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José Rubens Morato Leite | Flávia França Dinnebier ESTADO DE DIREITO ECOLÓGICO: Conceito, Conteúdo e Novas Dimensões para

údo e Novas Dimensões para a Proteção da Natureza

ESTADO DE DIREITO ECOLÓGICO: Conceito, Conteúdo e Novas


Dimensões para a Proteção da Natureza
Copyright © by
CONSELHO EDITORIAL DA EDITORA
Alexandra Aragão. Ana Maria Moreira Marchesan. Ana Paula Rengel Gonçalves. Andreas Krell. PLANETA VERDE MEMBROS
Annelise Monteiro Steigleder. Anny Viana Falcão. Antonio Carlos Wolkmer.
Antonio Souza Prudente. Belisa Bettega. Carina Costa de Oliveira. Carlos Peralta.
Carolina Medeiros Bahia. Christina Voigt. Débora Ferrazzo. Diogo Andreoloa Serraglio.
Elena de Lemos Pinto Aydos. Eliane Moreira. Maria de Fátima S. Wolkmer.
1. José Rubens Morato Leite 30. Marcia Dieguez Leuzinger
Fernanda de Salle Cavedon Capdeville. Flávia França Dinnebier. Gabriel Coutinho. Gabriel Edler.
2. Antonio Herman Benjamin 31. Carlos Teodoro José
Gerd Winter. Germana Parente Neiva Belchior. Giorgia Sena.
3. José Eduardo Ismael Lutti Hugueney Irigaray
Heline Sivini Ferreira. Iasna Chaves Viana. Ines Virgínia Prado Soares.
4. Kamila Guimarães de Moraes 32. Patryck Araujo Ayala
Ingo Wolfgang Sarlet. João Paulo Rocha de Miranda. José Rubens Morato Leite.
5. Solange Teles da Silva 33. Ubiratan Cazetta
Kamila Pope. Karin Kässmayer. Luiz Ferrua. Márcia Leuzinger.
6. Heline Sivini Ferreira 34. Jose Heder Benatti
Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira. Marina Demaria Venâncio.
7. Ana Maria Nusdeo 35. Fernando Reverendo Vidal
Matheus Bernardino da Luz. Melissa Ely Melo. Natália Jodas. Paula Galbiatti Silveira.
8. Tatiana Barreto Serra Akaoui
Pedro Henrique Saad Messias de Souza. Reginaldo Pereira. Silvana Winckler.
9. Luiz Fernando Rocha 36. Guilherme Jose Purvin de
Solange Teles da Silva. Tiago Fensterseifer.
10. Eladio Luiz da Silva Lecey Figueiredo
11. Sílvia Cappelli 37. Annelise Monteiro Steigleder
Todos os direitos reservados.
12. Paula Lavratti 38. Ana Maria Moreira
13. Maria Leonor Paes Cavalcanti Marchesan
COORDENADORES
Ferreira 39. Carolina Medeiros Bahia
José Rubens Morato Leite
14. Patrícia Amorim Rego 40. Danielle de Andrade Moreira
Flávia França Dinnebier
15. Marcelo Henrique Guimarães 41. Elizete Lanzoni Alves
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Guedes 42. Fernando Cavalcanto
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 16. Patrícia Faga Iglecias Lemos Walcacer
17. Alexandre Lima Raslan 43. Melissa Ely Melo
D583e Dinnebier, Flávia França (Org.). 18. Vanêsca Buzelato Prestes 44. Nicolao Dino de Castro e
Estado de Direito Ecológico: Conceito, Conteúdo e Novas Dimensões para 19. Álvaro Luiz Valery Mirra Costa Neto
a Proteção da Natureza./ Flávia França Dinnebier (Org.); José Rubens 20. Marga Inge Barth Tessler 45. Ricardo Stanziola Vieira
Morato (Org.); - São Paulo : Inst. O direito por um Planeta Verde, 2017. 21. Jarbas Soares Junior 46. Rogério Portanova
924 pp.: Il.: 22. Sandra Cureau 47. Vladimir de Passos de Freitas
23. Giorgia Sena Martins 48. Zenildo Bodnar
ISBN 978-85-63522-41-2
24. Dalila de Arêa Leão Sales e 49. Nelson Roberto Bugalho
1. Direito Ambiental. 2. Direito e Ecologia. I. Dinnebier, Flávia França (Org.) Silva 50. Marcelo Goulart
II. Morato, José Rubens (Org.) III. Título 25. Analúcia de Andrade 51. Letícia Albuquerque
Hartmann 52. Claudia Lima Marques
CDD 341.34
26. Eliane Moreira 53. Gilberto Passos de Freitas
27. Alexandra Faccioli Martins 54. Marcelo Abelha Rodrigues
28. Andrea Lazzarini 55. Branca Martins da Cruz
29. Ivan Carneiro Castanheiro

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O ESTADO DE DIREITO ECOLÓGICO Agora, o status quo mudou radicalmente. Os seres humanos
NO ANTROPOCENO E OS LIMITES DO são agora a principal força que molda e transforma o Planeta,
PLANETA mais profundamente do que vulcões, terramotos ou tufões.
Ao longo dos últimos séculos, a ciência reuniu conheci-
THE ECOLOGICAL RULE OF LAW IN THE
mentos significativos sobre os processos bio-físico-geo-quími-
ATOPOCENE AND THE PLANETARY BOUNDARIES
cos da Terra a ponto de começar a compreender as inter-rela-
Alexandra Aragão2 ções mais complexas entre o solo, o ar, a água, a biodiversidade
Resumo: A relação entre a evolução para um novo paradigma e os seres humanos. Atualmente, o objetivo de preservar o
científico (o Antropoceno) e o surgimento do novo Estado Ecológico sistema terrestre num determinado estado depende do Ho-
de Direito. Conceito e obrigações do Estado Ecológico de Direito no mem, mais do que nunca. Muito especificamente, e antes de
Antropoceno. O papel do Direito. O sistema terrestre como objeto mais, depende da ciência e da tecnologia. Mas não depende
de proteção jurídica pelo novo Estado e como património mundial.
menos da sociedade. Estilos de vida e níveis de consumo con-
Exemplo de decisões judiciais tipicamente antropocéncias.
dicionam tanto o impacte do Homem sobre o sistema terrestre
Palavras-chave: Antropoceno; limites do planeta; obrigações de como o número de pessoas que povoam o Planeta. E estilos de
resultado
vida são mais do que categorias vagas ou conceitos abstratos
Abstract: usados para culpabilizar sociedades industrializadas pelo es-
The relationship between the evolution to a new scientific paradigm tado do mundo. Os estilos de vida podem ser medidos e com-
(the Anthropocene) and the emergence of the new Ecological Rule parados, usando indicadores, como as taxas de consumo, os
of Law. Concept and obligations of the Ecological Rule of Law in the padrões de mobilidade, os níveis de utilização de energia, as
Anthropocene. The role of Law. The terrestrial system as an object práticas de produção de resíduos, os hábitos alimentares, etc.
of legal protection by the new State and as world heritage. Example
Esta mudança no status quo, que estamos a presenciar,
of typically anthropocentric judicial decisions.
não pode deixar de ter consequências jurídicas4. Para esclare-
Keywords: Antropocene; Planetary boundaries; Obligations of cer o nosso raciocínio, resumimos a lógica argumentativa em
result
três etapas e uma conclusão:
1. Estamos a mudar profundamente a Terra,
1. O Homem… e o Planeta
2. Sabemos que muitas dessas mudanças terão efeitos
Até à modernidade, o conhecimento humano sobre o negativos,
funcionamento do sistema terrestre e a capacidade humana de 3. Compreendemos porquê e como ocorrem as altera-
controlar as forças da Terra eram tão limitados que o Homem, ções,
para sobreviver a um ambiente hostil ― aplacar vulcões, tem-
pestades, inundações e secas ― teve de fazer uso de estraté-
gias como a magia, celebrações místicas e rituais sagrados3. Law» da obra SOS Treaty, The safe Operating Space Treaty, a new approach to managing
our use of the Earth System, de Paulo Magalhães e outros, publicada em 2016 pela
Cambridge Scholars Publishing.
2
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. 4
Para uma reflexão sobre as implicações políticas e institucionais colocadas pelo An-
3
O presente texto acompanha de perto algumas das reflexões por nós desenvolvidas tropoceno, ver Galaz, V. (2014). Global Environmental Governance, Technology and Poli-
no capítulo intitulado «Legal tools to operationalize Anthropocene Environmental tics. The Anthropocene Gap. Cheltenham: Edward Elgar.

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Logo, temos o dever de evitar futuras mudanças nega- tecnologia são os primeiros critérios a ter em conta na elabo-
tivas e de promover as alterações institucionais e jurídicas ne- ração da legislação ambiental.
cessárias à inversão das tendências. Fica demonstrada a relação entre a evolução para um
novo paradigma científico e a transformação do caráter do
2. O Planeta… e o Direito
Estado ― o novo Estado Ecológico de Direito ― responsável
Estas constatações encadeadas referidas supra mostram, por regular os projetos, as atividades, os planos, os programas
numa lógica hipersimplificada, o raciocínio conducente ao e as políticas que afetam o estado do sistema terrestre.
surgimento de um novo Estado de Direito: o Estado Ecológi-
3. As bases científicas do novo objeto jurídico
co de Direito.
O Estado Ecológico de Direito, pauta-se por um con- Antropoceno. Espaço operacional seguro. Limites do
junto de normas, princípios e estratégias jurídicas necessárias Planeta. Eis as palavras-chave do jargão científico que permi-
para garantir a preservação de um conjunto de condições de te compreender o novo contexto científico em que devemos
funcionamento do sistema terrestre que tornam o Planeta terra entender as missões do Estado Ecológico de Direito.
um espaço seguro, para o Homem e os restantes seres vivos. A ideia do Antropoceno, enquanto nova era geológica
A promoção da segurança e da prosperidade humana dentro marcada pelas profundas transformações antrópicas do Pla-
do espaço operacional seguro é essencial para a manutenção neta8, surgiu na viragem do milénio, sendo atribuído a Paul
da resiliência sócio-ecológica e para a realização dos objetivos Crutzen9 o seu lançamento e generalização. Em 2008 foi pela
globais de desenvolvimento sustentável5. primeira vez apreciada pela Comissão Estratigráfica Interna-
Assim, além da necessária legitimidade democrática, as cional ― organização científica da área da Geologia que estu-
prescrições jurídicas não podem agora deixar de ser funda- da as eras geológicas terrestres ― a proposta de proclamação
mentadas em bases científicas sólidas6. de uma nova etapa na vida recente da Terra10.
Esta exigência é claramente expressa nos Tratados da Em 2009, os mais reputados cientistas naturais de todo
União Europeia: “Na elaboração da sua política no domínio o mundo, juntaram-se com o propósito de identificar o valor
do ambiente, a União terá em conta: os dados científicos e téc- a partir do qual as alterações antropogénicas podem desen-
nicos disponíveis (...)”7. De acordo com o Tratado, ciência e cadear sucessivas reações abruptas, imprevisíveis e poten-
cialmente catastróficas à escala global. Tal como já tinha sido
feito para a atmosfera (em que se definiu uma concentração
5
Um dos principais resultados da Conferência Rio + 20 foi o acordo dos Estados
membros de lançar um processo para desenvolver um conjunto de metas de desen-
volvimento sustentável, com base nos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio
para o período pós-2015. Un.org/en/mdg/summit2010/pdf/List%20of%20MDGs%20 8
Dependendo do ponto de vista, os seres humanos podem ser vistos como fatores
English.pdf. Os objetivos de desenvolvimento sustentável devem ser “orientados exógenos que influenciam os processos ecológicos ou como fatores endógenos como
para a ação, concisos, fáceis de comunicar, limitados em número, ambiciosos e glo- qualquer outro elemento da Natureza. Sobre a diferença, veja-se Walker, B. H., Car-
bais e universalmente aplicáveis a todos os países, tendo simultaneamente em conta penter, S. R., Rockström, J., Crépin, A., & Peterson, G. D. (2012). Drivers, “Slow” Vari-
as diferentes realidades nacionais, capacidades e níveis de desenvolvimento e res- ables, “Fast” Variables, Shocks, and Resilience. Ecology and Society, 17(3), art. 30.
peitando as políticas e políticas nacionais. (para mais informações sobre o processo Disponível em http://www.ecologyandsociety.org/vol17/iss3/art30/.
pós-2015, https://sustainabledevelopment.un.org/topics/index.php?menu=1561). 9
Crutzen, P. J. (2002). Geology of Mankind. Nature, 415, 23. Disponível em http://
6
Berkowitz, R. (2007). Democratic Legitimacy and the Scientific Foundation of Mod- www.geo.utexas.edu/courses/387h/PAPERS/Crutzen2002.pdf.
ern Law. Theoretical Inquiries in Law, 8.1., 91–115. 10
Para mais informações ver http://quaternary.stratigraphy.org/workinggroups/an-
7
Artigo 191 n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. thropocene/.

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de 300 partes por milhão de dióxido de carbono, ou gases nitorização à distância, através de drones, são meios tecnoló-
com efeito equivalente, como o valor a partir do qual os riscos gicos que proporcionam visões detalhadas sobre o Planeta16.
de alterações climáticas súbitas e imprevisíveis), tenta agora Falta agora uma visão jurídica global para proteger esse novo
identificar-se e quantificar outros limites planetários consen- objeto jurídico, que é o Planeta, num certo estado17.
suais. Além das alterações climáticas (1), a iniciativa Planetary
4. O sistema terrestre como OJNI
Boundaries11 identificou mais 8 limites: a destruição da camada
de ozono estratosférico (2), a perda de biodiversidade (3), a À medida que vai sendo construído um novo objeto
dispersão de químicos e novas substâncias (4), a acidificação científico ― o sistema terrestre e os limites planetários no
dos oceanos (5), perturbações no ciclo hidrológico global (6), Antropoceno ― testemunhamos também a construção de um
mudanças no uso do solo (7), alterações nos ciclos do nitro- novo objeto jurídico. Até agora, o sistema terrestre era um
génio e do fósforo (8), e os aerossóis12 de origem antropogé- objeto jurídico não identificado (um OJNI18). Os contornos
nica presentes na atmosfera (9). Alguns quantificados, outros da sua proteção jurídica estavam ainda indefinidos. Alguns
ainda em vias de quantificação, estes são, no estado atual da tratados setoriais serviam para proteger algumas partes do
ciência, os limites do Planeta13 que ajudam a definir aquilo a objeto ― os oceanos19, a atmosfera20, a biodiversidade21 ou as
que os especialistas chamam o “espaço operacional seguro”14. zonas húmidas22 ― mas não o objeto como um todo, tendo
O “espaço operacional seguro” corresponde então ao
conjunto de condições bio-físico-geo-químicas caraterísticas tem evoluído graças aos satélites. (documentário em 9 partes disponível em alta defi-
da época geológica anterior, que existia antes da profunda nição http://www.youtube.com/watch?v=qTeHdSdzP7E). Apesar de a maioria já não
estar em funcionamento, há cerca de 13000 satélites em órbita terrestre. http://www.
transformação operada por ação do Homem, e que eram as gearthblog.com/satellites.
ideais para a existência da vida na Terra. Numa palavra: o 16
Outras iniciativas visam proporcionar uma experiência mais sensorial e emotiva
replicando, na Terra, o fenómeno experimentado pelos astronautas em órbita, conhe-
Holoceno. cido como “overview effect”. O projeto Blue Turn (http://blueturn.earth/) promete
Sabemos, portanto, que a resolução dos problemas am- oferecer uma experiência de “consciencialização planetária” através da meditação
contemplativa da rotação da Terra em tempo real.
bientais exige uma abordagem planetária e holística. Satélites 17
Nesse sentido, ver Magalhães, P. et ali (2016) SOS Treaty, The safe Operating Space
artificiais15, sondas (aéreas, náuticas ou terrestres) e até a mo- Treaty, a new approach to managing our use of the Earth System. Cambridge: Cambridge
Scholars Publishing.
18
Merlot e Pélisse discutem as dificuldades na classificação de um objeto empírico
11
Ver http://planetaryboundariesinitiative.org/. como objeto jurídico e desenvolvem o conceito de “objetos jurídicos não identifica-
12
Aerossóis são partículas sólidas ou gotículas com menos de um mícron, que estão dos” (Melot, R. & Pélisse, J. (2008). Prendre la mesure du droit : enjeux de l’observa-
na origem dos bem conhecidos fenómenos de smog na China (http://www.indepen- tion statistique pour la sociologie juridique. Droit et société, 2(69-70), 331-346. Disponí-
dent.co.uk/news/science/made-in-china-las-smog-is-the-latest-product-from-the-a- vel em http://www.cairn.info/revue-droit-et-societe-2008-2-page-331.htm).
sian-superpower-exported-to-america-9075646.html). 19
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 10 de dezembro de 1982.
13
Para mais informação sobre cada um dos limites ver http://www.stockholmresi- (http://www.un.org/depts/los/convention_agreements/convention_overview_con-
lience.org/research/planetary-boundaries/planetary-boundaries/about-the-research/ vention.htm).
the-nine-planetary-boundaries.html. 20
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, de 9 de
14
Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin, F. S., Lambin, E. maio de 1992. Extraído de http://unfccc.int/resource/docs/convkp/conveng.pdf.
F., et al. (2009a) A Safe Operating Space for Humanity. Nature, 461(7263), 472. 21
Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica de 5 de junho de 1992.
doi:10.1038/461472a. Extraído de https://www.cbd.int/doc/legal/cbd-en.pdf.
15
O documentário de duas horas sobre a Terra vista do espaço (Earth From Space) 22
A Convenção das Nações Unidas sobre as Zonas Húmidas de Importância Inter-
que é uma produção canadiana e britânica transmitida pelo Discovery Chanel em nacional especialmente como Habitat das Aves Aquáticas de 2 de fevereiro de 1971
2012, baseada em imagens de satélites da Nasa, permite-nos perceber melhor o fun- (alterada em 82 e 87). Disponível em http://www.ramsar.org/sites/default/files/docu-
cionamento do Planeta e ver como o conhecimento científico dos sistemas terrestres ments/library/current_convention_text_f.pdf.

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em conta as complexas interações entre a biosfera, atmosfera, de vista, o sistema terrestre é um património que passa de
hidrosfera, criosfera, a magnetosfera e o sistema climático. geração em geração.
Além disso, os instrumentos legais existentes foram Pensando na dicotomia estabelecida pela UNESCO
fundados em pressupostos científicos pouco rigorosos, em di- entre património cultural e natural, à primeira vista, parece-
nâmicas lineares que ignoraram feedbacks, transições críticas, ria que a caraterização mais lógica do sistema terrestre seria
mudanças de regime, e risco de mudanças catastróficas hu- como um património natural: a Terra é um objeto natural.
manamente induzidas23. Porém, o estado atual do Planeta é o resultado direto
Tal como referido, as ciências naturais, nos últimos anos, da cultura e da atividade humana. Desde o Antropoceno, o
têm vindo a trabalhar arduamente para conhecer e compreen- sistema terrestre passou a ser também um objeto produzido
der os processos fundamentais do sistema terrestre, reconhe- pelo Homem. Por conseguinte, é uma mistura de património
cendo os limites bio-físico-geo-químicos do Planeta, através natural e cultural.
da identificação de pontos críticos e variáveis de controle cru- Recordando o conjunto de critérios utilizados pela
ciais para manter o sistema terrestre no estado desejado. UNESCO para selecionar os sítios do património mundial
Da mesma forma, os juristas devem trabalhar em con- relevantes, o sistema terrestre reúne todos os critérios neces-
junto para dar forma a um novo objeto jurídico: o sistema ter- sários não só para o património natural mas também para o
restre. No novo Direito Ambiental no Antropoceno, o objeto património cultural. De acordo com a Convenção da UNES-
de proteção não é apenas um objeto astronómico sólido que CO para a protecção do património mundial, cultural e na-
orbita uma estrela (em palavras mais simples, não é apenas tural, “locais de interesse” são “obras do Homem, ou obras
um Planeta24). O objeto de proteção jurídica é um Planeta com conjugadas do Homem e da Natureza, e as zonas, incluindo
certas caraterísticas bio-físico-geo-químicas. Sabemos agora, os locais de interesse arqueológico, com um valor universal
depois de avaliações recentes25, que essas caraterísticas foram excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico
ou antropológico”26.
amplamente devidas à atividade humana.
Percorrendo os critérios da UNESCO27, torna-se eviden-
5. O sistema terrestre como património mundial te que o sistema terrestre preenche todos os requisitos para
a classificação como património mundial. Baseando-nos nos
O sistema terrestre como objeto de proteção jurídica
parâmetros da Convenção, não é absurdo dizer que a Terra
deveria durar, no estado pretendido, por um período inde-
exibe um intercâmbio único de valores humanos28; que é um
terminado, superior ao tempo de vida humana. Deste ponto
testemunho único da civilização humana29; que exibe paisa-
gens excecionais que ilustram etapas significativas na história
23
Steffen, W., Andreae, M. O., Bolin, B., Cox, P. M., Crutzen, P. J., Cubasch, U. et al. humana30; que é um exemplo excecional de um assentamento
(2004). Abrupt Changes: the Achilles’ Heels of the Earth System. Environment: Science and
Policy for Sustainable Development, 46, 3, 8–20.
24
Aliás, o único conhecido com condições de suportar vida... 26
Artigo 1, disponível em http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf.
25
Para a influência na composição da atmosfera e as alterações climáticas resultan- 27
Para uma descrição completa dos dez critérios, ver http://whc.unesco.org/en/crite-
tes, ver as várias avaliações científicas e relatórios sobre as alterações climáticas pelo ria/. As diretrizes operacionais para a implementação da Convenção do Património
Painel Internacional para as Alterações Climáticas. Disponível em http://www.ipcc. Mundial estão disponíveis em http://whc.unesco.org/pg.cfm?cid=57.
ch/publications_and_data/publications_and_data_reports.shtml. Para a perturbação 28
Critério II.
dos ecossistemas, veja-se a Avaliação dos Ecossistemas do Milénio. Disponível em 29
Critério III.
http://www.millenniumassessment.org/en/index.html. 30
Critério IV.

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humano tradicional31; que contém fenómenos naturais super- reito decreta limites ao exercício de direitos individuais, de-
lativos e áreas de beleza natural e estética de excecional im- fine padrões de conduta obrigatórios, impõe procedimentos
portância32; que é a única representação das principais etapas adequados à produção de resultados, prescreve sanções para
da história da Terra, incluindo o registo da vida, e dos proces- as infrações...
sos geológicos no desenvolvimento de formações geológicas Porque mudar a sociedade a partir do “interior” é um
importantes33; que é a única representação de processos eco- processo lento e difícil. Não é fácil mudar mentalidades, cren-
lógicos e biológicos significativos da evolução e do desenvol- ças, hábitos e estilos de vida. A inércia social38 gera tolerância
vimento de ecossistemas e comunidades de plantas e animais às iniquidades e perpetua injustiças sociais. Em tempos de cri-
terrestres, de água doce, costeiros ou marinhos34; que contém se ― e particularmente quando a crise social surge associada
os únicos habitats naturais para a conservação in situ da di- à crise ecológica ― é quando o Direito pode ter uma função-
versidade biológica, incluindo aqueles que contêm espécies -chave, proibindo comportamentos, atividades ou omissões
ameaçadas de valor universal excecional do ponto de vista da que, embora geralmente reconhecidas como injustas, são per-
ciência e da conservação35; finalmente, que está diretamente petuadas devido a um perigoso cocktail feito de inércia, in-
associado a acontecimentos e tradições vivas, com ideias e consciência e visões de curto prazo.
com crenças, com obras artísticas e literárias de significado
Em momentos críticos, o Direito pode ter uma função
universal excecional36.
emancipadora, desencadeando mudanças sociais necessárias.
Resta alguma dúvida de que o Planeta é um local de valor
A abolição da escravatura ou o reconhecimento do direito de
universal ― natural e cultural ― excecional?
voto para as mulheres, são apenas dois dos inúmeros exem-
6. O papel do Direito no Antropoceno plos possíveis. No domínio do ambiente, a regulamentação
dos gases que prejudicam a camada do ozono39 ― uma his-
Embora muitas vezes esquecido37, o Direito é uma ciên-
cia social fundamental para impulsionar mudanças de para- tória de sucesso ambiental ― é o exemplo óbvio de uma mu-
digma. dança condicionada pelo Direito. Assim como, há duzentos
Não podemos esquecer que o Direito não é apenas um anos atrás, a igualdade entre pessoas de raças diferentes se
mecanismo para a resolução de conflitos, mas que é também tornou uma evidência e a discriminação das mulheres em re-
um poderoso instrumento indutor de mudanças sociais. O Di- lação aos homens se tornou absurda, também a necessidade
de proteger o Planeta e o sistema terrestre se impõem agora
com uma evidência crescente.
31
Critério V. Manter-se dentro dos limites do Planeta é uma questão
32
Critério VII.
33
Critério VIII. de sobrevivência a longo prazo; reconhecer o caráter juridica-
34
Critério IX.
35
Critério X.
36
Critério VI.
37
Frequentemente, ao abordar o tema da investigação científica integrada a doutrina
38
O conceito foi introduzido por Pierre Bourdieu ao estudar os processos de repro-
menciona várias áreas do saber mas não a lei: “A necessidade de inovações tecnoló- dução social.
gicas, institucionais, sociais e ecológicas integradas para lidar com o problema da
39
Referimo-nos, naturalmente, ao Protocolo de Montreal. Para obter mais informa-
mudança ambiental global é bem conhecida na literatura”. Galaz, V. et al. (2012). ções, veja-se a publicação concisa do Programa das Nações Unidas para o Meio Am-
‘Planetary Boundaries’ – Exploring the Challenges for Global Environmental Gov- biente, produzida em 2007 para a comemoração de 20 anos do Protocolo de Montreal.
ernance. Current Opinion in Environmental Sustainability, 4, 1-8. (Disponível em Disponível em http://ozone.unep.org/Publications/MP_A_Success_in_the_making-
http://community.eldis.org/.5ad50647/Galaz%20et%20al%202012%20COSUST.pdf) -E.pdf.

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mente vinculativo do respeito pelos limites planetários que Dada a evidência das injustiças no uso atual dos recur-
mantêm a Terra dentro do “espaço operacional seguro” é uma sos da Terra e a eminência do imperativo de proteção do sis-
questão de justiça a curto prazo. tema terrestre, os Estados Ecológicos de Direito têm o dever
Se forem transpostos para diferentes escalas, os limites de evitar consumos insustentáveis de recursos, respeitando os
planetários podem servir como critérios para avaliar a equi- direitos daqueles que não têm acesso a eles porque são muito
dade no uso dos recursos da Terra e operacionalizar a justiça40 caros, porque estão muito longe, porque estão muito degra-
nas relações entre nações, cidadãos, gerações e espécies: dados ou porque, no momento em que querem consumi-los...
• Justiça entre as nações - entre os Estados que são de- já estão extintos.
tentores de recursos naturais41 e outros Estados que 7. Estado Ecológico de Direito no Antropoceno
não os têm.
• Justiça entre os cidadãos – entre ricos e pobres que Qual é a grande diferença entre as missões do Estado
têm um acesso muito desigual aos recursos da Terra. de Direito no Holoceno e do Estado Ecológico de Direito no
Antropoceno?
• Justiça entre gerações - entre as gerações atuais, que
A diferença é a força jurídica das obrigações impostas43.
exploram o Planeta para além do espaço operacional
No Estado de Direito, as obrigações jurídicas de proteção do
seguro, e as gerações futuras, que hão de herdar um
ambiente reduziam-se ao dever de realizar um esforço para
Planeta mais pobre e a funcionar mal.
evitar danos ambientais e, na medida do possível, melhorar
• Justiça no relacionamento entre as espécies – entre a
a qualidade do ambiente44. Por isso, as ações de proteção am-
espécie humana, que consome e degrada de forma biental eram baseadas nas melhores técnicas disponíveis, em
desproporcional os recursos, e as outras espécies, boas práticas e na diligência. Critérios como a proporcionali-
cujas vidas são ameaçadas por fatores antrópicos. dade social e a razoabilidade orientam a escolha das medidas
Defendemos por isso, que a operacionalização dos limi- a adotar.
tes planetários42 em diferentes escalas e dimensões de justiça No Estado Ecológico de Direito do Antropoceno, a obri-
é um imperativo legal para os Estados Ecológicos de Direito. gação é de alcançar resultados: resultados na prevenção efi-
Da macro-justiça global à micro-justiça local, os limites caz de danos ambientais e de melhoria real da qualidade do
planetários ajudam a visualizar as desigualdades e podem ambiente. Este ambicioso objetivo requer a adoção de todas
ser usados como indicadores de equidade nas relações entre as medidas necessárias para produzir mudanças, respeitar
países, regiões, grupos sociais, atividades económicas e indi- prazos e atingir metas. Os critérios para a escolha dos meios
víduos, presentes e futuros, pertencentes à nossa espécie ou
não. 43
Tal como explicou Catherine Thibierge, o poder jurídico de uma norma não depen-
de apenas da autoridade (o órgão jurisdicional emissor, especialmente o Parlamento)
ou da sanção (a forma jurídica assumida pela norma e as sanções que lhe são impos-
tas, a lei penal que prescreve a prisão perpétua , por exemplo). A força legal de uma
40
Nas diferentes dimensões explicadas por Klaus Bosselmann em The Principle of Sus- norma emana da legitimidade, da persuasão, da recepção, da repetição, da validade,
tainability. Transforming Law and Governance. Aldershot: Ashgate, 2008. da confiança, da eficácia, etc. Para uma exposição detalhada, ver Thibierge, C. et al.
41
Petróleo, metais e pedras preciosas, mas também a água, as florestas e terras férteis. (2009). La force normative. Naissance d’un concept. Paris: LGDJ.
42
Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin, F. S., Lambin, E., et al. 44
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia determina que “todas as
(2009 b) Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity. políticas da União devem integrar um elevado nível de proteção do ambiente e a
Ecology and Society, 14(2), 32. Disponível em http://www.ecologyandsociety.org/ melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo com o princípio do desenvolvi-
vol14/iss2/art32/ mento sustentável” (artigo 37, sobre proteção do ambiente).

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adequados para alcançar os objetivos são a proporcionalidade desde o terceiro setor (ONGs nacionais e internacionais), aos
ecológica45 com aceitabilidade social e a eficácia, isto é: a capa- cidadãos (tanto organizados como individualmente), têm
cidade de encontrar soluções cumprindo metas. uma obrigação genérica de contribuir para alcançar um re-
Quais são os motivos para essa mudança jurídica46? sultado: a manutenção do sistema terrestre num estado mais
Qual é a justificação para que as obrigações sejam mais fortes próximo das condições do Holoceno, o único espaço opera-
no Antropoceno? cional seguro da humanidade48.
A justificação é dupla: primeiro, o conhecimento cientí- No contexto do espaço operacional seguro, o que sig-
fico sobre o funcionamento dos complexos processos ineren- nifica uma obrigação de resultados? Significa que não basta
tes ao sistema terrestre tem aumentado; segundo, a influência adotar algumas medidas de proteção ambiental bem-inten-
humana sobre o estado do sistema terrestre está igualmente a cionadas, e torcer para que funcionem. Claro que medidas
crescer47. pró-ambientais como o comércio de licenças de emissão, as
O facto de começarmos a compreender as interferências avaliações de impacte ambiental, a rotulagem ecológica, a
mútuas entre os seres humanos e o Planeta, o facto de conhe- gestão integrada de resíduos, a política integrada de produ-
cermos as consequências das nossas ações, e de dominarmos tos, a reforma fiscal ecológica e a educação ambiental, são to-
os processos necessários para evitar essas consequências, das muito importantes para manter as condições ambientais.
transforma um Direito baseado em “esforços” num Direito Elas são as melhores técnicas jurídicas disponíveis, neste mo-
baseado em resultados. Por outras palavras, meras obrigações mento, para lidar com as mudanças antropogénicas irrever-
de meios não são suficientes para resolver os principais de- síveis que estão a conduzir o Planeta para fora do Holoceno.
safios colocados pelo Antropoceno. O novo Estado Ecológico Mas não é suficiente aplicar estas medidas ambientais se, ao
de Direito do Antropoceno é caraterizado por obrigações de mesmo tempo, não houver um acompanhamento permanente
resultados. Esta é a grande diferença. para saber se os efeitos das medidas correspondem ao que
Todos os atores jurídicos no Estado Ecológico de Direito é necessário para alcançar os fins, ou se é necessário adotar
do Antropoceno ― desde o setor público (organizações inter- novas e reforçadas medidas de proteção ou recuperação am-
nacionais, estados, povos autónomos), ao setor privado (gran- biental.
des empresas multinacionais, pequenas e médias empresas); A vantagem dos limites planetários, como os estudos
científicos demonstram49, está em definir em termos absolu-
45
Sobre o conceito, desenvolvido por Gerd Winter, ver Proporcionalidade ‘eco-lógica’: tos, as linhas vermelhas, ou seja, os limites que não devem em
um princípio jurídico emergente para a natureza?, disponível em http://www.domhelder.
edu.br/revista/index.php/veredas/article/viewFile/422/362.
caso algum ser excedidos. Mas é a comparação entre as fron-
46
O raciocínio é semelhante aos argumentos utilizados no contexto da responsabili- teiras planetárias e a situação atual do sistema terrestre que
dade médica. Normalmente, um médico só assumiria uma obrigação de meios: ele nos dá-nos as coordenadas do espaço operacional seguro.
esforça-se para curar o paciente. Mas considerando a evolução das técnicas terapêu-
ticas, do conhecimento farmacêutico e do conhecimento cirúrgico, algumas interven-
ções médicas menores tornam-se rotineiras e dificilmente podem dar falhar. Nesses
casos, o médico assume a obrigação de curar o doente (para mais desenvolvimentos 48
Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin, F. S., Lambin, E.
sobre a evolução da responsabilidade no Direito médico, ver Pedro, R.T. (2008). A res- F., et al. (2009a) A Safe Operating Space for Humanity. Nature, 461(7263), 472.
ponsabilidade civil do médico: reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente doi:10.1038/461472a.
lesado. Coimbra: Coimbra Editora.). 49
Para uma compreensão mais profunda da teoria dos limites planetários, ver Rocks-
47
Walker, B. H., Carpenter, S. R., Rockström, J., Crépin, A., & Peterson, G. D. (2012). tröm, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin, F. S., Lambin, E., et al.) Planetary
Drivers, “Slow” Variables, “Fast” Variables, Shocks, and Resilience. Ecology and Soci- Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity. Ecology and Society,
ety, 17(3), art. 30. Disponível em http://www.ecologyandsociety.org/vol17/iss3/art30/. 14(2), 32. Disponível em http://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/.

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José Rubens Morato Leite | Flávia França Dinnebier ESTADO DE DIREITO ECOLÓGICO: Conceito, Conteúdo e Novas Dimensões para a Proteção da Natureza

Essa comparação é a monitorização50. Através da monitoriza- em matéria ambiental, incluindo os riscos de transposição de
ção, podemos saber se as medidas tomadas são suficientes, in- pontos de rutura ambiental e fronteiras planetárias”52.
suficientes ou excessivas. Se forem insuficientes, então podem De agora em diante, manter a abordagem jurídica an-
ser necessárias medidas drásticas, tal como proibições totais, terior, correndo o risco de ultrapassar os limites do Planeta
demolições ou embargos. Com efeito, quando, apesar das será considerado contrário ao Direito. Medidas de precaução
medidas tomadas, os resultados da monitorização revelam e prevenção para evitar exceder os limites perigosos serão
tendências ambientais fortemente negativas (que aparecem obrigatórias. Se as medidas normais forem insuficientes para
como curvas íngremes nos gráficos de tendências longas), manter o Planeta dentro do espaço operacional seguro, deve-
então meras reduções percentuais podem não ser suficientes. rão ser adotadas medidas extraordinárias.
Nesse caso, proibições rígidas ou outras medidas similares Este foi precisamente o raciocínio por trás da decisão do
podem ser as únicas medidas proporcionais. Tribunal de Justiça, desfavorável ao Reino Unido, a pedido
A monitorização de variáveis de controlo, que sirvam da organização ambiental britânica, Client Earth, a propósito
como indicadores de progresso, é fundamental para avaliar a do dever de elaboração de planos relativos à qualidade do
efetividade das medidas adotadas. Depois da monitorização, ar: “Quando um EstadoMembro não tenha respeitado as exi-
a produção de bases de dados, estudos prospetivos, identifi- gências decorrentes (…) da Diretiva 2008/50 e não tenha pedi-
cação de tendências, modelagem de dados e análise de cená- do a prorrogação do prazo nas condições previstas no artigo
rios, são tarefas essenciais a desenvolver pelo Estado Ecológi- 22.° desta diretiva, incumbe ao órgão jurisdicional nacional
co de Direito do Antropoceno. competente, eventualmente chamado a conhecer do processo,
adotar, contra a autoridade nacional, qualquer medida neces-
8. Conclusão: Direito ambiental ‘antropocénico’ sária, como uma injunção, para que esta autoridade elabore o
Na União Europeia, o Programa de Ação para 202051 - plano exigido pela referida diretiva, nas condições que a mes-
“Viver bem, dentro dos limites do nosso Planeta” - é o primei- ma prevê”53.
ro instrumento jurídico supranacional que incorpora o novo A mesma linha de raciocínio foi sufragada na Holan-
paradigma científico dos limites planetários. O Programa de da, numa decisão judicial ainda mais ambiciosa, suscitada
Ação requer “coordenar, partilhar e promover os esforços de pela organização não governamental Urgenda, a propósito da
investigação, a nível quer da União quer dos Estados-Mem- política climática. Em junho de 2015, o Tribunal Distrital de
bros, na resolução das principais lacunas de conhecimento Haia decretou que o Estado holandês deveria adotar medidas
“para limitar o volume conjunto das emissões de gases com
50
Sobre o dever de monitorização, o seu conteúdo, vantagens, e princípios orienta- efeito de estufa anuais holandeses, ou mantê-los limitados, de
dores ver o nosso capítulo intitulado “Da mera proclamação da sustentabilidade ao modo a que este volume tenha reduzido em pelo menos 25%
dever legal de monitorização do desenvolvimento sustentável através de matrizes de
indicadores”, na obra Indicadores de desenvolvimento sustentável. Instrumentos estratégi- no final de 2020 em comparação com os níveis de 1990”54.
cos e inovadores para municípios sustentáveis. O caso de Estarreja, de Sara Moreno Pires,
Alexandra Aragão, Teresa Fidélis e Ireneu Mendes, Editado pelo Instituto Jurídico da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e pela Universidade de Aveiro, 52
Objetivo prioritário n.º 5: melhorar a base de conhecimentos e a fundamentação da política
com o apoio do Observatoire Hommes et Milieux do Centre National de Recherche de ambiente da União (ponto 72 i) página 92).
Scientifique em 2016 (disponível em http://www.ij.fd.uc.pt/publicacoes.html). 53
Processo C-404/13, de 19 de novembro de 2014.
51
Decisão n. 1386/2013/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de novem- 54
Processo C/09/456689/HA ZA 13-1396, acórdão de 24 de junho de 2015. Comentado
bro de 2013, que estabelece o Sétimo Programa de Ação da União Europeia em ma- por nós na Revista do CEDOUA, n.º.35, vol.1/2015, p. 109 a 126 sob o título: «O abc da
téria de Ambiente. justiciabilidade do dever de prevenir as alterações climáticas. Início do fim da irres-

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José Rubens Morato Leite | Flávia França Dinnebier ESTADO DE DIREITO ECOLÓGICO: Conceito, Conteúdo e Novas Dimensões para a Proteção da Natureza

Tal como foi exaustivamente demonstrado pelo Tribu- Meyer, N. & David, D. (2012). L’intégration de la coutume dans l’élaboration de
nal, estes objetivos não são meras obrigações políticas depen- la norme environnementale: éléments d’ici et d’ailleurs. Brussels: Bruylant.
dentes da realização recíproca de outros estados. Além disso, Pedro, R.T. (2008). A responsabilidade civil do médico: reflexões sobre a noção da
eles não são meras normas programáticas exigindo aplicação perda de chance e a tutela do doente lesado. Coimbra: Coimbra Editora.
jurídica anterior. As metas de emissão são obrigações legais Pires, S.M., Aragão, A., Fidélis, T., e Mendes I., (2016) Indicadores de desen-
estritas suscetíveis de execução nos tribunais. volvimento sustentável. Instrumentos estratégicos e inovadores para municípios
O tempo do novo Estado Ecológico de Direito Antropocé- sustentáveis. O caso de Estarreja, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da
nico chegou. Universidade de Coimbra e Universidade de Aveiro (disponível em http://
www.ij.fd.uc.pt/publicacoes.html).
Referências Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin, F. S., Lambin, E.
Aragão, A. (2015). «O abc da justiciabilidade do dever de prevenir as altera- F., et al. (2009a) A Safe Operating Space for Humanity. Nature, 461(7263),
ções climáticas. Início do fim da irresponsabilidade colectiva?» Revista do 472. doi:10.1038/461472a.
CEDOUA, n.º.35, vol.1, p. 109 a 126.
Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin, F. S., Lambin, E.,
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ponsabilidade colectiva?».

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