa manha de domingo, caminhava com sua bengala ao lado do campo de futebol. Um senhor de aproximadamente 80 anos de idade, que fora diretor da escola onde 0 cego estudara quando crianga no ensino fundamental, posicionado no lado oposto da rua, subitamente, chamou-lhe aos gritos. O cego seguiu a dirego da voz, encontrou o senhor, o reconheceu e deu-the um longo abrago. Entdo, 0 senhor lhe disse: “nio fique triste, meu filho, tem gente numa situagao bem pior que a sua, meu irmao acabou de falecer de cancer”, O cego deu-Ihe um beijo no rosto e continuou seu trajeto. Na quadra seguinte pensou: “mas eu ndo estou tris e, estou feliz!” éncia concebida Para Merleau-Ponty (1971), 0 sujeito da percepgao deixa de ser a con: separadamente da experiéncia vivida ¢ da qual provém o conhecimento tornando-se 0 corpo, Nessa perspectiva, a percepgio emerge da relago corporal do sujeito no mundo: “O corpo é, entio, visto como fonte de sentidos, isto &, de significagdo da relagdo do sujeito no mundo; sujeito visto na totalidade, na sua estrutura de relagdes com as coisas ao seu redor” (MASINI, 2008, p. 73). Para compreender a complexidade da totalidade do conhecimento do sujeito, aqui o senhor de 80 anos de idade, é indispensavel considerarmos sua experiéneia perceptiva sobre © fendmeno da cogueira, “As coisas ‘se pensam’ em cada pessoa, porque no é um pensar intelectual, no sentido de funcionamento de um sistema, mas sim do saber de si ao saber do objeto, posto que ao entrar em contato com 0 objeto, o sujeito entra em contato consigo mesmo” (MASINI, 2008, p. 73) 356 XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase poltieas DIDATICA(S) ENTRE DIALOGOS, INSURGENCIAS E POLITICAS senhor no falava do cego e sim de si proprio. Ao vé-lo em movi nto, imaginou-se invidente caminhando, Percebeu-se incapaz de fazer, em relagdo ao pasado, presente e futuro, as coisas que ja fizera. Portanto, aquela experiéncia the fez autoprojetar o que é ser cego. “O que é percebido por uma pessoa (fendmeno) acontece num campo do qual ela faz parte; a identidade do mundo percebido vai ocorrendo por intermédio das suas préprias perspectivas e v: se construindo em movimentos de retomada do passado e abertura para o futuro, sempre sendo possivel novas perspectivas” (MASINI, 2008, p. 73). Isso denota as experiéneias perceptivas do senhor acerca da cegueira, reveladas nas caracteristicas negativas “cego é uma pessoa triste”, e na interpretagdo da inferioridade social ocupada pelo cego “tem gente numa situagdo bem pior que a sua”, Ocorre que a conclusio do senhor estava errada, uma vez que 0 cego encontrava-se feli Possivelmente, quando um vidente percebe um cego, projeta-se nele. Doravante, pensando falar do cego, fala de si como se fosse cego. Supde agir na condigdo de cego, no passado, presente € futuro, tudo que fizera, faz ¢ faria como vidente. Entao, se desespera e conclui: “ele é infeliz, triste e incapaz”. Na verdade, est dizendo: “se eu fosse cego, seria infeliz, triste e incapaz”. Assim, ¢ importante a tomada de consciéncia acerca de que quando o vidente fala do cego, na verdade esti falando sobre sua projegdo do ser cego. Essa projegdo pode ser equivocada produzir preconceitos. Descrevemos um desses preconceitos, ou seja, a percepgao hegeménica vidente frente a0 cego ou ao que possui baixa visio. APONTAMENTOS PARA A PROMOCAO DE UMA PRAXIS INCLUSIVA. Traremos quatro apontamentos cujo objetivo é contribuir para a promogdo de uma prixis inclusiva no contexto educacional da escola. 1) Uma praxis inclusiva devera tomar como referencial tedrico que a deficiéneia visual é um fenémeno social. Fragilidades, limit atributos s ¢ incapacidades no devem ser considerad: c intrinsecos de estudantes cegos ¢ com baixa visio, Como os espagos fi jicos e simbélicos da sala de aula foram historicamente planejados ¢ organizados segundo a cultura de videntes (MASINI, 1994), cesses estudantes vém experimentando dificuldades metodolégicas, linguisticas e atitudinais que thes colocam em posicao de inferioridade frente ao vidente, Transformado 0 meio nao natural da sala de aula, os estudantes cegos e com baixa visio passario a ter possibilidades sociais de aquisigao ¢ produgdo de conhecimento. XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase polticas 357 CEGUEIRA E BAIXA VI (0 NAO SAO DOENGAS NEM DEFEITOS... 11) Deve-se superar o valor hegeménico de que h seres humanos inferiores a outros. Analisamos 0 caso do cego frente ao vidente e argumentamos que tal preconceito é justificado pelo modelo médico de deficiéncia, Esse € um valor construido socialmente e transmitido pela Tinguagem as geragées, 0 que responsabiliza 0 processo educacional duplamente: a) no sentido de nao atuar como reprodutor desse valor; e b) no sentido de eliminé-lo, IID) Deve-se considerar que as relagdes dos estudantes se dio por agrupamentos entre elementos comuns e diferenciagdes entre incomuns. Temos aqui a fundamentagao para 2 elaboragio de processos comunicativos, metodolégicos © de materiais de ensino (representagdes ¢ experimentos), fundamentados no paradigma identidade ¢ diferenga. Por exemplo, no ensino de ciéneias, & lugar comum o discurso de licenciandos ¢ docentes que “a fisica, a quimica e a biologia sdo ciéncias muito visuais” (VERASZTO, 2018). O entendimento de fendmeno pode justificar tal percepgdo social: Segundo Bello (2006), fendmeno — phainomenon — tem sua origem etimoldgica na lingua grega ¢ significa aquilo que se mostra. Entretanto, 0 que se mostra, se mostra para o sujeito. Esse, por sua vez, percebe segundo seus interesses, o que implica dizer que um fendmeno sempre sera definido socialmente. Isso justifica 0 fato de a identidade visual aproximar videntes em tomo de representagdes e experimentos cientifi '$ percebidos a partir do olho, além de explicar, em partes, a exclusdo de alunos com deficiéncia visual de ambientes de ensino de ciéncias (CAMARGO, 2016). Se em termos de percepco, cegos e videntes possuem uma diferenca — ver e nfo ver, esses individuos poderiam possuir quatro identidades: ouvir, tatear, cheirar ¢ degustar (CAMARGO, 2018). Portanto, propomos 0 trabalho com maquetes e experimentos cientificos acessiveis para professores e alunos com ¢ sem deficiéneia visual, uma vez que partilhamos do referencial tedrico de que a relagdo sujeito/objeto é mediada por instrumentos e signos (VYGOTSKI, 1997), seja 0 objeto caracterizado pela representagdo do fendmeno, como, por exemplo, uma maquete, ou por um experimento. IV) E preciso reconhecer e institucionalizar 0 conceito de que a eiéne € uma construgdo social, portanto um fenémeno linguistico e cultural. Questionamos: No contexto escolar, que local ocupa a ciéncia dos povos indigenas ¢ afticanos? Por que quando estudamos a histéria da cigneia raramente notamos a presenga de mulheres, homens negros e pessoas com deficiéncias como protagonistas? Deve-se interpretar o contexto histérico de produgo de conhecimento cientifico como natural? Ou seja, os grandes nomes da fisica, quimica e biologia realmente possufam “mentes brilhantes” se comparadas as dos outros membros da sociedade? Sem negar o fato de que Newton, Einstein, Darwin etc. eram seres humanos capazes intelectualmente, concordamos que suas 358 XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Dilagos,nsurgéncase polticas DIDATICA(S) ENTRE DIALOGOS, INSURGENCIAS E POLITICAS existéncias foram, acima de tudo, condicionadas histérica e culturalmente. Em outras palavras, os ‘mesmos no teriam sido quem foram se essas condigdes tivessem sido outras. Assim, sem comparar © conceito de ciéncias ao de senso comum, deve-se superar o paradigma de que hd um conhecimento fixo e isolado presente na natureza chamado “ciéneias” e que existem alguns seres humanos “iluminados” capazes de descobrir tal verdade, ou seja, os europeus/norte-americanos, de sexo masculino, de cor branea e sem defi iéncia, Portanto, incluir implica também na inclusao da perspeetiva cultural do outro, ndo para superd-la, mas para compreendé-la, compartilhé-la e com ela dialogar, Finalizamos afirmando que pereeber as relagdes entre alunos videntes, cegos ¢ com baixa visio, segundo aquilo que Ihes so comum e incomum, contribuira para a construgdo de ambientes de ensino/aprendizagem —acessiveis, metodologias _interativas/participativas, _atividades experimentais multissensoriais, avaliagGes diagnésticas e formativas. A praxis inclusiva reconhece que a cegueira e a baixa visio no sio doengas nem defeitos. Pelo contrario, sio qualidades positivas de quem as possui, uma vez que implicam em: a) diferentes possibilidades de organi ragdio € transformagio social; € b) construgdo de linguagem em torno das relagdes de identidade e diferenga XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase polticas 359 CEGUEIRA E BAIXA VI (O NAO SAO DOENGAS NEM DEFEITOS... REFERENCIAS BELLO, A. A. Introdugio a fenomenologi Bauru, Sdo Paulo: Eduse, 2006. CAMARGO, F, P, Estrangeiro, Pieiade, 2, ed. So Paulo: [s..], 2018, 202 p. CAMARGO, E. P. Inclusio e necessidade especial: compreendendo identidade e diferenga por meio do ensino de fisica ¢ da deficigncia visual. Sao Paulo: Editora Livraria da Fisica, 2016. p. 256 DARWIN, C. A origem das esp Paulo: Edipro, 2018, DINIZ, D. © que é deficiéncia. Sao Paulo: Brasiliense, 2007. [Colegio Primeiros Passos, 324], FREIRE, P. Extensio ou Comunicagao? 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. 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Estados Unidos da América: NetFlix, 2018, 117 min, * Ideologia: forma nas quais os significados so produzidos, mediados ¢ incorporados como conhecimento, priticas sociais ¢ experiéneias culturais (GIROUX, 1997). ™ Aplicamos essa ideia as pessoas surdas, com deficiéncia auditiva, surdocegas, com deficiéneia intelectual, com doficigncia fisica, com transtorno global de desenvolvimento e com altas habilidades/superdotagio. © No Brasil existem aproximadamente 35,7 milhdes de pessoas com algum tipo de dificuldade visual (IBGE apud PORTAL BRASIL, 2012). Fssas pessoas, em sua maioria — em tomo de 29,2 milhdes, com o auxilio de algum instrumento éptico enxergam adequadamente, Contudo, hi aquelas que, mesmo apés a utiliza de culos ou lentes convencionais, nio conseguem realizar fungi sociedade visuocentrista, So 0s brasileiros com baixa visio — que totalizam aproximadamente 6,1 milhdes, © 08 brasileiros cegos, que somam entorno de 506 mil pessoas (PORTAL BRASIL, 2012), que definem comportamentos considerados ideais para viverem numa No mundo, a cada $ segundos uma pessoa fica cega. Estimava-se, que em 2017, 285 milhdes de seres humanos possuiriam deficigneia visual, dentre os quais 39 milhSes seriam cegos e 246 milhées teriam baixa visio. Ainda, até 2020, o niimero de individuos com deficits ia visual podera dobrar e 90% dos casos de cegueira se encontram nos paises emergentes e subdesenvolvidos (OMS, 2011) (Visual impairmentand blindness, 2017). * © “conhecer” esperado na educago do deficiente visual tem como pressuposto o “ver”, Portanto, niio se leva em conta as diferengas de percepeio entre 0 deficiente visual ¢ © videntc, “Pode-se supor que a desconsideragio (supracitada) tenha sido determinada pela desatengo 4 predominancia da visio ou aquilo que ficou encoberto pela familiaridade, oculto pelo habito, linguagem e senso comum numa cultura de videntes” (MASINI, op. cit, p. 29). XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGOGICOS: Didlogos,insurgénciase polticas 361

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