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Sinagoga Sem Fronteiras

Parashá Yitrô
Shemot (Ex) 18:1-20:23
‫פרשת ִיְת רֹו‬
A parashá começa com vaishmá, “e escutou”. O verbo “escutar” é extremamente
importante no judaísmo, remete-nos ao shemá. Em italiano é ascoltare e sentire. A
palavra escutar é também "sentir", é mais do que simplesmente ouvir, pois escutar é
interiorizar a mensagem. Quando a Torá nos diz “shemá Israel” está nos chamando a
interiorizar as palavras da Torá que estamos escutando. E quando nos sensibilizamos
com o que escutamos subimos de fato para um patamar mais elevado, pois essa escuta
nos põe em ação. Yitrô ouviu falar do êxodo de Israel do Egito e todas as maravilhas que
ocorreram e sentiu algo. Yitrô nem viu, apenas escutou e se mobilizou. Ele, então, foi
para o deserto para se juntar ao povo de Israel. Entretanto, quem era Yitrô? Ele não era
simplesmente um goi, um “não judeu”, ele era um idólatra, um sacerdote em Midiã. No
entanto, sentiu-se tocado ao escutar. Ele escutou a notícia, não apenas a ouviu.

Há poucos dias ouvimos notícias e vimos imagens terríveis de pessoas sofrendo no


terremoto na Turquia e na Síria. Quantas pessoas passaram insensíveis por essas
notícias. Muitos religiosos sequer falaram alguma coisa; “não escutaram”. Essa atitude
difere muito da de Avraham que não estava em Sodoma e Gomorra, “não viu imagens
de crianças sofrendo pelo terremoto”, mas avisado da tragédia iminente que se abateria
sobre aquelas cidades, intercedeu pelas pessoas sem sequer saber quantos bons
moravam ali. É impressionante como muitos religiosos não se sensibilizam com o
sofrimento alheio. É a banalização do mal, nos termos de Hannah Arendt.

Um dos conceitos mais importantes da filosofia de Arendt é a “banalidade do mal”. Por


um lado, há o mal radical enraizado em quem o pratica e que se fundamenta no ódio.
Esse tipo de mal é exemplificado pelo antissemitismo de figuras ignóbeis como Hitler,
Himmler e Göebbels. Mas há outra categoria de mal que se observou em outras pessoas
entre os nazistas e a população da Europa invadida: o mal banal.

Para aquele que pratica o mal banal, a ação não se fundamenta em si mesma. A
perseguição aos judeus poderia não ser praticada por questão de crença ideológica e
de princípios enraizados, mas por motivos outros, fora da ação. Uma figura que, para
Arendt, representava o mal banal era Adolf Eichmann, oficial de baixa patente do
exército nazista que era responsável por organizar a logística do transporte de judeus
para os campos de concentração. Em seu julgamento, ele afirmou que fez o que fez não
por odiar judeus, mas apenas por cumprir ordens e fazer o seu trabalho. Arendt afirma
que Eichmann não foi para o exército por acreditar estar servindo à sua pátria, mas
apenas por encontrar no exército uma possibilidade de carreira melhor e mais
promissora do que a que tinha como vendedor autônomo. Segundo Arendt, Eichmann
era uma pessoa medíocre. Infelizmente, o mundo está cheio de pessoas assim,
incapazes de refletir sobre a vida e sobre suas ações. Quantos de nós passamos
insensíveis pela foto daquelas crianças que estavam debaixo de escombros e da
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situação dramática ocorrida devido ao terremoto. Ao contrário dessa insensibilidade e
passividade temos o exemplo de Yitrô.

No Talmud, quando um sábio apresenta um novo ensinamento ou uma decisão, usa-se


regularmente as palavras: “venha e escute”. Curiosamente, quando o Zohar introduz um
novo ensinamento, a expressão é diferente: “venha e veja”. O escutar é uma ação ativa,
ouvir é passiva. A diferença entre o Talmud e o Zohar faz muito sentido haja vista que o
Talmud lida principalmente com a prática, com a interpretação da Torá Oral sobre como
observar as mitsvot. O Zohar, por outro lado, concentra-se no significado geral e
propósito do corpo da lei judaica; a “visão” do judaísmo.

Muitas pessoas dizem que estão distantes de Deus, que Deus está distante delas, que
não conseguem ouvir ou sentir. Por quê? Porque “não se sensibilizaram com a foto”.
Passaram insensíveis. Não entraram na lei.

Esta parashá contém a revelação das Dez Palavras (Dez Mandamentos). Por exemplo, o
mandamento “não matarás”. Quando escutamos de fato essas palavras, elas nos são
interiorizadas, significam então muito mais, não somente não assassinar uma pessoa.
Significam não praticar lashon hará (língua má), preservar a vida, defender a vida,
valorizar o ser humano etc. Quem realmente escuta o “não matarás” não desumaniza o
outro com palavras, não banalizam o mal.

Ao lermos os Dez Mandamentos podemos pensar que são leis óbvias, normais. Mas não
eram. Antes de “Adão e Eva comerem do fruto do bem e do mal”, o ser humano já tinha
inteligência, “deu nomes aos animais”, mas não tinham consciência de bem e mal, eram
instintivos. Essas Dez Palavras representam um salto evolutivo para a humanidade. E se
as entendemos além da superfície do texto nos aprofundamos nos seus propósitos;
assim, captamos o espírito dessas leis, que se tornam princípios para a vida prática,
balizam o nosso relacionamento com o próximo. Aí sim estaremos próximos de Deus, não
mais nos sentiremos distantes. É necessário, portanto, “escutar” para agir, como fez
Yitrô. Não é por acaso que a parashá que traz os Dez Mandamentos comece
exatamente com vaishmá, “e escultou”.

Shabat Shalom a todos!

Escrito por José C. de O. Sampaio (SsF - MG)


Texto baseado na aula do Rabino Gilberto Ventura sobre a Parashá Yitrô.

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