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Aliza

Numa terra, não tão distante da nossa, havia uma vez um lírico cujo desejo era cantar as suas
memórias ao mundo. Mas, como o destino o havia, este tinha uma vergonha profunda ao palco, e
encontrava-se normalmente de entre os mais pobres pecadores, a ouvir as vozes dos grandes.

Um dia porém, o lírico acordou a sentir-se diferente. Não sabia explicá-lo muito bem ele mesmo,
mas sentia-se enamorado por uma voz muito profunda, terrivelmente atraente, e passou o dia a
sofrer com pequenos murmúrios desta, e se já sentia vergonha, agora encontrava-se apavorado.
Tremia levemente com um sorriso baixo ao canto a cada pessoa, mesmo fora do palco, e não
conseguia compreender o porquê.

Nesse mesmo dia, encontrou um rapaz, lá para o fim, enquanto entristecia-se com a voz suave.
Tinha uma aparência estranha, com um olhar azul contrastante à face escura. Este sentou-se ao
seu lado com um ar preocupado e finalmente, após o dia longo, esta voz, esta presença, era tão
comum como dantes.

- Estás bem? - pôs-lhe a mão sobre o ombro - Andas mais irrequieto que o costume. Pelo menos,
o teu costume.

Isso pôs o rapaz a rir-se pela primeira vez, uma gargalhada profunda e desajeitada, seguida por
lágrimas inconstantes. O lírico não estava bem, frustrado com a sua voz e com as suas ações,
levado pelo desejo de arrancar-se para ter uma resposta clara, e naquele momento saíra-lhe tudo o
que tinha retido com os outros e respondeu de entre as gargalhadas e as lágrimas:

- Não... não sei. Não sei bem como explicar... eu, eu passei-me e... e tudo e todos são... são
demais. - as palavras saíram-lhe a custar, garganta entupida pelos nervos.

- Bem... se não me sabes explicar agora, talvez saibas explicar quando estiveres calmo? É que...
não sei se te ris ou choras. - ele tinha um sorriso confortante, que deixou o rapaz a sentir-se único,
estimado.

O lírico respirou então mais profundamente, como se ensinara quando se encontrava num palco.
Inspirar fundo por quatro segundos, expirar pelo dobro. Não o conseguia bem. O ar tremia-lhe
quando expirava, e quase que engasgava-se a inspirar, mas fazia-o enquanto o outro rapaz de
olhos azuis esperava.

- Sabes... quando eu tinha medo de falar com os outros... porque, pronto, venho de outro sítio, a
minha mãe dizia-me que, imaginando todos como um arco-íris, se calhar ajudava porque os arco-
íris são bonitos, e não nos julgam. - ele pensou por um momento - E se o fizeram, podemos pensar
no que disseram, mas são só gotas de água sobre o sol.

Isso fez o lírico olhar para o outro rapaz, fez-o inspirar novamente, para então questionar:

- Bem, mas os arco-íris são muito maiores, muito mais especiais que nós. São maravilhosos,
como é que posso simplesmente descartá-los...?

O rapaz sorriu.

- Porque são feitos da mesma coisa que tu, se fosses um arco-íris, mas em sítios diferentes e
tempos diferentes... não tens de os perseguir, mas podes se quiseres, para percebê-los e conhecê-
los melhor.

- Bem, nesse caso, então... quando estou num palco, não tenho de ouvir as críticas, porque...
porque eles são iguais a mim, certo? - a voz parecia silenciosa, a encontrar o que dizer, o problema
a criar para fazer desta situação perfeita uma desgraça.

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Aliza

- Exato. Eles só têm uma experiência diferente da tua, mas somos todos iguais.

- E... quem eu quiser conhecer melhor, posso tentar acompanhar, para que me possam mostrar. -
o lírico sorriu um sorriso pequeno, a pensar na ideia com algum conforto, com alguma firmeza -
Nesse caso, posso acompanhar-te? É que, as tuas palavras... não sei, cativaram-me, e... se
quisesses, claro, poderíamos? - ficou nervoso, não queria que o outro o levasse a mal.

Mas o outro sorriu e concordou, estendendo a mão com algum entusiasmo.

- Nesse caso, comecemos de novo. Chamo-me Samuel.

O lírico esfregou a mão contra os jeans e estendeu a sua, para agarrar a do outro, e com uma
coragem recém-descoberta afirmou:

- Boa tarde. Chamo-me António, mas trata-me por Gabriel.

Desde então, a voz, nunca desaparecendo após o dia, foi inquietando. A primeira vez que o lírico
pegou no alaúde e apresentou-se num palco maior, não estava sozinho, estava com um novo
amigo de olhos azuis e este repetiu com um sorriso leve.

- São só gotas de água.

E nesse mesmo dia, o lírico recebeu o dobro dos aplausos porque, em vez de pavoroso, este
apercebeu-se de que eram todos iguais, e que só ele estava receoso. Que estava acompanhado
de quem o queria acompanhar, e que só precisava disso mesmo.

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Aliza

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