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A Perseguição (Canto do Mundo, parte 1)

Puxou-a do carro, atirando-a para trás de si com força na areia quente do Inferno
Fluminense. Pulou na parte de trás do jipe e se abaixou bem a tempo de ouvir o som de um porrete
passando por cima de sua cabeça. Levantou-se e bloqueou, com seu rifle elétrico descarregado, o
próximo golpe, que vinha de cima para baixo. Forçando a arma de sua inimiga outra vez para cima,
conseguiu abrir sua guarda o suficiente para desferir um chute lateral, que a jogou por cima da porta
baixa do carro conversível, levando mais uma pessoa ao chão.

Sem pestanejar, o andarilho pulou por cima do banco e se pôs em frente ao volante, pisando
fundo no acelerador e fazendo a tração presente nas quatro rodas do carro se ativar. O carro
acelerou rapidamente na areia, levantando poeira atrás de si. À sua frente, imensas dunas
separavam-no de seu objetivo, visível no horizonte: Uma cidade que, de alguma forma estranha,
parecia se erguer, a metros do chão. Ajeitou os trapos que usava enrolados pela cabeça e tomou do
porta-luvas um par de óculos para se proteger do vento arenoso que insistia em entrar em seus
olhos, e só então permitiu-se olhar para trás. Foi quando viu que seu problema ainda não havia
acabado.

Atrás de si, outros dois jipes iam em sua direção, o perseguindo. Ao vê-los brandindo armas
ameaçadoramente e gritando ao vento, constatou - não pela primeira vez - que seus perseguidores
eram, no mínimo, incomuns: Em um dos jipes, duas idosas extremamente fortes auxiliavam uma
terceira a subir, enquanto a quarta, mais franzina, dirigia. No outro, na direção estava uma mulher
que parecia um pouco mais jovem, talvez por volta dos 40 anos, era difícil ver com toda aquela areia
voando. Ao seu lado, no banco do carona, outra velha que aparentava ser bem baixa e vestia óculos
escuros apontava um fuzil de precisão a laser na direção dele, enquanto a que ele havia derrubado
segurava-se na porta traseira do jipe, um revólver nas mãos. Teve a impressão de ver uma última no
banco de trás, segurando algum tipo de aparato em suas mãos. Só entendeu sua utilidade quando
ouviu uma voz feminina arranhada sendo propagada por meio de um alto falante muito, muito
velho:

- POR QUE ESTÁ FUGINDO, DOCINHO? POR QUE NÃO FICA E TOMA UMA XÍCARA DE CHÁ?

Virou com tudo o volante à esquerda e começou a subir uma duna gigantesca, bem a tempo
de ver um tiro explodir na areia ao seu lado e elevar uma nuvem alta. Não teve tanta sorte com o
próximo, que atingiu seu ombro de raspão, atravessando as camadas de panos e roupas e
perfurando a carne. Praguejou entre os dentes cerrados e tomou em suas mãos o porrete que a
velha havia deixado cair ao ser chutada pra fora do carro. Utilizou-o para prender o volante no lugar.
Travou o acelerador com sua pesada mochila, tomou nas mãos sua pistola de energia, e abaixou-se
atrás do volante. Mais um tiro negro do fuzil explodiu na traseira do carro, fazendo ele se balançar
inteiro, seguido de uma risada maligna ecoando nada melodiosa pelo Inferno. Levantou-se
rapidamente e passou para a traseira do jipe, jogando-se sem cerimônia por sobre os bancos
traseiros. O som agudo de outro projétil percorre o ar acima de sua cabeça.

Nesse momento ele se equilibra em um joelho, pisa no encosto do banco, e mira para baixo.
A duna, cada vez mais íngreme, o faz perder o equilíbrio, mas ele respira fundo e tenta estabilizar a
mira em meio aos gritos de ameaça da mulher no banco de trás do outro carro. No fundo de sua
mente, ele constata que um dos jipes está se aproximando pela lateral, mas logo a informação se
desvanece. Ele possui muitas perguntas, mas todas elas parecem desaparecer quando ele põe o
dedo sobre o gatilho... e o puxa. Uma rajada de energia concentrada é disparada de sua arma,
atravessando o ar em questão de segundos e indo diretamente na sniper da idosa que, com o
impacto, o deixa cair fora do carro, perdendo-se em meio às areias eternamente mutáveis do
Inferno Fluminense.

- MERDA, errei! – O andarilho amaldiçoou sua má-sorte, não pela primeira vez naquele dia.
Havia tentado acertar o pneu do veículo, para acabar de uma só vez com aquilo, mas uma
pontada de dor no braço o havia impedido.

Afundou outra vez no banco traseiro, e mais três tiros em sequência por pouco não pegam
nele. Dois deles passaram direto e afundaram no deserto, o impacto sendo completamente
absorvido pela areia quente. O terceiro bateu na traseira do banco, tirando faíscas da estrutura de
metal do carro.

- NÃO NOS FAÇA PERDER TEMPO, BEM! TEMOS OUTROS ENTERROS PARA CHORAR!

Estava prestes a atirar outra vez quando sentiu um tremor: o outro carro havia batido com
tudo na lateral do dele, enquanto uma das senhoras saltava de um carro para o outro gritando e
segurando duas estacas de metal muito longas, prontas para serem cravadas no homem. Ela era
muito musculosa, mais do que um humano normal deveria ser, vestia um colete de couro e uma
bandana preta segurando os cabelos grisalhos. Ele rolou para o lado, indo cair no chão do jipe, e as
estacas rasgaram o já parco tecido que recobria o banco. Ele aproveitou o momento de distração e
pulou para o banco da frente, tirando o porrete e assumindo a direção. Com uma manobra, girou o
volante, se afastando do carro ao lado apenas para voltar e bater na lateral dele novamente com um
estrondo. A mulher atrás dele se desequilibrou, momento que ele utilizou para dar um chute em sua
barriga e fazê-la cair do carro, rolando na areia e caindo nas dunas.

“MAS QUE DIABOS”, ele pensou, desesperado. “POR QUE TEM UM BANDO DE IDOSAS ME
ATACANDO?”. Percebeu que à distância o topo da duna se aproximava e, se ele estivesse certo,
aquela era a melhor das chances para se livrar delas. Bateu mais uma vez contra o carro ao lado, e
uma das senhoras que havia pego uma metralhadora perdeu a mira e atirou uma rajada pro céu,
rasgando completamente o fino trapo que estava sendo usado de teto para reter um pouco do calor
imperdoável do Sol. A motorista franzina gritou com sua voz estridente, pegou duas facas, trocou de
lugar com outra e pulou com agilidade surpreendente na direção do Andarilho. Ele, com sua pistola
e praticamente à queima-roupa, conseguiu dar um tiro no pneu do carro ao lado dele, o raio de
energia concentrada abrindo um grande rasgo e fazendo o jipe inimigo capotar para a frente,
girando e logo ficando para trás. Foi aí que ele percebeu a antiga motorista no ar. Ela caiu por cima
dele com seus longos cabelos brancos por cima dos olhos injetados e dentes faltando, dando a ela
uma aparência ainda mais insana. Ela pousou nos ombros dele, derrubando-o por cima da caixa de
marcha, que desacelerou o carro e o fez derrapar. Erguendo as facas acima dele, gritou com a voz
arranhada:

- NÃO DEVERIA TER ENTRADO NO TERRITÓRIO DAS CARPIDEIRAS, AMORZINHO!


- EU NEM SEI QUEM VOCÊS SÃO, DROGA! - Ele gritou em resposta

Ainda segurando o volante com mão firme, sentiu o carro inteiro tremer outra vez quando o
jipe que ainda estava andando bateu na sua traseira, e talvez isso o tenha salvo, pois a assassina se
desequilibrou quando ia dar o golpe fatal. Isso não o salvou, entretanto, de um corte profundo em
um dos braços. Com o outro tateando o chão, ele alcançou o porrete e bateu na lateral da velha,
jogando-a para o banco de trás. Os tiros continuavam e a maldita do alto-falante não parava de
encher o saco. Com muita dor no braço esquerdo, ele ergueu-se apenas o suficiente para olhar pra
frente, e percebeu que estava quase na hora. Pisou novamente no acelerador, corrigiu a marcha, os
tiros atrás de si, as velhas gritando e ele apenas torcendo para que tudo aquilo acabasse logo.
E então percebeu que chegara a hora. Girou o volante para a direita perto do topo da duna,
e abaixou-se no chão do carro, cobrindo a cabeça e torcendo para o melhor. O jipe continuou sendo
empurrado alguns metros pelo veículo de trás e quase capotou para o lado com a violência da curva.
Ele tremeu de dor, rezando a Tori para que desse certo. O outro carro continuava acelerando e,
quando elas perceberam, já era tarde demais para virar ou frear. Alcançaram o topo da montanha
de areia com incrível velocidade e voaram vários metros para o outro lado, batendo com tudo na
descida, capotando várias e várias vezes na areia antes de finalmente parar. O sistema de alto-
falantes se estilhaçou completamente, o carro quebrou, e o silêncio se fez soberano uma vez mais.

O andarilho respirou aliviado, capaz de ouvir os próprios pensamentos novamente. Isso até
que, passada a adrenalina, os seus ferimentos começassem a doer ainda mais. Antes de qualquer
outra coisa, checou a mochila pesada que estava jogada de qualquer jeito no chão do carro,
analisando se, naquela terrível confusão, algum dos preciosos ingredientes que lutara tanto para
conseguir haviam se perdido. Constatando que nada estava muito danificado, buscou a página do
livro de receitas, e percebeu com uma careta que havia alguns rasgos na parte inferior. Teria que
arrumar isso depois. Dobrou-a de volta na mochila. Olhou para trás e percebeu que a velha das facas
ainda estava caída nos bancos, desacordada e com alguns ferimentos, nem de longe tão graves
quanto os dele. Da forma como estava, sequer parecia a louca que havia tentado matá-lo mais cedo.
Sentiu-se ligeiramente responsável e, pegando da mochila um kit de primeiros socorros já gasto,
pôs-se a tratar dos ferimentos dela. Quando acabou, tirou dela as facas e a amarrou. E só então
começou a cuidar de si mesmo. Aplicou uma injeção com um líquido esverdeado que entorpeceu os
sentidos e a dor por um momento, retirou com dificuldade os trapos castigados pelo sol - e agora
sujos de sangue - que ele chamava de roupas e começou a limpar os ferimentos com algum tipo de
solução aquosa, fazendo perguntas a si mesmo enquanto dava os pontos com uma linha brilhante e
extremamente fina.

Por que havia sido atacado por uma gangue de idosas? Senhoras de idade já são raras de
serem vistas em um local como o Inferno Fluminense, e normalmente as que vivem não tem tanta
disposição quanto essas tinham... Né? Aquela tava segurando uma sniper a laser, não estava?
Aquelas coisas pesam tipo 10 quilos! E a outra carregava imensas... estacas de ferro? Não, tinha
certeza que, naquele formato, pareciam mais agulhas de crochê, mesmo que essas normalmente
fossem feitas de madeira e não tão grandes assim. Balançou a cabeça, isso não importava, teria
acabado com sua vida em instantes. O mais estranho é que elas pareciam ter chegado do nada,
circundando-o com seus jipes e gritando ameaças. Elas pareciam saber onde ele estava, e isso era a
parte mais perturbadora. As Carpideiras... Esse nome ecoou pela sua cabeça, e sentia que ele seria
importante.

Não agora, é claro. Terminou de dar os pontos e olhou para o seu trabalho. Havia feito o
melhor que podia, e agora o kit médico era apenas uma sombra do que já tinha sido. Fez uma nota
mental de comprar mais linha quando chegasse a Canto do Mundo. Ajeitou-se no banco, vestiu-se
novamente, engatou a primeira marcha e recomeçou a descer a duna em direção à cidade flutuante
no horizonte. Nada iria impedi-lo de obter o molho para fabricar o Strogonoff, seja lá o que ele fosse.
Não pela primeira vez refletiu por que estava fazendo aquilo, mas logo balançou a cabeça conforme
as rodas giravam no deserto radioativo e ele avançava mais rápido que nunca, os ventos incessáveis
castigando seu rosto. Ajeitou os panos. A história estava lá para ser descoberta, e não era uma
gangue de idosas mutantes com armas de fogo que iriam impedi-lo de conhecer a obra de Dona
Benta.

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Debaixo dos destroços de um jipe meio enterrado na areia, a velha do alto falante se arrastava até
um console no banco da frente. Ela tocou na tela, e ela se acendeu com um brilho esverdeado.
Digitou uma série de letras e números rápido o suficiente para que qualquer observador curioso não
conseguisse decorá-los. Mas é claro que não havia qualquer observador. Uma linha direta se abriu e,
do outro lado da tela, ela viu três figuras sentadas em cadeiras de espaldar alto. Atrás delas uma
imensa janela de vidro refletia a luz do Sol, fazendo com que as figuras fossem pouco mais que
silhuetas sentadas de frente a uma mesa. Em todos os sentidos, eram figuras imponentes, mesmo
sem ser possível vê-las diretamente.

A velha que estava sentada no alto-falante quase chorou ao vê-las. E então, elas disseram, em voz
baixa e unânimes:

- Proclame o relatório. Choraram por ele?


- Irmãs, eu sinto muito! Não conseguimos impedi-lo! Ele roubou um dos móveis e está se
dirigindo para Canto Úmido! Ele conseguiu destruir os outros dois!
- Então vocês falharam.
- Não, mas é que-
- Vocês falharam.
- Sim, ma-
- Compreendemos. Um móvel está a caminho daí para resolver essa situação.
- Não, esper-

Elas desligaram.

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