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MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

A evolução humana se construiu sobre um


caso de esquizofrenia leve que nos torna capazes de apresentar
objetos que estão fisicamente ausentes.
Herbert Hrachovec

alar em m ediações nos dá um a boa ocasião para relem brar

F que não há m ediação sem signo. São os sign o s, as lin g u a ­


gen s que abrem , à sua m aneira, as portas de acesso ao que
cham am os de realid ad e. No coração, no âm ago, no cerne de
q u aisq u er m ediações - cu ltu rais, tecnológicas, m id iáticas - está
a lin g u ag e m , é justam en te a lin g u ag e m , cam ada processual m e­
d iad o ra, que releva, vela, desvela para nós o m undo, é o que nos
co n stitu i como hum anos. Ela é tão onipresente, tão co n stitu tiv a
da nossa condição pensante de an im al que ri e chora que, como a
carta roubada de E dgar A llan Poe, por sua g rita n te evidência,
p ag a o preço de não ser notada (ver San taella, 1985). Fala-se aos
quatro ventos das m ediações m id iáticas, das m ediações cu ltu rais,
das rem ediações (esta ú ltim a expressão, aliás, não d eixa claro de
que se trata: re-m ediação ou re-m idiação), mas o papel que a lin ­
g u ag em desem penha nesses processos é sem pre tão esquecido que
tenho cham ado de “ponto cego da re tin a”.

íomhção
LINGUAGENS LÍQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

B ela é a ep ígrafe de H rachovec, ao colocar na face de nossos


olhos o fato de que somos portadores de um a certa esquizofrenia,
dada a capacidade, de que a lin g u ag em nos dota, de não apenas
presentificar, em sons, tin tas, form as, luzes, cores ou palavras,
realidades sensíveis e sensórias in éd itas, ou de apontar, d esign ar
coisas e fatos que estão d ian te ou passaram pelos nossos olhos,
mas tam bém —e neste ponto a esquizofrenia se acentua —de tra­
zer à presença, re-presentar, sob certos aspectos e dentro de certos
lim ite s, algo que está ausente, em algu m ponto do tem po e do
espaço concreto, pensado, sonhado, im agin ado ou alucinado. Isso
certam ente não passou despercebido a Freud quando nos conside­
rou como seres desnaturados, isto é, fora da natureza. Tam bém já
estava no G ênesis 1, em que a perda do paraíso é a perda da ino­
cên cia de sim p lesm en te ser, sem a necessidade da nom eação.
D esde então ab riu-se o fosso entre nom ear e ser. O nome não
pode jam ais asp irar à condição de ser. Essa é, e sem pre será, a lu ta
etern a da poesia, na sua sede de ser a coisa m esm a e que a palavra
p o ética só pode evocar, su g e rir ou m esm o roçar, estar rente,
quase lá, na m edula da m atéria vertente da vida que se esvai.
S ign o ou lin g u a g e m deve ser aq u i en ten dido no sen tido
p ra g m aticista am plo de C harles S. P eirce, para o qual o conceito
de sign o já com eça no p ensam ento. L in g u ag em é pensam ento.
Q u alq uer coisa que esteja de q u alq u er modo presente à m ente —
fragm en to s de frases, q u ase-im ag e n s, m ovim entos de atração e
repulsão de id eias, sen tim en to s, em oções —é sign o . A lém disso,
lin g u a g e m in c lu i percepção e ação. É célebre a declaração p eir-
cian a (CP 5 .2 1 2 ) de que

o s e le m e n to s d e t o d o c o n c e ito e n tra m n o p e n s a m e n to ló g ic o
pela p o rta d a p e rc e p ç ã o e sa e m p ela p o rta d a a ç ã o d e lib e rad a;
e a q u e le s q u e n ã o p o d e m m o s tra r s e u s p a s s a p o rt e s e m a m b a s
as p o rta s d e v e m ser d e s a u t o r iz a d o s pela razão.

P en sam en to s-sign os que p ersistem são crenças, isto é, h á b i­


tos de pensam entos que funcionam como p rin c íp io s-g u ias de
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nossas ações. O que se tem a í, p o rtanto, é um a teo ria m u ito


m ais co n sisten te e robusta que a to la m etáfora dos m em es, um a
das razões da fam a de R ich ard D aw kin s, que, por sua s im p lic i­
d ade, ag rad a a tantos estudiosos in ad vertid o s da com plexa tra ­
m a m ed iad o ra da lin g u a g e m . Esta nos cham a a atenção para o
fato de que os signos m ais im portantes não são aqueles que vaga-
bundeiam , m ovim entam -se ou insistem em nossa m ente, ou sal­
tam , sabe-se lá como, talvez à m aneira das p ulgas, de um a m ente a
outra, como quer D awkins. Signos que im portam são aqueles que
são externalizados de modo a serem com unicados. M ais relevantes
ainda são aqueles que se m aterializam (para além da fala, pois esta
é fugaz, aparece e desaparece no instante de sua em issão), de modo
que ocupem seus lugares no m undo, durem no tempo, sobrevivam
aos seus autores, num a espécie de vingança branda contra a m orta­
lid ad e, e p erm itam a com unicação incessante.
M esm o quando se apresenta na sua n atureza m e n tal, todo
sign o , toda lin g u ag em tem um corpo, encarna-se, m aterializa-se
em alg o físico. C ontra aqueles que supunh am que o verbo é um
dom do esp írito , flu tu and o em a lg u m a estrato sfera ab strata e
in ta n g ív e l, já notavam M arx e E ngels que a fala é vibração de
ar, cam in h an d o de u m a boca a um ouvido. Se a fala, evanescen-
te e fu g id ia , já é alg o físico , o que d izer da p alav ra esc rita, em
p edra, couro, p ap iro , p apel. A té os poetas, como João C ab ral,
têm co n sciên cia ag u d a de que é m in eral o pap el como são m in e ­
rais as p alavras nele in scritas. P o rtan to , a lin g u a g e m — cu ja
função p rim o rd ial é a m ediadora e, só por isso, pode ter função
co m u n icativ a, pois não h averia com unicação se não houvesse o
que co m un icar — é sem pre lin g u a g e m en carnada, m esm o que
essa carne seja a do sonho, de um a p e líc u la fílm ic a , de elétron s
que bo m b ardeiam um a tela.
O corpo m a te rial do signo - o som , as tin ta s , a g ra fia - não
pode e x istir sem o suporte em que se plasm a. Não se pode separar
o d an çarin o da dança. A ssim tam bém não se pode separar o som
do in stru m en to ou q u alq u er o utra fonte de onde ele em ana; não
se pode sep arar a fala da vibração que produz no ar. Sem um

comàção
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sup o rte - parede, tecid o ou m ad eira tin tas não p o deriam


criar lin h a s, d ireções, form as, volum es, luzes e som bras, e p a la ­
vras não p o d eriam ser in scritas.
Tudo isso p areceria apenas óbvio se os suportes não tivessem
h isto ricam en te se expandido em m eios técnicos e tecn ológico s,
quan do com eçou a ficar m ais co m p licad a a sim p lic id a d e ap a­
rente do in e x tric áv e l laço das lin g u a g e n s n aq u ilo que lhes dá
corpo. Isso teve in íc io com a câm era fo to gráfica e, de lá p ara cá,
as tecn o lo g ias de produção de lin g u a g e m foram se m u ltip lic a n ­
do e os circu ito s de sign os que por elas tran sitam , crescendo
p ro gressiv a e espantosam ente. O que, no m undo artesan al, era
cham ado de “su p o rte” passou a ser denom inado “m eio de com u­
n icação ”, pois a carac te rístic a m ais fu n d am en tal dos m eios te c­
nológicos de p rim e ira geração, de n atureza m ecânica, está no
seu poder de reprodução, como foi m u ito bem dem onstrado por
B en jam in (1 9 7 5 a ), no seu an to ló gico ensaio sobre a rep ro d u ti-
b ilid a d e técn ica. A re p ro d u tib ilid a d e dos signos alarg a seu p ú ­
b lico recep to r e, co n seq uen tem en te, seu poder com un icativo .
D aí esses m eios serem cham ados de “m eios de com unicação de
m assa”. Eles in tro d uziram sub stan ciais m udanças so cio culturais,
econôm icas e p o lític a s, m udan ças que se acen tuaram quando os
m eios m ecânicos passaram a conviver com os m eios de segun d a
geração , m eios eletrôn ico s — rádio e televisão . A ssim , a repro­
dução dos m eios m ecânicos v iu -se su p lan tad a pelo poder de d i­
fusão dos m eios eletrôn icos.
Foram de tan tas ordens os im p acto s sociais provocados pelos
m eios de m assa que não surpreende que o foco das atenções dos
estudos e p esq u isas tenha se vo ltado p rio ritariam e n te para esses
im p acto s. E certo tam b ém que a lin g u a g e m nunca foi nem será
um fim em si m esm a. J á na sua em ergência ela teve por propósito
p ro d u zir laços so ciais, levar à ap ren d izag em de atenções com par­
tilh a d a s e ao estab elecim en to de padrões sociais que pudessem
m an ter o co m p artilh am en to e os laços da espécie. N essa m e d i­
da, como q u er D onald (2 0 0 1 b , p. 2 5 3 ), a gran d e lin h a d iv isó ria
da evolução h um ana não foi m arcada p ela lin g u a g e m em si, m as
I

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p ela form ação de com unidades c o g n itiv as, de modo que a cog-
nição sim b ó lica não po deria ter sido gerad a esp o ntan eam ente
en quan to essas co m un idades não fossem um a realid ad e. E viden­
tem en te esses p rin cíp io s o rigin ário s foram se tornando cada vez
m ais com plexos e co n trad itó rio s a cada novo modo de produção
econôm ica, do escravocrata para o feudal e, então, p ara o c a p i­
ta lism o , cu jas tran sm utaçõ es, que se aceleraram de dois séculos
p ara cá, fizeram -se acom panhar por inovações tecn o ló gicas que
se co n stitu em ao m esm o tem po em suas forças m otrizes e fru ­
tos, em seus in stru m en to s e efeitos.
N em por isso, en tretan to , pode-se esquecer, sob q u aisq u er
circu n stân cias, que aq u ilo que as tecn o lo gias co m un icacio n ais
fazem circ u lar são lin g u a g e n s dos m ais diversos tip o s, d ep en ­
den tes do m eio em que se m a terializ a m . A lin g u a g e m do jorn al
é d is tin ta da do cin em a, que é d is tin ta da da telev isão , e assim
por d ian te. Em bora não seja exatam en te esse o sen tid o que
M cLuhan q u is d ar ao seu cap ítu lo cham ado “O m eio é a m en sa­
g e m ” (1 9 6 4 , pp. 2 3 -3 5 ), essa frase pode ser re in terp retad a como
in d icad o ra da in sep arab ilid ad e dos processos de signo s em re la ­
ção aos m eios em que tom am corpo.
Em razão disso, não se deve ignorar que os im pactos dos m eios
de m assa e os am b ien tes so cio cu ltu rais que criam estão su p o rta­
dos por m udan ças na pró p ria n atureza da lin g u a g e m . A n tes da
em ergên cia dos m eios de com unicação de m assa os sign o s, a
p alav ra e a im ag em eram estático s e só se m istu rav am com a lg u ­
m a d ificu ld ad e. A p a rtir do jo rn al, p alav ra, foto, d iagram ação
passaram a conviver em sin taxes h íb rid as, resu ltan tes da h a b ili­
dade de m an ip u lar a lin g u a g e m de form a v isu al e esp acial.
M u ito rap id am en te o cin em a pôs em m ovim ento a im agem fixa
da fo to grafia, sonorizou-se, incorporou o d iálo go falado, todos
jun to s cooperando p ara a com posição de um a fó rm ula m á g ica e
im b a tív e l p ara a arte de co n stru ir h istó rias. A televisão , então,
realizo u a proeza de levar, com as características que lh e são p ró ­
p rias, essa m esm a a lq u im ia p ara dentro dos nossos lares. Tudo
isso parece com provar que a p ecu liarid a d e do desen volvim en to

comun^çgQ
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c o g n itiv o hum ano está na sua condução para o desabrochar de


m en tes h íb rid a s, co nsubstanciadas em redes de co nhecim ento,
redes de sen tim en to s e redes de m em ória.
De fato, a h ib rid ização dos processos co gn itivo s hum anos
pode ser observada na h ib rid ização cada vez m ais acen tu ad a dos
m eios de com unicação e das lin g u a g e n s que são p ró prias deles.
B asta observarm os — sem que tenham os de v o ltar nosso olhar
p ara m ais lo n ge do que o tem po transco rrido de dois séculos
p ara cá —que já estam os im ersos neste m om ento —segun d a m e­
tade da p rim e ira década do novo m ilên io —na q u in ta geração de
tecn o lo gias co m u n icacio n ais. Os m eios de com unicação de m as­
sa eletro m ecân ico s (p rim e ira geração) e eletroeletrô n ico s (se­
g u n d a geração ) foram seguid o s por aparelh o s, d isp o sitivo s e
processos de com unicação narrowcasting (terce ira geração). Ao
m esm o tem po em que iam m inando o do m ín io ex clu siv ista dos
m eios de m assa, esses processos p rep aravam o terreno da sen si­
b ilid a d e e cognição hum anas para o su rgim en to dos co m p u ta­
dores pessoais lig ad o s a redes telein fo rm áticas (q u arta geração ).
E stes, por sua vez, foram m u ito rap id am en te sendo m esclados
aos aparelhos de com unicação m óveis (q u in ta geração ), co n sti­
tu in d o assim , em m u ito pouco tem po, cinco gerações de tecno­
lo g ias co m u n icacio n ais co existen tes que, aliad as a saberes que
delas se o rig in a m , p ráticas so ciais e in stitu c io n a is , p o líticas p ú ­
b licas, form as de o rganização b u ro cráticas e fluxos do c a p ita l,
“en tretecem um a rede cerrada de relações, em que nenhum a d e­
las é ‘cau sa’ das d em ais, m as todas se co n figuram como ‘a d ja ­
cências h istó ric a s’ fo rtem en te a rtic u lad a s, que expressam e s i­
m u ltan eam e n te produzem m utações nos modos de se perceber,
conceber e h a b itar o tem p o ” (Ferraz, 2 0 0 5 , p. 52).

1. CINCO GERAÇÕES TECNOLÓGICAS

N em é preciso enfatizar o que m uitos já têm afirm ado: o estu-


peficante ritm o , cada vez m ais acelerado, das invenções tecnoló-
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gicas no transcurso de apenas dois séculos. Se prestarm os atenção,


ficará percep tível que grande parte dessas invenções é co n stitu íd a
por tecnologias que increm entam a capacidade hum ana p ara a
produção de lin g u a g em , portanto, tecnologias co m unicativas ou
m eios de com unicação que estão atu alm en te na sua q u in ta g e ra ­
ção, conforme serão m ais bem detalhadas abaixo.

1.1. Tecnologias do reprodutível

A era da re p ro d u tib ilid ad e técn ica —jo rn al, foto e cin em a —


foi estu d ad a com inco m parável b rilh o por W a lte r B en jam in .
P ro d uzid as com o a u x ílio de tecn o lo gias eletrom ecân icas, essas
lin g u a g e n s lan çaram as sem entes da cu ltu ra de m assas, cujo p ú ­
b lico receptor aflorava nas m etrópoles que despo ntavam como
frutos da explosão dem o gráfica. Esta foi m a g istra lm e n te tr a ta ­
da por E dgar A llan Poe, quando d elin eo u a nova condição h u m a­
na em m eio à m u ltid ão , e etern izada nos poem as Les fleurs du mal
por B au d elaire. N ascia a í a estética do choque, explo rada pelas
van gu ard as a rtístic a s que, com suas sin taxes v isu ais rup to ras,
sin co p ad as, m u n iciav am a sen sib ilid ad e p ercep tiva dos obser­
vadores com um novo tip o de o lh ar ex ig id o pelo cinem a.
As tecn o lo gias da re p ro d u tib ilid ad e in tro d u ziram o au to m a-
tism o e a m ecanização da v id a, tan to nas fábricas em que res­
p o n d iam com eficiên cia à aceleração da produção de m ercad o ­
rias q uan to nas cidades cujo ritm o , sob a luz das redes de en erg ia
e lé tric a recém -in au gu rad as, an un ciava os novos tem pos em que
os esp etáculo s da novidade, da p u b lic id ad e , da m oda, da sofis­
ticação e do luxo p assariam a alim e n ta r os prazeres fugazes do
consum o.
P ara caracte riz ar as tran sform ações que as lin g u a g e n s n as­
cid as da re p ro d u tib ilid a d e p ro d u ziram na p ercep ção e c o g n i-
ção h u m an as, no liv ro sobre o p e rfil c o g n itiv o do le ito r im er-
sivo (S a n ta e lla , 2 0 0 4 b ), a tr ib u í ao le ito r das lin g u a g e n s da era
d a repro dução té c n ic a o caráter da m o v ên cia, um le ito r m o-
ven te que fo lh eia as p ág in as do jo rn a l, d iag ram ad as com texto

™ % ç a o
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e im a g e n s , com o m esm o o lh ar a le rta e desco n tín u o que lh e é


e x ig id o p ara a o rien tação en tre os s in a is , luzes e m o vim entos
d a g ra n d e cid ad e. As im ag en s que o o lh ar desse le ito r c ap tu ra
do in te rio r dos tren s, dos bondes e dos carros em m o v im en to
é s im ila r ao das câm eras de cin em a, que se tornou a arte d e fi­
n id o ra d a m o d ern id ad e. B em d iferen tes, en tre ta n to , são os
m odos de p ro dução , tran sm issão e recepção das lin g u a g e n s
qu e foram in tro d u z id a s p elas te cn o lo g ias e le tro e le trô n ic as.

1.2. Tecnologias da difusão

A ssim que entraram no m ercado da in d ú stria cu ltu ral, o rádio


e a televisão com eçaram a se alastrar a passos largos. O g ig a n tis ­
mo de sua penetração adveio não apenas da sua expansão no espa­
ço, m as, sobretudo, do seu poder de difusão, que é responsável
p ela ascensão da cu ltu ra de m assas e se tornou m ais agudo com a
transm issão v ia satélite . Q uando colocadas lado a lado das m íd ias
eletroeletrô n icas (rádio e televisão), as m íd ias eletrom ecânicas
(jo rn al, foto e cinem a) aparecem como m íd ias cultas. J á d izia
M cLuhan que o su rgim en to de um novo m eio tende a estetizar e,
podem os acrescentar, e litiz ar, os anteriores.
P is c ite lli (2 0 0 5 , p. 142) fala de três etap as no cu ltiv o das
au d iê n c ia s te le v isiv a s. U m a época de can ais ún icos, de fran jas
ho rárias p recisas, de p ro gram as de alto consenso e h o m o gen ei­
zação. D epois, ch egaram em issoras como a C N N e M T V com
u m ritm o claro de disp ersão e co m p artim en tação . E n fim , v ie ­
ram os re ality shows com um in tercâm b io cada vez m ais flu id o
en tre a te la e a sala das casas. P ara ele, a p ó s-televisão seria a
fase in te ra tiv a m áxim a da te lev isão , em cu ja te la, segun do
S q u irra (2 0 0 5 , p. 8 4 ), em qu e hoje assistim o s u n icam en te a
p ro gram as te lev isiv o s gerados “na cabeça da red e”, passarão a
ser v isu alizad o s as ch am adas telefô n icas, os e-m ails, o correio
de voz, as m u ltic âm e ras etc.
E n tretan to , falto u um a etap a na seq ü ên cia en u n ciad a por
P is c ite lli: a do controle rem oto, do videocassete, da p o ssib ilid ad e
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de g rav ar p ro gram as p ara se ver m ais tard e, a da T V a cabo;


en fim , um a série de equip am ento s que foram intro d u zin d o um
tip o de m ediação tecn o ló gica d istin to d aq u ele que está na base
da c u ltu ra de m assas.

1.3. Tecnologias do disponível

A ndar pelas ruas, pelos parques e à beira-m ar com o walkm an


no ouvido; grav ar um p ro gram a de televisão para a ssistir em
um horário que nos convém ; o uvir m ú sica no carro, p ara nos
acalm ar ou nos a g ita r ain d a m ais no trân sito en ervan te; tira r
xerox de apenas um artig o de um a revista e in se ri-lo em um
arq u iv o de cópias contendo outros artig o s das m ais variad as
fontes com tem as sem elh an tes; acom odar-se na p o ltro n a do
avião e, com o audiofone, fornecido p ela com panhia aérea, o uvir
um a sonata de M ozart; só a ssistir aos canais de film es e desp re­
zar todas as outras ofertas que a T V a cabo ou por s a té lite ofere­
ce; esp erar ansio sam ente o lançam ento na locadora de um film e
que já saiu do circ u ito de exibição dos cin em as; separar apenas
o caderno c u ltu ra l do jo rn al e ign o rar todos os outros; com o
co n tro le rem oto na m ão, trocar fren eticam en te de can ais de te ­
levisão p ara satisfazer incertos e errático s desejos de e n tre te n i­
m ento —é a isso que cham o “tecn o lo gias do d isp o n ív e l”.
São tecn o lo gias de pequeno p o rte, ou m esm o gadgets, feitas
p ara aten d er a necessidades m ais segm en tadas e p erso n alizadas
de recepção de sign os de origen s d iversas, de estrato s c u ltu ra is
v ariad o s, que são co n stitu tiv o s de um tip o de c u ltu ra m u ito
m istu rad a que, por am or à precisão dos conceitos, tenho cham ado
de “c u ltu ra das m íd ia s ”, um a eco lo gia c u ltu ra l, como já foi ex­
p lic ita d a no cap ítu lo 5, que se d istin g u e da ló g ic a que com anda
a com unicação de m assa, assim como se d iferen cia da co m u n i­
cação v ia d ig ita l e, dentro d esta, do seu m ais novo segm en to ,
sob a design ação de “c u ltu ra da m o b ilid a d e ”.

«™áção
LINGUAGENS LÍQUJDAS NA ERA DA MOBILIDADE

1.4. Tecnologias do acesso

A h istó ria da evolução do co m p utado r é tão re tic u lar, quer


d izer, a lin e a r quan to as lin g u a g e n s h ip e rm id iá tic as a que hoje
ele nos dá acesso. Segundo B rig g s e B urke (2 0 0 4 , p. 2 8 8 ), é
um a h istó ria com facetas d iversas, envolvendo pro jeto , m em ó­
ria , lin g u a g e m , circ u ito ló g ico , p rogram as e algu n s d isp o siti­
vos, en tre os q u ais se destacam os que p e rm itira m a co nvergên­
cia dos com putadores com as telecom unicaçõ es: antes de tudo ,
aq u ela que foi a gran d e revolução em m eio à alin earid a d e evo­
lu tiv a , a do co m p utado r pessoal, então, o modem (m odulador,
d esm o d ulad o r), que p erm ite a tran sm issão de dados por lin h as
telefô n icas, o mouse, o rig in a lm e n te cham ado de “in d icad o r de
posição X -Y para um sistem a de ex ib içã o ”, os softwares, rep re­
sen tan tes do lado criativ o da tecn o lo gia, tudo isso seg u id o de
um a série in in te rru p ta de novidades que só os d ecid id am en te
“p lu g a d o s” conseguem acom panhar.
O que im p o rta reter para a caracterização das tecn o lo gias do
acesso é o advento da in te rn e t, um universo de inform ação que
cresce ao in fin ito a passos largo s e se coloca ao alcance da ponta
dos dedos. Acesso é o traço m ais m arcan te desse espaço v irtu a l,
que passou a ser cham ado de “cib eresp aço ” logo depois que o
escrito r W illia m G ibson, em 1 9 8 4 , lhe deu esse im ag in ativ o
b atism o . É um espaço que está em todo lu g a r e em nenhum
lu g a r, no q u al p raticam o s e pro duzim os eletro n icam en te. A in ­
te ra tiv id a d e , p alavra-ch ave para caracterizar o agen ciam en to do
cib ern au ta —p alav ra, de resto, que foi tornando o term o “recep­
ção” cada vez m ais obsoleto —, só é possível porque o ciberespaço
é, sobretudo, um espaço de acesso liv re , in fo rm al, descentrado,
capaz de aten d er a m u itas das idio ssin crasias —m otoras, afetivas,
em o cio n ais, co g n itiv as - do usuário .
E um espaço que nos traz um fluxo de lin g u a g e m m u ltim í­
d ia in cessan te, cujas p rin c ip a is caracte rísticas são a m utação e a
m u ltip lic id a d e . U m n ão -lu g ar que, à m esm a velo cidade com
que a en xurrad a de sign os aparece, tam b ém desaparece das telas
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dos m o n ito res, m etam orfoseando-se à velo cidade dos c liq u es,
p erm itin d o , desse m odo, o d elin eam en to de todas as v ariáv e is,
pois estas se transform am co n tin u am en te.
O bit —un idade m ín im a que dá corpo aos signos líq u id o s que
escorregam por esses am bientes —é m aleável e efêmero. Os siste­
m as da in tern et estão em constante m utação. Ao contrário de
registro s em suportes m ateriais, os bytes ocupam m u ito pouco es­
paço e, quando há excesso, podem ser apagados e su b stitu íd o s.
Isso gera a constante atualização dos dados. N essa m ed id a, além
de ser um m eio de com unicação, as tecnologias do acesso são tec­
nologias da in te lig ê n c ia que alteram com pletam ente as formas
trad icio n ais de arm azenam ento, m anipulação e diálo go com as
inform ações. M ais que ferram entas de m anipulação da inform a­
ção, são, efetivam ente, tecnologias da in te lig ê n c ia, um a caracte­
rística que é levada para a com unicação m óvel.

1.5. Tecnologias da conexão contínua

As gerações tecn o ló gicas não ocorrem por salto s. Elas se in ­


sin u am pouco a pouco, quase desp erceb idas, p ara fin alm en te
e m ergirem n ítid a s à sup erfície. Conform e nos lem b ram B rig g s
e B urk e (2 0 0 4 , p. 2 8 6 ), o ivalkm an, por exem p lo , um estéreo
p o rtá til, que transform ou a m an eira de se o uvir m ú sica grav ad a,
já era um in stru m en to m óvel, e a m o b ilid ad e das pessoas, an d an ­
do na rua ou d irig in d o um carro, in flu e n c iaria b astan te a d ire ­
ção do d esen vo lvim en to tecn oló gico do fu tu ro , sobretudo a do
telefone c e lu la r m óvel.
À m ed id a que a com unicação en tre as pessoas e o acesso à
in te rn e t com eçaram a se despren der dos filam en to s de suas ân ­
coras geo gráficas - modems, cabos e desktops - , espaços p ú b lico s,
ruas, p arq u es, todo o am b ien te urbano foi ad q u irin d o um novo
desenho que re su lta da intro m issão de vias v irtu a is de co m un i­
cação e acesso à informação enquanto a vida vai acontecendo. Por
essas v ias, as d esco n tin u id ad es, que não eram tão ag u d as, e as
in terrup çõ es nos fluxos do ex istir, to rnaram -se crescen tem ente

™ % Ç ã O
LINGUAGENS LlQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

ex ig en tes e, m esm o assim , as tecn o lo gias m óveis foram sendo


incorporadas com boa vontade pelas pessoas, esp ecialm ente pelos
jovens. P ara com provar isso, basta notar a profunda atração que
a in te rn e t exerceu e co n tin u a exercendo sobre os jovens, um a
atração capaz de tira r o sono das gran des corporações da m íd ia
te le v isiv a . M as isso foi apenas o h a ll de en trad a para a esto n tean ­
te p ro liferação , em quase todos os p aíses do glo bo , da inco rp o ra­
ção dos telefones celulares, cujas interfaces de lin g u ag em são tão
am ig á v eis que até os analfabetos e as crian ças, antes m esm o da
fase de alfab etização , conseguem in te ra g ir com elas.
A ssim , a q u in ta geração de tecn o lo g ias co m u n icacio n ais, a
da conexão co n tín u a, é c o n stitu íd a por um a rede m óvel de p es­
soas e de tecn o lo gias nôm ades que operam em espaços físicos
não co n tígu o s. P ara fazer p arte desse espaço, um nó (ou seja,
u m a pessoa) não p rec isa c o m p artilh a r o m esm o espaço g e o g rá ­
fico com outros nós da rede m óvel, po is se tra ta de um espaço
q u e Souza e S ilv a (2 0 0 6 ) cham a de “espaço h íb rid o ”, como será
v isto a d ia n te , criado ju sta m e n te p ela fusão de lu g ares d ife re n ­
tes e desconectados.
O afluxo avassalado r dos d isp o sitivo s de com unicação m óvel
(o ín d ice de usuário s na Itá lia , por exem p lo , é de quase 100% )
parece d em o n strar que a hip eraceleração do cap italism o encon­
trou neles um acom pan hante p erfeito da agitação que esse modo
de produção im põe à e x istê n cia hum ana. Por isso, eles podem
ser considerados como

fe rr a m e n t a s d e a d a p t a ç ã o a u m u n iv e rso u r b a n o de flu x o in­


te n so , o n d e o le ito r/in te rato r e stá s e m p r e e n v o lv id o e m m a is
d e u m a a tivid a d e , r e la c io n a n d o -s e c o m m a is d e u m d isp o sitiv o
e d e s e m p e n h a n d o ta re fa s m ú ltip la s e n ã o -c o r re la ta s (B e ig u e l-
m a n , 2 0 0 6 , p. 156).

N este ponto, é p reciso levar em conta, como o faz P is c ite lli


(2005, p. 142), que nenhum a tecnologia da comunicação borra ou
elim in a as tecnologias anteriores, mas pode alterar a q uan tidade
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

de uso das tecn o lo gias precedentes e seu poder de dom inação na


v id a co tid ian a e, p o rtan to , da cognição.
A ssim , um a geração tecn o ló gica não ex tin g u e as o utras, ju n -
tam -se na com posição in trin c ad íssim a de um a c u ltu ra h ip er-
h íb rid a , como a d efin i no cap ítu lo 5, ou seja, a c u ltu ra que ca­
racteriz a o nosso tem po e nasce da m istu ra de todas as form as de
c u ltu ra , até m esm o das form ações c u ltu ra is (oral e esc rita) a n te ­
riores ao ap arecim en to das tecn o lo gias m ediadoras, todas elas
in terco n ectad as, incorporando nessas interconexões, tam bém os
espaços cíb rid o s (m istu ras in co n súteis de lin g u a g e n s p rove­
n ien tes de m íd ias d istin ta s , esc rita, im ag em , som , víd eo , que
co existem no in te rio r do ciberespaço) e, m ais recen tem en te, in ­
corporando ain d a as tecn o lo gias da conexão co n stan te, que
ad ian te d efin irei como espaços in te rs tic ia is, nascidos da in tro ­
m issão dos espaços v irtu a is no seio dos espaços físicos.
O utra questão que precisa ser levada em conta é que as m udan­
ças g eracio n ais nas tecn o lo gias da com unicação criam efeitos
so cia is, c u ltu r a is , técn icos e c o g n itiv o s, cujo n ív el de e fe tiv i­
d ade e de pen etração depende da n atureza e do alcance da im ­
p lem en tação das tecn o lo gias em cada c u ltu ra . Em razão disso, a
eco lo gia m id iá tic a ad q u ire traços que são característico s de cada
p aís. Por exem p lo , a onda dos new media , que há a lg u m tem po
tom a conta de gran d e p arte da in te le c tu a lid a d e nos Estados
U nidos e, no B rasil, corresponde a um a espécie de m id iam an ia
que se alastra por nossas academ ias, esp ecialm en te nos cursos de
com unicação, não encontra a m esm a intensidade em alguns países
da E uropa nos q u ais o peso da trad ição , p la n tad a em séculos de
filosofia, tem m ais força de resistên cia contra os apelos do ú ltim o
g rito da m oda.

2. M ID IA M O RFO SE E M ID IA M A N IA

U m dos p rin cíp io s m agnos da concepção m arxista da h istó ria


é que a n atureza se transform a co n tin u am en te p ela ação h um an a

«™áçãO
LINGUAGENS LlQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

e, transform ando a n atu reza, o ser hum ano transform a a sua


p ró p ria n atu reza. In sep aravelm en te, a natureza e a n atu reza h u ­
m an a foram transform adas desde o in ício . O ra, transform ações
são, v ia de regra, de caráter técnico e, m ais recen tem en te, de
caráter tecn o ló gico . A ssim , as m udanças técn icas e tecn o ló gicas
foram tornando o am b ien te n atu ral m ais denso, um a d en sidade
à q u al o ser hum ano se ad ap ta. Essa adaptação se dá, en tre ou­
tros fatores, p o rque m u ita s das tecn o lo gias são tecn o lo gias de
lin g u a g e m . Isso não é de estranh ar, visto que a p rim e ira té c n i­
ca, de n atu reza m ista, en tre o b io ló gico e o a r tific ia l, é aq u ela
do ap arelh o fonador que, in stalad o em nosso próprio corpo, p er­
m ite a fala.
A p ró p ria lín g u a , lo n ge de ser um dom do esp írito , foi ca­
racteriz ad a pelos lin g u is ta s e filósofos do século X X , esp e cial­
m en te D errid a e D eleuze, como um a b ateria co m b in ató ria, um a
m a q u in a ria estru tu rad o ra, que se an tecip a ao n ascim en to de
cada ser hum ano. N ascer não é nada m ais que enco ntrar a lín ­
g u a p ro n ta e se ad ap tar a ela. Por isso, estam os m u ito m ais na
lin g u a g e m do que ela em nós, como afirm o u Peirce. J á na auro ­
ra de seu processo evo lutivo a espécie hum ana deu in ício à cons­
trução de sistem as síg n ico s, que não são o u tra coisa senão p ro ­
lo n gam en to s, expansões cada vez m ais com plexas da h ab ilid ad e
co m u n icativ a p o ssib ilita d a p ela lín g u a .
A poiando-se em D onald (1 9 9 1 a ), S m ith (2 0 0 3 , p. 23) le m ­
bra que a espécie h um ana tem evoluído na direção de ecoar au ­
to m ática e d ireta m en te não apenas os aspectos do am b ien te que
são relevan tes à sob revivên cia, m as tam b ém os novos traços da
lin g u ag em , cu ltu ra e m em ória externalizada que a própria espécie
cria. U m a tran sição ra d ical na em ergên cia da c u ltu ra hum ana
m oderna ocorreu quando os hum anos deram in ício à construção
de sistem as sim b ó lico s elaborados, que vão da escrita cuneifor-
m e, dos h ieró glifo s, dos id eo gram as, ao código alfab ético e à
m a tem ática. A p a rtir d a í a m em ó ria b io ló g ic a in d iv id u a l foi se
tornando p ro gressivam en te in ad eq u ad a p ara arm azenar e proces­
sar o conhecim ento coletivo. A ssim , a m ente m oderna tornou-se
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

u m a e stru tu ra h íb rid a , co n struíd a de v estíg io s de estágio s bio­


lógicos anteriores junto com recursos sim bólicos de um a m em ória
externa, hoje co n stitu íd a de um a p lu ralid ad e de sistem as sígnicos
produzidos graças a tecnologias cada vez m ais sofisticadas e in te li­
gentes. Enfim, evoluím os de modo que possamos sin to nizar com
o am b ien te em níveis m ú ltip lo s, com sintonizadores m u ltin iv e -
lados, em p arte porque somos nós que criam os esse m undo que
L ew ontin (2 0 0 0 ) cham a de “ecossistem a en gen h eirado ”.
O que está por trás disso não é ab so lu tam en te a id e ia de pro­
gresso — q u alq u e r que seja o sen tid o que se q u eira d ar a essa
p alav ra. T rata-se, isso sim , de adaptação da espécie ao seu am ­
b ien te. M esm o em D arw in a seleção n atu ral não contém a id e ia
de progresso, mas a descrição de adaptação local a am b ien tes em
m u d an ça. De resto, a id e ia de progresso fica irrem ed iav elm en te
b an id a quando sabem os que, com a glo b alização , in crem en tad a
p elas m utações do c ap italism o , a im agem do Angelus Novus, in ­
te rp retad a por B en jam in (1 9 7 3 ), em m enos de um século , tran s-
m u to u-se: o anjo que an u n cia o progresso já não d eix a atrás de
si um a m o n tan h a de ru ín as; as m ontanhas ago ra rodeiam o an jo,
m ontanhas de m isérias que a glo b alização vai deixan do crescer
nas sociedades p eriféricas.
O eco ssistem a en gen h eirado de tecn o lo gias de lin g u a g e m
ig u a lm e n te não im p lic a d eterm in ism o tecn ológico. P rim e ira ­
m en te porque não se sabe o que vem antes: o ovo ou a g a lin h a ,
a evolução au to gerad a ou a ló g ica do sistem a so cial. T rata-se,
m u ito m ais de realid ad es que se em b aralh am . A ssim como a
evolução hum ana não é exclu siv am en te g e n é tic a , m as tam b ém
tecn o ló g ica, a evolução social não pode ser exclu siv am en te te c­
n o ló gica, pois envolve os m ú ltip lo s aspectos im p líc ito s na cres­
cen te co m p lexid ad e h um an a, um a co m p lexid ad e que é in d isso ­
ciáv el das tecn o lo gias de lin g u a g e m na m ed id a em que estas
não podem ser separadas da nossa p ró p ria n atureza.
Convicção sim ila r está na base do pensam ento de M cLuhan
(1 9 6 4 ), quando afirm a que m udanças nos m eios de co m u n ica­
ção p ro d u zem m udan ças n eu ro ló gicas e sensó rias que afetam

cmnêção
LINGUAGENS LlQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

sig n ificativ a m en te nossas percepções e ações. Toda nova tecnolo­


g ia cria g rad u alm en te um am b ien te hum ano in teiram en te novo.
A m b ien tes não são vestim en tas passivas, mas processos ativos.
De uns anos para cá, desde que a hegem onia da cultura de massa
foi pressionada pelo incessante surgim ento de novos meios que já
não configuram processos de comunicação de massa, os meios de
comunicação passaram a ser genericam ente chamados de “m ídias”.
A ssim , pode-se dizer que as incessantes mudanças que têm se pro­
cessado há dois séculos —e recentem ente a um ritm o cada vez m ais
rápido —instauram midiamorfoses que trazem consigo transforma­
ções na paisagem hum ana como um todo.
Em bora as m idiam orfoses sejam , de fato, evidentes e não pos­
sam ser m in im izad as, in felizm en te elas têm gerado um a espécie
de m id iam an ia que tom a conta das m entes. N unca a lin g u ag em
foi tão esquecida quanto agora. J á começou em M cLuhan, com
sua ênfase nos m eios como extensão, como se, nas artérias dos
m eios, não corresse o sangue das lin gu agen s. Embora sejam , de
fato, extensões dos sentidos, os m eios são, acim a de tudo, exten ­
sões da capacidade hum ana de produzir signos. M as, pelo menos,
M cLuhan falava em m ensagem . H oje, depois de várias explosões
tecn o ló gicas, das m íd ias eletroeletrô n icas, dos dispositivos que
nos dão altern ativas contra a hegem onia do broadcasting, depois
da explosão do ciberespaço e, atu alm en te, dos equipam entos m ó­
veis, são tan tas as m áquin as, tantos os equipam entos ao nosso
redor, sistem aticam en te renovados e dos q u ais, de resto, torna-
mo-nos dependentes, que a lin g u a g e m , o “âm ago do ôm ega”, res­
ta olv id ad a pelos teóricos e crítico s da cu ltu ra e da com unicação,
ap agad a por trás das siderações da m id iam an ia.
A p io r co n seq ü ên cia desse estado de co isas, provocado pelo
esq u ecim en to da lin g u a g e m , en co n tra-se na com preensão sim ­
p lis t a de m ed iação e, e sp e c ia lm e n te , de m ed iação te cn o ló g ica
que tem ap arecid o com freq u ên cia nos estudos sobre m íd ia s e
te c n o lo g ias m id iá tic a s . Vem d a í a n ecessid ad e de atenção es­
p e c ia l q u e os co nceitos de m ed iação e m ediação te cn o ló g ica
p arecem e x ig ir.
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

T écn ica, no sen tido estreito , sig n ific a saber fazer ( know-how ),
ter conhecim ento ou h ab ilid ad e p ara re alizar um dado trab alh o
ou ativ id a d e de m an eira esp ecífica, um modo de re aliz ar e fi­
cien tem en te um a tarefa. A ssim , um in stru m en to técn ico é um a
ferram en ta cujo design incorporou, até certo ponto, algo do g e s­
to em p regad o na realização de um a tarefa, sendo, por isso, capaz
de au m en tar a eficiên cia desse gesto.
L itera lm e n te, tecn o lo gia, por seu lado, é o cam po de estudo
referente aos conhecim entos e usos das ferram entas e in s tr u ­
m entos u tiliz a d o s pelos seres hum anos ao longo de sua h istó ria.
E ntretanto, conforme a produção de ferram entas e instrum en tos
cresceu, estes foram m u ltip lican d o -se e tornando-se p ro g ressi­
vam en te so fisticad o s, viraram m áquin as (ver S an tae lla, 1 9 9 6 b ,
pp. 1 9 5 -2 0 8 ) e passaram a se in serir p ratic am en te em todas as
ativ id a d es que realizam os. O term o “te cn o lo g ia” p erd eu a lite -
ra lid a d e, seu em prego g en eralizo u -se e seu cam po de referên cia
hoje ab ran ge não apenas as ferram entas e in stru m en to s, m as to ­
dos os tipos de recursos, d isp o sitivo s e m áq u in as em p regado s
na produção, assim como abrange in fraestru tu ras e o com ando e
controle das estru tu ras sociais.
Para a discussão que este c ap ítu lo p reten de lev ar a efeito , o
que in teressa é ch egar a um sentido m enos sim p lificad o de “m e­
diações te cn o ló g icas”. Para isso, algu n s pressupostos p recisam
ser considerados. A ntes de tudo , a d istin ção en tre ferram en tas e
m áq u in as. As p rim eiras são extensões ou pro lo n gam en to s de
h ab ilid a d e s, na m aior p arte das vezes, m an u ais, o que ex p lica
p orque as ferram en tas são artefatos engenhosos, cu ja construção
pressupõe o aju stam en to e in tegração do desenho do artefato ao
m o vim ento físico -m u scu lar hum ano que o artefato tem a fu n ­
ção de am p lificar. É por isso que m áquin as são um a espécie de
ferram en ta, tam b ém pro jetadas como m eios para se a tin g ir um
certo propósito. E n tretan to , m ais com plexas do que as ferra­
m en tas, as m áq u in as são construções ou organizações cujas p ar­
tes estão de ta l modo in terco n ectad as que, ao serem colocadas
em m o vim en to , o trab alh o é realizado como um a u n id ad e. A lém

mm^ção
LINGUAGENS LÍQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

d isso , m áq u in as im p lic a m a lg u m tipo de força que tem o poder


de au m en tar a rapidez e a en erg ia de um a ativ id ad e. Por essa
razão, as m áq u in as g an h aram um gran d e im p ulso com o s u r g i­
m ento dos m otores, esp ecialm en te os elétrico s.
Se nossa com preensão das m áq u in as parasse nesse ponto, o
sen tid o de “m ed iação ” na expressão “m ediação te cn o ló g ica” fi­
caria tosco e cru, reduzido a um sinônim o de extensão da força
física hum ana. O ra, extensão não é a m esm a coisa que m ediação
(e a í se en co n tra, a liá s , um a das fra g ilid a d e s da concepção dos
m eios de com unicação como extensões). Temos, p o rtan to , que
avan çar um pouco m ais nas d istin çõ es até aquelas que existem
en tre três tip o s de m áq u in a: as m u scu lares, as sensórias e as
in te lig e n te s (ib id em ).
As m u scu lares são m áq u in as acéfalas e, por isso, sua cap aci­
dade não vai além da am p lificação da força física h um ana. As
sensórias — foto, cin em a, rádio e TV — am p lificam o p o ten cial
sen só rio-p ercep tivo hum ano. O encanto que a TV p ro d uziu em
M cLuhan deve-se p ro vavelm en te ao fato de que esta não opera
m ecan icam en te como as câm eras de fo to grafia e cin em a, d a í seu
poder de afetar não só os olhos e os ouvidos, m as o sistem a ner­
voso cen tral. O que M cLuhan não enfatizou é que essas m á q u i­
nas já en cap sulam um certo n ív el de in te lig ê n c ia , a in te lig ê n c ia
dos sen tid o s. De fato, o que a so fisticação dos aparatos dessas
m áq u in as m a te ria liz a são conhecim entos acerca do fun cio n a­
m ento dos sen tido s e percepção hum anos. Deve ser por isso que
se repete tão in sisten te m en te que fo to grafia, telégrafo , telefo ­
n ia etc. nos p roporcionam exp eriên cias tecn o lo gicam ente m e­
d iad o ras. M as por que são capazes disso? Eis a questão.
O conhecim ento m aterializado no aparato perm ite que este seja
capaz não apenas de estender habilidades sensórias (isso é o m ais
óbvio), mas o h ab ilita a estender a capacidade hum ana de produzir
lin gu agen s. Vem d aí, portanto, o poder m ediador dessas tecnolo­
gias e não do aparato em si. A m ediação é m érito da lin gu agem e
não estritam en te do equipam ento. Isso se intensifica com o su rg i­
m ento das m áquinas in teligen tes, cognitivas ou cerebrais.
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

A sofisticação dos com putadores ou m áq u in as cereb rais en ­


co ntra-se no fato de que sim u lam operações m en tais. Por isso
são m áq u in as produtoras e m u ltip licad o ras de signos por causa
do seu poder de arm azenar e processar inform ações. São m ais
p ro p riam en te m áquin as sem ióticas (N õ th , 2 0 0 1 ; B arbosa,
2 0 0 1 ). E por isso que o com putador funciona como um a m íd ia
sem ió tica (S a n taella, 19 9 6 b , pp. 2 0 9 -2 3 8 ). De um lado, dotado
de sensores e detectores, por trás das su p erfícies, cap tu ra e p ro ­
cessa im agen s dos in terio res do corpo e m esm o do cérebro h u ­
m ano, devolvendo-as como registro s in d ic ia is altam en te co d ifi­
cados p ara o d iag n ó stico m édico. De o utro, é capaz de re alizar
com plexas operações de cálcu lo. O m ais relev an te, no en tan to ,
está no poder tran sd ucto r que apresen ta. N ão m a stig a apenas
núm eros, m as converte p ara sua lin g u a g e m b in á ria e reconverte
à sua form a o rig in a l textos, im agen s e sons; en fim , q u aisq u er
sign o s que possam po rven tura ser capturado s em seus circu ito s
in teg rad o s.
M u ito lo n ge da b ru talid ad e dos m otores e das en gren agen s
das m áq u in as m ecânicas, os in terio res das m áquin as cereb rais
são h ab itad o s por m in úsculo s m icroprocessadores, circu ito s in ­
tegrad o s que realizam operações ló g icas capazes de dar suporte
aos m ais variados tipos de propósito. N ão é por acaso que as
trad ic io n ais tecn o lo gias de geração m ecânica e m esm o e le trô n i­
ca estão, todas elas, sendo con vertidas ao d ig ita l.
Como se pode con statar, há grau s de m ediação , do n ív el m ais
baixo e ru d im e n tar ao m ais com plexo. U m a enxada é apenas
capaz de au m en tar a força física do braço, m as não faz a m e d ia­
ção en tre a força do braço e a terra. O m esm o se pode d izer de
um trato r. P o rtan to, para serm os fiéis ao sen tid o le g ítim o de
m ed iação , devem estar nele im p licad as a afecção, a percepção e
a cognição m ed iad a do m undo p ela lin g u a g e m , pelos sign o s. O
conceito de m ediação não deve ser sim p lo riam en te en ten d id o
como m eio de com unicação e nem m esm o como am b ien te c u l­
tu ra l e so cial que os m eios criam . M ediação é, so bretudo , um
conceito ep istem o ló gico que envolve a gran d eza h um an a que é

mu%ção
LINGUAGENS LlQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

tam b ém a nossa tra g é d ia de só ter acesso ao m undo físico , afe­


tivo , sensório, p ercep tivo , c o g n itiv o , p ela m ediação dos signo s.
C ada tip o de sign o ap resen ta, in d ica ou represen ta aq u ilo que
cham am os de re alid ad e de acordo com seus p o ten ciais e lim ite s.
Conform e buscarei dem o n strar no c ap ítu lo 14, referente à ep is-
te m o lo g ia das im ag en s, os p o ten ciais e lim ite s de um a foto são
d istin to s de um film e , de um texto , de um a conversa, de um a
p á g in a p u lu lan d o de sign o s que escorre pelo m o n ito r sob ação
de um mouse sobre a b arra de ro lagem .
E nfim , os sign os se m u ltip lic a m porque o real é in e x au rív el.
N en h u m a lin g u a g e m é capaz de transpor o um b ral até as coisas
m esm as. Estas não são in co gn o scív eis. Pelo con trário , a m u lt ip li­
cid ad e de sign os que hoje ex iste para aceder a elas corresponde
à m u ltip lic id a d e exacerbada de pontos de v ista, de proxim idades
e d istâ n c ia s, de clareza e o b scurid ad e, de focos e desfoques da
m alh a in trin cad am en te u rd id a de signo s que nos confundem
p orque neles estam os irrem ed iav elm en te enredados.
E por isso que o conceito peirciano de signo é um conceito
d ifíc il, árduo. Suas definições e classificações de signos são partes
de um a teoria síg n ica do conhecim ento, da ação, dos afetos, dos
sen tim en to s; um a ep istem o lo gia síg n ica não racio n alista, susten ­
tad a por um a fenom enologia que in c lu i o corpo, a percepção, o
desejo; enfim , todas as m istu ras adventícias que se agregam ao
pensam ento ló gico , agarram -se a ele, nublando q u alq u er asp ira­
ção à lim p id ez racional. P aradoxalm ente, é das neblinas do p en­
sam ento, da p rom iscuidade das m isturas que brotam as ilu m in a ­
ções da descoberta, da arte, da m ú sica, das criações hum anas.
Ju stam en te essas m isturas co n stitu tivas do pensam ento hum ano
estão extro jetadas na m u ltip licação de formas cada vez m ais h í­
bridas de lin g u ag em de que o m undo está hoje povoado.
Com isso, não se quer reiv in d icar que a lin g u ag em seja condi­
ção ex clu siva e suficiente da m ediação, mas é sim condição neces­
sária e im p rescin d ível para se com preender todo e q u alq u er pro­
cesso m ediador, para que “m ediação ” não se veja reduzida a um a
p alav ra cu rin g a, d e stitu íd a de sua espessura epistêm ica.
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

M ecanism os de interm ediação, as com plexas m ediações entre


tecn o lo gia, natureza e sociedade não prescindem da lin g u ag e m e
só se fazem entender na profundidade que m erecem , se levarm os
em consideração a lin g u ag em . O mesmo ocorre com as m ediações
cu ltu rais, pois processos cu ltu rais só funcionam cu ltu ralm en te
porque são processos com unicativos. Estes só com unicam porque
são processos de lin g u ag em . E a tão falada “recepção”, por seu
lado, não é senão um term o gen érico e vago para as com plicadas
operações de interpretação, níveis e cam adas que, na teoria peir-
ciana, chegam a pelo menos doze. São tantos os níveis e cam adas
porque processos in terp retativo s envolvem determ inações n ão -li-
neares e causalidades m ais com plexas quantos são os n íveis de
revelação de causa e efeito. Envolve experiências co laterais com
aq u ilo a que a lin g u ag em se refere e se ap lica, envolve ain da os
horizontes repertoriais do intérp rete; enfim , um a m iríad e, um a
filig ran a de elem entos im plicados nos modos de funcionam ento
da percepção e da m ente hum anas a que as expressões “recepção”
e “m ediação c u ltu ra l” estão longe de fazer jus.
E a lin g u a g e m , no coração das tecn o lo gias m ed iad o ras, que
nos p erm ite d is tin g u ir entre tecn o lo gias que são m ediadoras e
as que não o são. Estas estão p rogram adas para a obsolescência.
Os m odelos das g elad eiras e dos carros envelhecem ao sabor dos
d itam es da moda. Por serem tecnologias de lin g u ag e m , as m ed ia­
doras não passam pelo processo de obsolescência p ro gram ad a.
Pelo co n trário , as lin g u a g e n s a que cada um a das tecn o lo gias
m ed iad o ras vai dando n ascim ento: a lin g u a g e m da fo to grafia,
do jo rn al, do cin em a, da TV etc., todas elas lu tam ferozm ente
por p erd u rar, p reservar-se. As palavras são m ais etern as do que
os m árm ores e os m e tais, já d iz ia Shakespeare. Por isso, o que
m ud am são os suportes que se tornam m ais so fisticado s, m ais
re p ro d u tív eis, m ais m u ltip lic ad o re s, mas a lin g u a g e m não m or­
re, perm anece. O verbo pode sa lta r do p ap el para a te la e le trô ­
n ica; a foto, v ira r d ig ita l; o cin em a, se tornar soft, tran s, in te r; a
telev isão , ser on demand , mas suas lin g u a g e n s, m esm o tran sfor­
m adas pelo m eio, sobrevivem . Onde quer que um a im ag em fixa

íomhção
LINGUAGENS ÜQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

e ste ja , ela será filh a da fo to grafia; onde q u er que um a n arrativ a


au d io v isu al esteja, ela será filh a do cin em a; onde q u er que um
carn aval de gêneros e ste ja , ele será filho da televisão . As tecno­
lo g ias vão m u dando, as lin g u a g e n s sonham com a etern id ad e.
Tanto as tecn o lo gias m ediado ras são essen cialm en te tecno lo­
g ia s de lin g u a g e m capazes de p resen tificar, apresentar, in d icar
e representar a realidade (ver Santaella e Nõth, 2004, pp. 198-224),
que elas se fazem acom panhar por m etáforas ep istem o ló gicas,
m etáforas que expressam o modo como as m ediações por elas
processadas aparecem aos olhos da cu ltu ra. A ssim , as tecno lo ­
g ia s da im ag em , da foto à telev isão , geraram a m etáfora do espe­
lho, as tecnologias do v irtu a l, a m etáfora dos universos paralelos
e, por fim , as tecn o lo gias de com unicação m óvel estão ago ra
geran d o a m etáfora dos espaços in te rs tic ia is.

3. M ETÁFORA DO ESPELHO

A ntes do surgim en to da tecn ologia fotográfica, a gran de m e­


táfora da representação visu al foi, durante séculos, a m etáfora da
jan ela. A p in tu ra funcionava como um a jan ela para o m undo. A
invenção e difusão social da fotografia, do telégrafo e das técnicas
de reprodução gráfica se viram acom panhar por um a lite ra tu ra na
qu al predom inava o tem a do duplo. Os textos dos rom ânticos
alem ães, os contos de E. A. Poe (S an taella, 1985) estão povoados
pelas figuras dos duplos. No cerne dessas figuras encontram -se as
ideias do reflexo, da relação especular, do ocultam ento e da reve­
lação, algo que está ju stam en te im p líc ito nas técnicas fotográfi­
cas e tam bém nas técnicas de reprodução. Da lite ralid ad e dessas
técnicas tais ideias m igraram para um certo modo de se conceber
as formas de representação da realidade.
Do século X IX a boa p arte do século X X as concepções acerca
das form as de representação da realid ad e (teatro , jo rn al, lite r a ­
tu ra e cin em a d o cu m en tal) estavam m arcadas p ela id e ia do es-
p elh am en to . N ão o b stante as diferenças nos modos de form ar
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

de cada um a dessas lin g u a g e n s, que vão do jo rn al ao cin em a,


todas eram vistas sob o signo do reflexo: a lin g u a g e m como es­
pelho da realid ad e.
A concepção sobre a função especular, a ser desem p en hada
p ela lin g u a g e m , foi ju stam en te o que deu sub síd io às teorias da
id eo lo g ia que ta n ta penetração tiveram até os anos 80 do século
X X . E n ten d id a como falsa co nsciência, id eo lo gia referia-se às
“representações enganadoras das reais condições dos agentes sociais
nas relações de produção ca p ita lista s. N esse m esm o con ceito ,
en travam todas as formas de produção sim b ó lica ou m esm o de
lazer e en treten im en to tid as como alien an tes, ópios p ara narco-
tiz a r a co n sciên cia dos dom inados em relação à sua subm issão
aos jogos do poder e exploração dos dom inadores” [S an taella,
(1 9 8 0 ) 1 9 9 6 a, p. 13].
N essa concepção da id eo lo gia como representação falseada e
deform ada do real, porque orientada, tendenciosa e m istificadora
à q u al deve se contrapor um pensam ento verdadeiro que se obtém
m edian te o m étodo científico, um a concepção que m igro u da so­
cio lo g ia e filosofia p o lítica para m uitos outros cam pos do pensa­
m ento social, está n itid am en te im p líc ita a convicção de que as
representações funcionam como espelhos fiéis ou infiéis da re a li­
dade. A posição m ais extrem a e in gên ua dessa m esm a concepção
foi ocupada pelo realism o socialista. Os resultados nefastos de seu
obscurantism o receberam fartas divulgações e discussões, o que
me poupa aq u i o espaço para relem brá-los.
U m vez que já tra te i d etalh ad am en te da c rític a a tais con­
cepções na ocasião pró p ria e adequada (ib id em , pp. 2 0 9 -2 6 4 ),
passando em revista até m esm o as lú cid as co n trib uiçõ es que
A n to n io G ram sci, A lth u sser e esp ecialm en te B ak h tin , V olosi-
nov e M edvedev tro uxeram para o tem a, basta ch am ar a atenção
aq u i para algu n s tópicos que me parecem relevan tes.
É tam b ém a m etáfora do espelho que está por trás da id e ia
de verdade jo rn alístic a , p au tad a na convicção de que a verdade
está nos fatos, como se esses não fossem in a lien av elm en te f ilt r a ­
dos p elas percepções e pelas m o lduras da visão e do pensam ento

«™§ÇãO
LINGUAGENS LÍQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

im p o stas p elo te m p o , espaço e p o sição nas relaçõ es so ciais


q u e ocupam os, ou seja, p ela id eo lo g ia, no sentido que lhe deu
B a k h tin , quando afirm o u que todo sign o é id eo ló gico , p o is, ao
re fle tir a re alid ad e, a lin g u a g e m n ecessariam en te a refrata.
Todos os crítico s da crise que as vanguardas estéticas, teatrais,
v isu ais e sonoras provocaram na representação tid a como realista
foram crítico s alim entados p ela convicção de que a lin g u ag e m é
tanto m ais ou menos verdadeira quanto m ais ou menos fielm ente
cu m p rir sua função especular. A teoria do rom ance de Lukács
tam bém bebeu nas fontes do espelho. E, em bora pareça surpreen­
d en te, é ain d a o espelho que está subjacente às críticas atu ais de
B a u d rillard contra a expansiva esfera m id iática.
Q u an do , no seu liv ro Sim ulacres et sim ulation, B a u d rilla rd
(1 9 8 1 ) la m e n ta v a que as abstrações d eix aram de ser aq u elas
dos m ap as, do esp elh o ou dos co n ceito s, de um te rritó rio , de
um ser re feren c ial ou de u m a su b stâ n c ia , essas a n tig a s a b stra ­
ções, c u ja p erd a ele está lam en tan d o , correspondem com p re ­
cisão à m etáfora do esp elh o , do qu e se pode in fe rir q u e , p ara
e le , as sim u laçõ es co n tem po rân eas se perd em nas in ta n g ív e is
ab straçõ es h ip e r-re ais ju sta m e n te p o rq u e já não cu m p rem a
função esp ecular.
N este p onto, vale tam b ém lem b rar que um a das razões por
que a televisão foi sem pre tão d u ram en te c ritic ad a deve ser ju s­
tam en te p o rque, por causa das condições de sua p ró p ria lin g u a ­
g em , em vez de esp elh ar, ela em b aralh a todas as cartas do jogo
da re alid ad e, m istu ran d o o sério com a farsa, o profundo com o
su p e rfic ia l, o eru d ito com o p o p ular, a verdade com a m en tira.
O reduto em que a m etáfora do espelho, do reflexo físico,
real, fiel e verdadeiro da re alid ad e m ais re sistiu foi, e para a l­
gu n s co n tin u a sendo, a fo to grafia. O bra im p o rtan te no B rasil
que soube d e sm istific ar com lu cid ez inco m p arável essas q u im e ­
ras é A ilusão especular , de A rlin d o M achado (1 9 8 4 ). M as o passo
m ais n o tável na d esm istificação de tais q u im eras foi dado por
B orges (1 9 7 1 ) em um a sim p les frase de um peq u en íssim o texto ,
a m eu ver, em b lem ático , pelo corte de n avalh a com que in cid e
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

213
sobre a m etáfora do espelho: L a rosa a m a rilla . O texto é de ta l
b rev id ad e que p erm ite sua com p leta tran scrição:

Ni aquella tarde ni Ia outra muríó el ilustre Giambattista Mari-


no, que Ias bocas unânimes de Ia Fama (para usar una imagen
que le fue cara) prodamaron el nuevo Homero y el nuevo Dan-
te, pero el hecho inmóvily silencioso que entonces ocorrió fue
en verdad el último de su vida. Colmado de anos y de gloria, el
hombre se moria en um vasto lecho espahol de columnas la-
bradas. Nada cuesta imaginar a unos pasos un sereno balcón
que mira al poniente y, más abajo, mármore y laureies y un
jardin que duplica sus graderias en un agua rectangular: Una
mujer ha puesto en una copa una rosa amarilla; el hombre
murmura los versos inevitables que a él mismo, para hablar con
sinceridad, ya Io hastían un poco:
Púrpura dei jardin, pompa dei prado,
gema de primavera, o/o de abril...
Entonces ocurrió Ia revelación. Marino vio Ia rosa, como Adán
puedo verla en el Paraíso, y sintió que ella estaba en su eterni-
dad y no en sus palabras y que podem os mencionar o aludir
pero no expresar y que los altos y soberbios volúmenes que
formaban en un ângulo de Ia sala una penumbra de oro no
eran (como su vanidad sonó) un espejo dei mundo, sino una
cosa más agregada al mundo.
Esta iluminación alcanzó Marino en Ia vispera de su muerte, y
Homero y Dante acaso Ia alcanzaron también.

A revelação que ocorreu a M arin o ao ver, p ela p rim e ira vez


em sua v id a, pouco antes da m orte —ver a rosa —, m in a q u a is­
q u er ilusõ es ou vaidades de que as p alavras possam ser espelhos
do m undo. São, isso sim , algo que se agrega ao m undo, destino de
todas as lin g u a g e n s q u e, longe de funcionarem como reflexos da
re alid a d e, ag regam -se a ela, co n stitu em -se elas m esm as em p ar­
tes da re alid ad e, aum entando sua den sidade e co m p lexid ad e.
Por isso m esm o, quanto m ais as lin g u a g e n s crescem , ju n to com
elas cresce a co m p lexidade do real.

ím%ção
LINGUAGENS ÜQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

214
Em um a en tre v ista ao C aderno M ais da Folha de S.Paulo, ao
co m en tar ter ganho de T olstó i, B alzac, D ickens, D o sto ievski,
K afka ou Thom as M orus m u ito m ais insights sobre a su b stân cia
das ex p eriên cias hum anas do que de centenas de relató rio s de
p esq u isa so cio ló gica, B aum an (2 0 0 3 ) d eclarava que apren deu
com B orges, acim a de tu d o , “sobre os lim ite s de certas ilusões
h u m an as; sobre a fu tilid a d e dos sonhos de precisão to ta l, de
ex atid ão ab so lu ta, de co nh ecim ento com p leto, de inform ação
ex au stiv a sobre tud o ; sobre as am bições hum anas que, no fin al,
se revelam ilu só rias e nos m o stram im p o ten tes”.
U m a d en tre as m u itas ilusõ es —que certam en te o ser h u m a­
no co n tin u ará rein ven tan d o , po is sem elas não se vive —concen­
trou-se na m etáfora do espelho. H o je, a onda do reflexo passou,
su m iu do horizonte do pensam ento a tal ponto que os m ais jovens
p ro v av elm en te nem sabem d ela. O furor com que as tecn o lo gias
d ig ita is foram tom ando conta dos universos p síq u ico s e sociais
d ilu iu e d isso lveu a id eo lo g ia e suas q u im eras especulares, com
a m esm a rap idez com que o m icropoder, de F oucault, já havia
tritu ra d o o conceito de classe.

4. M ETÁFO RA DOS UNIVERSOS PARALELOS

As m etáforas criam adesão. T êm , por isso, um gran d e poder


de p en etração . “A escolha im a g in a tiv a de nomes freq u en tem en ­
te triu n fa sobre a descrição fun cio n al dos o b jeto s”, dizem com
razão B rig g s e B urke (2 0 0 4 , p. 2 8 4 ). No m undo ciber, as m e tá­
foras e as p alav ras-m o n tagem são ab u n d an tes, a com eçar por
cib erespaço , se g u id a de mouse, avatar, bit, cib orgue e o utras.
M as a gran d e m etáfora que abarca todas as dem ais é a m etáfora
dos u n iverso s p aralelo s: de um lad o , o m undo real; de outro, o
m undo v irtu a l.
U m a m áq u in a foi criad a, com tentáculos para todos os cantos
do globo, que já não pode ser v ista como m era extensão do nosso
corpo, mas como um am b ien te, um espaço a ser explorado. Novas
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

formas de pensar, de in te ra g ir e de viver são ensejadas nesse m u n ­


do que se am p lia para além do m undo físico. Não é casual que o
term o “ciberespaço” tenha se colado às m entes com im ed iata ade­
rência e, jun to com ele, a id eia de um universo autônom o, im ate-
rial, separado e livre das atribulações do m undo físico; um a id eia,
de resto, co m p artilh ada tanto por aqueles que assum iram um
ponto de v ista ap o calíptico quanto, no outro extrem o, por aq u e­
les que veem o ciberespaço de modo triu n falista.
E nquanto estes ú ltim o s ch egam a acred itar que um universo
v irtu a l é capaz de c riar espaços sociais on-line , lib erto s dos cons­
tran g im en to s e opressões do poder econôm ico ou p o lític o , as
q u eixas dos ap o calíp tico s apresen tam alg u n s Leitmotive. Para
B erlan d (2 0 0 0 , p. 2 4 2 ), por exem plo, surfar na web, um u n iv er­
so v irtu a l sim u lad o e altern ativ o h ab itad o por in te lig ê n c ia s
p ó s-h um an as, envolve um crescente esqu ecim ento do tem po e
dos arredores físicos. Essa separação do info rm acio n al do seu
su b strato físico desloca a com p lexidade social e b io ló g ic a da
v id a h u m an a em favor de um a form a reificad a de in te lig ê n c ia
que é re d u tív e l à inform ação d ig ita lm e n te rep licáv el.
P aul V irilio , outro que, ju n to com B a u d rilla rd , co n stitu i-se
em um dos m aiores ícones do tecn o n egativism o , esp ecialm en te
em seu conhecido livro A arte do motor (1 9 9 6 ) dep lo ra que as
tecn o lo gias do tem po real m atem o tem po p resen te ao iso lá-lo
de sua p resença aq u i e agora p ara o p riv ilé g io de um outro es­
paço co m u tativ o que já não se com põe da nossa “p resença con­
c re ta ” no m undo, mas de um a “d iscreta telep resen ça” cujo e n ig ­
m a p erm an ece p ara sem pre intacto .
Para ele, tempos atrás, estar presente sign ificava estar perto.
E star fisicam en te p róxim o do outro, face a face, p ro xim id ad e
vis-à-vis, com a g a ran tia do sopro da voz e da sedução do olhar.
M as agora vivem os um a outra era de p ro xim idade m id iátic a,
baseada nas propriedades das ondas eletrom agn éticas. E isso é
lastim ad o como um a privação. A presença m id iática é um a inter­
ferência que nos faz sofrer a perda da d istân cia que desem boca no
p aradoxo de estar lá , a q u i e ago ra. O que V ir ilio la m e n ta é a

«™ & Ç ã O
LINGUAGENS LÍQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

perda da escala do espaço e do tempo que, do seu ponto de vista, é


dada única e exclusivam ente pela realidade do corpo biológico,
como se a m ente não pudesse viajar, sem que essa viagem tenha
necessariam ente que significar o abandono do corpo ao deus-dará.
U m a vez que o espaço geográfico foi ob literado pelas tecnolo­
g ias de com unicação que atravessam o globo à velocidade da luz,
sem que tenham os que fazer o esforço de v iajar fisicam ente para
alcan çá-las, conforme V irilio , a drom osfera su b stitu i a realidade
an terio r até o ponto de levar todos os seus caracteres ao desapare­
cim ento. B au d rillard , por seu lado, ain da retém a id eia de que
fica um resíduo de realidade concreta sob as fosforescências das
novas abstrações co n stitu íd as pelas sim ulações hiper-reais.
E curioso observar que o tem a central para o qual convergem
tanto os tecnoeufóricos quanto os tecnofóbicos é o do corpo. Para
os prim eiros, a m eta da virtu alid ad e deveria estar na libertação
hum ana do corpo biológico obsoleto. Para os segundos, navegar
pelos espaços d ig ita is a p artir de um com putador de mesa, atrás do
qu al se acom oda um a te ia em aranhada de fios, im pede a m o b ili­
dade física do usuário. C onsequentem ente, esse corpo inerte fica
incap acitado de responder a q u alq u er estím ulo . O clím ax dessa
visão encontra-se no p rim eiro film e da série M atrix. Disso resulta
o desvanecim ento progressivo do corpo hum ano que g ra d u a l­
m ente desaparece na hipervisualização do ciberespaço. O processo
cu lm in a na im aterialid ad e do próprio corpo, quando a tecno lo gia
serve como prótese su b stitu tiv a da realidade b io ló gica.
Tanto do lado dos o tim istas quanto dos p essim istas, a visão do
físico e do v irtu a l como dois espaços p aralelos e desconectados
ign ora que, por trás da aparente im o b ilid ad e do corpo físico, no
m ovim ento de navegação pelas arq u itetu ras m u ltim o d ais da in ­
form ação, o interato r realiza operações p erceptivas e m en tais a
um a velocidade nunca antes alcançada, o que lhe p erm ite desen­
volver um a m ente d istrib u íd a , capaz de realizar m u ltitarefas no
m undo cham ado “físico ”. Esse é o tem a do artig o sobre a virtu d e
do videogame de H enry Je n k is (2 0 0 3 ), no q u al o autor defende a
id eia de que os games são as m áquin as de aprendizagem ideais.
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

Em bora ten h a sido bem cedo levad a à p esq u isa sobre o


cib eresp aço , feliz m en te não su cu m b i aos atrativ o s dos velhos
d u alism o s. D esde o p rin c íp io afirm ei (ver S a n ta e lla , 2 0 0 3 a ,
p p . 3 0 3 -3 1 4 ; 2 0 0 4 b ) que não im p o rta q u al form a o corpo v ir­
tu a l possa a d q u irir, sem pre haverá um corpo b io ló g ico ju n to ,
am bos in sep arav elm en te atados. O v irtu a l pode estar em outro
lu g a r, e o outro lu g a r ser um ponto de v ista p riv ile g ia d o —m as
a co n sciên cia perm anece firm em en te a rra ig a d a no físico . H is ­
to ricam en te, o corpo, a tecno lo gia e a com unidade se con stituem
m u tu am en te.
As co m un id ad es v irtu a is eletrô n icas nunca d eixaram de v i­
ver nas áreas lim ítro fes en tre a c u ltu ra física e a v ir tu a l, e o
crescim en to dos espaços eletrô n ico s não está se d irig in d o p ara
a d isso lução das cid ad es, dos corpos, do m undo físico , m as p ara
a in terseção do físico com o v irtu a l. O corpo, cu ja p erd a im i­
n ente foi tão la stim a d a , está na re alid ad e se tran sform ando
rap id am en te em um co njun to de extensões lig a d a s a um m u n ­
do c íb rid o , p au tad o p ela interconexão de redes e sistem as on e
off-line (B e ig u e lm a n , 2 0 0 6 , p. 153). A ssim , nós co n tin uam o s a
h a b ita r esferas físicas, em u rd id u ras nas q u ais várias o u tras es­
feras se m istu ra m , sem que os am b ien tes físico s desap areçam .
Essa é a u rd id u ra dos espaços in te rs tic ia is , um a nova m etáfora
p ara a representação das m udan ças m ais recentes no m undo da
com unicação e da cu ltu ra .

5. M ETÁFO RA DOS ESPAÇOS INTERSTICIAIS

Estam os cruzando d istân cias e tem pos de um a m an eira que


o nosso corpo físico sozinho não seria capaz. Se trouxerm os isso
p ara o contexto urbano, n aquele em que nos m ovem os a pé,
observam os in in terru p tam en te pessoas p ratican d o o espaço v ir­
tu a l nos seus celu lares, iPods, PD As. Essas p ráticas de acesso
estão tam b ém co n struindo um novo espaço de m istu ras in e x tri-
cáveis en tre o v irtu a l (o ciberespaço) e os am b ien tes físicos em

comhção
LINGUAGENS LlQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

que nosso corpo b io ló gico circ u la . Para se referir a esse espaço


en redado , novas te rm in o lo g ias estão su rgin d o . U m a vez que o
contexto urbano é o gran d e cenário em que essas interseções
ocorrem , Lemos (2 0 0 4 b ), um dos p rim eiro s p esquisado res b ra si­
leiros a se debruçar sobre o tem a, para dar conta da com plexidade
im p licad a nesses novos processos, u tiliz a a expressão “cidade ci-
b o rgu e”. Souza e S ilv a (2 0 0 6 ) os estuda sob a denom inação “espa­
ços h íb rid o s”. Com ênfase não apenas nos fluxos de transm issão
de inform ação para dentro e para fora do espaço físico em cone­
xões inco nsúteis, mas tam bém nas novas formas de com putação
(realid ad e aum entada, m ista, com putação ub íq u a, pervasiva e
v estív el), p ela ab ran gên cia da expressão, escolhi “espaços inters-
tic ia is ” como um a m etáfora suficientem ente capaz de caracterizar
as m ú ltip la s faces do que estam os buscando definir.
E curio so o b servar com o, nesse novo co n texto , a m etáfora
do “cib eresp a ço ” p erd eu um pouco da sua força em face do seu
q u ase-sin ô n im o m ais d en o ta tiv o : “in te r n e t”. E sta passou a ser
a p ala v ra m a is u tiliz a d a p ara se fazer referên cia às conexões
en tre eq u ip am e n to s m ó veis e o u n iverso v irtu a l e, p ara d is tin ­
g u ir os m odos de acesso, d ep en d en tes do tip o de eq u ip am e n to
que é u tiliz a d o , fala-se em in te rn e t fixa e in tern et m ó vel, aliás,
u m a oposição p ro b le m á tic a , po is o que é re alm en te fixo é o
e q u ip a m e n to , e não a in te rn e t. E sta é sem pre v ia g e m pelos
espaços m u táv eis e líq u id o s da inform ação . O utra d esign ação
até m ais p ro b le m á tic a é aq u e la q u e, ain d a h erd e ira dos d ile ­
m as da m etáfora dos un iverso s p ara le lo s, faz uso dos term os
“m u ndo r e a l” e “m undo v ir t u a l”.
Os eq u ip am ento s m óveis já não são o que eram há poucos
anos. C ada vez m ais se ap ro xim am da realid ad e dos m icroco m ­
p utad o res com controles rem otos, ab rin do -se para interfaces so­
cia is co letivas. Isso d eixa crista lin a m e n te claro que o espaço
v irtu a l não veio p ara s u b s titu ir o espaço físico , como p ro fetiza­
ram os ap o calíp tico s, mas para ad icio n ar fun cio n alid ad es a ele,
em processos de codepen dên cia. E, à m ed id a que a com unicação
m óvel v ai ficando m ais m u ltifu n c io n a l, a p alav ra “h íb rid o ” não
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

se refere apenas aos recursos do eq u ip am en to , mas tam b ém aos


usos h íb rid o s que se fazem desses recursos.
Espaços h íb rid o s e realid ad e h íb rid a são as p alavras-ch ave
u tiliz a d a s por Souza e S ilv a (id em , p. 2 8 ), que os defin e como a
fusão das bordas entre espaços físicos e d ig ita is , com pondo es­
paços conectados. Estes elim in am a d istin ção trad ic io n al en tre
espaços físicos e d ig ita is . A ssim , um espaço h íb rid o ocorre
quando já não se p recisa “s a ir” do espaço físico para en trar em
contato com am b ien tes d ig ita is . Sendo assim , as bordas en tre os
espaços d ig ita is e físicos tornam -se difusas e já não co m p leta­
m en te d istin g u ív e is.

O s e s p a ç o s h íb rid o s c o m b in a m o ffsico e o d ig ita l n u m a m b ie n ­


te so cial c ria d o pela m o b ilid a d e d o s u su á rio s c o n e c t a d o s via
a p a r e lh o s m ó v e is d e c o m u n ic a ç ã o . A e m e r g ê n c ia de t e c n o lo ­
g ia s p o rtá te is c o n trib u iu p ara a p o ss ib ilid a d e de se e star c o n s ­
ta n te m e n t e c o n e c t a d o a e s p a ç o s d ig ita is e de, literalm en te, se
" c a r r e g a r " a in te rn e t o n d e q u e r q u e se vá (ide m , p. 27).

A au to ra coloca ênfase nas interfaces sociais que são geradas


nos espaços h íb rid o s. Em v irtu d e disso, estab elece d istin çõ es
en tre estes e a realid ad e v irtu a l, a realid ad e au m en tad a e a m is­
ta. N a sua d efin ição con hecida, realid ad e v irtu a l (RV ) é um es­
paço v irtu a l qu e, com a aju d a de alg u n s ap aratos, p e rm ite a
im ersão p ercep tiv a do p artic ip an te em um a cena trid im en sio n al
com a q u al in terag e.
Q uando incorpora sensores - e os sin ais em itid o s por um
corpo b io ló gico são lido s p ela m áq u in a que reage a esses sin ais
e in te ra g e com eles —a realid ad e v irtu a l ad q u ire caracte rísticas
p ró p rias do que estou aq u i cham ando de “espaços in te r s tic ia is ”.
Prefiro essa term in o lo gia à p alavra “h íb rid o ”, de um lado, porque
os contextos d iferen tes em que “h íb rid o ” vem sendo em pregado
são m u ito s e d iverso s, o que colabora p ara au m en tar a incerteza
sobre seus sentidos e ap licações; de outro, tendo em v ista essas
in c erte zas, dou ao “h íb r id o ” e seu term o coetâneo “c íb rid o ”

cm%ção
LINGUAGENS LÍQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

sen tid o s tan to quan to p ossível re lativ am en te d e lim ita d o s, o


que pode ser conferido no cap ítu lo 5.
T am bém p arte in te g ra n te dos espaços in te rs tic ia is é a r e a li­
d ade au m en tad a que, segundo M ilg ra n e C olquhoun (apud Sou­
za e S ilv a , 2 0 0 6 , p. 2 9 ), ap resen ta três n ív eis:

a. re a lid a d e au m e n tad a tra d ic io n a l co in cid en te com r e a li­


dade v ir tu a l, q u an d o se usam capacetes de v isu aliz a ção
qu e p o s s ib ilita m ver através dos dados p ro jetad o s, de
m odo que o u su ário vê o m u ndo real com inform ação
su p erp o sta;

b. casos em que o am b ien te é aum en tado por m eio de objetos


v irtu a is produzidos por com putação g ráfic a, por exem plo,
um a foto sobre a q u al se superpõem im agen s d ig ita is g e ­
radas por com putado r;

C. m is tu ra s e n tre a m b ie n te s reais e v irtu a is .

A in d a in teg ra n tes dos espaços in te rs tic ia is são as realid ad es


m istas, quando não fica claro se o am b ien te é real ou v irtu a l, ou
quando não há p red o m in ân cia de um sobre o outro em um am ­
b ien te. Como bem lem b ro u Souza e S ilv a , os autores acim a re­
feridos re strin g e m suas noções de realid ad es au m en tad a e m ista
à inform ação gráfica.
H á, assim , outros sentidos para esses term os. Tam bém citado
por Souza e S ilv a (ib id e m , p. 3 0), Is h ii, do grup o m íd ia ta n g í­
vel do M IT lab , por exem plo, em 1999 p rev ia que a inform ação
do desktop iria m ig ra r p ara duas direções: sobre as nossas peles e
corpos e sobre o am b ien te físico. No p rim eiro caso, trata-se da
com putação v estív e l e, no segun do, da com putação u b íq u a. De
fato, essas duas form as de co m p utação, jun to com o que vem
sendo cham ado de “com putação p erv asiv a” - incorporada em
m u ito s objetos e lu g are s, um outro nom e p ara u b íq u a — estão
hoje em ergin d o na su p erfície das ten d ên cias m ais prováveis da
com putação p ara um futuro próxim o.
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

Ao d eriv ar o sentido de espaço aum en tado d a re alid ad e a u ­


m en tad a, M anovich (apud Souza e S ilv a, ib id em , p. 31) d efin iu
o p rim eiro como espaço físico transform ado em espaço de dados
e ap resen to u três perspectivas para isso:

a . a v ig ilâ n c ia do vídeo que cap tu ra inform ação do universo


físico , tran sferind o -a para a rede d ig ita l;

b. espaço celu lar, que in v erte a situação an terio r, tr a n s m itin ­


do a inform ação da rede d ig ita l p ara os u suário s m óveis,
com celu lares dotados de Global Positioning System (S iste ­
m a de P osicionam ento G lo b al), ou não;

C. de modo sim ila r, m as não p erson alizado , m onitores de TV


espalhados pelo espaço p ú b lico podem tra n sm itir info r­
m ação d ig ita l p ara os tran seun tes.

A ssim , co m p leta Souza e S ilv a, “os fluxos de inform ação que


an terio rm en te ocorriam no ciberespaço podem agora ser p erce­
bidos como fluxos p ara dentro e para fora do espaço físico , eva-
nescendo as bordas en tre am bo s”.
Não existe um consenso sobre o entendim ento da R ealidade
A um entada (RA ). Não é para menos. O campo é tão agitado por
novidades, invenções e aplicações inesperadas, que fica d ifícil m an­
ter o passo da atualização dos conceitos. No estado da arte atual
(fevereiro de 2 00 7), a realidade aum entada refere-se a qualquer
am biente que in clu i elem entos do mundo físico e de realidade v ir­
tual. A definição de A zum a (19 97) é sim ples, mas ain da atual.
Sistem as de realidade aum entada apresentam três traços básicos:

a. com binação do real com o v irtu a l;

b. in te ra tiv id a d e em tem po real;

C. re g istro em 3D.

A tualm en te, a m aioria das pesquisas em R A está voltada para o


uso de im agens ao vivo de vídeo que são d ig italm en te processadas

comunêção
LINGUAGENS LlQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

e aum entadas pela adição de gráficos com putacionais. Os possíveis


em pregos da R A vão dos experim entos estéticos e efeitos especiais
no cinem a e nos outdoors à arquitetura, à m edicina e ao direito.
O posta à R A encontra-se a R ealid ad e D im in u íd a (R D ), usada
p ara “lim p a r” a re alid ad e, m o difican do , su b stitu in d o ou su p ri­
m in do v isu alm en te elem entos reais por outros, que podem até
m esm o ser v irtu a is. A realid ad e am p lific ad a, no outro extrem o,
co m p lem en ta a R A para au m en tar as propriedades do objeto
real com inform ações v irtu a is , como ocorre em um a c iru rg ia em
que p acien te e m édico estão em diferen tes locais, in term ed iad o s
por um sistem a im p lem en tad o em rede de com unicação com pu­
tacio n al (M aciel e V e n tu re lli, 2 0 0 4 ).
A R A m antém estreitas ligações com a com putação m ista,
com a com putação u b íq u a ou pervasiva e com a com putação ves-
tív e l, todas elas com pondo com perfeição a id eia dos “espaços
in te rs tic ia is”. A com putação m ista é m u itas vezes usada como
sinônim o de R A , pois, tanto quanto esta, im p lica a produção de
novos am b ien tes por m eio da m istu ra entre objetos físicos e d ig i­
tais que coexistem e in teragem em tem po real. Por com binar
um a variedade de m odelos 3D, sensorização ,feedback háptico, in ­
terfaces hum ano—com putador, sim ulação , técnicas de renderiza-
ção e exibição, e por ser um m isto entre realidade aum entada,
v irtu a lid a d e aum en tada e realid ad e v irtu a l, a com putação m ista
pode ser um processo m ais com plexo do que a R A , d aí seu nome
ain d a se m anter com certo grau de independência dos outros.
“V irtu a lid a d e en carn ad a” era o bonito nom e com que a com ­
p utação u b íq u a nasceu. Foi só quando com eçou a crescer que
seu nom e m udou. E la é encarnada p orque tom a corpo em recur­
sos co m p utacio n ais pervasivos. Por isso, é m u itas vezes em p re­
g ad a com o m esm o sen tido de p ervasivo, aq u ilo que se esp alh a
por todos os lu g ares, com putação in te g ra d a ao am b ien te e aos
objetos co tidian o s de modo que cap acite as pessoas a in te ra g ir
com os recursos de processam ento da informação de forma natural,
casual e aju stad o a q u aisq u er locais e contextos. H á um a d ife­
rença que os esp e cialistas gostam de fazer entre a com putação
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

u b íq u a e a R ealid ad e A rtific ia l (R A r). E nquanto esta é d efin id a


como um m undo v irtu a l no q u al o usuário in tera g e tão n a tu ra l­
m ente que ch ega a perder a sensação de a le rta à in teração , a
com putação u b íq u a im p lic a interação e x p líc ita e in ten cio n al.
O utros nomes para com putação u b íq u a são ain d a: tecn o lo gia
calm a, coisas que pensam e in te rn e t pervasiva. Para os qu e g o s­
tam de b rin car com as p alavras: everyware, um rebento nascido
do casam ento do hardware com o software.
A lém d isso, nos am b ien tes de p esq u isa, a com putação p erv a­
siva ou u b íq u a ain d a vem sendo cham ada de “in te lig ê n c ia am ­
b ie n te ”, um nom e que parece b astan te adequado para c a ra c te ri­
zar as im p licaçõ es da im p lan tação de recursos co m p utacio n ais
no am b ien te, e p ara o modo como hum anos e agen tes a r tific ia is
podem fazer uso e in te ra g ir nesses contextos tecn o ló gico s. As
pesquisas b en eficiam -se dos m étodos u tiliz ad o s na in te lig ê n c ia
a r tif ic ia l, ao m esm o tem po em que esse novo cam po pode b en e­
ficiar o avanço da in te lig ê n c ia artificial. Os tem as que vêm sendo
estudados versam sobre: am b ien tes in te lig e n te s; visão co m p u ta­
cio n al; processam ento de sistem as para am bientes in te lig e n te s;
ap ren d izagem p ara am b ien tes in te lig e n te s e sistem as m óveis;
interfaces in te lig e n te s e sistem as co gn itivo s para com putação
m óvel; m odelização e racio cínio sobre con texto; adaptação de
recursos; agen ciam en to e confiança em sistem as u b íq u o s; racio ­
cín io d istrib u íd o ; co m p artilh am en to o ntológico.
A co m p u tação v e stív e l tr a ta dos co m p utadores que são u sa ­
dos com o se fossem roupas, in sep aráv eis do corpo hum ano.
Eles são leves, co n fo rtáveis e co n sisten tes, a in teração com o
u su ário é co n stan te, in co rp o rad a, por assim d izer, e d isp en sa o
ato de lig a r e d e slig a r. Tão con fortáveis e im p e rc e p tív e is
q u an to um a le n te de co n tato , m as in te lig e n te s . A lém disso ,
são m u ltita re fa s. Podem os c o n tin u ar a re a liz a r q u a isq u e r a t i­
vid ad es em q u e estejam o s en g ajad o s, e eles fu n cio n am como
agregad o s que servem p ara a u m en tar o nosso p o te n c ial b io ló ­
g ico . Por isso , são incorporados como p róteses qu e fazem de
nós organism os cib o rgues, sem que tenham os de p erder a nossa

mmhção
LINGUAGENS LlQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

reco n fo rtan te ap arên cia h u m an a, p o is as novas pró teses estão


bem lo n g e das im ag en s m o n struo sas com que o cin em a atem o ­
rizo u os e sp írito s in g ên u o s.
No contexto da criação estética, v o ltad a para a realid ad e a u ­
m en tad a, além de d is c u tir essas questões, feitas de diferenças
su tis, M aciel e V e n tu re lli (ib id e m ) trouxeram tam bém para o
deb ate a d istin ção , estab elecid a por M ilg ra m et al. (1 9 9 4 ), en ­
tre objetos reais e objetos v irtu a is. Os reais possuem ex istên cia
o b je tiv a, enquanto os v irtu a is existem em essência, m as não de
fato. Os reais tanto podem ser observados d iretam en te como nu-
m erizados em um d isp o sitiv o a p a rtir do objeto real, enquanto
os objetos v irtu a is só podem ser visu alizad o s a p a rtir de um a
sim ulação/m odelo e num erizados em um d isp o sitiv o de apresen ­
tação, um a vez que não têm ex istê n cia física.
A distin ção entre o que é cham ado de objeto real ou físico (e,
por extensão, m undo real ou físico) e o cham ado objeto sim ulado
ou v irtu a l (e, por extensão, universo sim ulado ou v irtu a l) é bas­
tan te relevante nos espaços in tersticiais e, certam ente, não pode
ser desprezada. E ntretanto, m ais um a vez somos vítim as das típ i­
cas dicotom ias ocidentais que redundam na falta de palavras m ais
justas para não se recair na ingen uidade filosófica e epistem ológica
de im ag in ar que os objetos e o universo v irtu al não são tam bém
físicos e reais, quando, na verdade, têm apenas um outro estatuto
de fisicalidade e realidade que lhes é próprio. Ju stam en te essas
ingen u id ad es, que já produziram tantos equívocos em torno da
m etáfora dos universos paralelos, ain da parecem im perar, em bora
com menos ênfase, na era da m ob ilidade que se anuncia. E ntretan­
to, por envolver fundam entos filosóficos, que devem ser tratados
com cuidado e cuja condução nos desviaria dos propósitos deste
cap ítulo , deixo essa discussão específica para outra ocasião.
Embora u tiliz e “espaços in te rs tic ia is” para dar conta de todos
esses fenôm enos tecno ló gico s em ergen tes, que, aliás, apresen ­
tam gran d e p o ten cial para com unicação e p ara realizações esté­
ticas, considero b astan te p ertin en te a ênfase que Souza e S ilv a
(2 0 0 6 , p. 31) coloca na sua concepção de realid ad e h íb rid a como
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

re su lta n te de p rá tic as so ciais que ocorrem sim u lta n e a m e n te


em espaços físicos e d ig ita is , a que se ad icio n a a m o b ilid ad e. A
auto ra é clara: o espaço h íb rid o não é m eram en te criado p ela
tecn o lo g ia, m as, m u ito m ais, um espaço co n ceitu ai gerad o na
fusão das bordas en tre espaços físicos e d ig ita is , por causa do
uso das tecn o lo gias m óveis como interfaces sociais. É, p o rtan to ,
criado p ela conexão de m o b ilid ad e e com unicação, e m a te ria liz a ­
do por redes sociais desenvolvidas sim u ltan e am en te em espaços
físicos e d ig ita is . São, acim a de tudo, espaços m óveis, isto é, es­
paços sociais conectados que são definido s pelo uso de interfaces
p o rtáteis como os nós da rede.

Q u a n d o u m a in te rface m ó v e l s a b e o n d e se e n c o n tra n o e s p a ç o
físico, ela a u t o m a t ic a m e n t e a d q u ire u m s ig n ific a d o d ife re n te
d e u m te le fo n e fix o e de u m c o m p u t a d o r de m e sa , p o is u m a
de s u a s fu n ç õ e s p rin cip ais se t o r n a a n a v e g a ç ã o p o r e s p a ç o s
físicos. A c a p a c id a d e de c o n e x ã o c o m a in te rn e t a d ic io n a d a
a o s s is te m a s de p o s ic io n a m e n t o p e rm ite q u e o s u su á rio s te ­
n h a m u m a relaçã o ú n ica t a n to c o m o e s p a ç o físic o q u a n t o
c o m a in te rn e t (ibide m , p. 47).

A inda segundo a autora (p. 33), exem plos claros da transferên­


cia de co m un idades em rede para espaços h íb rid o s são os jogos
m óveis baseados em p o sicio nam ento. T rata-se de am b ien tes de
m u ltiu su ário s em que um telefone celu lar equipado com sistem a
de posicionam ento e conexão à intern et é usado como interface do
jogo, o que p erm ite aos jogadores usarem o espaço urbano como
ta b u leiro . O p rim eiro desses jogos lançados co m ercialm en te foi
o Botfighters. O jogo depende do m ovim ento físico dos jogadores
através da cid ad e. Conform e a posição ocupada pelo jogador, ele
pode atira r em outros. Os tiro s são m ensagens de texto e m itid as
ou recebidas cujo sucesso depende das arm as v irtu a is de cada
jogad o r e da sua d istân c ia em relação ao alvo.
B astan te co n h ecido , tam b ém por re a liz a r obras co lab o rati-
vas que fazem uso de com binações da rede g lo b a l on-line com

comuni£çã0
LINGUAGENS LÍQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

disp o sitivo s de telefo nia m óvel e de localização por satélite GPS,


é o gru p o in g lê s B last Theory. Sob o nom e de reality game, em
um de seus trab alh os os jogad o res, que andam p ela cid ad e m u ­
nidos de fones celu lares e G PS, in terag em com outros jogadores
p resen tes no espaço v irtu a l das redes, am bos os grup o s tentando
cap tu rar F ran k, que deles te im a em escapar pelas ruas da cidade
(ver M achado 2 0 0 7 b , p. 2 3 4 ).
A diferença desses jogos em relação aos M M O RPG (Massive
M ultiplayer On-line Role-playing Games), jogos de m ultijogadores em
rede (ver capítulo 16), é que, naqueles, aproveitando-se do novo
potencial aberto pelos equipam entos m óveis, os jogadores m ovi­
m entam -se através do espaço físico, ao mesmo tempo em que inte­
ragem , via rede, com os outros jogadores, dependendo da posição
relativa de proxim idade ou distância que ocupam uns em relação
aos outros. A ssim , os jogadores já não precisam estar sentados em
frente aos seus com putadores, pois o jogo im plica moverem-se por
espaços públicos enquanto recebem e em item mensagens d ig ita is.
O núm ero e a variação de games desse tipo aum en tam a cada
d ia. V êm sendo conhecidos como games baseados em locação ( lo-
cation-based-games) ou games capacitados por locação ( location-
enabled-games). Eles estão sem pre baseados em a lg u m a espécie
de tecn o lo gia de lo calização , e o jogo evo lui de acordo com o
lu g a r que o jogado r vai ocupando no espaço urbano. M as esses
jogos co n stitu em -se apenas em um a das regiões do te rritó rio
m ais am p lo das locative media (m íd ias lo cativas), term o cunhado
por K arlis K aln in s. As tecn o lo gias u tiliz a d a s nas m íd ias lo c a ti­
vas são o G PS, laptops, celu la res, GIS [Geographic Information
System (S istem a de Inform ação G eo gráfica)], m apas do G oogle e
RFID ( R adio Frequency Identification). O GPS p e rm ite d etectar
com precisão um lu g a r esp ecífico , en quanto os equip am en to s
m óveis p o ssib ilita m que as m íd ias in tera tiv a s sejam lig a d a s a
esse lu g ar. O GIS fornece inform ação sobre a situação g e o ló g i­
ca, e straté g ic a ou econôm ica de um lu g ar. Os m apas do G oogle
ap resen tam representação v isu al de um lu g a r específico e a
RFID lig a dados d ig ita is a um lu gar.
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

Por m eio dessas tecnologias, as m íd ias locativas propõem a


integração de m íd ias locais com inform ação e recursos de com u­
nicação que fazem uso de celulares e p o rtáteis, de modo que torne
o usuário geograficam ente m óvel. O que isso traz à b aila de m ais
relevan te, como anunciou Souza e S ilva (2 0 0 6 , p. 4 2 ), é a neces­
sidade de se repensar o sentido de com unidades d istrib u íd as, na
m an eira como a m o b ilidade dos usuários influencia na construção
de espaços sociais. Tanto é assim que, em bora as tecn ologias por­
táteis sejam em parte responsáveis pela m íd ia locativa, a finalidade
dos projetos não está nelas, m as na criação de um a série de a tiv i­
dades que visam exp andir a experiên cia urbana co tidian a.
A ssim , nas palavras de R u ssell (2 0 0 4 ), essa nova m íd ia pode
ser m u itas coisas: um novo lu g a r para velhas discussões sobre a
relação da consciência com o lu g ar e com o outro; um a m oldura
dentro da q u al as pessoas podem se en gajar, critic ar e dar form a a
um conjunto de desenvolvim entos tecnológicos que se processam
aceleradam ente; um contexto dentro do qual se pode explorar
modelos trad icio n ais de com unicação, com unidade e troca.
M íd ias locativas, realidade aum entada (realid ad e v irtu a l aco­
p lad a à realid ad e física) e com putação pervasiva ou u b íq u a (chips
em todos os lu gares) têm , todas elas, evidente caráter in te rstic ia l
na m ed id a em que entrecruzam a realidade física com inform ação
d ig ita l. Todavia, d iferen tem ente das outras, as m íd ias locativas
estão voltadas para a interação social que se dá em um lu g a r por
m eio da tecnologia. São experiências inseridas no circu ito de um a
cu ltu ra da m obilidade que abarca informação dependente de local
e consciência do contexto. Por isso, o pano de fundo tecnológico
da m íd ia lo cativa é designado como “com putação consciente da
localização ”, um cam po em ergente em que a localização das p es­
soas e objetos pode ser usada pelas m áquin as para derivar infor­
mação co n textual e assim dar assistência aos usuários em todos os
aspectos a v id a deles (H arle e Hopper, 2 005).
D iante disso não é de estranhar que a ú ltim a p alavra de ordem
tanto do ciberespaço quanto dos espaços in tersticiais tem sido a
dos fundam entos com uns da confiança e do engajam ento na ação.

comhção
LINGUAGENS LlQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

228
U m a p alavra de ordem , aliás, que conclam a à lu ta por Eros no seu
in fatig áv el defrontam ento com T ânatos, pois, como não poderia
d eixar de ser, os equipam entos m óveis, em bora pequeninos e apa­
rentem en te inofensivos, constituem -se em poderosas tecnologias
de so ciab ilid ad e, para o bem e para o m al.
A expansão das tecnologias de captura de localização é notória.
H á pouco tem po circulavam em dom ínios específicos como redes
de d istrib uição com ercial e m ilitar, servindo ao controle social exer­
cido por interesses corporativos e governam entais. H oje, já en tra­
ram nas grandes avenidas do consumo, aparecendo em program as
de navegação em carros, sistem as de posicionam ento portáteis
para ativid ades de outdoor, localizadores de telefones celulares e
outros serviços para po rtáteis, como smart pbones e PD As.
D iante disso, R ekha M u rth y (2 0 0 7 ) argum en ta que o alcance
ap aren tem en te ilim ita d o do espaço v irtu a l, nesta era da m o b ili­
dade d ig it a l, deve tam b ém conter, do m esm o m odo, m eios de
re sistên cia a form as de con tro le e m an ip ulação . São esses m eios
em ergen tes que a au to ra contrapôs às ansiedades rep etid am en te
d ifu n d id as de V irilio e B a u d rilla rd , cujo p essim ism o m o n o líti­
co tem seduzido ta n ta gen te.
Os diferentes usos possíveis das tecnologias móveis, diz M urthy,
devem nos levar a pensar novas funções que podem ser construídas
com base nas necessidades e desejos existentes. Para isso, precisam
ser consideradas as possibilidades que são abertas pela interação
m u ltin o d a l nos pontos em que e la se entrecru za com a co m u n i­
cação colaborativa e a construção do conhecimento. U m dos exem ­
plos disso encontra-se naquilo que é cham ado de “anotação espa­
c ia l” ou “anotação urbana”, ou seja, projetos nascentes de m ídias
locativas que encorajam as pessoas a postar, em localizações geo­
gráficas (geralm ente áreas de alta densidade dem ográfica e acesso à
com unicação d ig ita l), histó rias pessoais, pensam entos, alg u m a
inform ação, cham adas para a ação, trocas entre usuários. A anota­
ção é postada v irtu a lm e n te em um espaço geo gráfico pelo uso
de coordenadas de GPS e o que é com unicado na anotação depende
in teiram en te do usuário. E tam bém in v isív el aos olhos, pois é
MEDIAÇÕES TECNOLÓGICAS E SUAS METÁFORAS

criada em um local equipado com recursos de com unicação e rece­


bido assincronicam ente por outro usuário.
P ro jeto s desse tip o podem ser visto s como um a p rá tic a de
filtra g e m em que aos usuário s de eq u ip am en to s m óveis é d ad a
a opção de p assar m ais tem po d istrain d o -se com h istó rias, a b rir
cla reiras de ar resp irável no to rvelin h o da v id a co n tem p orân ea,
p o n tilh an d o os locais geo gráfico s com observações pessoais que
só podem ser postadas e acessadas no espaço v irtu a l. No p ro je ­
to Urban tapestries (ver c a p ítu lo 2), por exem p lo , usu ário s de
tecn o lo g ias m óveis sem eiam o espaço urbano com suas p ró p rias
h istó rias que podem ser acessadas por um a enorm e v aried ad e
de outros u suário s - tu ris ta s, recém -resid en tes ou an tig o s m o­
radores que buscam redesco b rir novos espaços em seus lu g ares
fa m iliares.
Enfim, os espaços in tersticiais parecem estar cum prindo um a
espécie de revanche contra a avalan che de prem onições negras
sobre a obsolescência do corpo, o colapso dos espaços g e o g rá fi­
cos e do passo da v id a que tan ta in q u ietação e m esm o a n g ú s tia
provocou nos corações até recentem ente.
Para com provar essa revanche, b asta saber que o E uropean
M ed ia Lab, em H eid elb erg, está trabalhando para oferecer serv i­
ços em com putadores do tam anho de um a câm era que são, ao
mesm o tem po, gu ias turístico s com atenção p erm anente, ex ib i-
dores de m apas e câm eras. Você pode apontar o seu com putador/
câm era para um castelo na m ontanha e p ed ir ao com putador que
discorra sobre a h istória do castelo, ou mostre um m apa com todos
os restaurantes para não-fum antes que estão próxim os, ou o in ­
forme sobre o lu g ar em que pode com prar cornflakes depois das
dez da noite. Recursos de computadores/câmeras/sensores com
caracteres ain d a m ais potentes estão transform ando o modo de se
lu ta r nas guerras, mas estão tam bém am pliando as m argens da
so ciab ilid ad e e a m an eira como em ergências podem ser a te n d i­
das. Estão tornando as tecnologias entidades que, como q u alq u er
organism o vivo, são, de distin to s modos, sensíveis ao seu entorno
(S m ith , 2 0 0 3 , pp. 17-18).

comunêção
LINGUAGENS LÍQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE

As p aisagen s tecn o ló gicas estão m udando a um a velo cid ad e


esto n tean te. J á se pode esp erar que um a nova m etáfora não ta r­
d ará a ap arecer para conviver com as três que foram aq u i d isc u ­
tid as. De fato, como afirm a M u rth y, “em nosso tem p o, não so­
brou m ais lu g a r p ara a n o sta lg ia ”.

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