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Oeste 04
Elizabeth Lowell
SINOPSE
Verão de 1868
Echo Basi Território de Colorado
Está assustada.
Tem um jeito de andar doce como o mel.
As duas ideias assaltaram quase ao mesmo tempo a
mente de Rafael Chicote Moran, e não soube decidir o que o
atraía primeiro à jovem, o medo ou o seu modo de andar.
Esperava que fosse o medo.
Porém, o calor que correu em suas veias lhe dizia o
contrário. Sob as calças puídas e a jaqueta de lã masculina que
aquela jovem usava, havia um corpo muito feminino. E sob as
costas eretas, o queixo alto e a determinação, existia um medo
muito real.
Rafe ignorava o que provocava o medo da jovem ou porque
lhe importava tanto. O que sabia era que descobriria.
Permaneceu um momento mais em pé, no barro frio, em
frente ao único armazém de Holler Creek, e o gélido vento da
montanha atravessou sua grossa jaqueta de lã. A jovem
também percebeu porque estremeceu ao passar
apressadamente pela imunda porta do estabelecimento.
Com os rápidos movimentos de um homem dotado de um
ágil e poderoso corpo, Rafe seguiu a misteriosa jovem e entrou
no armazém. O vento fechou a porta às suas costas com um
forte estrépito, porém mal notou devido a concentrar toda sua
atenção na jovem, que parou com aquele andar tão seu, doce e
levemente oscilante, debaixo de um raio de luz que entrava pela
única janela que não estava quebrada e que não havia sido
coberta com tábuas. Durante alguns poucos segundos, os
olhos femininos percorreram avidamente as pilhas espalhadas
de comestíveis não perecíveis, ferramentas e roupas, enquanto
seus dedos se fechavam formando um punho envolvendo
alguma coisa que levava na mão.
Como se sentisse o intenso interesse de Rafe sobre sua
pessoa, a jovem se virou de repente e o olhou com lindos olhos
da cor de um selvagem e outonal céu azul, tão claros e
profundos que um homem poderia admirá-los eternamente e
nunca achar fim em tal beleza. Algumas rebeldes e longas
mechas escapavam do chapéu e Rafe viu admirado que
possuiam um brilhante tom castanho com reflexos vermelhos e
dourados.
Eu já a vi antes, pensou. Porém aonde?
Respirou profundamente e uma longínqua e perturbadora
lembrança voltou à sua cabeça.
Meu sonho. É a mulher que aguarda em pé à porta de
uma cabana, me esperando.
Paralisado, Rafe contemplou como um cacho escapava
inesperadamente do deteriorado chapéu e resplandecia como
seda contra seu pálido rosto.
Sem pensar, se aproximou ainda mais dela e levantou a
mão para recolocar em seu lugar a mecha, por cima da sua
orelha, porém quando percebeu o que ia fazer, parou, se
afastou e tocou a aba do chapéu.
— Bom dia, senhora. —Acompanhou sua saudação com
uma leve inclinação de cabeça.
A jovem piscou e olhou sua grande mão. Rafe sabia o por
quê. Movera-se tão rápido que ela não poderia estar certa se ele
pretendera tocá-la em vez de erguer o chapéu educadamente.
O olhar da jovem se deslocou então para o chicote
enrolado sobre seu ombro direito e seus olhos se abriram ainda
mais.
Os chicotes não eram algo especialmente incomum no
território do Colorado, mas não o suficiente para que a visão de
um deles surpreendesse alguém, pelo que a reação involuntária
da jovem indicou a Rafe que provavelmente ela sabia quem ele
era.
Ou, para ser mais preciso, conhecia sua reputação.
Com um tenso movimento da cabeça, a jovem respondeu a
sua educada saudação e lhe virou as costas com fria
determinação.
— Senhor Murphy? — disse com voz rouca.
Rafe sentiu que seu corpo ficava tenso como se a jovem o
tivesse acariciado dos pés à cabeça. Sua voz, assim como seu
modo de andar, era incrivelmente doce.
Passei muito tempo sem uma mulher.
No entanto, quando a ideia surgiu em sua mente, soube
que não era verdade. Nunca fora um homem dominado por sua
sexualidade. Havia passado muitos anos em terras longínquas
onde as mulheres eram proibidas aos estrangeiros; até mesmo
para um com voz suave e educada, fortes ombros, olhos cinza e
cabelos loiros.
— Senhor Murphy?
Como resposta, se ouviu um ruído e uma série de
impropérios, seguidos pelo som de alguns passos reticentes,
procedentes da parte de trás do armazém. O comerciante
finalmente havia abandonado seu acolhedor assento junto à
estufa para atender o frio armazém com aspecto de celeiro onde
os abastecimentos se amontoavam em desordenadas pilhas. O
fato de possuir o único armazém na região mineira de Echo
Bassin conseguira que Murphy se acreditasse ser um homem
importante, e agora fazia os clientes se sentirem como ele lhes
fizesse um favor ao vender seus produtos a preços abusivos.
Rafe se colocou a um lado e se virou instintivamente
quando a porta se abriu às suas costas. Sua mão esquerda
voou sobre o extremo do chicote que pendurava em seu ombro
direito enquanto se virava, porém, mesmo sendo rápido, o
movimento não pareceu ameaçador. Era simplesmente o
comportamento de alguém que estava acostumado a viver
somente em lugares perigosos entre o mais violento dos
animais: o homem.
E, na verdade, os quatro homens que atravessaram a
porta pareciam exemplos perfeitos do porque de Rafe ter
cuidado em não dar as costas a ninguém em Echo Bassin. Os
integrantes da família Culpepper eram inclusive mais perigosos
do que os caçadores de ouro. Escandalosos, grosseiros, sujos e
preguiçosos. Ninguém os apreciava especialmente, incluindo,
segundo se murmurava, a sua própria mãe, que vivia no
Arkansas.
Poucos podiam distinguir Beau Culpepper de seu irmão
Clim, ou Darcy de Floyd. E ninguém se importava. Não havia
grande diferença entre eles. Cabelos castanhos, olhos azul
claro, magros, irritáveis. Todos os Culpepper eram iguais e
nunca se separavam. Procuravam minérios, caçavam, brigavam
e se deitavam, juntos, com as prostitutas.
Dizia-se que também roubavam juntos, aos mineiros que
levavam seu ouro de Echo Bassin até Canyon City. Mesmo que
ninguém nunca tivesse conseguido provar. Porém, ninguém
insistia no assunto, nem em público nem em particular, porque
os poucos que contrariavam os Culpepper costumavam
despertar cheios de hematomas, ensanguentados e decididos a
provar a sorte em qualquer outra parte das Montanhas
Rochosas.
No entanto, apesar de que os Culpepper não pareciam ter
muito interesse em arrancar o ouro da dura rocha, a
marteladas, brigavam ferozmente com os pés, punhos, facas e
pistolas.
Silenciosamente, Rafe se aproximou um pouco mais da
parede com o fim de ter espaço suficiente para alguma
manobra. Não esperava que ocorresse nenhum incidente,
porém um homem cuidadoso sempre estava preparado e Rafe
era um homem extremamente cuidadoso. Daquela posição,
podia ver a jovem à sua direita e os Culpepper à sua esquerda.
Se os irmãos perceberam os movimentos de Rafe, não
demonstraram. Seus pálidos olhos azuis estavam fixos na bela
jovem como se suas miseráveis vidas dependessem daquilo.
— O que quer exatamente, Shannon? — Perguntou
Murphy, o dono do armazém. — Fale rápido. Minhas frieiras
estão me matando.
— Farinha, sal. — A jovem respirou agitadamente. — Um
punhado de banha de porco e um pouco de bicarbonato de
sódio.
— Como pagará? — Murphy rosnou. Era uma exigência,
mais do que uma pergunta.
— Com minha aliança. — Shannon respondeu, enquanto
abria a mão. Um círculo de ouro brilhava sobre a palma de sua
mão.
Ao descobrir que a jovem estava casada, Rafe sentiu uma
gelada sensação de decepção se apoderando dele.
Claro que está, disse a si mesmo acidamente. Uma mulher
como ela não viveria sozinha em um lugar como Echo Basin.
— É de ouro? — Murphy perguntou, olhando o anel.
— Sim.
Aquela curta resposta, assim como o leve tremor na mão
que estendeu ao comerciante, deixou entrever o nervosismo de
Shannon.
Rafe piscou em um gesto de compaixão pela jovem. O
inverno passado deveria ter sido muito duro para ela e seu
marido se era forçada a vender sua aliança por aquelas
escassas provisões.
Os dedos sujos de Murphy se demoraram na palma de
Shannon ao pegar o anel, porém quando os afastou da
imaculada pele da jovem, se moveram rápidos para comprovar
a qualidade da joia.
Enquanto o dono do armazém mordia a aliança, Shannon
deixou cair o braço direito ao lado. Suas roupas, assim como
suas mãos, estavam quase exageradamente limpas. Sem
perceber ela esfregou a palma da mão contra aquelas calças,
enormes, como se tentasse afastar a sensação do contato de
Murphy.
Os Culpepper observaram os movimentos da jovem e
riram.
— Ei, velho. Ela não gosta que lhe encoste suas garras
sujas nela. — Assoprou um deles.
— E as minhas, preciosa? Lavei-as na semana passada.
— Suas mãos não estão mais limpas do que as minhas
Beau. — O outro Culpepper apontou.
— Cale-se, Clim. — Beau replicou. — Procure outra
mulher. Esta é minha. Não é preciosa?
Shannon agiu como se os Culpepper não existissem.
Porém Rafe sabia que escutara todas e cada uma de suas
palavras claramente. Porém, se mantinha ali de pé, mais ereta
do que nunca e com as generosas linhas de sua boca, tensas,
em uma careta que indicava uma mistura de medo e nojo.
Será melhor que não pensem em tentar nada com ela,
Rafe pensou gravemente, apesar da superioridade numérica
dos Culpepper e de contar somente com o chicote.
Murphy mordeu novamente o anel, rosnou e o colocou no
bolso da engordurada camisa de flanela.
— Seu esposo não deve ter encontrado nada de valor em
suas jazidas, se todo o ouro que lhe resta é este. — Comentou
um momento depois.
—Pergunte a ele... — Shannon respondeu. — ... se puder
encontrá-lo antes que ele encontre você.
Murphy emitiu um som gutural e os Culpepper
explodiram em gargalhadas.
— As poucas provisões que conseguiu com seu anel não
durarão nem duas semanas, e muito menos todo o verão. —
Resmungou o comerciante.
— Meu esposo sabe manejar muito bem suas armas,
independente do que estiver caçando.
Shannon não disse mais nada.
Também não precisou fazê-lo. Os Culpepper se olharam e
logo Beau sorriu de forma inquietante.
— Sim, sabemos muito bem que seu esposo, John, o
Silencioso, é um bom atirador. — Beau assentiu. — Porém faz
muito tempo que não se sabe nada dele. E agora que penso, faz
mais de dois anos que não o vejo, mesmo estando por aqui há
mais de dois anos.
Ao escutar o nome do esposo de Shannon, Rafe
compreendeu porque a jovem tinha a coragem suficiente para
descer ao povoado, sozinha. A reputação de John, o Silencioso,
como caça recompensas fazia que um homem sussurrasse seu
nome em vez de dizê-lo em voz alta e que a mulher dele
pudesse andar tranquila, por mais sedutora que fosse.
— John não é muito sociável. — Shannon replicou. — As
maiorias dos homens que o encontram não vivem para contar.
Sua voz era fraca, quase quebradiça, e não se virara nem
uma só vez para encarar os Culpepper. Sabia quem eles eram.
E o que eram.
— Farinha e sal. — Repetiu a Murphy. — Já lhe paguei,
assim, agradeceria se me atendesse rápido. Tenho um longo
caminho de volta à cabana.
— Eu acredito. Sobretudo com essa velha mula que seu
esposo tanto gosta. — Murphy disse com indiferença. —
Encarregar-me-ei de seu pedido quando atender o forasteiro e
os Culpepper.
— Não tenho pressa. — Rafe interferiu. — Atenda à
senhora. Ela chegou primeiro.
O comerciante rosnou sem se deixar impressionar pela
lógica do forasteiro e olhou a mão direita de Shannon, a que ela
esfregara contra as calças para apagar a sensação de seus
dedos. Depois sorriu, mostrando dentes manchados pelo
tabaco de mascar.
— Se estiver disposta a me oferecer algo mais..., —
Murphy murmurou dirigindo-se a ela — talvez tenha suas
provisões preparadas antes do anoitecer.
— Meu esposo se sentirá muito decepcionado com você.
— E eu também. — Rafe acrescentou.
Para o comerciante não passou por alto aquela
advertência. Inclinou-se por baixo do balcão, puxou uma
escopeta e a deixou com um golpe seco sobre a madeira
estragada. O cano não apontava para ninguém, porém a mão
do ancião não estava longe do gatilho.
Rafe sorriu com cinismo. Murphy não era o primeiro
homem que o confundia com um vaqueiro comum e pensava
que uma escopeta era mais rápida do que um chicote. Aquele
tipo de mal entendido sempre jogava ao seu favor, no entanto,
esperava que tudo aquilo não acabasse em uma briga. A
superioridade numérica de seus inimigos era mais que
evidente.
— Prepare o pedido da senhora. — Rafe insistiu com
calma. — Se estes homens tiverem tanta pressa, atenda-me por
último.
Uma rápida centelha azul safira o deslumbrou quando
Shannon se virou para olhá-lo.
— Obrigada. — Sussurrou.
— Um prazer, senhora. — Rafe respondeu, tocando a aba
de seu chapéu com um elegante movimento.
Apesar da cortesia do forasteiro, a jovem afastou os olhos
antes que ele pudesse prolongar a conversa.
Rafe se surpreendeu ao se sentir decepcionado. Escutar a
voz de Shannon fora tão prazeroso como ver seu andar, ou
tentar escrutinar as profundezas de seus belíssimos olhos
azuis.
— Ei, preciosa. — Beau assoviou.
Shannon o ignorou e continuou de costas para os
Culpepper.
— Que amável por sua parte me mostrar seu traseiro. —
Beau comentou, sem se dirigir a ninguém em particular. — Um
pouco pequeno, porém suficiente para poder se agarrar a ele
quando a coisa ficar dura.
Os Culpepper riram como se seu irmão tivesse dito algo
divertido.
Shannon não se moveu.
— Diga-me, que postura seu esposo gosta mais, preciosa?
— Beau continuou. — Pela frente, ou faz você se apoiar sobre
uma cadeira e a ataca como um velho animal no cio?
O rosto da jovem perdeu qualquer sinal de cor ao ouvir
aquilo, porém não se mexeu, nem falou.
Rafe também não disse nada. Limitou-se a medir a
distância que havia entre Shannon e os quatro irmãos. Dois
dos homens pareciam se apoiar um no outro, balançando-se
muito levemente. Um fedor de suor velho e uísque emanavam
deles.
Talvez aqueles dois não estejam em condições de
apresentar briga, Rafe pensou Rafe rapidamente. Começarei
com os outros primeiro, e deixarei esses para o final.
Murphy se moveu com extrema lentidão pelo salão,
reunindo o pequeno pedido de Shannon.
— Se eu fosse seu esposo, — Beau continuou — Abaixaria
essas calças puídas e lhe...
— Murphy! — Rafe rugiu, interrompendo o grosseiro
comentário. — Não é necessário que pese o sal grão a grão.
Quero sair daqui antes do por do sol.
Beau lhe lançou um olhar duro.
Rafe sorriu. A curva que sua boca formava era mais fria,
do que tranquilizadora, porém Murphy estava muito longe para
notar e os Culpepper só tinham olhos para Shannon.
— Acalme-se. — disse o comerciante do outro extremo do
salão. — Estou fazendo o mais rápido que posso.
— Esforce-se mais. A senhora tem pressa.
Algo na voz de Rafe fez com que os Culpepper se virassem
e olhassem o forasteiro de cabelos claros.
Nada havia mudado. Continuava sendo um homem
tranquilo com um chicote enrolado no ombro direito. Sorria e
não possuia nenhum rifle ou revólver à vista. Os Culpepper, no
entanto, possuiam pistolas e não se importavam em usá-las.
— Deveria seguir o conselho de Murphy, amigo. — Beau o
avisou, arrastando as palavras.
Enquanto falava, levou a mão ao cinturão e a apoiou bem
na gasta empunhadura de madeira de seu revólver.
— É muito forte para acabar com dois de nós em uma
briga, — interveio Clim — porém somos quatro e você está
sozinho. Além disso, sabemos nos defender e estamos armados.
— Estou vendo. — Rafe respondeu com voz firme. Os
Culpepper resmungaram algo entre eles e chegaram à
conclusão que já haviam intimidado o forasteiro o suficiente,
assim, voltaram a acossar Shannon.
— Porque não se vira, preciosa? — Beau insistiu. — Por
muito bonito que seja o seu traseiro, preferia ver você de frente.
— Sim. — Clim o apoiou. — Estivemos nos perguntando
durante todo o inverno que aspecto teria sem esses trapos de
homem que usa sempre. Tem os mamilos escuros como os da
velha Betsy ou são rosados como os da Clementine?
— Clementine costuma usar rouge nos mamilos. — Outro
dos Culpepper interferiu. — E não é o único lugar onde ela usa.
— Não acredito, Darcy. — Clim replicou. — Eu lhe deixei
marcas suficientes na pele, para saber o que é real e o que é
rouge.
Um pequeno arrepio percorreu Shannon ao escutar
aquilo.
Somente Rafe notou, porque que era o único que tentava
perceber uma reação na silenciosa jovem. Beau será o
primeiro, sem dúvida. Necessita uma lição de boas maneiras,
pensou enquanto dava um passo à frente.
— Não. — Shannon disse em voz baixa ao mesmo tempo
em que virava a cabeça e olhava diretamente para Rafe. —
Ignore-os. Suas palavras não me afetam.
Os Culpepper não escutaram as palavras da jovem.
Estavam muito ocupados discutindo entre eles o que mais
Clementine empoava com o rouge.
Rafe passou um frio olhar pelos irmãos, com os olhos
apertados e se perguntou com quanta frequência Shannon se
via forçada a suportar suas grosserias. Provavelmente, cada vez
que aparecia no povoado para comprar as provisões.
Maldito seja seu marido por permitir que isto aconteça,
rosnou em silêncio. Se é tão bom com sua arma deveria ter
posto fim a esta situação.
Porém não o fez, assim, eu me encarregarei.
Um movimento na parte de trás da loja atraia a atenção de
Rafe. Murphy estava levantando lentamente a tampa do barril
de farinha, manuseava a peça de madeira como se pesasse
vários quilos e com a cabeça voltada para Shannon.
— O que você pensa, Floyd? — Beau zombou, acima do
som das discussões dos demais irmãos. — Os peitos desta
preciosidade são grandes o bastante para apertar até que
fiquem vermelhos, brancos e azuis como uma bandeira ianque?
Rafe tentou controlar inutilmente a raiva que apertava
suas entranhas. Não podia deixar de pensar em como se
sentiria se fosse sua mulher que estivesse sozinha, comprando,
enquanto vários homens falavam aos gritos sobre o aspecto que
teria nua e de que tamanho seriam seus seios.
Se Shannon fosse minha esposa, quando voltasse de
minha viagem daria caça aos Culpeppery e os faria pagar por
suas palavras.
Aquela ideia não satisfez Rafe. Às vezes, um homem não
regressava de suas viagens. E incluso quando o fazia nada
poderia apagar da mente de uma mulher a lembrança de uma
humilhação assim.
Maldito John, o Silencioso! Se não pode cuidar de uma
mulher como Shannon, nunca deveria ter se casado com ela
nem trazê-la a um lugar tão perigoso.
— E então, Floyd. — Beau insistiu. — O que opina de sua
dianteira? Floyd deixou escapar um som grosseiro e coçou a
entreperna pensativamente antes de dizer:
— Creio que John, o Silencioso é um pistoleiro
malditamente bom.
— E o quê? — Beau respondeu. — Nós não a estamos
tocando. Essa foi a única coisa que nos avisou, não deveríamos
tocá-la. — E a outra, — Clim acrescentou. — Nós também não
fizemos isso. — Beau disse. — Não depois da primeira vez. —
Floyd falou, tirando o chapéu e enfiando dois dedos em
buracos de bala que atravessavam a aba. — Aquele homem tem
boa pontaria. Devia estar a quase um quilômetro de distância
quando atirou em mim, e eu nem mesmo o vi.
— A única coisa que fizemos foi tentar ser amáveis com
sua esposa. — Clim afirmou. — A seguimos para ver se
chegava sã e salva a casa.
— Sim. Estávamos sendo amáveis. — Beau sorriu,
mostrando uma linha de irregulares e afiados dentes. — Como
agora. Simplesmente amáveis. Pensando em seus pequenos e
quentes músculos. —Muito, muito quentes. Com certeza. —
Darcy resmungou. — Maldita puta orgulhosa. — Clim
murmurou, entre dentes.
— Murphy, — Rafe rugiu, bruscamente — pese essa
farinha de uma vez. Estou começando a me cansar de ouvir
esses latidos.
— O quê? — Clim soltou.
Um sinistro silêncio caiu sobre todos os presentes,
enquanto os Clulpepper tentavam determinar se haviam sido
insultados pelo forasteiro.
Murphy fechou o barril de repente e se dirigiu com passos
lentos para a parte dianteira do armazém. Levava um pequeno
saco de farinha sobre um ombro e uma bolsa de sal muito
menor na mão esquerda.
— Acreditam que é das que gritam? — Darcy perguntou,
sem se dirigir a alguém em particular e voltando a concentrar a
atenção em Shannon. — De quem fala agora? — Beau
perguntou.
— Dela, de quem se não dela? — Darcy esclareceu,
impaciente. — Quando aquele velho que tem por marido a
inclina sobre uma cadeira e se diverte com ela, resiste, solta
gemidos e pede compaixão, ou simplesmente o deixa fazer o
que quer e geme pedindo mais como a puta que é?
Darcy será o segundo, Rafe decidiu.
Um sutil movimento de seu ombro direito fez o rolo do
chicote deslizar pelo braço, e seu punho se fechou ao redor do
extremo da arma enquanto as espirais se desfaziam caindo
para o chão.
O chicote ganhou vida.
Com cada pequeno movimento da mão esquerda de Rafe,
ondas de energia percorriam o couro provocando que todo seu
longo e fino comprimento vibrasse e sussurrasse delicadamente
como uma serpente se deslizando sobre a grama seca.
Rafe começou a assoviar suavemente, através dos dentes,
sem olhar para nada em particular e, ainda assim, observando
cada movimento que os Culpepper faziam. Porém, nenhum dos
irmãos percebeu o que acontecia. Já haviam decidido que o
forasteiro não significava nenhuma ameaça para eles.
Última oportunidade bastardo. Cuide de sua linguagem ou
me encarregarei de vocês.
Murphy passou junto a Shannon, olhando-a lascivamente
e deixou cair a farinha sobre o balcão.
— Volto com a banha de porco em um minuto. —
resmungou — Cuidem bem dela, jovens.
Os Culpepper riram e se aproximaram ainda mais de
Shannon. Beau a examinou com olhos vidrados e
especulativos, despindo-a, e explorando cada curva e sombra à
procura do vulnerável corpo feminino sob suas roupas puídas.
A jovem ficou totalmente imóvel, tal e como faria uma
presa no momento em que fosse descoberta por um caçador.
Estava a ponto de se deixar levar pelo pânico e fugir a toda
velocidade. Empalidecia e ruborizava alternadamente, lutando
para manter o controle.
— Não sei como ela gosta, Darcy, ou se gosta. — Beau
rosnou, arrastando as palavras.
Shannon estremeceu apesar de sua desesperada tentativa
para não demonstrar que estava escutando cada palavra.
— Ainda que sim, sei como eu gosto. — Beau continuou.
— Cortaria suas calças com um punhal, abriria suas pernas
e... Ah!
O grito de Beau silenciou o ruído do chicote, porém nada
conseguiu ocultar o sangue que saiu aos borbotões de sua
boca.
Veloz como o raio, Rafe voltou a dar uma sacudida com a
mão.
O longo chicote se retorceu e emitiu um chiado, golpeando
muito rápido para que o olho humano pudesse segui-lo. No
instante, Darcy se inclinou para cobrir a entreperna e tentou
gritar através de uma garganta que se fechava pela dor.
Rafe não hesitou nem um instante. O fator surpresa
jogava ao seu favor, porém era consciente de que só duraria
alguns segundos.
Ouviu-se mais um chiado.
Clim agarrou a camisa, que de repente estava aberta
desde o pescoço até à cintura.
Outro chiado.
O chapéu de Floyd caiu partido ao meio enquanto o
chicote continuava emitindo sons aterrorizantes.
Beau segurou as calças. Os botões de aço que em seu
momento as haviam mantido em seu lugar, começaram a saltar
e rolar pelo irregular piso de madeira do armazém.
Os Culpepper ainda não tinham se mexido de seus
lugares, completamente espantados pelo que estava ocorrendo.
— Não se perguntaram que aspecto vocês têm sem
roupas? — Rafe zombou.
— Aposto que não são mais que sacos de ossos e que
estão cheios de sujeira. E me atreveria a dizer que não
possuem nada que possa agradar a uma mulher.
O chicote assoviou e emitiu um chiado como selvagem
contraponto às palavras de seu dono, arrancando botões e
rasgando calças e camisas.
Enquanto os Culpepper saltavam entre gritos e suas
roupas caiam em tiras a uma velocidade vertiginosa, Rafe
continuou devolvendo-lhes as palavras que haviam usado para
envergonhar Shannon.
— Vão gritar e suplicar clemência? — zombou — Ou talvez
gostem tanto que os fustiguem que irão gemer e pedir mais? O
que farão? Falem de uma vez. Normalmente sou um homem
paciente, porém vocês conseguiram me enfurecer.
No momento, três dos irmãos estavam inclinados sobre si
mesmos, tentando se proteger.
O quarto, no entanto, tentou alcançar a pistola, porém o
chicote se esticou a uma velocidade incrível e o couro se
enrolou avidamente ao redor de seu punho. Após um rápido e
forte puxão, Rafe agitou a mão para libertar o chicote e voltou a
atacar. Floyd soltou um grito, se agitou freneticamente e caiu
de joelhos. O sangue corria de um longo corte bem abaixo das
sobrancelhas.
— Matarei o próximo que tentar alcançar sua arma. —
Rafe rugiu. —E isso inclui você, Murphy.
O comerciante havia voltado da parte traseira ao ouvir o
estrépito. — Eu não estou tentando alcançar nada. — Ele disse
com calma.
— Para seu bem, espero que assim seja. — Rafe o
advertiu.
Então, o chicote ficou imóvel.
O silêncio foi se fechando como uma tempestade enquanto
Rafe observava os irmãos Culpepper. Com exceção de Beau e
de Floyd, nenhum mais sangrava, só possuiam dolorosas
queimaduras produzidas pelo chicote. Ainda assim, todos os
presentes sabiam que Rafe poderia ter acabado com os quatro
Culpepper com a mesma facilidade com que desarmara Floyd.
O ataque havia sido rápido e inesperado e nenhum conseguira
reagir e contra atacar.
— Já vi latrinas mais limpas do que suas línguas. — Rafe
murmurou. — Se desejarem conservá-las, controlem-nas
quando estiverem perto de uma mulher. Entenderam?
— Os Culpepper assentiram lentamente.
— Tirem suas armas. — Ordenou-lhes.
Quatro revólveres bateram no piso.
— Não voltem a se aproximar da esposa de John, o
Silencioso. Entenderam? — Rafe bradou.
Os irmãos voltaram a assentir toscamente.
— Já os avisei, — Rafe continuou — e isso é mais do que
merecem. Agora desapareçam da minha vista.
Atordoado, Beau permitiu que Darcy o ajudasse a se
levantar enquanto Clim carregava Floyd.
Abriram a porta dianteira e os quatro saíram para o frio
externo cambaleando. Nenhum olhou para trás. Já tinham
visto tudo o que desejavam ver do enorme forasteiro.
Quando a porta bateu, se fechando, na loja somente
ficaram Rafe e o dono. Rafe olhou o balcão. A farinha e o sal
haviam desaparecido. Ergueu os olhos para Murphy e
comprovou que suas mãos sujas estavam vazias.
— Você é o homem ao qual chamam de Chicote. —
Aventurou-se o comerciante.
Rafe não respondeu. Virou-se e observou através da suja
janela do armazém como os Culpepper se afastavam montados
em suas esquálidas mulas.
Shannon havia desaparecido.
— Pelo menos, — Murphy continuou — assim é como o
apelidam desde que despelou aqueles mineiros do Canyon City
por insultar a esposa branca daquele mestiço chamado Wolfe
Lonetree.
Rafe se virou e olhou para o comerciante com uns olhos
da cor do inverno.
— Onde está Shannon? — Perguntou.
— Saiu quando você cortou a língua do Beau.
O chicote se mexia inquieto. Murphy o olhou com cautela,
como se fosse uma cascavel.
— Para onde foi? — Rafe insistiu.
— Penso que foi para sua casa. — O comerciante
respondeu, apontando com um dedo sujo para o norte. —
John, o Silencioso é o proprietário de algumas jazidas além da
bifurcação da avalanche.
— Ele vem sempre a Holler Creek?
Murphy negou com a cabeça.
O chicote estremeceu e assoviou suavemente.
O comerciante engoliu a saliva. Naquele momento, o
forasteiro apresentava uma incômoda semelhança com um
anjo vingador.
Ou, com o próprio Lúcifer.
— Com que frequência? — Rafe perguntou.
O tom suave não enganou Murphy. Conseguira dar uma
boa olhada aos olhos daquele homem e eram uma antecipação
do inferno.
— Uma vez ao ano. — Respondeu rapidamente.
— No verão?
— Não. Somente no outono. E durante os últimos quatro
ou cinco anos, vem somente pelas provisões do inverno.
Rafe apertou os olhos.
— Agora ela está metida em uma boa confusão. — Murphy
acrescentou. — Seu maldito marido é o único que mantêm os
irmãos Culpepper afastados dela e se murmura que está morto.
Uma pequena esperança começou a arder nas entranhas
de Rafe.
Talvez Shannon seja livre.
Uma viúva jovem. Alguém que não sentirá minha falta
quando eu tiver de novo a necessidade de viajar.
Na primeira vez que Rafe atravessou as Montanhas
Rochosas e contemplou seus cumes de esmeralda e granito,
sentiu no mais profundo de seu íntimo que em algum pedaço
daquele lugar habitava uma mulher.
Que não conhecia e que o esperava fazia tempo. Estava
tão certo daquilo que até mesmo, via aquela imagem em seus
sonhos; a porta aberta deixando entrever a luz dourada do
interior da cabana, neve por todas as partes e picos que se
erguiam submergindo-se no amanhecer.
Porém nos últimos meses percorrera as belas e letais
montanhas do Leste ao Oeste e do Norte ao Sul, e somente
encontrara a sua própria sombra cavalgando a frente dele,
empurrada pelo sol que ia subindo mais e mais.
— Acredita que John, o Silencioso está morto? — Rafe
exigiu saber.
Murphy encolheu os ombros, parecendo pouco disposto a
dizer mais. Porém quando olhou de esgueio ao perigoso
forasteiro, decidiu continuar falando.
— Não tem sido visto desde que se abriu o caminho que
conduz às montanhas. — comentou finalmente — Alguns dias
depois nevou muito e o caminho permaneceu fechado durante
semanas.
— Onde foi visto pela última vez?
— Na Avalanche Creek, dirigindo-se para suas concessões
sobre aquela velha mina que tanto gosta.
— Quem o viu?
— Um dos irmãos Culpepper.
— Quanto tempo faz isso?
— Cinco, ou seis semanas. Não somos muito conscientes
da passagem do tempo por aqui. Ou está nevando, ou não.
Esse é o único relógio que importa.
— E ninguém o tem visto em seis semanas?
— Assim é, senhor.
— E isso é normal?
Murphy rosnou.
— Não há nada normal naquele mal nascido. É um velho
imprevisível, mesquinho e incrivelmente perigoso. Chega
quando menos se espera e se vai do mesmo modo. Um homem
duro, John, o Silencioso. Realmente duro.
— A maioria dos caça recompensas são assim. — Rafe
disse, secamente. — Alguma vez esteve fora durante mais de
seis semanas?
Murphy entrefechou os olhos e raspou a barba
embaraçada que cobria sua mandíbula.
— Não saberia lhe dizer. Uma vez, talvez, em sessenta e
seis. — disse por fim — E em sessenta e um, quando foi pela
jovem ao Leste.
— Faz sete anos. — Rafe murmurou. — Antes da guerra...
— Exato. Muita gente veio ao Oeste naquela época.
A ideia de que Shannon tivesse permanecido casada tanto
tempo com um homem como o que Murphy lhe descrevia, o
aborreceu. Ele estivera na Austrália durante a Guerra da
Secessão, no entanto, sabia como fora brutal para as pessoas
que ficaram presas entre o Norte e o Sul. Na verdade, sua irmã
Willow conseguira sobreviver a duras penas.
Willy também poderia ter se visto forçada a se vender para
um ancião para continuar vivendo, Rafe pensou em silêncio.
Porém ela teve sorte. Conseguiu se manter com vida e solteira
até que conheceu um homem a quem pode amar. Caleb Black
era um homem duro, porém seria capaz de dar sua vida por
ela.
— Sim. — Murphy continuou. — Imagino que Shannon
agora esteja viúva. Houve muitas avalanches nesta primavera.
Provavelmente seu esposo ficou preso em algum lugar além da
bifurcação da Avalanche Creek. Os Culpepper também devem
acreditar nisso, ou não tomariam tantas liberdades com ela.
Rafe não disse nada. Simplesmente ficou ali de pé,
escutando, enquanto o chicote se retorcia e assoviava aos seus
pés como uma longa serpente.
Provavelmente também ela morra quando chegar o
outono. — Murphy acrescentou com alguma satisfação. — As
provisões que comprou mal durarão alguns dias. Se tivesse
sido mais amável comigo e menos orgulhosa...
A voz do comerciante se apagou ao ver o modo como o
forasteiro o olhava.
— Vi um cavalo amarrado na entrada do povoado. — Rafe
disse em tom letal. — Estaria à venda para usá-lo como animal
de carga?
Se tiver ouro, não há nada que não possa comprar em
Creek.
Rafe tirou algumas moedas do bolso de suas calças. Eram
de ouro e tilintaram ao cair sobre o balcão.
— Comece a reunir provisões. — Ordenou.
Murphy alongou a mão e recolheu as moedas com
surpreendente rapidez.
— E quando pesar os comestíveis, — Rafe acrescentou
friamente — mantenha seu sujo dedo gordo longe da balança.
Surpreendentemente, Murphy sorriu.
Poucas pessoas são rápidas o bastante para ver o que faço
com a balança.
— Eu sou rápido.
O comerciante deu uma gargalhada e começou a seguir as
instruções do perigoso forasteiro.
Quando Rafe retornou ao armazém com o esquálido cavalo
negro de carga, suas provisões já estavam preparadas. Em uma
hora, tinha carregado tudo e estava pronto para partir.
Saltou sobre a sela de seu grande cavalo cinza, pegou as
rédeas do animal de carga e partiu, cavalgando através da
tempestade, seguindo os rastos de uma jovem com os olhos
cheios de medo e um andar incrivelmente sensual.
Quando o sol começava a se pôr entre as montanhas, Rafe
atravessou um barranco pouco profundo e arborizado que
levava a uma clareira. No outro extremo o aguardavam a
mulher e a cabana que via em seus sonhos.
Porém, Shannon possuia um cachorro enorme ao seu
lado, uma escopeta nas mãos e uma expressão no rosto que
indicava que não queria nada com o homem conhecido como
Chicote Moran.
CAPÍTULO 2
[←1]
Mamífero ruminante selvagem, maior, mas parecido ao touro, com corpo robusto,
giba, chifres curtos e curvados para cima. Pelos grossos de cor marrom escuro,
mais largo na parte anterior do corpo. Vive em manadas, na América do Norte e
Europa.