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Sinagoga Sem Fronteiras

Parashá Noach
Bereshit (Gn) 6:9-11:32
‫פרשת ֹנַח‬

A Parashat Noach, embora contenha uma narrativa bíblica bastante


conhecida, da arca de Noé, é igualmente bastante desconhecida em
sua essência, porque tem muitos detalhes técnicos que as pessoas em
geral não compreendem; por exemplo, a quantidade de espécies de
animais que Noé teria colocado na arca. Mas, quantas espécies de
animais existem no mundo? Não é possível, portanto, prender-se à
literalidade do texto. Muitas pessoas utilizando a razão não vão
conseguir aceitar a plausibilidade de histórias assim. Quem busca
sentido não vai entender ou aceitar isso, pelo contrário, vai,
certamente, estranhar a narrativa de Noach. Com efeito, defender a
literalidade desses textos ou é ingenuidade ou mesmo desonestidade
intelectual, pois existem no mundo 8,7 milhões de espécies de animais
espalhadas em regiões específicas do globo, assim, evidentemente, o
texto da arca não pode ser tomado literalmente como descrevendo
uma história “ao pé da letra”. Pior que isso, ainda há rabinos que
acreditam que o dilúvio foi causado por águas ferventes que saíram
dos abismos e dos céus. Infelizmente, não há lucidez nenhuma nesse
tipo de abordagem literalista e fantasiosa. Então, como compreender
essa e outras narrativas da Torá?

Hoje (quinta-feira, 27 de outubro de 2022) saiu um artigo no Yedioth


Ahronoth¹ (mídia israelense) sobre o êxodo de haredim (ortodoxos) da
religião. É um número alarmante: cerca de 12% abandonam a religião
anualmente; a maioria desses egressos são jovens. Saem e começam
suas vidas a partir do nada, pois quando saem daquelas sociedades
fechadas não sabem ou não têm como viver na sociedade em geral,
porque não estudaram em escolas regulares, não estudaram o mesmo
conteúdo que todas as pessoas estudam na escola, não aprenderam
matemática, história, informática, nenhuma profissão, porque só
estudaram o Talmud nas Yeshivot e escolas religiosas. Essas pessoas
acabam se tornando dependentes do Estado, necessitadas de auxílios
governamentais para sobreviverem, o que tem se tornado um problema
grande. Por que a sua formação escolar é assim? A resposta é simples,
quando existe um mundo em que as pessoas não sabem nada, não têm
acesso a informação, fica mais fácil lhes inculcar na cabeça conto de
fadas. Aquelas pessoas eram proibidas de acessar internet, por
exemplo.

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De fato, a internet traz muitas informações relevantes e no mundo haredi
tentam impedir que as pessoas a acessem. Não obstante, essa revolução
cultural causada pela massificação das informações no ambiente digital
não tem retorno. Seria como tentar impedir hoje em dia que as pessoas
utilizassem aviões, automóveis e outros meios de transporte modernos
para que se locomovessem apenas montadas em jumentos ou camelos.
É o mesmo desafio que os maskelim enfrentaram lá na Europa na época
do Iluminismo. Aqueles que quiserem sair dos guetos intelectuais e
acessar a filosofia, a formação acadêmica e o modo de vida
contemporâneo foram duramente criticados e combatidos pelos porta-
vozes do establishment religiosos de então. Do mesmo modo hoje, o
maior motivo da evasão desses haredim é o tipo de formação que
recebem.

A beleza dos textos da Torá está no sentido que trazem. Precisamos


entender os arquétipos trazidos pelas histórias da Torá. Não há cobra
que falava ou fruta do bem e do mal ou milhões de animais dentro de
uma arca. Não vemos Deus em fábulas, vemos em metáforas. Os
religiosos, muitas vezes, têm uma visão infantil da Torá. A árvore do
conhecimento, por exemplo, não é apenas do mal, é do conhecimento
do bem e do mal. Eles também não conheciam o bem. Do mesmo modo
que um animal ou uma criança pequena não são bons nem maus. Esses
atributos (bem e mal) são divinos. O animal é instintivo. A criança
pequena age inicialmente também de forma instintiva. Só conhecerá o
bem e o mal quando perder a ingenuidade, quando se lhe desenvolver a
consciência. Esta parashá, assim como a de Bereshit, está falando do
desenvolvimento da consciência, a perda da ingenuidade.

As dez sefirot – que são as emanações divinas – apontadas pela Kabalah


são vistas nessas personagens das referidas parashiot: Adam e Havá têm
a ver com as sefirot cognitivas ou o mundo do pensamento – chochmá e
biná, sabedoria e entendimento; Cain e Hével tem a ver com as sefirot
emocionais, de equilíbrio, como hésed misericórdia (afeto) e guevurá,
rigidez. O que acontece então na parashat Noach? A questão dos
atributos começa a ser testada. Qual a virtude de Noach? A vitória,
netsar. Noach teve que enfrentar aquela geração perversa, valores
invertidos, um mundo ao redor bem semelhante ao que estamos inseridos
hoje. Isso nos leva a entender que quando a Torá nos fala de Adão Eva,
Caim e Abel, Noé e a arca, está em realidade falando de nós. Nós todos
somos essas pessoas. A gente tem que exercer a resistência do Noach (a
emanação da vitória, netsar). Se não fizermos isso a gente se bestializa.

Nesta parashá Deus vai autorizar os homens a comerem carne. Como


antes do dilúvio todos se corromperam, passaram a se comportar como
animais, bichos, o dilúvio significa que a parte física vai morrer.
Obviamente a parte física não é ruim, mas em excesso é terrível. Cada
um de nós precisa controlar isso. Vejamos que na arca há três níveis, o
ser humano ficava no mais alto, porque não pode se comportar como
animal. Por exemplo, quando colocam em primeiro lugar na vida o sexo,
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comida e bebida e diversões. O seres humanos poderão comer a carne
dos animais para lhes mostrar que são diferentes, estão em outra
categoria. O ser humano não é animal. A arca de Noé é um útero, onde
a humanidade é regenerada. Vejamos, portanto, que a Torá está
falando sobre o espírito do ser humano e não contando uma história
geológica do planeta terra. Com essa compreensão em mente, questões
de perplexidade com a narrativa ficam resolvidas: não se trata de um
texto literal, mas de algo muito mais profundo.

“Tinha Noach seiscentos anos de idade, quando as águas do dilúvio


inundaram a terra” (Gn.7:6).

O Zohar diz que a pessoa que acha que a Torá são as histórias é
estúpida. É como se olhássemos uma pessoa e achássemos que ela é a
roupa com que está vestida. No comentário sobre o verso acima, o
Zohar diz que “no sexto século do sexto milênio serão abertos os portões
da sabedoria no alto e embaixo e o mundo será retificado para
entrarmos no sétimo milênio”. Que ano é 5600 do calendário hebraico?
É 1839 do gregoriano. O Gaon de Vilna, que viveu após o Baal Shem Tov,
mas um pouco antes dessa data cabalística, ele teve um embate com o
primeiro Rebbe de Lubavitcher, e a polêmica era exatamente sobre se a
chegada da redenção. O Gaon de Vilna foi em direção à terra de Israel,
mas chegando à Turquia algo ocorreu que ele voltou. A primeira leva de
aliá do sionismo religioso foi dessa turma. Mas o Mashiach, obviamente,
não chegou. A tremenda decepção levou alguns daqueles até a se
converterem ao catolicismo. Já vimos como essas previsões sobre a
chegada do Messias ou a identificação de certos indivíduos como
Mashiach trouxe problemas, divisões, decepções. O exemplo mais
próximo daquele período foi o do falso messias Shabetai Tzvi.

Existem duas visões básicas sobre a era messiânica. Uma é aquela


tradicional, defendida hoje pela maioria dos haredim e pelo
establishment religioso, a de que a redenção virá dos céus, o Templo
de Deus que vai descer do céu e esmagar a mesquita etc. A outra visão
é como a do Gaon de Vilna, que chegou mesmo a se deslocar em
direção à terra de Israel, de que a redenção virá gradualmente e está
ligada às ações do povo judeu. Vimos isso também ao estudar o Arizal,
que o cumprimento de cada mistvá acelera a vinda da redenção.

Curiosamente, o Gaon de Vilna ensinava que as dez parashiot do livro


de Devarim representavam cada uma um século do sexto milênio. É
óbvio que não apreciamos essas numerologias arbitrárias, no entanto, a
abordagem do Gaon nos leva a uma sequência de versos em Devarim
que falam de coisas muito semelhantes ao que vimos durante a Shoá e o
reestabelecimento do Estado de Israel em sua própria terra em 1948.

Outra leitura cabalística², semelhante a essa, mas que faz muito mais
sentido à luz da história recente do povo judeu, é a que conta os
versículos da Torá, que são 5845, e os relaciona aos anos. Curiosamente,
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aquele que copia o Sefer Torá, o escriba, é chamado em hebraico de
sofer, literalmente, o contador, aquele que conta. Pode até ser uma
coincidência, mas é algo notável que o ano de início da 2ª Grande
Guerra, 1939, equivale a 5699, corresponde a Dt. 29:22:

“...e toda a sua terra abrasada com enxofre e sal, de sorte que não será
semeada, e nada produzirá, nem crescerá nela erva alguma, assim como
foi a destruição de Sodoma e de Gomorra, de Admá e de Zeboim, que o
Eterno destruiu na sua ira e no seu furor...”

Os seis versos seguintes (Dt 29:23-28) traz os povos tentando entender


por que aquelas tragédias se haviam abatido sobre o povo, exatamente
o que ocorreu após a guerra, quando as nações procuravam as razões
por trás da guerra e do Holocausto. E a resposta em Dt (29:29) indica
que nem sempre conseguiremos respostas precisas para as nossas
indagações; “As coisas encobertas pertencem ao Eterno, nosso Deus,
porém as reveladas nos pertencem...”. Sabe-se que a Shoá foi um
evento extremamente difícil para se compreender as razões.

Mas apenas três anos após o fim da guerra, em 1948 (5708), ressurge o
Estado de Israel. O verso correspondente ao ano judaico é Dt 30:3:
“Então, o Eterno, teu Deus, mudará a tua sorte, e se compadecerá de ti,
e te ajuntará, de novo, de todos os povos entre os quais te havia
espalhado o Eterno, teu Deus”.

Coincidência ou não, a Shoá e Estado de Israel são os maiores, os mais


importantes, eventos da história recente do povo judeu, pois não são
eventos comuns, são extraordinários, sendo praticamente impossível não
os correlacionar a textos da Torá e dos Profetas. Os sionistas que
compuseram uma oração pelo Estado de Israel o chamam de reshit
tsemichat gueulateinu, isto é, o princípio do florescer da nossa
redenção. Mas esse florescer da nossa redenção não veio diretamente
dos céus como o Templo que alguns esperam descer de lá. Ao contrário,
essa redenção só vem porque há iniciativa, ações concretas, por parte
dos integrantes da aliança. Esse perspectiva é diferente das ideias
daqueles que esperam um Messias vir mudar o mundo. Ela põe o foco
em nós, nós fazemos o tikun, nós agimos para que a redenção venha.

É necessário ter a mente aberta para enxergar a ação de Deus no


mundo. Aqueles primeiros rabinos sionistas tinham essa perspectiva.
Enxergaram nos movimentos históricos de suas épocas (os
nacionalismos, o iluminismo, por exemplos) a ação divina que poderia
trazer a redenção do povo judeu e do mundo. É o caso do rabino
Samson Raphael Hirsch, do rabino Isaac Alcalay, do rabino Benzion Meir
Hai Uziel, entre outros.

O Eterno pela boca do Profeta Isaías chamou o rei persa Ciro de “meu
messias” (Is. 45:1), porque aquele rei foi instrumento para o retorno dos
exilados de Babilônia à terra de Israel. Ezra e Neemiah tomaram as
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rédeas para as reformas necessárias. Portanto, é necessário ter uma
percepção aguçada da ação de Deus no mundo e tomar ações
concretas para trazer a redenção ao mundo, ao invés de ficarmos
esperando um Messias, uma redenção descendo dos céus, cálculos
cabalísticos sobre a chegada de Mashiach etc. Para Noach e sua família
se salvarem da inundação, ele começou a construir aquela grande arca.
Cada um de nós igualmente devemos agir concretamente.

Shabat Shalom!

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Fontes:
1) www.ynet.co.il/home/0,7340,L-8,00.html (hebraico)
2)www.israel365news.com/89542/you-wont-believe-how-bible-verses-
match-hebrew-years-in-astonishing-prophetic-countdown/ (inglês)

Escrito por José Cristiano de O. Sampaio

Texto baseado na aula do Rabino Gilberto Ventura sobre a


Parashá Nôach

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