Você está na página 1de 26

Samuel Sales Fonteles

HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL


edição
revista
atualizada
ampliada

2023
1. Hermenêutica
Não há consenso acerca da origem da palavra “Hermenêutica”, mas,
ao que tudo indica, a razão está com Heidegger, para quem a expressão
deriva de Hermes. Na mitologia grega, Hermes foi também considerado
como mensageiro dos “deuses”, desempenhando uma função essen-
cialmente interpretativa. Tal como uma professora de libras, que interpreta
essa linguagem e é capaz de traduzi-la para o destinatário, Hermes inter-
pretava a mensagem divina, transmitindo-a para os mortais. Ao decodifi-
cá-la, proporcionava-lhes o conhecimento e a compreensão.
Segundo Ari Marcelo Solon, em sua primorosa obra Hermenêutica
Jurídica Radical, Hermes é “tanto aquele que transmuta, traduz, conduz
a linguagem sagrada para uma compreensão humana de forma palpável,
racional, inteligível, enfim, comunicável entre homens, quanto o deus do
Liminar, da zona limítrofe, sendo um ultrapassador de limites, um media-
dor entre sonho e realidade, entre dia e noite, entre o natural e o sobre-
natural, entre o mais celestial e o mais telúrico” (2017, p. 15). O Professor
da USP sublinha, portanto, que a palavra hermeios é uma referência ao
sacerdote do Oráculo de Delfos, elucidando ainda que a palavra her-
menêutica é proveniente do verbo hermeneuein, que significa interpre-
tar, decifrar, traduzir, dizer e expressar (2017, p. 14).
Embora a hermenêutica se ocupe preponderantemente da interpreta-
ção de textos, é um equívoco supor que somente textos podem ser inter-
pretados. Hoje, tem prevalecido que tudo aquilo que pode ser conheci-
do também pode ser objeto de estudo da hermenêutica, não apenas
as leis. Apenas para exemplificar, na Psicanálise, Freud construiu métodos
de interpretação dos sonhos. A rigor, cuida-se de uma hermenêutica oníri-
ca (dos sonhos). Exatamente nesse contexto, Ronald Dworkin, na sua obra
“A Raposa e o Porco-Espinho: Justiça e Valor”, prefere falar em gêneros
de interpretação, aduzindo que “os historiadores interpretam épocas e
acontecimentos, os psicanalistas interpretam sonhos, os sociólogos e an-
tropólogos interpretam sociedades e culturas, os advogados interpretam
documentos, os críticos interpretam poemas, quadros e peças de teatro,
os padres e rabinos interpretam textos sagrados, e os filósofos interpretam
conceitos controversos” (2014, p. 187).
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
14

1.1 Hermenêutica e interpretação


Há sinonímia entre as expressões hermenêutica e interpretação? Sa-
be-se que os compêndios de Direito não hesitam em empregar essas pa-
lavras como equivalentes. A propósito, ambas derivam da mesma palavra
grega. Não será incomum encontrar a expressão hermenêutica como si-
nônima de interpretação, inclusive, em acórdãos dos Tribunais Superiores.
Miguel Reale considera como irrelevante distinguir hermenêutica e
interpretação, dada a inutilidade prática desta diferenciação. Parte da dou-
trina, entretanto, diferencia esses elementos. Celso Ribeiro Bastos, um dos
maiores constitucionalistas brasileiros, que tão precocemente nos deixou,
asseverava que a interpretação é sempre concreta, só sendo possível reali-
zá-la diante de um caso prático a merecer uma decisão. Esta decisão, por
sua vez, seguirá diretrizes já traçadas abstratamente pela Hermenêutica.
Em monografia a respeito do tema, o saudoso Professor da PUC/SP escla-
rece que “Uma [interpretação] é a aplicação da outra [hermenêutica]”. “(...)
A interpretação tem por objeto as normas, enquanto que a hermenêutica
decifra o modo pelo qual poderá se dar a interpretação” (2014, p. 25).
Temos, portanto, o seguinte panorama:

Há sinonímia entre as expressões hermenêutica e interpretação?


1ª corrente: as expressões são sinônimas.
2ª corrente: sinônimas, antônimas ou meramente diferentes, a realidade é
que não há interesse prático nesta diferenciação (Miguel Reale).
3ª corrente: a interpretação opera em um caso concreto, valendo-se das
regras abstratamente construídas na ciência da Hermenêutica. Logo, a interpre-
tação é a aplicação dos cânones hermenêuticos (Celso Ribeiro Bastos, Limongi
França, Carlos Maximiliano).

Por fim, há autores mais maleáveis, a exemplo de José Adércio Leite


Sampaio, que, embora aponte a possibilidade de distinções filosóficas e
científicas entre a hermenêutica e a interpretação, reconhece que a palavra
mais correta “...fica muito ao gosto esclarecido de cada um” (2013, p. 409).

1.2 Pré-compreensão
Quando dois homens olham ao mesmo tempo para a lua, nenhum
deles vê a mesma lua. Um mesmo texto pode ser compreendido de ma-
neira distinta, a depender da biografia de quem o leu. Cada qual carrega
consigo suas experiências, vivências, erros, acertos, cicatrizes, orgulhos,
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
15

temores, anseios pessoais de justiça, conceitos morais, visões políticas, fi-


losóficas, crenças ou descrenças espirituais. Nas palavras de Hans-Georg
Gadamer, “a lente da subjetividade é um espelho deformante” (1999,
p. 416). Como afirmou Leonardo Boff, “todo ponto de vista é a vista de um
ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus
olhos e qual é a sua visão do mundo” (1998, p. 9).
Quando um indivíduo lê um dado conteúdo ou ouve determinadas
palavras, é possível que se depare com filmes mentais. Este é um processo
pessoal, subjetivo e personalíssimo, que não se reproduz da mesma ma-
neira entre diferentes pessoas. É possível dizer que, no Direito Constitucio-
nal Brasileiro, prevalece a máxima segundo a qual “Sou responsável por
aquilo que digo, mas não para aquilo que minhas palavras eventualmente
te remetem”. Isso porque as pré-compreensões estão fora do alcance do
emissor da mensagem.
Na ADI 4815, o Supremo Tribunal Federal considerou inexigível a au-
torização das pessoas biografadas para a publicação de uma biografia. A
ação foi relatada pela Ministra Carmen Lúcia, que assim se expressou (ori-
ginal sem destaques):
“A censura cala a pessoa, mas para além de cada um, cala a alma,
a alegria, cala o sonho que se põe em expressão para se tornar
ideia, que se pode converter em ação, que se pode tornar destino.
Do Índex da Igreja Católica ao McCartismo nos Estados Unidos,
de Giordano Bruno ao affaire Charlie Hebdo, dois são os atributos da
censura estatal ou particular: a intolerância à indiferença e à sobran-
ceria de uma em relação à outra pessoa, sobre a qual se pretende
exercer o poder”. (ADI 4815)
“Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu. (...) Ten-
tar calar o outro é uma constante, mas, na vida, aprendi que quem
por direito não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de
qualquer direito”.
Em uma entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial, a Ministra Car-
men Lúcia confessou que, dentre outras razões, porque estudou em um
colégio administrado por freiras da Igreja Católica, vivenciou uma infância
emudecida no que diz respeito à liberdade de expressão. Tolhida na sua
liberdade de exprimir o que achava por bem, a então menina Carmen Lú-
cia represava dentro de si uma vontade de expressar suas ideias. Esse foi
o teor das suas declarações, ao ser entrevistada:
Pedro (Bial), a gente cantava isso quando era menina: cala a boca
já morreu, quem manda na minha boca sou eu”. “Eu fui interna em
um Colégio de Freiras e eu não fui feliz naquele tempo. Aliás, eu não
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
16

tenho vocação para ser infeliz. (...) O tanto de sininho pra fazer isso
e pra fazer aquilo”... “Talvez eu tenha vivido tempo demais privada
da liberdade, inclusive, (da liberdade) de dizer, porque eu saí do in-
ternato e praticamente fui direto para uma Faculdade na década de
70. Ter sido estudante de Direito na década de 70, só quem esteve
lá para saber o que era a vontade de arrancar aquilo e de esgoelar
qualquer coisa. (...) E nem cantar podia! Tinha que cantar, às vezes,
quase que silenciosamente naquelas escadarias das Igrejas de Ouro
Preto. Então, pra mim, quando dizem ‘... você luta pela liberdade de
imprensa, liberdade de expressão’, eu luto por mim! Eu não fui advo-
gada de jornalistas ou de sindicatos por acaso! (...) Eu estou contan-
do uma história de mim mesma. Quem soube a força da mordaça
sabe o gosto do falar. Eu gosto de gente que conversa. (Programa
“Conversa” – Rede Globo)
Na realidade, no julgamento da ADI das biografias, o voto da Ministra
Carmen Lúcia atuou como um espelho psicanalítico da própria biogra-
fia. Em um simples cotejo entre o que foi dito no STF e as suas decla-
rações para o jornalista Pedro Bial, constata-se a poderosa influência das
suas pré-compreensões, gravadas de maneira indelével nos átrios do seu
inconsciente.
Observem o quadro a seguir, que contrasta esses dois hemisférios da
personalidade da Ministra:

Voto da Ministra Carmen


Pré-compreensões reveladas na entrevista
Lúcia na ADI 4815
“Eu fui interna em um Colégio de Freiras e eu não “Do Índex da Igreja
fui feliz naquele tempo” Católica...”
“Talvez eu tenha vivido tempo demais privada da “A censura cala a pessoa,
liberdade, inclusive, (da liberdade) de dizer...” mas para além de cada
“Quem soube a força da mordaça sabe o gosto do um, cala a alma, a alegria,
falar.” cala o sonho”.
“Pedro, a gente cantava isso quando era menina: “Cala a boca já morreu,
cala a boca já morreu, quem manda na minha quem manda na minha
boca sou eu” boca sou eu”.

O mais interessante é que, de maneira oblíqua, indireta ou refle-


xa, as pré-compreensões de um Ministro do STF podem até mesmo
exercer influência sobre outros Ministros desta Corte, à semelhança de
um efeito dominó ou efeito cascata, alcançando os demais votos do
Colegiado. Isso porque, conforme revelado em um percuciente estudo
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
17

desenvolvido por Virgílio Afonso da Silva, “...estatísticas mostram que o rela-


tor costuma ser seguido na esmagadora maioria das decisões do STF” (2015,
p. 184). Por sua vez, uma pesquisa empírica com dados quantitativos reali-
zada por Fabiana Luci de Oliveira demonstrou que “em 98% dos casos não
unânimes [em ADIs], o voto do relator foi o voto da maioria do
tribunal” (2012, p. 148).
A conclusão, portanto, é a de que as pré-compreensões do Ministro
Relator possuem um raio de alcance capaz de influenciar, em grande
medida, os votos dos seus pares.
Pois bem.
Todas as considerações acima, no sentido de que as pré-compreen-
sões influenciam o intérprete, não significam que Ministros estejam auto-
rizados a projetar suas visões particulares de mundo nos processos que
julgam, a menos que declinem uma fundamentação lastreada em ra-
zões públicas. O mais cristão, judeu ou islâmico dos juízes deve proferir
sentenças laicas, assegurando a “antecipação terapêutica do parto” quan-
do o feto é anencefálico (ADPF 54) e reconhecendo a união civil entre
pessoas do mesmo sexo (ADI 4277), afinal, os demais órgãos do Judiciário
se vinculam às decisões definitivas de mérito proferidas no controle con-
centrado de constitucionalidade. Enquanto vigorar o Código Penal, a mais
feminista das magistradas não deve hesitar em pronunciar –– refiro-me
à decisão de pronúncia –– uma jovem que realizou um abortamento, se
realmente há elementos para que o caso seja submetido ao Sinédrio Po-
pular. Mesmo com uma visão abolicionista singular, incumbe a qualquer
Tribunal condenar um traficante de drogas pela mercancia criminosa, pelo
menos, durante a vigência da Lei de Tóxicos. Enquanto não revogado o
Estatuto do Desarmamento, é dever do promotor de Justiça, ainda que
possuidor da firme crença de que haveria um direito natural à posse de
armas de fogo, denunciar uma pessoa idosa que, há anos, possuía uma
vetusta espingarda nos átrios da sua residência. Se os aludidos profissio-
nais entenderem de trilhar o caminho oposto, isto é, se optarem por de-
negar a expedição de alvará autorizador da interrupção da gravidez, ne-
gar efeitos civis à união entre pessoas do mesmo sexo, impronunciar (ou
até mesmo absolver) a jovem que realizou o abortamento, inocentar um
narcotraficante ou promover o arquivamento do inquérito instaurado em
face de pessoa idosa que possuía artefatos bélicos, basta que declinem
razões públicas na fundamentação do julgado ou da manifestação ministe-
rial, isto é, que se eximam de fundamentar suas decisões em argumentos
metafísicos, ideológicos, filosóficos, religiosos ou políticos.
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
18

Devem, pois, aduzir argumentos jurídicos. É o que se extrai da Filosofia


Política de John Rawls, professor da Universidade de Harvard (1999, pp.
262-298). E é também nesse sentido que deve ser compreendida a adver-
tência de Daniel Sarmento e Cláudio Ferreira de Souza Neto (2014, p. 50):
“(...) os preconceitos e visões particulares de mundo do intérprete
sempre exercem alguma influência no processo de tomada de de-
cisões. Daí não resulta, contudo, que a imparcialidade não possa
ser sustentada como ideia regulativa e como dever constitucional, a
ser perseguido pelos agentes e instituições, e fiscalizado pela crítica
pública”.
Em suma: talvez seja difícil se despir das próprias pré-compreensões,
mas nem por isso se afasta o dever de imparcialidade, vale dizer, de
abor-dar o ordenamento jurídico à luz da ideologia que ele -- o próprio
orde-namento -- abraçou. A ideologia bem-vinda em uma interpretação
jurídica é aquela positivada pelo legislador ou pelo constituinte.

1.3 As atividades de conhecer


conhecer,, int
interpr
erpretar
etar e aplic
aplicar
ar
Tradicionalmente, vigorava a concepção pela qual o ato interpretativo
era decomposto em três etapas: primeiro, o intérprete tomava conheci-
mento do texto; em seguida, interpretava o texto que conhecera; por fim,
aplicava esse texto já conhecido e interpretado. Consoante esta corrente
clássica, a atividade interpretativa poderia ser cindida em três momentos
distintos, perfeitamente delineados, cronológicos e prejudiciais. Logo, só
era possível aplicar uma norma se já tivesse havido uma compreensão in-
telectual e uma interpretação. Para fins didáticos, esta corrente será aqui
chamada de trifásica.

Corrente Trifásica
Ato interpretativo
1. Conhecimento 2. Interpretação 3. Aplicação

Todavia, a corrente majoritária tem sido a de que não é possível


fraturar o ato interpretativo, para decompô-lo em fases distintas, pois
o conhecimento, a interpretação e a aplicação ocorrem de uma só vez.
O pensamento dominante, ancorado nos contributos de Hans-Georg Ga-
damer, sustenta que não se pode conhecer sem aplicar, bem como não
se pode interpretar sem aplicar. Portanto, a aplicação seria a única ma-
neira de conhecer e de interpretar. É como se o ato interpretativo fosse
um bloco monolítico. Em interessante artigo a respeito da hermenêutica
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
19

jurídica de Gadamer, a jurista peruana Ana Maria D’Ávila Lopes arremata:


“A compreensão, a interpretação e a aplicação, que eram três momentos
diferentes segundo a antiga hermenêutica, sob a teoria de Gadamer ad-
quiriram caráter indivisível” (2000, p. 105). Para facilitar a assimilação, esta
corrente será denominada de monofásica.

Corrente monofásica
Ato interpretativo
1. Conhecimento + Interpretação + Aplicação

Na opinião de Lenio Streck, em seu Dicionário de Hermenêutica, “... o


texto jurídico só pode ser entendido a partir de sua aplicação, isto é, dian-
te de uma coisa, um fato, um caso concreto” (2017, p. 21). Talvez isso cause
estranheza ao leitor, afinal, não seria possível entender um texto normati-
vo sem raciocinar em um problema específico da vida? Não seria possível
entender ou interpretar um texto normativo em abstrato, à semelhança do
que ocorreria no controle abstrato de constitucionalidade (efetuado em
tese)? A resposta é curiosa. Para esta corrente, raciocinar abstratamente já
é, por si só, uma aplicação! Eros Grau fornece um exemplo prático muito
interessante, ao dizer que “quando um professor discorre, em sala de aula,
sobre a interpretação de um texto normativo, sempre o faz -- ainda que
não se dê conta disso -- supondo a sua aplicação a um caso, real ou fictí-
cio” (2017, p. 35). Reforçando essa ideia, Lenio Streck pondera que “...mes-
mo quando raciocino com exemplos abstratos, estou aplicando” (2017, p.
21). Ainda demonstrando a fusão entre essas etapas, o jurista da UNISI-
NOS averba que “...compreender é sempre interpretar e, por conseguinte,
a interpretação é a forma explícita da compreensão” (STRECK, 2017, p. 22).
Coroando o raciocínio, estabelece: “...nos vemos obrigados a dar um passo
mais além da hermenêutica romântica, considerando como um proces-
so unitário não somente a compreensão e interpretação, mas também a
aplicação” (STRECK, 2017, p. 22). Com o devido respeito aos insignes re-
presentantes desta corrente, que é majoritária, o fato é que, na visão do
autor que vos escreve, há uma tautologia nesta concepção. Pior ainda, é
quase impossível provar o acerto ou desacerto desta afirmação, porque
a mente humana é insondável por seres humanos. Basta analisar critica-
mente o exemplo fornecido por Eros Grau linhas acima para perceber que
ele supõe uma suposição: “quando um professor discorre, em sala de aula,
sobre a interpretação de um texto normativo, sempre o faz -- ainda que
não se dê conta disso -- supondo a sua aplicação a um caso, real ou fictí-
cio” (2017, p. 35). Ora, como saber o que supõe quem quer que seja? Mais
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
20

do que isso, não parece temerário afirmar que uma pessoa estranha “sem-
pre o faz […] supondo”? Estes são palpites que se aventuram em levantar
hipóteses sobre suposições pessoais, o que não parece aconselhável.
Seja como for, esquematicamente, temos, pois, a seguinte situação:

É possível cindir o ato interpretativo em fases distintas?


1ª corrente (trifásica): o ato interpretativo é constituído de três momentos
diferentes, o conhecimento, a interpretação e a aplicação (minoritária).
2ª corrente (monofásica): o ato interpretativo é realizado em uma opera-
ção única, que consegue unir o conhecimento, a interpretação e a aplicação,
todas interdependentes e simultâneas (Gadamer, Lenio Streck).

A esta altura das nossas digressões, é de todo pertinente enfrentar


quais normas podem ser interpretadas. É válido afirmar que todas as nor-
mas são passíveis de interpretação ou esta operação só é efetuada
naquelas cujo enunciado é mais complexo?
Tomemos um exemplo. Segundo reza a Constituição, no artigo 230,
§ 2º, “Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos
transportes coletivos urbanos”. Ao que parece, a norma é de clareza so-
lar. O dispositivo constitucional carece de interpretação para ser aplica-
do? No passado, a hermenêutica guiava-se pela parêmia de que in claris
cessat interpretatio, isto é, ante a clareza da norma, não se interpreta. É
o que alguns juristas denominaram de “situação de isomorfia”, ou seja,
fenômeno pelo qual não paira qualquer dúvida acerca do significado dos
signos linguísticos (palavras e expressões). Muitos manuais clássicos ainda
repetem esse brocardo, mas este não corresponde ao chamado estado da
arte da hermenêutica. Mais recentemente, constitucionalistas passaram a
sustentar que toda norma pode ser objeto de interpretação, mesmo
aquelas mais simples, sendo este o posicionamento doutrinário ma-
joritário. José Adércio Leite Sampaio, de maneira lúcida, pontua que “... a
clareza pode ser (e em geral é) armadilha da linguagem” (2013, p. 410). O
jurista da Escola Mineira acrescenta que “...a própria identificação do que
seja ou não claro ou evidente já é produto de uma interpretação” (2013,
p. 410). Esta compreensão também foi externada por Eros Grau, quando
aduziu que “a clareza de uma lei não é uma premissa, mas resultado da
interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara
após ter sido ela interpretada. Isso é de uma clareza sem par, embora pou-
cos o percebam” (2017, p. 32). No exemplo que fornecemos -- gratuida-
de do transporte coletivo para pessoas idosas --, talvez alguém suscitasse
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
21

dúvidas em casos limítrofes, por exemplo, levantando uma suposta incer-


teza acerca do que se entende, afinal, por “transporte coletivo urbano”.
Não parece correto, porém, relativizar a certeza e o consenso sobre
qualquer enunciado normativo que se nos afigure. Todos os dias, condu-
tores de veículos automotores param diante de um semáforo vermelho,
avançam perante um sinal verde e talvez hesitem ante o semáforo amare-
lo. Se o amarelo representa algum desacordo, as demais cores traduzem
o mais puro consenso no processo de intercomunicação subjetiva. Aliás, o
semáforo vermelho tem natureza jurídica de ato administrativo: cuida-se
de uma manifestação de vontade da Administração Pública, que expede
uma ordem de conduta (abstenção) aos administrados, sujeitando-lhes à
sanção de multa pelo eventual descumprimento. Portanto, tecnicamente,
trata-se de um ato jurídico. Há normas jurídicas tão evidentes quanto as
cores extremas do semáforo, a exemplo da exigência de que o Presidên-
cia da República seja ocupada por um brasileiro nato (art. 12, 3º, I, CF).
Estrangeiros e naturalizados não poderão chefiar o Estado Brasileiro. Um
possível exemplo representativo da abordagem aqui defendida, que, fri-
se-se, é minoritária, pode ser encontrado no voto vogal da Ministra Rosa
Weber proferido na ADI 6524/DF (Reeleição de membros das Mesas da
Câmara e do Senado). Segundo ela, “o texto do § 4º do art. 57 da Cons-
tituição Federal de 1988 possui conteúdo normativo de clareza manifesta
[...]. A mera leitura do dispositivo constitucional evidencia inequívoco seu
teor normativo, e o processo hermenêutico, é de usual sabença, estabele-
ce limitações semânticas. De todo inviável, diante da literalidade do texto
transcrito, compreender ‘permitido’ onde a Constituição consigna ‘vedado’”.
Nem tudo em Direito é duvidoso, o tempo todo. Dúvidas sempre poderão
ser levantadas, mas há um limite além do qual já não será mais possível
suscitá-las razoavelmente. Nem todas as normas constitucionais brasileiras
são semáforos amarelos e ignorar isso pode gerar inúmeros problemas.
Para concluir a abordagem do tema do processo interpretativo, é ne-
cessário esclarecer qual o seu propósito. Quando uma norma jurídica é
interpretada, desvendamos o seu significado pré-existente ou agre-
gamos significado a ela? A atividade interpretativa é declaratória ou
constitutiva? Reprodutiva ou produtora de significado?
As duas respostas apresentam desafios. Se dissermos que o julgador
não atribui significado ao texto interpretado, limitando-se a perquirir o
significado anterior à sua própria interpretação, a grande vantagem é o
elevadíssimo coeficiente democrático. Porém, é importante a temperança.
O exagero nessa concepção pode levar à posição extremista de um Juiz
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
22

que é mero reprodutor da lei, em uma atividade autômata e mecanicista.


Neste último caso, o papel do magistrado estaria reduzido à bouche de
la loi (boca da lei). Em razão da desconfiança despertada pelos juízes do
Antigo Regime nos grupos vitoriosos da Revolução Francesa, prevaleceu
a ideia de que magistrados apenas diriam aquilo que estava explícito no
texto legal. Interpretar era desvendar filologicamente a norma (Escola da
Exegese). Nota-se que a afirmação de que a interpretação somente des-
cortina um sentido pré-existente traduz uma grande deferência pelo ba-
tismo nas urnas, mas não pode ser radicalizada ao ponto de empobrecer
o Direito e negar qualquer liberdade aos juízes. Até mesmo para quem
perfilha o entendimento de que há um significado original a ser alcan-
çado, é crucial ter a honestidade de reconhecer que muitas hipóteses es-
caparam da previsibilidade do legislador, que não tem dons premonitó-
rios. Sendo assim, de quando em vez, haverá mesmo algum espaço para
que magistrados reconstruam, à luz das balizas originalmente estabelecidas
pelos redatores da norma, o Direito. Esta corrente é minoritária no Brasil,
mas, de um modo geral, tendemos a acompanhá-la nesta obra: a inter-
pretação há de perseguir um significado original, o que não se confunde
com a Escola da Exegese. Esta representa, aliás, o mais famoso espantalho
utilizado no Brasil para detratar retoricamente abordagens distintas do Di-
reito, a exemplo do Positivismo e do Originalismo.
Uma segunda corrente, diametralmente oposta, propugna que juízes
possuem a mais ampla liberdade para criar o Direito, agregando signifi-
cado à interpretação. Um posicionamento que há de ser recebido com
muitas reservas, pelos múltiplos efeitos colaterais. Pode ser perigoso abrir
um espaço muito largo para a criatividade judicial. Se aceitarmos que a
atividade interpretativa é livre para agregar à norma qualquer sentido que
seja, o Estado Democrático de Direito estará ameaçado, senão aniquilado.
No Brasil, o entendimento dominante tem sido uma espécie de meio-
-termo ou pelo menos uma versão mais branda da segunda corrente.
Prevalece que o texto é um ponto de partida, pois fornece o mínimo
para uma interpretação que não estaria, ao fim e ao cabo, absoluta-
mente limitada por ele. Não se descarta o texto, pelo contrário, mas
o elemento textual é visto como mais um aspecto -- relevante -- a ser
considerado. Toda palavra já carrega consigo um significado denotati-
vo (dicionário) ou conotativo (linguagem coloquial). Não há uma palavra
oca, inteiramente vazia, como um corpo errante em busca de uma alma
a preenchê-lo. Dessa forma, nesta concepção, o intérprete, em princípio,
parte do significado que é atribuído às palavras do texto interpretado
(significado antecipado), mas, ao longo deste processo interpretativo, atribui
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
23

sentido à norma. Trata-se de uma espécie de acréscimo, como se cada qual


desse sua particular contribuição à obra final (v.g. legislador + juiz). Nesse
contexto, Lenio Streck arremata (2017, pp. 21-22):
“É impossível reproduzir sentidos. E é por isso que não se pode mais
falar em Auslegung – extrair sentido – e, sim, em Sinngebung – atri-
buir sentido. (...) A applicatio tem direta relação com a pré-compreen-
são (Vorverstandnis). Há sempre um sentido antecipado. Não há grau
zero de sentido. Assim, pode-se dizer que nem o texto é tudo e nem
o texto é um nada.
(...) aquele que compreende não escolhe arbitrariamente um ponto
de vista, mas encontra seu lugar fixado de antemão. Não há um grau
zero. (...) O intérprete não constrói o texto, a coisa; mas também não
será um mero reprodutor. A applicatio é esse espaço que o intérprete
terá para atribuir o sentido. É o espaço de manifestação do sentido.”
Trilhando esta corrente doutrinária, o Supremo Tribunal Federal, em
decisão monocrática oriunda do Eminente Ministro Luís Roberto Barroso,
estabeleceu que “Embora, naturalmente, o espírito e os fins da norma se-
jam mais importantes que a sua literalidade, é fora de dúvida que o sentido
mínimo e máximo das palavras figuram como limites à atuação criativa do
intérprete” (STF, MS 32326 MC/DF, j. em 02/09/2013). Neste julgado, duas
coisas devem ser percebidas pelo leitor: primeiro, o próprio STF admitiu
uma “atuação criativa do intérprete”, afastando-se da corrente minoritária
pela qual o papel do Juiz é a mesma que a de um lavrador que prospecta
o significado pré-existente da norma. Segundo, que essa atuação criativa
encontra limites na literalidade da lei. É nesse sentido que Eros Roberto
Grau assevera ser o Juiz criador da norma, “mas não a partir do nada, e
sim, inicialmente, dos textos”. Para Grau, a interpretação do Direito não é
atividade de conhecimento, mas constitutiva; portanto, decisional, embora
não discricionária” (2017, p. 28).
Esse também é o entendimento de Gadamer, para quem a compreen-
são é sempre produtiva e não meramente reprodutiva do sentido da
norma. Ana Maria D´Ávila, referindo-se à hermenêutica de Gadamer, pon-
tua que “a real finalidade da hermenêutica jurídica é ‘encontrar o Direito’
(seu sentido) na aplicação ‘produtiva’ da norma, pois a compreensão não é
um simples ato reprodutivo do sentido original do texto, senão, também,
produtivo” (2000, p. 109).
O tema desperta uma imensa controvérsia, mesmo nos dias atuais. A
despeito disso, o fato é que a corrente majoritária tem sido a que con-
cebe a atividade interpretativa como um processo de atribuição de
sentido àquilo que se interpreta (Streck, Barroso, Gadamer, Eros Grau
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
24

etc.). É raro encontrar, na literatura jurídica brasileira, quem negue ou se


oponha a isso.
Pois bem.
Se hoje prevalece amplamente que o intérprete empresta um senti-
do à norma interpretada, já vimos que nem sempre foi assim. José Adér-
cio Leite Sampaio relembra que “a interpretação jurídica, durante muito
tempo, foi enxergada como um processo metodológico de descoberta do
sentido do texto normativo. As palavras encapsulavam a verdade textual,
a ser revelada por um intérprete racional, um terceiro imparcial, um su-
jeito-cientista-intérprete” (2013, p. 410). Embora esta compreensão tenha
sido “refutada” pelos estudos mais recentes, foi durante esta época que
Savigny elaborou os famosos elementos de interpretação, todos vocacio-
nados a desvelar o sentido subjacente. Pela importância que ainda se dá a
esses métodos, seja em manuais ou até em julgados do Supremo Tribunal
Federal, opta-se por abordá-los a seguir.

2. Velhos elementos de interpretação (Savigny e Ihering)


Como bem observou Eros Grau, na concepção tradicional da herme-
nêutica, “à moda de Savigny”, “a interpretação nada mais é que a recons-
trução do pensamento do legislador” (2017, p. 28). Para tanto, o jurista de-
senvolveu os famosos elementos de interpretação.
Em vez de apresentar ao leitor esses vetustos elementos de interpreta-
ção, descrevendo-os abstratamente, como fazem todos os Manuais, opta-
mos didaticamente por já contextualizá-los em um caso real. Estudaremos
os métodos de Savigny e de Ihering, mas a partir de um caso concreto
enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se da maneira mais didá-
tica, porque permite ao leitor vislumbrar a aplicação prática dessas ferra-
mentas. O caso versou sobre a condenação criminal de um congressista
e a (im)possibilidade de perda automática do cargo de parlamentar,
por decisão do STF.
Uma vez condenado criminalmente pelo Supremo Tribunal Fede-
ral, opera-se a perda automática do cargo do parlamentar ou isso de-
pende de uma decisão por parte da Casa respectiva (Câmara ou Sena-
do)? A esse respeito, a Constituição enuncia duas regras importantes, que
deverão ser interpretadas:
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou
suspensão só se dará nos casos de:
(...)
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
25

III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto dura-


rem seus efeitos;
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo
anterior;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro
parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça
parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença
ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta
Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em
julgado.
(...)
§ 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidi-
da pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria
absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido po-
lítico representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada
pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de
qualquer de seus membros, ou de partido político representado no
Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
Este é o pano de fundo daqui para frente. O Ministro Luís Roberto, em
um resgate das ferramentas metódicas de Savigny, tentou solucionar este
dilema. Contudo, sugerimos que, antes de prosseguir, o leitor desta obra
reflita, sozinho, chegando a uma conclusão acerca da melhor interpreta-
ção dos dispositivos constitucionais acima. Somente após encontrar o seu
ponto de vista interpretativo, prossiga na leitura para então descobrir como
o jurista da UERJ interpretou essas normas.
Pronto para comparar seu ponto de vista com o do Ministro? É do que
passamos a nos ocupar.

2.1 Elemento gramatical


A interpretação literal, também conhecida como especiosa ou farisai-
ca, é caracterizada pela análise semântica do texto, quase sempre, à luz do
significado denotativo das palavras. A ênfase é dada ao “pé da letra”. Esta é
a ideia geral do elemento gramatical.
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
26

Contudo, se assim o é na interpretação gramatical das leis em geral,


quando se trata da interpretação constitucional, convém fazer uma obser-
vação. A Constituição não é uma lei como as demais, porque ela traduz
um documento cívico. Sendo assim, a Lei Maior não deve ser lida como
um contrato, cuja compreensão só é possível por advogados. Isso faz com
que algumas palavras usadas na Constituição devam ser compreendidas
em seu sentido coloquial (“homens”, “mulheres”), mas outras possuem um
inegável significado técnico (“mandado de segurança”, “habeas corpus”).
A verdade é que não há, por ora, um critério seguro para separar o
joio do trigo. Ainda não se sabe ao certo quando o constituinte emprega
uma palavra divorciada do seu significado coloquial e quando emprega
um vocábulo de maneira técnica. Uma boa sugestão é fornecida por Gil-
mar Mendes e Paulo Gonet, para quem “...é sustentável dizer que, se o
constituinte se dedica a disciplinar um assunto de cunho técnico, os ter-
mos de que se vale, em princípio, devem ser compreendidos como o são
na área do saber especializado” (2017, p. 85).
Voltando ao nosso exemplo prático para trabalhar o assunto, no MS
32326 MC/DF, relatado pelo Eminente Ministro Luís Roberto Barroso, o STF
tratou de conceituar a interpretação gramatical, senão vejamos:
A interpretação semântica, também referida como gramatical,
literal ou filológica, é o ponto de partida do intérprete, sempre que
exista uma norma expressa acerca da matéria que lhe caiba resolver.
Embora, naturalmente, o espírito e os fins da norma sejam mais impor-
tantes que a sua literalidade, é fora de dúvida que o sentido mínimo e
máximo das palavras figuram como limites à atuação criativa do in-
térprete. Do contrário, a linguagem perderia a capacidade de comunicar
ideias e se transformaria em mero joguete a serviço de qualquer objetivo.
Pois bem: a norma aqui analisada estabelece, de modo taxativo, que
no caso de Deputado ou Senador condenado criminalmente por senten-
ça transitada em julgado, a perda do mandato será decidida pela Câmara
dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria abso-
luta. Veja-se: a norma não fala que em caso de condenação por alguns
crimes, mas não por outros a decisão será da Casa Legislativa. Tampouco
prevê que em alguns casos a decisão será meramente declaratória, a ser
tomada pela Mesa, e que em outros caberá ao Plenário, por manifestação
secreta e maioria absoluta. Nada disso está dito ou está implícito no texto.
Em conclusão: se o texto não comporta a interpretação pretendida, não é
possível chegar a ela. Já aqui seria possível encerrar a questão. (MS 32326
MC/DF – Min. ROBERTO BARROSO, Julgamento: 02/09/2013)
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
56

Inconsti-
Silêncio tucionali-
Lacunas
eloquente dade por
omissão
Não há Não há Não há
norma (por Existe Existe Existe norma (de norma infra-
um lapso) norma norma norma propósito) constitucio-
na CF na CF nal

6. Quem é o intérprete da Constituição?


Os manuais em geral, ao abordarem a interpretação das leis, classifi-
cam-na, quanto à origem, em:
I. Interpretação autêntica: efetuada pelo próprio legislador;
II. Interpretação doutrinária: efetuada pelos doutores do Direito;
III. Interpretação judicial: efetuada pelo Poder Judiciário.
IV. Nos domínios da interpretação constitucional, algumas considera-
ções devem ser tecidas.
Primeiramente, o que caracteriza a interpretação autêntica é o fato
de que uma lei mais recente explica como se deve interpretar uma lei
anterior. É o legislador esclarecendo o que disse. Ora, a partir desta com-
preensão, à luz da classificação descrita acima, seria possível cogitar de
uma interpretação constitucional autêntica? A resposta é não, a não
ser que consideremos as reações legislativas (assunto a ser abordado a
tempo e a modo). Sabemos que, se uma lei se propusesse a dizer como
uma Constituição deve ser interpretada, haveria uma inversão hierárqui-
ca. É a Constituição quem dita a maneira de interpretar as leis e não o
contrário. Daí falar-se em princípio da interpretação conforme a Consti-
tuição (e não conforme as leis). Avançando em nosso raciocínio, também
não faria sentido que uma emenda à Constituição explicasse como essa
mesma Constituição deve ser interpretada, até porque as próprias emen-
das devem respeito à Constituição (pelo menos, no que se refere às cláu-
sulas pétreas). A única maneira, em tese, de efetuar uma interpretação
constitucional autêntica seria se o constituinte originário explicasse como
interpretar sua própria obra, o que é teoricamente viável, mas de quase
impossível configuração prática. Não é factível que uma Constituição seja
feita para explicar como se interpretar a Constituição antecedente.
No que diz respeito à interpretação constitucional doutriná-
ria, esta é possível e bastante usual. Basta lembrar das Constituições
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
57

comentadas pelos constitucionalistas brasileiros, que compõem o acervo


da doutrina pátria, verdadeira fonte do Direito e de consulta por parte de
magistrados, membros do Ministério Público e advogados.
Concluindo nossa reflexão inicial, a interpretação constitucional ju-
dicial é feita por ocasião do controle de constitucionalidade. Desse
modo, é possível sistematizar o que foi dito da maneira a seguir:

Classificação da interpretação quanto à origem


Interpretação das leis Interpretação da Constituição
Interpretação autêntica X
Interpretação doutrinária Interpretação doutrinária
Interpretação judicial Interpretação judicial

Em sentido amplo, podemos afirmar que todos aqueles que devem


cumprir a Constituição são destinatários dos seus preceitos, razão pela
qual, lato sensu, todos são intérpretes do documento constitucional. Nesse
sentido, do faxineiro ao presidente da República, todos os brasileiros inter-
pretam a Carta Magna. Esta é a ideia trazida por Peter Häberle (socieda-
de aberta dos intérpretes). Isso inclui, aliás, o legislador, na medida em
que não lhe é dado elaborar diplomas inconstitucionais. Antes de legislar,
o congressista deve aquilatar se o projeto proposto respeita os parâmetros
constitucionais, logo, realiza interpretação constitucional (v.g. Comissões
de Constituição e Justiça). O mesmo se diga quanto aos juízes, afinal, an-
tes de reconhecer a incidência da lei em um dado processo, o magistrado
deve analisar a constitucionalidade dessa norma, em uma espécie de ope-
ração mental implícita e prejudicial. Por fim, o Poder Executivo também
efetua interpretação constitucional, seja quando o Presidente da República
apresenta um veto jurídico a um projeto de lei, seja quando este Chefe do
Executivo se recusa a cumprir uma lei que repute inconstitucional.
Nesta fase das nossas digressões, chegamos à conclusão de que, lato
sensu, além dos particulares, todos os poderes da república são, em
alguma medida, intérpretes da Constituição. Sucede que, conquanto
seja franqueado a todos os brasileiros e a todos os agentes públicos o ato
de interpretar a Carta Outubrina, a força normativa desta norma restaria
enfraquecida se não houvesse uma padronização mínima quanto ao signi-
ficado dos ditames constitucionais.
Nesse contexto, muitos passaram a entender que alguém precisaria
dar a última palavra. A dúvida que se põe é: partindo-se da premissa de
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
58

que alguém deveria dar a última palavra (premissa cujo acerto ou desa-
certo será analisado adiante), quem estaria habilitado para tal? A resposta
tem consequências práticas das mais relevantes, mormente nas hipóteses
de “desacordos morais razoáveis”.
Para entender a essência dos desacordos morais razoáveis, figure-se
que uma mulher muçulmana decide banhar-se no mar, no Ocidente, ves-
tindo um burquíni (roupa que cobre quase toda a extensão do corpo, em
razão da fé islâmica). Na França, muito se debateu acerca da possibilidade
de proibir essa prática. Os proibicionistas alegavam que o gesto oprimia
as mulheres ocidentais. Os não proibicionistas defendiam a liberdade indi-
vidual de a mulher poder usar o burquíni. A propósito, a opinião do autor
que vos escreve é a de que qualquer pessoa, homem ou mulher, tem o
direito de banhar-se nas águas do oceano com a indumentária que lhe
aprouver, até mesmo com uma fantasia carnavalesca, o que se dirá com
uma roupa radicada na fé. Mulheres verdadeiramente livres vestem o que
acham por bem, inclusive, uma burca ou um burquíni. Seria mesmo irôni-
co que, na porção ocidental da Terra, se proibisse o excesso de roupa
nas mulheres, enquanto a porção oriental proibiria a “insuficiência” de
roupa fe-minina. Neste triste panorama, mulheres não seriam livres em
lugar algum do planeta, porquanto instaurada uma proibição ubíqua.
Com a dualidade de Yin e Yang, em um lado do globo, vedar-se-ia a falta
de roupa; no outro lado, proibir-se-ia a abundância de roupa. Nas duas
metades deste mundo, mulheres estariam se sujeitando a proibições
quanto ao que vestir. Ontolo-gicamente, isso aproximaria o Ocidente do
Oriente, pois ambos, em alguma medida, proibiriam roupas femininas: este
hemisfério, as sumárias; aquele, as excessivas. Seria o planeta a serviço de
uma proibição onipresente. Ora, é de elementar sabença que, desde que
cubram minimamente seus corpos, homens podem vestir o que desejam:
da batina eclesiástica à jocosa tanga do Tarzan; de um sisudo terno e
gravata a uma irreverente sunga verde li-mão. Por que não franquear
liberdade semelhante às mulheres? Um padre pode banhar-se nas águas
do oceano com a roupa que o caracteriza como sacerdote. Uma freira,
igualmente, deve ter a possibilidade de fruir o mes-mo contato com a
natureza, trajando a roupa que a identifica como tal. Se uma freira
católica pode tocar nas águas do mar, sem se desvencilhar da sua
essência religiosa, não há razão plausível para interditar esse compor-
tamento por parte de uma muçulmana. Pois bem. Apresentada a opinião
deste que vos fala, talvez seja de bom alvitre informar que o Conselho de
Estado Francês, que se situa no vértice do organograma da jurisdição ad-
ministrativa, decidiu (acertadamente) pela liberdade das mulheres. Porém,
a lição a ser extraída deste caso, que deve ser guardada pelo leitor, é a de
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
59

que até mesmo a decisão pessoal de um indivíduo pode ter reflexos


na coletividade e nem sempre haverá consenso sobre a melhor opção
para o corpo social. Este é o pano de fundo dos chamados “desacordos
morais razoáveis”. Não raro, envolverão a dicotomia “supremacia do
interesse público” versus “liberdade individual”.
O tema dos desacordos morais razoáveis foi mencionado por Luiz Fux,
no julgamento do RE 845.779. Neste caso, o Eminente Ministro pediu vista
porque, na sua ótica, a (im)possibilidade de um transexual utilizar o ba-
nheiro feminino, em um shopping center, traduziria exatamente um desa-
cordo moral razoável. Quem, por exemplo, deve decidir sobre o uso de de-
terminados banheiros por transexuais? Legislativo ou Judiciário? A quem
incumbiria proibir ou permitir que mulheres islâmicas usem burquíni?
É o que enfrentamos doravante.

6.1 Teorias da Última Palavra


Parte da doutrina constitucionalista sustentou que a última palavra
deveria caber ao Judiciário, enquanto um outro hemisfério de juristas de-
fendeu que essa prerrogativa seria do Legislativo. Em comum, conforme
anota Conrado Hübner, ambas as correntes “defendem que o circuito deci-
sório possui um ponto final dotado de autoridade por meio de uma decisão
soberana” (2008, p. 14). Vejamo-las.

6.1.1 Quando a última palavra é do Judiciário


O constituinte confiou ao Excelso Pretório a guarda precípua do docu-
mento constitucional, averbando, na cabeça do artigo 102, que “Compete
ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (…)”.
Note-se que a condição de Guardião da Constituição, ostentada pelo Su-
premo Tribunal Federal, nunca excluiu a possibilidade de que outras pes-
soas e entidades efetuassem a interpretação constitucional, até porque,
como foi dito alhures, qualquer destinatário dos comandos constitucio-
nais, por um imperativo lógico, precisa interpretar os seus preceitos.
Seja como for, o status de Guardião da Constituição conferiu ao STF
um protagonismo sem precedentes no que concerne à hermenêutica
constitucional. Conforme a célebre e irônica frase atribuída a Nelson Hun-
gria, o Supremo Tribunal Federal tem “o supremo privilégio de errar
por último”. No HC 91361, o Ministro decano Celso de Mello afirmou em
seu voto que, na interpretação constitucional, o Supremo Tribunal Federal
tem “o monopólio da última palavra”. Neste mesmo caminho, o saudoso
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
60

Ministro Teori Albino Zavascki já manifestou, com uma sinceridade sur-


preendente, o ponto de vista colacionado a seguir (destacamos):
“Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os
enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometi-
da constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial,
podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da
norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou
pelos juristas ou advogados, e nem mesmo aquele que foi imagi-
nado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o
conteúdo da norma é aquele, e tão-somente aquele, que o Poder
Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se
diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o
STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são
aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que
são”. (EREsp 644.736/PE, Corte Especial, DJ 27.08.2007)
A expressão, que vai ao encontro – e não de encontro – do realismo
jurídico norte-americano (corrente fatalista no sentido de que o Direito é
aquilo que os Tribunais decidem como tal), resume a corrente da supre-
macia judicial, por força da qual o Judiciário estaria institucionalmente
mais capacitado para a interpretação constitucional que os demais pode-
res ou mesmo que as demais pessoas.
De fato, se todos devem respeito à Constituição e se cabe ao STF
guardar o seu sentido, a conclusão natural é a de que esse Tribunal,
mesmo integrando um dos poderes da república, acaba exercendo au-
toridade sobre os demais poderes. Afigura-se, pois, um paradoxo: a um
só tempo, o Supremo Tribunal Federal é órgão do Poder Judiciário e
Corte Constitucional.
A corrente da supremacia judicial é a tradicional, clássica e ainda mui-
to presente em inúmeros Manuais de Direito Constitucional. No exterior,
contou com a adesão de autores como Alexy e Dworkin. O fundamento é
o de que o Judiciário está em uma posição equidistante das partes e dis-
tanciado das paixões políticas, razão pela qual seus membros ostentariam
um perfil neutro o suficiente para aquilatar tecnicamente as demandas
sociais. Ademais, essa concepção aposta na infalibilidade do Judiciário ou,
pelo menos, que ele está menos propenso a falhar. Em sua consistente
tese de doutorado, Conrado Hübner enumera uma quantidade muito rica
de argumentos favoráveis à ideia de que uma Corte deve ter a última
palavra sobre direitos (2008, pp. 56-70):
y A corte protege as pré-condições da democracia;
y A corte assegura o processo de formação da vontade democrática;
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
61

y A corte protege os direitos fundamentais e o conteúdo de justiça


da democracia;
y A corte protege os direitos das minorias e impede a tirania da
maioria;
y A corte é emissária do Povo genuíno e operacionaliza o
pré-comprometimento;
y A decisão da corte pode ser rejeitada, ao final, por emenda cons-
titucional ou por uma nova constituição, poder que continua
com o povo;
y A supremacia judicial é exigência do Estado de Direito;
y A corte é um agente externo que julga com imparcialidade. O le-
gislador não poderá julgar a si mesmo;
y A corte é um veto inerente à dinâmica da separação de poderes;
y A corte analisa um caso concreto, submete-o a uma racionalidade
incremental e o insere dentro de sua jurisprudência;
y A corte é menos falível em questões de princípio e está mais pró-
xima da resposta certa;
y A corte promove uma representação deliberativa e argumentativa;
y A corte é instituição educativa e promove o debate público;
y A corte integra um sistema democrático, não está à margem dele;
y A corte é composta por membros indicados por autoridades eleitas.
Não obstante a persuasão dos argumentos tecidos acima, nos últimos
anos, parte da comunidade jurídica entendeu que atribuir a uma Corte
Constitucional a prerrogativa de falar por último, no circuito decisório, tal-
vez não fosse a melhor solução para a democracia e para a separação dos
poderes. Nasce, então, a corrente da soberania parlamentar.

6.1.2 Quando a última palavra é do Legislativo


Não se pode divinizar o Judiciário. Juízes encastelados em suas torres
de marfim não estão posicionados em um ambiente favorável para captar
os valores de quem habita nos rincões mais longínquos deste país conti-
nental. Alguns Ministros do STF têm a ousadia de dizer que possuem uma
função iluminista, no sentido de promover saltos históricos na humani-
dade, comportando-se como líderes messiânicos que resgatariam esta so-
ciedade medieval do obscurantismo descrito na caverna de Platão.
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
62

Nós, integrantes da sociedade, não somos órfãos à procura de um pai.


Pelo contrário, governamos a nós mesmos. Para a alemã Ingeborg Maus,
que realiza uma interessante fusão entre Direito e Psicanálise, a infantilida-
de da sociedade tem sido reforçada nos últimos tempos e, nesse contexto,
o Poder Judiciário tem se fortalecido com “todas as características tradicio-
nais da imagem do pai” (2000, p. 185). Sobretudo em questões morais ou
de foro íntimo, o natural é que os cidadãos queiram decidir por si mesmos.
O Estado não pode infantilizar seus concidadãos (paternalismo estatal), tra-
tando-os como se não fossem capazes de escolher seus projetos de vida.
Na terminologia de Ingeborg Maus, o Judiciário não deve agir como o “su-
perego da sociedade”. Ora, decidir por si mesmo significa que o Legislativo
decida (não o Judiciário), afinal, os mandatários do povo foram sufragados
nas urnas para receber um mandato popular. Logo, quando a lei decide
um desacordo moral, é o próprio povo, encarnado no Parlamento, que de-
cidiu a respeito dele.
Foi o raciocínio acima, além de inúmeros outros argumentos, que
deu lastro ao movimento que ficou conhecido como constitucionalis-
mo popular, capitaneado por juristas do calibre de Jeremy Waldron,
Larry Kramer e Mark Tushnet. Para eles, o controle jurisdicional de
constitucionalidade é ilegítimo. Apenas para se ter ideia, duas das obras
de Mark Tushnet podem ser traduzidas como “Cortes Fracas, Direitos For-
tes...” (2008) e “Tirando a Constituição dos Tribunais” (1999). Larry Kramer,
por sua vez, escreveu um trabalho batizado de “We The Court”, em um
trocadilho com a expressão norte-americana de soberania popular “We
the People” (2001). Jeremy Waldron, a seu turno, é autor de uma obra
intitulada “A Dignidade da Legislação” (1999). Todos são, portanto, entu-
siastas do Parlamento e do parlamentar. Não obstante, em obras mais
recentes, alguns desses autores acabaram se tornando um pouco menos
radicais, seja porque sugeriram diálogos institucionais, seja porque tole-
raram uma modalidade fraca de controle jurisdicional de constituciona-
lidade, em casos específicos e excepcionais. Todavia, no essencial, conti-
nuam bastante avessos à ideia de reconhecer tamanho poder ao Judi-
ciário. Seja como for, se é temerário dizer que os juristas do constitucio-
nalismo popular sustentam uma última palavra de quem quer que seja,
o fato é que esses foram os autores mais inclinados a uma soberania
do Legislativo.
À semelhança do que fizemos no tópico anterior, a partir dos escri-
tos de Conrado Hübner (2008, pp. 82-85), organizamos os principais ar-
gumentos favoráveis à ideia de que o Legislativo deve ter a última
palavra sobre direitos:
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
63

y O parlamento representativo é o mais próximo que se pode che-


gar do ideal de democracia nos estados modernos (second-best
choice). É manifestação do povo, ainda que indireta;
y O processo de composição do parlamento representativo estrutu-
ra a competição política;
y O parlamento representativo é um aperfeiçoamento da democra-
cia direta (first-best choice);
y A atividade decisória do parlamento estimula o compromisso, a
acomodação de extremos, não a polarização;
y A objeção contra a supremacia do parlamento representativo
ecoa preconceitos da tradição antidemocrática;
y A regra da maioria é o único princípio de decisão coletiva que res-
peita o imperativo moral da igualdade;
y A regra de maioria limita o poder;
y Decisões sobre questões de justiça não devem ser sensíveis à in-
tensidade de preferências.
À luz das considerações tecidas e dos argumentos expostos acima
(uns favoráveis às Cortes e outros favoráveis ao Parlamento), indaga-se:
afinal, quem revela condições mais propícias para realizar a interpretação
constitucional, solucionando, por exemplo, desacordos morais razoáveis
ou determinando o significado da Constituição?
a. 1ª corrente: supremacia judicial;
b. 2ª corrente: soberania parlamentar.
Observe o quadro a seguir:

Interpretação da Constituição e solução de dilemas morais

Supremacia Judicial Soberania Parlamentar

O Judiciário não falha ou falha muito


Deve-se resgatar a dignidade do legis-
menos que o Legislativo. Ele está equi-
lador e da legislação. Como mandatá-
distante das paixões políticas e deve
rios do povo, uma vez que sufragados
proteger a Constituição até mesmo
nas urnas, os congressistas estão em
de maiorias eventuais (função contra-
melhores condições de solucionar im-
majoritária), coisa que o Legislativo,
passes morais, à luz do princípio de-
em seu egoísmo, não faria. Tudo em
mocrático. Esta é a maneira de dar ao
nome da concretização dos direitos
povo o poder de governar a si mesmo.
fundamentais.
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
64

Tradicionalmente, a primeira corrente (supremacia judicial) tem sido


majoritária no Brasil, mas está em declínio. No STF, ela ainda é explicita-
mente defendida pelo Eminente Ministro Celso de Mello, inclusive, em tra-
balhos doutrinários publicados no ano de 2018 (a exemplo da obra “30
anos da Constituição Brasileira. Democracia, Direitos Fundamentais e Insti-
tuições”, organizada pelo Ministro José Antonio Dias Toffoli). Veremos, no
tópico seguinte, uma terceira possibilidade de compreensão.

6.1.3 “Teoria dos Diálogos Institucionais”


Até então, a resposta para a pergunta sobre quem estaria melhor
posicionado para interpretar a Constituição seguiu um raciocínio binário
“Corte/Parlamento”, de maneira disjuntiva (uma coisa ou outra). Contudo,
de maneira criativa, alguns juristas perceberam que seria possível uma so-
lução intermediária para o dilema que apresentamos, alicerçados na pre-
missa de que, em uma democracia, não existe uma última palavra. Por
que pensar em Legislativo ou Judiciário (raciocínio disjuntivo), se é possí-
vel conjugar a colaboração de ambos (raciocínio aditivo)? À luz da Teoria
dos Diálogos Institucionais, a interpretação constitucional não deve-
ria ser encerrada pelo Judiciário ou pelo Legislativo, mas sim amadure-
cida dialeticamente por eles.
Porém, sabendo-se que Instituições são seres inanimados, como
falar em “diálogo”? De fato, cuida-se de uma prosopopeia, ou seja, de
uma figura de linguagem pela qual emprestamos humanidade a coisas
desprovidas de vida. No mundo real, as Instituições promovem um inter-
câmbio de argumentos a respeito de um problema constitucional, à se-
melhança de uma conversa. Por exemplo, Judiciário e Legislativo podem,
cada um, apresentar argumentos a respeito da vaquejada, de modo que
ambos possam apreciar as razões do outro, seja para acolhê-las, seja para
rejeitá-las. O Parlamento “fala” pela lei. A Corte “responde” pela decisão
judicial. No mundo jurídico, consideramos isto um diálogo institucional.
Daí a expressão “diálogos” (fluxo recíproco de argumentos) institucionais
(entre Instituições).
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
65

Na prática, o circuito decisório pode ser esquematicamente con-


cebido a seguir:

Com a oportunidade
O legislador permite O STF, na ratio deci- de corrigir sua inter-
uma prática cultural dendi, aprecia as novas pretação constitucio-
que hostiliza animais razões nal, o STF decide se
irá se retratar

O STF invalida a nor- Desta vez, novas razões


ma, por considerá-la são apresentadas nos
FIM DO SEGUNDO
crudelíssima e, portan- debates parlamentares,
CICLO DE DEBATES
to, violadora da ordem na exposição de moti-
ambiental. vos e na própria lei

Não vinculado pela Mais uma vez, o Le-


decisão do STF, o le- gislativo pode confor-
FIM DO PRIMEIRO
gislador elabora outra mar-se ou não com a
CICLO DE DEBATES
norma com idêntico interpretação do STF. E
teor assim por diante...

Segundo o artigo 102, § 2º da Constituição Federal, “As decisões defi-


nitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações di-
retas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constituciona-
lidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente
aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública di-
reta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.” (destacamos).
Percebe-se que o Poder Legislativo, na sua função típica de legislar, não se
vincula à decisão da mais Alta Corte. Como o Parlamento não se acor-
renta aos ditames do julgado, poderá elaborar uma norma com conteúdo
idêntico àquele censurado pelo STF, no mesmo dia em que publicada a
decisão (ADI n.º 907, RTJ 150/726).
O fundamento para essa possibilidade é interessante.
Quando o Supremo Tribunal Federal afirma que uma lei é inconstitu-
cional, isto equivale a dizer que o diploma foi invalidado porque o seu teor
era incompatível com o significado que hoje é atribuído pelo STF à Cons-
tituição. Com o passar dos anos, alterando-se a composição dos membros
da Corte, talvez um novo significado seja atribuído ao mesmo documento
constitucional. Entretanto, se o Legislativo estivesse eternamente proibido
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL • Samuel Sales Fonteles
66

de elaborar um diploma idêntico ao censurado no passado, seria como se


o antigo significado de Constituição ainda estivesse em vigor, bloqueando
a elaboração da norma invalidada, ad aeternum. Seria um prolongamento
do antigo significado de Constituição, para todo o sempre. Esse fenômeno
foi pejorativamente chamado de “fossilização da Constituição” e é con-
siderado indesejado pelo pensamento dominante. Exatamente para evitar
essa fossilização da Constituição, entende-se que a decisão que invalida
uma lei não proíbe o Legislativo de elaborá-la novamente, possibilitan-
do-se que o Parlamento reaja diante do comportamento do Judiciário
que fulminou a sua obra. Esta reedição da norma invalidada, portanto, é
tecnicamente denominada de reação legislativa. Uma vez elaborado o
diploma com o mesmo conteúdo do que fora invalidado pelo Supremo,
é possível que o Excelso Pretório se reposicione sobre o assunto, assu-
mindo (ou não) outro entendimento. Nas razões de decidir, a Corte levará
em consideração as novas razões trazidas na reação legislativa, seja para
abraçá-las, seja para repudiá-las. Nota-se um comportamento dialógico en-
tre os Poderes da República, que migram de uma postura adversarial para
um patamar cooperativo. Na Teoria dos Diálogos Institucionais, foge-se do
raciocínio binário “Corte ou Parlamento”, que é eminentemente disjuntivo
(Corte ou Parlamento), para alcançar uma solução diversa, de natureza adi-
tiva (uma Corte e Parlamento). A ideia é de aprimoramento mútuo. Em
tese, para Conrado Hübner, este novo marco teórico “elevaria a capacida-
de epistêmica da democracia” e tornaria a separação dos Poderes sensível
“ao bom argumento”.
Observem o quadro abaixo:

Teorias do
Teorias da Última Palavra
Diálogo Institucional
“Defendem que o circuito decisório possui um ponto
Em uma democracia, não
final dotado de autoridade por meio de uma decisão
há uma última palavra.
soberana” (Conrado Hübner. 2008, p. 14).
(.) (.) (…)
Supremacia do Eleva-se a “capacidade
Supremacia do Judiciá-
Parlamento: demo- epistêmica da democra-
rio: presunção de que
cracia (representação cia”. A separação dos po-
juízes não falham ou
eleitoral) e igualdade deres se torna sensível ao
falham menos.
(maioria). “bom argumento”.
A interação entre os
A interação entre os A interação entre os po-
Poderes é adversarial.
Poderes é adversarial. deres é deliberativa.

Você também pode gostar