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Metodologias ativas de ensino-aprendizagem

TEMAS LIVRES FREE THEMES


na formação profissional em saúde: debates atuais

Active teaching-learning methodologies in health education:


current debates

Sandra Minardi Mitre 1


Rodrigo Siqueira-Batista 2
José Márcio Girardi-de-Mendonça 3
Neila Maria de Morais-Pinto 4
Cynthia de Almeida Brandão Meirelles 5
Cláudia Pinto-Porto 6
Tânia Moreira 7
Leandro Marcial Amaral Hoffmann 8

Abstract The vertiginous transformations of the Resumo As vertiginosas transformações das so-
contemporary societies have been raising ques- ciedades contemporâneas têm colocado em ques-
tions concerning aspects of professional educa- tão, de modo cada vez mais incisivo, os aspectos
tion. Such questions have been raised in a more relativos à formação profissional. Este debate ga-
and more incisive way. This debate gains a new nha contornos próprios no trabalho em saúde, na
shape when applied to health work, where theory medida em que a indissociabilidade entre teoria e
and practice cannot be dissociated, and where the prática, o desenvolvimento de uma visão integral
development of an integral vision of the human do homem e a ampliação da concepção de cuidado
being and the amplification of the concept care tornam-se prementes para o adequado desempe-
1
Faculdade de Ciências
Médicas de Minas Gerais,
are essential for a proper performance. Based on nho laboral. Com base nestas considerações, o ob-
Fundação Educacional Lucas these considerations, this article aims to discuss jetivo do presente artigo é discutir as principais
Machado. Alameda Ezequiel the main methodological transformations in the transformações metodológicas no processo de for-
Dias 275, Centro. 30130-110
Belo Horizonte MG. education process of health professionals, with em- mação dos profissionais de saúde, com ênfase na
sandra.minardi@fcmmg.br phasis to active teaching-learning methodologies. apreciação das metodologias ativas de ensino-
2
Centro Universitário Serra Key words Active teaching-learning methodol- aprendizagem.
dos Órgãos e Centro Federal
de Educação Tecnológica de ogies, Problem-based learning, Health work Palavras-chave Metodologias ativas de ensino-
Química de Nilópolis. aprendizagem, Problematização, Aprendizagem
3
Departamento de
baseada em problemas, Trabalho em saúde
Enfermagem, Universidade
Estadual de Montes Claros.
4
Departamento de
Enfermagem, Centro
Universitário do Leste de
Minas Gerais.
5
Hospital Maternidade
Carmela Dutra, Secretaria
Municipal de Saúde do Rio de
Janeiro.
6
Centro Municipal de Saúde
Lincoln de Freitas Filho,
Secretaria Municipal de
Saúde.
7
Departamento de Medicina,
Universidade Estadual de
Montes Claros.
8
VIGISUS/CVE/SES.
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Mitre, S. M. et al.

Introdução O grande desafio deste início de século está


na perspectiva de se desenvolver a autonomia
As discussões sobre método na cultura ocidental individual em íntima coalizão com o coletivo. A
são bastante antigas, ressurgindo no âmago da educação deve ser capaz de desencadear uma vi-
filosofia helênica — período clássico — na refle- são do todo — de interdependência e de trans-
xão de filósofos como Platão e Aristóteles. A acep- disciplinaridade —, além de possibilitar a cons-
ção originária de método diz respeito ao cami- trução de redes de mudanças sociais, com a con-
nho a ser seguido — do grego meta = atrás, em seqüente expansão da consciência individual e
seguida, através e hodós = caminho —, referin- coletiva. Portanto, um dos seus méritos está, jus-
do-se, por conseguinte, aos passos que deverão tamente, na crescente tendência à busca de méto-
ser dados para se atingir um lugar ou um fim. dos inovadores, que admitam uma prática pe-
Recorrer ao sentido etimológico de método tor- dagógica ética, crítica, reflexiva e transformado-
na-se bastante pertinente ao se considerar a edu- ra, ultrapassando os limites do treinamento pu-
cação como esse fim, especialmente, nos últimos ramente técnico, para efetivamente alcançar a
anos, nos quais vêm sendo amplamente debati- formação do homem como um ser histórico,
das as melhores veredas para a formação (e, aqui, inscrito na dialética da ação-reflexão-ação.
vale a pena recuperar o ideal grego de paidéia, ou Com base nessas considerações prelimina-
seja, a formação do cidadão para a vida na pólis) res, o objetivo do presente artigo é discutir as
de homens e mulheres capazes de viver adequa- principais transformações metodológicas — en-
damente em sociedade1, o que pressupõe a as- tendendo-se metodologia, por extensão de sen-
sunção de determinados papéis, com destaque tido, como sinônimo de método7 — no processo
para a atuação profissional, ou seja, os aspectos de formação dos profissionais de saúde, com
relacionados ao trabalho, como discutido por ênfase na apreciação das metodologias ativas de
Hegel e Marx. ensino-aprendizagem.
Mas por que tem se tornado imperioso re-
discutir os processos de ensino-aprendizagem
necessários à formação para o trabalho em saú- Fundamentos teóricos
de? A resposta a tal indagação passa pelo reco- das metodologias ativas
nhecimento das profundas modificações que
transparecem no mundo contemporâneo, caben- Historicamente, a formação dos profissionais de
do citar: saúde tem sido pautada no uso de metodologias
- a velocidade das transformações nas socie- conservadoras (ou tradicionais), sob forte influ-
dades laicas e plurais contemporâneas, em um ência do mecanicismo de inspiração cartesiana-
contexto em que a produção de conhecimento é newtoniana, fragmentado e reducionista8. Sepa-
extremamente veloz, tornando ainda mais pro- rou-se o corpo da mente, a razão do sentimento,
visórias as verdades construídas no saber-fazer a ciência da ética, compartimentalizando-se, con-
científico2; seqüentemente, o conhecimento em campos al-
- a perspectiva vigente, quase marca desse tem- tamente especializados, em busca da eficiência
po, de colocar em xeque os valores até então con- técnica8,9. Essa fragmentação do saber manifes-
siderados intocáveis, o que impõe uma profun- tou-se no aguçamento das subdivisões da uni-
da (e necessária) reflexão sobre a inserção do versidade em centros e departamentos e dos cur-
profissional de saúde nesse novo contexto3; sos em períodos ou séries e em disciplinas estan-
- a inequívoca influência dos meios de comu- ques. Nesse sentido, o processo ensino-aprendi-
nicação na construção/formatação do homem/ zagem, igualmente contaminado, tem se restrin-
profissional nesses primórdios do século XXI, gido, muitas vezes, à reprodução do conhecimen-
marcada por um genuíno bombardeio de ima- to, no qual o docente assume um papel de trans-
gens, as quais embotam as possibilidades de re- missor de conteúdos, ao passo que, ao discente,
flexão sobre a vida, a inserção no mundo e a cabe a retenção e repetição dos mesmos — em
própria práxis4; uma atitude passiva e receptiva (ou reproduto-
- a configuração de uma nova modalidade de ra) — tornando-se mero expectador, sem a ne-
organização do espaço-tempo social, as socieda- cessária crítica e reflexão9. Ao contrário, a passa-
des de controle, o que torna imperiosa a adoção gem da consciência ingênua para a consciência
de uma postura crítica sobre a inscrição do sujei- crítica requer a curiosidade criativa, indagadora
to no mundo — aqui incluído o trabalho — ca- e sempre insatisfeita de um sujeito ativo, que re-
racterizando um verdadeiro ato de resistência5,6. conhece a realidade como mutável10,11.
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No atual contexto social, no qual os meios de formar profissionais como sujeitos sociais com
comunicação estão potencializados pelo avanço competências éticas, políticas e técnicas e dotados
das novas tecnologias e pela percepção do mun- de conhecimento, raciocínio, crítica, responsabi-
do vivo como uma rede de relações dinâmicas e lidade e sensibilidade para as questões da vida e
em constante transformação, tem-se discutido a da sociedade, capacitando-os para intervirem em
necessidade de urgentes mudanças nas institui- contextos de incertezas e complexidades.
ções de ensino superior visando, entre outros As metodologias ativas estão alicerçadas em
aspectos, à reconstrução de seu papel social. um princípio teórico significativo: a autonomia,
Na área de saúde, surgem questionamentos algo explícito na invocação de Paulo Freire11. A
sobre o perfil do profissional formado, princi- educação contemporânea deve pressupor um
palmente, com a preocupação relativa à tendên- discente capaz de autogerenciar ou autogover-
cia à especialização precoce e ao ensino marcado, nar seu processo de formação. De fato, o termo
ao longo dos anos, por parâmetros curriculares autonomia é oriundo do grego — αuτονομια,
baseados no relatório de Flexner. A ênfase na de αuτοζ = próprio, e νoμοζ = leis — remetendo,
?

sólida formação em ciências básicas nos primei- originariamente, à idéia de autogoverno, tendo
?

ros anos de curso, a organização minuciosa da sido empregado no seio da democracia grega para
assistência médica em cada especialidade, a valo- indicar as formas de governo autárquicas — isto
rização do ensino centrado no ambiente hospi- é, a πoλιζ (pólis = cidade-estado)19. Sem embar-
talar enfocando a atenção curativa, individuali- go, a orientação do conceito de autonomia à con-
zada e unicausal da doença12-14 produziram um dição humana pode ser buscada em outro nicho
ensino dissociado do serviço e das reais necessi- antigo, o cristianismo primitivo20. Já nas primei-
dades do sistema de saúde vigente. ras comunidades cristãs, celebrava-se a igualda-
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- de entre os homens, na medida em que estes, por
nal - LDBEN - surge no cenário da educação su- terem sido criados como almas individuais, à
perior definindo, entre suas finalidades, o estí- imagem e semelhança do Pai, pertencem, em igual
mulo ao conhecimento dos problemas do mun- medida, ao plano e à obra de Deus21. Ademais,
do atual (nacional e regional) e a prestação de os humanos têm o livre-arbítrio para receber e
serviço especializado à população, estabelecendo aderir, ou não, aos ensinamentos do Cristo.
com ela uma relação de reciprocidade15. Tais prer- Se a autonomia pode ser buscada, sob um
rogativas foram reafirmadas pelas Diretrizes ponto de vista histórico-conceitual, entre as tra-
Curriculares, para a maioria dos cursos da área dições helênica e cristã22, será com o advento da
de saúde, acolhendo a importância do atendi- modernidade que o indivíduo, indiviso, se cons-
mento às demandas sociais com destaque para o tituirá como eu pessoal, capaz de conhecer o
Sistema Único de Saúde - SUS16,17. Neste momen- mundo (sujeito epistêmico) e de agir autonoma-
to, as instituições formadoras são convidadas a mente no âmbito da ética (sujeito moral), erigin-
mudarem suas práticas pedagógicas, numa ten- do os valores que nortearão o julgamento e a
tativa de se aproximarem da realidade social e de práxis em sua vida social23. Foram as coordena-
motivarem seus corpos docente e discente a tece- das espaço-temporais propícias — o humanis-
rem novas redes de conhecimentos. mo renascentista, a reforma protestante, a revo-
Considerando-se, ainda, que a graduação lução científica e a redescoberta do ceticismo an-
dura somente alguns anos, enquanto a atividade tigo — que permitiram a construção do indiví-
profissional pode permanecer por décadas e que duo moderno 24-26, um necessário produto da
os conhecimentos e competências vão se trans- modernidade burguesa e protestante27. A conso-
formando velozmente, torna-se essencial pensar lidação desse movimento se dá no bojo do pro-
em uma metodologia para uma prática de educa- jeto da Aufklärung (Iluminismo), ganhando sua
ção libertadora, na formação de um profissional expressão máxima na formulação moral siste-
ativo e apto a aprender a aprender. Segundo Fer- mática de Kant, na Fundamentação da metafísica
nandes e colaboradores18, o aprender a aprender dos costumes e na Crítica da razão prática28,29.
na formação dos profissionais de saúde deve O ensinar exige respeito à autonomia e à dig-
compreender o aprender a conhecer, o aprender a nidade de cada sujeito, especialmente no âmago
fazer, o aprender a conviver e o aprender a ser, de uma abordagem progressiva, alicerce para
garantindo a integralidade da atenção à saúde com uma educação que leva em consideração o indi-
qualidade, eficiência e resolutividade. Portanto, as víduo como um ser que constrói a sua própria
abordagens pedagógicas progressivas de ensino- história30. Esse respeito só emerge no âmago de
aprendizagem vêm sendo construídas e implicam uma relação dialética na qual os atores envolvi-
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Mitre, S. M. et al.

dos — docente e discente — se reconhecem mu- — aproximação metódica — para confrontar,


tuamente (e aqui se pode recuperar a dialética do questionar, conhecer, atuar e re-conhecê-lo10,11.
senhor e do escravo de Hegel), de modo a não O ato de aprender deve ser, portanto, um
haver docência sem discência, na medida em que processo reconstrutivo, que permita o estabele-
as duas se explicam, e seus sujeitos, apesar das cimento de diferentes tipos de relações entre fa-
diferenças, não se reduzem à condição de objeto tos e objetos, desencadeando ressignifica-
um do outro. ções/reconstruções e contribuindo para a sua
A questão que se impõe, ato contínuo, diz utilização em diferentes situações35. De acordo
respeito ao modo de concretização desse reco- com Coll36, existem duas condições para a cons-
nhecimento à autonomia do discente30. E, uma trução da aprendizagem significativa: a existên-
vez mais, pode-se responder com Freire, ao se cia de um conteúdo potencialmente significativo
propor um processo ensino-aprendizagem que e a adoção de uma atitude favorável para a apren-
pressuponha o respeito à bagagem cultural do dizagem, ou seja, a postura própria do discente
discente, bem como aos seus saberes construí- que permite estabelecer associações entre os ele-
dos na prática comunitária. Isto só se torna pos- mentos novos e aqueles já presentes na sua es-
sível na medida em que o docente tenha como trutura cognitiva. Ao contrário, na aprendiza-
características principais a humildade reconhe- gem mecânica, não se consegue estabelecer rela-
cendo sua finitude, os limites de seu conhecimen- ções entre o novo e o anteriormente aprendido.
to, o ganho substantivo advindo da sua intera- Ademais, a aprendizagem significativa se estru-
ção com o estudante e a importância de sua ava- tura, complexamente, em um movimento de
liação pelo aprendiz — e a amorosidade — espe- continuidade/ruptura. O processo de continuida-
cialmente dirigida ao discente e ao processo de de é aquele no qual o estudante é capaz de relaci-
ensinar, a partir da adoção de uma atitude de onar o conteúdo apreendido aos conhecimentos
compaixão. A compaixão deve ser entendida prévios, ou seja, o conteúdo novo deve apoiar-se
como acolhimento radical, pressupondo o des- em estruturas cognitivas já existentes, organiza-
locamento do eu em direção ao outro, a partir de das como subsunçores. O processo de ruptura,
uma deferência incondicional à inserção deste por outro lado, instaura-se a partir do surgi-
último no mundo. Afinal, ser compassivo não mento de novos desafios, os quais deverão ser
significa adotar um posicionamento paternalis- trabalhados pela análise crítica, levando o apren-
ta, fundamentado em um mero sentimento de diz a ultrapassar as suas vivências – conceitos
pena ou comiseração, como compreendido por prévios, sínteses anteriores e outros –, tensão que
alguns autores 31, mas, sim, desenvolver e prati- acaba por possibilitar a ampliação de suas pos-
car um amplo respeito à existência32. sibilidades de conhecimento37.
Ter sempre diante dos olhos — e dentro do As metodologias ativas utilizam a problema-
coração — o respeito à autonomia parece ser o tização como estratégia de ensino-aprendizagem,
melhor modo para a compreensão, por parte do com o objetivo de alcançar e motivar o discente,
binômio docente/discente, do processo de pro- pois diante do problema, ele se detém, examina,
dução, expressão e apreensão do conhecimento, reflete, relaciona a sua história e passa a ressigni-
dentro de uma perspectiva de transformação da ficar suas descobertas. A problematização pode
realidade, afinal, conhecer é transformar. levá-lo ao contato com as informações e à pro-
dução do conhecimento, principalmente, com a
finalidade de solucionar os impasses e promover
As metodologias ativas: o seu próprio desenvolvimento. Ao perceber que
revendo estratégias e papéis a nova aprendizagem é um instrumento necessá-
rio e significativo para ampliar suas possibilida-
A atividade desenvolvida com o propósito de des e caminhos, esse poderá exercitar a liberdade
ensinar deve ser apreciada por todos aqueles que e a autonomia na realização de escolhas e na to-
dela participam33. A aprendizagem que envolve a mada de decisões38.
auto-iniciativa, alcançando as dimensões afeti- Zanotto 39 discute a problematização em
vas e intelectuais, torna-se mais duradoura e só- Dewey, Saviani e Freire. Para o primeiro, é enfatiza-
lida34. Nessa perspectiva, a produção de novos do o sujeito ativo, que precisa ter uma situação
saberes exige a convicção de que a mudança é autêntica de experiência, com propósitos defini-
possível, o exercício da curiosidade, da intuição, dos, interessantes e que estimulem o pensamento.
da emoção e da responsabilização, além da ca- Após observar a situação, irá buscar e utilizar as
pacidade crítica de observar e perseguir o objeto informações e instrumentos mais adequados, de-
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vendo o resultado do trabalho ser concreto e com- tes, desestabiliza-se o modelo tradicional das es-
provado por meio de sua aplicação prática. Para colas e, conseqüentemente, se provoca a intro-
Saviani, a noção do problema se apresenta como dução de outras mudanças fundamentais.
em Dewey, porém a busca da resposta é identifi- O estudante precisa assumir um papel cada
cada com a reflexão filosófica, que impõe requisi- vez mais ativo, descondicionando-se da atitude
tos de radicalidade, rigor e globalidade rela- de mero receptor de conteúdos, buscando efeti-
cionados dialeticamente. Já em Freire, a ação de vamente conhecimentos relevantes aos proble-
problematizar enfatiza a práxis, na qual o sujeito mas e aos objetivos da aprendizagem. Iniciativa
busca soluções para a realidade em que vive e o criadora, curiosidade científica, espírito crítico-
torna capaz de transformá-las pela sua própria reflexivo, capacidade para auto-avaliação, coo-
ação, ao mesmo tempo em que se transforma. peração para o trabalho em equipe, senso de res-
Nessa ação, ele detecta novos problemas num ponsabilidade, ética e sensibilidade na assistência
processo ininterrupto de buscas e transformações. são características fundamentais a serem desen-
De acordo com Berbel40, na problematização, volvidas em seu perfil42,45.
o sujeito percorre algumas etapas e, nesse proces- O docente nessa perspectiva, denominado
so, irá refletir sobre a situação global de uma rea- tutor - aquele que defende, ampara e protege46 -,
lidade concreta, dinâmica e complexa, exercitan- necessita desenvolver novas habilidades, como a
do a práxis para formar a consciência da práxis. vontade e a capacidade de permitir ao discente
Problematizar, portanto, não é apenas apresen- participar ativamente de seu processo de apren-
tar questões, mas, sobretudo, expor e discutir os dizagem. Como facilitador do processo ensino-
conflitos inerentes e que sustentam o problema39. aprendizagem, deve se perguntar: (1) como, por
Para Freire41, o núcleo temático do problema não que e quando se aprende; (2) como se vive e se
deve ser explícito. Contudo, deve dar possibilida- sente a aprendizagem; e (3) quais as suas conse-
des significativas de análise, evitando-se enigmá- qüências sobre a vida. A disposição para respei-
ticas e/ou rápidas conclusões, o que chamou de tar, escutar com empatia e acreditar na capacida-
certo jogo de adivinhação, quebra cabeças e/ou de de potencial do discente para desenvolver e apren-
simplificação, no dirigismo massificante. der, se lhe for permitido um ambiente de liberda-
O processo ensino-aprendizagem é comple- de e apoio, são essenciais nesta nova postura47,48.
xo, apresenta um caráter dinâmico e não aconte- Em relação ao conhecimento especializado do
ce de forma linear como uma somatória de con- tutor e seu papel de facilitador, Neville49 pontua a
teúdos acrescidos aos anteriormente estabeleci- existência de controvérsias, enfatizando que al-
dos38,42. Exige ações direcionadas para que o dis- guns autores priorizam as habilidades nos pro-
cente aprofunde e amplie os significados elabo- cessos de facilitação do aprendizado em detri-
rados mediante sua participação, enquanto re- mento ao conhecimento específico. Entretanto,
quer do docente o exercício permanente do tra- afirma que a contradição é apenas aparente, pois
balho reflexivo, da disponibilidade para o acom- existem evidências apontando para a considera-
panhamento, da pesquisa e do cuidado, que pres- ção de que uma interação equilibrada entre eles é
supõe a emergência de situações imprevistas e ideal na construção do seu perfil.
desconhecidas14. O ato de ensinar-aprender deve Nesse mesmo movimento, Alves50 diferencia
ser um conjunto de atividades articuladas, nas educador de professor, afirmando que, enquanto
quais esses diferentes atores compartilham, cada o educador (pessoa) valoriza a interioridade na
vez mais, parcelas de responsabilidade e com- relação com o estudante, suas paixões, esperan-
prometimento. Para isso, é essencial a superação ças, tristezas, sonhos e história, o professor (fun-
da concepção bancária, na qual um faz o depósi- cionário) — um elemento administrado — valo-
to de conteúdos, ao passo que o outro é obriga- riza o crédito obtido pelo aluno na disciplina, jul-
do a memorizá-los, ou da prática licenciosa, sem gando-o de acordo com um sistema opressor. O
limite, espontaneista de indivíduos entregues a si professor ou educador, de acordo com Demo35,
mesmo e à própria sorte, num vazio de quem faz deve ser um reconstrutor do conhecimento, um
e desfaz a seu gosto. Ao contrário, a educação pesquisador, não só sob o ponto de vista da ciên-
libertadora é uma prática política, reflexiva e ca- cia e da tecnologia, mas também da humanização
paz de produzir uma nova lógica na compreen- na educação. Precisa cuidar da aprendizagem do
são do mundo: crítica, criativa, responsável e aluno e da formação crítica e criativa de um cida-
comprometida41,43. Consoante o proposto por dão. Freire10 denuncia a prática anti-humanista
Feuerwerker44, ao estabelecer posturas mais de- do educador pragmático neoliberal, chamando-o
mocráticas nas relações entre docentes e discen- de treinador, exercitador de destreza e transferidor
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Mitre, S. M. et al.

de saberes, que articula uma educação insensivel- lizada, bancária e estática, mas numa construção
mente tecnicista e coloca o educando em uma dialógica55.
posição de acomodação. Afirma, porém, que o Na formação na área de saúde, surge tam-
educador formador permite uma prática educaci- bém o conceito de aprender fazendo, o qual, se-
onal viva, alegre, afetiva, extremosa, com todo gundo Fernandes e colaboradores18, pressupõe
rigor científico e o domínio técnico necessários, que se repense a seqüência teoria J prática na
mas sempre em busca da transformação. produção do conhecimento, assumindo que esta
Nesse sentido, qualquer estratégia de inova- ocorre por meio da ação-reflexão-ação. Reafir-
ção deve levar em conta suas práticas de avalia- ma-se, assim, a idéia de que o processo ensino-
ção, integrá-las à reflexão, para transformá-las51. aprendizagem precisa estar vinculado aos cenári-
A avaliação precisa ser, antes de tudo, processual os da prática e deve estar presente ao longo de
e formativa para a inclusão, autonomia, diálogo toda a carreira. Assumir esse novo modelo na
e reflexões coletivas, na busca de respostas e ca- formação de profissionais de saúde implica o en-
minhos para os problemas detectados. Não pune, frentamento de novos desafios, como a constru-
nem estigmatiza, mas oferece diretrizes para se ção de um currículo integrado, em que o eixo da
tomar decisões e definir prioridades. formação articule a tríade prática-trabalho-cui-
Na maioria dos cursos da área de saúde, as dado, rompendo a polarização individual-coleti-
diretrizes curriculares sugerem a avaliação como vo e biológico-social, e direcionando-se para uma
uma atividade permanente e indissociada da di- consideração de interpenetração e transversalida-
nâmica ensino-aprendizagem, a qual deve acom- de13,44,56,57. Com efeito, o currículo integrado é re-
panhar os avanços dos discentes e reconhecer a sultado de uma filosofia político-social e de uma
tempo suas dificuldades, para intervir com sensi- estratégia didática, implicando educar cidadãos
bilidade16. Ademais, a avaliação deve ser um pro- com capacidade para o pensamento crítico13.
cesso amplo, que provoque uma reflexão crítica Em muitas experiências de transformação do
sobre a prática, no sentido de captar seus pro- processo de formação profissional, a participa-
gressos, suas resistências, suas dificuldades e pos- ção dos profissionais dos serviços e da comuni-
sibilitar deliberações sobre as ações seguintes52-54. dade (usuários) na definição de conteúdos e na
A avaliação inovadora deve se fundamentar orientação dos trabalhos a serem desenvolvidos
na colaboração, no empenho com a nova for- com o discente tem sido essencial para que essas
mação. Para isso, é preciso um trabalho planeja- novas práticas sejam construídas. E novas práti-
do e executado com a participação de todos os cas incluem uma nova concepção no planejamen-
envolvidos. Nesse propósito, instrumentos de to e construção de conteúdos e objetivos educa-
acompanhamento do processo ensino-aprendi- cionais, que, segundo Zanolli58, também preci-
zagem têm sido construídos, ultrapassando o sam ser transformadas:
modelo tradicional de simples verificação de con- - de orientada por conteúdos e objetivos mal
teúdos acumulados e memorizados e puramente definidos, para orientada para competências bem-
voltados à esfera da cognição52, para um proces- definidas e baseadas nas necessidades de saúde das
so mais abrangente orientado a todos os seus pessoas;
aspectos, inclusive ao próprio programa e à ati- - da transmissão de informações e pura utili-
vidade docente. zação da memória (decorar), para a construção do
Os registros, a auto-avaliação e o diálogo têm conhecimento e desenvolvimento de habilidades e
sido utilizados como estratégias norteadoras desse atitudes para resolver problemas, considerando
processo. O docente pode registrar o desenvolvi- experiências anteriores de aprendizagem, cultu-
mento do discente no que se refere à autonomia, rais e de vida;
à criatividade, à capacidade de organização, à sua - de professores capacitados somente em con-
participação e a condições de elaboração, bem teúdos para professores capacitados também em
como ao seu relacionamento com o grupo e sua educação médica;
comunicação. Na auto-avaliação, pode-se rever - de ensinar-aprender com observação passiva
a metodologia utilizada na prática pedagógica, dos estudantes, para ao aprender a aprender, com
enquanto o discente irá refletir sobre si mesmo e participação ativa dos aprendizes, ou seja, do cen-
a construção do conhecimento realizado53. O trado no professor para centrado no estudante;
momento do diálogo servirá para reflexão sobre - de humilhação e intimidação dos estudantes
a relação e a interação entre docente e discente, pelos docentes, para o respeito mútuo;
no ato comum de conhecer e reconhecer o objeto - de clássica inquisição do professor “como você
de estudo, agora não mais numa relação vertica- ainda não sabe?”, para “o que você ainda não sabe?”,
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ajudando o estudante a identificar e superar hia- tadora de Paulo Freire, nos princípios do mate-
tos de aprendizagem; rialismo histórico-dialético e no construtivismo
- de primeiro a teoria e depois a prática (so- de Piaget38.
mente nos últimos anos do curso), para um pro- Essa concepção pedagógica baseia-se no au-
cesso integrado de ação-reflexão-ação, desde o prin- mento da capacidade do discente em participar
cípio do curso; como agente de transformação social, durante o
- de uma atenção episódica, centrada na doen- processo de detecção de problemas reais e de bus-
ça, para uma atenção contínua, centrada no cui- ca por soluções originais47,48. Marcada pela di-
dado das pessoas, com o estabelecimento de víncu- mensão política da educação e da sociedade, o
los afetivos com elas; ensino pela problematização procura mobilizar o
- de uma abordagem puramente psicológica, potencial social, político e ético do estudante, para
para uma abordagem biológica, psicológica e soci- que este atue como cidadão e profissional em for-
ocultural; mação38. Bordenave e Pereira47,48 utilizam o dia-
- da utilização do paciente puramente como grama, denominado Método do Arco por Charles
objeto de prática dos estudantes, para a participa- Maguerez, para representá-lo, o qual é constituí-
ção consentida e informada do paciente no proces- do pelos seguintes movimentos (Figura 1): ob-
so de ensino-aprendizagem com respeito a sua dig- servação da realidade, pontos-chave, teorização,
nidade e privacidade; hipóteses de solução e aplicação a realidade.
- do uso de campos de prática predominante- A primeira etapa é da observação da realida-
mente hospitalares, para cenários de ensino-apren- de. O processo ensino-aprendizagem está relacio-
dizagem-assistência em que os estudantes sejam nado com um determinado aspecto da realida-
inseridos como membros ativos; de, o qual o estudante observa atentamente. Nessa
- de avaliação praticamente somativa/puniti- observação, ele expressa suas percepções pesso-
va no final das unidades, estágios e disciplinas, para ais, efetuando, assim, uma primeira leitura sin-
uma avaliação preferencialmente formativa, com crética da realidade40, 47,48.
constantes feedbacks. Na segunda etapa, pontos-chave, o estudante
Essas linhas gerais de pensamento — lídima realiza um estudo mais cuidadoso e, por meio da
revisão de estratégias e papéis — podem se tor- análise reflexiva, seleciona o que é relevante, ela-
nar ação de díspares modos, como será discuti- borando os pontos essenciais que devem ser abor-
do a seguir. dados para a compreensão do problema40, 47,48.
Na terceira etapa, o estudante passa à teori-
zação do problema ou à investigação propria-
Da episteme à práxis: problematização mente dita. As informações pesquisadas preci-
e aprendizagem baseada em problemas sam ser analisadas e avaliadas, quanto à sua re-
levância para a resolução do problema. Nesse
A metodologia ativa tem permitido a articulação
entre a universidade, o serviço e a comunidade,
por possibilitar uma leitura e intervenção con-
sistente sobre a realidade, valorizar todos os ato-
res no processo de construção coletiva e seus di-
ferentes conhecimentos e promover a liberdade
no processo de pensar e no trabalho em equi-
pe44,56. Nesse sentido, dois instrumentos vêm sen-
do reconhecidos como ativadores da integração
ensino e serviço de saúde: o ensino pela proble-
matização e a organização curricular em torno
da Aprendizagem Baseada em Problemas – ABP.
O ensino pela problematização ou ensino
baseado na investigação (Inquiry Based Learning)
teve início em 1980, na Universidade do Havaí,
como proposta metodológica que buscava um
currículo orientado para os problemas, definin-
do a maneira como os estudantes aprendiam e
quais habilidades cognitivas e afetivas seriam
adquiridas. Fundamenta-se na pedagogia liber- Figura 1. Arco de Maguerez47.
2140
Mitre, S. M. et al.

momento, o papel do professor será um impor- perturbações intelectuais, com forte motivação
tante estímulo para a participação ativa do estu- prática e estímulo cognitivo para evocar as refle-
dante. Se a teorização é adequada, o aluno atinge xões necessárias à busca de adequadas escolhas e
a compreensão do problema nos aspectos práti- soluções criativas, podendo-se estabelecer uma
cos ou situacionais e nos princípios teóricos que aproximação à proposta educativa formulada
o sustentam40, 47,48. por John Dewey60-62. Ademais, a ABP se inscreve
Na confrontação da realidade com sua teori- em uma perspectiva construtivista — relaciona-
zação, o estudante se vê naturalmente movido a da, especialmente, aos referenciais da teoria pia-
uma quarta etapa: a formulação de hipóteses de getiana da equilibração e desequilibração cogni-
solução para o problema em estudo. A originalida- tiva63 —, a qual considera que o conhecimento
de e a criatividade serão estimuladas e o estudante deve ser produzido a partir da interseção entre
precisará deixar sua imaginação livre e pensar de sujeito e mundo, como amplamente problema-
maneira inovadora. Deve, ainda, verificar se suas tizado por teóricos como Paulo Freire10,41.
hipóteses de solução são aplicáveis à realidade, e o Com efeito, podem ser pontuados como prin-
grupo pode ajudar nessa confrontação40, 47,48. cipais aspectos da ABP: (1) a aprendizagem sig-
Na última fase, a aplicação à realidade, o es- nificativa; (2) a indissociabilidade entre teoria e
tudante executa as soluções que o grupo encon- prática; (3) o respeito à autonomia do estudan-
trou como sendo mais viáveis e aprende a gene- te; (4) o trabalho em pequeno grupo; (5) a edu-
ralizar o aprendido para utilizá-lo em diferentes cação permanente; (6) a avaliação formativa.
situações. Assim, poderá, também, discriminar Como pôde ser observado nesses breves co-
em que circunstâncias não são possíveis ou con- mentários, um dos aspectos que mais chamam a
venientes sua aplicação, exercitando tomadas de atenção diz respeito à capacidade de a ABP per-
decisões e aperfeiçoando sua destreza40,47,48. mitir a formação de um estudante apto a cons-
Ao completar o Arco de Maguerez, o estudante truir o seu próprio conhecimento e de trabalhar
pode exercitar a dialética de ação-reflexão-ação, em grupo de modo articulado e fecundo. Ade-
tendo sempre como ponto de partida a realidade mais, a perspectiva de não-completude da for-
social40. Após o estudo de um problema, podem mação (expressa no conceito/práxis de educação
surgir novos desdobramentos, exigindo a inter- permanente) e a estruturação do processo de
disciplinaridade para sua solução, o desenvolvi- avaliação formativa e contínua — os quais es-
mento do pensamento crítico e a responsabilida- maecem, de fato, as diferenças entre as vidas uni-
de do estudante pela própria aprendizagem38. versitária e profissional (Figura 2) — parecem
A ABP foi primeiramente instituída na Facul- fazer parte de um sistema aberto de organização
dade de Medicina da Universidade de McMaster do processo ensino-aprendizagem, no qual se
(Canadá), na década de 1960. No Brasil, as insti- abre mão, definitivamente, da noção de termi-
tuições pioneiras na implantação dessa modali- nalidade da formação.
dade de estrutura curricular foram a Faculdade Novos elementos tecnológicos no ensino não
de Medicina de Marília, em 1997, e o Curso de garantem por si a ruptura de velhos paradigmas.
Medicina da Universidade Estadual de Londrina, É necessário que se transformem as concepções
em 1998. No Estado do Rio de Janeiro, o primei- inerentes ao processo ensino-aprendizagem para
ro curso a utilizar a ABP foi o da Fundação Edu- ressignificá-las em uma perspectiva emancipado-
cacional Serra dos Órgãos –FESO –, em 2005. ra da educação10,11. Na adoção de qualquer um
A necessidade de romper com a postura de desses instrumentos metodológicos, o currículo
mera transmissão de informações, na qual os deve se configurar de maneira integrada e, ao se
estudantes assumem o papel de receptáculos pas- tratar de maneira integral temas e conteúdos, in-
sivos, preocupados apenas em memorizar con- terrompe-se o ciclo da fragmentação e do reduci-
teúdos e recuperá-los quando solicitado — ha- onismo do ensino tradicional, ao mesmo tempo
bitualmente, por ocasião de uma prova — é um em que se facilita a integração ensino-serviço e a
dos principais pontos de partida que explicam a perspectiva interdisciplinar13,56, 57.
ascensão da ABP no ensino médico atual59. De Nessa perspectiva, empreender mudanças
fato, um dos aspectos cruciais da ABP é o pro- amplas e profundas no processo ensino-apren-
cesso educativo centrado no estudante, permi- dizagem e na formação profissional de saúde sig-
tindo que este seja capaz de se tornar maduro, nifica transformar a relação entre docente e dis-
adquirindo graus crescentes de autonomia. cente, as diversas áreas e as disciplinas, enfim,
Na ABP, parte-se de problemas ou situações entre a universidade e a comunidade. Além disso,
que objetivam gerar dúvidas, desequilíbrios ou pressupõe mudanças na própria estrutura e or-
2141

Ciência & Saúde Coletiva, 13(Sup 2):2133-2144, 2008


Vida Vida Vida pós-universitária (profissional)
pré-universitária universitária

Δt = 18 anos Δt = 6 anos Δt = 40 anos ou mais

evolução (e ampliação) do conhecimento científico


X

Figura 2. Tempo, educação e trabalho: o caso do ensino médico. Conforme Venturelli J59 e Siqueira-Batista R6.

ganização da universidade, que precisa tornar-se ciência – supostamente – neutra, mas que tem
um fórum de debate e negociação permanente de servido apenas a um poder que oprime41,64,65. A
concepções e representações da realidade, no qual educação deve ser um ato coletivo, solidário, com-
o conhecimento é compartilhado44,56. prometido — um ato de amor e uma atitude de
O discente deve ser reconhecido como um compaixão — que não pode ser imposto e nem
indivíduo capaz de construir, modificar e inte- deixado à própria sorte. É uma tarefa de troca
grar idéias se tiver a oportunidade de interagir entre pessoas e, portanto, não o resultado de um
com outros atores, com objetos e situações que depósito de conhecimentos, de um iluminado em
exijam o seu envolvimento. É inegável, também, um obscuro e, tampouco, o descaso licencioso e
a importância da intervenção e da mediação do injustificado do faz-de-conta no ensino10, 11, 41.
docente, assim como a troca com os pares na A proposta de uma prática pedagógica ino-
confrontação de modelos e expectativas. Todos vadora é um ponto de partida para o desconhe-
precisam buscar a transformação nas relações cido, representando, muitas vezes, uma ameaça
de poder que se estabeleceram e que se mantêm, ao posto conquistado. O desconhecido abre, po-
aparentemente, alheias e independentes dos nú- rém, novos horizontes e possibilidades de trans-
cleos de sentido da universidade44,56. formação. A participação coletiva e democrática
Novamente em Freire55, uma alternativa se- é fundamental na implantação de qualquer mu-
gura para eliminar as fronteiras entre esses dife- dança, já que todos os sujeitos estão interligados
rentes atores é o diálogo, que funciona como um em uma rede. A discussão em torno da transfor-
potencializador da elaboração de conflitos e per- mação é a pedra filosofal do processo. A reflexão
mite o trabalho coletivo. O resgate da palavra e coletiva, o diálogo, o reconhecimento do contex-
da escuta potencializa a mudança. Entretanto, to e de novas perspectivas são a base para a re-
somente por meio da disponibilidade e do res- construção de novos caminhos, na busca pela
peito pelo potencial de cada ator será possível integralidade entre corpo e mente, teoria e práti-
uma verdadeira transformação. Com efeito, ao ca, ensino e aprendizagem, razão e emoção, ciên-
aprender a conviver com os limites, poder-se-á cia e fé, competência e amorosidade. Somente por
transformá-los em desafios, mas será preciso meio de uma prática reflexiva, crítica e compro-
enfrentá-los para superá-los. Aquele que enfren- metida pode-se promover a autonomia, a liber-
ta o desafio de desejar transformar o ensino en- dade, o diálogo e o enfrentamento de resistências
frenta, também, o desafio de promover a sua e de conflitos.
própria transformação35. Uma educação voltada para as relações so-
ciais emergentes deve ser capaz de desencadear
uma visão do todo, de rede, de transdisciplinari-
Considerações finais dade e de interdependência — as quais devem ser
levadas a sério, especialmente em um contexto
A educação imposta funciona como um instru- de emergência dos novos referenciais da comple-
mento de perpetuação da desigualdade, que ocul- xidade, do pensamento sistêmico e da ecologia
ta a realidade e aparece simplesmente como uma profunda, genuína aproximação entre o Ociden-
questão técnica sustentada pelos princípios da te e o Oriente66-70 — e possibilitar a formação de
2142
Mitre, S. M. et al.

um discente autônomo, capaz de construir uma dade/eqüidade e da fraternidade/compaixão, a


aprendizagem significativa na ação-reflexão- despeito de parecer utópica — mas o que é a uto-
ação. Dessa maneira, podem-se alcançar novos pia senão aquilo que faz caminhar? — permite
caminhos, em uma perspectiva de composição que se repense o processo de reconstrução da
das jornadas individual e coletiva, aceitando o história e do próprio homem, a partir do reco-
desafio de reconstruir valores significativos como nhecimento de seu lugar no mundo, privilegiado
o cuidado, a solidariedade, a amizade, a tolerân- pela possibilidade de reflexão, mas radicado na
cia e a fraternidade. igualdade em relação a todos os seres viventes,
A prática pedagógica democrática fundada pelos quais se deve desenvolver uma ampla e pro-
nos princípios da liberdade/autonomia, da igual- funda responsabilidade...

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