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HERMENÊUTICA
CONSTITUCIONAL
6ª
edição
revista
atualizada
ampliada
2023
1. Hermenêutica
Não há consenso acerca da origem da palavra “Hermenêutica”, mas,
ao que tudo indica, a razão está com Heidegger, para quem a expressão
deriva de Hermes. Na mitologia grega, Hermes foi também considerado
como mensageiro dos “deuses”, desempenhando uma função essen-
cialmente interpretativa. Tal como uma professora de libras, que interpreta
essa linguagem e é capaz de traduzi-la para o destinatário, Hermes inter-
pretava a mensagem divina, transmitindo-a para os mortais. Ao decodifi-
cá-la, proporcionava-lhes o conhecimento e a compreensão.
Segundo Ari Marcelo Solon, em sua primorosa obra Hermenêutica
Jurídica Radical, Hermes é “tanto aquele que transmuta, traduz, conduz
a linguagem sagrada para uma compreensão humana de forma palpável,
racional, inteligível, enfim, comunicável entre homens, quanto o deus do
Liminar, da zona limítrofe, sendo um ultrapassador de limites, um media-
dor entre sonho e realidade, entre dia e noite, entre o natural e o sobre-
natural, entre o mais celestial e o mais telúrico” (2017, p. 15). O Professor
da USP sublinha, portanto, que a palavra hermeios é uma referência ao
sacerdote do Oráculo de Delfos, elucidando ainda que a palavra her-
menêutica é proveniente do verbo hermeneuein, que significa interpre-
tar, decifrar, traduzir, dizer e expressar (2017, p. 14).
Embora a hermenêutica se ocupe preponderantemente da interpreta-
ção de textos, é um equívoco supor que somente textos podem ser inter-
pretados. Hoje, tem prevalecido que tudo aquilo que pode ser conheci-
do também pode ser objeto de estudo da hermenêutica, não apenas
as leis. Apenas para exemplificar, na Psicanálise, Freud construiu métodos
de interpretação dos sonhos. A rigor, cuida-se de uma hermenêutica oníri-
ca (dos sonhos). Exatamente nesse contexto, Ronald Dworkin, na sua obra
“A Raposa e o Porco-Espinho: Justiça e Valor”, prefere falar em gêneros
de interpretação, aduzindo que “os historiadores interpretam épocas e
acontecimentos, os psicanalistas interpretam sonhos, os sociólogos e an-
tropólogos interpretam sociedades e culturas, os advogados interpretam
documentos, os críticos interpretam poemas, quadros e peças de teatro,
os padres e rabinos interpretam textos sagrados, e os filósofos interpretam
conceitos controversos” (2014, p. 187).
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1.2 Pré-compreensão
Quando dois homens olham ao mesmo tempo para a lua, nenhum
deles vê a mesma lua. Um mesmo texto pode ser compreendido de ma-
neira distinta, a depender da biografia de quem o leu. Cada qual carrega
consigo suas experiências, vivências, erros, acertos, cicatrizes, orgulhos,
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tenho vocação para ser infeliz. (...) O tanto de sininho pra fazer isso
e pra fazer aquilo”... “Talvez eu tenha vivido tempo demais privada
da liberdade, inclusive, (da liberdade) de dizer, porque eu saí do in-
ternato e praticamente fui direto para uma Faculdade na década de
70. Ter sido estudante de Direito na década de 70, só quem esteve
lá para saber o que era a vontade de arrancar aquilo e de esgoelar
qualquer coisa. (...) E nem cantar podia! Tinha que cantar, às vezes,
quase que silenciosamente naquelas escadarias das Igrejas de Ouro
Preto. Então, pra mim, quando dizem ‘... você luta pela liberdade de
imprensa, liberdade de expressão’, eu luto por mim! Eu não fui advo-
gada de jornalistas ou de sindicatos por acaso! (...) Eu estou contan-
do uma história de mim mesma. Quem soube a força da mordaça
sabe o gosto do falar. Eu gosto de gente que conversa. (Programa
“Conversa” – Rede Globo)
Na realidade, no julgamento da ADI das biografias, o voto da Ministra
Carmen Lúcia atuou como um espelho psicanalítico da própria biogra-
fia. Em um simples cotejo entre o que foi dito no STF e as suas decla-
rações para o jornalista Pedro Bial, constata-se a poderosa influência das
suas pré-compreensões, gravadas de maneira indelével nos átrios do seu
inconsciente.
Observem o quadro a seguir, que contrasta esses dois hemisférios da
personalidade da Ministra:
Corrente Trifásica
Ato interpretativo
1. Conhecimento 2. Interpretação 3. Aplicação
Corrente monofásica
Ato interpretativo
1. Conhecimento + Interpretação + Aplicação
do que isso, não parece temerário afirmar que uma pessoa estranha “sem-
pre o faz […] supondo”? Estes são palpites que se aventuram em levantar
hipóteses sobre suposições pessoais, o que não parece aconselhável.
Seja como for, esquematicamente, temos, pois, a seguinte situação:
Inconsti-
Silêncio tucionali-
Lacunas
eloquente dade por
omissão
Não há Não há Não há
norma (por Existe Existe Existe norma (de norma infra-
um lapso) norma norma norma propósito) constitucio-
na CF na CF nal
que alguém deveria dar a última palavra (premissa cujo acerto ou desa-
certo será analisado adiante), quem estaria habilitado para tal? A resposta
tem consequências práticas das mais relevantes, mormente nas hipóteses
de “desacordos morais razoáveis”.
Para entender a essência dos desacordos morais razoáveis, figure-se
que uma mulher muçulmana decide banhar-se no mar, no Ocidente, ves-
tindo um burquíni (roupa que cobre quase toda a extensão do corpo, em
razão da fé islâmica). Na França, muito se debateu acerca da possibilidade
de proibir essa prática. Os proibicionistas alegavam que o gesto oprimia
as mulheres ocidentais. Os não proibicionistas defendiam a liberdade indi-
vidual de a mulher poder usar o burquíni. A propósito, a opinião do autor
que vos escreve é a de que qualquer pessoa, homem ou mulher, tem o
direito de banhar-se nas águas do oceano com a indumentária que lhe
aprouver, até mesmo com uma fantasia carnavalesca, o que se dirá com
uma roupa radicada na fé. Mulheres verdadeiramente livres vestem o que
acham por bem, inclusive, uma burca ou um burquíni. Seria mesmo irôni-
co que, na porção ocidental da Terra, se proibisse o excesso de roupa
nas mulheres, enquanto a porção oriental proibiria a “insuficiência” de
roupa fe-minina. Neste triste panorama, mulheres não seriam livres em
lugar algum do planeta, porquanto instaurada uma proibição ubíqua.
Com a dualidade de Yin e Yang, em um lado do globo, vedar-se-ia a falta
de roupa; no outro lado, proibir-se-ia a abundância de roupa. Nas duas
metades deste mundo, mulheres estariam se sujeitando a proibições
quanto ao que vestir. Ontolo-gicamente, isso aproximaria o Ocidente do
Oriente, pois ambos, em alguma medida, proibiriam roupas femininas: este
hemisfério, as sumárias; aquele, as excessivas. Seria o planeta a serviço de
uma proibição onipresente. Ora, é de elementar sabença que, desde que
cubram minimamente seus corpos, homens podem vestir o que desejam:
da batina eclesiástica à jocosa tanga do Tarzan; de um sisudo terno e
gravata a uma irreverente sunga verde li-mão. Por que não franquear
liberdade semelhante às mulheres? Um padre pode banhar-se nas águas
do oceano com a roupa que o caracteriza como sacerdote. Uma freira,
igualmente, deve ter a possibilidade de fruir o mes-mo contato com a
natureza, trajando a roupa que a identifica como tal. Se uma freira
católica pode tocar nas águas do mar, sem se desvencilhar da sua
essência religiosa, não há razão plausível para interditar esse compor-
tamento por parte de uma muçulmana. Pois bem. Apresentada a opinião
deste que vos fala, talvez seja de bom alvitre informar que o Conselho de
Estado Francês, que se situa no vértice do organograma da jurisdição ad-
ministrativa, decidiu (acertadamente) pela liberdade das mulheres. Porém,
a lição a ser extraída deste caso, que deve ser guardada pelo leitor, é a de
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Com a oportunidade
O legislador permite O STF, na ratio deci- de corrigir sua inter-
uma prática cultural dendi, aprecia as novas pretação constitucio-
que hostiliza animais razões nal, o STF decide se
irá se retratar
Teorias do
Teorias da Última Palavra
Diálogo Institucional
“Defendem que o circuito decisório possui um ponto
Em uma democracia, não
final dotado de autoridade por meio de uma decisão
há uma última palavra.
soberana” (Conrado Hübner. 2008, p. 14).
(.) (.) (…)
Supremacia do Eleva-se a “capacidade
Supremacia do Judiciá-
Parlamento: demo- epistêmica da democra-
rio: presunção de que
cracia (representação cia”. A separação dos po-
juízes não falham ou
eleitoral) e igualdade deres se torna sensível ao
falham menos.
(maioria). “bom argumento”.
A interação entre os
A interação entre os A interação entre os po-
Poderes é adversarial.
Poderes é adversarial. deres é deliberativa.