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Valdemir Paiva Paula Zettel

EDITOR-CHEFE DESIGN DE CAPA

Éverson Ciriaco Jhonny Alves dos Reis


DIREÇÃO EDITORIAL DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO

Katlyn Lopes Os autores


DIREÇÃO EXECUTIVA REVISÃO

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


BIBLIOTECÁRIA: MARIA ISABEL SCHIAVON KINASZ, CRB9 / 626

Direito do trabalho nas universidades [recurso eletrônico] / organização de Edilton


D598 Meirelles, Silvia Teixeira do Vale – 1.ed. - Curitiba: Editorial Casa, 2022.
332p.; il.; 23 cm

ISBN 978-65-5399-268-9

1. Direito do trabalho. 2. Processo do trabalho. I. Meirelles, Edilton (org.).
II. Vale, Silvia Teixeira (org.).

CDD 344.01 (22.ed)
CDU 331.16

Nº. Registro Doi: 10.55371/

1ª edição – Ano 2022


Copyright © Editorial Casa, 2022
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EDILTON MEIRELES
SILVIA TEIXEIRA DO VALE
(Orgs.)

DIREITO DO TRABALHO
NAS UNIVERSIDADES
Organizadores
Edilton Meireles
Silvia Teixeira do Vale

Presidente do TRT-5
Desembargadora Débora Maria Lima Machado 

Vice-Presidente do TRT-5
Desembargador Alcino Barbosa de Felizola Soares

Corregedora Regional
Desembargadora Luíza Aparecida Oliveira Lomba

Vice-Corregedora Regional
Desembargadora Léa Reis Nunes

Diretor da Escola Judicial


Desembargador Edilton Meireles

Vice-Diretor da Escola Judicial


Desembargador Jéferson Alves Silva Muricy

Coordenadora Acadêmica
Juíza Silvia Isabelle Ribeiro Teixeira do Vale

Vice-Coordernadora Acadêmica
Juíza Andréa Presas Rocha

Conselho Consultivo da Escola Judicial / Conselho Editorial


Desembargadora Ana Paola Santos Machado Diniz
Desembargador Rubem Dias do Nascimento Júnior
Juíza Angélica de Mello Ferreira
Juiz Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho
Juíza Nivea Maria Luz da Silva Torres
Juiz Antonio Souza Lemos Júnior
Juíza Manuela Hermes de Lima

Núcleo de Cursos
Chefia: Lucila Borges Smarcevscki
Assistente: Maurício Borges Farias
Seção de Educação a Distância e Tecnologia
Chefia: Carlos Adroaldo Santiago Lima
Assistente: Vânia Pina
Seção Técnico-Pedagógica
Chefia: Ana Carina Varela Martins Maia
Assistente: Cláudia Valéria Moés Galvão
Seção de Vitaliciamento e Formação Inicial (Logística)
Chefia: Valdicéa Costa do Val
APRESENTAÇÃO

A Escola Judicial e o TRT da 5ª Região têm a alegria e a honra de


trazer ao público a presente obra coletiva, intitulada de Direito Do Trabalho Nas
Universidades, composto por diversos trabalhos escritos por professores, pesqui-
sadores e estudantes universitários, que abordam diversos temas relacionados
ao direito e processo do trabalho.
A coletânea que ora se publica se insere no programa instituído pela
Escola Judicial do TRT da 5ª Região que procura incentivar a produção cien-
tífica por parte dos estudiosos, que, ao certo, com suas experiências, têm muito
a contribuir com o debate sobre os mais variados temas que rodeiam o mundo
do trabalho.
Esperamos que o leitor possa aproveitar a leitura que reflete o pensamento
de parte daqueles que se dedicam ao estudo do direito e processo do trabalho.

EDILTON MEIRELES
SUMÁRIO

TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA


REGULAMENTAÇÃO NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA
E MÉXICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
Bianca Silva Matos, Ianine Vitória dos Anjos, Jaina Bárbara da Silva, Rosemauro Santos Rocha,
Isabela Fadul de Oliveira

DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE GENÉTICA NAS


RELAÇÕES DE TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Cristiana Maria Santana Nascimento

PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41


Cyntia Cordeiro Santos, Dyule Soares dos Santos, Caiane Brandão

O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA


E A POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO
EXTRAJUDICIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59
Dayane Mendonça Rodrigues

IMPACTO DA DIGITALIZAÇÃO DO TRABALHO DURANTE A


PANDEMIA NA RELAÇÃO DE EMPREGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .76
Edilton Meireles, Hugo Rossi Figueirôa

A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA


ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS ENFRENTADOS PELOS(AS)
ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA
COVID-19 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
Ilana Silva Pereira, Edilton Meireles

A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS EM


BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS . . . . . . . . . . . . . . . 114
Emerson Albuquerque Resende

TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA:


UM ESFORÇO DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS
PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
Fernando Pasquini, Ney Maranhão

TELETRABALHO E GENERO: SEGUNDO UMA OTICA


INTERDISCIPLINAR E JURIDICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
Giovanna Martins Sampaio
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO
CIVIL PÚBLICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
Ítalo Menezes de Castro

A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO


PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL . . . . . . . . . . . 199
José Elias Seibert Santana Junior

ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES


DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS
PSICOSSOCIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
José Roberto Heloani, Ney Maranhão, Estêvão Fragallo Ferreira

PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO


E A CRISE DO CAPITAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240
Linauro Pereira de Souza Neto

A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E


DE PODER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 258
Patrícia de Menezes Brandão, Christianne Moraes Gurgel

DESCOMPLICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO,


COM BASE NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS . . . . . . . . . . . 276
Selma Carloto

POLÍTICA DE PRIVACIDADE DE EMPREGADOS E O PRINCÍPIO DA


TRANSPARÊNCIA NA LGPD . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 290
Selma Carloto

COMPREENSÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS À LUZ DA TEORIA


DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295
Silvia Isabelle Ribeiro Teixeira do Vale, Rosangela Rodrigues Dias de Lacerda

AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE


DO TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 314
Yanka Vidal Brito de Mendonça, Semírames de Cássia Lopes Leão
TELETRABALHO NA AMÉRICA
LATINA: UMA ANÁLISE
DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA,
COLÔMBIA E MÉXICO1

Bianca Silva Matos2


Ianine Vitória dos Anjos3
Jaina Bárbara da Silva4
Rosemauro Santos Rocha5
Isabela Fadul de Oliveira6

Resumo: As relações de trabalho na pandemia sanitária da covid-19 sofreram


mudanças significativas, uma vez que o distanciamento social foi a principal
ferramenta de combate à disseminação do vírus. Nesse contexto, a utilização
de tecnologias de informação e comunicação (TICs) ganhou maior relevância
como instrumento de organização e gestão da força de trabalho. O teletrabalho,
enquanto modalidade contratual, já estava presente em alguns ordenamentos
jurídicos-trabalhistas. No entanto, sua regulamentação vem adquirindo novos
contornos fundados nas demandas dos atores sociais por aprofundamento dos
marcos normativos já existentes. Entendido pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT) como trabalho realizado por intermédio de TICs e exercido fora
1 
O presente artigo é fruto de pesquisa científica financiada pelo Programa de Iniciação Científica (PIBIC),
no âmbito da Universidade Federal da Bahia (Edital 01/2021 PIBIC/UFBA), tendo sido publicado nos
Anais da V Jornadas Internacionales de Estudios de América Latina y el Caribe do Instituto de Estudio de
América Latina y países del Caribe (IEALC).
2 
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Integrante do grupo de pesquisa Transfor-
mações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (UFBA).
3 
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Integrante do grupo de pesquisa Transfor-
mações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (UFBA).
4 
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Integrante do grupo de pesquisa Transfor-
mações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (UFBA).
5 
Graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Integrante do grupo de pesquisa Transfor-
mações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (UFBA).
6 
Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Faculdade de
Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Líder do grupo de pesquisa Transformações do Trabalho,
Democracia e Proteção Social (TTDPS/UFBA).

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TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

dos locais da entidade empregadora, o teletrabalho adquiriu um novo fôlego no


debate doutrinário e legislativo. Neste cenário, busca-se compreender as bases
legais do teletrabalho na América Latina, com enfoque no Brasil, Argentina,
Colômbia e México. O estudo pretende enfrentar o tema a partir da pesquisa
bibliográfica-documental e legislativa, de caráter exploratório, a fim de analisar
o fenômeno na perspectiva de sua regulamentação.

Palavras-chave: Teletrabalho, regulamentação, América Latina, contrato de


trabalho, precarização.

1. INTRODUÇÃO

A relação de emprego predominante nas sociedades ocidentais tem por


características a prestação de trabalho direta, de forma contínua, com subor-
dinação, a tempo completo e com duração indeterminada. Em contraponto
ao contrato de trabalho padrão, há diversas figuras contratuais que integram
os contratos atípicos de emprego, que, em regra, conferem aos trabalhadores
condições de trabalho mais precárias do que os tradicionais.
Em um mercado de trabalho de cunho capitalista cada vez mais globa-
lizado, os empregadores buscam por relações empregatícias com maior flexibi-
lidade e menor risco. A flexibilidade das relações de emprego pretendida pelo
neoliberalismo hegemônico decorre da flexibilização das normas trabalhistas
em desfavor dos empregados. Esse processo foi impulsionado com a emergência
sanitária causada pelo coronavírus, diante da necessidade do isolamento social
que levou vários trabalhadores de todo o globo terrestre a exercerem as suas
atividades laborais de forma remota.
O presente estudo busca analisar o teletrabalho a partir de sua regula-
mentação, em destaque na legislação do Brasil, Argentina, Colômbia e México.
Para isso, a modalidade é explorada no âmbito do contexto da pandemia e do
processo de flexibilização das normas trabalhistas na América Latina, através
do exame das regulamentações desses países acerca do teletrabalho, à luz das
diretrizes da OIT. Por fim, discute em que medida o teletrabalho contribui para
o processo de precarização social do trabalho na região.

2. PANDEMIA, RELAÇÕES DE TRABALHO E


REFORMAS TRABALHISTAS NA AMÉRICA LATINA

Em decorrência da contaminação pelo novo coronavírus em diversos


países, em janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decla-

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

rou Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional. Em março


do mesmo ano, com 118 mil casos em 114 países pelo mundo, a organização
elevou o status do surto da covid-19 e o caracterizou como uma pandemia. O
primeiro diagnóstico na América Latina se deu em fevereiro de 2020 no Brasil.
A partir de então, diversas estruturas sociais, políticas e econômicas tiveram que
se adequar aos desafios infligidos pelo momento pandêmico.
No mundo do trabalho, a OIT alerta que a atual dinâmica, combinada
com os problemas preexistentes, torna as principais vítimas da crise os grupos
considerados vulneráveis e desfavorecidos. Constata a ausência de proteção e
apoio governamental aos trabalhadores informais; para a população jovem, os
efeitos imediatos e a longo prazo afetam a perda e a perspectiva de emprego;
a população feminina foi afetada pelo aumento da carga e da responsabilidade
de trabalho não remunerado em casa; os trabalhadores imigrantes que foram
dispensados ficaram retidos e impedidos de atravessar fronteiras, impulsionando o
aumento da infecção pela situação de vulnerabilidade; as pessoas com deficiência
foram vítimas de novas situações de exclusão e marginalização (OIT, 2021b).
Já Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL)
aponta que os países latino-americanos adotaram três estratégias para tentar
uma recuperação no período pandêmico, dentre elas as políticas de proteção do
emprego no lugar do trabalho, na qual houve fomento ao trabalho à distância
e em horários escalonados (CEPAL, 2020).
É nesse contexto que o teletrabalho ganha destaque como ferramenta
para a execução das atividades laborais, uma vez que permitiu, a certos grupos
de trabalhadores e empresas, a continuidade de suas tarefas. Conforme dados
da OIT, entre 20% e 30% dos assalariados que continuaram efetivamente tra-
balhando estavam sob esta modalidade, representando cerca de 23 milhões de
teletrabalhadores na América Latina e no Caribe. Comparativamente, em 2019,
a incidência do teletrabalho registrava entre 5% e 8% do total dos trabalhadores,
sendo inferior a 3% para os assalariados (OIT, 2021a).
Embora o teletrabalho tenha recebido importância com a pandemia, esta
forma de trabalho integra o processo de reestruturação produtiva, implementado
a partir da década de 1980, nos países latino-americanos, responsável por novas
demandas por parte do setor empresarial como flexibilização das normas de
proteção ao trabalho; ampliação do rol de contratos disponíveis, barateamento
dos custos da demissão, desindexação dos salários, flexibilidade dos horários
de trabalho e redução dos custos trabalhistas não salariais (WELLER, 2009).
Por flexibilização da legislação trabalhista, entende-se “desmonte dos ordena-
mentos jurídicos comprometidos com a diminuição da desigualdade inerente
à relação entre capital e trabalho, estabelecidos sob a influência das diretrizes

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TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e dos movimentos de cons-


titucionalização dos direitos sociais” (OLIVEIRA, 2020, p. 311).
A regulamentação das modalidades contratuais ganha destaque nessa
conjuntura. A crise do contrato de trabalho atinge os modelos de regulação
juslaboral, multiplicando-se as composições jurídicas do contrato de trabalho
e diversificando-se a aplicação das normas a partir das características dos
sujeitos contratantes (MELLO, 2020). O Brasil, por exemplo, apresenta um
conjunto de dispositivos, editados na década de 1990 e começo dos anos de
2000, que marcam uma nova tendência de regulamentação no país, a partir da
instituição do “contrato provisório” e da flexibilização da jornada de trabalho
por meio do “banco de horas” (Lei 9.601/1998), bem como da derrogação
da natureza salarial de diversas verbas trabalhistas (Lei 10.101/2000 e Lei
10.243/2001). O Estado passa a reconhecer “modalidades híbridas contra-
tuais”, como o contrato intermitente, o contrato de parceria e o contrato
terceirizado, que ampliam as condições de espoliação da força de trabalho
assalariada (MELLO, 2020).
É nessa conjuntura de novas modalidades contratuais que o teletrabalho
é inserido. Nesse contexto, Ricardo Antunes alerta: “o trabalho que os capitais
exigem é aquele mais flexível possível: sem jornadas pré-determinadas, sem
espaço laboral definido, sem remuneração fixa, sem direitos, nem mesmo o de
organização sindical (...)” (ANTUNES, 2018, p. 42).
O teletrabalho, enquanto manifestação contratual dessas demandas, pode
figurar um meio pelo qual há a eliminação dos direitos do trabalho e da seguri-
dade social, intensificação da dupla jornada de trabalho e o incentivo à falta de
convívio social e coletivo e sem representação sindical (ANTUNES, 2018). Tendo
em vista esses fatores, é necessária uma análise atenta da sua regulamentação.
Anteriormente à pandemia, alguns países latino-americanos já contavam
com lei específica, a título de exemplo a Colômbia, em 2008. Nos casos de normas
já preexistentes, houve o tensionamento para modificações que considerassem as
circunstâncias peculiares infringidas pela pandemia. Por sua vez, nos países sem
legislação específica para a modalidade, o estabelecimento de um regramento
ganhou notoriedade (OIT, 2021a).
O regramento específico acerca de uma modalidade contratual, no presente
caso, do teletrabalho, esclarece o conceito, os direitos e deveres, como também
enuncia qual o patamar protetivo proporcionado pela legislação à categoria.
Articulando com a conjuntura apresentada de flexibilização dos contratos de
trabalho, o próximo tópico destina-se a analisar a regulamentação do teletrabalho
no Brasil, Argentina, Colômbia e México.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

3. A REGULAMENTAÇÃO DO TELETRABALHO NO
BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

Com mais de 100 anos de história, a OIT foi responsável pela criação
de diversos marcos de proteção ao trabalhador, através de convenções e reco-
mendações discutidas pelos Estados-membros, como o limite da jornada em 8
horas e outras estratégias, para assegurar parâmetros mínimos horizontais de
justiça social do trabalho entre os países-membros (OIT, 2006).
O teletrabalho não é matéria específica de regulamentação da OIT, entre-
tanto, a Convenção 177 e a Recomendação 184 tratam do trabalho a domicílio.
Servirá a Convenção como referencial para a análise da regulamentação do
teletrabalho nos países latino-americanos estudados por se tratar de tratado
internacional, ainda que apenas a Argentina a tenha ratificado, e a Recomen-
dação como diretriz auxiliar em caso de lacunas, por não ter caráter vinculante.
A OIT, em nota técnica (OIT, 2021a), definiu o conceito do teletrabalho.
Para tanto, deve-se entender que o local pré-determinado é o lugar físico onde
se espera que o trabalho seja realizado, levando-se em consideração o tipo de
ocupação e as tarefas a serem desenvolvidas. Considera-se trabalho em domi-
cílio como atividade desenvolvida, total ou parcialmente, na própria casa do
trabalhador, independente de qual seja seu lugar de trabalho predeterminado.
Por sua vez, o teletrabalho pode ser entendido como a modalidade originada
da combinação de lugar alternativo ou predeterminado e que requer o uso das
TICs. É possível notar a articulação dos conceitos, uma vez que o local pré-de-
terminado em ambos é alternativo. Logo, tanto o teletrabalho como o trabalho
a domicílio podem ser desenvolvidos, por exemplo, na própria residência do
trabalhador (OIT, 2021a).
Essas diretrizes têm como norma basilar a igualdade entre os trabalhadores
a domicílio e os demais que desempenhem a mesma ou semelhante função na
empresa. Da igualdade decorre o direito de aderir e participar das atividades de
organizações sindicais de sua escolha, a vedação de tratamento discriminatório
no emprego, o direito à proteção da segurança social e da saúde e segurança
do trabalho, à remuneração comparável à recebida pelo trabalhador presencial,
o acesso a treinamento, a proteção à maternidade e a fixação de idade mínima
de admissão.
A Recomendação prevê que os trabalhadores à domicílio devem ser infor-
mados por escrito ou por outro meio previsto na legislação nacional a respeito
das suas condições específicas de emprego. É determinado que as leis nacionais
de segurança e saúde no trabalho sejam asseguradas a esses trabalhadores, con-
siderando as características particulares da modalidade,.

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TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

Em relação à fiscalização, deve ser implementado um sistema compatível


com a legislação e a prática nacional para garantir o cumprimento da legislação
aplicável ao trabalho em domicílio, adotando as medidas apropriadas em caso
de descumprimento.
Ademais, determina que as autoridades públicas devem criar registro dos
empregadores, e se for o caso, dos intermediários que se utilizam desse tipo de
contratação, bem como indicá-los as informações que devem prestar. E, estabe-
lece que os empregadores devem manter registro de todos os empregados que
exercem suas atividades em domicílio, do trabalho confiado a eles indicando,
se houver, os custos assumidos pelo trabalhador, o montante do reembolso
correspondente e a remuneração, dentre outras informações.
É especificado que os trabalhadores em domicílio devem receber res-
sarcimento por gastos relativos ao trabalho, como consumo de energia, água,
internet, telefone e manutenção de máquinas e equipamentos, bem como pelo
tempo utilizado para manutenção destes entre outras atividades semelhantes.
Como meio de proteção da segurança e saúde do trabalhador em domi-
cílio, são apontadas como obrigações do empregador: informar os trabalha-
dores dos riscos do trabalho, ensinar as precauções e oferecer o treinamento
adequado; assegurar que as máquinas, ferramentas e outros equipamentos
providos sejam seguros e adotar medidas para a manutenção dessa segurança;
e, disponibilizar de forma gratuita qualquer equipamento pessoal de segurança
que for necessário.
Sempre que compatível com a legislação e a prática nacional em relação
à privacidade, os funcionários responsáveis pela fiscalização das normas que
regem o trabalho em domicílio devem ser autorizados a acessar as instalações
onde o trabalho é realizado.
Há previsão também de adoção de medidas para fomentar negociações
coletivas como meio de firmar condições de trabalho, e indicação de suprimir
restrições legislativas, administrativas ou quaisquer outros obstáculos que impeçam
o direito de constituir, escolher e participar de organizações de trabalhadores,
bem como, o direito de filiação sindical.
Diante das diretrizes apontadas pela OIT, tratará-se a seguir das legis-
lações adotadas pelo Brasil, Argentina, Colômbia e México.

3.1. A regulamentação do teletrabalho no Brasil

No Brasil, o teletrabalho foi regulamentado através da Lei 13.467, res-


ponsável pela Contrarreforma Trabalhista que modificou a Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT). O capítulo II-A da referida lei, que carrega como

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

nome “Do teletrabalho”, concentra o conceito, o modo de formalização desta


modalidade e direitos e obrigações dos trabalhadores e empregadores.
O art. 62, inc. III, determina a inaplicabilidade da garantia da jornada
fixada por lei de 8 horas diárias e o recebimento por horas extras e limitação
destas, o direito a períodos de descanso entre jornadas de 11 horas consecutivas,
o descanso semanal de 24 horas e mesmo o descanso intrajornada, bem como
a remuneração superior por trabalho noturno.
O teletrabalho, no art. 75-B, se caracteriza como a prestação de serviço
que ocorre majoritariamente em dependências externas a do empregador, com
a utilização das TICs, excluindo-se dessa modalidade as atividades que se cons-
tituam por natureza como trabalho externo, que é descrito como uma atividade
“incompatível com a fixação de horário de trabalho” (Lei nº 13.467, 2017).
O comparecimento do trabalhador às dependências do empregador para
atividades específicas que necessitem a presença daquele no estabelecimento
não desconfigura a modalidade, reafirmando a ideia de que as atividades não
são realizadas exclusivamente em ambiente diversos daquela do empregador,
esclarece o parágrafo único do art. 75-B.
A formalização da modalidade deve ocorrer por meio expresso no con-
trato individual de trabalho, especificando as atividades a serem realizadas pelo
trabalhador (art. 75-C), sendo possível por meio de acordo bilateral, oficializar a
mudança da modalidade de teletrabalho para a presencial e vice-versa, bem como
unilateralmente, por exclusividade do empregador, garantindo ao trabalhador
um período de adaptação de 15 dias.
A respeito da aquisição dos equipamentos tecnológicos ou da infraestru-
tura necessários ao trabalho, não há exigência expressa de que o empregador os
forneça, nem mesmo se responsabilize por reembolsos de despesas arcadas pelo
trabalhador, estando disposto somente a exigência de que as disposições acerca da
responsabilidade de adquirir, manter e fornecer seja prevista em contrato escrito.
Por fim, determina-se que o empregador tem o dever de instruir sobre
as precauções necessárias para evitar doenças e acidentes de trabalho e ao
trabalhador cabe assinar um termo comprometendo-se a seguir as instruções.
Essa legislação acerca do teletrabalho, durante a pandemia da covid-19,
sofreu modificações temporárias pelas Medidas Provisórias (MP) 927, de 22
de março de 2020, e 1.046, de 27 de abril de 2021,.
Estas trouxeram disposições, dentre essas o teletrabalho, com o intuito
comum de preservação do trabalho. Especificamente, as determinações da MP
927 objetivaram a proteção da renda e o enfrentamento do estado de calamidade
pública, enquanto as resoluções da MP 1.046, a sustentabilidade do mercado,

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TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

e o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública advinda


do coronavírus.
Em ambas as MPs, o teletrabalho é posto como sinônimo de trabalho
remoto e trabalho a distância, e a conceituação é uma cópia da previsão na CLT
com a inclusão da expressão “totalmente”, para se referir ao fato que a modali-
dade do teletrabalho pode ser totalmente fora das dependências do empregador,
ademais, segue caracterizada pelas tecnologias de informação e comunicação,
excluindo-se o trabalho externo.
A reversibilidade entre modalidade presencial e à distância, dispensava a
existência de acordos individuais ou coletivos, até o registro prévio no contrato
individual do trabalho, podendo ser modificada unilateralmente pelo empregador
mediante notificação do trabalhador da mudança com antecedência mínima
de 48 horas.
Sobre a responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento de
equipamentos e infraestrutura, repete-se a previsão do art. 75-D. Mantém-se
também a disposição sobre as compensações por gastos arcados pelos trabalha-
dores, sem especificar a quem incumbe esse feito, tão somente, estabelecendo o
prazo de 30 dias para firmar em contrato a previsão de quem seria o responsável,
caso não firmado anteriormente.
Dada a situação emergencial, é previsto medidas de como adequar o
trabalhador na modalidade de teletrabalho na hipótese de ausência dos equi-
pamentos tecnológicos e a infraestrutura necessária e adequada à prestação do
teletrabalho. Nessa linha, determinou-se a possibilidade do empregador fornecer
os equipamentos em regime de comodato e pagar por serviços de infraestru-
tura, para além disso, caso impossibilitado o regime de comodato, o período
da jornada normal de trabalho seria computado como tempo de trabalho à
disposição do empregador.
Ainda a respeito de jornada de trabalho, é previsto na MP 927 que “o
tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de
trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de
prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou
coletivo” (Lei nº 13.467, 2017), e na MP 1.046, estende-se para “softwares”,
“ferramentas digitais” e “aplicações de internet”. Por fim, ambas preveem a pos-
sibilidade desta modalidade ser adotada para estagiários e menores aprendizes.

3.2. A regulamentação do teletrabalho na Argentina

No caso da Argentina, a regulamentação da modalidade foi discutida desde


o ano de 2003; ano em que houve a aprovação da Convenção 177/OIT sobre o

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

trabalho a domicílio da OIT. Em 2020 o teletrabalho foi objeto de regulamentação


específica pela Lei 27.555/2020, que entrou em vigor em 2021. Incorporada ao
Título III “Das modalidades do contrato de trabalho” da Lei 20.744/1976.
A lei define o teletrabalho como sendo a realização de atos, execução de
obras ou prestação de serviços efetuados parcialmente no domicílio da pessoa que
trabalha ou em lugares distintos ao estabelecimento do empregador mediante
o uso das TICs.
Em relação aos direitos do trabalhador, no tocante à jornada de trabalho,
o horário deve ser acordado previamente. As plataformas e softwares utiliza-
dos pelo empregado devem ser desenvolvidos segundo o horário de trabalho
estabelecido. Regulamenta-se o direito à desconexão, ficando proibida qualquer
comunicação entre empregador e empregado após o expediente.
Ainda, para efeito de representação sindical, devem ser considerados
como integrantes do grupo dos que trabalham presencialmente e devem estar
vinculados ao centro de trabalho ou unidade produtiva para poderem eleger ou
serem eleitos na integração dos órgãos sindicais. Em termos de onerosidade, os
salários são iguais, tanto no regime presencial, quanto no remoto. No quesito
da reversibilidade, o consentimento do trabalhador que realiza a sua atividade
presencialmente para a modalidade de teletrabalho pode ser revogado pelo
mesmo a qualquer momento da relação laboral.
O empregador deve disponibilizar o equipamento as ferramentas de
trabalho, bem como é responsável pelos custos de instalação, manutenção e
reparo. Na hipótese do trabalhador utilizar as suas próprias ferramentas, será
indenizado. Além disso, o empregador deve garantir a capacitação de seus
dependentes em novas tecnologias e não utilizar softwares de segurança que
violem a privacidade do trabalhador.
O Ministério do Trabalho, Emprego e Previdência Social da Nação ditará
as normas de higiene e segurança no trabalho para quem trabalha em regime
de teletrabalho. Esse órgão será responsável também por determinar a inclusão
das doenças causadas por essa modalidade na lista de doenças ocupacionais.
Também, os acidentes ocorridos no local, dia e por ocasião de teletrabalho, são
considerados acidentes de trabalho nos termos da Lei de Riscos do Trabalho.

3.3. A regulamentação do teletrabalho na Colômbia

Na Colômbia, em 2008, a Lei 1221 entrou em vigência, estabelecendo


dispositivos para a promoção e regularização do teletrabalho. O art. 2º definiu
a modalidade como forma de organização laboral, que consiste no desempenho
de atividades remuneradas ou prestação de serviços a terceiros, utilizando como

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TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

suporte as tecnologias de informação e comunicação (TICs) para o contato entre


o trabalhador e a empresa, sem requerer a presença física do trabalhador em um
local específico de trabalho. O teletrabalhador, por sua vez, é aquele que desempe-
nha as atividades laborais por meio das TICs fora da empresa que presta serviço.
O mesmo artigo categoriza o teletrabalho nas seguintes modalidades: 1)
“autónomos” são aqueles que utilizam o domicílio ou um lugar escolhido para
desempenhar a atividade profissional; 2) “móviles” é a categoria que abrange os
teletrabalhadores que não possuem um lugar estabelecidos e tem como ferramenta
de trabalho essenciais as TICs, em dispositivos móveis; 3) “suplementarios” são
os trabalhadores que laboram por três dias em casa e os demais dias prestam
serviço em outra dependência.
As garantias laborais, sindicais e de seguridade social são regulamentadas
no artigo 6º. Foram excluídas para a categoria as regras atinentes à jornada de
trabalho, às horas extras e ao trabalho noturno. No mesmo dispositivo, há a
previsão da igualdade salarial, proibindo que a remuneração seja inferior àquela
recebida pelo trabalhador que preste serviços no local de trabalho do empregador.
Além disso, regulamenta a garantia ao direito ao descanso de caráter criativo,
recreativo e cultural.
A igualdade de tratamento deverá ser fomentada por meio do direito:
à constituição e à filiação em organizações; à proteção a discriminação no
emprego, em matéria de seguridade social e à maternidade; à remuneração; ao
acesso à formação; à uma idade mínima de admissão ao emprego ou trabalho;
à intimidade e à privacidade.
No que tange às obrigações dos empregadores, devem providenciar
e garantir os equipamentos de trabalho como programas, valor de energia e
deslocamentos. No fim do contrato, deverão ser restituídos os objetos em bom
estado, salvo se ocorrer deterioração natural. Ressalta-se que os equipamentos
somente podem ser ministrados pelo próprio trabalhador. Caso o empregador
não forneça informações e equipamentos para que o teletrabalhador exerça o
seu labor, não poderá deixar de remunerá-lo.
O empregador deverá contar com uma rede de atenção à urgência em caso
de acidente ou enfermidade do teletrabalhador no desempenho da atividade. No
momento da contratação do teletrabalhador, deverá informar aos Inspetores do
Trabalho do município, e onde não existam, ao “Alcalde Municipal”.

3.4. A regulamentação do teletrabalho no México

Por sua vez, no México, foi aprovada em dezembro de 2020, pelo Congresso
da União, durante a pandemia, a legislação que regulamenta o teletrabalho no

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

país. A Lei do Teletrabalho alterou a Lei Federal do Trabalho (LFT) acrescen-


tando o Capítulo XII Bis e entrou em vigor em janeiro de 2021.
A LFT conceitua o teletrabalho em seu art. 330-A como uma forma de
organização do trabalho subordinado em que o exercício da atividade remunerada
é realizado em um local diverso do estabelecimento patronal utilizando prin-
cipalmente tecnologias de informação e comunicação para contato e comando
entre o trabalhador e o empregador, não sendo exigida a presença física do
trabalhador no local de trabalho.
Esse ainda define as tecnologias de informação e comunicação como
o conjunto de serviços, infraestruturas, redes e dispositivos informáticos que
possuem a finalidade de facilitar o desempenho das funções nos centros de
trabalho assim como os necessários à gestão e transformação da informação e
o local de trabalho como aquele realizado em um lugar diferente das instalações
da empresa ou da fonte de trabalho do empregador.
Prevê ainda que para ser configurado o regime de teletrabalho é necessário
que mais de 40% da realização do trabalho se dê no domicílio do trabalhador
ou em outro domicílio de sua escolha.
A jornada laboral deve respeitar os limites máximos legais, bem como
a expressa garantia ao direito à desconexão, previsto no artigo 330-E, inciso
VI, da LFT. Os incisos I e III, determinam que a instalação e manutenção dos
equipamentos necessários, bem como os custos derivados são de responsabili-
dade do empregador.
Já o artigo 330-G prevê o direito de reversibilidade das partes para a
modalidade presencial quando acordado o regime de teletrabalho, devendo o
acordo ser voluntário e nos termos do disposto no capítulo sobre a modalidade.
Em relação ao poder diretivo e de fiscalização do trabalho por parte do
empregador, o artigo 330-I impõe limites ao seu exercício garantindo o direito
à privacidade e à proteção dos dados pessoais dos trabalhadores, permitindo o
uso de câmeras e microfones apenas em casos extraordinários, quando a natureza
do trabalho exercido o tornar necessário.
O Ministério do Trabalho e Previdência Social é o órgão responsável
pela elaboração de normas de saúde e segurança na modalidade, cabendo
aos Inspetores do Trabalho a fiscalização do cumprimento das obrigações
impostas nessas normas e assegurar que os salários dos teletrabalhadores não
sejam inferiores aos pagos aos trabalhadores presenciais que desempenhem
funções semelhantes na empresa, assim como outras obrigações previstas no
Capítulo XII Bis.

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TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

3.5. Panorama das legislações à luz das diretrizes da OIT

Assim, verifica-se que Argentina, Colômbia e México, em consonância


com as diretrizes da OIT, preveem em suas legislações a fiscalização por órgãos
competentes das normas trabalhistas. O Brasil, no entanto, se omitiu nesse tema
tanto na Contrarreforma de 2017 quanto nas Medidas Provisórias editadas
durante a pandemia.
De modo semelhante, o Brasil é o único país entre os objetos deste
estudo que deixou de abordar a organização sindical desses trabalhadores. No
entanto, apenas a Colômbia prevê também o direito de se constituírem novas
organizações, além do direito de se filiar a um sindicato.
Em relação à segurança e saúde no trabalho, a Argentina prevê a criação de
normas nessa área e a inclusão das doenças ocasionadas por essa modalidade de
trabalho na lista de doenças profissionais. O México também estabelece a criação
de normas de saúde e segurança. A Colômbia vai além, prevendo a necessidade
de haver uma rede de atendimento emergencial no caso de acidente ou doença.
Já o Brasil se limitou a assentar a obrigação dos empregadores instruírem os
seus empregados quanto às precauções necessárias.
À exceção do Brasil que se limitou a regular a possibilidade do reembolso
dos custos do trabalho e à exigência que estes integrem contrato escrito, os
demais países abordados estendem ao teletrabalho o entendimento de que os
custos do trabalho, das suas ferramentas são do empregador e não do empregado.
Quanto à jornada laboral, enquanto o México e a Argentina definem a
conformidade com o máximo legal, a Colômbia e o Brasil excluem esses traba-
lhadores do regime de jornada de trabalho.
No relatório intitulado “Working from Home: From invisibility to decent
work”, a OIT destacou as más condições de trabalho vividas pelos teletraba-
lhadores e realizou importante defesa da necessidade do equilíbrio entre as
obrigações laborais e a vida pessoal: o direito à desconexão (OIT, 2021c).
Enquanto a Argentina, a Colômbia e o México preveem expressamente
o direito à desconexão visando não transpor a vida pessoal e a profissional, a
legislação brasileira foi omissa também em relação a essa importante previsão.
A análise das legislações explicita a preocupante situação em relação à proteção
social dos teletrabalhadores no Brasil.
Observa-se que a legislação brasileira não somente está em desconfor-
midade com as recomendações internacionais, como é a mais precária entre as
quatro legislações nacionais estudadas em relação à proteção dos direitos dos
empregados que laboram nessa modalidade.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

4. TELETRABALHO, CONTRATAÇÃO ATÍPICA E


PRECARIZAÇÃO

As formas de contratação vêm sendo multiplicadas e diversificadas como


uma alternativa para reduzir custos e aumentar a liberdade do empregador na
contratação e despedida de trabalhadores (KREIN, 2007). A flexibilização,
assim, traz novas perspectivas para a regulação do trabalho.
Os contratos atípicos de trabalho ganham relevância nesse contexto. A
discussão surge da comparação realizada com um tipo ideal de trabalho, aquele
industrial, estável, subordinado a um único empregador, indeterminado e com
seguridade social (DE LA GARZA, 2011). Esse contrato típico foi construído
a partir da dinâmica social e cristalizado no Direito do Trabalho, após a Segunda
Guerra Mundial (KREIN, 2007).
A forma atípica da relação de emprego originada de um contrato válido
se manifesta pela “ausência, falência ou negação, total ou parcial, de um dos
caracteres constituintes da relação paradigmática de emprego, tal como resuma
do ordenamento jurídico-constitucional num determinado momento histórico,
apresenta uma diferença específica que a individualiza jurídica e socialmente”
(REDINHA, 2009, p. 63).
Os contratos atípicos não se vinculam necessariamente a categorias de
trabalhadores, eles são tipos que “permitem a adaptação das empresas às flu-
tuações econômicas, dispensando compromissos permanentes e custos com os
seus empregados” (KREIN, 2007, p. 113). Dentre as modalidades contratuais
entendidas como atípicas encontram-se os contratos intermitente, de prazo
determinado, em domicílio e teletrabalho.
No tocante ao teletrabalho, para que haja a sua configuração, conforme
o conceito adotado pela OIT, é imprescindível que a prestação seja realizada
através de recursos das TICs. Circunstância que rompe com a noção de padrão
do local de trabalho, facultando a sua realização fora da dependência da empresa,
descentralizando, assim, a atividade empresarial. O tempo de labor também é
afetado, uma vez que permite a realização da atividade em horários distintos
daqueles convencionais. A subordinação, requisito para configuração da rela-
ção de emprego, ganha novos contornos e definição, tendo em vista a falta de
controle físico sobre quem executa as tarefas.
No Brasil, a diversidade de formas de contratação acentuou a “ (....) hetero-
geneidade, excedente estrutural de força de trabalho, flexibilidade e concorrência
predatória entre os trabalhadores”, bem como impactou negativamente “(...)
na possibilidade da ação coletiva, pois as saídas apontadas são individualizadas
(empreendedorismo e empregabilidade), e o processo de segmentação traz

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TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

enormes problemas para a ação e a organização coletiva (KREIN, 2007, p. 128).


Circunstância que enuncia um alerta sobre a implementação das modalidades
atípicas de contratação nos demais países latino-americanos, em especial na
regulamentação do teletrabalho apresentada anteriormente.
Em razão da flexibilidade de local e tempo de desempenho do traba-
lho, o estabelecimento de uma jornada de trabalho revela-se essencial para a
manutenção de um patamar mínimo de proteção ao trabalhador, no entanto, o
regramento do mínimo de horas não é uma realidade contemplada por todas
as legislações. Influenciando a falta de previsão do direito à desconexão e o
recebimento de horas extras.
A ausência de previsão da fiscalização em algumas legislações revela o
lado da precarização relacionada às condições de trabalho, que perpassa a saúde
e segurança do trabalho, na medida em que não se averigua se o empregador
forneceu o mínimo necessário de equipamentos, treinamento e informações
sobre os riscos desencadeados pela modalidade.
Mesmo os países que preveem a fiscalização estatal das normas trabalhistas
enfrentam o dilema entre o direito à privacidade, a inviolabilidade do domicílio
e a promoção da segurança e saúde do trabalhador.
No que tange ao âmbito coletivo, a possibilidade de participação ou
constituição de organizações para os teletrabalhadores também não é uma
constante, o que torna enunciativo a dificuldade na busca coletiva por direitos
e na representação sindical, impactando a perda da identidade individual e
coletiva dessa categoria.
É notório o esvaziamento de direitos da regulamentação do teletrabalho
em comparação ao contrato típico de emprego. A fragilização da organização dos
trabalhadores, a perda de direitos e a flexibilização do Direito do Trabalho são
indicadores da precarização social do trabalho, o qual é um “processo econômico,
social e político que se tornou hegemônico e central na atual dinâmica do novo
padrão de desenvolvimento capitalista - a acumulação flexível - no contexto
de mundialização do capital e das políticas de cunho neoliberal (DRUCK,
2020, p. 500).

5. CONCLUSÃO

O teletrabalho ganha destaque no contexto das formas contratuais pre-


vistas nos marcos regulatórios das relações trabalhistas diante da pandemia
vivenciada a partir de 2020. Essa modalidade contratual faz parte do processo
de flexibilização das leis trabalhistas, que ganha notoriedade devido às políticas
de cunho neoliberal engendradas na América Latina desde a década de 1990.

<< Retorne ao sumário 21


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Ante essa prática flexibilizadora e como consequência da pandemia da


covid-19, o Brasil, a Argentina, Colômbia e México passam a aprovar legisla-
ções próprias que regulamentam o teletrabalho. Antecedendo essas leis, a OIT
adotou a Recomendação e a Convenção que tratava do trabalho a domicílio e,
em razão do momento pandêmico, editou publicações que tratam especifica-
mente da modalidade.
As legislações apresentadas compõem os contratos atípicos, que provocam
a ruptura do contrato típico de emprego. Caminha-se então para a precarização
social do trabalho, manifestada no déficit de direitos trabalhistas e na perda da
centralidade do direito do trabalho. Logo, em um momento de crise sanitária
como a atual, os trabalhadores ficam à deriva, buscando ter os direitos asse-
gurados, como a jornada de trabalho, direito à desconexão, direito à saúde e à
segurança no trabalho e direito à organização e filiação sindical.

REFERÊNCIAS

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1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
ARGENTINA. Ley n. 20.744, de setiembre de 1974. Ley de Contrato de trabajo
[Meio eletrônico]. Buenos Aires, Argentina, 1974.
ARGENTINA. Ley n. 27.555, de 30 de julio de 2020. Régimen legal del contrato de
teletrabajo. [Meio eletrônico]. Buenos Aires, Argentina, 2020.
BRASIL. Decreto-lei n. 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis
do Trabalho. [Meio eletrônico]. Brasília, DF, 1943.
BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as
Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24
de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. [Meio
eletrônico]. Brasília, DF, 2007.
BRASIL. Medida Provisória nº 1.046, de 27 de abril de 2021. Dispõe sobre as medidas
trabalhistas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância inter-
nacional decorrente do coronavírus (Covid-19). [Meio eletrônico]. Brasília, DF, 2021.
BRASIL. Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020. Dispõe sobre as medidas
trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo
Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública
de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras provi-
dências. [Meio eletrônico]. Brasília, DF, 2020.

<< Retorne ao sumário 22


TELETRABALHO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REGULAMENTAÇÃO
NO BRASIL, ARGENTINA, COLÔMBIA E MÉXICO

COLÔMBIA. Ley 1221 de 2008, de 16 de julio de 2008. Por la cual se establecen


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<< Retorne ao sumário 23


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

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DIREITO FUNDAMENTAL À
INTIMIDADE GENÉTICA NAS
RELAÇÕES DE TRABALHO

Cristiana Maria Santana Nascimento1

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo analisar e discutir sobre o biodireito com
finalidade da perspectiva dos direitos fundamentais no tocante aos direitos da
personalidade produto de paradigmas na sociedade contemporânea a proteção
da pessoa humana, para assim se chegar na engenharia genética e compreender
os processos de criação, armazenamento, disseminação e processamento das
informações obtidas com o mapeamento genético, bem como se examinará a
dimensão e perspectiva da privacidade, diante de questões éticas e jurídicas.
Ocorre que, a informação genética integra a intimidade do indivíduo e
pode ter propósitos de risco, como por exemplo, novas políticas eugênicas para
que haja a reprodução do ser com características especificas e sem patologias,
como também submeter um empregado ao mapeamento genético no seu exame
admissional dentro de uma empresa que contrata funcionários com especifici-
dades, entre outros abusos de ordem moral.
Ao longo ditadura, morreram milhares de brasileiros, afora outros tantos que
foram torturados e exilados, a Assembleia Nacional Constituinte produziu a melhor
Constituição que, na circunstância, poderia produzir, com avanços sociais extraor-
dinários, além da consagração de direitos e garantias fundamentais, que o povo
brasileiro depositou grandes esperanças e aspirações (MASCARENHAS, 2010).
Com o surgimento do Estado Democrático de Direito estabelecido pela
Constituição Federal de 1988, podemos entender que:
No sentido formal o Estado de Direito apresenta preocu-
pação com a segurança jurídica, estipulando a estabilidade

1 
Professora de Graduação e Pós-Graduação. Assessora Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Doutoranda
em Direito na Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito na Universidade Federal de Sergipe. Pós
graduada em Direito e Processo do Trabalho na UNIDERP.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

da coisa julgada, do ato jurídico perfeito ou prevendo a


garantia da legalidade e da irretroatividade da lei, dentre
outras medidas assecuratória, sendo chamado de Estado
vigilante da ordem social. Através do sentido material,
têm-se o Estado Democrático, pautado por matérias que
revelam sua intenção na busca da justiça social, da dimi-
nuição das desigualdades regionais e sociais, da erradicação
da pobreza e marginalização (FERREIRA, 2010, p. 4).
Nesse caso, o Estado Democrático promove bem-estar social, igualdade,
saúde, educação, segurança, na busca dos objetivos fundamentais
José Afonso da Silva observa que:
[...] é a primeira vez que uma Constituição assinala espe-
cificamente, objetivos do Estado brasileiro, não todos, que
seria despropositado, mas os fundamentais, e, entre eles, uns
que valem como base das prestações positivas que venham
a concretizar a democracia econômica, social e cultural, a
fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana)
(SILVA, 2008, p. 105-106)
Dispõe o artigo 1º caput e o inciso III da Constituição Federal de 1988.
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: [...]; III- a dignidade da pessoa humana”.2
Considerado um direito humano fundamental, o direito à vida ele é
ético e histórico e que esse conceito traz a ideia de “complexidade também
pela esperança religiosa e pela especialização da Medicina e exige tratamento
particularizado dentro dos preceitos da Bioética e do Biodireito”.3
Devido a vulnerabilidade de indivíduos e da coletividade a integridade pes-
soal passou a ser protegida e sua integralidade pessoal respeitada e com o avanço
da ciência alguns cientistas tiveram a condição de identificar genes que sejam
responsáveis por mutações, proteínas e também na relação de diversas doenças.
Em relação a ética podemos refletir sobre o agir humano, levando em
consideração que a responsabilidade é uma projeção das suas ações, pois pro-
curamos compreender o homem e sua condição. Dessa forma ética do futuro,
não designa ética no futuro, o que designa é uma ética futura concebida hoje
para os nossos descendentes futuros, no entanto a ética de hoje se inquieta com

2 
BRASIL, Constituição da República Federativa de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 29 jan. 2020.
3 
VILBERT, Jean Thiago Pereira. Disponível em: http://unoesc.edu.br/mala/S%C3%A9rie%20Direitos%20
Fundamentais%20Civis%20Tomo%20V.pdf. Acesso em: 25 jan. 2020.

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DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE GENÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

o futuro estendendo a proteção para os nossos descendentes, das consequências


do nosso agir presente ( JONAS, 1998).
Face os avanços tecnológicos, muitos indagam quando há violação a
algum direito fundamental no uso de alguma informação genética no sentido
de discriminação ou até mesmo desrespeitando a intimidade genética do indiví-
duo, faz- se necessário analisar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
de trabalho, bem como o direito a proteção da intimidade genética como um
direito fundamental.

2. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS


RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE TRABALHO

Os avanços tecnológicos iniciaram-se com a mecanização do setor têx-


til, essencialmente com as Revoluções Industriais, diante desses processos de
transformações econômicas, políticas e sociais buscavam-se justificar e regular
a ordem capitalista burguesa e ao final da Segunda Guerra Mundial, a ciência
era a fonte do bem-estar material da sociedade.
“A ciência era a fonte da ordem, e a compreensão já não podia ser consi-
derada uma pura benção para o melhoramento inevitável da condição humana”
(POTTER, 2016, p. 79).
Com o surgimento do sentimento constitucional, que se deu com a
Constituição Federal de 1988, notadamente a aptidão de simbolizar conquistas
e de mobilizar o imaginário para esses avanços, imitando-se a traçar os prin-
cípios para serem cumpridos pelos órgãos, ao regular direta e imediatamente,
determinados interesses.
A esse alcance da aplicabilidade do artigo 5º, parágrafo primeiro da
Constituição Federal de 1988, é capaz de conferir efetividade imediata aos
direitos fundamentais, o que não acontece com as normas de eficácia mediata,
como avalia Sarlet (2009, p. 77) “indica que normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais possuem aplicabilidade imediata, excluindo, em prin-
cípio, o cunho programático destes preceitos, conquanto não existe consenso a
respeito do alcance deste dispositivo”.
No entanto a Constituição de 1988, consagrou expressamente uma gama
de direitos fundamentais sociais, considerou todos os direitos fundamentais
como normas de aplicabilidade imediata, e que boa parte dos direitos funda-
mentais sociais, se enquadra, por sua normatividade, no grupo dos direitos de
defesa, razão pela qual não existem maiores problemas em considerá-los normas
autoaplicáveis.

<< Retorne ao sumário 27


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Os direitos fundamentais sociais, se enquadram na categoria das normas


dependentes de concretização legislativa e podem ser também denominados
de normas dotadas de baixa densidade normativa em virtude do princípio da
aplicabilidade imediata, não há, por certo, como sustentar que se dê de forma
idêntica aos direitos de defesa.
Essa vinculação da eficácia jurídica e social a todos os receptores norma-
tivos, ou seja, os particulares e os entes políticos, que possui obrigatoriedade de
percorrerem o caminho dos direitos fundamentais, sem a intervenção legisla-
tiva, e a irrestrita eficácia prescrita em sede constitucional firma que os direitos
fundamentais são normas gerais e concretas.
A partir do momento em que houve renúncias recíprocas a liberdade, e a
transposição de um estado de natureza para um estado civil, conclui-se que deve
haver proteção aos direitos humanos, “mas que agora se torna direito positivado,
embora mantenham diretrizes axiológicas a resguardar, e necessitam, pois, de
uma efetivação crítica e emancipatória” (MARQUES, 2007, p. 39).
No âmbito do Direito Privado importante é estabelecer uma distinção
entre eficácia vertical e a horizontal dos direitos fundamentais:
A eficácia vertical determina a vinculação das entidades
estatais aos direitos fundamentais. Enquanto que a eficácia
horizontal consiste na vinculação dos direitos fundamentais
no âmbito das relações entre particulares, mais propriamente
da vinculação desses aos direitos fundamentais (SARLET
2007, p. 46-47).
A problemática da vinculação à efetividade desses direitos não pode ser
esquecida sob pena, não de não o resolver, mas de sequer compreendê-lo em
sua real dimensão, há muito a se fazer com o intuito de contornar tal situação e
encontrar perspectivas que permitam ao menos amenizar tais empecilhos, por
outro lado possível conferir maior proteção aos direitos fundamentais com o
desenvolvimento global da civilização humana.
Nesse sentido os direitos fundamentais somente terão eficácia se for con-
cretizada sua delimitação, extensão e fundamentação e assim, serem incluídos no
conjunto de valores sociais, desta sociedade globalizada, multicultural, dinâmica
e que está em constante transformação, para assegurar a sua efetivação será
através da conscientização, informação, educação, e da participação pública, para
não caírem no esquecimento, destacando que não se pode rejeitar as conquistas
obtidas até o presente momento.
Fato é que a ideia de um Estado Democrático de Direito, perante a atual
Constituição da República, Federativa do Brasil, centra-se na essência da inter-

<< Retorne ao sumário 28



DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE GENÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

pretação do conteúdo dos direitos fundamentais, de modo que os princípios e


as regras devem comandar e nortear a atividade do Estado.
No tocante às relações de trabalho, “o trabalhador deve ter asseguradas
as oportunidades iguais, de acordo com as suas possibilidades que os demais
membros da sociedade têm, por uma questão isonômica que se reflete em diversas
situações da vida trabalhista” (NASCIMENTO, 2011, p. 63).
Analisando as características de uma relação jurídica, pode-se dizer que o
trabalhador ele apresenta-se como um indivíduo comprometido, inserido numa
organização alheia, submetido a uma subordinação, que mesmo sendo numa
relação privada, possui relevância jurídica e social, sendo nesse caso, garantidor
de um direito fundamental (AMARAL, 2007).
Pode-se identificar que “a luta pelo reconhecimento é, portanto, luta por
uma máscara, mas esta coincide com a personalidade que a sociedade reconhece
em cada indivíduo” (AGAMBEN, 2015, p. 84).
“No contrato de trabalho, a limitação do poder do empregador, da qual
resulta a teoria do direito do trabalho destinado a beneficiar com um apoio
jurídico aquele que está em inferioridade” (NASCIMENTO, 2011, p. 62).
Ainda assim, observa-se que a ordem econômica dá prioridade aos valores
do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado.
“Fica clara a ideia da importância da proteção do trabalhador pelo direito por ser
economicamente frágil, por ser a parte fraca do contrato individual do trabalho”
(NASCIMENTO, 2011, p. 73).
Bem como os direitos e as garantias constitucionais protegidos no interesse
da ordem pública social, abrandando o rigor das leis convenientes para alguns
fins sem perder o sentido do direito do trabalho e a proteção a dignidade do
trabalhador

3. DIREITOS DA PERSONALIDADE E DIREITO A


INTIMIDADE DO TRABALHADOR

Considerando a essência dos direitos fundamentais no que diz respeito a


proteção da dignidade e da personalidade humana, vislumbra-se na Constitui-
ção Federal de 1988 a concepção genérica do direito à privacidade que no seu
sentido amplo, molda-se a comportar toda e qualquer forma de manifestação
da intimidade e imagem. Dessa forma envolve, portanto, o direito à intimidade,
à vida privada, à honra, à imagem das pessoas dentre outros (TAVARES, 2012).
O ordenamento jurídico brasileiro, através dos diplomas legais Consti-
tuição Federal de 1988, o Código Civil Brasileiro de 2002, estabelecido pela

<< Retorne ao sumário 29


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, correspondendo o capítulo II, que


trata dos Direitos da Personalidade, estabelecido nos artigos 11 a 21 e na lei nº
13.709, de 14 de agosto de 2018, lei geral de proteção de dados pessoais, que
protegem os direitos personalíssimos devido a sua característica baseada na
intransmissibilidade pelo fato de se tratarem de direitos inerentes à dignidade
da pessoa humana,
Essa categoria de direitos, constituem direitos atinentes à tutela da pes-
soa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade, tendo em
vista que o homem, como pessoa se manifesta sob dois interesses fundamentais
“como indivíduo, o interesse a uma existência livre; como participe do consórcio
humano, o interesse ao livre desenvolvimento da vida em relações” (TEDE-
DINO, 2002, p. 24-25).
Por outro lado, tem-se a personalidade como um “conjunto de caracte-
rísticas e atributos da pessoa humana, considerada como objeto de proteção por
parte do ordenamento jurídico, a pessoa, deve ser tutelada das agressões que
afetam a sua personalidade, identificadas como situações jurídicas erga ommes”.
Sendo assim considerada como sujeito de direito, dessa forma a personalidade é
um conjunto de atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano, constituem
bens jurídicos em si mesmo, dignos de tutela privilegiada.4
No entanto, quando falamos em direitos de personalidade, não estamos
identificando aí a personalidade como a capacidade de ter direitos e obrigações;
estamos então considerando a personalidade como um fato natural, como um
conjunto de atributos inerentes à condição humana; estamos pensando num
homem vivo e não nesse atributo especial do homem vivo, que é a capacidade
jurídica em outras ocasiões identificada como a personalidade.5
Barroso afirma que existem duas características esses direitos que mere-
cem registro a seguir:
A primeira característica é que tais direitos, atribuídos a
todo ser humano e reconhecidos pelos textos constitucio-
nais modernos em geral, são gerais, são oponíveis a toda
coletividade e também ao Estado. A segunda característica
peculiar dos direitos da personalidade consiste em que
nem sempre sua violação produz um prejuízo que tenha
repercussões econômicas ou patrimoniais, o que ensejará
formas variadas de reparação, como o direito de resposta,
a divulgação de desmentidos de caráter geral e ou a inde-
nização pelo dano não-patrimonial ou moral, como se
convencionou denominar (BARROSO, 2004, p. 12).
4 
TEPEDINO, G. Tema de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 27.
5 
Idem. 27.

<< Retorne ao sumário 30



DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE GENÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Podemos nos referir sobre a existência autônoma dos direitos da persona-


lidade, através da tutela inserida no ordenamento civil-constitucional brasileiro,
uma vez que, o direito da personalidade nasce imediatamente e contextualmente
com a pessoa, correspondendo a direitos inatos, tendo em vista que, o princípio
da igualdade em que “todos nascem com a mesma titularidade e com as mesmas
situações jurídicas subjetivas. A personalidade comporta imediata titularidade
de reações personalíssimas” (TEPEDINO, 2001, p. 42).
Da mesma forma, ensina-nos Mônica Castro, que podemos identificar
direitos inatos no sentido de que não é necessário a pratica de ato de aquisição,
posto que inerentes ao homem, bastando o nascimento com vida para que passem
a existir, os direitos da personalidade que vem sendo reconhecido igualmente
aos dos nascituros6.7
A personalidade vem do latim persona, que significa máscara, e guarda
estreita vinculação com as noções de pessoa e personagem (SILVA; OLI-
VEIRA, 2006).
Doravante os direitos da personalidade são separados da seguinte forma:
Os direitos à integridade física, que engloba o direito à
vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver e os
direitos à integridade moral, rubrica na qual se inserem os
direitos à honra, à liberdade, à vida privada, à intimidade,
à imagem, ao nome e o direito moral do autor, dentre
outros. Dessa forma os que interessam nessa analise são os
direitos em especial à vida privada, à intimidade, à honra e
à imagem, proclamados pela Constituição Federal de 1988
e centralizados na dignidade da pessoa humana (BAR-
ROSO, 2004, p. 13).
Como analisa Bittar o direito da personalidade possui elementos extrínse-
cos e intrínsecos que consideram o ser humano como um ser social, dessa forma
temos os direitos físicos, que incluem a vida, à integridade física, ao corpo, a
partes do corpo próprio ou alheio, ao cadáver e suas partes e à voz; os psíquicos
temos os direitos à liberdade de pensamento, de expressão, de culto, e liberdades
em geral, à intimidade ou privacidade, integridade psíquica e ao segredo ou
sigilo; já os morais são alusivos à hora objetiva e o sentimento próprio como

6 
Nascituro: o que está por nascer, mas já concebido no ventre materno. Para Nader “a lei alcança, ipso facto,
a condição do embrião, tal ilação se obtém mediante a interpretação extensiva (NADER, 2008, p. 290)”.
Artigo 2º do Código Civil de 2002: a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a
lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. BRASIL, República Federativa. Lei nº 10.406 de
10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso
em 14 de janeiro de 2020.
7 
CASTRO, M. N. A. da S.. Honra, imagem, vida privada e intimidade, em colisão com outros direitos.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

valor individual atinentes à moral de um indivíduo como a proteção a boa fama


concernentes à honra subjetiva (BITTAR, 2008).
Entretanto, cumpri-nos referir ao conjunto pelo modo de ser, físico e
moral, da pessoa, ou seja, direitos reconhecidos ao homem, tomado em si mesmo
e em suas projeções na sociedade (TAVARES, 2012).

3.1. Direitos à intimidade

Segundo René Dotti, apud Tavares, a intimidade “é a esfera secreta da


vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais. Esse direito
é utilizado como sinônimo da expressão direito à privacidade” (2012, p. 676).
Tavares utiliza-se da ideia de que “a intimidade seria a camada ou esfera
mais reservada, cujo acesso é de vedação total e muito restrito, geralmente para
familiares” (TAVARES, 2012, p. 676).
Importa-se Barroso quando ainda no campo do direito da privacidade,
indica que a doutrina e jurisprudência costumam identificar um elemento decisivo
na determinação da intensidade de sua proteção, devido ao grau de exposição
pública da pessoa, em razão de seu cargo ou atividade, ou mesmo de alguma
circunstância eventual, tendo em vista que, a privacidade de indivíduos de vida
pública como políticos, atletas, artistas, sujeita-se a parâmetro de aferição menos
rígido do que os de vida estritamente privada, isso decorre da necessidade de
auto exposição, de promoção pessoal ou interesse público na transparência de
determinadas condutas.8
O direito à intimidade pode ser considerado como direito à privacidade,
o ordenamento constitucional distingue da seguinte forma “quando se trata de
intimidade do cidadão é sua vida privada, no recesso do lar, sendo as pessoas
protegidas da vida privada ao segredo do direito à intimidade e a liberdade da
vida privada ao direito à vida privada” (RAMOS, 2008, p. 18).
A intimidade é inerente à natureza humana, “no Código Civil é tratada
como direito da personalidade e no âmbito da Constituição Federal de 1988,
como direito fundamental” (TOALDO et al., 2012, p. 6).
Podemos considerar que o direito à privacidade corresponde a faculdade
de que todo e qualquer indivíduo mantém fora do alcance de terceiros fatos
inerentes a sua própria pessoa ou atividade particular. É concebida em seu estado
lato, como um conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir
manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde
e em que condições, sem a isso poder legalmente sujeito, dessa forma embarca

8 
Idem. 14.

<< Retorne ao sumário 32



DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE GENÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

todas as manifestações das esferas íntimas, privados e de personalidade, que o


texto constitucional consagra.9
Diante da evolução dos meios tecnológicos, a vida íntima das pessoas
ficou-se ainda mais vulnerável às exposições e com a evolução da Medicina,
observamos que a tecnologia tem sido uma grande aliada para possíveis curas
e observâncias de prováveis doenças futuras e a partir disso, há necessidade de
se proteger em especial a privacidade e a intimidade.

3.2. Direito à imagem10

Podemos assegurar que o direito a imagem amolda-se a partir do reconhe-


cimento da autonomia pessoal, dos valores relacionados a pessoa, que se mani-
festa através da reprodução da imagem, valendo-se da proteção da Constituição
Federal de 1988, como também é amparada pelo artigo 2111 do Código Civil
brasileiro, nesse sentido se deve impedir violações ou perturbações, recorrendo
então ao Poder Judiciário, para cessar as lesões sofridas.
No Estado brasileiro a compreensão da palavra imagem abrange todos os
elementos caracterizadores da sua singularidade ou ainda que possam ser como
bens autônomos, tendo em vista que, envolvem além do Ser físico, abrange o
modo, a forma, que esses Ser possa ser, no seio da sociedade em que vive e com
a qual convive (SILVA; OLIVEIRA, 2006).
Daí a necessidade de se proteger a representação física do corpo humano
ou qualquer de suas partes, ou ainda de traços característicos da pessoa pelos
quais ela é reconhecida. No entanto, a reprodução da imagem depende, em regra,
de autorização do titular, por isso podemos informar que a imagem é objeto de
um direito autônomo, embora sua violação venha associada, com frequência à
outros direitos da personalidade (CASTRO, 2002).
“Compreende-se que não apenas o semblante do indivíduo, mas partes
distintas do seu corpo, sua própria voz, enfim, quaisquer sinais pessoais de
natureza física pelos quais possa ser ela reconhecida” (CASTRO, 2002, p. 17).

9 
RAMOS, Cristina de Mello. O direito fundamental à intimidade e a vida privada. Revista de direito
da unigranrio 2008. Disponível em: http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr/article/view-
File/195/194. Acesso em: 10 jan. 2020.
10 
Imagem, vem do latim imago, inis, representação, forma, imitação, aparência. Disponível em: http://www.
priberam.pt/dlpo/imagem. Acesso em: 22 jan.2020.
11 
Artigo 20: Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem
pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da
imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber,
se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais (CÓDIGO
CIVIL DE 2002.). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em:
20 jan. 2020.

<< Retorne ao sumário 33


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

A imagem é a apresentação, por desenho, impressão ou obra, de figura,


pessoa ou coisa. Define-se o direito à imagem como a tutela da imagem física
da pessoa, contra ato que a reproduza ou a represente em fotografias, filmagens,
retratos, pinturas, gravuras, aquarelas ou até esculturas. O direito à imagem alcança
a conformação física da pessoa nas suas mais diversas dimensões, sua expressão
externa, em seu conjunto ou em sua silhueta, contornos ou partes do corpo.12
A simples notoriedade ou popularidade de uma pessoa, não é por si só,
suficiente para a autorizar a utilização de sua imagem, sem o expresso consen-
timento, que há de se fazer presente, como justificativa para publicação de sua
imagem, exigência de interesse público.13
“A pessoa está protegida contra a reprodução infinita ainda que tenha
havido veiculação autorizada de sua imagem, salvo autorização expressa ou
contrato com essa finalidade, expressa ou implícita, como usualmente são os
contratos para divulgação artística com modelos”. Prevalece o direito à imagem
inclusive em face dos modernos meios de comunicação em massa, então o direito
pode ser oposto a jornais, revistas, rádios, televisão e internet.14
Podemos entender que o direito à imagem abrange não só a face da
pessoa alcança também a qualquer parte distinta do corpo, ou seja, reprodução
da em meios e instrumentos mais diversos até mesmo por meio de exames de
sequenciamento genético, o qual identifica-se diagnóstico de condições de
interesse clínico, como doenças raras e tumores.

4. DIREITO À INTIMIDADE GENÉTICA COMO


DIREITO FUNDAMENTAL

Com as novas tecnologias, os avanços da engenharia genética estudos sobre


genoma humano têm contribuído para um estudo do mapeamento genético e
muitas vezes apresentados nas relações de trabalho; que, toda esta exposição tem
sido referência para a bioética e perspectivas dos direitos humanos.
Comparatto compreende que:
Na etapa atual da evolução, como todos reconhecem, o
componente cultural, ou seja, o elemento criado pelo pró-
prio homem, é mais acentuado que o componente natural,
pelo gênero humano até o aparecimento da linguagem, a
evolução cultural foi quase imperceptível. A partir de então,
12 
TAVARES, obra citada, p. 689-690.
13 
SILVA, Ilza Andrade Campos; OLIVEIRA, José Sebastião. Direito à imagem e liberdade de expressão à
luz dos direitos da personalidade. Revista jurídica cesumar, v. 6, n. 1, p. 405. Disponível em: http://periodicos.
unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/viewFile/319/178. Acesso em: 22 jan. 2020.
14 
TAVARES, obra citada, p. 690.

<< Retorne ao sumário 34



DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE GENÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

porém, ou seja, a contar desse marco histórico decisivo,


ocorrido há cerca de 40 mil anos, a evolução cultural cres-
ceu mais rapidamente do que nos milhões de anos que a
precederam. O homem perfaz assim, indefinidamente, a
sua própria natureza, ao mesmo tempo que transforma a
guerra, tornando-a sempre mais dependente de si próprio
(COMPARATTO, 2006, p. 26).
A bioética, na verdade, não é uma nova disciplina ou uma nova ética:
ela é mais um conjunto de pesquisas, de discursos e de práticas, geralmente
pluridisciplinares, cujo objeto é o esclarecimento ou a solução de questões de
caráter ético, suscitadas pelas inovações científicas e tecnológicas que tornaram
possível agir sobre fenômenos vitais de maneiras há algumas décadas conside-
radas impensáveis (FARALLI, 2006, p. 74).
Seguindo o pensamento, observa-se que a necessidade de regulamentação
jurídica entra em conflito nas sociedades pluralistas contemporâneas, uma vez
que há a ausência de valores compartilhados, o que gera o risco na criação de
limites ou decretos ou leis (FARALLI, 2006, p. 75).
No entanto a intimidade genética é o direito a determinar as condições,
a qual se configura sobre dois prismas elementares:
O elemento objetivo do direito à intimidade genética ao se
referir ao genoma humano em ultima instância e por deri-
vação, a qualquer tecido ou parte do corpo humano em que
se encontre a informação genética; e o elemento subjetivo,
que se constitui pela vontade do sujeito de determinar que
está em condições se podem acessar a informação sobre seu
genoma refere-se por isso a autodeterminação informativa
(RUIZ, 200, p. 150).
A intimidade genética, nesse caso, pode ser considerada um direito fun-
damental ligado a privacidade, como também dignidade da pessoa humana, o
que pode considerar a ligação entre a intimidade, privacidade e a imagem, posto
que a privacidade é mais ampla.
Para Hammerschmidt:
O direito à intimidade, antes representado basicamente
por uma dimensão negativa ou defensiva, requer hoje a
observação de sua dimensão positiva, no que diz respeito
a uma faculdade ativa de controle sobre a informação, os
dados e todos os registros objetivos que dizem respeito à
esfera íntima, cuja divulgação pode vir a causar prejuízos
(2008, p. 96-97).

<< Retorne ao sumário 35


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

O indivíduo tem o direito de decidir se deve ou não expor seus dados


genéticos, respeitando o direito à intimidade genética, que se deve ao conceito
de intimidade em geral.
A intimidade genética está inserida em diversas normas e textos inter-
nacionais que são compostos por órgãos e mecanismos que estimulam a sua
aplicação e que permitem o controle para tornarem concretos os preceitos das
convenções internacionais e das questões que são conexas.
As convenções são consideradas tratados multilaterais com função norma-
tiva. Sobre a relação da privacidade com os dados genéticos, as investigações sobre
o genoma humano têm como objeto mediato e imediato o conhecimento das
características do DNA humano, de seus componentes integrantes, suas funções
e sua participação na transmissão da herança genética (MYSZCZUK, 2006).
O artigo 225, §1º, inciso II da Constituição Federal de 1988, estabelece
que se deve “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material
genético”.
Em face das disposições internacionais, temos a Declaração Universal sobre
o genoma e os Direitos Humanos, Convênio relativo aos Direitos Humanos e
Biomedicina do Conselho da Europa, Declaração Internacional sobre os dados
genéticos Humanos da Unesco, Programa sobre os Aspectos Éticos, Jurídicos e
Sociais do PGH, Convênio do Conselho da Europa sobre Direitos Humanos e
Biomedicina, Problemas Éticos e Jurídicos na Manipulação Genética entre outros.
A Declaração Universal sobre Genoma e os Direitos Humanos foi aprovada
pela XXIX Conferencia da UNESCO, regulamentou vários assuntos tratados
sobre investigações genéticas de elaboração, ainda verifica na declaração em um
dos capítulos intitulados “a dignidade humana e o genoma humano” verifica o
quão importante é o princípio e norteador de outros direitos da personalidade,
como, o da privacidade.
Sendo conduzido de forma errada, pode se relacionar ao determinismo
genético, discriminação15 , reducionismo, eugenia e até mesmo o racismo genético,
ou seja, quando se tratar de um acesso que não fora autorizado. A Declaração
Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco16 em seu o artigo
8º dispõe que: “Na aplicação e no avanço dos conhecimentos científicos, da
15 
Todas las controversias morales que eclosionan en virtud de los avances de la biomedicina y que señalan
un interés bioético, poseen un alcance jurídico y legal o, en otras palabras, biojurídico o biolegal. La mani-
pulación genética, el enhancement neurocognitivo, la eugenesia en estado embrionario, el diseño de bebés,
la predeterminación genética de rasgos físicos, y el uso de la información genética, son sólo algunas prácticas
possibilitadas por el desarrollo de las técnicas biomédicas (VALDÉS, 2015).
16 
Pf. em outubro de 2005, a Conferência Geral da UNESCO adoptou por aclamação a Declaração Uni-
versal sobre Bioética e Direitos Humanos. Pela primeira vez na história da bioética, os Estados-membros

<< Retorne ao sumário 36



DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE GENÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

prática médica e das tecnologias que lhes estão associadas, deve ser tomada em
consideração a vulnerabilidade humana”.
A Convenção 111 da OIT define o termo discriminação como toda
distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião
política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou
alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego
ou profissão; qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por
efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria
de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro Interessado
depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e traba-
lhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados.
“O princípio da valorização do trabalho enquanto valor superior do
ordenamento, obriga que o trabalho humano seja merecedor de um tratamento
regulador que garanta à pessoa física uma tutela básica ou essencial em sua
relação de trabalho” (MEIRELLES, 2018, p 29).
A exigência de testes genéticos prévios admissionais e demissionários que
revelam se o empregado terá alguma doença, avaliação familiar genética ou até
mesmo medir a capacidade de trabalho são reveladores quanto à personalidade
e intimidade da pessoa, haja vista encontra-se em ausência de controle de con-
tenção de informações após a sua divulgação.
No campo do mercado de trabalho, objeto desta pesquisa,
mais uma vez ressalta-se que poderá acarretar a exclusão
do empregado ou a não contratação do candidato que tem
probabilidade de desenvolver a doença, muitas vezes apenas
em um futuro remoto e sob certas condições ambientais
(ECHTERHOFF, 2010, p. 82-83).
Através dos testes genéticos ou screening, obtém-se informações sobre
o diagnóstico de doenças, identificação de indivíduos e estabelecem-se as
suas características biológicas e de seus familiares. “O teste genético é a mais
importante aplicação prática do conhecimento sobre o genoma humano para
conhecer os detalhes do código genético de cada pessoa” (ECHTERHOFF,
2010, p. 78).
Pode-se entender que os cidadãos de maneira geral são objeto de análise e
estão trabalhando para não somente obter a informação genética do outro, mas
também com os riscos que poderá obter com as pesquisas genéticas, buscando
evitar uma falta de comprometimento ético de forma a evitar que as relações
de trabalho sejam por “seleções” de um empregado para cada tipo de trabalho.
comprometeram-se, e à comunidade internacional, a respeitar e aplicar os princípios fundamentais da bioética
condensados num texto único. Disponível em: Acesso em: 11 jan. 2020.

<< Retorne ao sumário 37


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

5. CONCLUSÃO

Vimos que a sociedade deverá lidar com as inovações tecnológicas e


genéticas no ambiente do trabalho e o que fazer diante da omissão legislativa
que regulamenta a proibição de testes genéticos admissionais, promocionais ou
demissionários, evitando a violação de direitos fundamentais e da personalidade,
bem como condutas não éticas pelos empregadores e quem detém o poder de
divulgação de dados genéticos, mesmo em situações que os empregados consen-
tem a realização dos testes, podendo ser considerada uma conduta “coercitiva”
pelo empregador no sentido de que ele tem o poder diretivo.

REFERÊNCIAS

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UFMG, 2007.
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AMARAL, J. R. de P. Aplicação dos direitos fundamentais no âmbito das relações
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BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo. Saraiva 2013.
BARROSO, L. R. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade:
critérios de ponderação – Interpretação constitucionalmente adequada do código civil
e da lei de imprensa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 235: 1-36,
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BARROSO, L. R. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009
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BITTAR, C. A. Os direitos da personalidade. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-
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CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coim-
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<< Retorne ao sumário 38



DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE GENÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

CASTRO, M. N. A. da S. Honra, imagem, vida privada e intimidade, em colisão com


outros direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
CASABONA, M. B. O princípio constitucional da solidariedade no direito de família.
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COMPARATO, F. K. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
FERNANDES, B. G. Curso de direito constitucional. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2012.
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PRINCÍPIOS DO DIREITO
DO TRABALHO

Cyntia Cordeiro Santos1


Dyule Soares dos Santos2
Caiane Brandão3

Resumo: Princípios são as referências em torno dos quais se respalda todo o


sistema jurídico. Os mesmos têm a finalidade de iluminar tanto o legislador, ao
elaborar as leis dos correspondentes sistemas, como o intérprete, ao aplicar as
normas ou sanar omissões do respectivo ordenamento legal. Isto posto, a exis-
tência de princípios do Direito do Trabalho é de suma importância para a efetiva
resolução das lides de uma forma geral. Por este ângulo, o presente trabalho tem
como objetivo elucidar os principais princípios do direito do trabalho, trazendo
também, a aplicação desses princípios em casos concretos, comprovando sua
importância. Para tanto, utiliza-se de pesquisas da doutrina e jurisprudência.

Palavras-chave: Princípios, direito do trabalho, empregado, empregador.

1. INTRODUÇÃO

Hodiernamente, vem sendo muito discutido sobre a definição exata das


palavras. Assim, quando falamos sobre os princípios, o dicionário nos traz sua
definição como o primeiro momento da existência (de algo) ou de uma ação
ou processo; começo, início, ou ainda como o que serve de base a alguma coisa;
causa primeira, raiz, razão.
Ricardo Resende (2020, p. 108) afirma que os princípios “são os elementos
de sustentação do ordenamento jurídico, elementos estes que lhe dão coerência
interna”. Ademais esclarece (RESENDE, 2020, p. 108):

1 
Juíza Substituta do Trabalho do TRT da 5ª Região (BA); Doutoranda em Direito pela UNESA; Mestre
em Direito pela UNIFG; Professora do curso de graduação em direito pelo Centro Universitário Maurício
de Nassau - UNINASSAU; e-mail: alexcyntia@hotmail.com.
2 
Graduanda em direito pela Centro Universitário Maurício de Nassau - UNINASSAU; e-mail: dyule02@
hotmail.com.
3 
Graduanda em direito pela Centro Universitário Maurício de Nassau - UNINASSAU; e-mail: 22012519@
sempreuninassau.com.br.

<< Retorne ao sumário 41


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Os princípios estão ligados aos valores que o Direito visa


realizar. Servem como fundamento e são responsáveis pela
gênese de grande parte das regras que, por consequência,
deverão ter sua interpretação e aplicação condicionadas
por aqueles princípios, dos quais se originaram.
Isto posto, quando falamos dos princípios do direito do trabalho e logo
associamos a sua definição vemos o quão importante são os mesmos para Dierito
e, mais especificamente, para o Direito do Trabalho.
Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua princípio como
mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce
dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes
normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para
a sua exata compreensão e inteligência, exatamente porque
define a lógica e a racionalidade do sistema normativo
conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido humano. É o
conhecimento dos princípios que preside a intelecção das
diferentes partes componentes do todo unitário que há
por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio
é muito mais grave que transgredir uma norma. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, con-
forme o escalão do princípio atingido, porque representa
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço
e corrosão de sua estrutura mestra (BANDEIRA DE
MELLO, 2001, p. 771-772).
Os princípios têm funções definidas no ordenamento jurídico e dividem-
-se em: função informativa, função interpretativa e função normativa. Sobre a
tríplice função estatui Carlos Henrique Bezerra Leite:
A função informativa é destinada ao legislador, inspirando
a atividade legislativa em sintonia com os princípios e
valores políticos, sociais, éticos e econômicos do ordena-
mento jurídico.
A função interpretativa é destinada ao intérprete e aplicador
do direito, pois os princípios se prestam à compreensão dos
significados e sentidos das fontes normativas que compõem
o ordenamento jurídico.
Entre os diversos métodos de interpretação oferecidos pela
hermenêutica jurídica, os princípios podem desempenhar
um importante papel na própria delimitação e escolha do
método a ser adotado nos casos submetidos à decidibilidade.
A função normativa, também destinada ao intérprete e
aplicador do direito, decorre da constatação de que os

<< Retorne ao sumário 42



PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

princípios podem ser aplicados tanto de forma direta, na


solução dos casos concretos mediante a derrogação de uma
regra por um princípio, por exemplo, o princípio da norma
mais favorável aos trabalhadores (CF, art. 7º, caput), quanto
de forma indireta, por meio da integração do sistema nas
hipóteses de lacuna (CLT, arts. 8º e 769; CPC, art. 140)
(LEITE, 2020, p. 109-110).
Sobre o tema, Mauricio Godinho fala que os “princípios jurídicos são pro-
posições gerais inferidas da cultura e do ordenamento jurídico que conformam a
criação, revelação, interpretação e aplicação do Direito” (2019, p. 168). Continua
o autor mineiro, que “o princípio traduz, de maneira geral, a noção de proposições
fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a partir
de certa realidade, e que, após formadas, direcionam-se à compreensão, reprodução
ou recriação dessa realidade” (DELGADO, 2019, p. 220). E, mais, que “No Direito,
os princípios cumprem funções diferenciadas. Atuam, na verdade, até mesmo na
fase de construção da regra de Direito — fase pré-jurídica ou política. Mas será
na fase jurídica típica, após consumada a elaboração da regra, que os princípios
cumprirão sua atuação mais relevante” (DELGADO, 2019, p. 223).
Em suma, as funções dos princípios do direito do trabalho é informar,
prestar auxílio às interpretações e dar auxílio também, à função normativa, tanto
aos aplicadores do direito quanto aos elaboradores das normas.
Desse modo, a função informativa é destinada ao legislador, inspirando-o
na atividade legislativa na criação de leis. Destarte, Godinho relata que “na fase
jurídica, os princípios atuam, em primeiro lugar, como proposições ideais que
propiciam uma direção coerente na interpretação da regra de Direito. São veios
iluminadores à compreensão da regra jurídica construída” (DELGADO. 2019,
p. 224). Servem de fundamento ao ordenamento jurídico.
Por sua vez, a função interpretativa é destinada ao aplicador do Direito
para a compreensão de determinadas normas e seu alcance. Ela atua como
critério orientador do juiz ou do intérprete. Assim, a função normativa é a
eficácia normativa dos princípios equiparando-os. Com isso, Godinho alega
que a “função normativa subsidiária dos princípios, embora mais rara do que
sua função interpretativa, corresponde, curiosamente, àquela especialmente
citada por texto expresso da legislação. É o que se passa quando a lei autoriza o
recurso, pelo juiz, à integração jurídica (art. 8º, CLT; art. 4º, Lei de Introdução
ao Código Civil; art. 126 do antigo CPC)” (DELGADO, 2019, p. 224). Atua
como fonte supletiva nos casos de ausência de lei, meio de integração do Direito.
Dando seguimento, os direitos trabalhistas são direitos sociais que fazem
parte de um grupo maior, nomeado direitos fundamentais, que são direitos de

<< Retorne ao sumário 43


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

cada indivíduo reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional.


Estes garantem a dignidade e cidadania, incorporados nos valores da justiça
social, sendo direitos prioritários no âmbito sócio-jurídico.
Para tanto, a Constituição de 1988 firmou, enfaticamente,
largo elenco de princípios voltados a explicitar a sua matriz
civilizatória distintiva. Entre esses, destacam-se os princípios
constitucionais do trabalho. Tais princípios não são necessa-
riamente trabalhistas; alguns, inclusive, atuam em diversos
outros campos do Direito. Porém, na concepção e no formato
construído pela Constituição da República, eles atuam tam-
bém no sentido de enfatizarem a profunda e ampla relevância
que a pessoa humana e o valor trabalho ostentam na seara
constitucional e, desse modo, na vida jurídica, institucional,
econômica e social (DELGADO, 2019, p. 227).
Prossegue o autor, sobre o tema:
Arrolam-se, de maneira sintética, os seguintes princípios
constitucionais do trabalho: a) princípio da dignidade da
pessoa humana; b) princípio da centralidade da pessoa
humana na vida socioeconômica e na ordem jurídica; c)
princípio da valorização do trabalho e do emprego; d)
princípio da inviolabilidade do direito à vida; e) princípio
do bem-estar individual e social; f ) princípio da justiça
social; g) princípio da submissão da propriedade à sua
função socioambiental; h) princípio da não discriminação;
i) princípio da igualdade, especialmente a igualdade em
sentido material; j) princípio da segurança; k) princípio
da proporcionalidade e da razoabilidade; l) princípio da
vedação do retrocesso social (DELGADO, 2019, p. 227).
Narrados os fatos acima, convém elencar que o Direito do Trabalho está
sob a égide de vários princípios, que perpetuam e direcionam a atividade laboral
como um todo, pois estabelecem nortes e normas abraçadas tanto pela própria
Constituição Federal quanto pelos princípios gerais do Direito, além daqueles
de natureza específica. E como destacado nesta introdução, os princípios são de
grande relevância para o surgimento e aplicabilidade do direito. No decorrer deste
artigo será demonstrado como os princípios influem na legislação trabalhista e
como sucede sua aplicabilidade.

2. PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO TRABALHO

A Carta Magna de 1988 estabelece normas fundamentais ao ser humano,


que perpassam entre várias relações, quer sejam sociais, laborais, políticas,

<< Retorne ao sumário 44



PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

familiares, econômicas e jurídicas. Como outrora mencionado, os princípios


constitucionais que abarcam o Direito do Trabalho não recebem nomenclatura
exclusiva a esse ramo, no entanto permeiam toda a relação trabalhista de forma
intrínseca. A seguir, serão rapidamente mencionados os princípios constitucionais
mais relevantes na seara juslaboral.

2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, da Constituição


Federal de 1988, constitui-se em fundamento da República Federativa do Brasil,
e, como expõe Pedron (2016) em artigo sobre o assunto, ela vem assumindo
diversos significados ao longo da história. Na Antiguidade, “encontraremos
culturas que afirmam que a dignidade (do latim, dignitas) é expressão da
posição social ocupada pelo indivíduo e pelo grau de reconhecimento que os
demais componentes daquela comunidade atribuíam a um sujeito” (PEDRON,
2016, p. 40).
De acordo com a época e o estudioso que se debruçasse para analisá-lo,
o referido princípio assumiu diversas conotações, não sendo possível conceber
um conceito pacífico sobre o tema. Na contemporaneidade, todavia, este prin-
cípio ganhou conotação de um princípio superior, que se irradiará sobre todos
os demais. Assim é que:
Partindo das noções afirmadas pela teoria constitucional
majoritária _ ainda que pese as críticas feitas, bem como
as incoerências internas a esta teoria _, com fortes heran-
ças germânicas e bases axiológicas, a dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III da CR/88) é erigida a condição de
meta-princípio (sic). Por isso mesmo esta irradia valores
e vetores de interpretação para todos os demais direitos
fundamentais, exigindo que a figura humana receba sem-
pre um tratamento moral condizente e igualitário, sempre
tratando cada pessoa como fim em si mesma, nunca como
meio (coisas) para satisfação de outros interesses ou de
interesses de terceiros (PEDRON, 2016, p. 43).
Deste modo, percebe-se na doutrina e jurisprudência a tendência de
conceber a dignidade como meta-princípio, sendo que os outros direitos funda-
mentais somente encontram justificativa plausível se lidos e compatibilizados com
o referido postulado. Surgiu, assim, uma nova era dos direitos, fundamentados
na dignidade da pessoa humana, de modo a sagrar o homem como pessoa, que
deve ter seus direitos preservados, independentemente de qualquer condição,
especialmente no que se refere ao direito à vida e à liberdade.

<< Retorne ao sumário 45


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Por sua, conforme preceitua Carlos Henrique Bezerra Leite (2020), como
o epicentro de todo o ordenamento jurídico brasileiro é o princípio da dignidade
da pessoa humana (CF, art. 1o, III), não há necessidade de muito esforço inte-
lectivo para demonstrar que tal princípio alcança em cheio o direito do trabalho,
pois todo trabalhador (ou trabalhadora) é, antes de tudo, uma pessoa humana.
Até por isso, pela leitura do artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, não há como dissociar os princípios do direito do trabalho à própria
dignidade da pessoa humana. Veja-se:
Artigo 23
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha
de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à
proteção contra o desemprego.
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito
a igual remuneração por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remu-
neração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como
à sua família, uma existência compatível com a dignidade
humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros
meios de proteção social.
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindica-
tos e a neles ingressar para proteção de seus interesses
(ONU, 1948).

2.2. Princípio da centralidade da pessoa humana na vida


socioeconômica e na ordem jurídica

Princípio este que atribui a centralização na relação de trabalho, ao agente,


no caso a pessoa, visto que a atividade laboral, empresa ou capital não poderá
superá-lo, ou seja, entre a empresa e o capital, o papel mais importante é o da
própria pessoa.

2.3. Princípio do valor social do trabalho

O Tratado de Versalhes no artigo 427, estabelece que o trabalho não pode


ser visto como mercadoria ou artigo de comércio. Sobre essa matéria, discorre
Carlos Henrique Bezerra Leite:
O trabalho tem um valor social. Mas para ter um valor
social, o trabalho deve propiciar a dignificação da pessoa
por meio de um trabalho decente. Violam o princípio em
causa todas as formas de trabalho em regime de escravidão,

<< Retorne ao sumário 46



PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

o trabalho infantil, o trabalho degradante, o trabalho em


jornada exaustiva, os assédios moral e sexual, etc. (LEITE,
2020, p. 112).

2.4. Princípio do valor social da livre-iniciativa

Insculpido no artigo 170, da Constituição da República Federativa do


Brasil, dispõe que a ordem econômica tem fundação na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, sendo que a sua finalidade é garantir a todos uma
existência digna. O parágrafo único deste mesmo artigo, ainda, assegura o livre
exercício de atividade de natureza econômica.

2.5. Princípio da solidariedade ou fraternidade

Previsto na CRFB/88, no art. 3º, I, este princípio visa estabelecer uma


igualdade de oportunidades e erradicar qualquer forma de discriminação e
marginalização. Alguns exemplos da aplicação deste princípios são: a imple-
mentação do sistema de quotas sociais ou raciais nas universidades públicas, o
sistema de quotas para acesso aos cargos e empregos públicos para as pessoas
com deficiência (CF, art. 37, VIII), a proteção do mercado de trabalho da mulher
mediante incentivos específicos, o sistema de quotas para pessoas com deficiência
ou reabilitadas perante a Previdência Social (Lei 8.213/91, art.93), a isenção de
impostos para aqueles que possuem renda considerada baixíssima segundo a
lei etc. Outra ramificação deste princípio é a proteção ao meio ambiente, como
bem menciona Carlos Henrique Bezerra Leite:
Outra hipótese de incidência do princípio da solidariedade
tem por escopo a proteção do meio ambiente. A preservação
do meio ambiente passa a ser um direito humano (de terceira
dimensão) e um dever do Estado e de toda a sociedade, que
têm a responsabilidade de preservá-lo para as presentes e
futuras gerações. O STF, na ADPF 101, declarou que a
legislação que proíbe a importação de pneus usados é cons-
titucional. A ação foi proposta pelo Presidente da República,
por intermédio da Advocacia Geral da União, questionando
decisões judiciais que permitiram a importação de pneus
usados. A decisão é de relevante importância na proteção
do meio ambiente, tema de grande influência fraternal,
pois a Constituição Federal impõe ao poder público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo, para as
gerações presentes e futuras. Mais uma vez, reconhecendo
o princípio da fraternidade, o STF (ADI 3.510), em maio
de 2008, liberou pesquisas com células-tronco embrionárias.

<< Retorne ao sumário 47


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Para a maioria da Corte, o art. 5o da Lei de Biossegurança


não merece reparo. O relator, ministro Carlos Ayres Britto,
votou pela total improcedência da ação sobre o fundamento
de que vários dispositivos da Constituição Federal garantem
o direito à vida, à saúde, ao planejamento familiar e à pes-
quisa científica, destacando, ainda, o espírito de sociedade
fraternal preconizado pela Constituição Federal ao defender
a utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa para
curar doenças. O ministro Ayres Britto qualificou a Lei de
Biossegurança como um “perfeito” e “bem concatenado bloco
normativo” (LEITE, 2020, p. 114).

2.6. Princípio da intangibilidade salarial

Diz a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º:


“Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros, que visem a melhoria de sua condição social:
VI – Irredutibilidade do salário, salvo disposto em Con-
venção ou acordo coletivo;
“X- Proteção do salário na forma da lei, constituindo crime
sua retenção dolosa; (BRASIL, 1988).
O Princípio da Intangibilidade Salarial vem com o intuito de garantir ao
trabalhador o direito de perceber a contraprestação a que faz jus por seu traba-
lho, de maneira estável e segura, não sujeita às oscilações de qualquer contexto.
Estabelece o princípio da intangibilidade dos salários que
esta parcela justrabalhista merece garantias diversificadas
da ordem jurídica, de modo a assegurar seu valor, mon-
tante e disponibilidade em benefício do empregado. Este
merecimento deriva do fato de considerar-se ter o salário de
caráter alimentar, atendendo, pois, a necessidades essenciais
do ser humano (DELGADO, 2019, p. 242).
Esse princípio não engloba apenas a irredutibilidade nominal do seu valor,
mas também vedação da aplicação de descontos indevidos, tempestividade no
pagamento, etc. Ainda nos traz um ponto relevante que é que
[...] a força desse princípio não está, contudo, somente
estribada no Direito do Trabalho, porém nas relações que
mantém com o plano externo (e mais alto) do universo
jurídico. De fato, o presente princípio laborativo especial
ata-se até mesmo a um princípio jurídico geral de grande
relevo, com sede na Constituição: o princípio da dignidade
da pessoa humana (DELGADO, 2019, p. 243).

<< Retorne ao sumário 48



PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

Todavia, é interessante ressaltar que o salário que contenha verbas decor-


rente de uma situação específica como o adicional noturno, periculosidade,
insalubridade etc., não é algo vitalício, ou seja, ele se cessa quando não há mais a
condição do caso concreto, isto é, não há direito adquirido sobre verba, devendo
assim, não ser mais paga. Neste sentido, veja-se:
Súmula nº 248 do TST. ADICIONAL DE INSALU-
BRIDADE. DIREITO ADQUIRIDO (mantida) – Res.
121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003.
A reclassificação ou a descaracterização da insalubridade,
por ato da autoridade competente, repercute na satisfação
do respectivo adicional, sem ofensa a direito adquirido ou
ao princípio da irredutibilidade salarial.
Súmula nº 265 do TST. ADICIONAL NOTURNO.
ALTERAÇÃO DE TURNO DE TRABALHO. POS-
SIBILIDADE DE SUPRESSÃO (mantida) – Res.
121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003.
A transferência para o período diurno de trabalho implica
a perda do direito ao adicional noturno.

3. PRINCÍPIOS DE DIREITO MATERIAL DO


TRABALHO

A doutrina e a jurisprudência reconhecem a existência de princípios


ínsitos ao direito do trabalho de natureza infraconstitucional.

3.1. Princípio da proteção

O princípio da proteção, em virtude da manifesta desigualdade de fato


entre as partes do pacto laboral, visa estabelecer uma igualdade jurídica entre
empregado e empregador, promovendo a atenuação da inferioridade econômica,
hierárquica e intelectual dos trabalhadores.
O princípio da proteção decorre da hipossuficiência jurídica, e quase
sempre econômica também, do trabalhador em relação ao empregador, o qual
assume os riscos da atividade econômica que ele traz lucro. Logo, na relação de
trabalho há uma desigualdade ínsita que impossibilita a liberdade contratual
do empregado, evidenciado o desnivelamento entre as partes da relação jurídica
de direito material.
Mauricio Godinho (2019) relata que parte importante da doutrina aponta
este princípio como o cardeal do Direito do Trabalho, por influir em toda a
estrutura e características próprias desse ramo jurídico especializado. Por sua

<< Retorne ao sumário 49


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

vez, o referido princípio está previsto em diversos dispositivos legais, sendo que
o art. 468, da CLT, bem o ilustra:
Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita
a alteração das respectivas condições por mútuo consen-
timento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta
ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de
nulidade da cláusula infringente desta garantia (BRA-
SIL, 1952).
O mencionado princípio se desdobra em três outros princípios: in dubio
pro operario, norma mais favorável e condição ou cláusula mais benéfica.

3.1.1. In dubio pro operario

O princípio do in dubio pro operario ou in dubio pro misero determina que,


diante de uma única norma que admita mais de uma interpretação, deve ser
aplicada aquela que for mais benéfica para o empregado.
A jurisprudência tem sido firme na ratificação do referido princípio em
diversas oportunidades. Sobre o tema, veja-se:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE
REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI
13.015/2014. DIFERENÇAS SALARIAIS DECOR-
RENTES DO REENQUADRAMENTO DO AUTOR
NO CARGO DE ASSESSOR NÍVEL V – INTERPRE-
TAÇÃO DA NORMA COLETIVA - SÚMULA 126 DO
TST. [...]. “A dubiedade da redação da norma coletiva não
pode reverter em prejuízo do empregado, em homenagem
ao princípio in dubio pró-operário. Deste modo, a decisão
do Tribunal Regional não ofendeu a norma constitucional
que assegura validade às negociações coletivas, pelo contrá-
rio, conferiu-lhe plena validade ao garantir sua aplicação
à situação dos autos. Agravo de instrumento não provido
(TST-AIRR 4143120145110016, Rel. Min. Maria Helena
Mallmann, 2a T., DEJT11.04.2017).
RECURSO DE REVISTA – AUXÍLIO – ALIMEN-
TAÇÃO – NORMA COLETIVA – APLICAÇÃO DO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO OPERARIO. O Colegiado
a quo, interpretando cláusula coletiva da categoria, deci-
diu que, diante da disparidade de interpretações, deve ser
aplicado o princípio in dubio pró-operário. Impertinente
a invocação do art. 114 do Código Civil, uma vez que o
Tribunal não ampliou a interpretação da cláusula normativa,
não se havendo de falar em observância de interpretação

<< Retorne ao sumário 50



PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

restritiva. Os arestos não revelam similitude fática com a


lide, incidindo a Súmula n. 296 do TST. O art. 7o, XXVI,
da Constituição Federal, não foi violado, uma vez que o
Tribunal a quo, longe de negar validade ao instrumento
coletivo, interpretou a norma coletiva e concedeu-lhe plena
validade. Recurso de revista não conhecido (TST – RR
80700-43.2009.5.17.0003 – Rel. Min. Luiz Philippe Vieira
de Mello Filho – j. 12.06.2013 – 7a T. – DEJT 21.06.2013).
Esse entendimento de proteção a parte considerada vulnerável não é espe-
cífico da legislação trabalhista, vemos no Código Civil uma aplicação similar aos
contratos de adesão, onde, havendo cláusulas ambíguas ou contraditórias, será
adotado o entendimento que tiver melhor aproveitamento ao aderente. Neste
sentido, é o 423 do Código Civil de 2002, que diz: “Art. 423. Quando houver
no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar
a interpretação mais favorável ao aderente” (BRASIL, 2003).

3.1.2. Norma mais favorável

O presente princípio necessita de uma pluralidade de normas jurídicas


vigentes e aplicáveis, em determinado caso concreto, para assim, ter a capacidade
de aplicação do mesmo.
O presente princípio dispõe que o operador do Direito do
Trabalho deve optar pela regra mais favorável ao obreiro
em três situações ou dimensões distintas: no instante de
elaboração da regra (princípio orientador da ação legisla-
tiva, portanto) ou no contexto de confronto entre regras
concorrentes (princípio orientador do processo de hierar-
quização de normas trabalhistas) ou, por fim, no contexto
de interpretação das regras jurídicas (princípio orientador
do processo de revelação do sentido da regra trabalhista)
(DELGADO, 2019, p. 234-235).
Em vista disso, é informado ao operador do Direito que, caso existam duas
ou mais normas aplicáveis ao caso concreto, prevalecerá a que mais favoreça o
empregado, independentemente da sua posição no ordenamento jurídico. Em
assim sendo, tal princípio determina a modificação da hierarquia tradicional
das fontes, pois prevalecerá a norma que mais beneficie o trabalhador, ainda
que inferior hierarquicamente. Ou seja, referido princípio admite “uma teoria
dinâmica da hierarquia entre normas trabalhistas, pois no topo da pirâmide
normativa não estará necessariamente a Constituição, e sim a norma mais
favorável ao trabalhador” (LEITE, 2015, p. 82).

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

3.1.3. Condição mais benéfica


O princípio da condição ou cláusula mais benéfica, que tem origem nos
princípios da segurança jurídica e direito adquirido, determina que, entre as cláu-
sulas estabelecidas pelas partes no curso do vínculo de emprego, deve prevalecer
a que for mais benéfica ao trabalhador. Este princípio significa que as cláusulas
estabelecidas quando da admissão não podem ser modificadas para piorar a
situação do trabalhador no decorrer do vínculo estabelecido entre as partes.
Assim sendo, quando se tem um conflito de interpretações inter normas
permanece a norma mais favorável ao empregado, exemplificando, quando a
convenção coletiva de trabalho trata mais amplamente um benefício para o
trabalhador que a lei.
Este princípio importa na garantia de preservação, ao longo
do contrato, da cláusula contratual mais vantajosa ao tra-
balhador, que se reveste do caráter de direito adquirido
(art. 5º, XXXVI, CF/88). Ademais, para o princípio, no
contraponto entre dispositivos contratuais concorrentes, há
de prevalecer aquele mais favorável ao empregado. (DEL-
GADO. 2019, p. 238).
AGRAVO DE INSTRUMENTO - HORAS
EXTRAORDINÁRIAS -ADICIONAL - SALÁRIO
POR PRODUÇÃO – INAPLICABILIDADE DA OJ
Nº 235 DA SDI-1.
A aplicação da OJ nº 235 da SBDI-1, foi afastada, em
razão de ter sido adotado durante o contrato de trabalho do
reclamante o procedimento de pagar as horas extraordinárias
e o adicional quando aquele trabalhava em sobrejornada,
premissa fática que não é disciplinada na referida orientação
jurisprudencial. O princípio da proteção, desdobra-se em
outros três, a saber: norma mais favorável, in dúbio pro
operario e condição mais benéfica, este último determina a
prevalência das condições mais vantajosas para o trabalha-
dor, que foram ajustadas ainda que implicitamente durante
o contrato de trabalho. Agravo de instrumento desprovido.
(TST, 1ª T., AIRR -143640-83.2007.5.06.0241, Rel. Min.
Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 14/05/2010).

3.2. Princípio da imperatividade das normas trabalhistas


Princípio indispensável das normas jurídicas trabalhistas, ele reflete a
necessidade da proteção do trabalhador, de modo que se faz garantir seus direitos
fundamentais, com a neutralização do desequilíbrio existente da relação jurídica
do direito material trabalhista. Por esse motivo, limita a autonomia da vontade.

<< Retorne ao sumário 52



PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

Informa tal princípio que prevalece no segmento jusla-


borativo o domínio de regras jurídicas obrigatórias, em
detrimento de regras apenas dispositivas. As regras jus-
trabalhistas são, desse modo, essencialmente imperativas,
não podendo, de maneira geral, ter sua regência contratual
afastada pela simples manifestação de vontade das partes.
Nesse quadro, raros são os exemplos de regras dispositivas
no texto da CLT, prevalecendo uma quase unanimidade
de preceitos imperativos no corpo daquele diploma legal
(DELGADO, 2019, p. 236-237).
No direito do trabalho, prevalecem as normas jurídicas obrigatórias em
detrimento daquelas de caráter dispositivo, pois as normas trabalhistas são
essencialmente imperativas, não podendo ser afastada sua aplicação pela sim-
ples manifestação de vontade das partes. Tal norma reveste-se em importante
instrumento assecuratório das garantias fundamentais do trabalhador face ao
desequilíbrio predominante entre as partes. Neste sentido, dispõe o art. 444 da
CLT, que diz:
Art. 444 da CLT. As relações contratuais de trabalho
podem ser objeto de livre estipulação das partes interes-
sadas em tudo quanto não contravenha às disposições
de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes
sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes
(BRASIL, 1952).
Com isso, é perceptível que este princípio deve prevalecer nas normas
trabalhistas, não podendo as partes, via de regra, as afastarem por meio de
declaração bilateral de vontades, fazendo com que assim, tenha a restrição à
autonomia das partes no ajuste das condições contratuais trabalhistas.
HORAS DE SOBREAVISO. ACORDO CELE-
BRADO ENTRE AS PARTES ACERCA DA QUI-
TAÇÃO. PRINCÍPIO DA IMPERATIVIDADE DAS
NORMAS TRABALHISTAS. IMPOSSIBILIDADE
DE RESTRIÇÃO DE DIREITOS DO EMPRE-
GADO. O acordo celebrado entre empregado e empre-
gador, que tem a finalidade de regulamentar o regime de
quitação das horas extras laboradas, não poderá prevalecer
quando comprovadamente for prejudicial ao trabalhador,
aplicando-se ao caso o que preconiza o artigo 244 da
CLT. (TRT 17ª R., RO 0087300-17.2009.5.17.0121,
3ª Turma, Rel. Desembargador Jailson Pereira da Silva,
DEJT 21/07/2010).

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

3.3. Princípio da irrenunciabilidade ou indisponibilidade dos


direitos trabalhistas

O empregado não pode renunciar aos direitos e vantagens assegurados em


lei. Dessa maneira, esse princípio é a projeção do anterior, referente à imperati-
vidade das regras trabalhistas, o mesmo explica a inviabilidade técnico-jurídica
de poder o empregado privar-se, por sua simples manifestação de vontade, das
vantagens e proteções que lhe asseguram a ordem jurídica e o contrato.
Assim ilustra o art. 9° da CLT: “Serão nulos de pleno direito os atos
praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos
preceitos contidos na presente Consolidação” (BRASIL, 1952).
É comum à doutrina valer-se da expressão irrenunciabi-
lidade dos direitos trabalhistas para enunciar o presente
princípio. Seu conteúdo é o mesmo já exposto, apenas
adotando-se diferente epíteto. Contudo, a expressão irre-
nunciabilidade não parece adequada a revelar a amplitude
do princípio enfocado. Renúncia é ato unilateral, como
se sabe. Ora, o princípio examinado vai além do simples
ato unilateral, interferindo também nos atos bilaterais de
disposição de direitos (transação, portanto). Para a ordem
justrabalhista, não serão válidas quer a renúncia, quer a
transação que importe objetivamente em prejuízo ao tra-
balhador (DELGADO, 2019, p. 237).
Neste sentido, veja-se ainda:
Súmula n° 276 do TST. AVISO PRÉVIO. RENÚNCIA
PELO EMPREGADO.
O direito ao aviso prévio é irrenunciável pelo empregado. O
pedido de dispensa de cumprimento não exime o empre-
gador de pagar o respectivo valor, salvo comprovação de
haver o prestador de serviços obtido novo emprego.
A respeito do salário, há dois princípios a serem destacados, o da irredu-
tibilidade salarial, salvo por convenção ou acordo coletivo de trabalho (art. 7,
inciso VI, da CF), e o da intangibilidade salarial, que veda descontos salariais
não previstos em lei ou norma coletiva.
OJ n° 251 da SDI-1 do TST. DESCONTOS. FREN-
TISTA. CHEQUES SEM FUNDOS.
É lícito o desconto salarial referente a devolução de
cheques sem fundos, quando o frentista não observar
as recomendações previstas em instrumento coletivo.

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PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

3.4. Princípio da inalterabilidade contratual lesiva ao empregado

O princípio da inalterabilidade contratual lesiva ao empregado é de


suma importância para o empregado, pois este princípio não impede alterações
contratuais trabalhistas, que são comuns na prática. O que o mesmo restringe
são as alterações lesivas onde o empregado é prejudicado, trazendo assim uma
segurança maior para os trabalhadores.
Nesse sentido é o art. 468 da CLT, que preleciona:
Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita
a alteração das respectivas condições por mútuo consenti-
mento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou
indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade
da cláusula infringente desta garantia (BRASIL, 1952).
Segundo Delgado (2019, p. 239),
Realmente, um dos mais importantes princípios gerais
do Direito que foi importado pelo ramo justrabalhista
é o da inalterabilidade dos contratos, que se expressa, no
estuário civilista originário, pelo conhecido aforismo pacta
sunt servanda (“os pactos devem ser cumpridos”). Informa
tal princípio, em sua matriz civilista, que as convenções
firmadas pelas partes não podem ser unilateralmente modi-
ficadas no curso do prazo de sua vigência, impondo-se o
cumprimento fiel pelos pactuantes.

3.5. Princípio da primazia da realidade

O princípio da primazia da realidade determina que a realidade fática


prevalece sobre o formalmente avençado na execução do contrato de trabalho. A
origem deste princípio remete à teoria do contrato-realidade surgida a partir da
obra de Mario de La Cueva, que foi adaptada ao direito do trabalho no sentido
de que a realidade predomina sobre escritos e formas.
A esse respeito, dispõe o art. 9º da CLT que: “Serão nulos de pleno direito
os atos praticados com objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar aplicação dos
preceitos contidos na presente consolidação” (BRASIL, 1952).
O princípio da primazia da realidade sobre a forma consti-
tui-se em poderoso instrumento para a pesquisa e encontro
da verdade real em uma situação de litígio trabalhista. Não
deve, contudo, ser brandido unilateralmente pelo operador
jurídico. Desde que a forma não seja da essência do ato
(ilustrativamente, documento escrito para a quitação ou

<< Retorne ao sumário 55


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

instrumento escrito para contrato temporário), o intér-


prete e aplicador do Direito deve investigar e aferir se a
substância da regra protetiva trabalhista foi atendida na
prática concreta efetivada entre as partes, ainda que não
seguida estritamente a conduta especificada pela legislação
(DELGADO, 2019, p. 245).
Por conseguinte, significa dizer que ao empregador contratar um indivíduo
e declarar na carteira de trabalho que paga à pessoa valor X e, no entanto, pagar
valor Y por qualquer circunstância, o que se vale é o que realmente acontece,
nesse caso o valor Y, primazia da realidade, portanto, se associa à ideia de verdade
real. Sobre o tema, diz a jurisprudência:
Súmula n° 12 do TST. CARTEIRA PROFISSIONAL.
As anotações apostas pelo empregador na Carteira de
Trabalho do empregado não geram presunção juris et de
jure, mas apenas jures tantum.
HORAS EXTRAS. CARTÃO DE PONTO. PRINCÍ-
PIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE.
Os registros de ponto são, por excelência, os documentos
aptos a comprovar a jornada de trabalho do empregado.
Contudo, demonstrada a ausência de fidedignidade de
tais documentos, adotam-se outros elementos de prova
que apontam a jornada efetivamente cumprida, já que o
contrato do trabalho se rege pelo princípio da primazia da
realidade. (TRT-3 - RO: 00100463120215030187 MG
0010046-31.2021.5.03.0187, Relator: Des. Gisele de Cassia
VD Macedo, Data de Julgamento: 08/06/2021, Segunda
Turma, Data de Publicação: 09/06/2021.).

3.6. Princípio da continuidade da relação de emprego

Referido princípio está previsto nos artigos 448 e 10, da CLT. Diz o art. Art.
448 da CLT: “A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não
afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados”. Já o art. 10, também
da CLT, determina que: “Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não
afetará os direitos adquiridos por seus empregados” (BRASIL, 1952).
É presumido no Direito do Trabalho que o vínculo trabalhista entre
empregador e empregado se mantenha. Esse princípio visa a preservação
do emprego. No Direito do Trabalho, os contratos com prazo determinado
representam a exceção, embora a CLT preveja essa hipótese, sendo que, em
regra, o contrato de trabalho é firmado por tempo indeterminado. Assim, cabe
ao empregador comprovar a ruptura do vínculo empregatício.

<< Retorne ao sumário 56



PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

Informa tal princípio que é de interesse do Direito do


Trabalho a permanência do vínculo empregatício, com a
integração do trabalhador na estrutura e dinâmica empresa-
riais. Apenas mediante tal permanência e integração é que
a ordem justrabalhista poderia cumprir satisfatoriamente
o objetivo teleológico do Direito do Trabalho, de assegu-
rar melhores condições, sob a ótica obreira, de pactuação
e gerenciamento da força de trabalho em determinada
sociedade. (DELGADO. 2019, p. 245).
Súmula n° 212 do TST. DESPEDIMENTO.
ÔNUS DA PROVA.
O ônus de provar o término do contrato de trabalho
quando, negados a prestação de serviço e despedimento, é
do empregador, pois o princípio da continuidade da relação
de emprego constitui presunção favorável do empregado.

4. CONCLUSÃO

O estudo dos princípios em geral é um estudo mais árduo, entretanto, é


de suma importância o entendimento desse tema, em todas as áreas do direito,
tanto academicamente como na prática forense.
Os princípios atuam como fonte informadora do legislador e interpre-
tativa do juiz, como foi explanado, em outras palavras, os princípios atuam
como orientação de desenvolvimento na ordem jurídica. Os mesmos orientam,
condicionam e iluminam a interpretação, a informação e a própria normativa.
Com isso, é importante salientar que esse trabalho não teve a pretensão
de esgotar as discussões sobre o tema, aliás, seria impossível, mas sim trazer
aspectos relevantes sobre os principais princípios do direito do trabalho.
Aduza-se que os princípios expostos no presente trabalho são marcos indi-
cadores da hermenêutica, pelos quais deve se guiar o aplicador da norma jurídica
para sua interpretação ou integração quando da análise dos conflitos de interesses
que chegam na justiça do trabalho. Isso porque, como dito anteriormente, a legis-
lação trabalhista tem como parâmetro a necessidade de atenuar a desigualdade
de fato existente entre trabalhador e empregador, mediante o reconhecimento da
hipossuficiência do empregado e limitação da autonomia entre as partes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em:
26 jun. 2022.

<< Retorne ao sumário 57


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

BRASIL. Decreto-Lei 5452/1943. (Consolidação das Leis do Trabalho). Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 26 jun. 2022.
DELGADO, M. G. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme
a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18.
ed. São Paulo: LTr, 2019.
GARCIA, G. F. B. Curso de Direito do Trabalho. 2. ed. São Paulo: Método, 2008.
LEITE, C. H. B. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
LEITE, C. H. B. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MELLO, C. A. B de. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos
Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-
-dos-direitos-humanos. Acesso em: 26 jun. 2022.
PEDRON, F. B. Q. Reflexões sobre as concepções de personalidade e de dignidade
humana: as teses de Robert Sparmann e de Ronald Dworkin. In: QUEIROZ, M.;
GUERRA, C.H.F.; VIEIRA, M.; SILMANN, M.C.M. (org.). Direito civil em
debate: reflexões críticas sobre temas atuais. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.
p. 33-56. v. 1.
RESENDE, R. Direito do trabalho. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

<< Retorne ao sumário 58


O PROCEDIMENTO DE
JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE
HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO
ACORDO EXTRAJUDICIAL

Dayane Mendonça Rodrigues1

Resumo: O presente trabalho propõe um estudo sobre a homologação de acordo


extrajudicial trabalhista, regulamentada pela Lei nº 13.467/17, que incluiu os
arts.855-B a 855-E, bem como a alínea “f ’, ao art. 652 da CLT, que versa sobre
a competência funcional da Justiça do Trabalho no procedimento de jurisdi-
ção voluntária. Foi utilizada uma análise bibliográfica de doutrina e trabalhos
acadêmicos, além de um estudo documental, referente a leis e jurisprudência
do TST, a fim de verificar o entendimento acerca da possibilidade ou não da
homologação parcial do acordo extrajudicial.

Palavras-chave: Acordo extrajudicial, jurisdição voluntária, justiça do Trabalho.

Resumen: El presente trabajo propone un estudio de la homologación de


acuerdo laboral extrajudicial, regulado por la Ley nº 13.467/17, que incluyó los
artículos 855-B a 855-E, bien como la letra “f ”, ao artículo 652 da CLT, que
trata de la competencia funcional de la Justicia del Trabajo en el procedimiento
de jurisdicción voluntaria. Se utilizo un análisis bibliográfica de doctrina y
trabajos académicos, además de um estudio documental, referente a leyes y

1 
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade de Uberaba (UNIUBE) - Campus Uberlândia; Pós-
-Graduanda em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela Faculdade Verbo Educacional
(VERBOEDU); Mestranda em Direito na área de concentração em Direitos e Garantias Fundamentais, na
linha de pesquisa Tutela Jurídicas e Políticas Públicas, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Uberlândia (FADIR/UFU); Membro do Grupo de Pesquisa “A Transformação do Direito do Trabalho na
Sociedade Pós-Moderna e seus Reflexos no Mundo do Trabalho” na Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo – Campus Ribeirão Preto (FDRP/USP). E-mail: dayane.mrodrigues@hotmail.com

<< Retorne ao sumário 59


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

jurisprudência del TST, para verificar el entendimiento sobre la posibilidad o


no de la homologación parcial del acuerdo extrajudicial.

Palabras-clave: Acuerdo extrajudicial; Jurisdicción voluntaria; Justicia del Trabajo.

1 INTRODUÇÃO

A solução consensual dos conflitos mostra-se mais antiga que o próprio


processo judicial, sendo que métodos particulares e informais já eram aplicados
antes mesmo que a jurisdição estatal se estruturasse. Além disso, tais mecanis-
mos nunca deixaram de ser praticados e, com o passar dos anos, foram sendo
aprimorados e introduzidos ao ordenamento jurídico brasileiro.
Os primeiros órgãos especializados na solução de conflitos trabalhistas
tinham como base justamente a conciliação, embora não haja um consenso
acerca de sua origem2. Sabe-se, porém, que a Justiça do Trabalho surgiu em
virtude do advento do direito do trabalho, após diversas revoluções sociais
ocorridas no século XIX, devido as precárias condições de trabalho do pro-
letariado industrial.
No Brasil, a Justiça do Trabalho foi instituída pela Constituição de 19343,
como órgão do Poder Executivo, e somente passou a integrar o Poder Judiciário
com a Constituição de 19464, a qual manteve sua tradição conciliatória. O termo
jurisdição provém da expressão em latim jurisdictio5, que significa “ditar ou dizer
o direito” e é considerado o poder que o Estado detém para impor decisões em
demandas a ele submetidas pelas partes.
A jurisdição pode ser classificada em contenciosa e voluntária. Na juris-
dição contenciosa pressupõe-se a presença de um conflito entre particulares, o
qual será dirimido de forma imperativa por meio de uma decisão coercitiva, já
na voluntária, prevalece o consenso entre as partes interessadas, não existindo
controvérsia entre os envolvidos.
Uma das inovações estabelecidas pela Lei nº 13.467/17, denominada
Reforma Trabalhista, foi justamente a regulamentação do procedimento de
jurisdição voluntária na Justiça do Trabalho, para a homologação de acordo

2 
SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 10.ed. São Paulo: LTr, 2016, p.178.
3 
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Disponível em: <http://
www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 01 jan. 2021.
4 
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ ccivil _03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em 03 jan. 2021.
5 
MELEU, Marcelino. THAINE, Aleteia Hummes. A Mediação de Conflitos Enquanto Nova Institucio-
nalidade Recepcionada pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro. Disponível em: <file:///C:/Users/DELL/
Downloads/131-Texto%20do%20artigo-891-1-10-20120703.pdf>. Acesso em: 25 mai. 2021.

<< Retorne ao sumário 60


O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO EXTRAJUDICIAL

extrajudicial, que inseriu à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) o Capí-


tulo III-A (arts. 855-B a 855-E), com o intuito de trazer uma maior garantia à
transação, haja vista a prevalência de princípios protetivos e da indisponibilidade
de direitos trabalhistas.
Incialmente, serão considerados alguns aspectos teóricos relevantes à
luz da Constituição Federal de 1988 (CF/88), sobre o acordo extrajudicial e a
ampliação do próprio conceito de acesso à justiça. Em seguida será abordada a
competência e o procedimento de jurisdição voluntária trabalhista para homologar
a transação, a fim de analisar a possibilidade de homologação parcial pelo juiz.
A presente pesquisa foi desenvolvida a partir de estudos teóricos, sendo
empregados alguns procedimentos, como análise bibliográfica de doutrina e
trabalhos acadêmicos sobre o acordo extrajudicial trabalhista, além de um estudo
documental, referente a legislação e jurisprudência que abordam a temática,
principalmente acerca do entendimento sobre a decisão de homologação parcial
da transação pelo juiz do trabalho.

2 O ACORDO EXTRAJUDICIAL E A AMPLIAÇÃO DO


CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA

A Constituição Federal de 1988 foi significativa na positivação de funda-


mentos como a dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho (art.
1º, incisos III e IV), além de consagrar em seu texto vários direitos e garantias
fundamentais. O próprio Preâmbulo Constitucional, que possui uma base
principiológica e valorativa, retrata a instituição de um Estado Democrático de
Direito, que se destina assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais em
uma sociedade fraterna, baseada na harmonia social e vinculada com a solução
pacífica dos conflitos.
A constitucionalização do direito do trabalho, de certa forma, reforçou
também o caráter da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, com a ideia
de que direitos trabalhistas são fundamentais, o que constituiu, de certa forma,
um limite à autonomia da vontade de negociar. Segundo Cassar, é inevitável
concluir que todos os direitos trabalhistas são indisponíveis, não podendo ser
negociados, transacionados ou renunciados, exceto quando a lei expressamente
autorizar. No entanto, apesar de no direito trabalhista existir normas imperiosas
que são indisponíveis, isso não impede a elaboração privada de outras normas
que possam ser disponíveis6, uma vez que

6 
CASSAR, Vólia Bomfim. Métodos de Solução de Conflitos Individuais e Coletivos Extrajudiciais. In:
TUPINAMBÁ, Carolina (Org.). Soluções De Conflitos Trabalhistas: Novos Caminhos. São Paulo: LTr,
2018. p. 202.

<< Retorne ao sumário 61


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

diferentes são aqueles direitos criados pelo contrato de


trabalho, regulamento interno de empresa, convenção ou
acordo coletivo, isto é, de forma autônoma e privada, em
que impera a vontade dos contratantes. Embora estes direi-
tos privados sejam aqueles concedidos acima do patamar
mínimo da lei, a CLT também impõe limites à sua alte-
ração, quando isso representa em prejuízo ao empregado
(art. 478 da CLT) 7.
Nesse sentido, quando se tratar de direito produzido pelo ajuste entre as
partes (direito privado), a transação será possível, desde que não cause prejuízo
direto ou indireto ao trabalhador.
O acordo extrajudicial é um método autocompositivo caracterizado como
transação8, que visa convencionar as partes, por meio de concessões bilaterais, a um
ajuste de interesses para a solução de conflitos. É considerada uma negociação jurí-
dica extrajudicial e não propriamente uma lide, uma vez que não há uma pretensão
resistida a ser solucionada pelo Estado. A homologação desse acordo, seria apenas
uma maneira de conferir maior segurança jurídica à vontade dos interessados, com
o intuito de evitar também a propositura de demandas judiciais. Segundo Travain,
cumpre esclarecer que a intenção do legislador foi transfor-
mar o mero acordo extrajudicial em título executivo judicial,
garantindo não só exequibilidade judicial perante o juízo
responsável pela decisão homologatória, mas, garantir às
partes a impossibilidade relativa de rediscussão da matéria,
acabando com a insegurança jurídica.9
O procedimento de homologação de acordo extrajudicial busca, conforme
Miessa, conceder efeitos jurídicos de coisa julgada ao acordo extrajudicial, para
não mais se discutir as verbas contempladas no acordo homologado. No entanto, a
transação não poderá ser homologada para servir como mera renúncia de direitos,
a qual será sempre nula no âmbito trabalhista, por causar prejuízo ao empregado10.
Em uma análise mais abrangente, o acordo extrajudicial traz a possibilidade
de ampliação do acesso à justiça, disposto no inciso XXXV, art. 5º, da CF/88,
pois além de um princípio, também se caracteriza como direito fundamental,
que visa garantir o acesso a uma ordem jurídica justa, na busca por uma solução
mais célere e adequada das controvérsias. Segundo Watanabe,
7 
CASSAR, Vólia Bomfim. Op. cit, p. 202.
8 
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v.1. 56. ed. São Paulo: 2019. p. 147.
9 
TRAVAIN, Luiz Antônio Loureiro. Manual da Conciliação e Mediação Trabalhista. 1. ed. v. 2. São
Paulo: Amazon, 2021. p.169.
10 
MIESSA, Élisson. Processo de Jurisdição Voluntária para homologação de Acordo Extrajudicial. In:
TUPINAMBÁ, Carolina (Org.). Soluções de Conflitos Trabalhistas: Novos Caminhos. São Paulo: LTr,
2018. p. 232.

<< Retorne ao sumário 62


O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO EXTRAJUDICIAL

o conceito de acesso à justiça passou por uma importante


atualização: deixou de significar mero acesso aos órgãos
judiciários para a proteção contenciosa dos direitos para
constituir acesso à ordem jurídica justa [...]. Portanto, o acesso
à justiça, nessa dimensão atualizada, é mais amplo e abrange
não apenas a esfera judicial, como também a extrajudicial. 11
Nesse sentido, observa-se que o conceito de acesso à justiça foi ampliado
com o intuito de assegurar não apenas o acesso ao Judiciário, mas também a
utilização de métodos autocompositivos, que contribuem como importantes
ferramentas para aumentar as possibilidades de resolução de conflitos de inte-
resses, como é o caso do acordo extrajudicial.

3 COMPETÊNCIA PARA HOMOLOGAÇÃO DE


ACORDO EXTRAJUDICIAL

Antes da Lei nº 13.467/17, o acordo extrajudicial trabalhista não era uma


prática muito utilizada no âmbito trabalhista, principalmente por não haver
regulamentação legal que trouxesse uma segurança jurídica entre os acordantes,
o que contribuiu consequentemente para um crescimento na quantidade de
ações judiciais laborais.
Com a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, houve a inclusão do
inciso IX, ao art. 114, da CF/88, que passou a estabelecer a competência da Justiça
do Trabalho para processar e julgar “outras controvérsias decorrentes da relação de
trabalho, na forma da lei”, além do art. 643, da CLT, que dispôs que os dissídios
oriundos das relações de trabalho seriam dirimidos pelo Judiciário Trabalhista.
No entanto, como no acordo extrajudicial não há uma pretensão resistida
a ser solucionada pelo Estado, prevaleceu o entendimento de que esse tema
não estava inserido na competência do Judiciário Trabalhista e, portanto, não
poderia ser homologado pelo juiz.
JUSTIÇA DO TRABALHO. HOMOLOGAÇÃO DE
ACORDO EXTRAJUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. A
Justiça do Trabalho, como prescreve o art. 114 da Cons-
tituição Federal, tem competência para conciliar e julgar
dissídios individuais, ou mais apropriadamente, litígios
fundados em uma controvérsia, não se prestando, assim,
para homologar acordos extrajudiciais.12

11 
WATANABE, Kazuo. Depoimento. Cadernos FGV Projetos, ano 12, n.30, abr/mai. 2017. Disponível
em: <https://fgvprojetos.fgv.br/publicacao/cadernos-fgv-projetos-no-30-solucao-de-conflitos>. Acesso em:
12 dez. 2020.
12 
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho - TRT 2. Recurso Ordinário nº 1000610-62.2016.5.02.0016.
Recorrente: GFI Securities LLC e outros. Recorrida: Os mesmos. Relator: Paulo Eduardo Vieira De Oliveira.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Assim, de acordo com a antiga jurisprudência do TST, não competia ao


Judiciário Trabalhista homologar acordo extrajudicial firmado entre empregado
e empregador, diante a ausência de previsão legal. 13
Com a implementação da Lei nº 13.467/2017, conhecida como Reforma
Trabalhista, foi então fixada a competência funcional das Varas do Trabalho para
“decidir quanto à homologação de acordo extrajudicial em matéria de compe-
tência da Justiça do Trabalho”, a qual inseriu a alínea “f ”, ao art. 652 da CLT.
Inicialmente, a adoção do acordo extrajudicial na seara trabalhista enfren-
tou diversas críticas, diante do receio em se utilizar um método consensual
extrajudicial que não apresentava uma segurança jurídica entre os acordantes
quanto a princípios peculiares laborais, como a irrenunciabilidade dos direitos
trabalhistas e o protecionismo processual da parte hipossuficiente, também
conhecido como princípio da proteção temperada ao trabalhador. Também,
ainda não há um consenso quanto a natureza da jurisdição voluntária, podendo
ser essa atividade considerada para alguns como natureza administrativa e, para
outros, como atividade jurisdicional.
Contudo, observa-se que a homologação do acordo extrajudicial é uma
hipótese pontual de jurisdição voluntária no âmbito do direito processual tra-
balhista, em que o Poder Judiciário valida a negociação proposta pelas partes
interessadas, a fim de conceder uma maior garantia e segurança jurídica à
transação, contanto que não cause prejuízo ao trabalhador. Assim, para que
seja efetivada a homologação do acordo extrajudicial deve-se cumprir alguns
requisitos legais e materiais, os quais serão analisados a seguir.

4 O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA


TRABALHISTA

O procedimento de jurisdição voluntária para homologação de acordo


extrajudicial encontra-se disposto no capítulo III-A, do Título X, composto
pelos arts. 855-B a 855-E da CLT, e foi uma inovação disciplinada pela Lei nº
13.467/17 com o título “Do processo de jurisdição voluntária para homologação
de acordo extrajudicial”, com a seguinte redação:

Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, São Paulo, 13 de junho de 2017. Disponível em: <https://trt-2.
jusbrasil.com.br/jurisprudencia/535701792/10006106220165020016-sp/inteiro-teor-535701807>. Acesso
em: 07 jun. 2021.
13 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Embargos Declaratórios Agravo de Instrumento em Recurso
de Revista nº 2042- 37.2015.5.02.0027. Embargante: BGC Liquidez Distribuidora de Títulos e Valores
Mobiliários LTDA. Embargado: Hélio Luiz Duarte Carvalho. Relator: Maria de Assis Calsing. Diário
Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 04 de maio de 2018. Disponível em: <https://tst.jusbrasil.com.
br/jurisprudencia/5740 94368/embargos-declaratorios-agravo-de-instrumento-em-recurso-de-revista-ed-
-airr20423720155020027/inteiro -teor-574094385>. Acesso em: 07 jun. 2021.

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O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO EXTRAJUDICIAL

Art. 855-B. O processo de homologação de acordo extra-


judicial terá início por petição conjunta, sendo obrigatória
a representação das partes por advogado.
§ 1ºAs partes não poderão ser representadas por advo-
gado comum.
§ 2ºFaculta-se ao trabalhador ser assistido pelo advogado
do sindicato de sua categoria.
Art. 855-C. O disposto neste Capítulo não prejudica o
prazo estabelecido no § 6º do art. 477 desta Consolidação
e não afasta a aplicação da multa prevista no § 8º art. 477
desta Consolidação.
Art. 855-D. No prazo de quinze dias a contar da distribuição
da petição, o juiz analisará o acordo, designará audiência
se entender necessário e proferirá sentença.
Art. 855-E. A petição de homologação de acordo extraju-
dicial suspende o prazo prescricional da ação quanto aos
direitos nela especificados.
Parágrafo único. O prazo prescricional voltará a fluir no
dia útil seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que
negar a homologação do acordo.
Para a formalização do acordo extrajudicial é necessário também a obser-
vância de requisitos negociais indispensáveis para sua homologação, como
estabelece os incisos I, II e III, do art. 104 do Código Civil (CC): “agente capaz;
objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não
defesa em lei”. Também o art. 849 do CC, estabeleceu que “a transação só se
anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto a pessoa ou coisa controversa”.
Nesse sentido, a transação apenas se realizará quanto a direitos patrimoniais de
caráter privado e deverá ser interpretada restritivamente, conforme estabelece
os arts. 841 e 843, do CC. Dessa forma,
inexistindo qualquer ressalva, observados os requisitos
legais (CC, art. 104) e não havendo vício capaz de anular
o negócio jurídico (CC, arts. 138 a 166), segundo a análise
judicial que se pode processar inclusive com a designação
de audiência específica (CLT, art. 855-D), a transação há
de ser homologada nos exatos termos em que celebrada.14
A homologação procederá por intermédio de petição conjunta dos inte-
ressados, o que demonstra a anuência mútua, sendo obrigatória a representação

14 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo em Recurso de Revista n° 1000201-34.2019.5.02.0064.
Agravante: Kypers Brasil Participacoes LTDA. Agravada: Noemia Rodrigues Gomes. Relator: Breno Medei-
ros. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 27 de novembro de 2020. Disponível em: < https://
jurisprudencia.tst.jus.br/#16dad68d1b0cc6ef625641cb91ea90b8 >. Acesso em: 07 jun. 2021.

<< Retorne ao sumário 65


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

por procuradores distintos, conforme art. 855-B da CLT. Ainda, de acordo com
o § 2º desse mesmo dispositivo, a lei também concede ao trabalhador a faculdade
de ser assistido pelo advogado de seu sindicato profissional.
A legislação, entretanto, veda a possibilidade de representação por advo-
gado comum, segundo estabelece o § 1º, do art. 855-B da CLT, uma vez que
tem por objetivo conferir aos interessados maiores esclarecimentos sobre os
direitos acordados na transação e durante o procedimento homologatório, além
de tentar evitar possíveis fraudes e simulações. Conforme o Ministro do TST,
Ives Gandra Martins Filho,
a petição conjuntamente assinada para a apresentação
do requerimento de homologação ao juiz de piso serve
à demonstração da anuência mútua dos interessados em
por fim ao contratado, e, os advogados distintos, à garan-
tia de que as pretensões estarão sendo individualmente
respeitadas.15
Diante disso, Leite afirma que o procedimento de homologação de
acordo extrajudicial não permite o jus postulandi - art. 791 da CLT - uma vez
que as partes interessadas devem estar obrigatoriamente representadas por seus
advogados.16
No tocante ao objeto do acordo extrajudicial, Miessa ressalta que o legis-
lador criou duas restrições específicas, sendo a primeira o prazo para pagamento
das verbas rescisórias - art. 855-E da CLT – e, a segunda, o fato do acordo só
atingir direitos elencados na petição -art. 855-C da CLT.17
Portanto, mesmo que o acordo verse sobre verbas rescisórias, o emprega-
dor deverá observar o prazo para pagamento rescisório disposto no §6º, do art.
477 da CLT, de até 10 dias contados a partir do término do contrato, sob pena
de pagamento da multa prevista no §8º, do art. 477 da CLT. Para Pamplona e
Souza “tal previsão é elementar a fim de evitar que o acordo extrajudicial pudesse
ser usado como meio de procrastinar o adimplemento das verbas devidas ao
trabalhador”.18

15 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 1000013-78.2018.5.02.0063. Recorrente:
Merck Sharp & Dohme Farmacêutica Ltda. Recorrida: Ana Victória Meneghesso Pelliciari. Relator: Ives
Gandra Martins Filho. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 20 de setembro de 2019. Disponível
em: <file:///C:/Users/DELL/Downloads/RR-1000013-78_2018_5_02_0063.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2021.
16 
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 17. ed. São Paulo: Saraiva,
2019. p. 297.
17 
MIESSA, Élisson. Processo de Jurisdição Voluntária para homologação de Acordo Extrajudicial. In:
TUPINAMBÁ, Carolina (Org.). Soluções de Conflitos Trabalhistas: Novos Caminhos. São Paulo: LTr,
2018. p. 232.
18 
PAMPLONA Filho, Rodolfo; SOUZA, Tercio Roberto Peixoto. Curso de Direito Processual do Tra-
balho. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 724.

<< Retorne ao sumário 66


O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO EXTRAJUDICIAL

Foi estabelecido também, no art. 855-D da CLT, que o juiz terá o prazo
de 15 dias para analisar o acordo, a contar da distribuição da peça. Esse prazo,
porém, é considerado impróprio, uma vez que seu descumprimento não provocará
nenhum efeito processual. Poderá o juiz também, se achar necessário, designar
uma audiência antes de proferir a decisão, para que os interessados apresentem
esclarecimentos, com o objetivo de dirimir eventuais dúvidas e estabelecer os
efeitos da homologação.
Vale ressaltar que a decisão proferida pelo magistrado trabalhista pode
ser homologatória ou denegatória do acordo extrajudicial, uma vez que o ato
de homologação é faculdade do juiz, conforme disposto na Súmula nº 418
do TST. Além disso, o art. 765 da CLT também estabelece que “os Juízos e
Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão
pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência
necessária ao esclarecimento delas”, devendo a decisão ser fundamentada, nos
termos do art. 93, inciso IX, da CF/88.
Por fim, a peça homologatória do acordo extrajudicial suspende o prazo
prescricional da ação em relação aos direitos nela especificados, sendo que na
hipótese de não homologação, o prazo voltará a fluir no dia útil seguinte ao do
trânsito em julgado da decisão negatória, conforme estabelece o caput e parágrafo
único, do art. 855-E da CLT.
A transação extrajudicial se concretiza com a homologação judicial,
portanto, segundo Bebber, enquanto não for proferida decisão, qualquer uma
das partes poderá desistir do pedido de homologação do acordo, sendo um ato
unilateral, que independe do consentimento da outra parte e produz efeitos
imediatamente.19
Na visão de Travain, ao ser negada a homologação
o acordo extrajudicial terá eficácia liberatória quanto às
quantias nele especificadas, contanto tenham sido pagas ao
trabalhador. Além disso, caberá ao trabalhador, se for o caso,
ingressar em juízo com ação (processo de conhecimento),
tendente a receber. Todavia, havendo a homologação do
acordo esta decisão será irrecorrível aos interessados, exceto
ao Instituto Nacional da Seguridade Social – INSS que, nos
termos do artigo 831 da CLT poderá recorrer. O mesmo
é reconhecido pela súmula 259 do TST. 20

19 
BEBBER, Júlio César Reforma Trabalhista: homologação de acordo extrajudicial. In: FELICIANO,
Guilherme Guimarães; TREVISO, Marco Aurélio Marsiglia; FONTES, Saulo Tarcísio de Carvalho. Reforma
Trabalhista: visão, compreensão e crítica. São Paulo: LTr, 2017. p.84.
20 
TRAVAIN, Luiz Antônio Loureiro. Manual da Conciliação e Mediação Trabalhista. 1. ed. v. 2. São
Paulo: Amazon, 2021. p. 171.

<< Retorne ao sumário 67


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

O INSS poderá recorrer da decisão que homologar o acordo extrajudicial


quanto às contribuições que lhe forem devidas, nos termos do art. 831, da CLT.
Também a Súmula 259 do TST estabelece que só por ação rescisória é impug-
nável o termo de conciliação, previsto no parágrafo único, do art. 831 da CLT.
Para Delgado, a decisão que denegar parcialmente ou totalmente a homo-
logação do acordo é passível de recurso ordinário, por se tratar de decisão ter-
minativa do feito, conforme art. 893, caput, inciso II e § 1º, in fine, combinado
com art. 895, caput e inciso I, todos da CLT. 21
Assim, em relação a decisão do magistrado de homologar ou denegar a
homologação do acordo extrajudicial, será realizado um estudo doutrinário e
jurisprudencial do TST, com o intuito de verificar o entendimento acerca da
possibilidade de se homologar parcialmente a transação.

5 ANÁLISE DA DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA


DO TST SOBRE A HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO
ACORDO EXTRAJUDICIAL

O objeto desse estudo busca analisar o entendimento sobre a possibilidade


ou não do juiz homologar o acordo parcialmente. Há um impasse nesse sentido,
justamente por haver divergências entre a jurisprudência do TST e algumas
doutrinas trabalhistas que concordam e outras que discordam sobre o tema.
Segundo Delgado, o magistrado não está vinculado ao disposto no acordo
extrajudicial, podendo, inclusive, recusar a homologação pretendida, de forma
total ou apenas parcial, citando como exemplo os casos de
recusa quanto à descaracterização de verbas salariais em
indenizatórias, para fins de burlar os recolhimentos impera-
tivos legais (no caso, para determinar o correto recolhimento,
por exemplo); ou recusa quanto à amplitude da quitação
lançada na petição de acordo (no caso, para fixar os corretos
limites da quitação, por exemplo).22
De acordo com Calvet, o juiz do trabalho poderá homologar parcialmente
o acordo extrajudicial, eliminando cláusulas que entender nulas e modificando
outras para o cumprimento dos requisitos legais, tendo como fundamento o
art. 723, parágrafo único, do CPC, o qual estabelece que “o juiz não é obrigado
a observar o critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solu-
ção que considerar mais conveniente e oportuna”. Segundo esse mesmo autor,

21 
DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A Reforma Trabalhista no Brasil. 1.
ed. São Paulo: LTr, 2017. p. 353.
22 
Ibidem.

<< Retorne ao sumário 68


O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO EXTRAJUDICIAL

deve haver também a comunicação das partes para se manifestarem sobre tal
decisão, uma vez que
o próprio fundamento da transação, que finaliza ou evita
litígios por meio de concessões recíprocas, é contrário à
modificação surpresa, pelo magistrado, do conteúdo da
avença, sob pena de se desequilibrar o negócio jurídico
entabulado e macular a autonomia da vontade, razão pela
qual, a fim de harmonizar tais institutos, entendo que, em
caso de homologação parcial ou que pretende alterar o
conteúdo da transação, deve o juízo abrir contraditório, por
meio de audiência ou não, mas sempre dando oportunidade
às partes para, simplesmente, desistirem do procedimento
caso o juiz não acate a vontade manifestada por ambos 23.
O juiz terá o prazo de quinze dias, a contar da distribuição da petição,
para analisar o acordo, designar audiência, se for necessário, e proferir a sen-
tença, conforme disposto no art. Art. 855-D, da CLT. Segundo Leite, “esta
sentença poderá homologar o acordo ou rejeitar a sua homologação, total ou
parcialmente”. 24
O acordo poderá ser rejeitado caso seja constatada a falta de requisitos
legais, lide simulada, ou até mesmo a inexistência de transação, o que constitui
uma renúncia de direitos trabalhistas, uma vez que a homologação é considerada
faculdade do juiz25. Além disso, o principal motivo que tem levado alguns juízes
a conferir homologação parcial aos acordos extrajudiciais é a tentativa de evitar
supressões de direitos por meio das cláusulas de quitação geral.
Conforme estabelece Delgado, o princípio da indisponibilidade de direitos
autoriza invalidar qualquer renúncia ou mesmo transação lesiva operada pelo
empregado ao longo do contrato26, pois visa resguardar os direitos inerentes ao
trabalhador.
Em que pese o entendimento consagrado no Tribunal
Superior do Trabalho (TST), através da sua Orientação
Jurisprudencial de n° 270 c/c artigo 468 da CLT, no sentido
de que os direitos trabalhistas são absolutamente indispo-
níveis e irrenunciáveis, o Supremo Tribunal Federal (STF),

23 
CALVET, Otavio Amaral. Acordo Extrajudicial homologado judicialmente na Justiça do Trabalho. In:
AIDAR, Letícia; RENZETTI, Rogério; LUCA, Guilherme de (Org.). Reforma Trabalhista e Reflexos
no Direito e Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2017. p. 28.
24 
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 17. ed. São Paulo: Saraiva,
2019. p. 2268.
25 
SANTOS, Enoque Ribeiro dos; HAJEL FILHO, Antônio Bittar. Curso de Direito Processual do
Trabalho. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 1257.
26 
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 1740.

<< Retorne ao sumário 69


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

ao se debruçar sobre a matéria no julgamento do Recurso


Extraordinário (RE) de n° 590.415 já sinalizou que assim
não entende, pois, por unanimidade do seu pleno, entendeu
pela validade das cláusulas de quitação geral inseridas nos
planos de dispensa incentivada (PDI) ou voluntária (PDV),
desde que autorizadas por norma coletiva. Na mesma linha,
para a doutrina majoritária, os direitos trabalhistas são de
indisponibilidade absoluta e relativa (DELGADO, 2003,
p. 59/60). E para este autor, em especial, são de indispo-
nibilidade absoluta aqueles atinentes à personalidade e
higidez física e mental dos trabalhadores; ou seja, normas
antidiscriminatórias, intervalares, de medicina e segurança
no trabalho. Seriam de indisponibilidade relativa todos os
demais (ACP n° 109100-03.2008.5.02.0203), em especial,
aqueles que o nosso ordenamento expressamente assim
previu (Art. 7, incs. VI, XIII e XIV, da CRFB/88)27.
Para Godoy, no entanto, ao ser invalidada alguma cláusula a transação
também se invalida completamente, uma vez que o art. 848 do Código Civil
(CC), que compõe o Capítulo XIX - “Da Transação”, estabeleceu que “sendo
nula qualquer das cláusulas da transação, nula será esta”.28
Sobre o tema, Miessa entende que não há possibilidade de uma homolo-
gação parcial, uma vez que o acordo extrajudicial pode ser homologado ou não
pelo juiz, tendo a decisão natureza de sentença, sendo que, no primeiro caso
(homologação) se daria com resolução do mérito (CPC/15, art. 487, III, b) e,
no segundo (não homologação), sem a resolução do mérito.29
Ao ouvir os interessados em audiência e obter os esclarecimentos necessá-
rios para o caso, segundo Travain, caberá ao juiz adotar uma destas duas soluções:
homologar o acordo ou não o homologar. Diante disso,
o magistrado do trabalho deverá ater-se a elementos básicos
do direito do trabalho para aferir de forma adequada quais
serão os empecilhos que vedam a homologação do acordo.
Cumpre lembrar também que, nesta análise, o magistrado
deverá analisar os fatos conforme o princípio tuitivo da

27 
BORTOLI, Fabrizio De; CARDOSO, Jair Aparecido. Jurisdição Voluntária na Justiça do Trabalho e
suas Implicações Práticas: Avanço ou Retrocesso. In: PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo; BELLINETTI,
Luiz Fernando; CARVALHO, Sílzia Alves (Coords.). Acesso à justiça II [Recurso eletrônico on-line].
Florianópolis: CONPEDI, 2019. p. 90.
28 
GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. In: PELUSO,
Cesar (Coord). 8. Ed. Barueri: Manole, 2014. p.816.
29 
MIESSA, Élisson. Processo de Jurisdição Voluntária para homologação de Acordo Extrajudicial. In:
TUPINAMBÁ, Carolina (Org.). Soluções de Conflitos Trabalhistas: Novos Caminhos. São Paulo: LTr,
2018. p. 236.

<< Retorne ao sumário 70


O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO EXTRAJUDICIAL

verdade real e realidade dos fatos, podendo, dentro de seu


poder-dever jurisdicional homologar a avença ou não.30
De acordo com a Ministra Delaíde Miranda Arantes, a jurisprudência
do TST tem caminhado no sentido de que compete à Justiça do Trabalho, no
procedimento de jurisdição voluntária, homologar de forma integral ou não
homologar o acordo extrajudicial, sendo vedada a homologação parcial.31
Conforme decisão proferida pelo Ministro Ives Gandra Martins Filho,
não haveria a possibilidade de homologar parcialmente o acordo uma vez que
“a atuação do Judiciário Laboral na tarefa de jurisdição voluntária é binária:
homologar, ou não, o acordo. Não lhe é dado substituir-se às partes e homolo-
gar parcialmente o acordo”.32 Dessa forma, cabe ao juiz homologar ou rejeitar
o acordo extrajudicial em sua totalidade, uma vez que não lhe é autorizado
substituir a vontade manifestada pelas partes.
Ainda segundo esse Ministro, “tal entendimento resta corroborado pelo
STF quanto à circunstância da validade do acordo depender da homologação
integral ou de sua rejeição total, não podendo ser balanceado pelo Poder Judi-
ciário”, conforme trecho do voto do Ministro Teori Zavascki no RE 590.715/
SC, nos seguintes termos:
A ideia que indelevelmente adere ao acordo extrajudicial é a
de que, retirada uma das cláusulas que o compõem, a parte
a quem ela favoreceria não faria o acordo. A alternativa que
caberia ao Judiciário, portanto, seria a homologação integral
ou a rejeição da proposta, se eivada de vícios. Tal entendi-
mento resta corroborado pelo STF quanto à circunstância
de a validade do acordo depender da homologação integral
ou de sua rejeição total, não podendo ser balanceado pelo
Poder Judiciário.33
De acordo com Douglas Alencar Rodrigues, também Ministro do TST,
inexistindo qualquer ressalva, o acordo extrajudicial deverá ser homologado nos
termos em que foi celebrado pelos interessados, não competindo ao juiz inserir
30 
TRAVAIN, Luiz Antônio Loureiro. Manual da Conciliação e Mediação Trabalhista. 1. ed. v. 2. São
Paulo: Amazon, 2021. p. 171.
31 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 1001070-64.2019.5.02.0462. Recorrente:
Polimold Industrial S/A. Recorrido: Rafael Castro de Sousa. Relator: Ministra Delaíde Miranda Arantes.
Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 11 de junho de 2021. Disponível em:< https://jurispru-
dencia.tst.jus.br/#f73986b3f017f22b014cee872f9b8367>. Acesso em: 13 jun. 2021.
32 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 1000013-78.2018.5.02.0063. Recor-
rente: Merck Sharp & Dohme Farmacêutica Ltda. Recorrida: Ana Victória Meneghesso Pelliciari. Relator:
Ministro Ives Gandra Martins Filho. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 20 de setembro
de 2019. Disponível em: <https://jurisprudencia.tst.jus.br/#dd56f1c4a8cff588eccb8e80a0411bfd>. Acesso
em: 07 jun. 2021.
33 
Ibidem.

<< Retorne ao sumário 71


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

alguma condição que não foi acordada e que se situa no âmbito exclusivo da
autonomia da vontade. Nesse contexto,
estando presentes os requisitos de validade do acordo extra-
judicial firmado, mostra-se inviável ao Tribunal Regional a
aposição de ressalvas ou condições que não foram estabele-
cidas pelos interessados, cabendo-lhe, tão somente, decidir
pela homologação ou não do termo de transação, mediante
decisão fundamentada (CF, art. 93, IX).34
Cabe ao Poder Judiciário, segundo o Ministro Breno Medeiros, apenas
homologar ou rejeitar de forma integral o acordo proposto pelos interessados
no procedimento de jurisdição voluntária. Assim,
não cabe ao Poder Judiciário tornar-se um mero “homologa-
dor” de acordos em que se identifica violação a dispositivos
legais ou, ainda, vícios de consentimento das partes (tendo
como norte o princípio da proteção, que cerca as relações
de trabalho), não deve, da mesma forma, modular seus
efeitos, à revelia da vontade das partes.35
Diante da análise doutrinária e jurisprudencial do TST, observa-se que
na doutrina ainda existem divergências quanto a possibilidade de homologação
parcial, no entanto, o entendimento dos Ministros nos acórdãos caminha para
uma uniformização da matéria na instância superior.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como principal objetivo o estudo acerca da homo-


logação do acordo extrajudicial no procedimento de jurisdição voluntária tra-
balhista, a fim de analisar o entendimento sobre a possibilidade ou não do juiz
homologar o acordo parcialmente. A Reforma Trabalhista regulamentou o
tema, porém não versou sobre o cabimento de decisão homologatória parcial
para a transação.
A doutrina não é pacífica em relação a esse procedimento, uma vez que
alguns autores defendem o cabimento de homologação parcial, já outros não
concordam com a possibilidade do juiz poder modificar ou alterar o acordo,
34 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista n° 596-19.2018.5.06.0015. Recorrente:
Banco Santander S.A. Recorrido: Elton Rocha Correa. Relator: Douglas Alencar Rodrigues. Diário Ele-
trônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 22 de maio de 2020. Disponível em: < https://jurisprudencia.tst.
jus.br/#dc138ea367685a50acc76d3803299d13>. Acesso em: 07 jun. 2021.
35 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo em Recurso de Revista n° 1000201-34.2019.5.02.0064.
Agravante: Kypers Brasil Participacoes LTDA. Agravada: Noemia Rodrigues Gomes. Relator: Breno Medei-
ros. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 27 de novembro de 2020. Disponível em: < https://
jurisprudencia.tst.jus.br/#16dad68d1b0cc6ef625641cb91ea90b8 >. Acesso em: 07 jun. 2021.

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O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO EXTRAJUDICIAL

excluindo cláusulas estabelecidas pelas partes. Em relação a jurisprudência do


TST, observa-se uma tendência de pacificação do entendimento sobre o tema,
no sentido de que a decisão deverá homologar integralmente ou não homologar
o acordo extrajudicial, sendo vedada a homologação parcial.
Ao homologar parcialmente a transação, mesmo com o intuito de evitar
supressões de direitos trabalhistas por meio das cláusulas de quitação geral, o
magistrado cria uma situação diversa da que foi formulada pelos interessados,
o que poderia descaracterizar o próprio acordo extrajudicial, objeto do proce-
dimento de jurisdição voluntária.
Sendo assim, deve o juiz submeter-se ao princípio da primazia da realidade,
a fim de verificar se a transação cumpre os requisitos legais estabelecidos e se
não apresenta nenhum vício que possa causar algum prejuízo ao trabalhador,
sendo-lhe facultado, dentro de seu poder-dever jurisdicional, apenas homologar
o acordo de forma integral, ou não homologá-lo, não sendo cabível modificar a
transação apresentada, substituindo a vontade manifestada pelos interessados.

REFERÊNCIAS

BEBBER, Júlio César Reforma Trabalhista: homologação de acordo extrajudicial. In:


FELICIANO, Guilherme Guimarães; TREVISO, Marco Aurélio Marsiglia; FON-
TES, Saulo Tarcísio de Carvalho. Reforma Trabalhista: visão, compreensão e crítica.
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ponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>.
Acesso em: 01 jan. 2021.
_______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/
ccivil _03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em: 03 jan. 2021.
_______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 26
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_______. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis
n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de
julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm>.
Acesso em: 01 jan. 2021.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

_______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em:
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_______. Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2). Recurso Ordinário nº 1000610-
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Relator: Paulo Eduardo Vieira De Oliveira. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho,
São Paulo, 13 de junho de 2017. Disponível em: <https://trt-2.jusbrasil.com.br/juris-
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Rodrigues Gomes. Relator: Breno Medeiros. Diário Eletrônico da Justiça do Traba-
lho, Brasília, 27 de novembro de 2020. Disponível em: < https://jurisprudencia.tst.jus.
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trumento em Recurso de Revista nº 2042- 37.2015.5.02.0027. Embargante: BGC
Liquidez Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários LTDA. Embargado: Hélio
Luiz Duarte Carvalho. Relator: Maria de Assis Calsing. Diário Eletrônico da Justiça
do Trabalho, Brasília, 04 de maio de 2018. Disponível em: <https://tst.jusbrasil.com.
br/jurisprudencia/5740
94368/embargos-declaratorios-agravo-de-instrumento-em-recurso-de-revista-ed-
-airr20423720155020027/inteiro -teor-574094385>. Acesso em: 07 jun. 2021.
_______. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista n° 596-19.2018.5.06.0015.
Recorrente: Banco Santander S.A. Recorrido: Elton Rocha Correa. Relator: Douglas
Alencar Rodrigues. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 22 de maio
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c76d3803299d13>. Acesso em: 07 jun. 2021.
_______. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 1000013-
78.2018.5.02.0063. Recorrente: Merck Sharp & Dohme Farmacêutica Ltda. Recor-
rida: Ana Victória Meneghesso Pelliciari. Relator: Ives Gandra Martins Filho. Diário
Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, 20 de setembro de 2019. Disponível
em:<https://jurisprudencia.tst.jus.br/#dd56flc 4a8cff588eccb8e80a0411bfd >. Acesso
em: 07 jun. 2021.
_______. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 1001070-
64.2019.5.02.0462. Recorrente: Polimold Industrial S/A. Recorrido: Rafael Castro de
Sousa. Relator: Ministra Delaíde Miranda Arantes. Diário Eletrônico da Justiça do
Trabalho, Brasília, 11 de junho de 2021. Disponível em:< https://jurisprudencia.tst.
jus.br/#f73986b3f017f22b014cee872f9b8367>. Acesso em: 13 jun. 2021.

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O PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA TRABALHISTA E A
POSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PARCIAL DO ACORDO EXTRAJUDICIAL

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do Trabalho e suas Implicações Práticas: Avanço ou Retrocesso. In: PEREIRA FILHO,
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IMPACTO DA DIGITALIZAÇÃO DO
TRABALHO DURANTE
A PANDEMIA NA RELAÇÃO
DE EMPREGO

Impact of labor digitization during the


pandemic on the employment relationship

Edilton Meireles1
Hugo Rossi Figueirôa2

Resumo: O presente artigo é fruto da pesquisa sobre a relação entre a digitalização


intensiva do trabalho durante a pandemia e a relação de poder entre empregador
e empregado. Na medida em que novas revoluções tecnológicas vão emergindo,
a relação do homem com a natureza se modifica, já que ele passa a exercer um
enorme poder sobre ela. Nesse mesmo sentido, passa a ser compreendida a própria
natureza humana e a se sistematizar a organização da humanidade e do ambiente de
trabalho. O trabalhador passa a ser compreendido como uma máquina e os recursos
tecnológicos aparecem como auxiliares para garantir o funcionamento dele como
tal, explorando até o extremo a sua eficácia. O capitalismo atual se estrutura neste
sentido e o estado de calamidade pública e crise de saúde decorrente da pandemia
intensifica o processo na medida em que impulsiona uma maior digitalização do
trabalho. Por efeito, também se modifica de maneira substancial as dinâmicas de
poder que existem entre empregador e empregado. Por fim, concluiu a investigação
que o impacto é de um maior poder do trabalhador sobre o empregado, sendo
crucial que o pensamento jurídico examine a questão sob o prisma da promoção
dos direitos fundamentais do trabalhador. Na pesquisa foi utilizado o método
dedutivo, com revisão da literatura e interpretação de textos jurídicos.
1 
Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor pela PUC/SP. Desembargador
do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, professor associado da Faculdade de Direito
da Universidade Federal da Bahia (UFBa).
2 
Pesquisador e bolsista PIBIC do projeto de pesquisa “Trabalho em transformação: novas tecnologias e
crise sanitária” da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: hugo-rossi@live.com

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IMPACTO DA DIGITALIZAÇÃO DO TRABALHO DURANTE
A PANDEMIA NA RELAÇÃO DE EMPREGO

Palavras-chave: Pandemia, direito, sociologia, covid-19, trabalho.

Abstract: This article is the result of research on the relationship between


the intensive digitization of work during the pandemic and the power rela-
tionship between employer and employee. As new technological revolutions
emerge, man’s relationship with nature changes, as he begins to exercise
enormous power over it. In this sense, human nature itself is understood and
the organization of humanity and the work environment is systematized. The
worker starts to be seen as a machine and the technological resources appear
as auxiliaries to guarantee its functioning as such, exploiting its effectiveness
to the extreme. The current capitalism is structured in this sense and the state
of public calamity and health crisis resulting from the pandemic intensifies
the process as it drives a greater digitization of work. As a result, the power
dynamics that exist between employer and employee are also substantially
modified. Finally, the research concluded that the impact is of greater power of
the employer over the employee, and it is crucial that legal thinking examines
the issue through the prism of promoting the worker’s fundamental rights.
In this research, the deductive method was used, with literature review and
interpretation of legal texts.

Keywords: Pandemic, right, sociology, covid-19, work.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo averiguar qual o impacto da crescente


digitalização do trabalho durante a pandemia sobre a relação de poder entre
empregador e empregado.
Através desses estudos, busca-se aprofundar o entendimento desse aspecto
das novas relações de trabalho decorrentes do uso de tecnologias para mitigar
o impacto da pandemia sob a economia.
Para tanto, analisar-se-á como a tecnologia impacta a sociedade, e, prin-
cipalmente, as relações de trabalho. Far-se-á essa tarefa analisando como isso
ocorreu na história recente, com especial ênfase ao período do enfrentamento
a pandemia causada pela covid-19, através da revisão bibliográfica da literatura
concernente, além da legislação e jurisprudência nacional e internacional acerca
do assunto.
Na pesquisa será utilizado o método dedutivo, com revisão da literatura
e interpretação de textos jurídicos.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

2. TECNOLOGIA E A QUESTÃO DA LIBERDADE

Quando o homem, em seu estado mais primitivo, relacionava-se mais


diretamente com a natureza, via-se em estado de submissão. Em sentido con-
trário, o homem que se insere na civilização moderna vê a natureza como uma
arena onde ele pode impor suas vontades através da tecnologia, sentindo-se livre
dos ditames naturais3. Nessa direção, leciona Hegel que a liberdade só existe
na reflexão do homem para si mesmo, na sua distinção da natureza e na ação
refletida sobre si4. Ao menos esta é a maneira pela qual os primeiros autores
da era moderna passaram a enxergar a questão.
O conceito de modernidade está sempre relacionado para nós ao novo,
àquilo que rompe com a tradição. Trata-se, portanto, de um conceito associado a
um sentido positivo de mudança, transformação e progresso5. Desvinculando-se da
compreensão medieval, de um mundo em contato com elementos transcendentes, de
uma vida em que o indivíduo não é senão dentro de um grupo a dar-lhe identidade,
o Renascimento, retornando aos clássicos, forma sua estrutura paradigmática sob
a máxima de Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas. O humanismo
rompe assim com a visão teocêntrica e com a concepção filosófico-teológica medieval,
valorizando o interesse pelo homem considerado em si mesmo6.

3. TECNOLOGIA COMO ESVAZIAMENTO


DO HOMEM

Com a obra de Nicolau de Cusa atacando a antiga cosmologia de Ptolomeu


se dá o início a revolução científica. Ao criticar o sistema geocêntrico de Ptolo-
meu, concluiu o autor que tanto o espaço como o tempo são infinitos, e, nessa
direção o universo não possui centro geométrico. Dessa forma, sua descoberta
se tornou um dos fatores de ruptura mais marcantes no início da modernidade,
uma vez que ia contra uma teoria estabelecida há praticamente vinte séculos,
constitutiva da própria maneira pela qual o homem antigo e medieval via a si
mesmo e ao mundo a que pertencia7.
Nesse sentido, a mudança do referencial e da cosmovisão do homem traz
implicações também em sentido ontognoseológico. Como a referência terrestre

3 
MORRISON, W. Filosofia do Direito: dos Gregos ao Pós-modernismo. São Paulo: Martin Fontes,
2006. p. 33.
4 
HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa: Guimarães, 1990. P. 186;
5 
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2. ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 2007. p. 141.
6 
Idem, p. 144.
7 
Idem, p 154.

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IMPACTO DA DIGITALIZAÇÃO DO TRABALHO DURANTE
A PANDEMIA NA RELAÇÃO DE EMPREGO

não era mais o centro da cosmovisão do homem, quebra-se a afinidade e harmonia


dele com a natureza ao seu redor, tornando-o uma criatura puramente contin-
gente, um mero acidente terrestre. A ciência ganha espaço, filtrando a limitada
percepção humana através de instrumentos externos utilizados para perceber
certos efeitos da natureza a partir de determinados métodos de monitoramento8.
Com isso, a ciência só poderia evoluir no sentido de estender quantitativamente
o conhecimento do caos natural, sem acréscimo significativo da sua compreensão
racional9, o que Hegel entendia como uma “repetição informe do idêntico, apenas
aplicado de fora a materiais diversos”10. Tudo isso nos remete a alguns pilares da
modernidade, especificamente aqueles que dizem respeito à crença de que tudo
que existe é quantificável e deve ser atomisticamente considerado11.

4. TECNOLOGIA COMO DOMÍNIO DO HOMEM

Por efeito, a todos os campos do conhecimento inacessíveis a medição


científica se dá o rótulo de subjetivos. Sob essa etiqueta se encontram todos os
valores e normas. Se o homem antigo era constrangido por limitações tradicionais
da comunidade local ou por um senso de transcendência, o homem, sob o prisma
da nova cosmologia, enxerga essas limitações como arbitrárias e subjetivas. A
única objetividade que se pode ter é a dos aspectos externos e mensuráveis do
homem, como ser que se molda através da resposta a estímulos12. Dessa maneira,
abre-se o caminho teórico para o investigador científico tratar a humanidade
como um aspecto da natureza a ser domado como qualquer outro.
Essa foi a tarefa levada adiante inicialmente pelos publicitários nos anos
1920, que passaram a pesquisar acerca das maneiras de utilizar os reflexos con-
dicionados das pessoas para ligar produtos as paixões humanas. O indivíduo
moderno é visto como um fantoche da paixão irracional que é posto sob controle
pela autoridade científica13. Evidente que, como aponta o ex-agente da KGB
Yuri Bezmenov, a arte de condicionar as massas para fazer coisas em sua própria
desvantagem é tão antiga quanto a humanidade14.
Contudo esta arte está se sofisticando não somente pela maior compreensão
científica das paixões humanas, como também pelo avanço dos meios para levar
8 
SMITH, W. Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista. Campinas: Vide,
2019. Tradução de Percival de Carvalho, p. 201-203.
9 
CARVALHO, O. de. Jardim das Aflições: de Epicuro a Ressureição de César: Ensaio Sobre a Religião
Civil. 2. ed. São Paulo: Topbooks, 1998, p. 94-95.
10 
HEGEL, G. W. F. Op.cit, p. 28.
11 
SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2008, p. 20-39.
12 
JONES, E. M. Libido Dominandi. Campinas: Vide, 2019. Tradução de Murilo Resende Ferreira. p. 281-284.
13 
Idém
14 
SCHUMAN, T. Love Letter to America. Los Angeles: Almanac Panorama, 1984. p. 17.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

adiante essa tarefa. Neste sentido, devemos notar o potencial de mecanismo como
televisão15 e internet16, capazes de disseminar uma determinada mensagem para
todo o globo. Se por um lado Hegel diagnosticou adequadamente que quando o
espírito do povo se afasta da natureza ele ganha uma liberdade que ele antes não
possuía17, parece que o próprio desenvolvimento do domínio do homem sobre a
natureza levou ele a domar não somente a ela, mas também aos seus semelhantes.
A verdade científica é tomada politicamente na idade moderna: a ciência é
centrada na forma de discurso científico e nas instituições que o produzem; está
submetida a constante incitação econômica e política; é objeto de várias formas,
de uma imensa difusão e um imenso consumo; é produzida e transmitida sob o
controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos
ou econômicos; e é objeto de debate político e confronto social18.

5. O BACAMARTE AUTOMATIZADO

Ensina Aristóteles que a literatura abre à imaginação ao reino do possível,


sendo a sua função mais importante no âmbito das representações (imagina-
ção)19, que nos auxiliam no processo mental de apreensão do discurso teórico.
Nesse sentido, é interessante a proximidade que possui o tema do presente artigo
com o conto “o alienista”, onde Machado de Assis desenvolveu um personagem
chamado Simão Bacamarte, um homem de ciência que possui o poder político
de encarcerar todas as pessoas que ele define, cientificamente, como loucos20.
A narrativa da pesquisa cientifica de Bacamarte e seus efeitos sobre a vida
comunitária é, em última instância, uma trama que gira em torno da natureza
política do poder científico.
O alienista é fruto da mentalidade de seu tempo, das imunidades, privilé-
gios e prestígio que se concedem a ciência, vistos ao longo de toda a narrativa21.
O discurso científico, por ser tido como objetivo e racional, alheio das vicissitudes
do vulgo e das coisas miúdas, tem o aval da sociedade para valorar todas as coisas.
15 
KEY, W. B. The Age of Manipulation: the con in confidence the sin in sincere. Maryland: Madison,
1993. p. 8.
16 
EPSTEIN, R.; ROBERTSON, R. E. The search engine manipulation effect (SEME) and its possible
impact on the outcomes of elections. Disponível em: http://www.pnas.org/content/112/33/E4512.full.pdf.
Acesso em: 31 out. 2016.
17 
HEGEL, G. W. F. Op. Cit.
18 
FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 14. ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, Cap. I. p. 1-14.
19 
ARISTÓTELES. Poética. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2008. Tradução e notas de Ana
Maria Valente, p. 55
20 
ASSIS, M de. O Alienista. São Paulo: Saraiva, 2009. (Clássicos Saraiva).
21 
GOMES, R.. O Alienista: loucura, poder e ciência. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5 (1-2):
145-160, 1993 (editado em nov. 1994).

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IMPACTO DA DIGITALIZAÇÃO DO TRABALHO DURANTE
A PANDEMIA NA RELAÇÃO DE EMPREGO

Essa instituição carregava em si o poder disciplinar para condicionar as pessoas


para um determinado padrão de normalidade cientificamente legitimado, seu
tratamento realiza o reparo do indivíduo para que voltasse a vida social regular22.
A obra acaba em uma ironia trágica para o personagem. O único homem
perfeitamente são que Bacamarte viria a descobrir era ele mesmo, e, por conse-
quência, pode ele vislumbrar que era um anormal, o único louco. A autorreflexão
crítica do observador científico libertou a comunidade do poder que derivava
da autoridade simbólica da ciência.
Contudo, a estória parte de um referencial bem diferente do que esta-
mos lidando no presente. Enquanto no conto o observador científico é um ser
humano, hoje essa é uma figura que pode ficar em segundo plano no processo
de produção de normas sociais legitimadas pela ciência. A adoção do Big Data
abre uma base amostral imensurável para ser utilizada na formalização em
sistemas preditivos ameaçadores aos direitos fundamentais23. Caso paradig-
mático pode ser visto na China, onde o governo passou a usar tecnologias de
ponta e algoritmos preditivos para fiscalizar, valorar e punir o comportamento
de todos os seus cidadãos através do sistema de crédito social24. O Bacamarte
contemporâneo é um algoritmo automatizado.

6. PANDEMIA, TECNOLOGIA E TRABALHO

Desde março de 2020, houve grande esforço por parte das economias
mundiais para conciliar o combate contra a pandemia causada pela COVID-
19 com a necessidade de se manterem os meios econômicos de subsistência da
população. Neste sentido, a ciência e as novas tecnologias tiveram um papel
fulcral nesta nova iniciativa. De acordo com o relatório “Digitalização, Resiliência
e Continuidade dos Negócios” feito pela multinacional Cisco Systems, uma dos
impactos da pandemia no funcionamento das empresas é o maior emprego de
recursos em tecnologias que diminuam o contato físico e automatização de
processos internos em prol da segurança e saúde25. Por efeito disso, altera-se
também de maneira significativa a dinâmica social do trabalho.

22 
AZEVEDO, E. F. de. Michel Foucault e “O Alienista” de Machado de Assis. 2009. 52 f. Monografia
(Especialização) - Curso de Direito, Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/14286/14286.PDF. Acesso em: 1 jun. 2018.
23 
MOROZOV, E. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
Tradução de Claudio Marcondes. p. 179.
24 
PHILIPP, J. A distopia do “crédito social” do regime chinês: ameaça da inteligência artificial encontra
“correção política” chinesa. Ameaça da inteligência artificial encontra “correção política” chinesa. 2018. Dis-
ponível em: https://www.epochtimes.com.br/distopia-credito-social-regime-chines/. Acesso em: 27 abr. 2021.
25 
CISCO. Digitalização, Resiliência e Continuidade dos Negócios. Disponível em: https://www.cisco.
com/c/dam/global/pt_br/solutions/pdfs/whitepaper-relatorio-deloitte.pdf. Acesso em: 3 abr. 2021.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

7. MAXIMIZANDO A EFICÁCIA

Por consequência do que foi previamente exposto nos tópicos anteriores, essa
mudança de dinâmica no trabalho acabará por acelerar o processo de “mecanização”
do homem. A crença na mensurabilidade e na quantificabilidade da vida domina
toda a era digital, sendo o corpo equipado ao máximo possível com sensores que
registram dados automaticamente26. O homem precisa agir como uma máquina,
padronizado, tal como uma peça, de forma que gire nos conformes, com eficiência
máxima27. Nesse sentido, é de se esperar que os esforços de gestão pandêmica
no ambiente de trabalho impulsionem o maior monitoramento do trabalhador.
De fato, durante o período pandêmico é possível observar que novos ins-
trumentos de mensuração e controle do trabalhador estão sendo implementado
dentro do ambiente de trabalho sob a justificativa da necessidade de gerir os
riscos de contaminação. Exemplo claro disso pode ser visto na França, onde a
companhia de higiene Essity passou a obrigar os trabalhadores a usar colares
com alarmes que apitam quando eles se aproximam dos colegas28.
Nesse caso em particular, a Representante da Confederação Democrá-
tica Francesa do Trabalho expressou grande preocupação com estes colares,
afirmando que o modo que eles operam dá a entender que a real razão de sua
implementação é para reforçar o monitoramento dos trabalhadores por razões
puramente econômicas, indo além do necessário para refrear a contaminação29.
Assim, torna-se visível que a pandemia se transformou em pretexto para certas
empresas avançarem a um nível de controle abusivo sob seus subordinados.

8. DIMINUINDO O TEMPO LIVRE

A mecanização da vida não acaba dentro dos limites do expediente do


trabalhador, mas certamente invade outras esferas de sua vida. O advento da
internet aboliu a barreira da distância geográfica para a comunicação entre tra-
balhador e patrão. Consequência disso é uma excessiva confusão do que seria o
real ambiente de trabalho e em uma subordinação e disponibilidade contínuas30.

26 
HAN, B.-c. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas dinâmicas de poder. o neoliberalismo e as novas
dinâmicas de poder. São Paulo: Ayine, 2018. Tradução de Maurício Liesen, p. 83.
27 
SMITH, W. op. Cit., p. 212.
28 
WATSON, S. French Workers Angrily Reject Social Distancing ‘Collars’. 2021. Disponível em: https://
www.infowars.com/posts/french-workers-angrily-reject-social-distancing-collars/. Acesso em: 27 abr. 2021.
29 
WILLSHER, K. ‘Treated like dogs’: row over social distancing alarms at french factory. row over social
distancing alarms at French factory. 2021. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2021/jan/14/
treated-like-dogs-row-over-social-distancing-alarms-at-french-factory. Acesso em: 27 abr. 2021.
30 
DACHERI, Emanueli; GOLDSCHMIDT, Rodrigo. O IMPACTO DA TECNOLOGIA NAS
RELAÇÕES DE TRABALHO: uma análise à luz da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamen-

<< Retorne ao sumário 82


IMPACTO DA DIGITALIZAÇÃO DO TRABALHO DURANTE
A PANDEMIA NA RELAÇÃO DE EMPREGO

Deve-se notar que durante o período pandêmico, muitos trabalhadores


passaram a ter de trabalhar em casa, o que tornou a situação mais delicada. Pes-
quisas feitas durante a pandemia com trabalhadores dessa modalidade apontaram
que ao menos 49% acreditavam que o ritmo está mais acelerado, 34% alegam
trabalhar mais de 8 horas diárias e 48% relataram que não pretendem permanecer
no home office contra 40% dos que o preferem31. O advento de eficientes meios
de comunicação e o imperativo de sua utilização durante a pandemia vulneram
certos limites que são melhor definidos no trabalho presencial.
Fato similar acontece com outra modalidade de trabalho que se tornou
proeminente, que é o serviço prestado através de aplicativos. Aplicativos de
entrega assumiram uma posição tão importante na nossa economia que eles
podem ser considerados os maiores “empregadores” do país, empregando ao
menos quatro milhões de Brasileiros e sendo parte da renda de ao menos outros
dezessete milhões32. Assim, figurou esse setor como um dos mais lucrativos
durante o período pandêmico.
Esse tipo de aplicativo faz com que os seus colaboradores (ou funcionários)
sintam que estão realizando suas atividades de maneira livre ao mesmo tempo
em que tenta impulsionar sua produtividade através de estímulos psicológicos
para fazer ele agir de acordo com o interesse da empresa33. Ao usar o aplicativo,
o trabalhador, condicionado pelo sistema calculado de estímulos, é induzido a
um estado de vigilância e exploração de si até os limites34.
Nessa direção, lidando com o particular proceder da Uber, a Suprema
Corte do Reino Unido percebeu a existência diversos mecanismos no apli-
cativo que restringiam os motoristas, impossibilitando o aumento de seus
rendimentos sem que trabalhassem por mais tempo dentro dos parâmetros
de performance da companhia35. Dessa forma, a aparente liberdade desses
trabalhadores é, em fato, gerida por “patrões” que se utilizam de uma forma
bem sofisticada de controle.

tais inespecíficos dos trabalhadores. Revista de Direitos Fundamentais nas Relações do Trabalho, Sociais
e Empresariais, [S.L.], v. 3, n. 2, p. 66, 4 dez. 2017. Conselho Nacional de Pesquisa e Pos-Graduacao em
Direito - CONPEDI. http://dx.doi.org/10.26668/indexlawjournals/2526-009x/2017.v3i2.2297. Acesso
em: 27 abr. 2021.
31 
TOKARSKI, J. Trabalhar de casa durante a pandemia tem causado sobrecarga nos trabalhadores, revela
pesquisa da UFPR. 2020. Disponível em: https://www.ufpr.br/portalufpr/noticias/trabalhar-de-casa-durante-
-a-pandemia-tem-causado-sobrecarga-nos-trabalhadores-revela-pesquisa-da-ufpr/. Acesso em: 27 abr. 2021.
32 
ESTADÃO. Apps como Uber e iFood se tornam “maior empregador” do Brasil. Disponível em: https://
exame.com/economia/apps-como-uber-e-ifood-sao-fonte-de-renda-de-quase-4-milhoes-de-pessoas/.
Acesso em: 12 nov. 2020.
33 
HAN, B.-C. Op. Cit. p. 64-69
34 
Idém. Página 85
35 
REINO UNIDO. Suprema Corte. Acórdão nº 5. Apelante: Uber BV e outros. Apelados: Aslam e outros.
Londres, 2021. §100 e §101.

<< Retorne ao sumário 83


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

9. PERPETUANDO A EXCEÇÃO

A pandemia não criou essa situação crítica. Em fato, ela apenas vem
para agravar a transformação no seio do nosso sistema econômico nos últimos
tempos que já estava em curso36. A economia global já estava caminhando em
um sentido novo, cujo símbolo é a empresa Amazon, atualmente a companhia
mais valiosa do planeta.
Com o efetivo de mais de um milhão de funcionários, essa empresa
baseou seus negócios em uma vigilância constante dos seus trabalhadores
através de tecnologias cada vez mais avançadas, de forma que as ineficiências
humanas fossem reduzidas. Mesmo antes da pandemia, foi-se constatado que
os trabalhadores do depósito do Amazon sofrem taxas mais altas de lesões do
que a média da indústria devido a sua dinâmica de trabalho37.
Nesse sentido, chegou ao conhecimento público documentos provando
que trabalhadores da companhia estavam a um tal nível de vigilância por efi-
ciência que eles se viam obrigados a aliviar suas necessidades em garrafas para
não serem punidos por perder tempo no banheiro38. A exceção pandêmica não
parece diferir da regra que existia antes dela.
Em fato, a pandemia foi o estopim da consolidação deste novo modelo de
negócio. Enquanto grandes corporações como a Amazon viram seus lucros subi-
rem em mais de 100%, pequenos negócios dos Estados Unidos chegaram a perder
30% de seu lucro e ao menos 21% deles foram fechados permanentemente39. O
sucesso econômico deste modelo de negócios é inegável independentemente da
situação. Contudo, a pandemia deu oportunidade para se exacerbarem práticas
exploratórias40. Assim como a Essity, a Amazon também investiu em um sistema
de monitoramento do distanciamento social de trabalhadores, usando câmeras
e sensores de proximidade41. Nessa direção, tecnologias que são supostamente

36 
SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit., p. 5 e 6.
37 
ALIMOHAMED-WILSON, J.; REESE, E. It’s a Prime Day for Resistance To Amazon’s Ruthless
Exploitation of Its Workers. Disponível em: https://www.jacobinmag.com/2020/10/jeff-bezos-prime-day-
-amazon-warehouse-workers. Acesso em: 27 abr. 2021.
38 
PICHI, Aimee. Amazon apologizes for denying that its drivers pee in bottles. 2021. Disponível em:
https://www.cbsnews.com/news/amazon-drivers-peeing-in-bottles-union-vote-worker-complaints/. Acesso
em: 27 abr. 2021.
39 
WATSON, Paul Joseph. Amazon Goes on Lockdown Hiring Spree While Small Businesses Go Bust.
2020. Disponível em: https://www.infowars.com/posts/amazon-goes-on-lockdown-hiring-spree-while-s-
mall-businesses-go-bust/. Acesso em: 27 abr. 2021.
40 
ALIMOHAMED-WILSON, Jake; REESE, Ellen. The cost of free shipping: amazon in the global
economy. London: Pluto Press, 2020. Página 306
41 
WATSON, Paul Joseph. Amazon Using Social Distancing Technology to Warn Staffers Who Get
Too Close. 2020. Disponível em: https://www.infowars.com/posts/amazon-using-social-distancing-tech-
nology-to-warn-staffers-who-get-too-close/. Acesso em: 27 abr. 2021.

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IMPACTO DA DIGITALIZAÇÃO DO TRABALHO DURANTE
A PANDEMIA NA RELAÇÃO DE EMPREGO

desenvolvidas para enfrentar a excepcional pandemia parecem estar em harmonia


com os interesses normais da nova economia.

10. PANDEMIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

A pandemia do Coronavírus não foi a primeira de caráter internacional


em que o Direito teve de se confrontar com a necessidade de se balancear
direitos humanos e o esforço de contenção da doença. Desde o século XIX
vem se desenvolvendo diversas regulamentações para poder lidar com esse tipo
de situação. Nesse sentido, a comunidade internacional passou a construir esse
regime desde 1851, na primeira convenção internacional sanitária ocorrida em
Paris. A discussão se desenvolveu durante décadas até a convenção de 1893 e,
por fim, houve a adoção formal das regulamentações sanitárias internacionais
em 195142.
O regime clássico de combate pandêmico foi uma maneira de estabelecer
um sistema de vigilância internacional para certas doenças infecciosas de forma
a harmonizar as políticas nacionais de quarentena e regulamentação com vistas
em levar ao mínimo as restrições com ajuda da eficácia do conhecimento cientí-
fico43. Nesse prisma, o artigo 2 da atual Regulamentação Sanitária Internacional
claramente define que seu objetivo é também combater às doenças da forma
menos intrusiva possível44.
Nessa diapasão, tem-se no artigo 43 deste documento a previsão expressa
de que os Estados devem se atentar o máximo possível para a medidas menos
restritivas de direitos fundamentais que possam alcançar um nível similar de
proteção à saúde45. Sendo assim, é possível afirmar que a comunidade inter-
nacional enxerga as situações pandêmicas não de forma unilateral, mas como
em uma antinomia onde todos os direitos humanos - incluindo o direito a
saúde - caminham conjuntamente.

42 
FIDLER, David P. From International Sanitary Conventions to Global Health Security: the new
international health regulations. Chinese Journal Of International Law, [S.L.], v. 4, n. 2, p. 325-392, 1
jan. 2005. Oxford University Press (OUP). http://dx.doi.org/10.1093/chinesejil/jmi029, p. 327-333. Acesso
em: 27 abr. 2021.
43 
Idem.
44 
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Regulamento Sanitário Internacio-
nal (2005). 2 Ed. Genebra: OMS, 2008. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/han-
dle/10665/43983/9789243580418_spa.pdf;jsessionid=7 1B1B67FAF168024F8E9D8BD517965F0?se-
quence=1. Acesso em: 3 abr. 2021, art. 2.
45 
Idem, art. 43

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

11. O DIREITO DOS TRABALHADORES EM MEIO A


PANDEMIA

A Organização Internacional do Trabalho publicou recomendações para se


delinear uma política pública que pudesse conciliar os direitos dos trabalhadores
com os esforços de contenção da pandemia. Reconhecendo que a pandemia
teve um efeito devastador na economia, expondo os níveis de desigualdade
e vulnerabilidade no mundo do trabalho, entendeu a organização que a crise
não deveria ser pretexto para descartar a estrutura normativa de proteção ao
trabalho46. Dessa forma, recomendou a organização que os Estados adotassem
medidas para ajudar empresas, principalmente as pequenas e médias, ameni-
zando o impacto nos setores mais vulneráveis. Essas políticas devem levar em
conta as peculiaridades do caso concreto, tomando em consideração a estrutura
da economia, as tendências de desigualdade social e as políticas econômicas e
sociais já em vigor47.
A ênfase em uma abordagem tendo em vista as circunstâncias fáticas
conduz ao entendimento de que o problema deve ser tratado levando em con-
sideração a promoção de um diálogo entre as partes afetadas. A promoção de
uma dinâmica social de diálogo entre empregadores, trabalhadores e sindicatos
é importante para garantir um projeto e implementação que sejam harmônicos
entre as partes48. Nesse sentido, o governo Brasileiro tentou regulamentar essa
interação e dialogo através do Medida Provisória 927/202049 e da Medida
provisória 936/202050, convertidas na lei no 14.020 de 6 de julho de 202051.
Essa lei, no que diz respeito as relações entre patrão e empregado, deu
mais flexibilidade ao empregador na hora, possibilitando a adaptação de sua
relação com os empregados ao momento de crise. Simultaneamente, buscou traçar
limites para que os empregadores não explorem essas liberdades para além do
razoável52. É um caminho possível para equilibrar a proteção dos trabalhadores,
a segurança jurídica e a razoabilidade.
46 
INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. A policy framework for tackling the economic
and social impact of the COVID-19 crisis. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@
dgreports/@dcomm/documents/briefingnote/wcms_745337.pdf. Acesso em: 27 abr. 2021, p. 7.
47 
Idem. Página 2.
48 
Idem. Página 16.
49 
BRASIL. Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020. . Brasília, Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm. Acesso em: 27 abr. 2021.
50 
BRASIL. Medida Provisória nº 936, de 01 de abril de 2020. . Brasília, Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv936.htm. Acesso em: 27 abr. 2021.
51 
BRASIL. Lei nº 14.020, de 06 de julho de 2021. . Brasilia, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14020.htm. Acesso em: 27 abr. 2021.
52 
GUEDES, Paulo Roberto Nunes. EM nº 00104/2020 ME. 2020. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-936-20.pdf. Acesso em: 27 abr. 2021.

<< Retorne ao sumário 86


IMPACTO DA DIGITALIZAÇÃO DO TRABALHO DURANTE
A PANDEMIA NA RELAÇÃO DE EMPREGO

O legislador está deliberando em um momento histórico de transição e


é impossível antever a melhor maneira de regulamentar a situação. O Direito
busca a superação da variabilidade de comportamentos singulares até formas
típicas e exemplares de conduta que sirvam para produzir maior liberdade para o
homem53. Seu adequado funcionamento depende do entendimento da natureza
do comportamento humano a qual se pretende uniformizar em uma norma.
Contudo, períodos de grandes pandemias costumam acompanhar gran-
des mudanças sociais, principalmente no âmbito do trabalho. Ao longo dos
séculos, as grandes mudanças de relacionamento entre os trabalhadores e seus
patrões tem ampla correlação com pandemias. Exemplo claro disso é a queda
do feudalismo europeu, impulsionado pela Peste Negra54. A pandemia atual dá
sinais de que acompanhará essa tendência, sendo visível a mudança significativa
da dinâmica de trabalho para um maior recurso ao teletrabalho, home office,
transporte e entregas por aplicativos55. As questões sobre temas digitais já eram
essenciais para o futuro dos direitos fundamentais56, mas a situação pandêmica
intensificou essa necessidade de maneira substancial.

12. CONCLUSÃO

Um aspecto fundamental do período histórico chamado modernidade é


a da mudança da relação do homem com o mundo ao seu redor. O referencial
simbólico geocêntrico e próprio do olhar corriqueiro do observador humano
foram modificados. Consequentemente, transforma-se de forma contundente a
afinidade e harmonia da humanidade com a natureza ao seu redor. Se o homem
antigo devia prestar contas à natureza, o homem moderno vê a natureza como
mero objeto de suas ações.
A chamada ciência assume o lugar de destaque. A partir de sua sistema-
tização e da utilização de instrumentos externos, ela abre nossas possibilidades
antes inacessíveis a percepção humana para monitorar aspectos exteriores da
natureza a partir de determinados métodos. Naturalmente, isso também muda a
maneira como o homem passa a enxergar a si. A ciência passa então a investigar
os aspectos externos e mensuráveis do homem como ser que se molda através da

53 
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p 244-245.
54 
STOKES, Freg J.. For Hundreds of Years, Pandemics Have Reshaped the Way We Work. Disponível
em: https://www.jacobinmag.com/2021/03/covid-pandemic-work-class-conflict-colonialism. Acesso em:
28 abr. 2021.
55 
LUCCA, Sergio Roberto de. Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. Cad. Saúde Pública, Rio de
Janeiro v. 36, n. 9, e00237120, 2020. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-311X2020000908002&lng=en&nrm=iso. access on 28 Apr. 2021. Epub Oct 05, 2020. https://doi.
org/10.1590/0102-311x00237120.
56 
MOROZOV, Evegeny.Op. Cit., p. 135.

<< Retorne ao sumário 87


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

resposta a estímulos. A compreensão científica das paixões humanas se sofistica,


assim como os meios de as manipular.
A economia global já estava se estruturando para o uso de tecnologia
avançada de forma a garantir a máxima efetividade dos trabalhadores. O processo
de transição para este modelo de trabalho se intensificou devido a pandemia,
que limitou diversas formas de trabalho e obrigou muitos postos de trabalho a
modificar seus procedimentos apelando ao recurso de meios digitais. Graças a
isso, novos instrumentos de mensuração e controle do trabalhador estão sendo
implementado dentro do ambiente de trabalho. Da mesma forma, é observável
que a digitalização do trabalho acaba por eliminar a distância geográfica para a
comunicação entre trabalhador e patrão, o que pode implicar em um inadequado
entendimento de subordinação e disponibilidade contínuas.
Nessa direção, deve-se notar que o regime clássico que os Estados adotaram
em pandemias anteriores foi o de utilizar o conhecimento científico para guiar
medidas eficazes para tornar mais efetivas as políticas nacionais com vistas a
atingir soluções menos invasivas e mais sofisticadas ao problema. A pandemia
traz efeitos devastadores na economia, mas isso não significa que deva justificar
o descarte da estrutura normativa de proteção ao trabalho. As questões sobre
temas digitais já eram centrais no debate público para o futuro dos direitos
fundamentais independentemente do coronavírus.
O impacto da pandemia sobre a relação de poder entre empregado e
patrão certamente é favorável ao patrão. As novas tecnologias e dinâmicas
sendo implementadas no ambiente de trabalho mudam de maneira drástica
a maneira que enxergávamos essa questão e propõe novos desafios. A postura
excepcionalmente flexível para lidar com uma crise não pode se perpetuar em
um novo normal em detrimento do trabalhador.

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portalufpr/noticias/trabalhar-de-casa-durante-a-pandemia-tem-causado-sobrecarga-
-nos-trabalhadores-revela-pesquisa-da-ufpr/. Acesso em: 27 abr. 2021.
WATSON, P. J. Amazon Using Social Distancing Technology to Warn Staffers
Who Get Too Close. 2020. Disponível em: https://www.infowars.com/posts/ama-
zon-using-social-distancing-technology-to-warn-staffers-who-get-too-close/. Acesso
em: 27 abr. 2021.
WATSON, P. J. Amazon Goes on Lockdown Hiring Spree While Small Businesses
Go Bust. 2020. Disponível em: https://www.infowars.com/posts/amazon-goes-on-
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WATSON, S. French Workers Angrily Reject Social Distancing ‘Collars’. 2021.
Disponível em: https://www.infowars.com/posts/french-workers-angrily-reject-so-
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WILLSHER, K. ‘Treated like dogs’: row over social distancing alarms at french factory.
row over social distancing alarms at French factory. 2021. Disponível em: https://www.
theguardian.com/world/2021/jan/14/treated-like-dogs-row-over-social-distancing-
-alarms-at-french-factory. Acesso em: 27 abr. 2021.

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A PRECARIZAÇÃO DOS
CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA
ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS)
ESTAGIÁRIOS(AS) DE
DIREITO NO CENÁRIO DA
PANDEMIA COVID-19

The precarity of internship contracts:


an analysis about the challenges faced
by law internies in the scenario of the
covid-19 pandemic

Ilana Silva Pereira1


Edilton Meireles2

Resumo: Artigo destinado a análise da aplicação da Lei nº 11.788/2008 nas relações de


estágio no tocante ao trabalho realizado pelos estagiários de escritórios e empresas, bem
como de órgãos públicos da área do Direito no período da pandemia do vírus COVID-19.
Tem-se como objetivo evidenciar que a precarização das relações de trabalho presente
no Estado Brasileiro, associada ao cenário pandêmico atual, prejudicou diretamente o
processo de aprendizado dos estudantes de Direito. Discutiu-se a descrição do cenário
de proteção jurídica da Lei nº 11.788/2008, desde a sua criação no ano de 2008, até o
1 
Graduanda em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). E-mail: ilana.pereira@ucsal.edu.br.
2 
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), com pós-doutorado
pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (UL). Professor da Graduação, Mestrado e Douto-
rado da Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e da Faculdade de Direito da Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Líder do Grupo de Pesquisa “Relações de Trabalho na Contemporaneidade” (PPGD/
UFBA/CNPq). Desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. E-mail:
edilton_meireles@uol.com.br.

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A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

presente momento; bem como em que medida o impacto das práticas neoliberais vêm
tangenciando a verdadeira finalidade das relações de estágio. Ante o reconhecimento
do desvirtuamento desta relação de trabalho, foi analisado em que medida a crise eco-
nômica no Brasil agravada pela pandemia repercutiu na precarização dos contratos de
estágio na esfera do Direito. Quanto aos aspectos metodológicos, o método utilizado
foi o hipotético-dedutivo. A construção da pesquisa se deu majoritariamente a partir
de levantamento teórico e bibliográfico.
Palavras-chave: legislação, contrato de estágio, escritórios de advocacia, precarização,
pandemia, acúmulo flexível.
Abstract: Article aimed at analyzing the application of Law No. 11,788/2008 in
internship relationships with regard to the work performed by interns from offices and
companies, as well as public bodies in the field of Law during the COVID-19 virus
pandemic period. The objective is to show that the precariousness of labor relations
present in the Brazilian State, associated with the current pandemic scenario, directly
harmed the learning process of law students. The description of the legal protection
scenario of Law nº 11.788/2008 was discussed, since its creation in 2008, until the
present moment; as well as to what extent the impact of neoliberal practices has been
touching the real purpose of internship relationships. In view of the recognition of the
distortion of this working relationship, it was analyzed to what extent the economic
crisis in Brazil, aggravated by the pandemic, had an impact on the precariousness of
internship contracts in the sphere of law. As for the methodological aspects, the method
used was the hypothetical-deductive one. The construction of the research took place
mainly from a theoretical and bibliographic survey.
Keywords: legislation, internship agrément, law firms, precariousness, pandemic, flexible
accumulation.

1. INTRODUÇÃO

O estágio oferta ao estudante a possibilidade de colocar em prática seus


mais diversos conhecimentos obtidos nas aulas teóricas, sob a inspeção de um
profissional qualificado na área, de modo que este profissional, juntamente ao
ambiente de aprendizado que deve ser proporcionado pela parte concedente,
possuem o dever de orientar o educando nas mais diversas atividades desenvol-
vidas a fim de prepará-lo para uma futura vida profissional.
Ocorre que, na maioria das vezes o objetivo principal do estágio é des-
virtuado, de maneira que o trabalho exercido pelo jovem se confunde com uma
ampliação da mão de obra barata. Partindo desse preceito, a precarização do
contrato de estágio ocasiona resultados que fazem jus a uma intervenção do
Estado para a obtenção de uma possível solução dessa problemática.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

No que tange aos estagiários(as) da área do Direito, vale ressaltar que o


acúmulo de tarefas que deveriam ser exercidas por profissionais mais capacitados,
isto é, já devidamente formados, aumentou. Com a mercantilização da advocacia,
atrelada ao advento dos escritórios contenciosos de massa, a busca por uma pro-
dução que trouxesse mais rentabilidade a parte concedente passou a ser maior, de
forma que a força de trabalho ofertada por essa juventude trabalhadora passou a
ser usada de maneira precarizada, descaracterizando a relação de estágio.
Faz-se necessário ressaltar que o direito em análise neste trabalho é
obra de todo um esforço significativo daqueles(as) que, em defesa da educação,
procuraram propor aos estudantes uma possibilidade de favorecer a evolução e
o acréscimo da formação acadêmico-profissional por meio desse vínculo sócio
jurídico que é a relação de estágio. Portanto, abordá-lo é imprescindível para o
entendimento do descaso das grandes empresas e dos grandes escritórios para
com a figura do(a) futuro(a) profissional do direito, principalmente no momento
crítico enfrentado por todos em virtude da pandemia covid-19 nos anos de 2020.
O tema a ser estudado é juridicamente relevante, uma vez que parte da
justificativa do recorrente tangenciamento do emprego caracterizado pela Con-
solidação das Leis Trabalhistas, de forma sorrateira, por parte daqueles que con-
tratam futuros(as) operadores(as) do Direito sob a égide de um aperfeiçoamento
do aprendizado por meio de experiências concretas no mercado de trabalho.
Portanto, tal conduta enseja questionamentos acerca da violação do direito
assegurado na Lei nº 11.788/2008, mais precisamente em seu no artigo 1º, § 2º.
Compreende-se que por ser uma ramificação do direito à educação, o estágio
precisa focar no quesito pedagógico que irá agregar não somente o componente
curricular do estudante, mas também no seu aprendizado pessoal. Assim, nesse
contexto de precarização do trabalho juvenil, o debate quanto ao descaso aos
estudantes do Direito é relevante, principalmente com a baixa perspectiva de
melhora em virtude da conjuntura pandêmica atual.
Para tanto, analisa-se a evolução histórico-jurídica das relações de estágio
no Brasil, conferindo-lhe suas vantagens e suas falhas, bem como o impacto das
práticas neoliberais nessa relação e a consequente execução da Lei 11.788/2008
no cenário da pandemia COVID-19, no que diz respeito ao trabalho executado
pelos estagiários de escritórios e empresas na área do Direito.

2. A EVOLUÇÃO JURÍDICA DA RELAÇÃO DE ESTÁGIO


NO ESTADO BRASILEIRO

De acordo com o artigo 205 da Constituição Federal de 1988, o incentivo


à educação é um dever do Estado e da família que, juntamente à colaboração da

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A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

sociedade, irá promover o desenvolvimento do cidadão, bem como o seu preparo


para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. E foi justamente
sob esse prisma que o incentivo ao estágio foi criado, tendo em vista que essa
relação sócio jurídica está intrinsecamente ligada ao avanço profissional e ao
aprendizado do estudante.
O texto da Lei nº 11.788/2008 apresenta dois tipos de estágio, sendo eles
o obrigatório e o não obrigatório. O obrigatório possui respaldo no art. 2º, § 1º
da lei mencionada e é aquele que faz parte da carga horária do curso, de modo
que para o estudante adquirir o seu diploma é necessário que ele cumpra as horas
estabelecidas. Por outro lado, o § 2º traz a ideia do estágio não obrigatório que
pode acontecer de acordo com a vontade do estudante e que servirá como um
complemento à formação do mesmo.
A segunda metade do século XX e o início da década de 80 foram mar-
cos históricos para a economia brasileira. Isto pois, conforme explica Borges e
Silva (2009, p. 1), a dinâmica do capital propiciou um exponencial processo de
organização do mercado de trabalho, em virtude do pleno emprego reservado
à parcela escolarizada da sociedade. Portanto, o investimento na regulamen-
tação de inúmeras profissões do ensino superior abriu portas para novos tipos
de mecanismos para o ingresso à vida profissional, de forma que o estágio em
setores públicos e privados se tornou a principal forma para o início de uma
carreira laboral.
Vale ressaltar que o estágio é algo comum no Brasil desde a década de
40, uma vez que antes mesmo da criação da atual Lei dos Estagiários, diversas
normas legais eram responsáveis por reger a prática do estágio no país. Todavia,
foi somente no final dos anos 70 que fora promulgada a primeira lei responsável,
única e exclusivamente, para instituir diretrizes acerca dos direitos e deveres dos
estudantes que estavam dando início a suas carreiras profissionais.
Antecessora da atual Lei nº 11.788/2008, na Lei nº 6.494 de 7 de dezem-
bro de 1977 era responsabilidade do Ministério da Educação e de entidades
secundárias como as Instituições de Ensino e Conselhos Profissionais fiscalizar
as relações de estágio. Borges e Silva (2009, p. 2) elucida que os encargos dessa
legislação somente eram incumbidos a esfera trabalhista quando eram expostos
os casos de desvirtuamento dos contratos de estágio, de modo que ficava a cargo
da Justiça do Trabalho reconhecer o vínculo empregatício entre a empresa e a
parte lesada por essa conduta.
Assim, apesar de estarem diretamente ligados aos processos produtivos,
a quantidade de jovens nessas atividades era relativamente pequena, de maneira
que só foi aumentando após a reorganização do mercado de trabalho, nos anos
90, após a crise econômica que assolou o mundo na década de 80.

<< Retorne ao sumário 95


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

O crescimento considerável de instituições de ensino superior e, conse-


quentemente, de mais jovens ingressando à faculdade, acarretou uma mudança na
figura do estágio tanto para os estudantes, quanto para as empresas que estavam
à procura de mão de obra para suprir suas cadeias de produção. Partindo desse
preceito, a regulação do contrato de estágio passou a ser supervisionado por
instituições trabalhistas, pois a situação em discussão não era mais reconhecida
como um caso isolado.
Depois de mais uma década, mais precisamente no ano de 1994, foi que a
Lei nº 6.494/77 sofreu alteração pela Lei nº 8.859, lei esta que incluiu os estu-
dantes com deficiência nos estágios. Vale ressaltar também que nos anos 2000, por
meio da Medida Provisória nº 1.952-24, os estudantes matriculados no Ensino
Médio não profissionalizantes passaram a fazer parte do quadro de jovens que
poderiam desfrutar da experiência de aprendizado além do ambiente escolar.
Ocorre que, as normas antecedentes sobre os estágios, a Lei nº 6.494/1977,
a Lei nº 8.859/1994 e a MP nº 1.952-24/2000 infelizmente não abarcavam o
conceito real da referida relação, isto é, as regulamentações presentes nos textos
legais mencionados possibilitavam que empresas fossem de encontro com as
leis trabalhistas e, sob o pretexto de estar propiciando um acréscimo positivo
na vida profissional do estudante, se desvinculassem dos interesses educacionais
dos mesmos.
Sob a perspectiva de Ballão e Colombo (2014, p. 176-178), algumas lacunas
presentes no repertório legal supracitado não contemplavam o real objetivo do
estágio, uma vez que o alargamento da abrangência laboral, a não supervisão
escolar e a empresa como parte mais importante desse vínculo, alimentavam a
ideia dessa relação trabalhista como uma mão de obra precarizada e sem nenhum
assunto efetivamente educacional.
Partindo dessas falhas, foi sancionada em 25 de setembro de 2008 a atual
Lei nº 11.788. O arcabouço legal da referida lei que será posteriormente ana-
lisado conferiu significativas mudanças à caracterização do estágio e, em tese,
mais proteção ao estudante. Importante ressaltar que logo no seu primeiro artigo
a lei delimita a real função do estágio, ou seja, ato educativo supervisionado,
desenvolvido no ambiente de trabalho, que possui como principal finalidade a
preparação para o trabalho produtivo de educandos.

2.1. Aspectos gerais da lei nº 11.788/2008

Uma vez compreendida a evolução histórica do estágio no Estado Bra-


sileiro, faz-se necessário entender os aspectos gerais dessa relação de trabalho.
As consideráveis alterações presentes na Lei nº 11.788/2008 são significativas

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A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

conquistas para a classe estudantil, de forma que quando aplicadas de maneira


correta trazem expressivas vantagens para o aprendizado do estudante.
A referida lei trouxe consigo, por exemplo, a definição do estágio obri-
gatório e do não obrigatório, a inclusão da escola como figura indispensável
na assinatura do Termo de Compromisso, o direito a férias remuneradas de
30 (trinta) dias após 12 (doze) meses na mesma empresa, os limites-padrão
da jornada para 20 (vinte) horas semanais, no caso de estudantes de educação
especial e dos anos finais do ensino fundamental, ou 30 (trinta) horas semanais
para estudantes do ensino superior, da educação profissional de nível médio e
do ensino médio regular, bem como outras diversas conquistas para o jovem
trabalhador.
Dessa forma, a atual legislação do estágio apresenta o conceito da eman-
cipação intelectual do estudante, pois por meio da valorização do aprendizado
teórico interligado com a formação prática o jovem adquire autonomia profis-
sional, além do desenvolvimento pessoal e cognitivo.
Portanto, compreende-se que o estágio tem como principal objetivo
preparar o estudante para a realidade do mercado de trabalho, além de garantir
que o mesmo desfrute dos seus direitos políticos e civis. Neste sentido, Nasci-
mento afirma que:
É fundamental o estágio para o desenvolvimento econômi-
co-cultural de um país, principalmente um país emergente
como o Brasil, que envida todos os esforços possíveis para
dar um salto de qualidade que tem como ponto de partida
a sua preocupação com a educação, voltada esta para a
efetiva utilidade profissional, que pressupõe não apenas o
conhecimento teórico, mas o domínio das exigências que
resultam da realidade do exercício das profissões (NAS-
CIMENTO, 2008, p. 487).
Assim, desde que a parte concedente dê condições justas e condizentes
com a Lei nº 11.788/2008 para que o estudante obtenha conhecimento e
experiência prática na sua área de atuação profissional, o estágio atenderá sua
principal finalidade, isto é, o preparo profissional do estudante para o mercado
de trabalho.

2.2. Requisitos formais da relação de estágio

Assim como as demais relações de trabalho, a relação de estágio também


exige que alguns requisitos formais e materiais sejam devidamente respeitados,
nos termos da Lei nº 11.788/2008.

<< Retorne ao sumário 97


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

De acordo com a Lei de Estágio, são considerados requisitos formais a


qualificação das partes; formação de termo de compromisso entre o estagiário e
o tomador de serviços; acompanhamento do estagiário por professor orientador
ou supervisor da parte concedente do estágio; bem como algumas observância
das regras impostas pela Lei nº 11.788/2008.
No tocante o primeiro requisito formal para concretização da relação
de estágio, isto é, a qualificação das partes celebrantes do contrato de estágio,
compreende-se que faz-se necessária a presença de três figuras importantes,
sendo estas: o estudante, a empresa concedente do estágio e a instituição de
ensino. Portanto, nas palavras de Maurício Godinho:
No império da Lei n. 6.494/77, tratava-se de simples inter-
veniente. Com a Lei n. 11.788/08, assume papel muito
mais pronunciado na formulação e concretização do está-
gio, compondo verdadeira relação jurídica tripartite na
estruturação e prática da figura jurídica. Na verdade, no
regime da nova lei, a instituição de ensino desponta em
primeiro plano, por ser o estágio, antes de tudo, um ato
educativo escolar supervisionado (caput, ab initio, do art. 1º)
(DELGADO, 2019, p. 381).
No que se refere à parte concedente, a lei supracitada em seu art. 9º
apresentou um rol taxativo de entes que podem conceder estágio à figura do
estudante:
Art. 9o As pessoas jurídicas de direito privado e os órgãos
da administração pública direta, autárquica e fundacional
de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Dis-
trito Federal e dos Municípios, bem como profissionais
liberais de nível superior devidamente registrados em seus
respectivos conselhos de fiscalização profissional, podem
oferecer estágio [...] (BRASIL, 2008).
Vale ressaltar que, no que diz respeito à inclusão dos profissionais liberais
como pessoas que podem conceder estágio aos estudantes, tal conduta foi um
avanço de extrema importância trazida pela Lei nº 11.788/2008. Isto pois, nas
palavras de Vasconcellos, em estudo intitulado “A nova lei do estágio estudantil.
Breve análise”, publicado em 2009, a referida inclusão é de extrema importância
para formação acadêmico-profissional do estudante:
“[...] o estágio com profissionais renomados em suas áreas de
atuação sempre foi bastante cobiçado, por sua importância
para a formação do estudante. [...]” (VASCONCELLOS.
A nova lei do estágio estudantil. Breve análise. 2009.)

<< Retorne ao sumário 98


A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

Já no tocante à figura do estudante, compreende-se que é aquele que


frequenta instituições de ensino superior, de educação profissional, de ensino
médio, da educação especial, bem como os anos final do ensino fundamental,
isto é, na categoria de educação de jovens e adultos. Conforme dito alhures, essas
figuras encontram-se elencadas no art. 1º, caput, da lei em comento.
A terceira parte presente nesta relação trilateral é instituição de ensino
em que o estagiário/estudante se vincula. Insta salientar que, diferentemente
da lei atual, na antiga Lei nº 6.494 de 7 de dezembro de 1977 a instituição era
uma figura pouco importante na relação de estágio; todavia, tal ideia tornou-se
ultrapassada, visto que, conforme traz o texto presente no art. 1º, § 1º, da nova
Lei do Estagiário, o estágio deve ser interpretado como um projeto pedagógico
do curso, bem como uma integração do itinerário formativo do educando.
Considera-se também requisito formal da relação de estágio a celebração
do termo de compromisso entre o estudante a parte concedente do estágio, nos
termos estabelecidos no art. 3º, II da Lei do Estagiário. Sobre esse importante
documento, Delgado informa que:
Neste importante documento serão fixadas as condições
de adequação do estágio à proposta pedagógica do curso, à
etapa e modalidade da formação escolar do estudante e ao
horário e calendário escolar (art. 7º, I). Será incorporado ao
termo de compromisso o plano de atividades do estagiário,
por meio de aditivos à medida que for avaliado, progressiva-
mente, o desempenho do estudante (parágrafo único do art. 7º)
(DELGADO, 2019, p. 382).
Importante ressaltar que, independentemente da entidade em que o
estudante preste seus serviços laborais, de acordo com o art. 8º parágrafo único3,
da Lei nº 11.788/2008, todas elas deverão elaborar termo de compromisso para
que o estudante apresente em sua instituição de ensino.
Ainda neste diapasão, outro requisito formal que deve estar presente
na relação de estágio é o acompanhamento do estagiário por professor ou por
supervisor da parte concedente do estágio.
Tal requisito é também imprescindível na relação em comento, de forma
que ele será comprovado mediante entrega de relatório constando as atividades
realizadas pelo estudante/estagiário, relatório este que deverá ser entregue em um

3 
Art. 8o É facultado às instituições de ensino celebrar com entes públicos e privados convênio de concessão
de estágio, nos quais se explicitem o processo educativo compreendido nas atividades programadas para seus
educandos e as condições de que tratam os arts. 6o a 14 desta Lei.
Parágrafo único. A celebração de convênio de concessão de estágio entre a instituição de ensino e a parte
concedente não dispensa a celebração do termo de compromisso de que trata o inciso II do caput do art.
3o desta Lei.

<< Retorne ao sumário 99


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

prazo não superior a 6 (seis) meses e por menção de aprovação final, conforme
apresenta os arts. 3ª, § 1º4, e art. 7º, IV5 da lei de estágio.
Por fim, o último requisito formal a ser analisado diz respeito à obser-
vância de regras contratuais e direitos do estagiário, regras estas que devem
estar contidas no termo de compromisso elaborado entre a parte concedente e
o estudante. Este rol de regras pode ser divido em duas categorias, isto é, regras
e vantagens imperativas e regras e vantagens meramente facultativas.
De acordo com a Lei de Estágio, tratam-se de regras e vantagens impe-
rativas do novo contrato de estágio aquelas que são imprescindíveis, ou seja,
elas precisam estar presentes no termo de compromisso para que a relação seja
válida. São estas, de acordo com artigo 10º, incisos I e II, § 1º e 2º da Lei nº
11.788/2008:
Art. 10. A jornada de atividade em estágio será definida
de comum acordo entre a instituição de ensino, a parte
concedente e o aluno estagiário ou seu representante legal,
devendo constar do termo de compromisso ser compatível
com as atividades escolares e não ultrapassar:
I – 4 (quatro) horas diárias e 20 (vinte) horas semanais, no
caso de estudantes de educação especial e dos anos finais
do ensino fundamental, na modalidade profissional de
educação de jovens e adultos;
II – 6 (seis) horas diárias e 30 (trinta) horas semanais, no
caso de estudantes do ensino superior, da educação profis-
sional de nível médio e do ensino médio regular.
§ 1o O estágio relativo a cursos que alternam teoria e prá-
tica, nos períodos em que não estão programadas aulas
presenciais, poderá ter jornada de até 40 (quarenta) horas
semanais, desde que isso esteja previsto no projeto peda-
gógico do curso e da instituição de ensino.
§ 2o Se a instituição de ensino adotar verificações de apren-
dizagem periódicas ou finais, nos períodos de avaliação, a
carga horária do estágio será reduzida pelo menos à metade,
segundo estipulado no termo de compromisso, para garantir
o bom desempenho do estudante.

4 
Art. 3o O estágio, tanto na hipótese do § 1o do art. 2o desta Lei quanto na prevista no § 2o do mesmo
dispositivo, não cria vínculo empregatício de qualquer natureza, observados os seguintes requisitos:
1 O estágio, como ato educativo escolar supervisionado, deverá ter acompanhamento efetivo pelo professor
§ o

orientador da instituição de ensino e por supervisor da parte concedente, comprovado por vistos nos relatórios
referidos no inciso IV do caput do art. 7o desta Lei e por menção de aprovação final.
5 
Art. 7o São obrigações das instituições de ensino, em relação aos estágios de seus educandos:
IV
– exigir do educando a apresentação periódica, em prazo não superior a 6 (seis) meses, de relatório das
atividades;

<< Retorne ao sumário 100


A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

Ainda nesta oportunidade, insta salientar que figuram também o rol de


regras e vantagens imperativas de acordo com o art. 9º, IV:
Art. 9o As pessoas jurídicas de direito privado e os órgãos
da administração pública direta, autárquica e fundacional
de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, bem como profissionais liberais
de nível superior devidamente registrados em seus respec-
tivos conselhos de fiscalização profissional, podem oferecer
estágio, observadas as seguintes obrigações:
IV – contratar em favor do estagiário seguro contra aci-
dentes pessoais, cuja apólice seja compatível com valores
de mercado, conforme fique estabelecido no termo de
compromisso [...] (BRASIL, 2008).
Nos termos do parágrafo único do artigo supramencionado, é obrigação
da parte concedente ceder ao estagiário tal vantagem, de forma que em caso
de estágio obrigatório ela poderá ser assumida pela instituição de ensino.
Ademais, no caso do estágio não obrigatório, a concessão de bolsa ou outra
forma de contraprestação e auxílio-transporte será de responsabilidade da
parte concedente.
Por outro lado, consideram-se regras e vantagens meramente facultativas
no novo contrato de estágio a bolsa auxílio ou outra forma de contraprestação,
bem como auxílio transporte, tratando-se de estágio obrigatório. Insta salientar
que, conforme dito alhures, estas duas vantagens são imperativas no caso de
estágio não obrigatório. Ademais, em que pese a relação de estágio não configure
vínculo empregatício, a parte concedente pode fornecer ao estagiário auxílio
alimentação e saúde, nos termos do art. 12, § 1º da lei em comento.

2.3. Requisitos materiais da relação de estágio

Passados os requisitos formais, faz-se necessário compreender os requisitos


materiais da relação de estágio, requisitos estes que estão contidos no art. 1º e
parágrafos da Lei nº 11.788/20086.
De acordo com Maurício Godinho (2019, p. 384), a função dos requisitos
materiais são:

6 
Art. 1o Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à
preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições
de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do
ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos.
§ 1o O estágio faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando.
§ 2o O estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização
curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho.

<< Retorne ao sumário 101


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Estes requisitos visam a assegurar, como visto, o efetivo


cumprimento dos fins sociais (de natureza educacional,
enfatize-se do contrato de estágio, ou seja, a realização
pelo estudante de atividades de verdadeira aprendizagem
social, profissional e cultural, proporcionadas pela sua
participação em situações concretas de vida e trabalho
de seu meio.
Dessa forma, compreende-se que a Lei de Estágio traz em seu arcabouço
legal estratégias para acentuar o caráter didático-pedagógico dessa relação jurídica,
de forma que este novo texto jurídico manteve os mesmos requisitos materiais
presentes na legislação anteriormente revogada, isto é, a Lei nº 6.494/77.
O primeiro requisito material que deve ser observado na relação de estágio,
é a existência de unidades que possuam aptidão para disponibilizar experiência
prática de formação profissional ao estudante (DELGADO, p. 385, 2019).
Portanto, a redação do art. 9º, II da Lei nº 11.788/2008 é claro quando diz:
Art. 9o As pessoas jurídicas de direito privado e os órgãos
da administração pública direta, autárquica e fundacional
de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, bem como profissionais liberais
de nível superior devidamente registrados em seus respec-
tivos conselhos de fiscalização profissional, podem oferecer
estágio, observadas as seguintes obrigações:
II – ofertar instalações que tenham condições de propor-
cionar ao educando atividades de aprendizagem social,
profissional e cultural. (BRASIL, 2008)
Reconhecido esse primeiro requisito, é imprescindível
também que as atividades exercidas pelo estagiário sejam
compatíveis com a formação educativa e profissional pres-
tada pela instituição de ensino observando, portanto, o
respectivo currículo escolar.
Ainda neste diapasão, outro requisito material que tam-
bém deve ser observado na relação jurídica em comento
é o acompanhamento e supervisão pela parte concedente
que, nas palavras de Maurício Godinho (p.385, 2019) “[...]
viabilizam a real transferência de conhecimentos técnicos-
-profissionais que justifica a figura jurídica.”.
Partido desse pressuposto, a nova Lei de Estágio deter-
minou alguns procedimentos à parte concedente a fim de
supervisionar melhor essa relação. São estes: a indicação
de funcionário de seu quadro de pessoal, com formação ou
experiência profissional na área de conhecimento desenvol-
vida no curso do estagiário, para orientar e supervisionar

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A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

até dez estagiários simultaneamente7. Ademais, em caso


de desligamento do estagiário, faz-se necessário o envio
ao mesmo de termo de realização de estágio contendo, de
forma resumida, as atividades realizadas no período da
prestação de serviço, bem como avaliação de desempenho.8
Por fim, o quarto requisito material a ser observado diz respeito a oferta
do estágio ao estudante de complementação de ensino e aprendizagem, de
forma que as atividades exercidas estejam em concordância com os currículos,
programas e calendários escolares.

3. O ACÚMULO FLEXÍVEL DE CAPITAL E SEU


IMPACTO NAS RELAÇÕES DE ESTÁGIO

Partindo desses pressupostos, faz-se mister salientar que apesar da tutela


jurídica ofertada pela legislação nº 11.788, a precarização do contrato de estágio
nas mais diversas áreas é algo que ainda requer observação. Segundo Borges
e Silva (2010, p. 6), as transformações econômicas enfrentadas pelo Brasil
impulsionaram significativas mudanças no mercado de trabalho, de maneira
que os grandes acumuladores de capital, movidos por interesses econômicos,
continuam aderindo ao desvirtuamento do contrato de estágio.
Embora a nova Lei do Estagiário possua ideais que favoreçam a figura do
estudante, os pensamentos fundados no neoliberalismo ainda são recorrentes,
de maneira que a precarização do trabalho ainda é uma realidade presente entre
a população brasileira.
Conforme versa Damiani (2009, p. 16), o final da década de 60 e o começo
da década de 70 são períodos marcados pela crise estrutural do capital. Em virtude
do acúmulo de bens advindo de práticas fordistas e keynesianistas, o sistema
capitalista entrou em colapso de modo que gerou uma grave crise financeira.
Dessa forma, a fim de reorganizar a economia, surge o então conhecido neoli-
beralismo que, de acordo com a tese apresentada por Damiani (2009, p. 16-17),
tomou para si cadeias importantes do setor produtivo estatal, além das técnicas
de privatizações desenfreadas e da significativa desregulamentação do trabalho.
As metodologias de controle de trabalho que serão posteriormente elen-
cadas acabaram por desencadear um desenfreado processo de acúmulo flexível
de capital, de forma que tal conduta prejudicou e continua prejudicando toda
uma cadeia de produção. De plano, é imprescindível reconhecer como surgiram
tais metodologias, quais suas reais intenções para, então, alçar as razões que

7 
Art. 9º, III; Art. 3º, § 1º da Lei n. 11.788/2008
8 
Art. 9º, VII da Lei n. 11.788/2008

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

levaram a uma precarização das relações de trabalho e, consequentemente, às


relações de estágio.
A crise econômica do pós-guerra trouxe consigo, além dos conceitos supra-
mencionados, um acúmulo flexível em escala mundial decorrente da necessidade
de refazer sua base de produção, bem como de explorar a classe trabalhadora e
consequentemente acumular o valor nas condições de uma crise econômica de
sobreacumulação. Assim, os resquícios da instabilidade no sistema capitalista
na década de 70, foi um dos precursores essenciais para a exploração em larga
escala dos trabalhadores e, posteriormente, esses ideais viriam a interferir dire-
tamente nas relações de estágio.
Sob a perspectiva de Damiani (2009, p. 17-18), a referida desregulamen-
tação do trabalho está relacionada também ao modelo de produção toyotista,
sistema industrial japonês que possui como objetivo a diminuição de traba-
lhadores e a produção em larga escala. Além disso, a técnica ora mencionada é
caracterizada também pela precarização do trabalho, de maneira que o conceito
da classe trabalhadora que precisa vender sua força de trabalho em troca de
salário e que na maioria das vezes se submete a condições laborais precárias
torna-se mais recorrente.
Sob a visão de Antunes (2006, p. 61), a força de trabalho pode ser subdivida
em dois grupos, sendo eles os empregados de tempo integral e com habilidades
que facilmente podem ser encontradas no mercado; e o segundo grupo seria,
na verdade, aqueles trabalhadores que oferecem uma flexibilidade maior, sendo
estes os subcontratados que possuem uma segurança ainda menor que o grupo
supracitado, mas que tem crescido em larga escala nos últimos anos. Assim, os
estagiários estariam encaixados nesse segundo grupo.

4. O ESTÁGIO DE DIREITO SOB UMA PERSPECTIVA


NEOLIBERAL

As relações de estágio, por sua vez, encontram-se inseridas nesse contexto


neoliberal supracitado caracterizado por um forte acúmulo flexível. No que diz
respeito aos estudantes da esfera jurídica, em consonância com os apontamentos
de Junior (2016, p. 49-50), a transformação da educação em mercadoria por
meio de setores privados, vinculada ao financiamento indireto do Estado a tal
atividade, como é o caso do Financiamento Estudantil (FIES), ocasionou a
criação desenfreada de faculdades de direito.
Partindo desse pressuposto, foram criadas oportunidades que até certo
tempo atrás eram inalcançáveis para grande parte da sociedade brasileira.
Essa conduta não só provocou o acúmulo de profissionais na advocacia, como

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ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

também o aumento de escritórios que trouxessem maior rentabilidade em um


curto espaço de tempo; posto isso, o crescimento do número de estagiários no
âmbito jurídico também tornou-se uma realidade comum.
Segundo um levantamento feito pela Associação Brasileira de Estágios
(ABRES, 2018), de 2002 a 2018 o número de alunos na educação superior passou
de 3,5 para 8,4 milhões, de sorte que, ainda em 2018, o número de estudantes
matriculados no curso de Direito eram de 863.101, ficando atrás somente de
cursos como Administração e Engenharia. Portanto, para compreender melhor a
habitual precarização dos contratos de estágios na esfera jurídica, faz-se necessário
estabelecer esta relação entre o aumento dos profissionais jurídicos, às criações
dos escritórios contenciosos de massa e a multiplicação dos estagiários do Direito.
Na atualidade, a mercantilização dos serviços jurídicos é algo recorrente no
Estado Brasileiro. Baseados em um modelo de advocacia empresarial, visando o
lucro como forma de sobrevivência num mercado financeiro amplamente com-
petitivo, os atuais escritórios de Direito visam, prioritariamente, a rentabilidade.
Se antes a advocacia era exercida de uma maneira tradicional, conservadora, nos
dias atuais ela encontra-se inserida no lucrativo modelo corporativo (COSTA
JUNIOR, 2016, p. 60).
Em janeiro de 2020, a FENELAW, maior evento jurídico digital da
América Latina, expôs o crescimento exponencial de escritórios de advocacia
de médio porte e vinculou esse boom a um fator importante: em razão da eco-
nomia, grandes clientes tendem a procurar bancas que não possuam um preço
muito alto. Dessa forma, o aumento de demandas nesses escritórios requer mais
mão de obra, de modo que uma saída barata e para preencher estas lacunas é a
contratação de mais estagiários.
Vale destacar também que o avanço tecnológico proporcionado pela
globalização tem atingido o âmbito jurídico. A aplicação de teses e argumentos
na atuação jurídica da advocacia privada, que antes se apegava a um modelo
de pesquisa manual efetuada pelos operadores do direito, atualmente perdeu
espaço para inteligências artificiais que automatizam o labor dos advogados e
estagiários, de modo que essa automatização, apesar de auxiliar na redução do
tempo de trabalho, também gera uma defasagem criativa no que diz respeito a
figura do futuro profissional do direito que, nesse caso, seria o estagiário.
Essa relação entre operário e máquina é um resquício das produções
toyotistas, já mencionadas anteriormente, que de acordo com Antunes (2006),
além de flexibilizar o aparato produtivo, motiva a flexibilização dos direitos
dos trabalhadores, uma vez que o toyotismo é pautado em um baixo número
de trabalhadores estendendo-os através de horas extras e subcontratações, tudo
em prol de se adequar às condições do mercado.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Desse modo, não há investimento dos atuais escritórios de advocacia


no processo criativo do advogado, de maneira que as substituições dessa classe
trabalhadora por subcontratações — estagiários, principalmente -, resulta numa
deturpação da advocacia e numa precarização dos contratos de estágio em larga
escala, pois uma vez que as atividades que antes eram exercidas por profissionais
devidamente capacitados passam a ser responsabilidade de jovens que além de
não possuírem experiência o suficiente para exercerem tais tarefas, a lesão do
processo de aprendizado dessas figuras torna-se algo costumeiro.
Portanto, seguindo a lógica de um modelo de produção toyotista e taylo-
rista, os escritórios contenciosos de massa prezam pela produção em larga escala
em um curto espaço de tempo. Os estagiários que ingressam nesses espaços são
previamente treinados a se tornarem futuros profissionais engessados e com
baixa capacidade intelectual para solucionar problemas, tendo em vista que são
diariamente obrigados a produzirem peças jurídicas repetitivas, visando pura e
simplesmente a lucratividade.
No tocante aos estágios de direito nos Tribunais, por exemplo, dados
comprovam que entre 2009 e 2017 o número de estagiários cresceu cerca de
90%, enquanto o número de servidos cresceu menos de 8% na justiça estadual.
Esse crescimento no número de estagiários, portanto, indica um claro descum-
primento da Lei nº 11.788/2008.
Nesta situação em específico a Federação Nacional dos Trabalhadores
do Judiciário nos Estados protocolou, em 27/06/2018, Pedido de Providência
N.º 4696-79.2018.2.00.0000, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para
solicitar que a prática seja revista pelas autoridades competentes. A Federação
ainda reiterou que, em virtude desse desvirtuamento do contrato de estágio, os
estudantes ainda têm sua jornada diária aumentada, pois os órgãos públicos
depositam toda força de trabalho nos estagiários, de forma que compromete a
qualidade na prestação jurisdicional.
Por ser uma relação de trabalho lato sensu, isto é, apesar de possuir uma
dinâmica social, no que diz respeito aos entendimentos jurídicos e sociais, seme-
lhante às relações de emprego, o estágio não pode ser caracterizado como tal.
Isto pois, conforme o pensamento de Delgado (2019), apesar de trazer consigo
os elementos da relação empregatícia, o estágio não possui respaldo na CLT,
desde que seus requisitos formais e materiais presentes na Lei nº 11.788/2008
sejam cumpridos de maneira correta.
E é justamente sob essa flexibilização do trabalho lato sensu trazida pela
norma supramencionada que Hillisheim (2018, p. 13) expõe a problemática da
semelhança entre a relação de emprego e a relação de estágio, pois esta estratégia
utilizada pelo legislador contribui indiretamente para a precarização contrato

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A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

de estágio. Portanto, o mercado de trabalho influenciado pelo desempenho do


capitalismo sucateia o objetivo pedagógico e esgota mentalmente e fisicamente
o estudante. Ainda neste sentido, Maurício Godinho afirma que:
Note-se que, aqui, o mais importante não é se saber se
o tomador de serviços está auferindo (ou não) ganhos
econômicos com o estágio — já que tais ganhos sempre
existirão em qualquer situação de prestação laborativa de
alguém a outrem (mesmo prestação laborativa não onerosa,
insista-se). Tais ganhos são inevitáveis a qualquer prestação
de trabalho, sendo que esse fato não descaracteriza a regu-
laridade do estágio. O fundamental, portanto, é aferir-se se
o estágio está, efetivamente, cumprindo seus objetivos legais
de permitir ganhos educacionais e profissionais para o
estudante-obreiro. Ou seja, aferir-se o papel agregador real
do estágio para a escolaridade e a formação educacional
e profissional do estagiário (DELGADO, p. 386, 2019).
Conforme traz a tese de Marx (2004), o trabalho é algo inerente ao ser
humano, pois este inicia-se a partir do processo entre o homem e a natureza,
no qual a força natural humana é colocada em movimento para que a matéria
natural seja transformada em algo útil para a sua sobrevivência. Portanto, a priori,
o homem não apenas dispõe da sua força de trabalho; a ele pertence, também, a
matéria sobre a qual essa força vai ser utilizada e os meios de trabalho utilizados
para alcançar seus objetivos.
No entanto, a sociedade está subdivida em duas classes, sendo elas a dos
capitalistas e a do proletariado; esta, por sua vez, apenas dispõe da sua força de
trabalho, uma vez que a matéria e os meios de produção são artefatos pertencentes
à classe detentora do capital. Essas condutas são as que regem diretamente o setor
produtivo e também as relações e condições de trabalho. Portanto, o processo de
produção é iniciado a partir de dois fatores, isto é, os objetivos que são caracteriza-
dos pelos meios de produção, e o pessoal que se caracteriza pela força de trabalho.
O capitalista será aquele cujo vai dominá-los, de modo que a força de trabalho,
principalmente, torna-se uma mercadoria em suas mãos (MARX, 2004).
Em concordância com o que foi apresentado, o detentor do capital vai
controlar a classe trabalhadora em prol da produção em larga escala para atender
as necessidades da valorização do capital e, principalmente, do acúmulo flexível
do mesmo. Ademais, o produto que a princípio deveria pertencer ao trabalha-
dor, passa para o domínio do capitalista. Dessa forma, o ser humano não mais
produz para o seu bem estar individual, mas sim para preencher as lacunas de
um sistema que domina todo o processo de produção por meio da constituição
de um trabalho alienado.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

5. O IMPACTO DA PANDEMIA COVID-19 NAS


RELAÇÕES DE ESTÁGIO DE DIREITO

No tocante a figura do jovem, a inserção do mesmo no mercado de tra-


balho é um evento fundamental para a transição da vida adulta (COELHO;
AQUINO, 2009). Na atual conjuntura de precarização laboral, jovens com menor
escolaridade tendem a preencher vagas de trabalhos com baixa remuneração,
além de ocuparem cargos em posições subordinadas de organização.
Os jovens são alvos do acúmulo flexível e, automaticamente, sofrem as
consequências de um mercado laboral representado por condições de trabalho
precárias.
Atualmente, as propostas precárias de trabalho são ofertadas cada vez mais
aos jovens. Isto pois, apresentada como uma introdução à vida profissional, a
precarização do labor marcada por contratos de duração determinada e acúmulo
de funções, preparam jovens para o início de carreiras definidas pela alienação
do trabalho, já prevista por Karl Marx, conforme apresentado anteriormente.
Não obstante a isso, a precarização do contrato de estágio está diretamente
ligada à precarização do trabalho, visto que esta é uma resposta em face da
produção exacerbada presente no capitalismo. Sob a ótica marxista, o estagiário
dos escritórios contenciosos de massa e dos setores jurídicos das mais diversas
empresas, bem como de órgãos administrativos tem sua força de trabalho alie-
nada, de modo que não mais produz para seu benefício próprio que, nesse caso,
seria o aprendizado para a sua inserção na vida profissional, pois a prioridade
torna-se produzir mais-valia, ou seja, lucro.
No que diz respeito aos impactos da pandemia covid-19 na vida da sociedade
brasileira, em razão das mazelas provocadas não só pelo momento de calamidade
em si, mas pelo sistema capitalista globalizado e neoliberal, o desemprego foi uma
das maiores consequências enfrentadas pelos brasileiros no ano de 2020.
A informalização do trabalho já era uma realidade no país há um certo
tempo, tendo em vista que de acordo com um dado liberado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), no ano de 2017, 40,8% da
população já estava inserida no mercado de trabalho informal.
Além disso, segundo levantamento feito pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT, 2020), os setores que mais sofreram abalos devido ao coronavírus
foram aqueles relativos aos trabalhadores vulneráveis, pertencentes à economia
informal. Ou seja, o atual mercado de trabalho particularizado pela precarização
do trabalho decorrente da Reforma Trabalhista de 2017, no presente contexto
pandêmico, é caracterizado por falta de direitos para a classe trabalhadora.

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A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

Como forma de reverter a situação, a implementação do Programa


Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, instituído pela Medida
Provisória nº 936, de 2020, estabeleceu algumas mudanças nas relações de
trabalho, sendo estas “a redução da jornada de trabalho e, proporcionalmente,
do salário, mediante acordo individual escrito ou negociação coletiva e com
duração máxima de 90 dias”. Todavia, conforme expõe Junior (2020, p. 973),
o programa apresentado pelo Governo Federal apenas contribui para o cons-
tante declínio dos direitos trabalhistas e ascensão das práticas neoliberais de
precarização.
Em resposta a MP nº 936, o Partido Rede Sustentabilidade interpôs
a Ação de Inconstitucionalidade 6363 que requereu a inconstitucionalidade
de diversos artigos presentes na referida MP, principalmente no que tange a
redução de jornada de trabalho e salarial, mediante acordo individual, tendo em
vista que tais condutas só são autorizadas, conforme versa a CF/88, por meio de
convenção coletiva. Consequentemente, na ação em discussão, a Rede requereu
a concessão de medida cautelar, para suspender esses artigos.
Ocorre que, em 17/04/2020, o Plenário decidiu, por maioria, manter
a validade dos acordos individuais na atual conjuntura pandêmica quanto a
redução salarial, independente da anuência dos sindicatos.
Deste modo, o desemprego exacerbado por obra do coronavírus gerou
um desfalque nas grandes empresas, visto que os gastos advindos da crise
causaram fortes impactos econômicos no acúmulo flexível. Por consequência,
desvirtuar as funções cabíveis a figura do estagiário é um comportamento que
pode trazer rentabilidade aos detentores de capital, pois estes ficarão livres de
todos os encargos que estariam enfrentando caso optassem por manter mão
de obra devidamente qualificada para exercer as diversas funções presentes no
ambiente de trabalho.
Ainda neste diapasão, insta salientar que neste mesmo cenário de desi-
gualdade houve um crescimento exponencial da redução das bolsas de estágio,
de forma que estas, na maioria das vezes, representam parte importante da
renda dos estudantes. Assim, considerando que o jovem proletário encontra-se
inserido em um cenário de precarização, tal conduta incentiva a exploração por
parte dos cedentes.
No que se refere aos acadêmicos de direito, conforme já abordado no
tópico anterior, sabe-se que o número de estagiários nos Tribunais, em detrimento
dos números de servidores, cresceu nos últimos anos. Considerando que a mão
de obra fica concentrada na figura do estagiário, sua presença para garantia do
acesso efetivo à justiça e tempestividade da tutela torna-se algo imprescindível
para a sociedade.

<< Retorne ao sumário 109


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Ocorre que, no cenário pandêmico atual, a situação se agravou de uma


forma sem precedentes. Isto pois, diversos órgãos públicos e outras instituições –
lê-se escritórios advocacias, bem como outros entes empresariais – suspenderam
os contratos de estágio, ou não realizaram sua renovação, sem qualquer diálogo
ou aviso prévio com os estudantes.
Assim, como forma de reverter a situação foi proposto pelos senadores
Rodrigo Cunha (PSDB-AL) e Mara Gabrilli (PSDP-SP), juntamente com
o apoio da Federação Nacional dos Estudantes de Direito e diversos Centros
Acadêmicos de Direito do País projeto de lei que permitia a prorrogação de
contratos de estágios que tenham se iniciado, estivessem em andamento ou em
conclusão durante a pandemia.
O projeto em comento tinha como principal objetivo alterar o texto da
Lei nº 11.788/2008; isto é, sabe-se que atualmente a referida legislação não
permite que o estagiário permaneça em num mesmo local por mais de dois anos,
exceto nos casos de estagiários portadores de deficiência. Dessa forma, o projeto
acrescentou à lei que, tratando-se de estágio não obrigatório, os contratos de
estágio seriam prorrogados por até seis meses em caso de atrasos na conclusão
do curso em que o estagiário fosse matriculado.
Portanto, compreende-se que apesar do retrocesso trazido pelo neoli-
beralismo presente no Estado Brasileiro, juntamente ao contexto pandêmico,
parte dos direitos dos estagiários foram resguardados. Entretanto, em que pese
tenha ocorrido o referido avanço, faz-se necessário ressaltar que no tocante aos
estagiários de direito, em virtude do aumento da judicialização decorrente dos
prejuízos causados pela pandemia, houve uma elevação de demandas processuais
tanto no âmbito do setor privado — isto é, nos escritórios de advocacia —, bem
como nos tribunais dos estados brasileiros.
Assim, trata-se de um crescimento inversamente proporcional. Isto pois,
a pandemia covid-19 acarretou um crescimento de demandas do judiciário, de
forma que em razão da força da austeridade e do neoliberalismo presente no
Estado Brasileiro houve a dispensa, além da não contratação de profissionais
da área jurídica tanto no setor privado, quanto no setor público. Dessa forma,
a título de continuar uma produção visando a geração de lucro, esses entes
enxergam na deturpação do contrato de estágio uma forma de obter mão de
obra barata em tempos de crise.

6. CONCLUSÃO

Diante de toda a discussão cronológica a respeito da relação de estágio


nos dias atuais, é possível inferir que há pouca atuação do judiciário no tocante

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A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

às práticas de precarização dos contratos de estágio. Desde os primeiros proje-


tos de lei, até a atual Lei nº 11.788/2008, compreende-se que tal necessidade
encontra-se parcialmente atendida, de maneira que prejudica o desempenho
do estudante na sua formação acadêmico-profissional.
No tocante à figura do acadêmico em direito, em razão da transforma-
ção da educação em mercadoria, o crescimento de faculdades no setor privado
ocasionou a criação de diversos escritórios de advocacia e, consequentemente,
viabilizou um modelo de advocacia precarizada. Tal modelo impactou diretamente
na vida do futuro profissional do direito, uma vez que ao adentrar no mercado
de trabalho por intermédio do estágio não obrigatório ele tem sua mão de obra
utilizada de forma precária.
Em verdade, insta salientar que as práticas neoliberais e os seus impactos
diretos no modelo de advocacia atual fazem com que a capacidade intelectual
destes estagiários seja diminuída, pois quando eles não mais desfrutam do viés
pedagógico do estágio seu principal objetivo não é concretizado.
Ainda nesta oportunidade, o contexto pandêmico ocasionado pelo vírus
covid-19 acarretou um colapso no mercado de trabalho, visto que cada vez mais as
relações de trabalho tornaram-se informais e/ou precarizadas. Vale ressaltar que,
na esfera do direito, o aumento exponencial da procura do judiciário – principal-
mente na esfera consumerista – ocasionou uma grande procura por escritórios
de advocacia e órgãos administrativos para resolução de conflitos. Ocorre que,
em razão também da crise financeira que assolou o Brasil nos últimos dois anos,
a procura por uma mão de obra mais barata tornou-se uma realidade de forma
que isso gerou um impacto diretamente no trabalho realizado pelo estagiário.
Em que pese, tenha havido mudanças significativas durante este período
pandêmico, como a aprovação do Senado Federal para alteração da redação da
Lei nº 11.188/2008 para permitir a prorrogação dos prazos de estágio durante
a pandemia da COVID-19, sabe-se que ainda há precarização dessa relação,
bem como o desvirtuamento das atividades que competem ao estudante-obreiro.
Dessa forma, observa-se que a figura do estagiário enfrenta problemas
com o desvirtuamento contratual desde muito tempo, de modo que a inves-
tigação no que diz respeito a da continuação desse comportamento nos dias
atuais é indispensável, visto que as práticas de acúmulo flexível oferecidas pelo
sistema neoliberal, em conjunto com as problemáticas trazidas pelo atual cenário
pandêmico, modificaram a sistemática do mercado de trabalho, prejudicando
a figura do trabalhador.
Logo, urge a necessidade de fiscalização por meio dos entes públi-
cos, como a OAB, por exemplo, para verificar se está havendo a adequação

<< Retorne ao sumário 111


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

correta da Lei nº 11.788/2008 em escritórios de advocacia, bem como nos


ambientes empresariais e nos órgãos administrativos. Historicamente, a
relação de estágio trata-se de uma prática inerente ao estudante, de forma
que viabiliza seu crescimento profissional e, portanto, deve ter praticada de
forma justa e correta.

REFERÊNCIAS

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<< Retorne ao sumário 112


A PRECARIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE ESTÁGIO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS
ENFRENTADOS PELOS(AS) ESTAGIÁRIOS(AS) DE DIREITO NO CENÁRIO DA PANDEMIA COVID-19

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Autor. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---d-
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MARX, K. Processo de trabalho e processo de valorização. In: ANTUNES, R. (org.).
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RESENDE, R. Direito do Trabalho. 8. ed. São Paulo: Método, 2020.
VASCONCELLOS, A. C. A nova lei do estágio estudantil. Breve análise. Teresina:
Jus Navigandi, ano 13, n. 2044, 04 fev. 2009. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/
doutrina/texto.asp?id=12288. Acesso em: 17 mar. 2022.

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A LUTA DOS TRABALHADORES
DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO
DE DIREITOS

The struggle of digital platform workers in


search of rights recognition

Emerson Albuquerque Resende

Resumo: O mundo está passando por rápida transformação em decorrência da


Revolução Digital. O presente artigo analisa o impacto dessas transformações
nas relações de trabalho, mas especificamente com o labor humano através
de plataformas digitais de trabalho e a luta dos trabalhadores em busca de
reconhecimento de direitos trabalhistas. Analisa-se o debate no Brasil sobre
o reconhecimento do vínculo dos trabalhadores, com os caminhos que estão
tomando a jurisprudência, a estratégias das empresas com utilização de jurimetria
e realização de acordos para não reconhecimento do vínculo, a luta através dos
processos coletivos e o movimento sindical.

Palavras-chave: Subordinação algorítmica, plataforma digital, revolução digital,


jurimetria, jurisprudência artificial, uberização.

Keywords: algorithmic subordination, digital platform, digital revolution, juri-


metrics and artificial jurisprudence, uberization.

1. INTRODUÇÃO

No momento atual, estamos vivendo uma revolução tecnológica digital


sem precedentes, que está mudando a maneira como o ser humano vive. De
acordo com o filósofo e sociólogo francês Pierre Lévy, citado por Gonçalves
(2022), vivemos “um destes raros momentos em que, a partir de uma nova con-

<< Retorne ao sumário 114


A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

figuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo
de humanidade é inventado”. Trata-se da chamada Revolução Tecnológica 4.0.
No dizer de Barroso (2022), há uma revolução digital em curso com
muitas implicações importante para nossas vidas, como inteligência artificial,
engenharia genética, impressão em 3D, internet das coisas, algoritmos, com
diversas novas palavras como Google, Facebook, WhatsApp, Instagram, Waze,
Netflix, Apple, Tinder etc.
Essa mudança iniciou-se na segunda metade do Século XX. De fato, no
ano de 1969, surgiu a internet, inicialmente com o objetivo de interligar a rede de
pesquisa das universidades. Com o passar nos anos, sobretudo na última década do
Século XX, a internet começou a se popularizar e a ser utilizada para outras finali-
dades, inclusive comerciais, com impactos nas relações de trabalho. Desde, então,
a utilização tem sido crescente e hoje é utilizada para as mais diversas finalidades.
Santos (2020) lembra que houve dois períodos marcantes desde o surgi-
mento da internet: a internet antes do surgimento das redes sociais e a internet
após o surgimento das redes sociais. Acrescenta que as características de ambos
são bem diferentes. Antes do surgimento das redes sociais, a internet era como
um mar aberto, em que as pessoas escolhiam onde queria navegar. Nessa época,
diz que as pessoas eram consumidoras e as informações, produtos.
Com o surgimento das redes sociais como um subproduto da Revolução
Tecnológica 4.0, a navegação na internet mudou radicalmente: as pessoas, além
de consumidoras, passaram a produzir dados e informações a serem vendidas
para outras pessoas. Foi nesse contexto que surgiu a palavra prossumidor, em que
o usuário da internet se tornou, ao mesmo tempo um consumidor e produtor.
E continua Santos (2020), com as redes sociais, as pessoas passaram a
ser guiadas por algoritmos de navegação da internet, com base em informações
que as corporações já dispõem sobre ele, inclusive perfil psicológico, desejos,
fragilidades, ficando fácil dizer o querem ouvir e criar bolhas com criação de
filtros e direcionamento de notícias e informações, muitas fezes falsas.
Atualmente, a internet conta com cerca de bilhões de usuários1 e viver
fora dela está cada dia mais difícil. Disso tudo decorre um grande problema: o
armazenamento de dados e o controle do fluxo de informações por um número
pequeno de empresas, que ficam a cada dia mais poderosa.
Por trás desse processo se encontra a evolução computacional, com a
criação e tratamento de enormes bancos de dados, com informações sobre

1 
INSPER. Mundo se aproxima da marca de 5 bilhões de usuários de internet, 63% da população. Disponível
em: https://www.insper.edu.br/noticias/mundo-se-aproxima-da-marca-de-5-bilhoes-de-usuarios-de-inter-
net-63-da-populacao/. Acesso em: 27 jun. 2022.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

muitos detalhes da vida das pessoas, muitas vezes sem que se percebam que
repassaram tais informações.
A situação da coleta, processamento e utilização de dados é tão relevante
que Couldry e Mejias2 afirmam que, no capitalismo atual da Revolução Tecno-
lógica, há um novo tipo de colonialismo, o colonialismo de dados, referindo-se a
captura e controle da vida humana mediante a apropriação de dados de modo a
converter em vantagens financeiras. Tudo isso, segundo COUDRY e MEJIAS,
porque as pessoas estão passando para um pequeno número de empresas dados
de suas vidas sem que se deem contas disso.
Analisando as transformações que estão ocorrendo, a Organização das
Nações Unidas, através do Relatório da Economia Digital de 20193, concluiu
que os avanços digitais levaram à criação de uma enorme riqueza em curto
espaço de tempo, mas tal riqueza está concentrada um pequeno número de
países, empresas e indivíduos.
Tudo isso tem consequência nas relações de trabalho em todo o mundo
e o próprio Direito do Trabalho. Como ensinam Meireles e Rocha (2020), “a
4ª Revolução Industrial é um terremoto no direito do trabalho e até mesmo
no processo do trabalho, abalando as suas respectivas estruturas, obrigando os
intérpretes, operadores revisitarem toda a genealogia desse ramo especializado”.
Uma dessas consequências é o surgimento do trabalho on-demand (trabalho
sob demanda por aplicativos) e do crowdsourcing, palavra formada da combinação
das palavras crowd (multidão) e outsourcing (externalização), que, segundo o criador
Jeff Howe, refere-se ao “ato de externalizar um trabalho anteriormente realizado
por um determinado agente (um funcionário, um trabalhador independente ou
outra empresa) sob a forma de um convite aberto dirigido a um grupo geralmente
vasto e indefinido de pessoas, normalmente através da Internet”4.
De fato, está em curso um processo de uberização das relações de trabalho,
no qual, segundo Antunes (2020), “as relações de trabalho são crescentemente
individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência de ‘prestação de
serviços’ e obliterando as relações de assalariamento e de exploração do trabalho”.
E acrescenta o sociólogo, citando PRAUN, que “os intermitentes globais
tendem se expandir ainda mais, uma vez que o processo tecnológico-organiza-
cional-informacional eliminará de forma crescente uma quantidade incalculável

2 
Citado por Teixeira (2020).
3 
ONU. Relatório de Economia Digital de 2019. Disponível em: https://unctad.org/webflyer/digital-eco-
nomy-report-2019. Acesso em: 18 jun. 2022.
4 
OIT. Relatório As plataformas digitais e o futuro do trabalho Promover o trabalho digno no mundo
digital. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---europe/---ro-geneva/---ilo-lisbon/
documents/publication/wcms_752654.pdf. Acesso em: 18 jul. 2022.

<< Retorne ao sumário 116


A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

de força de trabalho que se tornará supérflua e sobrante, sem empregos, sem


seguridade social, sofrendo riscos crescentes de acidentes e mortes no trabalho
se sem nenhuma perspectiva de futuro”.
Nesse processo de uberização, encontram-se os trabalhadores das pla-
taformas digitais em sua luta em todo o mundo por direitos básicos, como
salário-mínimo, duração de trabalho definida e proteção providenciaria.
Em diversas países, tem obtido vitórias com decisões reconhecendo o
vínculo de emprego, e não trabalho autônimo, a exemplo da Suprema Corte
do Estado da Califórnica, mantida pela Suprema Corte nos EUA5; Justiça do
Trabalho, confirmada pelo Tribunal de Apelações do Trabalho no Uruguai6;
Corte de Cassação na França7; Tribunal Trabalhista em Lausanne8 e Tribu-
nal Trabalhista em Vaud9, ambos na Suíça; Tribunal Trabalhista, mantida por
Tribunal de Apelação e pela Corte de Apelações no Reino Unido10; Tribunal
Supremo da Espanha11; Tribunal em Palermo na Itália12; Tribunal de Concepción
no Chile13 e Corte Superior da Alemanha14.
5 
BOND, S. Uber and Lyft must make drivers employees, California Court rules. NPR, Washington, 22
out. 2020. Disponível em: https://www.npr.org/2020/10/22/926916925/uber-and-lyft-must-make-driver-
s-employees-california-appeals-court-rules. Acesso em: 18 jun. 2022.
6 
MESA, Piá. Fallo inédito em Uruguay: Justicia considera trabajador dependiente a chofer de Uber. El
País, Montevideo. Disponível em: https://negocios.elpais.com.uy/noticias/fallo-inedito-uruguay-justicia-
-considera-trabajador-dependiente-chofer-uber.html. Acesso em: 18 jun. 2022.
7 
COUR DE CASSATION. Arrêt n. 374 du 4 mars 2020 (19-13.316) -Cour de cassation -Chambre
sociale -ECLI:FR:CCAS:2020:SO00374. Disponível em: https://www.courdecassation.fr/jurisprudence_2/
chambre_sociale_576/374_4_44522.html. Acesso em: 18 jun. 2022.
8 
SWISS INFO. UberPop driver wins “landmark” infair dismissal case.Disponível em: https://www.
swissinfo.ch/eng/court-ruling_uberpop-driver-wins--landmark--unfair-dismissal-case/44941794. Acesso
em: 18 jun. 2022.
9 
SWISS INFO. Swiss court confirms Uber status as “employer”.Disponível em: https://www.swissinfo.
ch/eng/swiss-court-confirms-uber-status-as--employer-/46036976.
10 
BUTLER, Sarah. Uber loses appeal over driver employment rights.The Guardian, Londres, 20 dez. 2018.
Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2018/dec/19/uber-loses-appeal-over-driver-em-
ployment-rights. Acesso em: 18 jun. 2022.
11 
PODER JUDICIAL ESPAÑA. El Tribunal Supremo declara la existencia de la relación laboral entre
Glovo y um repartidor. Disponível em:http://www.poderjudicial.es/cgpj/es/Poder-Judicial/Noticias-Judicia-
les/El-TribunalSupremo-declara-la-existencia-de-la-relacion-laboral-entre-Glovo-y-un-repartidor. Acesso
em: 18 jun. 2022.
12 
ROTUNNO, Roberto. “Glovo assuma il fattorino come dependente”. A Palermo la prima sentenza
che impone a una app di riconoscere lasubordinazione dei rider.Il Fatto Quotidiano, Roma, 23 nov. 2020.
Disponível em: https://www.ilfattoquotidiano.it/2020/11/23/glovo-assuma-il-fattorino-come-dipendente-a-
-palermo-la-prima-sentenza-che-impone-a-una-app-di-riconoscere-la-subordinazione-dei-rider/6013230/.
Acesso em: 18 jun. 2022.
13 
SÁNCHEZ, Dayana. Juzgado del Trabajo de Concepción reconoce vínculo laboral entre Pedidos Ya
y repartidor, y abre flerte debate.La Tercera,Santiago, 6 out. 2020. Disponível em: https://www.latercera.
com/pulso/noticia/juzgado-del-trabajo-de-concepcion-reconoce-vinculo-laboral-entre-pedidos-ya-y-re-
partidor-y-abre-fuerte-debate/WHWA5UWSTNHE7FWZHWNBLBWY5A/. Acesso em: 18 jun. 2022.
14 
BUNDESARBEITSGERICHT. Pressemitteilung Nr. 43/20. Abeitnehmereigenschaft von “Crowd-
workern”.Disponível em:https://juris.bundesarbeitsgericht.de/cgi-bin/rechtsprechung/document.py?Ge-

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

É nesse contexto que é importante realizar reflexões sobre os rumos que


está tomando essa luta dos trabalhadores das plataformas digitais de trabalho
no Brasil. É esse o objetivo do presente artigo, refletir sobre a luta desses tra-
balhadores pelo reconhecimento de direitos básicos.
Para tanto, torna-se imprescindível iniciarmos pela definição e classificação
das plataformas digitas de trabalho.

2. PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

Carelli ensina que a ideia de plataforma vem de uma organização empresa-


rial que não é recente. Trata-se de uma infraestrutura ou ambiente que possibilita
a interação entre dois ou mais grupos, a exemplo do que ocorrem com as feiras
ou marktplace, em que são disponibilizados espaços em que os mercadores se
apoiam para realizar negócios.
Carelli destacam que há uma série de tipos diferentes de plataformas digi-
tais, daí a confusão que muitas pessoas fazem sobre a tentativa de enquadramento
como sendo de uma mesma espécie. Os autores trazem à tona várias classifica-
ções, a exemplo, dentre outras, daquela efetuada por Codagnone, Biagi e Abadie
(2016), que classificam as plataformas em quadrantes de acordo com a interação
que existe entre pessoa e empresa e pessoa e pessoa, bem como entre utilização de
capital ou de trabalho; da elaborada por Aloisi e De Stefano, que selecionam como
plataformas de trabalho e plataformas que facilitam o acesso a bens, propriedade
e capital; e a de Todoli, que definem as plataformas de trabalho online e off-line.
Embora haja diversos tipos de marketplaces, em termos de relação de
trabalho, como adverte Carelli, a questão “começa a se complicar quando a ideia
ultrapassa os fins do comércio e passa a ser aplicada para a oferta de prestação
de serviço”. E adverte ainda o autor,
[...] a situação adquire contornos ainda mais intricados
quando os serviços ofertados por meio de plataformas são
centrados no elemento humano: o serviço ou mercadoria,
no caso, temo como parte principal ou predominante um
trabalhador, que se coloca à disposição para prestar pes-
soalmente serviços oferecidos digitalmente.
Dito isso, de maneira objetiva, Carelli e classificam essas plataformas de
trabalho em puras e híbridas, conforme a seguir:
Plataformas digitais de trabalho puras seriam aquelas em
que o seu modus operandi seria de um real marketplace,
sem a realização de controle relevante sobre a interação
richt=bag&Art=pm&nr=24710. Acesso em: 18 jun. 2022.

<< Retorne ao sumário 118


A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

entre as partes negociantes, como é exemplo a brasileira


GetNinjas. As plataformas digitais de trabalho mistas
ou híbridas seriam aquelas em que há uma mescla entre
mercado e hierarquia, como a Uber, por exemplo. Nas pla-
taformas puras o objeto do negócio se confunde em algum
ponto com a forma empresarial: manter a infraestrutura
necessária à interação dos atores em negociação.
Nas plataformas mistas ou híbridas, ao contrário, a forma
empresarial de plataforma serve à prestação final de um
serviço que com ela não se confunde. Enquanto o negócio
da GetNinjas é a intermediação entre pessoas que dese-
jam serviços profissionais e outras que se disponibilizam
a prestá-los, ou seja, realiza a função de uma agência de
emprego, a Uber tem como negócio o transporte de pessoas,
possibilitado principalmente por meio da ligação entre a
demanda e a procura, ou seja, pela interação dos dois grupos,
que é completado por uma série de atividades que tornam
possível a prestação do serviço pretendido.
No caso das plataformas mistas ou híbridas, percebe-se que
os grupos que interagem não realizam negócios entre si: os
negócios são realizados entre cada um deles e a plataforma.
O preço, as condições e o modo da prestação dos serviços
são desenhados integralmente ou quase pela plataforma.
Como se observa, nas plataformas de trabalho pura não há controle
relevante sobre a interação entre as partes negociadas. Já nas plataformas de
trabalho híbridas, há um gerenciamento, com a realização de controle por parte
das plataformas, que define as condições em que o trabalho é executado. São
exemplos desse tipo de plataformas UBER, iFood, 99 Tecnologia e Rappi,
dentre outras.
Os autores salientam que, em razão da novidade tecnológica, há uma
tentativa de essas plataformas se apresentarem como sendo um tipo novo de
empresa, desmaterializada, des-hierarquizada, sem estrutura física, com regras
livres estabelecidas pelas partes, na tentativa de demonstrar que não há legislação
tratando do tema, ou seja, não se enquadrar no direito já existente.
De fato, há uma novidade tecnológica com utilização advindos de recursos
surgidos na Revolução Tecnológica, com utilização de algoritmos, inteligência
digital, nuvem de armazenamento e toda uma infraestrutura de computadores.
Entretanto, tais recursos apenas são utilizados para aperfeiçoar o que já existe,
sendo plenamente aplicado o direito vigente, como demonstrado no item 3.
De acordo com Carelli, o meio digital não implicou ruptura com a estrutura
produtiva capitalista já existente, apenas há utilização do fetiche da tecnologia

<< Retorne ao sumário 119


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

para tornar invisíveis os fatores de produção, no entanto, por trás da cortina


de fumaça, há muita estrutura física, bens e trabalho humano envolvido nestas
empresas.
Em Relatório publicado em 201815, a Organização Internacional do
Trabalho reconheceu que embora “as plataformas digitais de trabalho sejam um
produto dos avanços tecnológicos, o trabalho nessas plataformas assemelha-se
a modalidades de trabalho há muito existentes, com a diferença de ter uma
ferramenta digital como intermediária”.
Dito isto, passa-se ao disciplinamento das plataformas híbridas no ordena-
mento jurídico brasileiro no tocante ao reconhecimento dos direitos trabalhistas.

3. O DEBATE SOBRE RECONHECIMENTO DE


VÍNCULO NO DIREITO BRASILEIRO

No âmbito das relações de trabalho, embora se parece algo novo, o


labor dos trabalhadores em plataformas digitais já está regulamentado pelos
artigos 2º e 3º da CLT, que estabelece que se configura relação de emprego
quando presentes os elementos, quais sejam, pessoalidade, onerosidade,
não-eventualidade e subordinação. Toda a discussão que existe é sobre a
configuração ou não desses elementos na prática. Configurada a relação de
emprego, a consequência é obtenção de vários direitos trabalhistas por parte
dos trabalhadores.
Em relação à pessoalidade e onerosidade, a questão é bem explícita não
havendo maiores discussões. De fato, há pessoalidade porque o trabalho é efe-
tuado pelo trabalhador cadastrado no aplicativo, seja para entrega de mercadoria,
seja para transporte de passageiros ou outro serviço, que recebe remuneração
por isso, sendo o valor determinado pela própria plataforma.
Quando à não eventualidade, também não há maiores discussões até
porque o labor dos trabalhadores das plataformas de trabalho híbridas está
inserido na dinâmica da atividade econômica, não havendo qualquer elemento
de transitoriedade. O que existe é pagamento por produção, com remune-
ração variável, de acordo com o que é produzido, com execução de jornada
intermitente. Contudo, isso não retira a caracterização de não eventual, até
porque a delimitação prévia ou fixa de jornada não é requisito exigido pelos
arts. 2º e 3º da CLT para caracterização do vínculo. Além do mais, o art.
452-A c/c §3º da CLT prevê a possibilidade de trabalho intermitente com

15 
OIT. Relatório As plataformas digitais e o futuro do trabalho Promover o trabalho digno no mundo
digital. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---europe/---ro-geneva/---ilo-lisbon/
documents/publication/wcms_752654.pdf. Acesso em: 18 jun. 2022.

<< Retorne ao sumário 120


A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

reconhecimento de vínculo, sem descaracterizar a subordinação, exatamente


como ocorre com o trabalho nas plataformas de trabalho híbridas. Portanto,
a questão da não eventualidade para o labor em debate é razoavelmente tran-
quila de ser enfrentada.
Ultrapassadas essas questões, a principal discussão a respeito do vínculo
de emprego recai sobre o último elemento caracterizador da relação de emprego,
a subordinação. As plataformas digitais híbridas contratam seus trabalhadores
como se fossem autônomos em todo o mundo, sem reconhecer, portanto, direi-
tos trabalhistas básicos, sob o argumento de que são empresas de tecnologias
que desenvolvem aplicativo digital para conectar o usuário com o trabalhador,
inexistindo subordinação jurídica entre as plataformas e os trabalhados, mas
contrato regido pela legislação de consumo.
Toda discussão reside no fato de não existir jornada predeterminada e
um superior hierárquico humano, com presença física, repassando diretamente
ordens para os trabalhadores, como ocorre no modelo tradicional fordista, em
que há uma subordinação por hierarquia física e com jornada fixada.
É nesse ponto que é preciso lembrar que estamos passando pela Revo-
lução Tecnológica Digital, como descritos no item 1, que repercute no modo
como o trabalho é desenvolvido em termos de presença física. Com a enorme
quantidade de dados armazenados a todo momento, a utilização máquinas de
última geração, de sofisticados aplicativos e inteligência artificial, o superior
hierárquico humano foi substituído pelo “chefe algorítmico”, que, inclusive, dá
instruções mais precisas, configurando, assim, o que a doutrina fala em subor-
dinação “telemática” ou subordinação “algorítmica”.
Como afirma Adams-Prassi (2020), no âmbito da Revolução Tecnoló-
gica, os avanços da tomada de decisão orientada pela inteligência artificial irão
alterar as rotinas diárias dos seus gestores, aumentando e substituindo o controle
diário humano sobre o local de trabalho: “estamos a assistir o aparecimento do
chefe algorítmico”.
O professor acrescenta que “como os custos de coleta e processamento de
dados continuam a cair, os empregadores são cada vez mais capazes de utilizar
tecnologia para monitorar — e controla — o local de trabalho em um grau até
inimagináveis”.
E continua Adams-Prassi (2020) afirmando que o trabalho baseado em
plataformas serviu como laboratório inicial para o desenvolvimento de ferra-
mentas de gerenciamento algorítmico e que não se trata de “previsões futuristas”,
pois o gerenciamento algorítmico já está ocorrendo.

<< Retorne ao sumário 121


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

É importante destacar que a gestão algorítimica das plataformas digi-


tais de trabalho também foi reconhecida pela OIT em seu Relatório sobre as
Plataformas Digitais16.
De fato, no caso das plataformas digitais de trabalho híbrido, essa geren-
ciamento algorítmico17 pode ser definida demonstrada através de diversos
pontos: controle das chamadas dos clientes pelas plataformas; indicação do
que deve ser cumprido pelo trabalhador; definição das condições, parâmetros e
dinâmica para cumprimento, como preço, tempo estimado de execução, padrão
de atendimento, comportamento e de estrutura do veículo; exigência de se
manter conectado sob pena de descredenciamento; controle da qualidade dos
serviços dos trabalhadores através de avaliação individuais dos trabalhadores,
com possibilidade de descredenciamento em razão do controle.
É importante destacar que o debate sobre a liberdade de fixar horário de
trabalho caracteriza a existência de trabalho intermitente, não descaracterizando
a subordinação, nos termos do art. 452-A, §3º da CLT.
16 
Conforme Relatório da OIT: “Nas plataformas digitais, a gestão algorítmica vai além da orientação e
escalonamento do trabalho para controlar quase todos os aspetos do trabalho. Möhlmann e Zalmanson (2017)
definem cinco características da gestão algorítmica: (1) monitorização contínua do comportamento dos traba-
lhadores; (2) avaliação constante do desempenho dos trabalhadores com base em avaliações dos clientes, mas
também a aceitação ou rejeição do seu trabalho pelo cliente; (3) a implementação automática de decisões, sem
intervenção humana; (4) interação dos trabalhadores com um «sistema» e não com seres humanos, privando-
-os de oportunidades de feedback ou discussão e negociação com o seu supervisor, como seria geralmente o
caso em empregos fora da Internet; e (5) baixo grau de transparência. O baixo grau de transparência decorre
de práticas comerciais competitivas que impedem as plataformas de divulgar como funcionam os algoritmos,
mas também da natureza adaptativa dos algoritmos, por força da qual as decisões mudam de acordo com os
dados recolhidos. Como explicam Möhlmann e Zalmanson, “raramente as empresas têm incentivos a divulgar
os critérios subjacentes aos seus algoritmos e, em alguns casos, elas mesmas são incapazes de explicar comple-
tamente os resultados, gerando fraca a transparência perante aqueles que são geridos pelos algoritmos” (p. 5).
Nas plataformas de microtarefas, em que os clientes podem divulgar tarefas usando uma infinidade de API,
esse problema é agravado”. OIT. Relatório As plataformas digitais e o futuro do trabalho Promover o trabalho
digno no mundo digital. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---europe/---ro-geneva/-
---ilo-lisbon/documents/publication/wcms_752654.pdf. Acesso em: 18 jun. 2022.
17 
A questão da subordinação algorítmica vem sendo analisado com profundidade em alguns processos
judiciais, como no seguinte: “A faceta moderna da organização do trabalho é o controle por programação ou
comandos (ou por algoritmo). A partir da programação, da estipulação de regras e comandos preordenados e
mutáveis (pelo programador), ao trabalhador é incumbida a capacidade de reagir em tempo real aos sinais que
lhe são emitidos para realizar os objetivos assinalados pelo programa. Os trabalhadores, nesse novo modelo,
devem estar mobilizados e disponíveis à realização dos objetivos que lhe são consignados. Existe uma suposta
e conveniente autonomia do motorista, subordinada à telemática e ao controlador do aplicativo. Trata-se da
direção por objetivos. 5. O algoritmo, que pode ser modificado a qualquer momento, pela reprogramação
(inputs), garante que os resultados finais esperados (outputs) sejam alcançados sem a necessidade de dar
ordens diretas aos trabalhadores, que, na prática, não agem livremente, mas exprimem reações esperadas.
Aqueles que seguem a programação recebem premiações, na forma de bonificações e prêmios, enquanto
aqueles que não se adaptarem aos comandos e objetivos são punidos ou desligados. 6. Ressalte-se que a
empresa instrumentaliza o serviço durante todo o dia por meio de estímulo às jornadas extensas, com prêmios.
O algoritmo procura melhorar a remuneração desses trabalhadores nos horários em que há maior necessidade
dos usuários da plataforma”. TRT 15; PROCESSO N. 0011710-15.2019.5.15.0032, Des. Relator JOÃO
BATISTA MARTINS CÉSAR 6ª turma; DJE 26/04/2021.

<< Retorne ao sumário 122


A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

Nessa linha, ensinam Meireles e Rocha (2020),


O trabalho uberizado é realizado de maneira subordinada,
habitual, onerosa, por pessoa física e pessoal, cabendo des-
tacar que não se pode mais na presente data interpretar a
subordinação com ordens diretas e pessoas, transmitidas
pelo empregador próximo ao empregado. Se a tecnologia
evoluiu e permitiu que o trabalho seja realizado e controlado
à distância e de maneira cibernética, corolário lógico que a
subordinação se encontra existente e efetivada.
A Justiça do Trabalho tem começado a reconhecer o vínculo de trabalho
em situações tais, ainda que timidamente por conta do elevado número de
acordos homologados excluindo o vínculo, como veremos no tópico a seguir.
Em um dos processos envolvendo a UBER, o Tribunal Regional do Tra-
balho da 15ª Região18 reconheceu que a subordinação se revela de várias formas:
a) cobranças sofridas pelos motoristas, de modo a realizar
o maior número possível de viagens;
b) distribuição dos trabalhadores, pelo aplicativo, nas diver-
sas áreas da cidade, de modo a atenderem regularmente
maior número de clientes;
c) os motoristas conhecem o destino da viagem apenas no
seu início, nunca antes, o que esvazia a sua autonomia com
relação à organização da atividade, já que o poder sobre a
distribuição das viagens pertence à plataforma;
d) a UBER fiscaliza a atuação dos condutores, por meio dos
próprios usuários, que recebem mensagem para avaliação;
e) a ré recebe reclamações dos clientes e aplica penalidades
aos motoristas, exercendo poder disciplinar por meio de
advertências, suspensões e desligamento da plataforma;
f ) as movimentações do trabalhador são monitoradas em
tempo real, por meio de sistema operacional via satélite;
g) o trabalhador não tem qualquer ingerência no preço
final que é cobrado do cliente.
No âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, até o mês de abril de 2022,
havia construção jurisprudência aparente no sentido de negação do vínculo tra-
balhistas, pelo menos foi o que aconteceu em cerca de doze decisões proferidas
pelas 4ª, 5ª e 8ª Turmas. A jurisprudência aparente porque, estrategicamente, as
plataformas digitais vinham celebrando acordos em processos com chances de
derrota, mesmo pagando valores elevados, desde que não se reconhecesse o vínculo.

TRT 15; PROCESSO N. 0011710-15.2019.5.15.0032, Des. Relator JOÃO BATISTA MARTINS


18 

CÉSAR 6ª turma; DJE 26/04/2021.

<< Retorne ao sumário 123


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

A 4ª Turma do TST vem se manifestando pela impossibilidade de reco-


nhecimento de vinculo em razão da ausência de subordinação jurídica, habitua-
lidade e onerosidade19. A 5ª Turma20 e a 8ª Turma21 também se manifestaram
pelo não reconhecimento do vínculo em algumas decisões.
Em abril de 2022, no entanto, houve o primeiro reconhecimento de
vínculo de emprego no âmbito do TST em processo envolvendo plataforma
digital, criando-se divergência entre as turmas do Tribunal.
Trata-se do processo RR - 100353-02.2017.5.01.0066 ajuizado em face
da Uber22. Na decisão histórica, o TST consignou que a subordinação jurídica
ficou configurada em todas as suas dimensões:
19 
Nesse sentido, a seguinte decisão: “a) quanto à habitualidade, inexiste a obrigação de uma frequência
predeterminada ou mínima de labor pelo motorista para o uso do aplicativo, estando a cargo do profissional
definir os dias e a constância em que irá trabalhar; b) quanto à subordinação jurídica, a par da ampla autonomia
do motorista em escolher os dias, horários e forma de labor, podendo desligar o aplicativo a qualquer momento
e pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação a metas determinadas pela Reclamada ou
sanções decorrentes de suas escolhas, a necessidade de observância de cláusulas contratuais (valores a serem
cobrados, código de conduta, instruções de comportamento, avaliação do motorista pelos clientes), com as
correspondentes sanções no caso de descumprimento (para que se preserve a confiabilidade e a manutenção
do aplicativo no mercado concorrencial), não significa que haja ingerência no modo de trabalho prestado
pelo motorista, reforçando a convicção quanto ao trabalho autônomo a inclusão da categoria de motorista
de aplicativo independente, como o motorista da 99 Tecnologia Ltda., no rol de atividades permitidas para
inscrição como Microempreendedor Individual - MEI, nos termos da Resolução 148/2019 do Comitê
Gestor do Simples Nacional; c) quanto à remuneração, o caráter autônomo da prestação de serviços se
caracteriza por arcar, o motorista, com os custos da prestação do serviço (manutenção do carro, combustível,
IPVA), caber a ele a responsabilidade por eventuais sinistros, multas, atos ilícitos ocorridos, dentre outros
(ainda que a empresa provedora da plataforma possa a vir a ser responsabilizada solidariamente em alguns
casos), além de os percentuais fixados pela 99 Tecnologia LTDA., de cota parte do motorista, entre 75% e
80% do preço pago pelo usuário, serem superiores ao que este Tribunal vem admitindo como suficientes a
caracterizar a relação de parceria entre os envolvidos, como no caso de plataformas semelhantes (ex: Uber)”.
TST. 4ª Turma. AIRR - 10650-56.2021.5.03.0004. Relator: Ives Gandra da Silva Martins Filho. Julgamento:
28/06/2022. Publicação: 01/07/2022. No mesmo sentido, as seguintes decisões: TST. 4ª Turma. Processo
AIRR - 383-78.2021.5.06.0412. Relator: Ives Gandra da Silva Martins Filho. Julgamento: 21/06/2022.
Publicação: 24/06/2022; TST. 4ª Turma. Processo: AIRR - 1001256-86.2021.5.02.0084. Relator: Ives Gandra
da Silva Martins Filho. Julgamento: 3/05/2022. Publicação: 06/05/2022; TST. 4ª Turma. AIRR - 1000605-
23.2021.5.02.0062. Relator: Ives Gandra da Silva Martins Filho. Julgamento: 05/04/2022. Publicação:
08/04/2022; TST. 4ª Turma. AIRR - 10618-21.2021.5.03.0111. Relator: Ives Gandra da Silva Martins Filho.
Julgamento: 05/04/2022. Publicação: 08/04/2022; TST. 4ª Turma. AIRR - 10556-05.2021.5.03.0006. Relator:
Ives Gandra da Silva Martins Filho. Julgamento: 30/03/2022. Publicação: 01/04/2022; TST. 4ª Turma. AIRR
- 687-68.2020.5.06.0006. Relator: Ives Gandra da Silva Martins Filho. Julgamento: 30/03/2022. Publicação:
01/04/2022; TST. 4ª Turma. AIRR - 1000031-71.2021.5.02.0006. Relator: Ives Gandra da Silva Martins
Filho. Julgamento: 16/02/2022. Publicação: 18/02/2022; TST. 4ª Turma. RR - 10555-54.2019.5.03.0179.
Relator: Ives Gandra Martins Filho. Julgamento: 02/03/2021. Publicação: 05/03/2021; TST. 4ª Turma. AIRR
- 10575-88.2019.5.03.0003. Relator: Alexandre Luiz Ramos. Julgamento: 09/09/2020.Publicação: 11/09/2020.
20 
Nesse sentido, as decisões as seguintes decisões TST. 5ª Turma. Ag-AIRR - 1001160-73.2018.5.02.0473.
Relator: Breno Medeiros. Julgamento: 04/08/2021. Publicação: 20/08/2021; TST, 5ª Turma. RR-1000123-
89.2017.5.02.0038. Relator Ministro Breno Medeiros. Publicação 07/02/2020).
21 
Nesse sentido, as seguintes decisões da 8ª Turma. TST. 8ª Turma. AIRR-11199-47.2017.5.03.0185.
Relatora Ministra Dora Maria da Costa. Publicação 31/01/2019.
22 
O TST destacou os seguintes pontos em relação à subordinação: “1) a Reclamada organizava unila-
teralmente as chamadas dos seus clientes/passageiros e indicava o motorista para prestar o serviço; 2) a

<< Retorne ao sumário 124


A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

a) clássica , em face da existência de incessantes ordens diretas


da Reclamada promovidas por meios remotos e digitais (art.
6º, parágrafo primeiro, da CLT), demonstrando a existência
da assimetria poder de direção/subordinação e, ainda, os aspectos
diretivo, regulamentar, fiscalizatório e disciplinar do poder
empregatício; b) objetiva , tendo em vista o trabalho executado
estritamente alinhado aos objetivos empresariais; c) estrutural
, mediante a inteira inserção do profissional contratado na
organização da atividade econômica desempenhada pela
Reclamada, em sua dinâmica de funcionamento e na cultura
jurídica e organizacional nela preponderante; d) por fim,
a subordinação algorítima , que consiste naquela efetivada
por intermédio de aferições, acompanhamentos, coman-
dos, diretrizes e avaliações concretizadas pelo computador
empresarial, no denominado algoritmo digital típico de tais
empresas da Tecnologia 4.0.
A recente decisão do TST deu uma luz na luta dos trabalhadores das
plataformas digitais e dos operadores do direito na luta pela concretização dos
ideais do Direito do Trabalho na vida das pessoas no decorrer da Revolução
Tecnológica em andamento.
A decisão representa um possível pondo de virada na construção da
Jurisprudência, principalmente após o início de tomada de consciência dos
operadores do direito quanto a estratégia das plataformas de utilização de juri-
metria e celebração de acordos para criação de jurisprudência artificial, como
veremos no próximo tópico a seguir.

4. A UTILIZAÇÃO DE JURIMETRIA E A
CELEBRAÇÃO DE ACORDOS PARA
CRIAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA ARTIFICIAL

No âmbito judicial brasileiro, a luta está sendo travada dia a dia, envol-
vendo trabalhadores, plataformas digitais e operadores de direito, que muitas

empresa exigia a permanência do Reclamante conectado à plataforma digital para prestar os serviços, sob
risco de descredenciamento da plataforma digital (perda do trabalho); 3) a empresa avaliava continuamente
a performance dos motoristas, por meio de um controle telemático e pulverizado da qualidade dos serviços,
a partir da tecnologia da plataforma digital e das notas atribuídas pelos clientes/passageiros ao trabalhador.
Tal sistemática servia, inclusive, de parâmetro para o descredenciamento do motorista em face da plataforma
digital - perda do trabalho -, caso o obreiro não alcançasse uma média mínima; 4) a prestação de serviços se
desenvolvia diariamente, durante o período da relação de trabalho – ou, pelo menos, com significativa inten-
sidade durante os dias das semanas -, com minucioso e telemático controle da Reclamada sobre o trabalho e
relativamente à estrita observância de suas diretrizes organizacionais pelo trabalhador, tudo efetivado, aliás,
com muita eficiência, por intermédio da plataforma digital (meio telemático) e mediante a ativa e intensa,
embora difusa, participação dos seus clientes/passageiros”. TST. 3ª Turma. RR - 100353-02.2017.5.01.0066.
Relator: Mauricio Godinho Delgado. Julgamento: 06/04/2022. Publicação: 11/04/2022.

<< Retorne ao sumário 125


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

vezes não têm condições de refletir sobre os verdadeiros impactos da complexa


Revolução Tecnológica que está interferindo nas relações de trabalho para
melhor compreensão do fenômeno da uberização.
Há alguns milhares de reclamações trabalhistas individuais tratando da
questão do reconhecimento do vínculo. Contudo, as plataformas de trabalho
híbrido vêm desenvolvendo meio eficaz para não reconhecimento de vínculo,
qual seja, a utilização de advocacia estratégica, com uso de sofisticados sistemas
de jurimetria de análise de decisões judiciais, inclusive com inteligência artificial,
para celebração de acordos em juízos em que o sistema aponta chance de derrota.
Sobre o uso da jurimetria, Orsini (2020) lembra que hoje “o aprendizado
de máquina e a inteligência artificial multiplicam a eficiência do profissional ao
analisar as milhares de linhas de textos disponíveis”.
Tais sistemas sofisticados identificam as chances de uma empresa
ganhar ou perder uma ação num determinado tribunal, com a utilização da
estatística aplicada ao direito. Nesse contexto, as plataformas digitais têm
utilizado a jurimetria para identificar possíveis derrotas e, assim, trabalhar em
possível acordo em tais ações, de modo a não reconhecer o vínculo e evitar
jurisprudência contrária.
Nesses acordos, há pagamento de valores aos trabalhadores, muitas vezes
elevados, mas sem reconhecimento de vínculo trabalhista, isso sem que os traba-
lhadores e os operadores de direito percebam quais as consequências: a criação
de uma cultura de que são trabalhadores autônomos e de uma jurisprudência
artificial. A ideia não é economizar dinheiro nem resolver o conflito, mas sim
evitar jurisprudência de reconhecimento do vínculo, ou seja, manipulação de
jurisprudência.
Em muitos processos em que houve esses acordos, o trabalhador sai com
aparência de vitória, mas na verdade, sob a vertente coletiva, está havendo uma
derrota para a categoria. Nesses mesmos processos, os operadores de direitos
envolvidos têm a convicção de que contribuíram para a pacificação social com
a solução conciliada do conflito, mas, na verdade, estão apenas sendo peças da
estratégia utilizada pelas plataformas para não reconhecimento de vínculo.
Com a construção de jurisprudência artificial, as empresas impedem a
formação de divergência, o que dificulta a interposição de recurso de revista
para o TST, além de causar impressão de que existe consenso entre motoristas
e plataforma de no sentido de que se trata de trabalho autônomo.
A questão a utilização de acordo para não configurar vínculo foi primei-
ramente abordada por LEME (2018), que fez um importante estudo sobre o
caso UBER, através da análise de vários processos trabalhistas individuais.

<< Retorne ao sumário 126


A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

O ponto de partida de LEME (2018) foi a de que não havia, até o


momento, jurisprudência de Tribunais trabalhistas reconhecendo vínculo tra-
balhistas aos motoristas do UBER, embora existissem decisões de primeiro
grau pela procedência. Em seu estudo, concluiu que “há indícios de que a Uber
se utiliza de uma série de medidas que, no seu conjunto, podem ser denomi-
nadas de predatórias e tendentes a inviabilizar a formação de jurisprudência
reconhecedora de direitos trabalhistas” e que faz acordo baseando-se no risco
do julgador “denotando mapeamento estratégico de julgadores”.
A pesquisa despertou um alerta do Poder Judiciário trabalhista, tendo
alguns Tribunais passado a prestar mais atenção na prática do acordo.
Como ensina Orsini e Leme (2021)23,
Embora a estratégia de litigância manipulativa da jurispru-
dência pela conciliação seletiva nos processos de motoristas
de plataformas não viesse recebendo reação reprobatória
dos tribunais do trabalho, mais recentemente vem se ini-
ciando uma linha pioneira a dar-se conta da relevância das
questões aí envolvidas.
Nesse sentido, vários Tribunais, a exemplo dos TRTs da 1ª, 3ª, 11ª e
15ª Região tem recusado à homologação de acordos envolvendo trabalhadores
e plataformas digitais. A título exemplificativo, cita-se acórdão a seguir do
TRT da 15ª Região no Processo nº 0011710-15.2019.5.15.003224, por ser bem

23 
LITIGÂNCIA MANIPULATIVA DA JURISPRUDÊNCIA E PLATAFORMAS DIGITAIS
DE TRANSPORTE: LEVANTANDO O VÉU DO PROCEDIMENTO CONCILIATÓRIO
ESTRATÉGICO
Adriana Goulart de Sena Orsini
Ana Carolina Reis Paes Leme
Revista eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia: vol. 9, n. 13 (maio 2021).
Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/188571
24 
TRABALHO POR MEIO DE PLATAFORMAS DIGITAIS (crowd economy, gig economy, free-
lance economy - economia sob demanda). VÍNCULO DE EMPREGO. POSSIBILIDADE. ACORDO
CELEBRADO NO DIA ANTERIOR À SESSÃO DE JULGAMENTO. NÃO HOMOLOGAÇÃO.
JURIMETRIA. (...) A estratégia da reclamada de celebrar acordo às vésperas da sessão de julgamento confe-
re-lhe vantagem desproporcional porque assentada em contundente fraude trabalhista extremamente lucrativa,
que envolve uma multidão de trabalhadores e é propositadamente camuflada pela aparente uniformidade
jurisprudencial, que disfarça a existência de dissidência de entendimento quanto à matéria, aparentando que
a jurisprudência se unifica no sentido de admitir, a priori, que os fatos se configuram de modo uniforme em
todos os processos (jurimetria). 6. Entretanto, o art. 7° do CPC assegura às partes “paridade de tratamento
em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à
aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”. O contraditório deve,
portanto, garantir a possibilidade de influenciar o julgador no momento da decisão. Nesse contexto, veri-
fica-se a incompatibilidade entre a observância do princípio da cooperação e o abuso do direito processual
caracterizado pela adoção dessa estratégia de manipulação da jurisprudência. 7. Reitere-se que não se está a
desestimular ou desmerecer os meios consensuais de resolução dos conflitos, cuja adoção é estimulada pelo
CPC. Trata-se de mecanismo capaz de produzir pacificação social de forma célere e eficaz, cuja adoção é
incentivada pelo Poder Judiciário, que tem investido na mediação e na conciliação. Na hipótese, entretanto,

<< Retorne ao sumário 127


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

representativa de toda a discussão, destacando a utilização da jurimetria e de


acordos não para pacificação social, mas para disfarçar a existência de dissidência
de entendimento quanto à matéria do vínculo de emprego, aparentando que
jurisprudência uniforme não reconhecendo o vínculo, o que caracteriza abuso
do direito processual caracterizado pela adoção da estratégia de manipulação
da jurisprudência.
A discussão sobre o uso de jurimetria para realizar acordos tem ganhado
publicidade, sendo que recentemente houve duas matérias jornalísticas impor-
tantes divulgadas no The Intercept25 e Bloomberg26. Na última delas, há relato
de que a questão vem investigada pelo Ministério Público do Trabalho27. A
expectativa é que as rejeições aos acordos sejam crescentes.

5. A DISCUSSÃO DO RECONHECIMENTO DO
VÍNCULO NO ÂMBITO DOS PROCESSOS
COLETIVOS

Além das reclamações trabalhistas individuais, a discussão sobre o vínculo


empregatício nas plataformas de trabalho híbrido vem sendo objeto de ações
civis públicas pelo Ministério Público do Trabalho, com base no art. 129 da
Constituição Federal, Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) e Código de
Defesa do Consumidor, que definiu os direitos metaindividuais e sistematizou
o processo coletivo, criando um sistema CDC/LACP.
é indispensável impedir o abuso de direito e a violação do princípio da paridade de armas (art. 7º do CC).
8. Mencione-se que no primeiro grau a reclamada não apresentou nenhuma proposta conciliatória, e, às
vésperas da sessão de julgamento, faz acordo em valor de R$ 35.000,00. 9. Mencione-se que o artigo 142 do
CPC preceitua que: “Convencendo-se, pelas circunstâncias, de que autor e réu se serviram do processo para
praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei, o juiz proferirá decisão que impeça os objetivos das
partes(...)”. No mesmo sentido o artigo 80 do mesmo código, ao considerar como litigante de má-fé aquele
que usar do processo para conseguir objetivo ilegal. 10. Nesse contexto, indefere-se o pedido de retirada do
processo de pauta e deixa-se de homologar o acordo apresentado pelos requerentes, por não preenchidos os
requisitos formais do art. 104 do CC (objeto lícito, possível e determinado ou determinável) e verificado o
abuso de direito ea violação do princípio da paridade de armas (art. 7º do CC) e com base no artigo 142 do
CPC. (TRT 15ª Região. 6ª Turma - 11ª Câmara. Processo nº 0011710-15.2019.5.15.0032. Relator: JOÃO
BATISTA MARTINS CÉSAR. Julg. 20/04/2021).
25 
The Intercept Brasil - Máquina de acordos: Como a Uber se blinda para impedir que a justiça reconheça
vínculo trabalhista de motoristas. Disponível em https://theintercept.com/2022/04/28/como-a-uber-se-
-blinda-para-impedir-que-a-justica-reconheca-vinculo-trabalhista-de-motoristas/. Acesso em: 18 jun. 2022.
26 
Bloomberg Línea. Disponível em: https://www.bloomberglinea.com.br/2022/05/13/exclusivo-procu-
radoria-apura-se-apps-usam-acordos-trabalhistas-para-distorcer-jurisprudencia/. Acesso em: 18 jun. 2022.
27 
A matéria da Bloomberg destacado nota do MPT no sentido de que o “número de decisões favoráveis às
empresas de plataformas digitais tende a ser maior do que o número de decisões desfavoráveis, porque elas
vêm adotando evidente estratégia de jurimetria, formalizando acordos judiciais que impedem o revolvimento
da matéria pelas instâncias judicias trabalhistas, obstando a formação de posicionamento jurisprudenciais
que lhes sejam contrários. [...] Essa ilusória jurisprudência amplamente favorável, construída artificialmente,
serve de argumento para as empresas alinhavarem suas defesas nos processos judiciais, podendo servir como
elemento de convencimento dos julgadores nos casos concretos”.

<< Retorne ao sumário 128


A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

Há notícias de ajuizamento de ações civis públicas em face da 99, Uber,


Rappi e Lalamove28, em que o MPT pleiteia a declaração da relação jurídica
de emprego entre as empresas de aplicativo de transporte de passageiros e de
mercadorias e seus motoristas, que prestam serviços de transporte de passagei-
ros e mercadorias através de seu aplicativo29. Também há notícia de ação civil
pública em relação à iFood30, também discutindo o vínculo.
Nas ações individuais, os trabalhadores, muitas vezes premidos pela
necessidade, aceitam acordos com vantagens econômicas, mas sem reconhe-
cimento de vinculo, de modo que há criação de jurisprudência artificial, como
demonstrado no tópico anterior.
Por isso que a discussão do vínculo trabalhistas nas plataformas de tra-
balho híbrido através de ação civil pública tem várias vantagens: faz prevale-
cer o princípio da universalidade de acesso à justiça porque envolve todos os
trabalhadores; supera o problema das barreiras econômicas; sana o problema
da desinformação dos cidadãos atingidos pelas macro lesões, principalmente
diante da complexidade da Revolução Tecnológica 4.0; há maior utilidade das
decisões, com o efeito erga omnes e secundum eventum litis; há preocupação com
a prevenção do dano, porque discute não apenas casos de trabalhadores que já
foram dispensados, mas também dos atuais trabalhadores das plataformas; faz
prevalecer o princípio da economia processual, com gasto mínimo para o Estado;
despersonifica o autor; há igualdade e equilíbrio entre as partes; há segurança
jurídica, evitando-se decisões contraditórias para a mesma discussão sobre o
vínculo empregatício; e evita a proliferação de demandas individuais.
Com a discussão no âmbito coletivo, o Poder Judiciário tem uma de
discussão sobre a questão de vínculo com produção de efeitos erga omnes,
pacificando os conflitos.

6. A LUTA DO MOVIMENTO SINDICAL DOS


TRABALHADORES DE PLATAFORMAS

É sabido que um dos meios mais importantes de lutas dos trabalhadores


é através dos sindicatos. A relação capital-trabalho é uma relação de desequilí-
28 
MPT. PRT2. MPT requer que 99, Uber, Rappi e Lalamove reconheçam vínculo trabalhista. Disponível
em: https://www.prt2.mpt.mp.br/925-mpt-requer-que-99-uber-rappi-e-lalamove-reconhecam-vinculo-tra-
balhista. Acesso em: 18 jun. 2022.
29 
O Portal Jota divulga os números das ações civil públicas, conforme a seguir: 1001379-33.2021.5.02.0004,
1001384-45.2021.5.02.0072, 1001414-44.2021.5.02.0084 e 1001416-04.2021.5.02.0055. Disponível em:
https://www.jota.info/tributos-e-empresas/trabalho/mpt-entra-com-acao-para-que-uber-99-rappi-e-lala-
move-reconhecam-vinculo-trabalhista-08112021. Acesso em: 18 jun. 2022.
30 
Tecnoblog. iFood responde a ação do MPT-SP por omitir vínculo com motoboys. Disponível em https://
tecnoblog.net/noticias/2019/06/28/ifood-acao-mpt-sp-omitir-vinculo-motoboys/. Acesso em: 18 jun. 2022.

<< Retorne ao sumário 129


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

brio de forças, ainda mais quando se tem do outro lado as plataformas digitais,
multinacionais que utilizam o que há de mais moderno em termos de tecnologia
de informação. O trabalhador é a parte hipossuficiente. Assim, a associação de
trabalhadores é fator essencial para a busca de melhores condições de vida e
trabalho em razão da igualdade de forças.
Desse modo, a associação sindical é um meio de promover melhores
condições de vida compatíveis com a dignidade humana e indispensável a todo
regime democrático autêntico. No caso dos trabalhadores de plataformas digitais,
essa luta através de sindicato se justifica mais ainda por causa da utilização de
estratégica sofisticada de criação de jurisprudência artificial.
Antones (2020) afirma que
Um dos primeiros desafios dos sindicatos e dos movimen-
tos sociais de classe é compreender a nova morfologia do
trabalho, com suas maiores complexificação e fragmen-
tação. Uma classe trabalhadora que simultaneamente se
reduz em vários segmentos e se amplia em outros, e que
é também muito mais segmentada, heterogênea, tendo
clivagens de gênero, raça, etnia, com fortes consequências
em sua ação concreta, em suas formas de representação e
organização sindical.
A mobilização dos trabalhadores de plataformas digitais tem sido difícil
por causa de fragmentação da atividade em muitos seguimentos. Machado
lembra que
Não há registro de experiência no Brasil de atuações visando
ao estabelecimento de processo de negociação coletiva, ou
mesmo a reivindicação do estabelecimento de um código
de conduta pelas plataformas digitais, com padrões de
trabalho justo, que reforcem as melhores práticas na relação
entre plataformas digitais e seus prestadores de serviços.
Essa dificuldade tem sido ampliada por conta da atuação das plataformas
no sentido da desmobilização dos trabalhadores. É o caso da iFood que, segundo
denúncias veiculadas através da Agência Pública31, está praticando ato sindical contra
o movimento dos trabalhadores, com criação de perfis falsos, infiltração de pessoas
da empresa em manifestação para desmobilizar ou desviar a atenção e ataques às
imagens dos sindicalistas, inclusive com contratação de agência de publicidade.
Em síntese, a organização sindical tem se mostrado difícil nesse contexto
de corrosão das relações de trabalho, ainda mais com a conduta antissindical

APUBLICA. A máquina oculta de propaganda do iFood. Disponível em: https://apublica.org/2022/04/a-


31 

-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/. Acesso em: 18 jun. 2022.

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A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

das empresas. Tudo isso evidencia que a necessidade de luta, de organização e


de conscientização dos trabalhadores no contexto da Revolução Tecnológica
4.0 é muito maior que em outros tempos.

7. CONCLUSÃO

O presente estudo trouxe os impactos da 4ª Revolução Industrial no


mundo e as consequências nas relações de trabalho, especialmente sobre
o processo de uberização; bem como traçou o panorama atual da luta dos
trabalhadores das plataformas digitais pelo reconhecimento dos direitos
trabalhistas no Brasil.
Nessa linha, entre os diversos tipos de plataformas digitais, houve foco
nas plataformas de trabalho híbridas, em que há gerenciamento e controle por
parte das plataformas, que define as condições em que o trabalho é executado.
Demonstrou-se que, embora se trata de novidade tecnológica dos meios
empregados, trata-se de uma forma de trabalho antiga, em que já existe disciplina
aqui no Brasil, qual seja os artigos 2º e 3º da CLT, que estabelece a relação de
emprego é configurada quando presentes os seguintes elementos, pessoalidade,
onerosidade, não-eventualidade e subordinação.
Evidenciou-se que, no caso das plataformas de trabalho mistas, todos
esses elementos estão configurados, inclusive o mais debatido, a subordinação
jurídica, só que com roupagem camuflada, através de comandos repassados por
algoritmos com uso de inteligência artificial.
Percebeu-se que, de um modo geral, o número de decisões analisando
o vínculo em Tribunais era reduzido, sendo a grande maioria dessas decisões
no sentido do não reconhecimento do vínculo. Apresentou-se estudos sobre a
estratégia das empresas, através da utilização de jurimetria com intuito identi-
ficar processos com risco de derrota nos tribunais e celebrar acordos judiciais,
mesmo com valores elevados, mas sem reconhecimento de vínculos, criando
assim jurisprudência artificial.
Demonstrou-se uma nova e intensa luz na luta dos trabalhadores e dos
operadores do direito com a recente decisão do TST do processo RR – 100353-
02.2017.5.01.0066 e a tomada de consciência dos operadores do direito quanto
a estratégia abusiva das plataformas.
Novos capítulos dessa luta por reconhecimento de direitos seguirão nos
próximos anos. Nesse contexto, cabe aos operadores do Direito comprome-
tidos com a função civilizatória do Direito do Trabalho, não permitir que a
Revolução Tecnológica traga retrocessos no direito do trabalho, com risco de

<< Retorne ao sumário 131


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

futura escravidão digital. Aos trabalhadores, cabe continuar a luta buscando a


organização do movimento sindical, imprescindível para a paridade de forças.
Para tanto, é imprescindível a realização e divulgação contínua de estudos
demonstrando todas as mazelas e tentativas de burlar a legislação protetiva, bem
como os meios para que a vitória seja alcançada. Só assim, conseguimos fazer
com quer a tecnologia seja um fator de distribuição de renda e de conhecimento,
e não um meio de exploração do trabalho humano.

REFERÊNCIAS

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A LUTA DOS TRABALHADORES DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
EM BUSCA DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

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Paulo: agosto 2011.

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TRÊS DIMENSÕES DA NÃO
NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA:
UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO
NA PERSPECTIVA DAS
PLATAFORMAS DIGITAIS
DE TRABALHO

Three dimensions of technological non-


neutrality: a systematization from the
perspective of digital labour platforms

Fernando Pasquini1
Ney Maranhão2

1 
Fernando Pasquini é Professor no Curso de Graduação em Engenharia Biomédica e Pós-Graduação em
Engenharia Biomédica na Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Engenharia Elétrica – subárea
Sistemas Dinâmicos – pela Escola de Engenharia de São Carlos/Universidade de São Paulo (EESC-USP),
com estágio de pesquisa na Universidade de Pittsburgh (EUA). Pesquisador no Núcleo de Inovação e Ava-
liação Tecnológica em Saúde (NIATS-UFU). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9047298948861003 / ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2259-7229 / E-mail: fernando.pasquini@ufu.br
2 
Ney Maranhão é Professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Pará. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade
Federal do Pará (Mestrado e Doutorado). Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo,
com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Especialista
em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade de Roma – La Sapienza (Itália). Mestre em
Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Professor instrutor da Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT/TST). Professor convidado em diversas Escolas
Judiciais de Tribunais Regionais do Trabalho. Professor Coordenador do Grupo de Pesquisa “Contempora-
neidade e Trabalho” – GPCONTRAB (UFPA/CNPQ). Titular da Cadeira nº 30 da Academia Brasileira de
Direito do Trabalho. Titular da Cadeira nº 25 da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Juiz Titular de Vara
da Justiça do Trabalho da 8ª Região (PA/AP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5894619075517595 / ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-8644-5902 / E-mail: ney.maranhao@gmail.com / Facebook: Ney Maranhão
II / Instagram: @neymaranhao / Youtube: Prof. Ney Maranhão / Twitter: @ney_maranhao

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TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

Resumo: Objetiva-se investigar o intrigante contraste entre ubiquidade e neu-


tralidade tecnológica, máxime diante do fenômeno contemporâneo das plata-
formas digitais de trabalho, perquirindo-se, mais precisamente, a veracidade da
assertiva de que a tecnologia seria neutra quanto a fins, valores e subjetividade
humana. Esse fenômeno de facilitada adesão social à narrativa da “neutralidade”
tecnológica é apreciado sob o prisma justificador do liberalismo tecnológico.
Na esteira de uma incursão multidisciplinar, entremeando direito e filosofia,
conclui-se que, em maior ou menor grau: i) a tecnologia, em si, pode ser boa ou
má, independentemente de seu uso; ii) a tecnologia, em sua concepção, criação e
aplicação, exprime opções humanas e, logo, veicula normas e valores sociais; iii)
a tecnologia promove interferências na subjetividade humana, passando longe
de ser um item puramente técnico, apartado e distante do homem que o cria e
usa. É dizer: a tecnologia – inclusive as plataformas digitais que intermedeiam
o trabalho humano – não é neutra seja quanto a fins, seja quanto a valores,
seja quanto à subjetividade. Instiga-se, em arremate, pela migração do foco
de reflexão do paradigma da neutralidade para o paradigma da ambivalência.
A pesquisa é qualitativa, eminentemente bibliográfica, tendo sido utilizado o
método hipotético dedutivo.

Palavras-chave: Tecnologia, plataformas digitais de trabalho, neutralidade.

Abstract: Our objective is to investigate the intriguing contrast between ubiquity


and technological neutrality, especially given the contemporary phenomenon
of digital labour platforms. More precisely, we investigate the veracity of the
assertion that technology would be neutral in terms of purposes, values and
human subjectivity. This phenomenon of an easy social adherence to the nar-
rative of technological “neutrality” is then appreciated from the perspective of
technological liberalism. In the wake of a multidisciplinary incursion, interwe-
aving law and philosophy, we conclude that, to a greater or lesser extent: i)
technology itself can be good or bad, regardless of its use; ii) technology, in its
conception, creation and application, expresses human options and, therefore,
conveys social norms and values; iii) technology interferes in human subjectivity,
and is far from being a purely technical item, separate and distant from the
man who creates and uses it. That is to say: technology – including the digital
platforms that mediate human work – is not neutral in terms of ends, values, or
subjectivity. In conclusion, we instigate the migration of the focus of reflection
from a paradigm of neutrality to a paradigm of ambivalence. The research is
qualitative, eminently bibliographical, using the hypothetical deductive method.

Keywords: Technology, digital labour platforms, neutrality.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

1. INTRODUÇÃO

A tecnologia invade cada centímetro de nossas vidas. Estamos mergu-


lhados em uma miríade de artefatos tecnológicos: portas automáticas, carros
inteligentes, computadores pessoais, smartphones, redes de Wi-Fi, alarmes digitais,
utensílios de cozinha, aparelhos de limpeza doméstica, relógios de pulso etc. De
fato, a tecnologia, máxime a digital, permite-nos hoje experimentar atividades
humanas cotidianas de uma maneira inteiramente diferente: comer, conversar,
trabalhar, comprar e até namorar. Verdadeiramente, hoje, a imensa maioria de
nossas interações sociais, laborais, culturais e econômicas tem sido mediadas por
um denso ecossistema de plataformas digitais de abrangência global, alimen-
tado por dados e dirigido por algoritmos, exprimindo uma genuína sociedade
de plataforma3. Parafraseando às avessas o apóstolo Paulo, os seres humanos
contemporâneos bem poderiam até dizer, quanto ao ecossistema digital: “nele
vivemos, e nos movemos, e existimos”4.
Entretanto, nada obstante esse evidente espraiar tecnológico sobre o nosso
cotidiano e todas as vivências novidadeiras que essa realidade tem nos propi-
ciado, a vetusta narrativa da neutralidade tecnológica continua senso cultivada
no senso comum e mesmo em grandes círculos acadêmicos. Esse intrigante
contraste entre ubiquidade e neutralidade tecnológica constitui o tema central
deste ensaio. O tema é de crucial importância, uma vez que estamos todos não
apenas rodeados de artefatos tecnológicos dotados de marcante imprescindi-
bilidade5, senão que também embebidos com uma racionalidade tecnicista,
em que a solução de todo e qualquer “problema” – desde a proteção do meio
ambiente até a sonhada imortalidade – parece perpassar necessariamente pela
instrumentalidade da tecnologia como solução6.
Mais precisamente, nossa proposta consiste em sistematizar alguns argu-
mentos encontrados na literatura de Filosofia da Tecnologia e de Estudos Sociais
de Ciência e Tecnologia (ESCT) quanto à não-neutralidade da tecnologia.
Optamos por agrupar esses argumentos em formato tridimensional: a não-neu-
3 
VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; DE WAAL, Martijn. The platform society. New York: Oxford
University Press, 2018.
4 
BÍBLIA SAGRADA. Novo Testamento, Atos dos Apóstolos, capítulo 17, versículo 28. Bíblia de Estudo
Almeida. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição revista e Atualizada. Barueri/SP: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1999, p. 199.
5 
“Hoje os supostos técnicos da vida superam gravemente os naturais, de sorte tal que materialmente o
homem não pode viver sem a técnica a que chegou” (ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica.
Tradução de Luís Washington Vita. Rio de Janeiro: LIAL, 1963, p. 87).
6 
A respeito, entre outros: ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968;
GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Viçosa: Ultimato,
2019; SCHUURMAN, Derek. Moldando um mundo digital: fé, cultura e tecnologia computacional. Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2019.

<< Retorne ao sumário 138


TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

tralidade da tecnologia quanto a fins (a tecnologia, em si, não seria nem boa
nem má, mas apenas seu uso?), quanto a valores (a tecnologia, em sua criação
e aplicação, estaria isenta de diretrizes axiológicas?) e quanto à subjetividade (a
tecnologia poderia ser usada de forma objetiva, metódica e distanciada, sem
interferências da visão de mundo de seu usuário?).
Decerto, as três formas de colocar a questão são muito próximas: os fins
pressupõem valores e subjetividade; os valores pressupõem fins e subjetividade;
e a subjetividade pressupõe fins e valores. No entanto, realizamos essa divisão
tendo em vista uma sistematização que seja didática em seus propósitos, visando
a melhor ensinar e argumentar sobre a questão para pessoas não familiarizadas
com o assunto. Ainda assim, permanecemos conscientes de que a distribuição
dos argumentos encontrados na literatura nessas três categorias pode não ser
perfeita, ou seja, muitas vezes um argumento ou reflexão pode dizer respeito à
mais de uma categoria ou mesmo colocar a questão de uma forma que se refira
a elas de forma indireta. Reiteramos, porém: a nosso ver, esse alerta não retira
a valia didática desse método triangular de exposição do tema.
Como é de fácil inferência, eis nosso problema de pesquisa: a tecnolo-
gia é verdadeiramente neutra? Nossa hipótese sinaliza no sentido de refutar a
narrativa tradicional da neutralidade tecnológica. O objetivo geral deste artigo
consiste em sistematizar argumentos científicos em torno do que temos por três
dimensões da não-neutralidade tecnológica. Os objetivos específicos dizem com
a exposição detalhada de que a tecnologia não é neutra seja quanto a fins, seja
quanto a valores, seja quanto à subjetividade. As seções que se seguem espelham
exatamente esse arranjo argumentativo tridimensional. A pesquisa é qualitativa,
eminentemente bibliográfica, tendo sido utilizado o método hipotético dedutivo.

2. NÃO-NEUTRALIDADE QUANTO A FINS:


ADAPTAÇÃO REVERSA E MONISMO DA TÉCNICA

O pressuposto de que a tecnologia se apresenta apenas como um meio


que se ajusta para o cumprimento de um fim parece ignorar que o processo
contrário também acontece: os próprios fins podem se ajustar para que os meios
disponíveis sejam possíveis de serem empregados. Langdon Winner identifica
esse processo como adaptação reversa7. A dinâmica desse processo é exposta com
clareza por George Grant, como segue:
“A tecnologia produz, define e restringe uma série de opções
subsequentes que podem ser selecionadas pelo usuário e a

7 
WINNER, Langdon. Autonomous technology: technics-out-of-control as a theme in political thought.
Mit Press, 1978.

<< Retorne ao sumário 139


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

seleção dessas opções depende, por sua vez, de uma aplicação


tecnológica mais ampla. Em resumo, não estamos livres para
usar várias tecnologias da maneira que escolhemos, [pois]
aquele que escolhe é m3oldado pelas escolhas sendo feitas ou
contempladas. A visão moral, e, portanto, também a avaliação
moral, são envolvidas por um conjunto de valores que são
impostos pelo potencial tecnológico ao invés do contrário”8.
Bruno Latour e Madeleine Akrich9 também explicam esse processo apon-
tando para a maneira como uma tecnologia se apresenta como um script de ação,
que é apreendido pelo usuário como uma forma de tradução de ações, tais como:
“para matar, aperte o gatilho da arma” ou “para realizar ligações telefônicas, com-
pre um telefone e uma linha telefônica, aperte os números no teclado, bem como
garanta que a outra pessoa também tenha um número de telefone etc.”. É por
meio dessa tradução de ações que uma finalidade se instancia de forma concreta
dentro do escopo de possibilidades materiais e, dessa forma, pode precisar ser
alterada ou ajustada. O cumprimento da finalidade de realizar um telefonema,
por exemplo, subordina-se à necessidade da presença de uma infraestrutura de
rede telefônica compartilhada, o que também significa, inversamente, que aquele
que quiser realizar um telefonema sem utilizar a infraestrutura de rede telefônica
não pode fazê-lo – ou seja, ele não está livre para escolher o meio que cumprirá
seu fim, mas deve ajustar seu fim ao meio disponível10.
O ajuste do fim ao meio disponível altera radicalmente o significado e
as implicações de uma ação. Como exemplo, suponha um agricultor desejando
cultivar alimento em uma sociedade agrária pré-moderna. Os meios disponíveis
para ele provavelmente incluiriam técnicas locais de cultivo e uma comunidade
de pessoas reunidas em torno de uma prática, sendo esta provavelmente uma
tradição adquirida e passada entre gerações. O ato de cultivar envolveria conexões
fundamentais com a terra, os ritmos e estações, a comunidade11. No entanto, se
8 
GRANT, George. Technology and empire: perspectives on North America. Toronto: Anansi, 1969, p. 42.
9 
AKRICH, Madeleine; LATOUR, Bruno. A summary of a convenient vocabulary for the semiotics of
human and nonhuman assemblies. In: BIJKER, W. & LAW, J. Shaping technology building society studies in
sociotecnical change. Cambridge: MIT Press, 1992, p. 259-264.
10 
Bruno Latour traz os seguintes exemplos práticos: “Pode-se dizer que, em princípio, é possível aterrissar
um Boeing 747 em qualquer lugar; mas tente na prática aterrissar um deles na 5a Avenida, em Nova York.
Pode-se dizer que, em princípio, o telefone nos põe tudo ao alcance da voz. Mas tente falar de San Diego com
alguém no interior do Quênia que, na prática, não tem telefone. Pode-se perfeitamente afirmar que a lei de
Ohm (Resistência = Tensão/Corrente) é universalmente aplicável em princípio; mas tente demonstrá-la na
prática sem voltímetro, wattímetro e amperímetro. [...] Em todos esses experimentos mentais é fácil perceber
a enorme diferença que há entre princípio e prática, e que, quando tudo funciona de acordo com o planejado,
significa que ninguém se afastou nem um centímetro da rede bem guardada e perfeitamente fechada. Sempre
que um fato se confirma e uma máquina funciona, significa que as condições do laboratório ou da fábrica
de certo modo foram expandidas” (LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros
sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000, p. 391-392).
11 
BERRY, Wendell. The unsettling of America: culture and agriculture. Berkeley: Counterpoint, 2015.

<< Retorne ao sumário 140


TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

transportarmos esse mesmo agricultor para o mundo contemporâneo de grandes


áreas de cultivo suportados pelo amplo uso de tecnologias e fertilizantes, veremos
que a técnica tradicional se torna praticamente inviável, devido a dificuldades
econômicas e a própria ausência de uma comunidade rural tradicional, que
provavelmente já teria sido deslocada pela solução tecnológica. Para cumprir a
finalidade do cultivo, portanto, o agricultor deve eliminar certas características
tradicionalmente envolvidas no ato do cultivo, como a conexão maior com a
terra, os ritmos, a natureza e a comunidade, e adicionar novas características,
sobretudo a maximização da eficiência produtiva tendo em vista um maior lucro12.
Jacques Ellul13 também identificou esse processo e lhe deu o nome de
monismo da técnica: a situação na qual a solução tecnológica disponível torna-se
uma forma de reenquadrar o problema original, ignorando-se ou redefinindo-se as
características do problema original que não correspondem à solução tecnológica.
Com o tempo, uma certa solução tecnológica começa a aparecer como o único
meio disponível, aceitável e factível para realizar um determinado fim, excluindo
certos sentidos ou implicações que só poderiam ser garantidos através de outros
meios. Ivan Illich, por sua vez, ressalta como esse processo se aplica a múltiplas
áreas da sociedade moderna: agricultura, educação, transportes, entre outras14.
Na mesma linha, Bruno Latour15 e diversos outros na área de Estudos
Sociais de Ciência e Tecnologia (ESCT) notam como a tecnologia configura
redes sociotécnicas que tornam certos ideais mais viáveis do que outros – sendo,
no caso de Latour, a teoria chamada de Teoria Ator-Rede. Segundo esse pensador,
um ator só pode realizar uma ação significativa dentro de uma rede se é capaz de
“alistar” diversos aliados por meio de tradução de interesses – seja esses aliados
seres humanos ou artefatos materiais. É possível destacar esse processo na própria
área da ciência, mostrando que ela nunca é feita em isolamento. Basta recordar que
ciência bem-sucedida é aquela que soube “jogar” com o “social” a seu favor, ou seja,
“teve meios de ajustar múltiplos interesses sociais e políticos no desenvolvimento
e resolução de problemas cognitivos”, bem como foi “sustentada por uma rede
sociotécnica estável”16. Assim, a própria pesquisa científica também não se revela
12 
Albert Borgmann identifica especificamente este processo como a mudança de um regime de “coisas”
– objetos contextualizados dentro de uma rede de relações naturais e sociais – para um paradigma de “dispo-
sitivos”, que abstraem uma certa característica, experiência ou valor (commodity) de seu ambiente. A respeito,
confira-se: BORGMANN, Albert. Technology and the character of contemporary life: a philosophical inquiry.
University of Chicago Press, 1984.
13 
Ellul mostra como o monismo dá origem ao automatismo da escolha técnica: uma certa tecnologia aparece
como a única e melhor solução disponível a ser tomada, eliminando a liberdade humana no processo. A respeito
dessas reflexões, confira-se: ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
14 
ILLICH, Ivan. Tools for conviviality. Harper and Row, 1973.
15 
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo:
Unesp, 2000.
16 
PREMEBIDA, Adriano; NEVES, Fabrício Monteiro; ALMEIDA, Jalcione. Estudos sociais em ciência
e tecnologia e suas distintas abordagens. Sociologias, v. 13, n. 26, 2011, p. 22-42.

<< Retorne ao sumário 141


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

neutra com relação a fins, mas requer que o sujeito os ajuste de acordo com a
configuração institucional e axiológica da prática científica corrente.
Os conceitos de adaptação reversa e monismo da técnica levantam a ques-
tão da possibilidade de uma verdadeira pluralidade de fins na prática técnica
(e científica). A existência de uma rede sociotécnica estável e concretizada
materialmente faz surgir uma certa permanência ou obstinação (obduracy)
de certos fins e valores17, inviabilizando a expressão de fins alternativos cujas
características não sejam contempladas pelos meios disponíveis. Logo, ao ditar
certos fins, a tecnologia enfatiza determinados escopos. Com isso, naturalmente,
ignora, invisibiliza, ridiculariza ou mesmo destrói outros mais. Perceba-se, como
destaca Alberto Cupani, que, no âmbito da sociedade industrial, o trabalho
produtivo é por demais valorizado, mas a consagração a Deus ou a dedicação
à arte, por exemplo, não o são. Assim, “bastaria essa seletividade para suspeitar
que a tecnologia não é neutra com relação a um dado panorama cultural”18.
Esse problema também se repete no caso da não neutralidade quanto a valores
e quanto ao sujeito, aspectos que serão abordados mais adiante.
Trazendo esses aportes teóricos para o campo das plataformas digitais de
trabalho, vale pontuar, por primeiro, que estamos no âmago de uma chamada
“quarta revolução industrial”, cujos avanços tecnológicos na seara digital têm se
revelado de impactação verdadeiramente disruptiva. Essas tecnologias ultrapassam o
mero processo de digitalização, sendo uma forma muito mais complexa baseada na
combinação de várias tecnologias de forma totalmente novidadeira, caracterizada,
basicamente, pela fusão das esferas física, digital e biológica19. Nessa nova ordem
de coisas, exsurgem as plataformas digitais, poderosos agentes econômicos20 que
viabilizam a conexão de multidões e têm invadido todas as dimensões da vida
humana – do lazer ao comércio, da saúde à política, da alimentação ao transporte,
do amor ao trabalho. No campo laboral, propriamente, as plataformas digitais de
trabalho constituem ferramentas tecnológicas mediadoras do trabalho humano à
base do processamento de enormes volumes de dados, meticulosas programações
algorítmicas e acesso mediante consentimento por simples adesão21. Sua dinâmica

17 
Vide: DOTSON, Taylor. Technically together: reconstructing community in a networked world. MIT
Press, 2017, capítulo 7; MILLER, Boaz. Is Technology Value-Neutral? Science, Technology, & Human Values,
v. 46, n. 1, 2021, p. 53-80.
18 
CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2017, p. 189.
19 
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 13 e 23.
20 
Quanto à dinâmica econômica das plataformas digitais, confira-se: SRNICEK, Nick. Platform capitalism.
Cambridge: Polity Press, 2017; ZUBOFF, Shoshana. The age of the surveillance capitalism: the fight for a
human future at the new frontier of power. New York: PublicAffairs, 2019.
21 
A respeito, vide, entre outros: VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; DE WAAL, Martijn. The platform
society. New York: Oxford University Press, 2018, p. 04; DE STEFANO, Valerio. The rise of the — just-in-
-time workforcel: on-demand work, crowdwork, and labor protection in the gig-economy. Comparative Labor
Law & Policy Journal, v. 37, n. 3, 2016, p. 471-504; MARANHÃO, Ney; SAVINO, Thiago Amaral Costa.

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TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

de funcionamento, pouquíssimo transparente e não raro garroteando a liberdade22,


tem suscitado enormes desafios à pauta dos direitos humanos, inclusive do trabalho
decente23. Daí se afigurar inteiramente adequado que o contraste entre ubiquidade
e neutralidade tecnológica também atinja as lindes da plataformização do trabalho.
A propósito, nesse particular, entre inúmeros outros fatores, tem chamado a
atenção dos estudiosos a imensa dificuldade na capacidade de coalizão da força de
trabalho, sobretudo para os chamados clowdworkers – trabalhadores que realizam
suas atividades inteiramente no regime telepresencial, a partir da “nuvem”, na
medida em que intermediados por plataformas digitais unicamente baseadas na
internet (Amazon Machanical Turk, Microtask etc.) –, haja vista a brutal dispersão
física entre seus exercentes, distribuídos que estão por todo o globo terrestre24. Para
além desse limitador, também há queixas no sentido de que o próprio design das
plataformas digitais de trabalho estaria sendo intencionalmente elaborado com
o propósito de dificultar ou até mesmo impedir qualquer intento de organização
coletiva por parte dos trabalhadores. Ou seja, a própria concepção e configura-
ção técnica da plataforma digital serviria para imprimir máxima atomização dos
prestadores de serviço, inibindo na fonte potenciais mobilizações grupais25.
Semelhantemente, tem-se observado que, para além da existência de uma
pluralidade de plataformas digitais de trabalho, cada qual também tem estabele-
cido os contornos técnicos de seu próprio instrumento tecnológico, cujo acesso,
pois, sempre implica sujeição total do prestador de serviço ao ecossistema virtual,
com expressiva restrição de sua liberdade e autonomia26. A possibilidade de
qualquer ação, bem assim a forma de sua execução, são rigorosa e unilateralmente
ditadas pela plataforma27, restringindo em demasia ações e desejos – como, por
exemplo, possíveis diálogos com o cliente ou mesmo processamento de queixas

Tecnologia e disrupção: o mundo do trabalho no contexto da quarta revolução industrial. In: LEAL, Carla
Reita Faria; MARANHÃO, Ney e PADILHA, Norma Sueli. (Orgs). Sociedade, tecnologia e meio ambiente
do trabalho: discussões contemporâneas. Mato Grosso: EdUFMT, 2021.
22 
A respeito da intensa opacidade algorítmica que marca o funcionamento das plataformas digitais, confi-
ra-se, entre outros: PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control Money and
information. Harvard University Press, 2015.
23 
ORGANIZACIÓN INTERNATIONAL DEL TRABAJO – OIT. Las plataformas digitales y el futuro
del trabajo: cómo fomentar el trabajo decente en el mundo digital. Organización Internacional del Trabajo
– Ginebra: OIT, 2019.
24 
INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION – ILO. World employment and social outlook 2021:
The role of digital labour platforms in transforming the world of work. International Labour Office – Geneva:
ILO, 2021, p. 214.
25 
WOODCOCK, Jamie; GRAHAM, Mark. The gig economy: a critical introduction. Cambridge: Polity
Press, 2020, p. 136.
26 
PRASSL, Jeremias. Human as a service: the promise and perils of work in the gig economy. New York:
Oxford University Press, 2018, p. 54.
27 
CAÑIGUERAL, Albert. El trabajo ya no es lo que era: nuevas formas de trabajar, otras maneras de vivir.
Barcelona: Conecta, 2020, p. 63.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

e reclamações, escopos que só poderão ser realizados se, na forma e nos limites
em que permitidos by design pela tecnologia. Portanto, a tecnologia, em si, pode,
sim, ser considerada boa ou má, justa ou injusta, independentemente de seu uso.
Bem se vê, nesses singelos exemplos, como a tecnologia não é neutra
quanto a fins, especialmente em relações jurídicas travadas no bojo do capi-
talismo de plataforma28, porquanto detentora do poderoso condão de inibir
condutas, influenciar propósitos e frustrar intenções – invertendo, não raro, a
regra ordinária de que meios devem se ajustar a fins.

3. NÃO-NEUTRALIDADE QUANTO A VALORES:


POLÍTICA DOS ARTEFATOS E REDES
SOCIOTÉCNICAS

A percepção de que artefatos materiais afetam finalidades também permite


afirmar a presença de certos valores nele embutidos. Embora se questione a
própria ação de atribuir valores a coisas, Miller29 oferece uma arguta razão para
tanto: objetos apresentam uma certa “permanência”, o que reforça os valores que
foram incorporados por meio do processo de design. Dois exemplos costumam
ser apresentados: a história da bicicleta apresentada por Pinch e Bijker30 para
apoiar a ideia de “moldagem social da tecnologia”; o exemplo de Winner31 sobre
o projeto dos viadutos baixos em Long Island, Nova York.
Foquemos, com vagar, neste segundo exemplo. Segundo a descrição de
Winner, tais viadutos “foram deliberadamente projetados e construídos desta forma
por alguém que queria obter um particular efeito social”. É que a baixa altura dos
viadutos no sistema rodoviário do lugar impossibilitava o trânsito de ônibus pelas
imediações. Dessa maneira, para as circunstâncias do lugar e da época, levando em
conta que ônibus eram conduções tipicamente de negros, apenas os brancos de
classe alta, com automóveis, poderiam circular no local, um lugar praiano. Winner,
assim, conclui que “artefatos têm política”, uma vez que política pode ser definida
como a resposta à questão de “quem recebe o que, quando e como”32.
Sem dúvida, o projeto dos viadutos baixos em Long Island foi um caso
obviamente pensado, intencional, que incorporou princípios racistas e segre-
gacionistas nas decisões de projeto. Miller33, porém, ressalta que o fato de um

28 
SRNICEK, Nick. Platform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
29 
MILLER, Boaz. Is Technology Value-Neutral? Science, Technology, & Human Values, v. 46, n. 1, 2021, p. 53-80.
30 
BIJKER, Wiebe E. Of bicycles, bakelites, and bulbs: toward a theory of sociotechnical change. MIT press, 1997.
31 
WINNER, Langdon. Do artifacts have politics? Daedalus, 1980, p. 121-136.
32 
DOTSON, Taylor. Technically together: reconstructing community in a networked world. MIT Press,
2017, p. 18.
33 
MILLER, Boaz. Is Technology Value-Neutral? Science, Technology, & Human Values, v. 46, n. 1, 2021, p. 53-80.

<< Retorne ao sumário 144


TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

projetista não ser intencional quanto à incorporação de valores em seu projeto


não prova que este mesmo projeto não possa conter valores. Basta perceber a
mediação tecnológica no próprio sujeito que idealiza e implementa um projeto
(conforme a tese da não-neutralidade quanto ao sujeito, logo abaixo). Consi-
derações subjetivas internalizadas, implícitas e não conscientes, ou mesmo as
possibilidades materiais dispostas pela rede sociotécnica – ou seja, os diferentes
atores sociais, técnicos, econômicos e políticos interligados que possibilitam a
concretização da tecnologia – reforçam a adoção de certos valores nas decisões de
projeto tecnológico34. Assim, seria importante buscar métodos para tornar esses
valores mais explícitos, permitindo uma abordagem mais informada e crítica.
Autores das áreas de filosofia da tecnologia e Estudos Sociais de Ciência
e Tecnologia (ESCT) ligados a abordagens da teoria crítica são as principais
vozes explorando as formas como certos valores sociais são incorporados em
tecnologias, refletindo formas específicas de se falar sobre ou avaliar um projeto.
A ilusão da universalidade de uma tecnologia apenas reflete o fechamento de
um processo de monismo da técnica ( Jacques Ellul), olvidando que, muitas
vezes, adjetivos como “bom”, “desejável”, “eficiente”, “aceitável” ou “proveitoso”,
normalmente associados, estão sempre relacionados com certas concepções de
valor, não raro ligadas a grupos que detêm o “poder”.
Isso, aliás, também nos permite tratar uma das formas populares como a
tese da neutralidade é colocada: “não é boa e nem ruim”. Porém, se atentarmos
para o papel dos atores e valores sociais na constituição de um artefato ou sistema
tecnológico, uma visão mais geral diria que a tecnologia se apresenta como ambígua
ou ambivalente: boa e ruim, ao mesmo tempo. Isso porque, observando-a com
relação a certos atores ou valores, ela pode se aparecer como boa; por outro lado,
com relação a outros, ela pode aparecer como ruim. O erro presente nesse tipo de
tese de neutralidade encontra-se na ideia de que se pode separar completamente
um uso bom de um uso ruim sem qualquer referência a um contexto específico.
Na área da ciência, também vale ressaltar a obra de Hugh Lacey35, ao
demonstrar como determinadas estratégias de restrição e seleção de teorias,
que incorporam um determinado valor social de controle da natureza, deter-
minam o que conta como teoria científica válida a ser perseguida, a partir de
estratégias de quantificação e abstração contextual. Lacey levanta a proposta
de um pluralismo metodológico na ciência que permita a manifestação de
outros valores sociais na prática científica. Analogamente, também poderíamos
perquirir acerca da possibilidade de um pluralismo tecnológico ou um plura-

34 
A responsabilidade de um projetista pela incorporação consciente ou inconsciente de valores em um
projeto é assunto separado da ética e não será abordado aqui.
35 
LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Editora 34, 2008.

<< Retorne ao sumário 145


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

lismo material, que permita a concretização de diferentes fins, subjetividades


e valores. Como já discutido, nesse ponto sempre nos confronta o problema
da permanência ou obstinação material – o fechamento da rede sociotécnica
que inviabiliza a sustentação de alternativas marginais. Autores como Yuk
Hui36 têm tentado levar essa discussão adiante ao propor o que ele chama
de tecnodiversidade, focalizando em deliberações mais locais para o projeto e
produção tecnológica.
Tem-se, desse modo, que plataformas digitais não são neutras ou cons-
tructos livre de valores; antes, pelo contrário, transportam normas e valores
específicos inscritos nas suas próprias arquiteturas técnicas, sendo que essas
diretrizes axiológicas, como é de natural inferência, podem homenagear ou
arrostar valores encravados em estruturas sociais37.Por isso, a íntima relação
entre artefatos tecnológicos (máxime os da sociedade digital) e valores é tão
evidente que já não passa desapercebida pelo Estado-Legislador. Deveras, a
título ilustrativo, foi publicada em Portugal a Lei nº 27, de 17 de maio de 2021,
denominada Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Logo de
início, deixa-se claro que a República Portuguesa participa no processo mundial
de transformação da Internet em um “instrumento de conquista de liberdade,
igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício
dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital”
(art. 2º, 1), frisando também que “as normas que na ordem jurídica portuguesa
consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis
no ciberespaço” (art. 2º, 2).
Para além dessa relevantíssima afirmação de que as recentes inovações
tecnológicas digitais haverão de ser dirigidas em respeito à pauta dos direitos
humanos, de maneira a não se poder aceitar que o ambiente digital seja “terra sem
lei”, importa conferir destaque, para os específicos fins deste texto, o teor de seu
art. 10, que passa a consagrar o chamado “direito à neutralidade da Internet”, nos
seguintes termos: “Todos têm direito a que os conteúdos transmitidos e recebidos
em ambiente digital não sejam sujeitos a discriminação, restrição ou interferência
em relação ao remetente, ao destinatário, ao tipo ou conteúdo da informação, ao
dispositivo ou aplicações utilizados, ou, em geral, a escolhas legítimas das pessoas”.
Como se vê, há um reconhecimento geral no sentido de que a tecnologia,
máxime a tecnologia do século XXI, alicerçada em inteligência artificial, tem se
prestado a concretizar valores não condizentes com clássicas diretrizes axiológicas
firmadas pela comunidade internacional, em especial aquelas que dizem com

36 
HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
37 
VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; DE WAAL, Martijn. The platform society. New York: Oxford
University Press, 2018, p. 03.

<< Retorne ao sumário 146


TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

os direitos humanos. A própria necessidade de se publicar explícitas regulações


estatais reafirmando a necessidade de adstrição à pauta jusfundamental de valores
já bem demonstra o quanto se tem percebido que a tecnologia levada a efeito
hodiernamente tem dado azo a cenários consideravelmente hostis à dignidade
humana e ao bem comum.
Justamente por isso, em termos puramente axiológicos, mesmo afirman-
do-se em lei a existência de um denominado direito à “neutralidade” tecnológica,
o que se intenta consagrar mesmo, em essência, é uma patente não-neutralidade,
no exato sentido em que, explicitamente, propaga como socialmente ideal uma
concepção de tecnologia profundamente comprometida com um determinado
leque de valores – no caso português, basicamente, aqueles que prestigiam a
“liberdade, igualdade e justiça social”, de modo a fazer do ciberespaço um “espaço
de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos” (art. 2º). Logo, o
que se deseja não é propriamente uma tecnologia isenta de valores; antes, pelo
contrário, uma igualmente prenhe deles – mas daqueles maximamente condu-
centes com a dignidade humana, equidade e democracia.
A tese da neutralidade quanto a valores, portanto, não se sustenta, na
medida em que artefatos tecnológicos, em sua concepção, criação e aplicação,
sempre se põem a veicular, sim, explícita ou implicitamente, diretrizes axiológicas.

4. NÃO-NEUTRALIDADE QUANTO À SUBJETIVIDADE:


MEDIAÇÃO TECNOLÓGICA E CARÁTER HUMANO

A partir da teoria “ator-rede” de Bruno Latour, ressalta-se também que, no


processo de alistar aliados e traduzir interesses dentro de uma rede sociotécnica,
não apenas as finalidades são ajustadas aos meios disponíveis, mas também o pró-
prio ator também é modificado, tornando-se um “ator-rede”, ou, também, como
comumente denominado, uma composição ou assemblage38. Como argumenta
Verbeek: “tecnologias não são simplesmente usadas por seres humanos – elas
ajudam a constituir seres humanos”39. Com isso, pode-se questionar visões que
tratam consciência e a intencionalidade do sujeito como completamente sepa-
radas e distanciadas do ambiente material. Tais questionamentos já começaram
a ser feitos em vertentes fenomenológicas, como em Maurice Merleau-Ponty, e
são explorados mais completamente na área da tecnologia pelos filósofos Don
Ihde e Peter-Paul Verbeek – sendo o primeiro responsável pela inauguração do
que ele mesmo intitula de pós-fenomenologia40.
38 
MARCUS, George E.; SAKA, Erkan. Assemblage. Theory, culture & society. v. 23, n. 2-3, 2006, p. 101-106.
39 
VERBEEK, Peter-Paul. Moralizing technology: understanding and designing the morality of things.
University of Chicago Press, 2011, p. 46.
40 
IHDE, Don. Postphenomenology: essays in the postmodern context. Northwestern University Press, 1995.

<< Retorne ao sumário 147


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Ihde é conhecido por realizar uma investigação sobre as formas como a


tecnologia pode alterar a intencionalidade humana ao mediar sua relação com
o mundo. O autor identifica quatro formas de relações de mediação: i) relação
de corporificação (exemplificada pelo uso de um martelo ou a direção de um
carro); ii) relação hermenêutica (exemplificada pela leitura de um termôme-
tro); iii) relação de alteridade (exemplificada pelo uso de uma interface gráfica
computacional); iv) e relação de pano de fundo (background, exemplificada pela
luz de uma lâmpada). Cada tipo de relação, como argumenta Ihde, alteraria a
intencionalidade humana de forma fundamental, na medida em que moldando
nossas formas de agir e perceber o mundo41.
Peter-Paul Verbeek, por sua vez, expande a obra de Ihde na esteira de uma
teoria da mediação tecnológica, a permitir investigar como a própria moralidade
é mediada por artefatos e sistemas tecnológicos; ou seja, uma “moralidade das
coisas”. Sua crítica se dirige a visões que tentam separar o mundo entre uma
consciência subjetiva “interior” e um mundo de objetos “mudos” do lado de
fora42. Segundo esse importante pensador, a ética, à luz desse tipo de abordagem,
voltar-se-ia apenas para perguntas de “como eu deveria agir”, “uma questão
exclusiva da res cogitans, que julga e calcula em que medida suas intervenções
no mundo exterior são moralmente corretas, sem que este mundo tenha qual-
quer relevância moral em si mesmo”43. Sua proposta, por contraste, é alargar as
considerações morais para considerar que “o meio da ética não inclui apenas a
linguagem dos sujeitos, mas também a materialidade dos objetos”44, o que inclui
também novas abordagens para a prática da ética: não apenas discursos sobre
certo e errado, mas também a ética no projeto de infraestruturas materiais que
proveem uma base para atitudes que nos levam ou nos afastam de uma boa
vida45. Considerações semelhantes são também alinhavadas por Bruno Latour46.

41 
IHDE, Don. Technics and praxis: a philosophy of technology. Springer Science & Business Media, 2012.
42 
VERBEEK, Peter-Paul. Moralizing technology: understanding and designing the morality of things.
University of Chicago Press, 2011, p. 30.
43 
VERBEEK, Peter-Paul. Moralizing technology: understanding and designing the morality of things.
University of Chicago Press, 2011, p. 30.
44 
VERBEEK, Peter-Paul. Moralizing technology: understanding and designing the morality of things.
University of Chicago Press, 2011, p. 40.
45 
Como nota Verbeek, essa constatação também coloca a questão da moralidade mais próxima das vertentes
de ética de virtudes, como a aristotélica, que não se preocupa primariamente com o conteúdo do certo e do
errado, mas com a boa vida e como as instituições sociais e políticas podem ser moldadas para levar a ela.
Nesse particular, confira-se: VERBEEK, Peter-Paul. Moralizing technology: understanding and designing the
morality of things. University of Chicago Press, 2011, p. 31; VALLOR, Shannon. Technology and the virtues:
A philosophical guide to a future worth wanting. Oxford University Press, 2016, cap. 2.
46 
Retomando o assunto da divisão entre fins e meios, Latour lamenta “uma divisão arcaica entre mora-
listas tomando conta dos fins e os tecnologistas controlando os meios”, algo que precisaria ser superado.
Confira-se: LATOUR, Bruno; VENN, Couze. Morality and technology. Theory, culture & society, v. 19, n.
5-6, 2002, p. 247-260. Segundo ele, o surgimento da modernidade é marcado por uma “estranha invenção

<< Retorne ao sumário 148


TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

Um dos exemplos mais apresentados nessa discussão é o das armas de fogo.


É comum ouvir o argumento de que “armas não matam pessoas; pessoas matam
pessoas”. Como se vê, o argumento situa toda a questão da ética no sujeito e
não permite pensar como a própria presença de uma arma reconfigura o sujeito.
Noutras palavras: uma pessoa segurando um revólver é muito diferente de uma
pessoa segurando qualquer outra coisa, como uma faca ou um taco de beisebol.
Uma arma de fogo configura o agente como atirador e altera completamente a
forma e as implicações de sua agência47. Semelhantemente, também é comum
ouvir argumentos de que o uso de uma determinada mídia de entretenimento
é uma questão exclusiva do sujeito que a utiliza: “o problema não está no pro-
grama de TV, no filme ou no jogo eletrônico, mas na pessoa que o assiste”. No
entanto, a constatação também despreza as formas como determinadas mídias
podem influenciar e induzir hábitos e percepções de um sujeito. Como asserem
Reijers e Coeckelbergh48, in verbis:
“Em nossa experiência e no que fazemos, as tecnologias
co-atuam em nossas escolhas e práticas cotidianas. [...] As
tecnologias nos persuadem, nos ensinam, nos convidam,
nos inibem, nos ferem e, assim, passiva ou ativamente,
contribuem para as escolhas éticas que fazemos e as ações
em que nos engajamos. Compreender essa dinâmica nos
ajudará a fazer, usar e governar tecnologias de formas que
conduzam à boa vida. Sem compreender essa dinâmica,
parecemos estar perdidos”.
Pode-se ressaltar uma ampla gama de literatura estudando a tecnologia
em seus efeitos no sujeito, incluindo questões de formação de virtude49 de
caráter50, que ocupam uma grande parte das discussões clássicas sobre ética.
Nicholas Carr51, por exemplo, nota as formas como a internet têm afetado

do mundo exterior”, de tal maneira que “enquanto o humanismo for construído por meio de um contraste
com o objeto (...) nem o humano e nem o não-humano podem ser compreendidos” (LATOUR, Bruno.
Nunca fomos modernos. Editora Unesp, 2009, p. 3). Por fim, ele também reclama de uma percepção falsa de
que a moralidade parece ausente na sociedade tecnológica atual – o que acontece, na verdade, é que ela está
plenamente incorporada no ambiente material, direcionando nossa ação e percepção. Vide: LATOUR, Bruno.
Where Are the Missing Masses? The Sociology of a Few Mundane Artifacts. Shaping technology/building
society: studies in sociotechnical change, 1992, p. 225-228.
47 
MILLER, Boaz. Is Technology Value-Neutral? Science, Technology, & Human Values, v. 46, n. 1, 2021, p. 53-80.
48 
REIJERS, Wessel; COECKELBERGH, Mark. Narrative and technology ethics. Palgrave MacMillan,
2020, p. 3.
49 
VALLOR, Shannon. Technology and the virtues: a philosophical guide to a future worth wanting. Oxford
University Press, 2016.
50 
MITCHAM, Carl. On Character and Technology. In: HIGGS, Eric; LIGHT, Andrew; STRONG,
David. Technology and the good life? University of Chicago Press, 2010. p. 126-148.
51 
CARR, Nicholas. Geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de
Janeiro: Agir, 2019.

<< Retorne ao sumário 149


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

nossas capacidades cognitivas; Sherry Turkle52, por sua vez, nota as mudanças
nas formas de se relacionar com outras pessoas. Neil Postman53 expandindo
também a obra de Marshall McLuhan e configurando a área de estudos da mídia,
também é conhecido por explorar as formas nas quais o meio de comunicação
altera radicalmente o caráter – “o meio é a mensagem”. James K. A. Smith54,
partindo de uma abordagem teológica e agostiniana, observa como tecnologias
podem configurar “liturgias culturais”, moldando hábitos, imaginações e desejos
(ou “amores”) por meio de estruturas narrativas (tomando como base a obra de
Paul Ricoeur55) e formas de existência corporal (tomando como base as obras
de Merleau-Ponty e Pierre Bourdieu). Por fim, a obra de Albert Borgmann56 é
reconhecida como essencialmente um esforço de investigar como a tecnologia
cumpre um papel na constituição e busca da boa vida, explorando a questão do
engajamento humano com “coisas e práticas focais” e sua ameaça por meio de
um paradigma de dispositivo57.
Decididamente, tecnologia não é neutra também quanto à subjetividade
humana. Imagine-se a seguinte cena (não raro reverberada em processos traba-
lhistas): com revólver sobre a mesa, gerente de empresa faz pagamento salarial e
exige assinatura de recibo cujo valor impresso no documento não condiz com o
verdadeiramente pago. Um a um, silenciosamente, os trabalhadores recebem o
dinheiro, contam as cédulas e assinam o documento, agradecendo em seguida.
Ora, entre tantos elementos materiais e imateriais que compõem essa cena, sem
dúvida o mais insinuante foi exatamente o revólver, artefato tecnológico que, ao
fim e ao cabo, fez toda a diferença nas ações e reações de cada qual: seja para a
ousadia do gerente, seja para a passividade dos trabalhadores.
No tocante às plataformas digitais, essa dinâmica de influência tecnoló-
gica na subjetividade humana não se dá de modo diferente. Em verdade, vários
estudos têm apontado a enorme capacidade da tecnologia digital em influir e
moldar comportamentos e percepções de mundo. Luciano Floridi, por exemplo,
explana sobre as três eras do desenvolvimento humano: pré-história (sem tec-
nologia da informação e comunicação), história (com tecnologia da informação
52 
TURKLE, Sherry. Life on the screen: identity in the age of the Internet. Simon and Schuster, 2011.
53 
POSTMAN, Neil. Amusing ourselves to death: Public discourse in the age of show business. Penguin, 2006.
54 
SMITH, James K. A. Imaginando o reino: a dinâmica do culto. São Paulo: Vida Nova, 2019.
55 
Reijers e Coeckelbergh também se baseiam na obra de Ricoeur para propor uma ética narrativa para a
tecnologia. Esta, conforme argumentam, expande a teoria da mediação tecnológica de Peter-Paul Verbeek e
cobre alguns aspectos ignorados inicialmente, como os elementos temporais e sociais que estão envolvidos
na forma de uma prática tecnológica. Vide: REIJERS, Wessel; COECKELBERGH, Mark. Narrative and
technology ethics. Palgrave MacMillan, 2020.
56 
BORGMANN, Albert. Technology and the character of contemporary life: a philosophical inquiry. University
of Chicago Press, 1984.
57 
STRONG, David; HIGGS, Eric. Borgmann’s Philosophy of Technology. In: HIGGS, Eric; LIGHT,
Andrew; STRONG, David. Technology and the good life? University of Chicago Press, 2010, p. 17-37.

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TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

e comunicação) e hiperhistória (dependentes da tecnologia da informação e


comunicação). Para o pensador italiano, em tempos hodiernos, a tecnologia, mais
que um simples ferramental técnico a nosso dispor, tem se apresentado como
uma força modeladora de nossas próprias identidades58. Pura expressão, em
verdade, de um paradigma cultural tecnicista que já há algum tempo se afirma
como dominante em nosso meio, dentro do qual tudo se encaixa e funciona e
crivando de inválido tudo o que lhe seja externo59.
Em termos gerais, como já vimos, as plataformas digitais perpetram
controle não conforme as tradicionais categorias do permitido/não permitido
ou do dever ser, mas pela limitação direta da capacidade factual de seus usuá-
rios, já por força do próprio design tecnológico, influenciando, decisivamente,
assim, quando, como e em que limites os sujeitos podem se comportar60. Não
à toa, vem ganhando força na regulação estatal de proteção de dados, por
exemplo, a ideia de controle tecnológico by design, ou seja, desde a concep-
ção. A propósito, dispõe mesmo a legislação brasileira que cabe aos agentes
de tratamento de dados o dever de adotar medidas de segurança, técnicas e
administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados
e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comuni-
cação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito, sendo que
essas medidas deverão ser observadas desde a fase de concepção do produto
ou do serviço até a sua execução (Lei Geral de Proteção de Dados – Lei nº
13.709/2018, art. 46, § 2º).
Outra demonstração de que a tecnologia não é neutra também na pers-
pectiva da subjetividade pode ser percebida em alguns aspectos da chamada
gestão algorítmica do trabalho. Deveras, a possibilidade de uma governança
baseada em dados, com processos decisórios artificiais, porquanto baseados
inteiramente em programações algorítmicas, tem potencializado uma prática
laboral fortemente indutora de determinados vieses comportamentais. Recor-
de-se, a título ilustrativo, de programações técnicas de inteligência artificial que

58 
FLORIDI, Luciano. The 4th revolution: how the infosphere is reshaping human reality. Oxford University
Press, 2014, p. 03 e 59.
59 
BORGES-DUARTE, Irene. Martin Heidegger: a técnica como Ge-stell. De facto antropológico a
paradigma epocal da modernidade tardia. In: OLIVEIRA, Jelson (org.). Filosofia da tecnologia: seus autores
e seus problemas. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020, p. 166.
60 
HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria geral do direito digital: transformação digital: desafios para o
direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 39 e 70. De fato, como pontua Renan Bernardi Kalil, in verbis: “O
algoritmo é considerado invisível, apesar de integrado em diversos aspectos do cotidiano das pessoas, torna-se
uma caixa preta e é afastado do escrutínio do público, passando a ser encarado como um elemento natural.
Contudo, não há neutralidade no gerenciamento de informações que dependem de escolhas procedimentais
de uma máquina programada por pessoas para automatizar julgamentos que emulam seres humanos por
aproximação” (KALIL, Renan Bernardi. A regulação do trabalho via plataformas digitais. São Paulo: Blucher,
2020, p. 88).

<< Retorne ao sumário 151


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

induzem motoristas de UBER a manterem longas jornadas de conexão junto


à plataforma ou repensarem recusa a chamadas ou mesmo formulações de
queixas e reclamações oficiais, haja vista a experiência de, nessas circunstâncias,
costumeiramente advirem restrições ou até penalizações processadas e aplicadas
pela inteligência artificial que comanda tal prática laboral61.
Infere-se, pois, dessas situações, a exemplo do que acontece com o fenô-
meno da massiva imersão em redes sociais, que a tecnologia – especialmente a
digital – não apenas concretiza valores e impõe fins, senão que também tem o
condão de influir na própria percepção pessoal da realidade e de si próprio, por
insuflar certos estados de ânimo e hábitos que, ao fim e ao cabo, bem podem
afetar e modelar a própria subjetividade humana.

5. SOBRE A “PLAUSIBILIDADE” DA IDEIA DE


“NEUTRALIDADE” TECNOLÓGICA. MAIS
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES À LUZ DO
LIBERALISMO TECNOLÓGICO

Neste momento, convém perquirir o motivo pelo qual a percepção de


neutralidade da tecnologia afigura-se tão enraizada no imaginário popular e
mesmo na prática de alguns círculos acadêmicos. Sem dúvida, há várias formas
de se responder a esta questão. No entanto, talvez a grande maioria dos autores
concorde que a tese decorre de ideais modernos e liberais que começaram a se
desenvolver por volta dos séculos XVI e XVII.
Matthew Crawford62, por exemplo, reproduz a tese de que os grandes
conflitos religiosos em torno da Reforma Protestante/Contrarreforma confe-
riram centralidade à temática da vida em comum em uma sociedade plural,
principalmente para figuras como Thomas Hobbes. Disso decorre um expressivo
esforço intelectivo com vistas a se erigir sistemas de ética sem apelos a valores
transcendentais ou religiosos, como em Kant e Hume – sistemas que, segundo
Alasdair MacIntyre, não obtiveram êxito nesse propósito63.

61 
PRASSL, Jeremias. Humans as a service: the promise and perils of work in the gig economy. Oxford
University Press, 2018, p. 56-57.
62 
CRAWFORD, Matthew B. The world beyond your head: on becoming an individual in an age of distraction.
Farrar, Straus and Giroux, 2015.
63 
De fato, segundo esse filósofo, o resultado desse esforço culminou na filosofia emotivista, pregando que
juízos morais e de valor são nada senão expressões de preferências ou manifestações de atitude ou sentimento.
Também Herman Dooyeweerd, prolífico jusfilósofo holandês do século XX, lançou duras e bem fundamentadas
críticas sobre a alegada autonomia do pensamento filosófico. A respeito, vide, entre outros títulos do autor:
DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental: as opções pagã, secular e cristã. São Paulo: Cultura
Cristã, 2015; DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa
autonomia do pensamento filosófico. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

<< Retorne ao sumário 152


TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

Assim, a partir de ideais de tolerância e ceticismo quanto a fins intrínsecos


à vida humana (decorrentes também da rejeição do paradigma aristotélico nas
áreas da ciência moderna), tem início uma concepção liberal de sociedade que
atribui completamente ao indivíduo a questão dos fins e valores. O coletivo,
nessa concepção, estaria encarregado apenas de fornecer os fatos e os meios a
partir dos quais um indivíduo poderia constituir sua própria felicidade e narra-
tiva individual. Nesse cenário, a ideia de neutralidade tecnológica encaixa como
uma luva, exprimindo simples reflexo cultural de um imaginário humano que
vê o ferramental tecnológico como afiado instrumento para a persecução da
miríade de concepções de vida boa igualmente aceitas no bojo social. Por isso,
de acordo com Michael Sacasas, mais facilmente nos convencemos da ideia de
neutralidade da tecnologia, vez que “ela promete uma fuga da confusão de viver
com estruturas éticas concorrentes e relatos do florescimento humano”64. Afinal,
a filosofia liberal que subjaz ao estilo de vida contemporâneo assume:
“que a boa vida é puramente uma questão de responsabi-
lidade individual. Ou seja, se houver um problema com a
tecnologia e a busca da felicidade ou florescimento humano,
é simplesmente que o espaço neutro necessário para os indi-
víduos explorarem e construírem pessoalmente a boa vida
tecnológica para si mesmos pode estar ameaçado por algo
como má conduta governamental ou desigualdade de renda”65.
A tecnologia aparece, desse modo, como solução capaz de oferecer os
meios neutros a partir dos quais os indivíduos realizam seus fins. Isso se con-
cretiza, por exemplo, na instituição de um paradigma de mercado para a solução
de problemas sociais, ou seja, a ideia de que solucionar problemas significa
idealizar um novo produto ou serviço a ser disponibilizado em um reservatório
neutro de opções universais e amplamente disponíveis, a serem selecionadas e
adotadas pelos indivíduos conforme suas próprias preferências e necessidades
pessoais. Como destaca Alasdair MacIntyre, ao tratar da figura do gestor “eti-
camente neutro”, in verbis:
“Os próprios administradores e grande parte dos escritores
sobre administração concebem a si mesmos como persona-
gens moralmente neutros cujas habilidades os capacitam a
descobrir meios de alcançar qualquer que seja o fim pro-
posto. Se dado administrador é efetivo ou não é, na visão
dominante, é uma questão bastante distinta daquela sobre
64 
SACASAS, L. M. Sacasas. One Does Not Simply Add Ethics to Technology. The Frailest Thing, 2017.
Disponível em: <https://thefrailestthing.com/2017/11/06/one-does-not-simply-add-ethics-to-technology>
Acesso em: 30.ago.2021.
65 
DOTSON, Taylor. Technology, choice and the good life: Questioning technological liberalism. Technology
in Society, v. 34, n. 4, p. 326-336, 2012.

<< Retorne ao sumário 153


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

a moralidade dos fins aos quais essa efetividade serve ou


deixa de servir. Não obstante, existem fortes fundamentos
para se rejeitar a afirmação de que a efetividade é um valor
moralmente neutro”66.
O mesmo comentário de MacIntyre também parece se aplicar a concep-
ções “modestas” defendidas por alguns engenheiros e projetistas, que tentam
abstrair a responsabilidade moral de suas atividades. É o que se vê, por exemplo,
em Caroline Whitbeck, ao aduzir que “engenheiros, por outro lado, são solu-
cionadores de problemas e designers, não juízes. Estamos mais confortáveis em
construir uma solução do que em julgar”67. A própria definição do processo de
projeto como um simples processo neutro de converter requisitos de um cliente
em especificações concretas parece supor essa neutralidade ilusória68. No entanto,
como coloca Winner69, seriam sempre os ideais de bem humano redutíveis e
conciliáveis com ideais de produção? É possível, ou mesmo desejável, ser neutro
quanto a preferências pessoais de clientes?
Ao que nos parece, o problema central do liberalismo tecnológico é que,
por ignorar o caráter comunitário do bem humano, resulta em ilusão, susten-
tando uma falsa modéstia com relação a fins, valores e subjetividades. Ledo
engano. O liberalismo realiza um conjunto de finalidades muito específicas para
a natureza humana, a exemplo da liberdade (negativa), desengajamento, ausência
de sofrimento (a ser buscada a qualquer custo) e flexibilidade nos vínculos70.
Reverbera, também, um conjunto de valores muito específico, podendo-se citar
o rigoroso controle da natureza71 por meios que se apresentem sempre dispo-
níveis, transparentes, eficientes e rápidos72. O liberalismo, por fim, preconiza
uma visão muito clara e específica de subjetividade humana: um sujeito atomi-
zado, autônomo, livre, autêntico e autodeterminado, sem o horizonte de uma

66 
MACINTYRE, Alasdair. After virtue. Gerald Duckworth & co. Ltd., 1981, p. 74. Jaques Ellul, também
comentando sobre esses casos, ressalta o ideal de amoralidade da técnica: a ideia de que é possível ser eficiente
e eficaz, resolvendo problemas, sem apelo a concepções particulares de valor. Vide: ELLUL, Jacques. A técnica
e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
67 
WHITBECK, Caroline. Ethics in engineering practice and research. Cambridge University Press, 2011 apud
VALLERO, Daniel. Biomedical ethics for engineers: ethics and decision making in biomedical and biosystem
engineering. Elsevier, 2011, p. 14.
68 
Vide a descrição do processo de engenharia em: VERKERK, Maarten J.; HOOGLAND, Jan; VAN DER
STOEP, Jan; DE VRIES, Marc J. Filosofia da tecnologia: uma introdução. Viçosa, Minas Gerais: Ultimato,
2018, capítulo 7.
69 
WINNER, Langdon. Brandy, cigars and human values. In: The whale and the reactor: a search for limits
in an age of high technology. University of Chicago Press, Chicago, 1986, p. 155-163.
70 
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio
de Janeiro, Editora Record, 1999.
71 
O diagnóstico é feito por Hugh Lacey como uma estratégia que guia a pesquisa científica e consequente
desenvolvimento tecnológico. Vide: LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Editora 34, 2008.
72 
Vide BORGMANN, Albert. Crossing the postmodern divide. University of Chicago Press, 2013.

<< Retorne ao sumário 154


TRÊS DIMENSÕES DA NÃO NEUTRALIDADE TECNOLÓGICA: UM ESFORÇO
DE SISTEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO

tradição, comunidade ou narrativa englobante73. O ideal de que “posso fazer o


que quiser, desde que isso faça bem para mim e a ninguém prejudique” legou
um universo de milhões de opções de escolha para o indivíduo, mas nenhuma
capaz de oferecer experiências significativas de bem comum e gerar conexão a
tradições maiores do que ele mesmo.
Debaixo dessa luz filosófica, entende-se melhor o porquê de se ter tão
amplamente sedimentada no seio social a narrativa da neutralidade tecnológica,
sendo esse um ponto quase sempre tido como miticamente incontroverso no
debate privado e público.

6. CONCLUSÃO

Hodiernamente, estamos no âmago de uma chamada quarta revolução


industrial, cujos avanços tecnológicos na seara digital têm se revelado de impac-
tação verdadeiramente disruptiva. Nessa nova ordem de coisas, exsurgem as
plataformas digitais, poderosos agentes econômicos que viabilizam a conexão de
multidões e que têm invadido todas as dimensões da vida humana. No campo
laboral, as plataformas digitais de trabalho constituem ferramentas tecnológicas
mediadoras do trabalho humano à base do processamento de enormes volumes de
dados, meticulosas programações algorítmicas e acesso mediante consentimento
por simples adesão. Sua dinâmica de funcionamento tem suscitado enormes
desafios às agendas dos direitos humanos e do trabalho decente.
Em meio a esse complexo cenário, nosso recorte epistemológico neste
breve ensaio procurou atentar para o intrigante contraste entre ubiquidade e
neutralidade tecnológica, de maneira a perquirir, mais precisamente, a veracidade
da assertiva de que a tecnologia seria neutra quanto a fins, valores e subjetivi-
dade humana. O tema é de crucial importância, visto que estamos todos não
apenas rodeados de artefatos tecnológicos, senão que também embebidos com
a racionalidade tecnicista, em que a solução de todo e qualquer “problema”
parece perpassar necessariamente pela instrumentalidade da tecnologia como
solução. Esse fenômeno de facilitada adesão social à narrativa da “neutralidade”
justifica-se sob o prisma do liberalismo tecnológico, onde a tecnologia erige-se
como solução hábil a oferecer os meios “neutros” a partir dos quais os indivíduos
realizam seus fins e propósitos, à revelia de qualquer horizonte comunitário ou
narrativa englobante.
Nessa toada e a partir de uma incursão multidisciplinar, entremeando
direito e filosofia, conclui-se que a tecnologia não é neutra quanto a fins, espe-

73 
Vide a exposição de Charles Taylor sobre o sujeito moderno em: TAYLOR, Charles. As fontes do self: a
construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

<< Retorne ao sumário 155


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

cialmente em relações jurídicas travadas no bojo do capitalismo de plataforma,


porquanto inibidora de condutas, influenciadora de propósitos e desestimuladora
de intenções, subvertendo, assim, a intuitiva percepção geral de que meios devem
se ajustar a fins. Da mesma forma, não se sustenta a tese da neutralidade quanto
a valores, na medida em que artefatos tecnológicos, em sua concepção, criação e
aplicação, sempre se põem a veicular, sim, explícita ou implicitamente, diretrizes
axiológicas. Igualmente, a tecnologia não é neutra quanto à subjetividade, porque
detém o perigoso condão de influir na própria percepção de si e da realidade,
insuflando certos estados de ânimo e hábitos que, em determinado nível, acabam
por afetar e modelar a própria subjetividade humana.
Noutros termos: tem-se que, em maior ou menor grau: i) a tecnologia,
em si, pode ser boa ou má, independentemente de seu uso; ii) a tecnologia, em
sua concepção, criação e aplicação, exprime opções humanas e, logo, difunde
normas e valores sociais; iii) a tecnologia promove interferências na subjetividade
humana, passando longe de ser um item puramente técnico, apartado e distante
do homem que o cria e usa. É dizer: a tecnologia não é neutra seja quanto a
fins, seja quanto a valores, seja quanto à subjetividade.
Isso pode significar, entre outros fatores, que, em termos de crivo moral
sobre a tecnologia, tenha-se de migrar o foco da reflexão cada vez mais do
paradigma da neutralidade para o paradigma da ambivalência. Afinal, como
destaca Neil Postman em clássica obra, constitui equívoco supor que inovações
tecnológicas têm efeitos unilaterais, haja vista que “toda tecnologia tanto é um
fardo como uma bênção; não uma coisa ou outra, mas sim isto e aquilo”74.
Semelhantemente, talvez também já seja o momento de voltarmos a debater
publicamente sobre uma noção de vida boa, de sorte a se pensar menos em
termos de “melhoria” ou “piora” material de nossas vidas e mais em termos de
cumprimento ou descumprimento de nossas vocações e florescimento humano.
Mas essas são instigações outras, a desafiar pesquisa, reflexão e escrita acadêmica
toda própria.

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74 
POSTMAN, Neil. Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia. Tradução de Reinaldo Guarany. São
Paulo: Nobel, 1994, p. 14.

<< Retorne ao sumário 156


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<< Retorne ao sumário 160


TELETRABALHO E GENERO:
SEGUNDO UMA OTICA
INTERDISCIPLINAR E JURIDICA

Giovanna Martins Sampaio1

Resumo: O artigo detém como objetivo principal analisar a regulação do


teletrabalho pela reforma trabalhista de 2017 observando as consequências
jurídicas dessa nova legislação, já que o recorte mais aparente para a autora
é relativo às condições ambientais e sanitárias para a tele-empregadA, uti-
lizando-se uma perspectiva de direito comparado e das relações de gênero,
considerando o seu respectivo caráter sui generis e demais implicações no
âmbito da COVID-19 nesta forma específica de trabalho para as mulheres
trabalhadoras. Dessa forma, ainda foi necessário abordar brevemente o contexto
político, de forma comparativa e comparada, quanto ao controle deste Vírus
nas distintas nações; Assim, os resultados parciais desta pesquisa envolveram
a avaliação das diferentes normas e diretrizes dos EUA, União Europeia, e
América Latina e Brasil quanto ao telework e ao “manejo do Covid” pelas
Distintas instituições Governamentais; Os resultados parciais relatam ainda
“assimetrias” entre os países quanto às condições de tele-emprego, no “dire-
cionamento” da crise de 2019/2020 no seio da gestão das políticas públicas,
e primordialmente quanto às desigualdades laborais de gênero, e às políticas
de acesso e inclusão feminina no trabalho enquanto questão e matéria de
relevância pública, demonstrando as diferenças constantes e existentes a par-
tir dos sistemas políticos desses Estados-nações; A metodologia usada foi a
revisão sistemática e bibliográfica, de cunho descritivo e concomitantemente
exploratório, visando-se atingir os objetivos e resultados interdisciplinares da
pesquisa, pelo que foram utilizados trabalhos teóricos e conceituais acerca
do teletrabalho, relações públicas e políticas, feminismo, e das desigualdades
laborativas de gênero.

Palavras-chave: Desigualdades laborais de gênero, telework, impactos e


implicações.

1 
Doutoranda em PI, Universidade federal de Sergipe; Mestrado em Propriedade Intelectual, Transferência
de Tecnologia e Inovação – Universidade Federal da Bahia (2019-2020);

<< Retorne ao sumário 161


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

1. INTRODUÇÃO

A proposta que justifica o presente trabalho consiste em estabelecer, de


certo modo com inovação, a relação que deve ser desenvolvida entre as trans-
formações trazidas pela chamada Reforma Trabalhista, Lei 13.467/2017, e os
impactos daí decorrentes para a saúde da teletrabalhadora, pelo que se mostrou
essencial para este intento abordar e analisar o meio ambiente laboral sob a ótica
dos direitos fundamentais.
Outrossim, não se poderia deixar de mencionar os principais elementos
inovadores trazidos no capítulo destinado ao teletrabalho (Lei 13.467/17), enfo-
cando e priorizado o presente estudo na figura do Termo de Responsabilidade
a ser assinado pela teletrabalhadora, a fim de trazer a possibilidade devida de
responsabilização civil do empregador pelos danos e perdas, pelos acidentes e
doenças que a tele-empregada venha a sofrer no exercício da atividade laborativa.
Com isso, visou-se concluir o artigo com a ideia de responsabilização
cível do empregador, pelas doenças e acidentes laborativos ocorridos com a
teletrabalhadora no local de exercício das suas “atividades funcionais”, indepen-
dentemente da assinatura do termo de responsabilidade. Finalmente, o trabalho
se propôs a abordar e trazer as diferenças constantes entre sistemas políticos de
“referência”, abarcando primordialmente também questões de política pública,
e de relações políticas e internacionais.

2. NORMAS INTERNACIONAIS: TELETRABALHO

Percebe-se que determinados países e nações constituíram, aceitaram e


regulamentaram a figura do teletrabalho bem anteriormente à Lei 13.467/2017,
dentre as quais se destacam Portugal, e França. Portanto, a seguir serão tecidas
breves e distintas considerações acerca do instituto nesses países2.
Quanto à conjuntura e legislação portuguesas3, segundo o expressamente
prescrito no art. 169 do Código do Trabalho, de Portugal, a responsabilidade
de manutenção e adequação das instalações para exercício do teletrabalho fica
2 
Por fim, na esfera do direito internacional sobre o teletrabalho, cabe ainda relatar as observações de Vera
Loureiro Winter, quando aborda o tema do trabalho a domicílio , “Na Alemanha, considera-se trabalho a
domicílio quando uma pessoa ocupa exclusivamente pessoas de sua família em trabalho industrial ou quando uma
ou várias pessoas executam trabalho industrial, sem serem dirigidas por um empregador em uma oficina”, pelo
que a autora não dispõe especificamente quanto à existência ou a regulação do teletrabalho no direito alemão.
(WINTER, V. R. L. Teletrabalho: uma forma alternativa de emprego. Editora LTr: São Paulo. 2005, pg. 43).
3 
Ainda, João Leal Amado comenta em seu livro, referindo-se ao artigo 167 do Código do Trabalho, que
“naquele caso, porem, a lei mostra-se mais cautelosa quanto a faculdade de as partes modificarem o contrato
de trabalho, convertendo-o num contrato para prestação subordinada de teletrabalho, dado que não permite
que tal modificação opere a título definitivo, antes estabelecido como limite máximo o período inicial de
três anos, decerto por uma questão de prudência, desta forma permitindo que o teletrabalhador retome a

<< Retorne ao sumário 162


TELETRABALHO E GENERO: SEGUNDO UMA OTICA INTERDISCIPLINAR E JURIDICA

a cargo do empregador – enquanto a Lei da Reforma de 2017 parece ir na


contramão disso, como será mais bem analisado adiante.
Ademais, a lei respectiva traz descrição sobre a função do empregador em
qualificar tecnicamente a empregada para fins de exercício do teletrabalho, além
de colocar expresso o direito de privacidade da teletrabalhadora a ser pontual-
mente respeitado pelo empregador (fixando horário para o exercício prático dos
poderes de controle patronais), posto que, de forma expressa, assegura o gozo
dos momentos descanso da respectiva empregada e de sua família, incluindo
prescrição sobre norma de proteção da saúde psicológica (o empregador deve
zelar pelo bem-estar mental da teletrabalhadora).
No âmbito do presente trabalho acadêmico, ainda se considera relevante
trazer as lições e reflexões de João Leal Amado sobre a normatividade e termos
dispostos no Código Português: quanto à igualdade de tratamento da traba-
lhadora em regime de teletrabalho, para o autor o art. 169, inciso 3º consagra
“deveres secundários específicos”, nomeadamente, os direitos a sociabilidade
informática & os direitos ao “não-isolamento”; (AMADO, 2013, p. 162-163)
Já no plano do Direito Francês, a regulamentação recente do Teletrabalho,
após reformulação ocorrida também em 2017, engloba que a instalação do regime
de teletrabalho em determinada empresa deverá ser feita por acordo coletivo,
ou após ter sido obtido parecer “favorável” do Comitê Social Econômico (nas
áreas e localidades em que exista o determinado órgão). Ademais, aborda que a
empregada possui o direito de recusa quanto a passar para o regime de teletra-
balhadora, sendo vedada ao empregador, a despedida arbitrária da empregada
devido ao exercício do direito de recusa.
Ainda no que tange às normas francesas sobre o teletrabalho, a nova
legislação define as horas durante as quais o empregador poderá entrar em con-
tato com a teletrabalhadora, pelo respeito ao direito a desconectar-se existente
na legislação francesa. Ademais, para tanto, existe a previsão de contagem das
horas extraordinárias, ou seja, à teletrabalhadora está assegurado o exercício da
jornada de trabalho normal, regular, protegendo-se o trabalho extra.
Ainda quanto à legislação do teletrabalho na França, assevera expres-
samente que o empregador detém obrigações especiais, pontuais e específicas
frente à empregada submetida ao regime do teletrabalho.4

prestação “normal” de trabalho caso alguma das partes assim o deseje no termo do prazo acordado (art. 167).”
(AMADO, J. L. Contrato de Trabalho. Coimbra Editora: Coimbra. 2013, pg. 162).
4 
Ademais, quanto ao teletrabalho, e seus modos de exercício na França, importa trazer alguns ensinos de
Vera Winter: “Essa solução intermediária busca direcionar os teletrabalhadores de acordo com o perfil de cada
um: teletrabalho domiciliar, para quem consegue ultrapassar as dificuldades inerentes a um trabalho isolado,
e telecinéticos, para os que necessitam de ambiente de escritórios e da convivência de outros empregados,
dependendo ainda do tipo de atividade a ser desenvolvida. [...] Dessa maneira, há ocupação de espaços vazios,

<< Retorne ao sumário 163


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

A lei francesa do teletrabalho prevê expressamente que o empregador


deverá agendar uma entrevista pessoal, por ano, com o trabalho submetido a
este regime em específico, com vistas a perceber e organizar, especialmente, as
condições em que a empregada exerce as suas atividades laborais, além de regular
as suas respectivas cargas (e jornadas) de trabalho.
Quanto à segurança da teletrabalhadora, a lei francesa prenuncia que os
acidentes ocorridos no âmbito do teletrabalho, durante o horário de exercício
laboral da tele-empregada, presumem-se como sendo acidentes de trabalho,
cabendo ao empregador afastar essa presunção, de modo que deve provar que o
acidente em questão não se referia ou relacionava com o desempenho funcional
de trabalho. Além disso, a legislação francesa assegura as mesmas condições
para a percepção de ticket alimentação à trabalhadora submetida ao referido
regime de emprego.
Destarte, percebe-se que a normatividade francesa, no campo internacional,
mostra-se desenvolvida, no que tange à regulamentação do teletrabalho, bem
como no âmbito da tutela do meio ambiente laboral, conforme foi detalhado
no primeiro capítulo do presente trabalho.

3. REGULAÇAO E TELETRABALHO

A Reforma trouxe a regulamentação expressa da modalidade do teletra-


balho. Quanto ao artigo da Lei que “formata” o contrato da teletrabalhadora, é
interessante trazer a lume os comentários de Rafael Miziara, posto que reco-
nhece a necessidade de que o contrato, apesar de individual, deva ser necessa-
riamente escrito, de modo a conferir maior segurança e estabilidade jurídicas
à tele-empregada5;
Releva apenas tecer breves anotações acerca do art. 75-C, quanto à insti-
tuição do teletrabalho ser por “mero” contrato individual de trabalho, revelando
a tendência trazida pela Lei de Reforma Trabalhista: isso parece desconsiderar a
relevância dos instrumentos coletivos de negociação, desprotegendo e vulnerando
a classe trabalhadora, posto que a empregada se encontra “isolada” frente ao
empregador para acertar as condições de trabalho, não estando acompanhada

com a fixação desses telecentros como polos locais de atividades diversificadas de telesserviços. Ocorre, assim,
“uma aposta na divulgação da opção pelo teletrabalho como política de ordenamento do território e do tempo
das pessoas”. (WINTER, 2005, p. 70-71)
5 
“Não se nega que o contrato verbal também pode ser expresso e especificar as atividades que serão rea-
lizadas. No entanto, aqui parece que a intenção do legislador foi a de exigir contrato escrito nesse sentido.
Ademais, o § 1º fala em “aditivo” contratual, o que é mais utilizado para contratos escritos”. (MIZIARA,
Rafael. O novo regime jurídico do teletrabalho no Brasil. Disponível em:<https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/
handle/20.500.12178/116314/2017_miziara_raphael_novo_regime.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso
em 01. Mar. 2019.)

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TELETRABALHO E GENERO: SEGUNDO UMA OTICA INTERDISCIPLINAR E JURIDICA

de qualquer apoio das entidades e organismos sindicais que possa aumentar sua
“força” no momento da negociação contratual.
Pode-se perceber que o legislador nada falou ou abordou efetivamente
sobre as normas de medicina e segurança da teletrabalhadora (normas de ordem
pública pelo que devem ser consideradas irrevogáveis), e não trouxe nada relati-
vamente aos conhecidos “equipamentos de segurança do trabalho”. Ao contrá-
rio, instituiu uma figura “estranha”, denominada de termo de reponsabilidade,
referente às diretivas dadas pelo patrão a esta trabalhadora; o legislador pareceu
isentar o empregador da responsabilidade quanto aos acidentes de trabalho
sofridos, apenas utilizando-se do argumento da “distância da sede da empresa”.
Desta feita, o empregador parece ter transferido os custos da atividade
empresarial, em relação ao custeio da infraestrutura do exercício do emprego
(BUBLITZ, 2012).
Releva ainda deixar claro o quanto foi modificado no art. 62, CLT, pelas
novas disposições da Lei 13.467/2017. A lei da reforma trabalhista incluiu o
inciso III no referido artigo (sobre as empregadas excluídas do controle e fixação
da jornada de trabalho), de modo que não assegura o ressarcimento/remuneração
do trabalho extraordinário (horas extras) às teletrabalhadoras, pois o tele-em-
prego seria, em tese, incompatível com a limitação de jornada diária de trabalho.
Conforme antes visto, portanto, o que acaba por acontecer é que a tele-
trabalhadora labora extraordinariamente, sem a devida compensação pecuniária
deste trabalho (AMADO, 2013), ante à necessidade de atingir determinados
resultados e metas específicas de produção, que são apresentados, ou melhor,
impostos, pelo empregador.

4. TERMO DE RESPONSABILIDADE E
RESPONSABILIZAÇAO DO EMPREGADOR
FRENTE `A TELE-EMPREGADA

O entendimento que resta assente, portanto, é no sentido da existência de


responsabilidade do empregador pelos danos e acidentes sofridos pela teletra-
balhadora, onde quer que a empregada exerça a sua atividade “tele-laborativa”,
posto que são considerados acidentes de trabalho (mesmo que “atípicos”), pois
ocorrem durante a jornada em que a teletrabalhadora exerce sua função. Além
dos ditos acidentes, existem primordialmente as doenças laborais e enfermidades
relacionadas aos meios telemáticos, reiterando-se aqui o dever de indenização
do empregador pelos danos porventura sofridos pela teletrabalhadora.
Destarte, o entendimento principal deste trabalho pode ser resumido pelas
lições de Miziara: “Não obstante, diante da alegação de acidente de trabalho

<< Retorne ao sumário 165


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

ou doença ocupacional, o simples fato de a empregada ter assinado termo de


responsabilidade não eximirá a empresa de indenizar eventuais danos causados,
sendo evidenciada sua conduta culposa ou dolosa”. (MIZIARA, 2017)
Outrossim, prescinde uma breve abordagem sobre a teoria da responsabili-
dade civil, conceituada e caracterizada no art. 927, CC/2002. Doutrinariamente,
quanto ao instituto da Responsabilidade Civil, ilustra Susana Lourenço Gonçalves,
sobre o sentido da teoria da responsabilidade, que “O que se pretende é restituir
às pessoas lesadas o gozo dos seus interesses ofendidos. A responsabilidade tra-
duz-se, essencialmente, na obrigação de indemnizar.” (GONÇALVES, 2013, pg.
20). Neste esteio, é preciso continuar com as observações trazidas pela autora ao
anunciar que essa obrigação de indenizar o sujeito lesado nasce propriamente
por força de lei, independendo da vontade das partes.
Destarte, relembra-se que os requisitos principais dessa responsabilidade
de caráter civil consistem no dano provocado; na culpa (perspectiva subjetivista)
do agente ou no risco (teoria objetiva) que este assumiu; e no nexo de causali-
dade existente entre os dois outros pressupostos anteriores. Complementares
os dizeres da autora a este respeito: “No quadro da responsabilidade civil (em
sentido amplo) é necessário ter em atenção dois subsectores: da responsabilidade
subjetiva, quando ela depende de culpa do agente e responsabilidade objetiva,
quando o agente se constitui na obrigação de indemnizar independentemente
da culpa”. (GONÇALVES, 2013, pg. 20 e 21.).
Quanto à perspectiva objetivista – adotada no presente trabalho -, con-
ceitua e relaciona Luciano Martinez (MARTINEZ, 2011) que o risco consiste
na realização de um certo e determinado objetivo, de acordo com determinados
limites de segurança.
Neste âmbito, não se pode olvidar das palavras de Vera Loureiro Winter,
posto que expressam a teoria do risco sob especificamente os parâmetros de
saúde, segurança e medicina: “Não é sem sentido que a ideia de risco se associa à
possibilidade de exposição a um evento danoso ou a uma série de circunstâncias
e situações que podem colocar em perigo a saúde e a vida das trabalhadoras,
principalmente através do acontecimento infortunístico, isto é, dos acidentes e
das doenças ocupacionais”6. (WINTER, 2005, pg. 105.)
Elucidativos os ensinos de Dallegrave Neto sobre a responsabilização
objetiva dos Riscos: “Nem se diga, contudo, que o parágrafo único do art. 927 do
6 
E ademais, nesse mesmo sentido, encerra a autora acima que, “Cabe entender que os riscos no trabalho
são associados, frequentemente, à tomada de medidas de segurança. Em certo modo, a determinação de
patamares mínimos de exposição (standards, nível de tolerância, limites legais etc.) a agentes agressivos tem
como base o estabelecimento de mensuração do risco a que deve ser submetido o trabalhador e o próprio
ambiente de trabalho.” (WINTER, V. R. L. Teletrabalho: uma forma alternativa de emprego. Editora LTr:
São Paulo. 2005, pg. 105.).

<< Retorne ao sumário 166


TELETRABALHO E GENERO: SEGUNDO UMA OTICA INTERDISCIPLINAR E JURIDICA

novo Código Civil é inconstitucional por suposta afronta à parte final do art. 7º,
XXVIII, da Constituição Federal. A melhor exegese sistêmica da ordem cons-
titucional garante legitimidade ao parágrafo único do art. 927 do novo Código
Civil, vez que o caput do art. 7 º da Constituição Federal assegura um rol de
direitos mínimos sem prejuízo de outros que visam melhor condição social do
trabalhador”. (DALLEGRAVE NETO, 2010, pg. 113.) Portanto, ao confrontar a
responsabilidade constitucional do empregador em face da teoria do Risco, o autor
entende pela maior proteção possível das condições de trabalho da empregada,
estando, portanto, englobados os caracteres ambientais laborativos, bem como
relativamente às condições de saúde físicas e psíquicas das teletrabalhadoras.
José Dallegrave ainda encerra em sua obra que: “Sob o viés constitucional,
que coloca a pessoa humana em posição proeminente, não parece razoável que
o trabalhador seja vítima de agressões em seu ambiente do trabalho, ainda que
causadas sem intenção ou culpa patronal”.
Nesta linha, também releva trazer o complemento de Carlos Eduardo
Soares, quando aduz que: “Princípios do direito ambiental auxiliam a compreensão
de eventos relacionados ao ambiente de trabalho. Assim, são relevantes aqueles
que indicam a preocupação por um desenvolvimento sustentável, a garantia de
participação da sociedade na defesa do meio ambiente, a precaução, a prevenção
e a responsabilidade objetiva do poluidor em pagar pelos danos”. (SOARES,
2017, pg. 123.)
Ultimamente, é necessário que se compreenda a devida possibilidade de
responsabilização objetiva do empregador, sendo essa a exegese dos princípios
ambientais que dispõem a respeito da responsabilidade do “poluidor” - no caso,
o empregador que não orienta devidamente à empregada para o exercício laboral
ou que não propicia/proporciona as condições “sanitárias” e “espaciais” básicas
para o bem-estar da tele-empregada.

5. ANÁLISES INTERNACIONALISTAS

A OIT (Organização Internacional do Trabalho), no último mês de Março,


editou diretrizes aos países no que diz respeito ao teletrabalho efetivo, pautado na
Eficiência (ANDRADE, 2013), pelo que enumerou/enunciou como premissas
primordialmente “suporte de gerenciamento e administrativo”; ferramentas e
treinamentos adequados; expectativas claras; soberania do tempo & confiança
(OTI, 2020) num contexto de direito do trabalho de emergência (STUMER;
FINCATO, 2020) que decorre de fatos ou acontecimentos de escala mundial e
que promove o rearranjo das concepções e praticas politicas, sociais, econômicas,
jurídicas, e filosóficas e ideológicas;

<< Retorne ao sumário 167


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Nesse sentido, nos parece que, no panorama/cenário, não ocorre o suporte,


confiança, treinamento ou “independência” devidos quanto ao teletrabalho no
sentido de haver uma disposição e conexão digital quase que integral por parte
da trabalhadora no contexto telelaborativo: fenômeno já reconhecido como
“escravo” / de servidão desde o início da presente década (ANTUNES, 2020;
ESTRADA, 2012).
Neste esteio, percebe-se evidência da Uberização corrente do trabalho,
sendo hoje impossível dissociar este fenômeno da uberização do teletrabalho
enquanto fenômeno político e jurídico (ANTUNES, 2019); Nesta seara, a opção
política Brasileira certamente tem se mostrado “ultraliberal”, ou até “metaliberal”,
como já trazido por Oliveira (2019) e Antunes (2020);
Nesse sentido, as maiores preocupações referem-se ao provável aumento
da jornada, já enunciado nacionalmente pelo Ministério Público do Trabalho
(SAKAMOTO, 2020): mas o que acontecerá na prática? As transformações
e impactos institucionais disso só será percebido no futuro, a médio prazo;
Ademais, é também contemporânea a discussão a respeito do “home office/
trabalho à distância”: seria este um direito ou uma aventura? (LEAL, 2020) De
qualquer forma, pode-se assumir que os sistemas de governo modernos exigem
e pressupõem o cumprimento e a salvaguarda dos direitos e garantias alçados
ao nível das Constituições políticas nacional respectivas, primordialmente no
dito mundo ocidental (HALL, D`ELIA, NEPOMUCENO, 2016; RIBEIRO,
LOBATO, OLIVEIRA, LIBERATO, 2012) Então fica a questão: que tipo de
“consolidação de leis trabalhistas queremos”? Já saberíamos que tipo de trabalho
queremos? O que fazer com a desconectividade, com a falta de pertencimento
e identidade em relação ao trabalho, ambiente e a si mesmo proveniente do
mundo digital e digitalizado, & “faltas” essas ocasionadas diretamente pelo uso
instrumental das TICS? (OLIVEIRA, 2019)
A que custo os parâmetros de produtividade serão mantidos? (OCDE,
2020) E quanto ao teletrabalho, regulamentado em 2017 com a Reforma, ora
está sendo consolidado: Mas a que custos? Queremos novas formas de trabalho,
precarizadas? (ZAVARIZE, 2020) As respostas a essas perguntas envolvem coo-
peração internacional para o desenvolvimento econômico sustentável (OCDE,
2020; ITAMARATY, 2016; ONU, 2015)
Estudos atualizados da OCDE (Organização para a cooperação e Desen-
volvimento Econômico) já avaliam os verdadeiros impactos do COVID-19 na
inovação relativa/quanto ao teletrabalho. (OCDE, 2020) Ademais, esse cenário
demonstra os desafios da real consolidação de políticas públicas no que tange
a esta modalidade de emprego - e problematiza também a satisfação pessoal

<< Retorne ao sumário 168


TELETRABALHO E GENERO: SEGUNDO UMA OTICA INTERDISCIPLINAR E JURIDICA

quanto ao trabalho realizado (SIMONARD, SANTOS, 2017; BALIEIRO,


BORGES, 2015; RUEDA, SANTOS, LIMA, 2012)
Neste diapasão, é necessário ter em mente que trabalho digno, e humano,
da premissa “o trabalho dignifica o homem”, só pode ser satisfeita quando as desi-
gualdades em escala mundial (primordialmente regionais) são atenuadas, pelo
que trabalho precário e precarizado não dignifica o indivíduo/o “proletariado”
(ANTUNES, 2020), e não observa o valor social do trabalho (BASILE, 2009;
STURZA, MARQUES, 2017)
Finalmente, outros pontos controversos permeiam a seara do teletraba-
lho atualmente, já que o panorama se demonstra bastante diverso e engloba
diferentes fatores, drivers e sujeitos, considerando como “atores internacionais”
sob a ótica das características específicas da Capacidade, Habilidade e Auto-
nomia (CARVALHO, 2019); Mesmo no âmbito da União Europeia (acquis
communautaire), as diferenças de tratamento político da matéria são constantes,
e relevantes (COMISSAO, 2020)
Ainda, levanta-se a desigualdade do trabalho quanto à questão de
gênero, a qual é acentuada no contexto do teletrabalho e do Corona Vírus
(BBC, 2020); Em 2019, o Fórum Econômico Mundial apontou que o Brasil
ocupa a 92ª posição no ranking dos países que mais promovem igualdade
entre homens e mulheres no trabalho, concluindo também que levaria 257
anos para que a desigualdade de gênero acabasse (FRANCE, 2020). Com
isso, percebe-se que os números revelam uma realidade complexa e surreal, e
revela a necessidade de cooperação internacional entre as nações, organizações
internacionais e sistemas de governos, enquanto parceiros sociais (OCDE,
2020). Ademais, é cediço que este panorama impede o desenvolvimento sus-
tentável e regular das forças e vetores do mercado de trabalho (AGÊNCIA
BR, 2020), refletindo a relevância de se continuar investigando a temática
(OCDE, 2020).
Nesta senda, convoca-se primordialmente os países do “norte” global a
fim de que liderem o posicionamento acerca de um trabalho igualitário e digno
(CAPPELLIN; AZAIS, 2007), pois é necessária uma vanguarda que “advogue”
contra o retrocesso social de direitos trabalhistas historicamente conquistados
pelo proletariado (ANTUNES, 2020). Acreditamos que isso envolve para
além dos investimentos financeiros e em TICS (tecnologias de informação e
comunicação), e outrossim, a difusão/compartilhamento das melhores práticas
corporativas & de gestão (OCDE, 2020).

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

6. CONCLUSOES ACERCA DAS POLÍTICAS


PUBLICAS: ANALISE ACERCA DA
INTEGRAÇAO, “INTERSETORIALIDADES E
INTERSECCIONALIDADES NO TRABALHO

Utilizamos neste trabalho a doutrina advogada por Secchi (2010) sobre


a conformação de um conceito tripartite para definição das diretrizes e regula-
mentações relativas às Políticas públicas no âmbito de correlação com os Policy
Studies; Secchi (2010) vai analisar, do ponto de vista extensivo e formal, os
atores governamentais e institucionais, trazendo um paralelo entre os problemas
e necessidades públicos e as formulações e implementações de alternativas que
consubstanciam a tomada de decisão acerca das políticas públicas de gestão e
desenvolvimento intersetorial/ transversal;
O autor aborda o enfoque dos Problemas e necessidades coletivos e
públicos relevantes, como “issues”, primeiramente contextualizando a interface
entre a “hipótese ideal e o status quo no âmbito das políticas públicas; Neste
sentido, Secchi vai trazer diversas ocorrências reais de intervenção ativa dos atores
competentes, e suas implementações em áreas distintas: sanitária, segurança,
saneamento, habitação, educação, associação, empregabilidade, planejamento
urbanístico, Planos diretores territoriais; econômica, cultural e desportivo,
administrativa, Leis e planos municipais de Inovação e empreendedorismo;
infraestrutural, dentre outros;
No âmbito do 1o nó de Definição do Conceito e PP, ele pauta-se na
abordagem e visão multicêntricas e interpretativas, referentes aos diferentes
policymakers, takers, analistas e mídia, para representar que políticas gover-
namentais são o maior, mas não o único tipo de PP, evitando-se uma análise
da personalidade jurídica do agente em causa, e abarcando-se um espectro
abrangente de fenômenos políticos e administrativos; Nesta seara, o autor
contextualiza através de exemplos de prefeituras, e traduz que as PPs não
apenas se utilizam do mecanismo jurídico restrito da coerção; Já no 2o nó,
Secchi traduz e alude seu pensamento em torno dos requisitos de imple-
mentação e avaliação de impactos das PPS, para concluir que problemáticas
de Omissão e negligência não poderiam em si constituir PP, em face do
“poder legislativo; Já sobre o 3o nó, o autor apresenta que parâmetros de
operacionalização das diretrizes não definem estritamente as diretrizes tidas
como PPS, e no âmbito dos Policy studies, também estão abarcados planos
e programas a ser aplicados;
As questões básicas quanto à avaliação de impacto das políticas publicas
decorrerem primordialmente das limitações financeiras, e temporais em relação

<< Retorne ao sumário 170


TELETRABALHO E GENERO: SEGUNDO UMA OTICA INTERDISCIPLINAR E JURIDICA

às metodologias que serão lançadas/dispostas na busca de solucionar desigual-


dades sociais dos mais diversos tipos e gêneros;
Ademais, a complexidade dos problemas sociais multifacetados a serem
mitigados por essas políticas fazem com que a implementação dos métodos
e instrumentos seja problemática, resultado num maior risco para a eficácia e
efetividade das políticas e das próprias metodologias;
Com isso, a compatibilização dos interesses dos diferentes stakeholders
e envolvidos traz patente heterogeneidade e dificulta o desenvolvimento de
políticas publicas mais concatenadas e até eficazes, resultando em caracteres
adicionais na implementação dessas através de suas metodologias;
Nesse sentido também, a carga política substancial existente nos métodos
escolhidos por determinada gestão pública (de certo ou específico partido politico,
nas democracias representativas) põe em risco a construção de uma agenda e/
ou de um projeto social consolidado e uno, restando ineficiente a alocação dos
recursos públicos conforme as metodologias políticas eleitas; Ainda, deve-se
considerar a perspectiva das atividades publicas intersetoriais, que estão cada
vez mais presentes no contexto atual e que possuem dificuldades majoradas de
alinhamento das metodologias para aferição/mensuração da eficiência dessas
politicas publicas;
Enfim, tem-se também o quesito do desconhecimento e falta de pre-
paro “administrativo” por parte dos representantes políticos eleitos no que
que tange às metodologias de impacto e avaliação, que em geral, não são
gestores especializados em políticas públicas, e ao comporem suas equipes e
Secretarias conjuntas, geralmente não consideram prioridade em ter como
integrante da sua equipe, um especialista em métodos de avaliação e impacto
de políticas; Neste esteio, a incapacidade no sistema politico em comportar
uma continuidade no projeto de metodologias e políticas públicas conforma
uma dificuldade de complicada resolução a curto prazo; Além disso, especial-
mente no contexto latino, crises políticas contemporâneas contribuem para
uma variação no posicionamento e opção políticos, dificultando e impactando
especialmente a “observância” de programas políticos mais compostos, plurais
e abrangentes;
Finalmente, não se pode esquecer também da discrepância em relação
à causalidade presente no ciclo de políticas publicas, metodologias e avaliação
do impacto dessas; Ultimamente, a quantificação do “retorno social” dessas
metodologias de políticas públicas é uma “característica” a ser pontualmente
considerada já que a aferição do aproveitamento social desses fatores é de difícil
mensuração na prática.

<< Retorne ao sumário 171


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

REFERENCIAS

AMADO, J. L. Contrato de Trabalho. Coimbra: Coimbra Editora, 2013.


ANDRADE, T. S. de. O princípio da eficiência constitucional: uma releitura a partir da
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BBC NEWS BRASIL. A pandemia vai tornar o mercado de trabalho ainda mais
difícil para as mulheres. Disponível em: https://economia.ig.com.br/2020-07-15/a-
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BUBLITZ, M. D. Globalização e Estado Social de Direito: teletrabalho como forma
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CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE EM
SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Ítalo Menezes de Castro1

1. INTRODUÇÃO

É consabido que o Século XX correspondeu a um período de importan-


tes e profundas inovações no âmbito da Ciência, verificadas e experimentadas
nas mais diversas áreas do conhecimento. Para ficar apenas nos exemplos mais
marcantes, poderiam ser citadas a Teoria da Relatividade de Albert Einstein,
no campo da Física, a descoberta da estrutura do DNA, por Francis Crick e
James Watson, no âmbito da Biologia, a invenção dos computadores, no campo
da Tecnologia, entre tantos outros.
Nos domínios da Ciência Jurídica, a situação também não foi diversa,
uma vez que o Século XX também representou interregno de impactantes
transformações nessa área do conhecimento. Dentre essas transformações, cabe
destacar, por se relacionar com o objeto central deste estudo, a compreensão que
se difundiu amplamente nos Estados ocidentais sobre a força e a supremacia
normativas da Constituição.
Com efeito, como resposta às atrocidades cometidas pelos regimes tota-
litários da primeira metade do Século XX, as quais estavam, em boa parte,
“legitimadas” por leis regularmente aprovadas no Parlamento, a Ciência do
Direito passou a perceber a necessidade de se proceder a uma reaproximação
entre o direito e a moral, fazendo ecoar o primado da dignidade humana e dos
direitos humanos fundamentais como critério de justiça na configuração de
qualquer ordenamento jurídico.
Isso se deu, essencialmente, por meio da superação da compreensão
epistemológica das Constituições como meros programas políticos, até então
predominante, por uma nova concepção, que passou a encarar as disposições
1 
Juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Doutorando e Mestre em
Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor universitário.

<< Retorne ao sumário 176


CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

constitucionais como efetivas normas jurídicas, capazes de ser invocadas na


defesa de direitos e exigências de deveres, vinculando também os poderes estatais
constituídos, inclusive, o Legislativo.
Nesse contexto, novos institutos jurídicos passaram a ser concebidos
e outros tantos resgatados e potencializados, cabendo especial destaque aos
sistemas de controle de constitucionalidade das leis, seja pela via concreta, seja
pela via abstrata, que passaram a desfrutar de uma enorme relevância nesse
novo cenário jurídico.
Paralelamente a isso, também na segunda metade do Século XX, o surgi-
mento do capitalismo pós-industrial contribuiu para o advento de uma autêntica
sociedade de massas, na qual as relações jurídicas passaram a ostentar caracteres
de uniformidade e operar em amplo raio de destinatários, levando, por conse-
quência lógica, os conflitos sociais a migrarem de uma perspectiva individualista
e atomizada para uma dimensão coletivizada.
A tentativa de equacionar os problemas decorrentes dessa nova modalidade
de conflitos ancorou-se, dentre outros, nos mecanismos processuais de tutela
coletiva, com a criação, por exemplo, de determinadas espécies de tutela, capazes
de resultar em um provimento jurisdicional de eficácia ampla e com aptidão para
irradiar seus efeitos a toda a coletividade envolvida no conflito. Exemplo disso é
a criação da ação civil pública, por meio da Lei n. 7.347/1985, prevendo, em seu
art. 16, a eficácia erga omnes da coisa julgada produzida em tais espécies de ação.
Todo esse enredo serve, pois, como pano de fundo para colocação do pro-
blema que ocupa a temática central deste trabalho: identificar os contornos do
controle de constitucionalidade de leis e atos normativos em sede de ação civil
pública. A importância da questão se justifica, notadamente, em razão da previsão
legislativa anteriormente mencionada, quanto à eficácia erga omnes da coisa julgada
em ações civis públicas, e do regime constitucional brasileiro, a prever – ao menos
expressamente – a eficácia erga omnes do controle de constitucionalidade apenas
para o sistema de controle abstrato, junto ao Supremo Tribunal Federal.

2. OS SISTEMAS DE CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE

2.1. Pressuposto do controle de constitucionalidade:


a supremacia da Constituição

As Revoluções Burguesas do Século XVIII, preconizando a superação


do modelo do Estado Absolutista – no qual o Príncipe dispunha de amplos e
ilimitados poderes, cujo exercício se dava sem a participação dos súditos –, tive-

<< Retorne ao sumário 177


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

ram como algumas de suas reivindicações centrais a limitação do poder estatal,


com o intuito de evitar o arbítrio, e a criação de mecanismos de participação
do cidadão na dinâmica desse poder. Para tanto, foi concebido o modelo dos
chamados Estados Constitucionais,2 nos quais se defendia o império da lei, como
reflexo da soberania popular e elemento limitador do exercício da potestade
estatal, representando a Constituição a expressão máxima da vontade do povo.
O constitucionalismo encontra, assim, nas Constituições estadunidense de
1787 e francesa de 1791 seus referenciais históricos próximos mais eloquen-
tes, fruto da ideia de que determinadas matérias deveriam ser cristalizadas no
próprio texto da Constituição a fim de evitar que viessem a ser eventualmente
suprimidas ou contrariadas pelos poderes constituídos – especialmente, pela via
legislativa –,3 no que se pode ver a clara presença de um ideal de superioridade
das disposições constantes da Constituição.4
A supremacia constitucional, portanto, corresponde ao postulado segundo
o qual “qualquer ato jurídico – seja ele normativo ou de efeito concreto –, para
ingressar ou permanecer, validamente, no ordenamento, há se mostrar conforme
aos preceitos da Constituição”,5 como característica própria das Constituições
rígidas. Ancorados nessa premissa, os sistemas de controle de constitucionalidade
encontraram seu pressuposto de legitimação e desenvolvimento:

2 
“En un sentido ontológico, se deberá considerar como el telos de toda constitución la creación de instituciones
para limitar y controlar el poder político. En este sentido, cada constitución presenta una doble significación
ideológica: liberar a los destinatarios del poder del control social absoluto de sus dominadores, y asignarles
una legítima participación en proceso del poder. Para alcanzar este propósito se tuvo que someter el ejercicio
del poder político a determinadas reglas y procedimientos que debían ser respetados por los detentadores
del poder” (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2. ed. Trad.: Alfredo Gallego Anabitarte.
Barcelona: Editorial Ariel, 1976, p. 151).
3 
“Aí estão os três grandes objetivos, que, conjugados, iriam resultar no constitucionalismo: a afirmação da
supremacia do indivíduo, a necessidade de limitação do poder dos governantes e a crença quase religiosa nas
virtudes da razão, apoiando a busca da racionalização do poder” (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de
teoria geral do Estado. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198).
4 
Nos célebres escritos sobre o federalismo norte americano, Alexander Hamilton, ainda no Século XVIII,
já propunha: “Não há posição fundada em princípios mais claros que aquela de que todo ato de um poder
delegado que contrarie o mandato sob o qual é exercido é nulo. Portanto, nenhum ato legislativo contrário
à Constituição pode ser válido. [...]
Uma Constituição é de fato uma lei fundamental, e como tal deve ser vista pelos juízes. Cabe a eles, portanto,
definir o seu significado tanto quanto o significado de qualquer ato particular procedente do corpo legislativo.
Caso ocorra uma divergência irreconciliável entre ambos, aquele que tem maior obrigatoriedade e validade
deve, evidentemente, ser preferido. Em outras palavras, a Constituição deve ser preferida ao estatuto, a intenção
do povo à intenção de seus agentes. [...]
Esta conclusão não supõe de modo algum uma superioridade do poder judiciário sobre o legislativo. Supõe
apenas que o poder do povo é superior a ambos, e que, quando a vontade do legislativo, expressa em suas leis,
entre em oposição com a do povo, expressa na Constituição, os juízes devem ser governados por essa última
e não pelas primeiras” (MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas,
1787-1788. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 480-481).
5 
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 15.

<< Retorne ao sumário 178


CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

O sistema das Constituições rígidas assenta numa distinção


primacial entre poder constituinte e poderes constituídos.
Disso resulta a superioridade da lei constitucional, obra
do poder constituinte, sobre a lei ordinária, simples ato
do poder constituído, um poder inferior, de competência
limitada pela Constituição mesma.6

2.2. Os sistemas de controle de constitucionalidade

Os sistemas de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos


podem ser classificados, segundo a doutrina, a partir de diversas perspectivas:
quanto ao órgão que o realiza, o controle pode ser político, jurisdicional ou misto,
sendo que, em se tratando do controle jurisdicional, pode-se falar também em
uma subclassificação do controle como difuso ou concentrado; em relação à forma
de realização, esta pode ser incidental ou principal; no que tange ao momento
de sua realização, o controle pode ser preventivo ou repressivo.7
Para os limites estritos deste trabalho, urge tecer breves comentários sobre
a classificação do controle quanto à forma de realização.

2.2.1. Controle de constitucionalidade pela via incidental

O controle de constitucionalidade pela via incidental — também chamado


de controle por via de exceção ou de defesa, por via indireta ou oblíqua ou, ainda,
controle de constitucionalidade em concreto – ocorre “quando, no curso de um
pleito judiciário, uma das partes levanta, em defesa de sua causa, a objeção de
inconstitucionalidade da lei que se lhe quer aplicar”.8 Pressupõe, assim, a análise
da matéria pelo órgão do Poder Judiciário no bojo de um caso concreto, em
sede de ação judicial, como questão prejudicial ao julgamento de determinada
pretensão, e, por essa razão, os efeitos da decisão judicial são produzidos, em
regra, unicamente entre as partes litigantes, sem, contudo, gerar eficácia geral
(erga omnes) e sem retirar do ordenamento jurídico a norma questionada.9
Referido mecanismo de análise da constitucionalidade das leis remonta
ao antológico caso Marbury vs. Madison, de 1803, julgado pela Suprema Corte
estadunidense, sob a liderança do Chief Justice John Marshall, no qual os julga-

6 
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 296.
7 
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1054-1056.
8 
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 302.
9 
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 53-54.

<< Retorne ao sumário 179


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

dores deixaram de aplicar dada legislação infraconstitucional a um caso concreto


por entendê-la em desacordo com a Constituição (judicial review).10
Uma observação, entretanto, faz-se relevante: a necessária distinção entre
controle pela via incidental e controle difuso.
Ora, o controle difuso de constitucionalidade corresponde ao sistema que
atribui competência a qualquer órgão integrante da estrutura do Poder Judiciário
para examinar a constitucionalidade dos atos normativos quando do exercício
de sua função jurisdicional – como ocorre no caso brasileiro desde a Constitui-
ção de 189111 –, não ficando tal atribuição circunscrita a um órgão específico,
como uma corte constitucional. Embora a análise da constitucionalidade de
atos normativos pela via incidental se manifeste, no mais das vezes, por meio
do controle difuso, há também hipóteses relacionadas ao controle concentrado,
como ocorre, por exemplo, no sistema alemão, no qual não é dado a quaisquer
juízes pronunciar a inconstitucionalidade de atos normativos12: entendendo
pela inconstitucionalidade de determinada norma no julgamento de um caso
concreto, os magistrados precisam suspender o processo e submeter a matéria
ao prévio exame do Tribunal Constitucional, para, só então, poderem decidir
a demanda.13
No caso brasileiro, não se pode deixar de anotar também o julgamento
paradigmático da ADI 3470,14 que discutia a utilização do amianto em nosso
país, no qual o Supremo Tribunal Federal declarou incidentalmente a incons-
titucionalidade do art. 2º da Lei n. 9.055/1995, como questão prejudicial e
pressuposta para a análise do bloco normativo impugnado de forma principal
na ação direta. No referido precedente, o STF atribuiu eficácia erga omnes a essa
declaração incidente, sustentando ter havido mutação constitucional do art. 52,
X, da CRFB. Como fora realizada no bojo de uma ação direita de inconsti-
tucionalidade — em sede de controle abstrato e concentrado, portanto —, tal
10 
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, op.
cit., p. 1058.
11 
Ibidem, p. 1084.
12 
Assim estabelece o art. 100, (1), da Constituição Federal Alemã: “(1) Quando um tribunal considerar uma
lei, de cuja validade dependa a decisão, como inconstitucional, ele terá de suspender o processo e submeter a
questão à decisão do tribunal estadual competente em assuntos constitucionais, quando se tratar de violação
da constituição de um Estado, ou à decisão do Tribunal Constitucional Federal, quando se tratar da violação
desta Lei Fundamental. Isto também é aplicável, quando se tratar da violação desta Lei Fundamental pela
legislação estadual ou da incompatibilidade de uma lei estadual com uma lei federal” (ALEMANHA. Lei
Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949. Berlim: Parlamento Federal Alemão, 2019.
Disponível em: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf. Acesso em: 6 mar. 2021.).
13 
MENDES, Gilmar. Instituição e história das duas cortes judiciais. In: ______. Jurisdição constitucional:
o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, [livro eletrônico].
14 
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade 3470. Relatora:
Min. Rosa Weber, 29 de novembro de 2017. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
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<< Retorne ao sumário 180


CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

precedente ainda gera dúvidas sobre seu alcance, isto é, se a eficácia erga omnes se
daria, doravante, em quaisquer declarações incidentais de inconstitucionalidade
pronunciadas pelo STF — seja em controle concreto, seja em controle abstrato
de constitucionalidade, como há tempos defende o Min. Gilmar Mendes15 – ou
apenas quando essa declaração se desse em sede de controle abstrato.16 O STF,
entretanto, ainda não chegou a se pronunciar explicitamente sobre a referida
questão em julgamentos posteriores.

2.2.2. Controle de constitucionalidade pela via principal

O controle de constitucionalidade pela via principal — também cha-


mado de controle pela via de ação ou pela via direta ou, ainda, de controle
abstrato — é aquele que “permite o controle da norma in abstracto por meio
de uma ação de inconstitucionalidade prevista formalmente no texto cons-
titucional”.17 Como tal, prescinde da existência de um caso concreto ou
conflito específico, podendo a verificação da constitucionalidade da norma
ser instaurada no bojo de um processo que discuta a matéria apenas em tese
como questão principal.18
Sua origem histórica remonta à Constituição austríaca de 1920, na qual,
por inspiração das ideias de Hans Kelsen, foi prevista a criação de um órgão
específico — a Corte Constitucional —, que poderia ser provocado por meio
de ação de iniciativa do Governo Federal para apreciação, em abstrato, da cons-
titucionalidade das leis federais.19
Referido sistema de controle se caracteriza por ser instrumentalizado por
meio de um processo objetivo,20 cuja finalidade precípua é fiscalizar, abstratamente,
a compatibilidade dos atos normativos com a Constituição — daí a expressão
15 
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1131-1140.
16 
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 317-321.
17 
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 307.
18 
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1055.
19 
BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 309.
20 
Em passagem extremamente didática, constante de parecer exarado nos autos da Representação n. 1405,
o Min. Gilmar Ferreira Mendes, àquela época, na condição de representante do Ministério Público, assim
se manifestou sobre os caracteres do processo objetivo: “[...] um processo sem sujeitos, destinado, pura e
simplesmente, à defesa da Constituição [...]. Não se cogita, propriamente, da defesa de interesse do reque-
rente (Rechtsschutzbedürfnis), que pressupõe a defesa de situações subjetivas. Nesse sentido, assentou o
Bundesverfassungsgericht que, no controle abstrato de normas, cuida-se, fundamentalmente, de um processo
unilateral, não-contraditório, isto é, de um processo sem partes, no qual existe um requerente, mas inexiste
requerido [...]” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Representação 1405. Relator: Min. Moreira
Alves, 18 de maio de 1988. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=A-
C&docID=264115. Acesso em: 6 mar. 2021).

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

“controle pela via principal” —, resultando em uma decisão apta a extirpar a


norma impugnada do mundo jurídico de forma definitiva e com eficácia geral.21
Corresponde, assim, a mecanismo de controle “sumamente enérgico, pela sua
agressividade e radicalismo, pela natureza fulminante”.22
Em razão desses atributos, especialmente, do enorme impacto causado no
ordenamento jurídico, a competência para o seu exercício costuma ser atribuída
de forma exclusiva a órgãos específicos — geralmente, a um tribunal de cúpula
(corte suprema) ou a uma corte constitucional23 —, evitando-se, assim, que
tamanha potestade possa ser exercida de forma capilarizada, a gerar insegurança
jurídica e instabilidade política.
No Brasil, o controle abstrato de constitucionalidade assistiu aos seus
primeiros lampejos com a Constituição de 1934, que criou a ação direta de
inconstitucionalidade interventiva.24 Entretanto, foi a promulgação da Consti-
tuição de 1988 que potencializou, sobremaneira, o referido sistema, ao ampliar
o rol de legitimados para deflagrá-lo (art. 103 da CRFB/1988) e criar novas
espécies de ações destinadas a viabilizar esse controle — como, por exemplo,
a ação declaratória de constitucionalidade (inicialmente, inserida no § 4º do
art. 103 da CRFB/1988 por meio da Emenda Constitucional n. 3/1993) e a
arguição de descumprimento de preceito fundamental (inicialmente, prevista
no então parágrafo único do art. 102 da CRFB/1988).25
Além disso, também está expressa no texto constitucional a previsão da
eficácia erga omnes das decisões em sede de ação direta de inconstitucionalidade
e de ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, § 2º, da CRFB/1988,
com redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004), sendo que, quanto
à arguição de descumprimento de preceito fundamental, a previsão está contida
no art. 10, § 3º, da Lei n. 9.882/1999.

21 
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros,
2006, p. 53-54.
22 
BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 307.
23 
“Em linhas gerais, o Tribunal Constitucional de Kelsen é um órgão independente, que possui compe-
tência privativa para f iscalizar a constitucionalidade das leis e dos atos normativos de forma abstrata, isto é,
independente de um caso concreto, quando provocado por ação específ ica para a análise da compatibili-
dade entre o ato infraconstitucional e a Constituição” (GONÇALVES, Nicole P. S. Mäder. O Supremo
como Corte Constitucional. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin (coord.). Direito constitucional brasileiro:
organização do Estado e separação dos poderes. vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014,
[livro eletrônico]).
24 
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 51.
25 
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1103-1106.

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CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

3. A COISA JULGADA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

3.1. Breves considerações sobre a ação civil pública e seu objeto

Em antológico e festejado estudo sobre o acesso à justiça, no qual realiza-


ram uma aprofundada análise dos entraves para a efetivação do referido direito
fundamental, Mauro Cappelletti e Bryant Garth identificaram três movimentos
— a que chamaram de “ondas” —, relativamente uniformes, de respostas dadas
pelos ordenamentos jurídicos ocidentais com o objetivo de contornar os pro-
blemas para esse acesso. A segunda onda de tais respostas, segundo os autores,
“dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para
os interesses ‘difusos’”.26
No Brasil, também se verificou a presença dessa segunda onda, como
forma de viabilizar a tutela judicial de direitos não vinculados a um sujeito em
específico, mas relacionados ao interesse de toda uma coletividade, do que é marco
eloquente o advento da ação popular (Lei n. 4.717/1965)27 — embora, desde a
década de 1940, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) já contasse com
mecanismo de tutela de interesses coletivos, como o dissídio coletivo (arts. 856
e seguintes), sendo que, na década de 1950, também foi reconfigurada a ação
de cumprimento como ferramenta dessa natureza, inclusive, com a previsão de
substituição processual (art. 872, parágrafo único, com redação dada pela Lei
n. 2.275/1954).28
É nesse contexto que surge a ação civil pública, criada pela Lei n.
7.437/1985, com o objetivo de tutelar judicialmente a responsabilização por
danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e aos bens e direitos de valor
artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 1º, na redação original).
A consolidação do capitalismo pós-industrial,29 contribuindo para o surgi-
mento da sociedade de massas, aprofundou a necessidade de ampliação e aper-

26 
CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris, 1988, p. 31.
27 
PIZZOL, Patricia Miranda. Aspectos gerais da defesa dos direitos coletivos. In: PIZZOL, Patricia
Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: Thomson
Reuters, 2019, [livro eletrônico].
28 
“Em se tratando de ação coletiva de cumprimento, o sindicato autor da ação atua como substituto pro-
cessual, espécie de legitimação extraordinária, uma vez que ele atua judicialmente em nome próprio (sujeito
titular da ação), mas defendendo direitos ou interesses individuais homogêneos dos trabalhadores (titulares
do direito material deduzido na ação). Cuida-se, aqui, de autêntica ação coletiva para defesa de interesses
individuais homogêneos, nos moldes do art. 8º, III, da CF e do art. 92 do CDC” (LEITE, Carlos Henrique
Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 1574).
29 
Segundo a lição de Fábio Konder Comparato, são características desse novo modelo econômico: “a mudança
do foco principal da atividade econômica, da produção industrial para a prestação de serviços; a supremacia
das indústrias baseadas no novo saber tecnológico, notadamente a informática e a robótica; e uma nova

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

feiçoamento dos mecanismos de tutela judicial dos interesses metaindividuais,30


do que é reflexo a publicação do Código de Defesa do Consumidor - CDC
(Lei n. 8.078/1990), trazendo também toda uma sistemática para a tutela dos
interesses coletivos em juízo. Além disso, o CDC reincluiu a regra do inciso IV
no art. 1º da Lei n. 7.437/1985, prevendo a possibilidade de utilização da ação
civil pública para a defesa de quaisquer interesses difusos ou coletivos – dispo-
sição que estava presente no projeto originariamente aprovado pelo Congresso
Nacional para a ação civil pública, mas que fora vetada pela Presidência da
República, quando da publicação da Lei n. 7.347/1985.
A reinclusão desse dispositivo permitiu, assim, à doutrina reconhecer
que a ação civil pública, doravante, poderia ter por objeto quaisquer espécies de
interesses coletivos, isto é, quer se tratassem de interesses difusos ou coletivos em
sentido estrito, quer de direitos individuais homogêneos (art. 81, parágrafo único,
do CDC).31 Embora tenha havido alguma claudicação inicial nesse tocante, a
jurisprudência terminou por pacificar a matéria e referendar a possibilidade de
utilização ampla da ação civil pública, para quaisquer dessas espécies de direi-
tos ou interesses, inclusive, reconhecendo ao Ministério Público legitimidade
para tanto.32

estratificação social, com o aparecimento de uma elite de poder (a power elite de C. Wright Mills), dotada
de apreciável saber técnico” (COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o
mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, [livro eletrônico]).
30 
“Realmente, as características da vida contemporânea produzem a emersão de uma série de situações
em que, longe de achar-se em jogo o direito ou o interesse de uma única pessoa, ou de algumas pessoas
individualmente consideradas, o que sobreleva, o que assume proporções mais imponentes, é precisamente o
fato de que se formam conflitos nos quais grandes massas estão envolvidas, e um dos aspectos pelos quais o
processo recebe o impacto desta propensão do mundo contemporâneo para os fenômenos de massa: produção
de massa, distribuição de massa, cultura de massa, comunicação de massa e, por que não, processo de massa?”
(BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. In: MILARÉ, Édis
(coord.). Ação civil pública após 35 anos. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, [livro eletrônico]).
31 
“Com o advento do CDC, o âmbito de abrangência da LACP foi ampliado, de sorte que podem ser
propostas todas e quaisquer ações para a tutela dos direitos protegidos pela LACP (CDC 83, 90; LACP
21). [...] Não há mais limitação ao tipo de ação, para que as entidades enumeradas na LACP 5.º e CDC 82
estejam legitimadas à propositura da ACP para a defesa, em juízo, dos direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos” (NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Ação civil pública – art. 1º. In: NERY
JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis Processuais Civis anotadas e comentadas. São Paulo:
Thomson Reuters Brasil, 2019, [livro eletrônico]).
32 
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE.
INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS. CONTRATO PARA REALIZAÇÃO DE OBRA PÚBLICA.
1. O art. 127 da Constituição Federal estabelece a competência do Ministério Público para promover, por
meio da ação civil pública, na forma do seu art. 129 e do art. 1º, IV, da Lei n. 7.347/85, a defesa dos interesses
sociais e individuais indisponíveis. 2. É assente na doutrina e jurisprudência que o objeto da ação civil pública
abarca quaisquer direitos transindividuais, sejam eles difusos ou coletivos, ou mesmo individuais homogêneos,
uma vez que a defesa judicial promovida por meio de tais ações não se esgota nas hipóteses contempladas
no art. 1º da Lei n. 7.347/85. [...]” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). Recurso Especial
224.677/MT. Relator: Min. João Otávio de Noronha, 7 de junho de 2005. Disponível em: https://scon.
stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=199900673620&dt_publicacao=01/08/2005.
Acesso em: 6 mar. 2021).

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CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

3.2. A eficácia da coisa julgada em sede de ação civil pública

Conforme visto anteriormente, a criação da ação civil pública veio como


uma resposta do ordenamento jurídico para a tutela judicial dos interesses coletivos
em sentido amplo, sendo que o tratamento molecularizado desses direitos — em
detrimento daquele atomizado e individual tradicionalmente dispensado —, busca
atingir diversos objetivos, dentre os quais “substituir várias ações individuais,
o que permite uma melhor atuação do Judiciário, além de proporcionar maior
segurança jurídica, pois são evitados julgamentos conflitantes”. Assim, referido
mecanismo “fortalece o Judiciário, racionalizando o seu trabalho, permitindo a
sua participação nas grandes controvérsias nacionais”.33
Em razão disso, o art. 16 da Lei n. 7.347/1985 previu, em sua redação ori-
ginal — tal como o fizera o art. 18 da Lei n. 4.717/1965 (Lei da Ação Popular)
—, que a coisa julgada em sede de ação civil pública produziria — salvo o caso de
improcedência por insuficiência de provas (coisa julgada secundum eventum proba-
tionis) —, eficácia erga omnes, isto é, aptidão para atingir “a esfera jurídica de todos
aqueles que estiverem, de alguma forma, envolvidos na matéria objeto da ACP”.34
É verdade que o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990,
veio a trazer novas luzes sobre o regramento da matéria, tendo o seu art. 103
estabelecido uma complementação e uma melhor explicitação da eficácia da
coisa julgada produzida nas ações coletivas, sendo:
a) erga omnes, salvo se o pedido for julgado improcedente,
por insuficiência de provas, quando o seu objeto for a
defesa de interesses ou direitos difusos (CDC, art. 82, I,
c.c. art. 103, I);
b) ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou
classe de pessoas, exceto na hipótese de improcedência por
falta de provas, quando a ação tiver por escopo a defesa
de direitos ou interesses coletivos (CDC, art. 81, III, c.c.
art. 103, III);
c) erga omnes, apenas em caso de procedência do pedido (in
utilibus), para beneficiar todos os titulares dos direitos mate-
riais correspondentes (CDC, art. 81, III, c.c. art. 103, III).35

33 
PIZZOL, Patricia Miranda. Aspectos gerais da defesa dos direitos coletivos. In: PIZZOL, Patricia
Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: Thomson
Reuters, 2019, [livro eletrônico].
34 
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Ação civil pública – art. 16. In: NERY JR., Nelson;
NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis Processuais Civis anotadas e comentadas. São Paulo: Thomson
Reuters Brasil, 2019, [livro eletrônico].
35 
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação civil pública na perspectiva dos direitos humanos. 2. ed. São
Paulo: LTr, 2008, p. 172.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Embora previsto no texto da legislação consumerista, referido regramento


aplica-se regularmente à disciplina da ação civil pública, conforme cláusulas de
abertura e de recíproca imbricação previstas no art. 21 da Lei n. 7.347/1985
e no art. 90 do CDC. Juntamente com as disposições constitucionais e outras
constantes de diplomas legislativos — por exemplo, a Lei Complementar n.
75/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União) e o Código de Processo
Civil —, formam um só bloco normativo de disciplina da tutela coletiva, motivo
pelo qual “não há como deixar de reconhecer, em nosso sistema processual,
a existência de um subsistema específico, rico e sofisticado, aparelhado para
atender aos conflitos coletivos, característicos da sociedade moderna”,36 isto é,
um “sistema integrado de acesso coletivo à justiça”.37
Ocorre que, por meio da Medida Provisória n. 1570/1997 — posterior-
mente, convertida na Lei n. 9.494/1997 —, foi dada nova redação ao art. 16
da Lei n. 7.347/1985: o dispositivo passou a prever que a eficácia erga omnes
da coisa julgada produzida em sede de ação civil pública se daria apenas “nos
limites da competência territorial do órgão prolator”.
A inovação gerou consideráveis comentários na doutrina e calorosos
embates na jurisprudência.
Por um lado, há os que defendem a correção do novo texto legislativo,
como, por exemplo, externou o Min. Marco Aurélio, no julgamento da medida
cautelar na ADI 1576 pelo STF — que questionava a constitucionalidade
do novo texto. Segundo ele, a nova redação teria servido apenas para melhor
explicitar a matéria, na medida em que o dispositivo já limitava, “mesmo
na redação primitiva, a coisa julgada erga omnes da sentença civil à área de
atuação do órgão que viesse a prolatá-la”. Assim, a alteração da norma seria
“pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação
do juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis
de regência”.38
Entretanto, predomina, em âmbito doutrinário, uma visão crítica quanto
à nova redação, pois é “difícil compatibilizar essa espécie de limitação com a
natureza jurídica da coisa julgada (= que nada mais é do que uma qualidade da
sentença, a da sua imutabilidade)”. Assim, “é incompreensível como se possa
cindir territorialmente a imutabilidade assim constituída, limitando-a, por

36 
ZAVASCKI, Teori Albino. A “revolução” brasileira no domínio do processo coletivo. In: ZAVASCKI,
Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2017, [livro eletrônico].
37 
LEITE, Carlos Henrique Bezerra, op. cit., p. 87.
38 
STF - ADI 1576 MC, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 16/04/1997, DJ
06-06-2003 PP-00029 EMENT VOL-02113-01 PP-00123. Ressalte-se que a referida ADI foi, posterior-
mente, extinta sem resolução de mérito.

<< Retorne ao sumário 186


CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

exemplo, a uma comarca, ou a uma cidade, ou até, em caso de juiz que atua em
vara distrital, a apenas uma parte da cidade”.39
Na verdade, segundo aponta a doutrina, tudo leva a crer que a nova
redação decorreu de confusão dos “limites subjetivos da coisa julgada, matéria
tratada na norma, com jurisdição e competência, como se, v.g., a sentença de
divórcio proferida por juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro e
nesta última comarca o casal continuasse casado”.40 A prevalecer a interpretação
literal do dispositivo, poder-se-ia ter “a produção de uma estranha sentença,
com duas qualidades: seria válida, eficaz e imutável em determinado território,
mas seria válida, eficaz e mutável fora desse território”.41
Nesse contexto, a proposta hermenêutica prevalecente considera como
de nenhuma eficácia a nova redação dada ao dispositivo, ante as normas que
regem o microssistema processual de tutela coletiva, como se vê, por exemplo,
das lições de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, os quais, inclusive,
atribuem a pecha da inconstitucionalidade ao dispositivo:
A norma, na redação dada pela L 9494/97, é inconstitu-
cional e ineficaz. Inconstitucional por ferir os princípios
do direito de ação (CF 5.º XXXV), da razoabilidade e da
proporcionalidade e porque o Presidente da República a
editou, por meio de medida provisória, sem que houvesse
autorização constitucional para tanto, pois não havia urgên-
cia (o texto anterior vigorava há doze anos, sem oposição
ou impugnação), nem relevância, requisitos exigidos pela
CF 62 caput para que o Presidente da República possa,
em caráter absolutamente excepcional, legislar por MedProv.
Ineficaz porque a alteração ficou capenga, já que incide o
CDC 103 nas ações coletivas ajuizadas com fundamento
na LACP, por força do LACP 21 e CDC 90. [...]
Pela superveniência do CDC, houve revogação tácita da
LACP 16 (de 1985) pela lei posterior (CDC, de 1990),
conforme dispõe a LINDB 2.º § 1.º. Assim, quando editada
a L 9494/97, não mais vigorava o LACP 16, de modo que
ela não poderia ter alterado o que já não existia. Para que
a “nova redação” da LACP 16 pudesse ter operatividade
(existência, validade e eficácia formal e, por consequência,
material), deveria a L 9494/97 ter incluído na LACP o art.
39 
ZAVASCKI, Teori Albino. Sentença e coisa julgada. In: ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo:
tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, [livro eletrônico].
40 
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Ação civil pública – art. 16. In: NERY JR., Nelson;
NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis Processuais Civis anotadas e comentadas. São Paulo: Thomson
Reuters Brasil, 2019, [livro eletrônico].
41 
ZAVASCKI, Teori Albino. Sentença e coisa julgada. In: ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo:
tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, [livro eletrônico].

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

16, já que não se admite, no direito brasileiro, a repristinação


de lei (LINDB 2.º § 3.º), e, ainda, a esse artigo incluído,
dar nova redação. Portanto, também por esse argumento
não mais existe o revogado sistema da coisa julgada que
vinha previsto na LACP 16. O dispositivo legal que se
encontra em vigor sobre o assunto é, hoje, o CDC 103.42
No âmbito da jurisprudência do STJ, resgatando o passado próximo, uma
primeira tentativa de pacificação da matéria se deu com o julgamento do REsp
1243887/PR, em que se estabeleceu: “os efeitos e a eficácia da sentença não
estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do
que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano
e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo”.43 Entretanto, o
caso — que tratava de expurgos inflacionários de poupadores do Banestado do
Paraná — continha uma peculiaridade que foi importante para o desfecho do
julgamento: o fato de se tratar de sentença já transitada em julgado, na qual,
expressamente, constara que efeitos se estenderiam para além da comarca do
órgão prolator da decisão, alcançando todo o Estado.
Assim, a matéria voltou a ser revisitada, desta feita, quando do julgamento
do EREsp 1134957/SP, ocasião em que foi reafirmado o quanto decidido no
REsp 1243887/PR e esclarecido ser “indevido limitar, aprioristicamente, a
eficácia de decisões proferidas em ações civis públicas coletivas ao território da
competência do órgão judicante”.44

42 
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Ação civil pública – art. 16. In: NERY JR., Nelson;
NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis Processuais Civis anotadas e comentadas. São Paulo: Thomson Reuters
Brasil, 2019, [livro eletrônico]. Registre-se, também, por oportuno, a existência de uma corrente intermediária,
que propõe o seguinte: “O sentido da limitação territorial contida no art. 16, antes referido, há de ser identi-
ficado por interpretação sistemática e histórica. Ausente do texto original da Lei 7.347/1985, sua gênese foi
a nova redação dada ao dispositivo pelo art. 2.º da Lei 9.494, de 10.09.1997. [...] O que ele objetiva é limitar
a eficácia subjetiva da sentença (= e não da coisa julgada), o que implica, necessariamente, limitação do rol dos
substituídos no processo (= que se restringirá aos domiciliados no território da competência do juízo). [...]
Co
mpreendida a limitação territorial da eficácia da sentença nos termos expostos, é possível conceber idêntica
limitação à eficácia da respectiva coisa julgada. Nesse pressuposto, em interpretação sistemática e construtiva,
pode-se afirmar, portanto, que a eficácia territorial a que se refere o art. 16 da Lei 7.347/1985 diz respeito
apenas à eficácia das sentenças proferidas em ações coletivas para tutela de direitos individuais homogêneos,
de que trata o art. 2.º-A da Lei 9.494/1997, e não, propriamente, às sentenças que tratam de típicos direi-
tos transindividuais” (ZAVASCKI, Teori Albino. Sentença e coisa julgada. In: ZAVASCKI, Teori Albino.
Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2017, [livro eletrônico]).
43 
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Corte Especial). Recurso Especial 1243887/PR. Relator: Min.
Luis Felipe Salomão, 19 de outubro de 2011. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeor-
DoAcordao?num_registro=201100534155&dt_publicacao=12/12/2011. Acesso em: 6 mar. 2021.
44 
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Corte Especial). Embargos de Divergência em Recurso Espe-
cial 1134957/SP. Relatora: Min. Laurita Vaz, 24 de outubro de 2016. Disponível em: https://scon.stj.jus.
br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201300519527&dt_publicacao=30/11/2016. Acesso
em: 6 mar. 2021.

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CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Dessa forma, pode-se dizer que a jurisprudência do STJ está posicionada


no sentido de ser indevida a limitação geográfica de que trata o art. 16 da Lei
n. 7.347/1985 e a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho também
não discrepa dessa mesma orientação.45
A novela envolvendo a matéria também chegou mais recentemente ao
STF, uma vez que a Corte admitiu o RE 1101937, sob o regime da reper-
cussão geral, para discutir a constitucionalidade do referido art. 16 da Lei n.
7.347/1985 com a redação dada pela Lei n. 9.494/1997. O julgamento foi
iniciado em 4 março de 2021, já contando com 6 votos favoráveis à inconsti-
tucionalidade, nos termos do voto do relator, Min. Alexandre de Moraes. O
julgamento, entretanto, ainda não foi finalizado, em razão de pedido de vistas
do Min. Gilmar Mendes.46

4. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM
SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Após esse breve percurso, no qual se pretendeu fixar as principais premissas


para o enfrentamento da questão central que ocupa este trabalho, cabe analisar,
doravante, as possibilidades e contornos do controle de constitucionalidade em
sede de ação civil pública. Para tanto, proponhamos um exemplo, que servirá de
intróito ao raciocínio a ser desenvolvido.
Suponhamos que determinada lei federal, editada pela União sob o
argumento de proteção à segurança pública, venha a determinar que os órgãos
de fiscalização das relações de trabalho, quando de suas atividades de inspe-
ção, passem a exigir a apresentação de certidão de antecedentes criminais de
todos os trabalhadores da empresa fiscalizada. O Ministério Público, tomando
conhecimento da matéria, ajuíza ação civil pública, postulando a condenação
da União em obrigação de não fazer, consistente na abstenção da exigência da
mencionada certidão, por entender a medida como discriminatória e despropor-
cional. Apresenta, como fundamento do pedido, a incompatibilidade da norma
com a Constituição Federal.
Nesse contexto, eventual decisão que acolhesse a pretensão, por entender
configurada a violação à Constituição, ainda que incursionando na matéria de

45 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (Subseção I Especializada em Dissídios Individuais). Embargos
em Recurso de Revista 139700-61.2002.5.03.0050. Relator: Min. Walmir Oliveira da Costa, 21 de novembro
de 2019. Disponível em: https://jurisprudencia-backend.tst.jus.br/rest/documentos/3b1e51bee005b4c0a-
12d7065a18120f7. Acesso em: 6 mar. 2021.
46 
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Recurso Extraordinário 1101937. Relator: Min. Alexandre
de Moraes, 4 março de 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5336275.
Acesso em: 6 mar. 2021.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

forma meramente incidental, teria os mesmos efeitos práticos de uma decisão


do STF em sede de controle abstrato, uma vez que suprimiria qualquer efeito
concreto da norma editada, a despertar o debate em torno da possibilidade do
controle de constitucionalidade nas ações civis públicas.
Uma primeira corrente, entendendo que a ação civil pública assemelha-se
muito a um processo objetivo – visto que a parte autora não defende situações
subjetivas específicas, mas, sim, postula uma tutela de interesse público –, posi-
ciona-se pela impossibilidade da declaração de inconstitucionalidade, mesmo
que incidentalmente. Segundo essa vertente, a decisão acarretaria efeitos seme-
lhantes aos produzidos nas ações de controle abstrato de constitucionalidade,
ante a eficácia erga omnes da coisa julgada:
Isso significa que, se utilizada com o propósito de proce-
der ao controle de constitucionalidade, a decisão que, em
ação civil pública, afastar a incidência de dada norma por
eventual incompatibilidade com a ordem constitucional
acabará por ter eficácia semelhante à das ações diretas de
inconstitucionalidade, isto é, eficácia geral e irrestrita. [...]
Em verdade, ainda que se pudesse acrescentar algum outro
desiderato adicional a uma ação civil pública destinada a
afastar a incidência de dada norma infraconstitucional, é
certo que o seu objetivo precípuo haveria de ser a impug-
nação direta e frontal da legitimidade de ato normativo.
Não se trataria de discussão sobre aplicação de lei a caso
concreto, porque de caso concreto não se cuida. [...]
Nessas condições, para que se não chegue a um resultado
que subverta todo o sistema de controle de constitucio-
nalidade adotado no Brasil, tem-se de admitir a completa
inidoneidade da ação civil pública como instrumento de
controle de constitucionalidade, seja porque ela acabaria
por instaurar um controle direto e abstrato no plano da
jurisdição de primeiro grau, seja porque a decisão haveria
de ter, necessariamente, eficácia transcendente das par-
tes formais.47
Noutro giro, defendendo a possibilidade, sem ressalvas, do controle inci-
dental de constitucionalidade em sede de ação civil pública, está a doutrina de
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery:
O objeto da ACP é a defesa de um dos direitos tutelados
pela CF, pelo CDC e pela LACP. A ACP pode ter como
fundamento a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

47 
MENDES, Gilmar Ferreira. O controle incidental de normas no direito brasileiro. Revista dos Tribunais,
São Paulo, vol. 760, p. 11-39, fev. 1999, [documento eletrônico].

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CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

O objeto da ADIn é a declaração, em abstrato, da incons-


titucionalidade de lei ou ato normativo, com a consequente
retirada da lei declarada inconstitucional do mundo jurídico
por intermédio da eficácia erga omnes da coisa julgada. Assim,
o pedido na ACP é a proteção do bem da vida tutelado pela
CF, CDC ou LACP, que pode ter como causa de pedir a
inconstitucionalidade de lei, enquanto o pedido na ADIn
será a própria declaração da inconstitucionalidade da lei. São
inconfundíveis os objetos da ACP e da ADIn.48
Perfilhando uma corrente intermediária, Teori Albino Zavascki sus-
tenta que, em regra, “não há empecilho algum a que, nesses limites, a sua
constitucionalidade ou inconstitucionalidade seja incidentalmente averiguada,
aferindo-se a aptidão ou não da norma para operar a incidência sobre os fatos
e para produzir os correspondentes efeitos jurídicos”. Entretanto, quando
eventual declaração de inconstitucionalidade na ação civil pública, ainda que
incidental, venha a acarretar efeitos semelhantes ao de uma decisão em sede
de controle abstrato de constitucionalidade, retirando qualquer efeito concreto
da norma analisada – como no exemplo citado ao início deste tópico –, a
conclusão deveria ser diversa, pois, caso contrário, “significaria inadmissível
deformação do sistema de controle concentrado de constitucionalidade, a
ser repelida”.49
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência da Corte tem
admitido, como regra, o controle incidental de constitucionalidade nas ações
civis públicas,50 mas tem também ressalvado as situações em que a utilização
desta ação se dê com o intuito de atingir os mesmos efeitos práticos do controle

48 
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Ação civil pública – art. 1º. In: NERY JR., Nelson;
NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 2. ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, [livro eletrônico].
49 
ZAVASCKI, Teori Albino. Sentença com eficácia erga omnes e controle incidental de constitucionalidade.
In: ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, [livro eletrônico].
50 
E M E N T A: RECLAMAÇÃO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO
RECURSO DE AGRAVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – CONTROLE INCIDENTAL DE CONS-
TITUCIONALIDADE – QUESTÃO PREJUDICIAL – POSSIBILIDADE – INOCORRÊNCIA
DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PRECEDEN-
TES – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a
legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de
constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados
em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional,
longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial,
indispensável à resolução do litígio principal. Precedentes. Doutrina (BRASIL. Supremo Tribunal Federal
(2. Turma). Embargos de Declaração na Reclamação 1898. Relator: Min. Celso de Mello, 10 de junho
de 2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6438642.
Acesso em: 6 mar. 2021).

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

abstrato de constitucionalidade51 ou mesmo quando se perceba a tentativa de


dissimular esse mesmo sistema de controle, usurpando a competência do STF.52
A nosso ver, analisando a questão de lege lata, pensamos que não há como
deixar de reconhecer a possibilidade ampla de controle incidental da consti-
tucionalidade de atos normativos em sede de ação civil pública. Isso porque o
controle incidental de constitucionalidade decorre do regime adotado por nossa
Constituição e não há qualquer disposição na legislação restringindo a sua
utilização de forma incidental, independente da modalidade de tutela buscada
judicialmente – se individual ou coletiva. Aliás, cabe destacar que, na doutrina,
51 
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE DE CONS-
TITUCIONALIDADE. OCUPAÇÃO DE LOGRADOUROS PÚBLICOS NO DISTRITO FEDERAL.
PEDIDO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM DA LEI 754/1994 DO
DISTRITO FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM. RECURSO DO DISTRITIO FEDERAL DES-
PROVIDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL PREJUDICADO.
Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal com pedidos múltiplos, dentre eles,
o pedido de declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum da lei distrital 754/1994, que disciplina
a ocupação de logradouros públicos no Distrito Federal. Resolvida questão de ordem suscitada pelo relator
no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade da lei 754/1994 pelo Tribunal de Justiça do Distrito
Federal não torna prejudicado, por perda de objeto, o recurso extraordinário. A jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal tem reconhecido que se pode pleitear a inconstitucionalidade de determinado ato norma-
tivo na ação civil pública, desde que incidenter tantum. Veda-se, no entanto, o uso da ação civil pública para
alcançar a declaração de inconstitucionalidade com efeitos erga omnes. No caso, o pedido de declaração de
inconstitucionalidade da lei 754/1994 é meramente incidental, constituindo-se verdadeira causa de pedir.
Negado provimento ao recurso extraordinário do Distrito Federal e julgado prejudicado o recurso extraor-
dinário ajuizado pelo Ministério Público do Distrito Federal. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno).
Recurso Extraordinário 424993. Relator: Min. Joaquim Barbosa, 12 de setembro de 2007. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=491236. Acesso em: 6 mar. 2021).
52 
EMENTA Constitucional e Processual Civil. Reclamação constitucional. Subsídio mensal e vitalício
pago a ex-ocupantes do cargo de chefe do Poder Executivo. Ação civil pública. Contorno de ação direta de
inconstitucionalidade. Usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal. Reclamação julgada proce-
dente. 1. A ausência de identidade entre os atores elencados como responsáveis pela prática dos atos lesivos
ao patrimônio público e aos princípios da Administração Pública na narrativa apresentada na peça vestibular
da ação civil pública e aqueles indicados para integrar o polo passivo da lide, bem como a constatação de que
o adimplemento do benefício está fundamentado em ato normativo geral editado pelo Poder Legislativo
do Estado do Mato Grosso e que o pedido de cessação do pagamento do benefício está fundamentado em
normas constitucionais evidenciam a pretensão final da ACP de que se declare a inconstitucionalidade da
parte final do art. 1º da Emenda à Constituição estadual nº 22/2003, esvaziando a eficácia da referida norma.
2. A pretensão deduzida nos autos da ação civil pública está dissociada da natureza típica das ações de res-
ponsabilização cível; se destina, antes, a dissimular o controle abstrato de constitucionalidade da parte final do
art. 1º da Emenda nº 22/2003 à Constituição do Estado do Mato Grosso, que, ao extinguir a pensão vitalícia
paga aos ex-ocupantes do cargo de chefe do Poder Executivo estadual, assegurou a manutenção do pagamento
àqueles que já houvessem adquirido o direito de gozar o benefício. 3. Há usurpação da competência do STF
inscrita no art. 102, I, a, da CF/88 quando configurado o ajuizamento de ação civil pública com o intento
de dissimular o controle abstrato de constitucionalidade de ato normativo estadual em face da Constituição
Federal. 4. Arquivamento da ação civil pública, ante a ausência de legitimidade ativa ad causam do Parquet
estadual para propor ação direta de inconstitucionalidade perante a Suprema Corte, nos termos do art. 103
da CF/88. Precedentes. 5. Reclamação julgada procedente para cassar a decisão que julgou procedente o
pedido formulado nos autos da ação civil pública, declarar a incompetência do juízo de primeira instância e
determinar o arquivamento da ação. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Reclamação 19662.
Relator: Min. Dias Toffoli, 6 de setembro de 2016. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=13250930. Acesso em: 6 mar. 2021).

<< Retorne ao sumário 192


CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

há até mesmo quem reconheça nesse mecanismo os atributos correspondentes


a um direito fundamental.53
Por outro lado, cabe destacar, conforme bem pontua Georges Abboud,
que “a sentença proferida na ação civil pública não impede a reapreciação da
mesma questão pelo STF em sede de controle abstrato por meio de ADIn
ou ADC”,54 o que, portanto, demonstra que não há a produção integral dos
mesmos efeitos jurídicos do controle abstrato – como, por exemplo, a imutabi-
lidade da questão decidida, por força da coisa julgada. Também assim, como
destaca o referido autor, a decisão em sede de ação civil pública não produz o
“efeito vinculante aos particulares – algo apenas possível no controle abstrato
de constitucionalidade”.55
Entretanto, não há como deixar de reconhecer também a acentuada
repercussão política das decisões proferidas em sede de controle de constitu-
cionalidade. Ainda que em caráter incidental, o reproche judicial a determinada
norma jurídica, por incompatibilidade com a Constituição, “es, esencialmente,
control político y, cuando se impone frente a los otros detentadores del poder,
es, en realidad, una decisión política”.56 Assim, quanto mais amplos os efeitos
concretos produzidos pela declaração incidental de inconstitucionalidade, maior
será o impacto político gerado pela decisão, o que, indubitavelmente, descamba,
se não para um confronto, pelo menos, para uma tensão entre a legitimidade
política da norma rejeitada e a legitimidade política do controle incidental e
difuso de constitucionalidade.
Daí por que, maturando a problemática e imaginando possíveis soluções de
lege ferenda, concordamos com a proposta aventada por Gilmar Mendes, inspirada
no modelo alemão, para a criação de um incidente de inconstitucionalidade, que:
[...] permitiria fosse apreciada diretamente pelo STF con-
trovérsia sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal, estadual ou municipal, inclusive os atos anteriores
à Constituição, a pedido do Procurador-Geral da Repú-
blica, do Advogado-Geral da União, do Procurador-Geral
de Justiça e do Procurador-Geral do Estado, sempre que
houvesse perigo de lesão à segurança jurídica, à ordem ou

53 
ABBOUD, Georges. A importância de se conferir natureza de direito fundamental à judicial review. In:
ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020,
[livro eletrônico].
54 
ABBOUD, Georges. Controle difuso de constitucionalidade e declaração de não recepção de leis
inconstitucionais em ações coletivas. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 926, p. 571-606, dez. 2012,
[documento eletrônico].
55 
Ibidem, [documento eletrônico].
56 
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. 2. ed. Trad.: Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona:
Editorial Ariel, 1976, p. 309.

<< Retorne ao sumário 193


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

às finanças públicas. A Suprema Corte poderia, acolhendo


incidente de inconstitucionalidade, determinar a suspensão
de processo em curso perante qualquer juízo ou tribunal
para proferir decisão exclusivamente sobre a questão federal
suscitada.57
A criação do referido incidente teria o condão de permitir que a discussão
da constitucionalidade da norma, nos casos de maior relevância e repercussão
social – como naqueles em que os efeitos concretos do ato normativo fossem
praticamente suprimidos pela decisão em controle incidental e difuso de
constitucionalidade –, pudesse ser, desde logo, afetada ao Supremo Tribunal
Federal, a quem, indubitavelmente, caberá a palavra final sobre a matéria,
evitando-se, assim, um quadro de insegurança jurídica e acelerando-se a
pacificação da questão.58 Aliás, seguindo lógica aparentemente semelhante, o
CPC/2015 criou a figura do Incidente de Assunção de Competência – IAC
(arts. 947 e seguintes).
É importante destacar, ainda, que a referida proposta – de lege ferenda,
repita-se – “não altera, em seus fundamentos, o sistema difuso de controle
de constitucionalidade, introduzido entre nós pela Constituição de 1891”,59
pois quando:
[...] o ‘incidente’ não for argüido, e sempre haverá questões
que não despertem o interesse dos legitimados especiais em
um país com as dimensões do nosso, com tantas unidades
federadas, o controle difuso da constitucionalidade, inclusive
no subtipo controle coletivo, manter-se-ia intacto.60
A criação do referido incidente até chegou a ser objeto do substitutivo
apresentado pelo Deputado Jairo Carneiro (PFL/BA), quando da tramitação da
Proposta de Emenda à Constituição n. 96/1992, de iniciativa do então Deputado
Hélio Bicudo (PT/SP) e que, posteriormente, resultou na Emenda Constitucional
n. 45/2004 (Reforma do Judiciário). Entretanto, o referido substitutivo sequer
chegou a ser submetido a votação.61 De qualquer forma, pensamos que a ideia
57 
MENDES, Gilmar Ferreira. O controle incidental de normas no direito brasileiro. Revista dos Tribunais,
São Paulo, vol. 760, p. 11-39, fev. 1999, [documento eletrônico].
58 
PALU, Oswaldo Luiz. O controle coletivo de constitucionalidade no direito brasileiro – uma evolução
democrática e simplificadora. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 765, p. 34-47, jul. 1999, [documento
eletrônico].
59 
MENDES, Gilmar Ferreira. O controle incidental de normas no direito brasileiro. Revista dos Tribunais,
São Paulo, vol. 760, p. 11-39, fev. 1999, [documento eletrônico].
60 
PALU, Oswaldo Luiz. O controle coletivo de constitucionalidade no direito brasileiro – uma evolução
democrática e simplificadora. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 765, p. 34-47, jul. 1999, [documento
eletrônico].
61 
SADEK, Maria Tereza. Controle externo do Poder Judiciário. In: SADEK, Maria Tereza. Reforma do
Judiciário. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010, p. 39-45. Disponível em: https://

<< Retorne ao sumário 194


CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

é benfazeja e salutar para melhor amortecer as tensões políticas decorrentes


de algumas decisões de controle incidental de constitucionalidade em sede de
ação civil pública.

5. CONCLUSÃO

Os sistemas de controle de constitucionalidade são pilares fundamentais


na preservação da supremacia e da força da Constituição. Em um regime de
democracia constitucional, a ausência de mecanismos judiciais efetivos para a
defesa das normas constitucionais pode acarretar severas injustiças, além de
colocar em risco os mais elementares direitos fundamentais do ser humano.
Por outro lado, a realização desse controle tem enorme potencial para
gerar consideráveis tensões em matéria de legitimidade democrática, especial-
mente, quando passível de ser exercido por qualquer órgão do Poder Judiciário
e, ainda mais, no bojo de um provimento com eficácia erga omnes, como ocorre
na ação civil pública.
Nesse contexto, à luz das ideias recolhidas e desenvolvidas ao longo deste
ensaio, algumas inferências podem ser apresentadas, refletindo uma síntese
conclusiva do percurso teórico até aqui desenvolvido:
i) os sistemas de controle de constitucionalidade se fundamentam na
premissa da supremacia e da rigidez da Constituição. Podem ser estruturados,
executados e classificados de diversas modalidades, sendo que, no controle pela
via incidental, a coisa julgada tem eficácia restrita às partes, enquanto que, no
controle pela via principal, a coisa julgada tem eficácia erga omnes;
ii) de lege lata, não há qualquer impeditivo para a realização do controle
incidental de constitucionalidade em sede de ação civil pública, uma vez que a
eficácia erga omnes da coisa julgada produzida nessas ações não gera a imutabi-
lidade da discussão da questão constitucional e nem tem o condão de vincular
sujeitos não relacionados com a matéria;
iii) de lege ferenda, seria salutar a criação de um incidente de inconstitu-
cionalidade para viabilizar, em casos de maior relevância e destacado interesse
social – como naqueles em que os efeitos concretos do ato normativo fos-
sem praticamente suprimidos pela decisão em controle incidental e difuso de
constitucionalidade decorrente de ação civil pública –, a afetação da questão
constitucional ao Supremo Tribunal Federal, permitindo, assim, um melhor
equacionamento das tensões políticas provocadas pelo exercício da jurisdição
constitucional.

static.scielo.org/scielobooks/6kf82/pdf/sadek-9788579820335.pdf. Acesso em: 15/1/2021.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

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Sites consultados
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Min. Walmir Oliveira da Costa, 21 de novembro de 2019. Disponível em: https://juris-
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Acesso em: 6 mar. 2021.

<< Retorne ao sumário 198


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN
ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO
RETROCESSO SOCIAL

The extinction of the hours in itinere under


the analysis of the principle of sealing to
social backsliding

José Elias Seibert Santana Junior1

Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar o impacto que a supres-
são das horas in itinere, trazida pela lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista),
trouxe para a classe operária. Dentro desse contexto, observa-se que as horas
in itinere (tempo de deslocamento) surgiram no ordenamento jurídico como
com intuito de proteger aqueles trabalhadores que passam bastante tempo
no deslocamento de sua casa para o trabalho. Inicia-se o estudo sob a análise
dos princípios especiais e específicos do direito do trabalho. Posteriormente,
estuda-se o surgimento e a caracterização das horas in itinere. Logo depois, é
analisado a (in)aplicabilidade da Lei nº 13.467/2017 nos contratos celebrados
e ainda vigentes antes da nova norma. Por fim, adentra-se na problemática
que é o estudo da extinção das horas in itinere, trazida pela nova lei, a qual
viola o princípio constitucional da vedação ao retrocesso social. Assim sendo,

1 
Pós-Graduado em Novas Metodologias e Práticas Docentes no Ensino Superior - Faculdades Santo
Agostinho Vitória da Conquista/BA. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho
com Capacitação para o Ensino no Magistério Superior pela Faculdade Damásio de Jesus. Graduado em
Direito pela Faculdade do Sul - FACSUL/UNIME. Aluno Especial da Disciplina Estado, Sociedade e
Relações de Trabalho, oferecida pelo PPGD/UFBA, semestre letivo 2022.1. Membro Suplente do Grupo
de Estudos Contra Práticas Discriminatórias da Escola Judicial do TRT 5º Região. Advogado Sócio no
escritório Paulo Rocha Barra & Advogados Associados. Docente em curso Preparatório para o Exame de
Ordem (Curso Êxito). Docente no curso de Direito na Faculdade Santo Agostinho de Vitória da Conquista/
BA. Coordenador do Curso de Direito e do Núcleo de Carreiras e Estágios da Faculdade Santo Agostinho
de Vitória da Conquista. Vice-presidente da Comissão de Empreendedorismo Jurídico da OAB/ Subseção
Vitória da Conquista/BA (2020-2021).

<< Retorne ao sumário 199


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

conclui-se que o artigo 58, §2º, da CLT, não deve ter amparo legal, conside-
rando o princípio da vedação ao retrocesso social.

Palavras-chave: Direito. horas, in itinere, reforma, retrocesso.

Abstract: The present study aims to analyze the impact that the suppression
of hours in itinere, brought by law 13.467/2017 (Labor Reform), brought to
the working class. Within this context, it is observed that the hours in itinere
(travel time) emerged in the legal system as in order to protect those workers
who spend a lot of time commuting from their home to work. The study begins
under the analysis of the special and specific principles of labor law. Subsequently,
the emergence and characterization of hours in itinere is studied. Soon after, the
(in)applicability of Law No. 13,467/2017 is analyzed in contracts concluded and
still in force before the new standard. Finally, we enter into the problem that is
the study of the extinction of hours in itinere, brought by the new law, which
violates the constitutional principle of sealing social retrogression. Therefore,
it is concluded that Article 58, §2, of the CLT, should not have legal support,
considering the principle of sealing social retrogression.

Keywords: Right, hours, in itinere, reform, backspace.

1. INTRODUÇÃO

Ao longo da história, os direitos sociais, mais especificadamente os tra-


balhistas, trouxe uma significativa mudança na evolução e conquista dos direi-
tos fundamentais. Contudo, no cenário contemporâneo brasileiro ocorreram
modificações relacionadas aos direitos dos trabalhadores que trouxe como
consequência a interrupção do processo evolutivo para a classe operária. Tal
modificação ocorreu com o retrocesso trazido pela reforma trabalhista insti-
tuída pela Lei 13.467/2017, entre eles os dispositivos que tratam da jornada
de trabalho, mas especificadamente o abordado neste estudo, que decorreu da
supressão dos direitos referentes as horas in itinere.
As horas in itinere surgiu no ordenamento jurídico brasileiro com o obje-
tivo de proteger os trabalhadores de mineradoras, os de alto mar e os portuários,
visto que estes demoravam para a chegada e saída do local de labor e apenas
eram remunerados pelas horas trabalhadas.
O Tribunal Superior do Trabalho no ano de 1978, estabeleceu a Súmula
90, que abordou o tema referente as horas in itinere de modo específico, porém,
esse direito foi regulamentado na CLT no ano de 2001, através da Lei nº
10.243/2001 em seu artigo 58, §2º. No entanto, a Lei nº 13.467/2017 (Reforma

<< Retorne ao sumário 200


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

Trabalhista), alterou o §2º e revogou o §3º do artigo 58, revogando tacitamente


as Súmulas 90 e 320 do Tribunal Superior do Trabalho. Consequentemente, as
horas in itinere não são mais consideradas tempo a disposição do empregador,
como veremos mais a diante.
Assim, com a alteração, passou-se a discutir referente ao retrocesso no
que diz respeito aos direitos conquistados pelo trabalhador. Nesse sentido, as
reflexões trazidas neste trabalho, tem como objetivo contribuir para a com-
preensão da problemática relacionando o conflito da nova norma trazida pela
reforma trabalhista.

2. PRINCÍPIOS ESPECÍFICOS DO DIREITO DO


TRABALHO

O Princípio da Proteção, conhecido também como protetor ou tutelar,


visa aplicar a norma mais favorável ao empregado, tendo em vista a sua hipos-
suficiência do empregado na relação jurídica. (RESENDE, 2020).
Tendo em consideração o princípio tutelar mencionado em relação a
hipossuficiência do trabalhador os subprincípios passam a ser aplicados de três
formas; o primeiro é o subprincípio do In dubio pro operário, quando uma norma
é interpretada deve-se a aplicação da mais benéfica ao empregado. O segundo
subprincípio da proteção é da norma mais favorável, ou seja, independente
dela ser a mais fraca no caso concreto será aplicado a norma mais favorável
ao trabalhador. Por fim, o terceiro subprincípio, é um direito adquirido, todas
as condições benéficas que foram ofertadas ao empregado durante o contrato
de trabalho tornaram-se a ser um direito adquirido, em conformidade com o
artigo 468 da CLT, artigo 5° XXXVI, da CF/1988 e súmulas 51 e 288 do TST.
(NASCIMENTO, 2003; GARCIA, 2017).
Pautado no princípio protetor, apesar da importância da existência e
observação da hierarquia das normas, aplicado ao direito civil comum, na seara
trabalhista essa observância é mitigada, pois no topo da pirâmide trabalhista
será pautada a norma mais benéfica ao trabalhador, aplicada ao caso concreto.
Neste sentido, não existe uma ordem pré-estabelecida para aplicação das normas.
Todavia, quando da sua aplicação, discutisse na doutrina a forma na qual a norma
será destinada em benefício do trabalhador. Para isso, necessário a compreensão
das teorias, quais sejam: Teoria da Acumulação, do Conglobamento Mitigado
e do Conglobamento. Vejamos do que se trata cada uma delas:
A teoria da acumulação defende que, para se criar normas mais favoráveis
ao empregado, deve-se extrair dos diplomas legais aquilo que for mais benéfico ao
trabalhador, acumulando-os. Nesse sentido, Maurício Godinho Delgado dispõe que:

<< Retorne ao sumário 201


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

A teoria da acumulação (ou atomização) propõe como


procedimento de seleção, análise e classificação das normas
cotejadas, o fracionamento do conteúdo dos textos norma-
tivos, retirando-se os preceitos e institutos singulares de
cada um que se destaquem por seu sentido mais favorável
ao trabalhador, Á luz dessa teoria acumulam-se, portanto,
preceitos favoráveis ao obreiro, cindindo-se diplomas nor-
mativos postos em equiparação (DELGADO, 2019. p. 216).
A segunda teoria, denominada de Conglobamento Mitigado, determina
que a norma deve ser alcançada por meio das diversas regras da matéria, além
do mais, a coletividade dos empregados interessados deve ser considerada para
atingir a norma mais favorável. A referida teoria, no que tange no ordenamento
jurídico brasileiro, foi adotada por meio da Lei nº 7.064/82, que dispôs sobre a
situação de trabalhadores brasileiros contratados ou transferidos para prestarem
serviços no exterior, vejamos o que diz o artigo 3º, II da Lei:
Art. 3º - A empresa responsável pelo contrato de trabalho do
empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente
da observância da legislação do local da execução dos serviços:
II - a aplicação da legislação brasileira de proteção ao
trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto
nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação terri-
torial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria.
(BRASIL, 1982).
Há posição da jurisprudência em face das negociações coletivas apli-
cando-se a norma mais favorável ao caso concreto. Nesse sentido, o Tribunal
Regional do Trabalho da 1º Região, em um dos seus julgados dispõe:
NEGOCIÇÕES COLETIVAS. NORMA MAIS FAVO-
RÁVEL. TEORIA DO CONGLOBAMENTO MITI-
GADO. Em havendo duas normativas coletivas aplicáveis
a um caso concreto impõe-se o emprego das mais favorável
ao trabalhador considerando-se cada instituto, in casu
relativamente a regramentos remuneratórios, conforme
ratifica a Teoria do Conglobamento Mitigado prevalecente
na doutrina e jurisprudências hodiernas. 2
Diante do entendimento do TRT, a teoria do Conglobamento Mitigado
defende que deve ser buscada a norma mais favorável por meio da comparação
de variadas regras, respeitando sempre a especialização do instituto e da matéria.
2 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho da 1 Região TRT- 1- RECURSO ORDINÁRIO: RO:
01015936220165010227. Rio de Janeiro, 31 de outubro de 2018. Disponível em <https://trt-1.jusbrasil.com.
br/jurisprudencia/1112650495/recurso-ordinario-ro-1015936220165010227-rj/inteiro-teor-1112650530>
Acesso em 12/05/2022.

<< Retorne ao sumário 202


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

Por fim, e terceira teoria é a do Conglobamento, sendo a majoritária no


campo da aplicação nos conflitos trabalhistas. Esta teoria defende que a partir
do confronto das normas em objeto de comparação, busca-se aplicar o conjunto
normativo mais favorável. Para que seja utilizada uma norma ou seu conjunto,
esta será analisada e aplicada em sua integralidade. Ressalta que, o intérprete
deve escolher a norma que mais benéfica ao empregado.
Segundo Delgado, a referida teoria não é fracionada por preceitos jurí-
dicos. Nesse sentido:
Não fraciona preceitos ou institutos jurídicos. Cada con-
junto normativo é apreendido globalmente, considerado
o mesmo universo temático; respeitada essa seleção, é o
referido conjunto comparado aos demais, também global-
mente apreendidos, encaminhando-se, então, pelo cotejo
analítico, à determinação do conjunto normativo mais
favorável” (DELGADO, 2014, p. 182).
Ato contínuo ao estudo dos princípios específicos do Direito do Trabalho,
um outro princípio importante é o da Primazia da Realidade Sobre a Forma.
Quando se percebe que a forma não condiz com a realidade dos fatos é que
se aplica esse princípio, ou seja, ocorre uma discordância do que acontece na
prática trabalhista e o que previsto nos acordos e documentos.
Analisemos o que nos ensina o doutrinador Delgado, a respeito do exposto
princípio:
O princípio da primazia da realidade sobre a forma consti-
tui-se em poderoso instrumento para a pesquisa e encontro
da verdade real em uma situação de litígio trabalhista.
Não deve, contudo, ser brandido unilateralmente pelo
operador jurídico. Desde que a forma não da essência do
ato (ilustrativamente, documento escrito para a quitação
ou instrumento escrito para contrato temporário), o intér-
prete e aplicador do Direito deve investigar e aferir se a
substância da regra protetiva trabalhista foi atendida na
prática concreta efetivada entre as partes, ainda que não
seguida estritamente a conduta especificada pela legislação
(DELGADO, 2019. p. 245).
Neste diapasão, observa-se que o princípio da primazia da realidade será
imprescindível para buscar a realidade dos fatos em litígios trabalhista.
Quanto ao princípio da continuidade, o contrato de trabalho, quase sempre,
é por tempo indeterminado. Isso decorre, pelo fato do empregado ser a parte
hipossuficiente da relação contratual, necessitando do produto do trabalho, para
obtenção de sua renda e de sua família (CAIRO JR, 2019).

<< Retorne ao sumário 203


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

A CLT prevê nos artigos 442 e 443, a possibilidade do contrato por tempo
determinado e indeterminado, quando se é presumido a forma mais favorável
ao empregado (BRASIL, 2017). Tal presunção, está explícita na Súmula 212 do
TST, onde cabe ao empregador provar o término do contrato, pois o princípio
da continuidade do emprego é favorável ao empregado, prevendo assim que a
relação empregatícia é de forma contínua. De maneira presumida, o término
do contrato de trabalho parte da inciativa do empregador e não do trabalhador,
que é dependente de remuneração para a sua subsistência (CAIRO JR, 2019).
O princípio da Inalterabilidade Contratual Lesiva, exposto do artigo
468 da CLT, trata da não possibilidade de alterar o contrato de trabalho, caso
tais alterações lesarem o empregado. Segundo Delgado, o referido princípio é
considerado um dos mais importantes no ramo justrabalhista:
Realmente, um dos mais importantes princípios gerais do
Direito que foi importado pelo ramo justrabalhista é o da
inalterabilidade dos contratos, que se expressa, no estuário
civilista originário, pelo conhecido aforismo pacta sunt
servanda (“os pactos devem ser cumpridos”). Informa tal
princípio, em sua matriz civilista, que as convenções firma-
das pelas partes não podem ser unilateralmente modificadas
no curso do prazo de sua vigência, impondo-se ao cumpri-
mento fiel pelos pactuantes. (DELGADO, 2019. p. 239).
Para que a alteração contratual seja licita, é necessário a existência do
consentimento do empregado, bem como a ausência de prejuízo para o traba-
lhador, conforme dispõe o artigo 468 da CLT. Ressalta-se que esse princípio é
mitigado nas hipóteses de Negociação Coletiva, a exemplo da possibilidade de
redução do salário, exposto no artigo 7º da Constituição Federal.
Outro princípio relevante é o da Intangibilidade Salarial, a qual assegura
as garantias salariais jurídicas, de modo que garante o valor em benefício do
empregado. Tal garantia, deriva pelo fato do salário ter caráter alimentar, que
supre as necessidades essenciais do trabalhador. Segundo Delgado, o referido
princípio originou-se do princípio da irredutibilidade salarial, que engloba o
princípio da inalterabilidade contratual lesiva, vejamos:
O atual princípio justrabalhista projeta-se em distintas
direções: garantia do valor do salário; garantias contra
mudanças contratuais e normativas que provoquem a
redução do salário (aqui o princípio especial examinado
se identifica pela expressão princípio da irredutibilidade
salarial, englobando-se também, de certo modo, no prin-
cípio da inalterabilidade salarial lesiva); garantias contra
práticas que prejudiquem seu efetivo montante – trata-se

<< Retorne ao sumário 204


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

dos problemas jurídicos envolventes aos descontos no salário


do empregado (o princípio aqui tende a se particularizar
em uma denominação diferente: princípio da integralidade
salarial); finalmente, garantias contra interesses contrapostos
de credores diversos, sejam do empregador, sejam do próprio
empregado. (DELGADO, 2019. p. 243).
Ato contínuo, importante destacar o princípio da Impenhorabilidade, o
qual entende-se como um subprincípio da intangibilidade, explícito no artigo
649, inciso IV do CPC e na OJ nº 153 da SDI-2 do TST, a qual nos ensina
que, “o salário não serve de objeto de penhora, a não ser que seja destinado
para pensão alimentícia.” Ademais, ainda com base no princípio da intangi-
bilidade, há proteção ao trabalhador no que diz respeito os descontos salarias,
expresso nos artigos 462 da CLT e Súmula 342 do TST, os quais dispõem que
poderá haver descontos no salário desde que previstos em lei, a exemplo da
contribuição previdenciária, bem como na hipótese de danos causados pelo
empregado ao empregador, desde que essa hipótese tenha sido acordada no
contrato de trabalho.
Por fim, o último princípio específico do direito do trabalho aqui des-
tacado, é o princípio da Irrenunciabilidade, elencado nos artigos 9º e 444 da
CLT, o qual veda a possibilidade do empregado renunciar direitos que lhes são
assegurados por lei. Não é possível o empregado hipossuficiente abra mão do
direito trabalhista subjetivo do qual lhe é garantido em relação ao empregador.
(CAIRO JR, 2019). Segundo o referido autor, desde que ocorra na execução
ou formação do contrato de trabalho, quando é manifestado a renúncia de um
direito trabalhista, presume-se houve vício na manifestação da vontade do
empregado hipossuficiente.

3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS


DO DIREITO DO TRABALHO

A Constituição da República Federativa do Brasil traz como elementos


de um verdadeiro Estado Democrático de Direito os quais se caracterizam
tomando por base três pilares estruturantes: a centralidade da pessoa humana
na ordem jurídica, econômica e social; a presença de política que abrange de
forma democrática bem como uma sociedade civilista inclusiva e democrática
(DELGADO, 2019).
Os princípios constitucionais do direito do trabalho, elencados na CF
de 1988, é a base para aplicação e regulamentação das normas. Destaca-se os
principais, o princípio da dignidade da pessoa humana; o princípio do não
retrocesso social e o princípio da valorização social do trabalhador.

<< Retorne ao sumário 205


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

O pilar do ordenamento jurídico brasileiro é o princípio da dignidade


da pessoa humana, explícito no artigo 1º, inciso III da CF de 1988, e expresso
no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é o princípio que
orienta os demais, ou seja, todos os demais princípios têm como base o referido
princípio.
Este princípio deve ser aplicado em todos os âmbitos das relações jurídicas
e sociais. No que que se refere as relações de emprego, ele estabelece condições
de melhorais na vida do empregado, assim como serve de pilar para outros
direitos fundamentais como, educação, transporte, moradia, saúde, proteção aos
direitos trabalhistas, à maternidade, deficientes, idosos, gestantes, entre outros.
A doutrina de José Cairo Jr, destaca a importância do princípio para a
manutenção da justiça social, dispondo que:
O princípio da dignidade da pessoa humana é de vital
importância para a manutenção da Justiça Social e para
equilibrar os desajustes existentes na relação entre capital
e trabalho. Representa a conquista dos povos no sentido de
conferir um conteúdo permanente do Direito e descartar a
possibilidade de considerá-lo apenas em seu aspecto formal.
(CAIRO JR, 2019. p. 118).
Nesta perspectiva, fica evidente que o princípio da dignidade humana
é imprescindível para que a justiça seja efetivada em especial nas relações
de emprego, visto que sua aplicação está diretamente entrelaçada ao direito
constitucional.
Exposto no artigo 1º, inciso IV da CF de 1988, o princípio da valorização
social do trabalhador, é um direito social e que de acordo com a ordem econô-
mica deve fundamentar a valorização do trabalho humano (BRASIL, 1988).
É sabido que o salário tem caráter de natureza alimentar, ou seja, é
por ele que advém o sustento do trabalhador e de seus dependentes. Por esse
motivo, é que se considera o princípio da valorização social do trabalhador de
alta relevância. Importante destacar que, a proteção do trabalhador é também
de suma importância para o desenvolvimento social.
Ademais, o desenvolvimento social é regido por normas elencadas no
artigo 170 da CF de 1988. Vejamos o que destaca Garcia:
De extrema importância ainda, a previsão do art. 170 da
Constituição Federal de 1988, ao prever que a ordem eco-
nômica é “fundada na valorização do trabalho e da livre
iniciativa”, tendo por fim “assegurar a todos a existência
digna, conforme os ditames da justiça social”, observados
entre outros, os princípios da função social da propriedade,

<< Retorne ao sumário 206


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades


regionais e sociais, da busca do pleno emprego (GARCIA
2017. p. 92).
A Constituição por si prevê normas específicas e princípios de amparo
para as relações trabalhistas. É notório que, o legislador deu grande relevância
ao direito do trabalho, sendo um dos mais importantes direitos sociais para a
concretização da dignidade humana.
Por fim, o princípio do não retrocesso social, defende que o Estado não
deve regredir em relação aos direitos conquistados no âmbito da sociedade.
É um princípio implícito, no entanto com grande autonomia e aplicação na
prática pois protege os direitos sociais como a educação, saúde e os direitos dos
trabalhadores.
As propostas legislativas apresentam dois caminhos: caminhar em defesa
do processo civilizatório em busca da dignidade humana e dos direitos sociais,
respeitando o princípio do não retrocesso social, onde a sociedade não é visada
como possuidora de direitos humanos e fica a favor da insegurança jurídica e
incerteza dos legisladores (FERREIRA, 2015).
Sob essa perspectiva, há leis ou projetos de lei em trâmite que são uma
ofensa para o Estado Democrático de Direito, a exemplo de redução da maio-
ridade penal, terceirização trabalhistas e o não pagamento das horas in itinere,
sendo este último, objeto de estudo deste presente artigo.

4. DA CARACTERIZAÇÃO DAS HORAS IN


INTINERE ANTES DA LEI Nº 13.467/2017 E A SUA
SUPRESSÃO DEPOIS DA VIGÊNCIA DA REFORMA
TRABALHISTA.

As horas in itinere surgiu no ordenamento jurídico brasileiro com obje-


tivo de proteção aos trabalhadores de mineradoras, de alto mar bem como os
que laboravam no subsolo, uma vez que demandavam um longo tempo para
saída e chegada ao local do labor, e apenas eram remunerados pelas horas de
fato trabalhadas.
Antes da Reforma Trabalhista, as horas in itinere, ou seja, tempo de des-
locamento, para que fossem computadas na jornada de trabalho, era necessário
o preenchimento de três requisitos básicos: o local de difícil acesso, não servido
por transporte público e o empregador oferecer a condução.
A Súmula 90 do TST, que incorporou as Súmulas 324 e 325 e as Orienta-
ções Jurisprudenciais nºs 50 e 236 da SBDI-1, estabelece os principais critérios
para a caracterização:

<< Retorne ao sumário 207


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

HORAS “IN ITINERE”. TEMPO DE SERVIÇO


(incorporadas as Súmulas nºs 324 e 325 e as Orientações
Jurisprudenciais nºs 50 e 236 da SBDI-1) - Res. 129/2005,
DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - O tempo despendido pelo empregado, em condução
fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil
acesso, ou não servido por transporte público regular, e
para o seu retorno é computável na jornada de trabalho.
(ex-Súmula nº 90 - RA 80/1978, DJ 10.11.1978
II - A incompatibilidade entre os horários de início e
término da jornada do empregado e os do transporte
público regular é circunstância que também gera o direito
às horas “in itinere”. (ex-OJ nº 50 da SBDI-1 - inserida
em 01.02.1995)
III - A mera insuficiência de transporte público não enseja
o pagamento de horas “in itinere”. (ex-Súmula nº 324 – Res.
16/1993, DJ 21.12.1993)
IV - Se houver transporte público regular em parte do
trajeto percorrido em condução da empresa, as horas “in
itinere” remuneradas limitam-se ao trecho não alcançado
pelo transporte público. (ex-Súmula nº 325 – Res. 17/1993,
DJ 21.12.1993)
V - Considerando que as horas “in itinere” são computáveis
na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a jornada
legal é considerado como extraordinário e sobre ele deve
incidir o adicional respectivo. (ex-OJ nº 236 da SBDI-1 -
inserida em 20.06.2001).3
Em 2006, a Lei Complementar nº 123, acrescentou o §3º ao artigo 58
da CLT, que dispunha o seguinte:
§3º. Poderão ser fixados, para as microempresas e empre-
sas de pequeno porte, por meio de acordo ou convenção
coletiva, em caso de transporte fornecido pelo empregador,
em local de difícil acesso ou não servido por transporte
público, o tempo médio despendido pelo empregado,
bem como a forma e natureza da remuneração. (BRA-
SIL, 2006).
Tal parágrafo não permitia que o acordo ou a negociação coletiva abolisse
o pagamento das horas in itinere, ficando permitido, apenas, que fosse estabe-
lecida uma média de horas até o local de trabalho.

3 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 90 do TST. Horas in itinere. Justiça do Trabalho,
Brasília, 25 de abril de 2015. Disponível em < https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/
Sumulas_Ind_51_100.html#SUM-90> Acesso em 05/05/2022.

<< Retorne ao sumário 208


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

Com a introdução da Reforma Trabalhista houve a extinção das horas


in itinere, onde a Lei 13.467/2017 alterou o texto de lei do artigo 58 da CLT,
passando assim dispor em seu parágrafo 2º:
Art. 58 - A duração normal do trabalho, para os empregados
em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito)
horas diárias, desde que não seja fixado expressamente
outro limite.
§ 2º O tempo despendido pelo empregado desde a sua
residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e
para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de
transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será
computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à
disposição do empregador (BRASIL, 2017).
Como verificado no referido artigo, as horas in itinere deixaram de existir
no ordenamento jurídico. No entanto, a nova norma contradiz o artigo 4º da
CLT4. Tal artigo traz um rol taxativo sobre o que não deve ser considerado
tempo a disposição do empregador. E sob a sua análise, não há qualquer referên-
cia relacionada ao tempo gasto do empregado com transporte ou deslocamento
da residência para o local de labor, assim há uma incompatibilidade sistêmica,
em outras palavras, há uma incoerência chegando à conclusão de as premissas
se coincidem.

5. (IN) APLICABILIDADE DA LEI Nº 13.467/2017 NOS


CONTRATOS TRABALHISTAS

A reforma trabalhista suprimiu alguns direitos conquistados ao longo dos


anos, assim, ela veio para ser mais benéfica ao empregador. Em decorrência de tal
fato, cabe a discussão da (in) aplicabilidade aos contratos de trabalho celebrados
antes da reforma ou depois da vigência da Lei nº 13.467/2017.
A constituição de 1988, prevê em seu artigo 5º, inciso, XXXVI, que a lei
não prejudicará o direito adquirido, coisa julgada ou ato jurídico perfeito. O
princípio da Irretroatividade, elencado no artigo 6º do Decreto Lei nº 4657/42,
defende que quando uma lei entra em vigor ela atingirá apenas fatos ocorridos
após a sua vigência.
As normas do direito do trabalhado protegem interesses públicos, não
somente direitos privados. Neste contexto, é válido analisar o direito adquirido

4 
Art. 4º - Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do
empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada. BRASIL.
Lei nº 13.467 de 13 de julho de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
del5452.htm >. Acesso em 04/05/2022.

<< Retorne ao sumário 209


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

do trabalhador que subdivide em duas espécies, o sistema do direito legal e o


sistema do direito constitucional.
O direito adquirido legal, prevê que uma lei nova seja aplicada de forma
retroativa, o que prevalece sobre elementos que legais que vedam o retrocesso
normativo. A proteção de que se trata tal princípio seria de que a proteção é
destinada ao julgador e não ao legislador. Já o direito adquirido constitucional,
exposto na Constituição de 1988, limita o poder do julgador e do legislador em
relação ao estabelecimento de normas que retroajam e lesem o mesmo. Nesse
sentido, o sistema do direito do trabalhado se vincula ao constitucional, assim
se há violação, a aplicação retroativa resultará em inconstitucionalidade.
Nesse sentido, vejamos o que a doutrina de Silva explana sobre a temática
do direito adquirido:
Tira sua existência dos fatos jurídicos passados e definidos,
quando o seu titular os pode exercer. No entanto, não deixe
de ser adquirido o direito, mesmo quando seu exercício
dependa de um termo prefixo ou de uma condição prees-
tabelecida inalterável do arbítrio de outrem. Por isso sob
o ponto de vista da retroatividade das leis, não somente se
consideram adquiridos os direitos aperfeiçoados ao tempo
em que se promulga a lei nova, como os que estejam subor-
dinados a condição ainda não verificadas, desde que não
indiquem alteráveis ao arbítrio de outrem (SILVA, 1984
p. 77 e 78).
Sob esta análise, conclui-se que o direito adquirido impede a não retroa-
tividade da lei, sendo ele diretamente associado à segurança jurídica.
As alterações da Lei n° 13.467/2017 vem sendo objeto de debate em
relação a sua aplicabilidade nos contratos celebrados antes da sua vigência. O
principal fundamento para a não aplicabilidade aos fatos ocorridos até o dia 10
de novembro de 2017, está na violação a garantia constitucional do ato jurídico
perfeito e do direito adquirido.
Aplicar nova lei ao contrato de trabalhado que fora compactuado antes
da vigência da nova norma é como se alterasse as regras de um jogo de um
campeonato já em tramitação. Ofende à segurança jurídica e boa-fé. Ainda
que a norma da época da contratação não exista ou tenha sido alterada com
aplicação de outro entendimento, o fato não deve proporcionar de imediato a
aplicabilidade nos contratos trabalhistas já firmados e vigentes, em razão do
direito já ter sido adquirido no momento da celebração contratual e no decorrer
do pacto laboral, sendo que o direito não deve ser suprimido em razão da não
existência daquela norma jurídica (VIEIRA JÚNIOR, 2018).

<< Retorne ao sumário 210


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

A jurisprudência tem se posicionado no sentido de que em face da obser-


vância do direito adquirido, continuam sendo devidas as horas in itinere aos
empregados que tiveram seus contratos celebrados antes da vigência da Reforma
Trabalhista. Nesse sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 3º Região, em
um dos seus julgados, dispõe:
DIREITO INTERTEMPORAL. APLICAÇÃO DA LEI
n° 13.467/2017. CONTRATOS DE TRABALHO EM
CURSO. OBSERVÂNCIA DO DIREITO ADQUIRIDO.
HORAS IN ITINERE. A Lei n° 13.467/201, comumente
denominada “Lei da reforma trabalhista”, ao alterar diversos
dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho, entrou em
vigor em 11 de novembro de 2017 e tem aplicação imediata
e geral a partir de sua vigência, respeitado contudo, o direito
adquirido dos empregados que tiveram seus contratos de
trabalho rescindidos antes da entrada em vigor da referida lei e
daqueles, cujos contratos de trabalham estavam vigentes antes
da publicação da referida norma. Reforça este entendimento
precedente do Supremo Tribunal Federal contido no julga-
mento do AI 292.979-ED/RS. Rel. Min. Celso de Melo, 2ª
Turma, DJ 19.12.2002: “Os contratos submetem-se, quanto
ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo
vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros
oriundos de contratos anteriormente celebrados não se
expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As
consequências jurídicas que emergem de um ajuste negocial
válido são regidas pela legislação em vigor no momento de
sua pactuação. Os contratos – que se qualificam como atos
jurídicos perfeitos (RT 547/215) – acham-se protegidos,
em sua integralidade, inclusive quantos aos efeitos futuros,
pela norma de salvaguarda constante no art. 5° XXXVI, da
Constituição da República. Doutrina e precedentes. – A
incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de
um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria
causa geradora do ajuste negocial reveste-se de caráter
retroativo (retroatividade injusta de grua mínimo), achan-
do-se desautorizada pela cláusula constitucional que tutela
a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente
consolidadas. Precedentes. No mesmo sentido, a doutrina
do Ministro Luís Roberto Barroso (in:”Em algum lugar do
passado. Segurança jurídica, direito intertemporal e o novo
Código Civil ”): “ A garantia contra a retroatividade da lei
prevista no art. 5°, XXXVI, da Constituição impede que os
contratos mesmo aqueles de trato sucessivo, ou quaisquer
outros atos jurídicos perfeitos, sejam afetados pela incidência
da lei nova, tanto no que diz respeito à sua constituição válida,

<< Retorne ao sumário 211


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

quanto no que toca à produção de seus efeitos, ainda que estes


se produzam já sob o império da nova lei ...” Neste diapasão, o
direito assegurado aos contratos de trabalhos dos empregados
de trabalhos dos empregados que estavam em curso quando
da entrada em vigor da Lei n° 13.467/2017 (11.11.2017), ao
cômputo na jornada de trabalho, do tempo dispendido pelo
empregado até o local de trabalho e para o seu retorno (horas
in itinere), por qualquer meio de transporte, tratando-se de
local de difícil acesso ou não servido por transporte público,
quando o empregador fornecer a condução, continua existindo,
mesmo no período posterior a 10.11.2017, face a observância
do direito adquirido dos empregados.5
Diante do entendimento do TRT da 3º Região, conclui-se que consi-
deráveis contratos de trabalho continuam gerando efeitos mesmo depois da
reforma trabalhista, onde suas cláusulas de fontes normativas e heterônomas
continuam tendo vigência. Assim, ainda continuam gerando efeitos jurídicos
os contratos celebrados vigentes antes da Reforma Trabalhista. Neste contexto,
aplicar a nova lei aos contratos trabalhistas celebrados antes do dia 10 de novem-
bro de 2017, afronta o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, amparados
constitucionalmente.
A norma trabalhista jurídica é subdivida em três fontes, as fontes estatais,
extraestatais e internacionais. As fontes estatais são formadas por leis emanadas
pelo Estado, a constituição, o regulamento, a medida provisória e a jurisprudên-
cia; as fontes extraestatais são formadas, por usos e costumes, regulamento da
empresa, negociação coletiva, contrato individual coletiva; e por fim, as fontes
internacionais, são regidas por tratados formados entre dois ou mais Estados, bem
como as convenções emanadas da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Importante destacar o princípio da Inalterabilidade Contratual Lesiva,
o qual está contido nas normas diversas das cláusulas do contrato individual de
trabalho. Este princípio defende que as cláusulas não podem ser suprimidas,
caso provoque prejuízo ao empregado.
Alisemos o que trata o artigo 468 da CLT, a respeito do assunto:
Art. 468. Nos contratos individuais de trabalho só é lícita
a alteração das respectivas condições por mútuo consen-
timento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou
indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nuli-
dade da cláusula infringente dessa garantia.

5 
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3 Região. Recurso Ordinário 0011539-82.2017.5.030090. Rela-
tor: Sércio da Silva Peçanha, Disponibilização: 05/10/2018, Disponível em: < https://trt-3.jusbrasil.com.br/juris-
prudencia/637200260/recurso-ordinario-trabalhista-ro-115398220175030090-0011539-8220175030090?ref=-
serp >. Acesso em: 01/04/2022.

<< Retorne ao sumário 212


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

Sob essa análise, em conformidade com o princípio da aderência contratual,


é evidente que as alterações contratuais não são impedidas, mas a lei restringe
as cláusulas que possam prejudicar o trabalhador de alguma forma, ou seja, o
contrato só poderá ser alterado se condição for mais benéfica ao empregado.
E ainda que o empregado concorde com a alteração contratual, ele não poderá
ceder da proteção que lhe foi conferida pois isso resultaria da violação do prin-
cípio de irrenunciabilidade.
Neste diapasão, a aplicação do artigo 58 2º da Lei nº 13.467/2017, aos
contratos de trabalhados celebrados e ainda vigentes antes do dia 10 de novembro
de 2017, gera dano ao trabalhador, ou seja, há supressão do direito adquirido.
Assim, o contrato só pode ser alterado se for pra trazer mais benefícios ao
empregado, sob pena de causar lesão ao empregado, violando assim o princípio
de inalterabilidade lesiva.

6. DA APLICAÇÃO DA EXTINÇÃO DAS HORAS IN


ITINERE TRAZIDA PELA LEI Nº 13.467/2017 AOS
CONTRATOS DE TRABALHO E O RETROCESSO
SOCIAL DO DIREITO DO TRABALHADOR

O papel do Estado é garantir a concretização dos direitos fundamentais.


E como visto antes, as normas trazidas pela reforma trabalhista são aplicáveis aos
contratos celebrados após a sua vigência. Nesse sentido, o princípio da vedação
do retrocesso social afasta a redação do artigo 58, § 2º da CLT, sob garantia
que os trabalhadores gozem dos direitos conquistados ao longo dos séculos sem
risco de retroceder no tempo.
O princípio da proibição do retrocesso social, garante a estabilidade dos
direitos fundamentais em especial os sociais, elencados como conquistas dispostas
na Carta Política. Isso, garante a segurança jurídica das normas constitucionais
e das normas infraconstitucionais, o que não significa que elas são imutáveis.
No entanto, defende que se um direito for alterado que seja por meio de uma
análise que beneficie a pessoa humana e não que seja alterado por mera libe-
ralidade do Estado.
Analisemos a doutrina de Canotilho, o qual nos ensina a respeito:
Neste sentido se fala também de cláusulas de proibição de
evolução reacionária ou de retrocesso social (ex. consagradas
legalmente às prestações de assistência social), o legislador
não pode eliminá-las posteriormente sem alternativas ou
compensações; reconhecido, através de lei, o subsídio de
desemprego como dimensão do direito ao trabalho, não
pode o legislador extinguir este direito, violando o núcleo

<< Retorne ao sumário 213


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

essencial do direito social constitucionalmente protegido


(CANOTILHO, 2006 p.,177).
Assim, fica evidente que a eliminação das horas in itinere trazida pela
Lei 13.467/2017, gerou prejuízo ao trabalhador, pois tal princípio defende a
não supressão dos direitos sociais, tal prejuízo trata-se de uma consequência na
estrutura consagrada no artigo 1º, inciso III, artigo 5º, §1º e § 2º e no artigo 7º
da Carta Magna, os quais incidiram do Pacto San José da Costa Rica, que fora
ratificado pelo Brasil por meio do Decreto 678/92 ( JANON e GARCIA, 2018).
Importante citar o acordão do Tribunal Superior do Trabalho, no qual
teve como relatora a ministra, Kátia Magalhães Arruda, confirmou a tese de que
a remuneração do tempo à disposição do empregador é realidade do empregado
defendendo que, o princípio da vedação do retrocesso social protege às horas
in itinere.
[...] o art.7º. da Constituição Federal revela-se como uma
centelha de proteção ao trabalhador a deflagrar um pro-
grama ascendente, sempre ascendente, de afirmação dos
direitos fundamentais. Quando o caput do mencionado
preceito constitucional enuncia que irá detalhar o conteúdo
indisponível de uma relação de emprego, e de logo põe a
salvo ‘outros direitos que visem à melhoria de sua condi-
ção social’, atende a um postulado imanente aos direitos
fundamentais: a proibição de retrocesso.6
Na fundamentação legal do voto condutor, o artigo 7º da Constituição
de 1988, prevê as garantias fundamentais à melhoria da condição social dos
trabalhadores urbanos ou rurais, sob a positivação de um dos princípios que
rege o direito do trabalho, o da proteção, que se desdobra sobre o princípio do
não retrocesso social.
O Supremo Tribunal Federal já defendeu que aos direitos trabalhistas são
aplicáveis o princípio da vedação do retrocesso social. Neste sentido, é válido
destacar o julgamento em que trouxe a discussão sobre a recepção do artigo 384
da CLT. Para Mello (2014 p. 6 e 7): “como se sabe, o princípio da proibição do
retrocesso social impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social,
que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela
formação social em que ele vive”7.

6 
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Processo Nº ED-AgR-AIRR-0000184-47.2014.5.24.0106.
Relatora Kátia Magalhães Arruda. Brasília, 12 de dezembro de 2018. Disponível em <https://www.jusbrasil.
com.br/processos/164096314/processo-n-0000184-4720145240106-do-tst>. Acesso em: 20/04/2022.
7 
SANTA CATARINA. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 658.312. Relator> Min.
Dias Toffoli. Florianópolis, 27 de novembro de 2014. Disponível em < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=7708619>. Acesso em 19/04/2022.

<< Retorne ao sumário 214


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

Por todo o exposto, com a análise da doutrina e da jurisprudência, enten-


deu-se que, após a reforma trabalhista, em respeito ao direito adquirido e à
condição mais benéfica ao trabalhador, continuam sendo devidas as horas in
itinere aos trabalhadores contratados antes da vigência da Lei 13.467/2017,
seja ele urbano ou rural, levando em consideração que o empregado se utiliza
da condução fornecida pelo empregador laborando em local de difícil acesso
ou não acessível de transporte público, considerando que, a aplicação do artigo
58, §2º da CLT não se ampara diante do princípio que veda o retrocesso social.

7. CONCLUSÃO

O presente artigo trouxe o estudo da extinção das horas in itinere trazida


pela Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) sobre a análise do retrocesso
social e se a norma é aplicável aos contratos celebrados e ainda vigentes depois
da vigência da referida lei.
Ante o exposto, conclui-se que a Lei 13.467/17 (Reforma Trabalhista)
não se aplica aos contratos celebrados e vigentes antes do dia 10 de novembro
de 2017, em razão de suas normas não apresentarem o direito intertemporal.
Com isso, sustenta-se que aos contratos trabalhistas é aplicável com base da lei
do tempo, ou seja, por meio da Lei nº 4.657/42, no que se refere as normas da
Constituição Federal de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Tal inapli-
cabilidade da lei aos contratos celebrados antes da sua vigência, fundamenta-se
com base no princípio trabalhista de inalterabilidade contratual lesiva.
O ato jurídico perfeito e o direito adquirido são garantidos constitucio-
nalmente. À vista disso, aos contratos celebrados anteriormente e ainda vigentes
antes da égide da nova lei, a eles devem ser aplicados os efeitos da antiga lei,
sob pena de lesar o empregado trazendo para ele menos benefícios na relação
contratual de trabalho.
A extinção das horas in itinere trazida pela Reforma Trabalhista, que antes
era computada como tem à disposição do empregador, traz um conflito no tratar
das normas do artigo 4º da CLT, na qual não faz qualquer menção relacionada
ao tempo gasto de deslocamento ou transporte da residência do empregado até
o local do seu labor. Tal artigo é um vertente no direito trabalhista, no qual deve
ser utilizado como base para os demais, não estando em conformidade com a
disposição de interpretação sistemática do artigo 58º, § 2º da CLT.
No caso da eliminação das horas in itinere, trazida pela reforma trabalhista,
que afastou a redação do artigo 58, §2º da CLT, confronta com o princípio
constitucional da proibição do retrocesso social. Tal princípio veda a retrocessão
dos direitos sociais e/ou fundamentais implementados pelo Estado, no qual

<< Retorne ao sumário 215


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

garante que uma vez conquistado determinado direito social, o legislador não
deve suprimi-lo sem que crie medidas compensatórias.
Nesse sentido, conclui-se que quando regulamentado um direito consti-
tucional social, ao legislador é vedado criar nova norma que apresente retrocesso
a matéria, seja ela de revogação parcial (derrogação) e/ ou integral (ab-rogação),
ou ainda qualquer outra medida que venha a ser menos benéfica em comparação
com à efetivação alcançada. Portanto, as horas in itinere, continuam sendo devidas
ao trabalhador seja ele urbano ou rural, considerando que o emprego do artigo 58,
§2º da CLT não se ampara perante o princípio da vedação ao retrocesso social.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF, Senado, 1988.


BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das
Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
del5452.htm>. Acesso 24 de marco de 2022.
BRASIL. Lei complementar Nº 123 de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto
Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; altera dispositivos das Leis
no 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do Trabalho
- CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, da Lei no 10.189, de
14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar no 63, de 11 de janeiro de 1990; e revoga
as Leis no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e 9.841, de 5 de outubro de 1999. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp123.htm>. Acesso em: 12/05/2022.
BRASIL. Lei nº 7.064, de 6 de dezembro de 1982. Dispõe sobre a situação de traba-
lhadores contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7064.htm>. Acesso em 12 de maio de 2022.
BRASIL. Lei nº 10.243, de 19 de junho de 2001. Acrescenta parágrafos ao art. 58 e dá
nova redação ao § 2º do art. 458 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: < http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10243.htm >. Acesso em 24 de março de 2022.
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Min. Dias Toffoli. Florianópolis. Santa Catarina, 27 de novembro de 2014. Disponível
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BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3 Região. Recurso Ordinário 0011539-
82.2017.5.030090. Relator: Sércio da Silva Peçanha, Disponibilização: 05/10/2018,
Disponível em: <https://trt-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/637200260/recur-
so-ordinario-trabalhista-ro-115398220175030090-0011539-8220175030090?ref=serp
>. Acesso em: 01/04/2022.

<< Retorne ao sumário 216


A EXTINÇÃO DAS HORAS IN ITINERE SOB A ANÁLISE DO
PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Processo Nº ED-AgR-


-AIRR-0000184-47.2014.5.24.0106. Relatora Kátia Magalhães Arruda. Brasília, 12 de
dezembro de 2018. Disponível em <https://www.jusbrasil.com.br/processos/164096314/
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<< Retorne ao sumário 217


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

FERREIRA, Milena Balbinotti. Possíveis impactos da reforma trabalhista: o caso das


horas in itinere e a análise do retrocesso social. 2020. 62 f. Monografia (Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais). Curso de Direito. Universidade de Passo Fundo, Soledade,
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de março de 2022.
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 11 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017.
JANON, Renato da Fonseca; GARCIA, Cynthia Gallera, Reforma trabalhista não
acabou com o direito às horas in itinere. Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro
de 2018. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2018-dez-04/opiniao-reforma-
-trabalhista-nao-acabou-horas-in-itinere>. Acesso em 19/04/2022.
RESENDE, Ricardo. Direito do trabalho. 8. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
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SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
VIEIRA JÚNIOR, Rosendo de Fátima. A aplicabilidade da lei n° 13.467/2017 no tempo
e em relação ao direito material do trabalho. São Paulo: LTr 54, n. 8, p. 35-38, 2018.

<< Retorne ao sumário 218


ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO
TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT
PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS
PSICOSSOCIAIS

Moral and sexual harassment at work:


contributions of ilo convention 190
regardind prevention of psychosocial risks

José Roberto Heloani1


Ney Maranhão2
Estêvão Fragallo Ferreira3

Resumo: O presente artigo possui como objetivo refletir as contribuições da


Convenção 190 da OIT para a tutela jurídica do trabalhador no Brasil face aos
riscos psicossociais, sobretudo do assédio e da violência no trabalho. Realizou-
-se, assim, investigação acerca do tratamento normativo da saúde mental no
âmbito da OIT, das definições dos riscos psicossociais labor-ambientais e do
assédio e violência laboral e, por fim, dos principais institutos da Convenção
190 da OIT à luz do ordenamento jurídico doméstico. A pesquisa é qualitativa
e bibliográfica, tendo sido utilizado o método hipotético-dedutivo.

1 
Doutor em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
Titular da Universidade Estadual de Campinas. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2583-8876. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3546226919045934. Email: rheloani@gmail.com.
2 
Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Direito e do
Programa de Pós-Graduação em Direito Stricto Sensu da Universidade Federal do Pará. ORCID: https://
orcid.org/0000-0002-8644-5902. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5894619075517595. Email: ney.maranhao@
gmail.com.
3 
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1717-4034.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1841678598489321. Email: estevao.fragallo@gmail.com.

<< Retorne ao sumário 219


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Palavras-Chave: Assédio no trabalho, riscos psicossociais, organização inter-


nacional do trabalho.

Abstract: This article aims to reflect on the contribution of Convention 190


of the ILO to the legal protection of workers in Brazil against psychosocial
risks, especially harassment and violence at work. Thus, we researched the
normative treatment of mental health within the scope of the ILO, the defini-
tions of psychosocial risks and of harassment and violence at work and, finally,
to outline the main institutes of the ILO Convention 190 in the light of the
national legal system. The research is qualitative and bibliographical, using the
hypothetical-deductive method.

Keywords: harassment at work, psychosocial risks, international labour office.

1. INTRODUÇÃO

Um dos principais desafios à temática de saúde e bem-estar no trabalho no


século XXI diz com os aspectos psicológicos e sociais do trabalho, especialmente
considerando-se a intensificação das patologias mentais e comportamentais
no contexto ocupacional. Neste particular, ganha destaque o estudo dos riscos
psicossociais do trabalho que, em desequilíbrio, possuem alta probabilidade
de gerar efeitos negativos à saúde psicológica, física e social dos trabalhadores.
Entre esses riscos, tem grande importância o assédio e violência no
trabalho, práticas que decerto podem ser tidas como “violação aos direitos fun-
damentais e mácula à dignidade humana”4 a partir de perseguições, ataques
ou outras manifestações violentas, podendo se manifestar como ofensa moral
ou sexual, por exemplo. Salienta-se, ainda, que tais riscos psicossociais são por
demais complexos, por se manifestarem de forma organizacional e, muitas vezes,
estarem ligados a desequilíbrios nas dinâmicas de poder no trabalho, mormente
no que tange à perspectiva de gênero.
Em razão da gravidade desses riscos, a Organização Internacional do
Trabalho, em 2019, aprovou a Convenção n.º 190, sobre a temática do assédio
e da violência no trabalho, em resposta à anomia quanto a essa matéria na
seara internacional. Em vigência desde 25 de junho de 20215, tal tratado traz
importantes disposições sobre o tema, acomodando, a propósito, a primeira

4 
HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio Moral e Sexual. In: VIEIRA, Fernando de Oliveira
(Org.) Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. Curitiba: Juruá, 2013, p. 55.
5 
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Convenção 155: Segurança e Saúde dos Trabalhadores.
Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236163/lang--pt/index.htm>. Acesso
em 25 abr. 2021.

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ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

menção expressa à prevenção de riscos psicossociais entre todos os instrumentos


internacionais já emitidos por essa renomada entidade.
Nessa luz, este artigo propõe investigar em que medida as previsões sobre
assédio moral e sexual na Convenção n.º 190 da Organização Internacional do
Trabalho podem auxiliar na prevenção a riscos psicossociais no Brasil.
Para tanto, preliminarmente, propõe-se analisar o tratamento dos riscos
psicossociais pela Organização Internacional do Trabalho em seu histórico, passando
para a definição dos riscos psicossociais no trabalho e de seus fatores de origem.
Posteriormente, propõe-se explorar o conceito de assédio moral e sexual
no trabalho, estabelecendo sua relação com os riscos psicossociais, passando à
identificação dos parâmetros de proteção e diretrizes constantes da Convenção
n.º 190 da OIT no tema.
Por fim, intenta-se alinhavar, à luz do direito brasileiro, as possibilidades
e entraves para a aplicabilidade da Convenção n.º 190 ao Brasil no tocante aos
riscos psicossociais no trabalho, mormente quando advindos dos fenômenos
do assédio moral e sexual.

2. SAÚDE MENTAL E A ORGANIZAÇÃO


INTERNACIONAL DO TRABALHO: PANORAMA
HISTÓRICO DO RECONHECIMENTO E
TRATAMENTO NORMATIVO DOS RISCOS
PSICOSSOCIAIS

Em que pese seja inequívoca a consequência do trabalho para todas as


dimensões da saúde humana (física, mental, social e emocional), dada a relação de
risco ora pontuada, por muitos anos na história do trabalho contemporâneo o tema
da saúde ocupacional teve como enfoque tão somente o processo de adoecimento
físico dos trabalhadores, apenas havendo uma aproximação quanto aos aspectos
psicológicos e sociais, por parte da OIT, a partir do final do século XX. Faz sentido,
portanto, visualizar o percurso histórico do reconhecimento dessas dimensões.
De início, cabe recordar que Sebastião Geraldo de Oliveira6 identifica
quatro etapas evolutivas da relação saúde-trabalho: a etapa da medicina do tra-
balho (1830), a etapa da saúde ocupacional (1950), a etapa da saúde do trabalhador
(1970) e, finalmente, a etapa da qualidade de vida do trabalhador (1985).
A primeira etapa, conhecida como “medicina do trabalho”, diz respeito
aos primeiros registros históricos de fornecimento de assistência de saúde no

6 
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 5. ed. São Paulo: LTr,
2010, p. 59.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

ambiente industrial, tendo destaque a figura do médico do trabalho7. Apesar de


suas origens remontarem à década de 1830, tal etapa se fortaleceu no início do
século XX, especialmente a partir do avanço do capitalismo e da implementação
dos sistemas de organização produtiva da época – o taylorismo e o fordismo8.
O período histórico dessa etapa coincide com o próprio surgimento da
Organização Internacional do Trabalho, em 1919, bem como com as reco-
mendações n.º 97 e 112 da OIT, respectivamente datadas de 1952 e 1959,
que definiram a obrigatoriedade de proteção à saúde do trabalhador nos locais
de trabalho e a instalação de serviços de medicina do trabalho nas empresas,
evidenciando-se, assim, a importância da Organização para o avanço do tema.
A partir da década de 1950 – portanto, coincidindo com a consolidação
dos instrumentos acerca da medicina do trabalho –, inicia-se a segunda etapa,
denominada da “saúde ocupacional”, caracterizada pelo reconhecimento da
saúde como direito fundamental e, ao mesmo tempo, da averiguação da indis-
sociabilidade dos temas saúde/trabalho9.
Em matéria normativa, tais indicações são influenciadas por dois dos
mais importantes documentos internacionais de direitos humanos: a Carta das
Nações Unidas, de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
1948, com sua forte ênfase na dignidade humana. Igualmente e sobretudo, pela
criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, que apresenta definição
ampla e holística de saúde, tendo-a como “um completo estado de bem-estar
físico, mental e social”10. Trata-se, portanto, de relevantíssimo reconhecimento
expresso da temática da dimensão mental da saúde.
Finalmente, deve-se ressaltar a importância do trabalho conjunto da OIT
e da OMS, que teve início em 1957, a partir da criação de um comitê misto
para o tratamento do tema da saúde ocupacional. Tal comitê foi essencial ao
desenvolvimento da saúde por um viés preventivo. Portanto, tal etapa trouxe
representativos avanços científicos e normativos a respeito da saúde do trabalho.
Mais adiante, a partir da década de 1970, a comunidade científica pas-
sou a reconhecer que, inobstante os avanços demonstrados na concepção da
saúde do trabalho, sua abordagem estava ainda desconectada daquele que seria
o principal objeto da saúde ocupacional: o próprio ser humano trabalhador. É
nesse contexto que surge a chamada “etapa da saúde do trabalhador”, em que
7 
MENDES, René; DIAS, Elizabeth C. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Revista de Saúde
Pública. São Paulo, 25(5), 1991, p. 341.
8 
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 5. ed. São Paulo: LTr,
2010, p. 60.
9 
Idem, p. 61-62.
10 
OMS. Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial de Saúde. Nova Iorque,
1946. Disponível em: <https://www.who.int/governance/eb/who_constitution_en.pdf>. Acesso em 20 ago. 2020.

<< Retorne ao sumário 222


ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

é reconhecida a necessidade dos trabalhadores também como sujeitos da saúde


ocupacional e não apenas meros objetos de estudo e de tutela11.
Ademais, há nesse momento histórico um importante movimento em
função da melhora do meio ambiente do trabalho, objetivando não apenas as
reduções de acidentes e seus custos, mas dos próprios riscos das atividades de
trabalho.
É também nessa etapa que surgem as mais importantes convenções
da OIT acerca do meio ambiente do trabalho e da saúde dos trabalhadores:
a Convenção nº 148, sobre Meio Ambiente do Trabalho; a Convenção nº
155, sobre Saúde e Segurança do Trabalho; e a Convenção nº 161, sobre
Serviços de Saúde no Trabalho12. Cumpre observar que a Convenção nº 155
é o primeiro instrumento da Organização Internacional do Trabalho que faz
expressa menção ao direito à saúde mental do trabalhador, em seu artigo 3,
alínea ‘e’, consagrando, portanto, o direito à saúde mental no trabalho como
um legítimo direito humano.
Finalmente, temos a etapa de “qualidade de vida do trabalhador”, que
surgiu em meados de 1985 e permanece em desenvolvimento no século XXI.
Nesta etapa, busca-se a implementação da concepção de saúde prevista pela
Constituição da OMS, em 1946, bem como pela Convenção nº 155 da OIT,
ou seja, valorizando não apenas o bem-estar físico, mas também o mental e
social dos trabalhadores.
Conforme assevera José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva13, trata-se de
etapa intimamente ligada ao grau de satisfação do trabalhador, relacionando-se
também à qualidade de vida para outros aspectos além da saúde, a saber, moradia,
alimentação e até mesmo o patamar remuneratório.
É especialmente nessa etapa, portanto, que a Organização Internacional
do Trabalho passa a demonstrar especial interesse no aspecto psicológico do
trabalho e em como esta dimensão afeta a saúde dos trabalhadores. Nesse sentido,
em 1986, é publicado o relatório “Psychosocial Factors at Work: Recognition and
Control”, em conjunto com a OMS, que apresenta a definição, consequências e
medidas de avaliação de fatores psicossociais no trabalho. Trata-se do primeiro
documento oficial da OIT sobre o tema da saúde mental no trabalho, bem como
a primeira menção expressa aos fatores psicossociais.

11 
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 5. ed. São Paulo: LTr,
2010, p. 64.
12 
SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. A saúde do trabalhador como um direito humano: conteúdo
essencial da dignidade humana. São Paulo: LTr, 2008, p. 120.
13 
SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. A saúde do trabalhador como um direito humano: conteúdo
essencial da dignidade humana. São Paulo: LTr, 2008, p. 124-125.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Deste então, a OIT passou a produzir uma variedade de informes e rela-


tórios técnicos contendo recomendações a seus membros acerca do tema dos
riscos psicossociais no trabalho. Entretanto, os riscos psicossociais só passaram
a figurar como tema de uma convenção específica em 2019, na Convenção nº
190 e na Recomendação n.º 206, ambas da OIT, versando sobre os importantes
assuntos do assédio e da violência no trabalho. Tal inclusão, portanto, exprime
relevante aceno da Organização para a proteção da saúde mental dos traba-
lhadores de forma expressa e vinculante, o que pode vir a ter repercussão nas
legislações e políticas públicas de seus Estados-membros.
A fim de compreender a importância do tratamento de tais temas em
instrumentos vinculantes da OIT, busca-se a seguir expor, brevemente, o que
são os riscos psicossociais e como o assédio e a violência no trabalho se inserem
nessa temática.

3. RISCOS PSICOSSOCIAIS NO TRABALHO:


DEFINIÇÃO, FONTES E PRINCIPAIS PATOLOGIAS

Qualquer atividade laboral possui riscos, que podem se manifestar em


diversas acepções, seja do ponto de vista econômico, social, ambiental ou mesmo
da qualidade de vida do trabalhador. Nesse sentido, a própria definição de tra-
balho produtivo, segundo Amauri Mascaro Nascimento14, relaciona-se àquele
“que resulta da maior eficiência dispendida com vistas a uma melhor qualidade
ou, como no mais comum das vezes, na consecução da maior quantidade de
bens ou serviços”, sendo que tal dispêndio de energia tem, como consequência,
a produção de efeitos sobre a condição do agente.
Entre os principais riscos que se observam a partir da atividade do tra-
balho, possui destaque o risco à saúde. Conforme leciona Ana Claudia Moreira
Cardoso15, o trabalho é determinante no processo saúde-doença do trabalhador,
uma vez que “é ele quem analisa as condições que tem para realizá-lo; é ele que
sofre o desgaste físico, mental e emocional; é ele que, por fim, adoece, sofre
acidentes e morre”.
Já no que tange aos riscos psicossociais, em que pese tenham uma diver-
sidade de definições na literatura científica, estão intimamente relacionados à
interação dos elementos integrantes do meio ambiente do trabalho, bem como
com seu impacto na saúde dos trabalhadores, mormente em sua dimensão
psicossocial.
14 
NASCIMENTO, Amauri Mascaro; et. al. História do Trabalho, do Direito do Trabalho e da Justiça
do Trabalho: Homenagem a Armando Casimiro Mota. 3 Ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 14.
15 
CARDOSO, Ana Cláudia M. O trabalho como determinante do processo saúde-doença. Tempo Social,
27(1), 2015, p. 76.

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ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

O próprio termo “psicossocial” já assinala a relação de tais riscos com o


ambiente e com o efeito subjetivado a cada trabalhador. Conforme a definição
do Instituto Sindical de Trabajo y Ambiente y Salud16, “os riscos psicossociais
são ‘psico’ porque afetam a nossa psiquê, e são sociais pois sua origem é social, a
partir de determinadas características da organização do trabalho”.
Portanto, os riscos psicossociais dizem respeito a fatores derivados do
trabalho que possuem probabilidade de afetar negativamente a saúde dos tra-
balhadores. É esse o conceito adotado pela Agência Europeia de Saúde e
Segurança Ocupacional17, isto é, os riscos são “decorrentes de deficiências na
concepção, organização e gestão do trabalho, bem como de um contexto social
de trabalho problemático, podendo ter efeitos negativos a nível psicológico,
físico e social”. Assim sendo,
“(...) os riscos psicossociais são percepções subjetivas que
o trabalhador tem da organização do trabalho. E podemos
identificá-los através de instrumentos como protocolos e
questionários que, após analisados, indicam a possibilidade
de ampliação dos danos à saúde de quem trabalha, atin-
gindo a área psíquica, a moral e o intelecto, dentre outros
aspectos. Contidos na ideia de riscos psicossociais estão
os estressores emocionais, interpessoais e aqueles ligados
à organização do trabalho.”18
Conclui-se, assim, que os riscos psicossociais, em que pese afetarem espe-
cialmente a seara psicossocial dos trabalhadores e possuam grande relação com o
adoecimento mental no trabalho, em realidade, atingem a saúde dos trabalhadores
como um todo, podendo também gerar efeitos de ordem física e comportamental.
Noutro giro, temos que as fontes dos riscos psicossociais são os chamados
“fatores psicossociais do trabalho”19, ou seja, aquelas circunstâncias decorrentes
dos elementos integrantes do meio ambiente do trabalho que têm o potencial
de afetar a saúde dos trabalhadores. Nota-se que o que diferencia os fatores
dos riscos, para além da relação de causa e origem, é o fato de que os fatores
podem possuir qualquer tipo de impacto no trabalho, inclusive de forma positiva,
gerando, por exemplo, satisfação e bem-estar.

16 
ISTAS. Instituto Sindical de Trabajo y Ambiente y Salud. Guía para la intervención sindical en orga-
nización del trabajo y riesgos psicosociales. Madrid, 2015, p. 17.
17 
EU-OSHA. European Agency for Occupational Safety and Health. Riscos Psicossociais e Estresse
no Trabalho. Disponível em: <https://osha.europa.eu/pt/themes/psychosocial-risks-and-stress>. Acesso
em: 20 abr. 2021.
18 
HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio moral: gestão por humilhação. Curitiba: Editora
Juruá, 2018, p. 41-43.
19 
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Psychosocial Factors at Work: Recognition and Control.
Genebra, 1986, p. 5.

<< Retorne ao sumário 225


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Desse modo, os fatores são decorrentes diretamente do meio ambiente


laboral e seus elementos, a saber, as condições de trabalho (fatores físico-estruturais
do trabalho), a organização do trabalho (ou seja, o arranjo técnico-organizacio-
nal do trabalho) e as relações interpessoais no trabalho, ou seja, as interações no
contexto laboral20.
Ademais, em que pese o meio ambiente do trabalho seja indicado na
literatura como a principal origem dos riscos psicossociais, também podem
influir na saúde do trabalhador fatores extralaborais, ou seja, externos ao con-
texto laborativo, a exemplo do tráfego, questões familiares, violência urbana,
condições climáticas etc.21
Entretanto, no que diz respeito aos riscos psicossociais, deve-se reiterar
que a sua percepção é, necessariamente, negativa, sendo nocivos os efeitos para a
saúde e o bem-estar dos trabalhadores22. Bernardo Jiménez e Carmén León23,
inclusive, consideram que o que diferencia os riscos psicossociais dos fatores
psicossociais do trabalho e do estresse laboral é que suas consequências, além
de eminentemente negativas, tendem a ser graves.
Portanto, os riscos psicossociais se relacionam intimamente com as
patologias do trabalho, razão pela qual as doenças e transtornos mentais e
comportamentais tendem a ser a melhor exemplificação do que são tais riscos
labor-ambientais. Nesse sentido, Christophe Dejours24 classifica as patologias
do trabalho como as patologias da sobrecarga, patologias da servidão voluntária
e as patologias da violência. Como patologias da sobrecarga, temos aquelas que
são provenientes do excesso de demandas de trabalho, implicando geralmente
em sua intensificação. Temos como exemplo o burnout (estado de total esgo-
tamento pelo trabalho), o chamado karoshi (morte por exaustão do trabalho) e
o suicídio pelo trabalho.
Já como exemplos de patologias da servidão voluntária, temos como prin-
cipais exemplos dos riscos psicossociais a depressão e o estresse laboral crônico.
20 
MARANHÃO, Ney. Poluição Labor-Ambiental: Abordagem conceitural da degradação das condições
de trabalho, da organização do trabalho e das relações interpessoais travados no contexto laborativo. 1 Ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 51.
21 
FERREIRA, Estêvão Fragallo; MARANHÃO, Ney. Riscos Psicossociais e Meio Ambiente do Traba-
lho: Elementos Gerais e Introdutórios. In: LEAL, Carla Reita Faria; MARANHÃO, Ney; PADILHA,
Norma Sueli (Org.). Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente do Trabalho: Discussões Contemporâneas.
Cuiabá: EdUFMT, 2021, p. 100.
22 
COMISSÃO EUROPEIA. Promoting Mental Health in the Workplace: Guidance to Implementing
a Comprehensive Approach. 2014, p. 4)
23 
JIMÉNEZ, Bernardo Moreno; LEÓN, Carmen Baez. Factores y riesgos psicosociales, formas, con-
secuencias, medidas y buenas prácticas. Madri: Instituto Nacional de Seguridad e Higiene en el Trabajo,
2010, p. 17-18).
24 
DEJOURS, Christophe. Psicodinâmica do trabalho na pós-modernidade. In: Mendes, A. M; Lima, S. C.
C; Facas, E. P. (orgs). Diálogos em psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, 2007, p. 13.

<< Retorne ao sumário 226


ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

Tratam-se, de fato, de patologias mentais comuns no trabalho. A Organização


Mundial de Saúde, por exemplo, considera que até 2020, a depressão passa a se
tornar a segunda maior causa de afastamento por trabalho no mundo25.
Finalmente, temos as chamadas patologias da violência, em que se enqua-
dram os fenômenos do assédio e da violência no trabalho. Ambos, em realidade,
tratam de formas diferentes de violência, tendo suas origens nas relações inter-
pessoais no trabalho, mas também tendem a se manifestar a partir de arranjos
organizacionais específicos. Tais riscos serão analisados a seguir.

4. PATOLOGIAS DE VIOLÊNCIA NO TRABALHO: O


ASSÉDIO E A VIOLÊNCIA NO TRABALHO COMO
RISCOS PSICOSSOCIAIS

A Organização Mundial de Saúde26 define violência como “o uso inten-


cional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra
outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha
grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência
de desenvolvimento ou privação”. Trata-se da leitura do tema essencialmente
voltado para o seu impacto no campo da saúde pública e coletiva.
Já a violência no trabalho diz respeito a uma transgressão no convívio
social no meio ambiente laboral. Juan José de Laguna27 apresenta três tipos
de violência ocorridas no ambiente de trabalho: a violência tipo I, de origem
externa, que diz respeito à conduta violenta que não se relaciona ao cenário
laboral propriamente dito, a exemplo dos roubos; a violência tipo II, também
de origem externa, que se refere à conduta violenta entre sujeito integrante
da ambiência laboral e um terceiro com quem possui uma relação comercial,
a exemplo de consumidores ou pacientes. Por fim, a violência tipo III, do tipo
interna, ou seja, perpetrada entre sujeitos integrantes do mesmo ambiente
de trabalho.
Muito embora as três tipologias de violência no trabalho devam ser evitadas,
merece especial atenção a violência do tipo III, sobretudo porque a sua origem
está ligada ao poder de direção empresarial. Nesse sentido, conforme lecionam
Heloani e Barreto28, a violência no trabalho “ (...) consiste em um desequilíbrio
25 
JARDIM, Sílvia. Depressão e Trabalho: Ruptura de Laço Social. Revista Brasileira de Saúde Ocupa-
cional. São Paulo, 36 (123): 2011, p. 86.
26 
OMS. Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra, 2002, p. 5.
27 
LAGUNA, Juan José Rodríguez Bravo de. La violência em el trabajo: perfiles jurídicos. In: QUIN-
TANA, Margarita Isabel Ramos. Riesgos Psicosociales y Organización de la Empresa. Navarra: Thomson
Reuters, 2017, p. 319.
28 
HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Aspectos do Trabalho Relacionados à Saúde Mental:
Assédio Moral e Violência Psicológica. In: GLINA, Débora Miriam Raab; ROCHA; Lys Esther. Saúde

<< Retorne ao sumário 227


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

que nasce de uma relação centrada na imposição, no abuso de poder, na ameaça


ou mesmo em ações desrespeitosas”.
Ao nos referirmos ao contexto laboral, as atuais formas de violência no
trabalho também refletem as transformações no mundo do trabalho: a intensi-
ficação do trabalho provocada por rearranjos produtivos, a dinâmica evolução
tecnológica, o aumento do adoecimento físico e mental entre trabalhadores, o
desemprego e a discriminação são alguns dos exemplos dos atuais fatores de
influência nos processos de violência29.
Nesse sentido, temos que a prática do assédio no trabalho é uma das
facetas da violência laboral. Tal violência não se dá, necessariamente, em termos
de agressão física ou verbal. Trata-se de prática de degradação na ambiência
laboral prolongada no tempo, cujo principal efeito é o abalo da saúde psicossocial
dos trabalhadores30.
Outrossim, o assédio moral no trabalho não se trata de uma prática epi-
sódica ou pontual. É, na realidade, a “exposição dos trabalhadores a situações
humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de
trabalho”31, com tendência de cada vez maior desestabilização do trabalhador.
Para além da reiteração da conduta, faz-se necessária, ainda, a intencionalidade
e a abusividade do agressor.
O assédio moral, ainda, dá-se em níveis diversificados, podendo se mani-
festar, por exemplo, quando um trabalhador é agredido por seu superior (assédio
vertical), quando um colega é agredido por outro colega (assédio horizontal) ou,
ainda, quando um superior é agredido por um subordinado, prática conhecida
como assédio ascendente32.
De todo modo, tanto a violência quanto o assédio laboral passaram a ser
compreendidos não como fenômenos isolados no ambiente de trabalho, mas
como verdadeiros componentes da ambiência laboral. Nesse sentido, inclusive,

Mental no Trabalho: Da Teoria à Prática. São Paulo: Roca, 2010, p. 40.


29 
HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio Laboral e as Questões Contemporâneas à Saúde
do Trabalhador. In: NAVARRO, Vera Lúcia; LOURENÇO, Edvânia Ângela de Souza (Orgs.). Avesso
do Trabalho III: Saúde do Trabalhador e Questões Contemporâneas. São Paulo: Outras Expressões,
2013, p. 118.
30 
HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio Laboral e as Questões Contemporâneas à Saúde
do Trabalhador. In: NAVARRO, Vera Lúcia; LOURENÇO, Edvânia Ângela de Souza (Orgs.). Avesso
do Trabalho III: Saúde do Trabalhador e Questões Contemporâneas. São Paulo: Outras Expressões,
2013, p. 119.
31 
HELOANI, José Roberto; CAPITÃO, Cláudio Garcia. Saúde Mental e Psicologia do Trabalho. São
Paulo em Perspectiva, 17(2) 2003, p. 106.
32 
HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Aspectos do Trabalho Relacionados à Saúde Mental:
Assédio Moral e Violência Psicológica. In: GLINA, Débora Miriam Raab; ROCHA; Lys Esther. Saúde
Mental no Trabalho: Da Teoria à Prática. São Paulo: Roca, 2010, p. 36-37.

<< Retorne ao sumário 228


ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

Laura María Chiena33 identifica que são, pelo menos, três as partes envolvidas
no assédio ou na violência do trabalho: o agressor, a vítima e o entorno – pelo
que se conclui que não é possível conceber a prática de assédio laboral dissociada
do meio ambiente de trabalho em que este ocorre.
Há, ainda, outras designações de tal fenômeno, a exemplo da gestão por
injúria e do assédio moral coletivo, onde se evidencia que a postura abusiva do
empregador compromete, como um todo, o clima organizacional, a saúde dos
trabalhadores e até mesmo o próprio rendimento da empresa. Não por acaso
é que se tem estudado cada vez mais o fenômeno do assédio organizacional34.
Cumpre ressaltar que muito embora as práticas de violência e assédio no
trabalho ocorram no âmbito de relações individuais, visto que se tratam de rela-
ções complexas, multifacetadas e, por vezes, ocultas, a dimensão organizacional
e coletiva do assédio têm ganhado cada vez mais atenção, já que a gestão do
trabalho é influenciadora e até mesmo determinante para que o assédio ocorra,
a partir da imposição de metas abusivas, jornadas aviltantes, competitividade
entre trabalhadores e situações injustas35.
Conclui-se, assim, que, de alguma maneira, mesmo episódios isolados
de assédio são, na prática, consequência da organização do trabalho, visto que
advêm da divisão do trabalho, do controle hierárquico, da dinâmica de poder
ou do desenho da estrutura produtiva36.
É certo que o assédio e a violência laboral constituem ameaças em diver-
sos aspectos, visto que impactam a dignidade dos trabalhadores sujeitos a tais
práticas sob diversas perspectivas. Como exemplo, podemos citar a potencial
discriminação e estigmatização das vítimas, sobretudo aliadas a outras formas
de violência, como o racismo e a misoginia no ambiente de trabalho37.
Enfim, o escasso reconhecimento da problemática da violência e assédio
laboral dentro das organizações não espelha o debate público que há muito

33 
CHINEA, Laura María Melían. La eficácia del acuerdo marco europeo sobre acoso y violência em el
trabajo. In: QUINTANA, Margarita Isabel Ramos. Riesgos Psicosociales y Organización de la Empresa.
Navarra: Thomson Reuters, 2017, p. 240-241.
34 
DELGADO, Gabriela Neves; DIAS, Valéria de Oliveira. Direito Fundamental ao Trabalho Digno e
Meio Ambiente do Trabalho Saudável: Uma Análise sob a Perspectiva do Assédio Organizacional. In:
FELICIANO, Guilherme Guimarães; SARLET, Ingo Wolfgang; MARANHÃO, Ney; FENSTERSEI-
FER; Tiago. Direito Ambiental do Trabalho: Apontamentos para uma Teoria Geral. Volume 5. São Paulo:
LTr, 2020, p. 155.
35 
ANTUNES, José. Assédio moral no trabalho: Revendo a evidência. Psic., Saúde & Doenças, Lisboa,
v. 18, n. 3, 2017, p. 675.
36 
HELOANI, José Roberto; CAPITÃO, Cláudio Garcia. Saúde Mental e Psicologia do Trabalho. São
Paulo em Perspectiva, 17(2) 2003, p. 106.
37 
ANDRADE, Cristina Batista; ASSIS, Simone Gonçalves. Assédio moral no trabalho, gênero, raça e
poder: revisão de literatura. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 43:e11, 2018, p. 2.

<< Retorne ao sumário 229


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

vem permeando o tema. Luciana Baruki38, por exemplo, define tais práticas
como “pandemia” no ambiente de trabalho, seja por sua manifestação presente
de forma coletiva e de alta propagação, seja se utilizando, de forma análoga, de
um problema que se refere, também, à saúde ocupacional.
Destarte, as patologias da violência representam riscos psicossociais de
gravidade acentuada, visto que provocam danos que ultrapassam a esfera da
violação apenas da saúde. Afetam, em realidade, outros bens jurídicos e direitos
fundamentais dos trabalhadores, a exemplo da dignidade, da integridade física,
psíquica e sexual, da imagem e da honra.
Dessume-se, pois, que tais fenômenos demandam especial atenção, diálogo
e estratégias de combate e prevenção por instituições nacionais e internacionais.
É nesse contexto que surge a Convenção 190 da OIT, cuja proposta, abrangência
e reais possibilidades de eficácia serão discutidas a seguir.

5. A CONVENÇÃO 190 DA OIT E O DIREITO


BRASILEIRO: POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO

Fruto de cerca de 10 anos de negociações e tendo seu marco inicial na 108ª


Conferência Internacional do Trabalho, quando do centenário da Organização
Internacional do Trabalho, a Convenção n.º 190, denominada “Convenção sobre
Assédio e Violência”, foi aprovada em 21 de junho de 201939 juntamente com
a Recomendação n.º 206.
O esforço da Organização Internacional do Trabalho para aprovação do
texto da convenção decorre da busca pelo trabalho decente, agenda que con-
substancia a convergência de quatro objetivos estratégicos da agência interna-
cional – respeito aos direitos fundamentais, promoção de empregos, ampliação
à proteção social e o diálogo social40.
Para além disso, a inserção do combate à violência e ao assédio no traba-
lho em convenção da OIT demonstra a preocupação do organismo com duas
importantes agendas do trabalho contemporâneo: o combate à discriminação

38 
BARUKI, Luciana Veloso. Riscos Psicossociais e Saúde Mental do Trabalhador: Por um Regime
Jurídico Preventivo. 2 Ed. São Paulo, LTr, 2018, p. 99.
39 
RETSLAFF, Franciane de S.; PAGNONCELLI, Laís; LOPES, Luana de Oliveira; GUINSKI, Lucas
Costa. A Convenção nº 190 da OIT: como será recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro? In:
SERAU JR., Marco Aurélio (coord.) Assédio Moral e Sexual no Trabalho: Comentários à Convenção Nº
190 da OIT. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021, p. 234.
40 
SCHAITZA, Angélica Pavelski Cordeiro; FACHIN, Melina Girardi. Direito ao Trabalho decente, livre
de violência e assédio: um diálogo constitucional-internacional? In: SERAU JR., Marco Aurélio (coord.)
Assédio Moral e Sexual no Trabalho: Comentários à Convenção Nº 190 da OIT. Belo Horizonte: Editora
IEPREV, 2021, p. 49.

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ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

(em especial, a discriminação de gênero) e a promoção de saúde e segurança no


meio ambiente do trabalho, especialmente saúde mental.

5.1. Principais diretrizes da Convenção 190 da OIT

A Convenção nº 190 da OIT é composta por preâmbulo e 20 artigos,


divididos em oito capítulos, denominados, respectivamente: I) definições; II)
âmbito; III) princípios fundamentais; IV) proteção e prevenção; V) aplicação e
reparação; VI) orientação, formação e sensibilização; VII) métodos de aplicação
e VIII) disposições finais.
Preliminarmente, verifica-se do preâmbulo uma especial preocupação
contra a discriminação e violência de gênero no ambiente de trabalho, res-
saltando-se a importância da igualdade de oportunidades, respeito mútuo e
necessidade de enquadrar as mulheres no mercado de trabalho. Para além disso,
identificam-se também outros bens jurídicos a serem tutelados pelo tratado, em
especial a saúde psicológica, física e sexual das pessoas no ambiente de trabalho,
assim como a noção de bem-estar.
As definições apresentadas pelo tratado, presentes em seu artigo 1º, são
duas: violência e assédio, genericamente falando, e violência e assédio com base
no gênero. O primeiro termo diz respeito a “um conjunto de comportamentos
e práticas inaceitáveis, ou de suas ameaças, de ocorrência única ou repetida, que
visem, cause ou sejam susceptíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou
econômico, e inclui a violência e o assédio com base no género”41, de tal forma
que se verifica que a segunda definição é espécie da primeira. Frisa-se, aqui,
a atenção já notada no preâmbulo em relação ao recorte de gênero pela OIT.
Já no que tange ao âmbito de aplicação da Convenção, o artigo 3º traz uma
importante previsão, ao utilizar da expressão “mundo do trabalho” para denotar
qualquer contexto laborativo em que assédio e violência laboral possam ocorrer.
Citam-se como exemplo, inclusive, as tecnologias de informação e comunicação,
demonstrando a atenção da OIT às novas tipologias laborais e seus consequentes
riscos emergentes, bem assim o próprio fenômeno do deslocamento ao trabalho.
Apesar dos diversos ambientes apresentados no texto convencional, a redação
do sobredito artigo nos leva a crer que se trata de rol exemplificativo.
Os princípios fundamentais da Convenção 190 da OIT também apre-
sentam uma tutela em sentido amplo: ao mesmo tempo que busca reparar os
danos sofridos pelas vítimas e sancionar os agressores, faz-se expressa menção

41 
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Convenção 190: Sobre Assédio e Violência. Disponível
em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---europe/---ro-geneva/---ilo-lisbon/documents/generi-
cdocument/wcms_729459.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2021.

<< Retorne ao sumário 231


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

a estratégias preventivas para o combate à violência e assédio laboral, seja por


normas de ordem pública, por políticas estatais ou, ainda, medidas empresariais,
da inspeção laboral e de outros agentes competentes.
No capítulo concernente à proteção e a prevenção da prática, chama-se
especial atenção ao Artigo 9º, alínea ‘b’, do tratado, ao dispor que “cada Membro
deverá (...) ter em conta a violência e o assédio e os riscos psicossociais associados
na gestão da saúde e da segurança no trabalho”42. Trata-se da primeira menção
expressa, em instrumentos formais da Organização Internacional do Trabalho,
aos riscos psicossociais, o que ganha especial importância considerando a obri-
gação, ao mesmo tempo, dos Estados-membros e dos empregadores de tomar
medidas de prevenção e de ciência de tais riscos.
Para além disso, é também importante destacar o importante enfoque
preventivo do instrumento normativo, sem prejuízo ao incentivo da adoção de
medidas reparadoras e sancionatórias, buscando-se assim o combate à violên-
cia laboral antes de sua ocorrência – em harmonia, assim, com os princípios
jusambientais da prevenção e precaução.
Finalmente, os capítulos seguintes buscam asseguram que as medidas
disciplinares, pedagógicas, reparatórias e conscientizadoras contra o assédio e
violência no trabalho ocorram em instâncias diversificadas, seja por processos
disciplinares no âmbito organizacional, por meio da instauração de resoluções
conciliatórias ou, caso necessário, a disponibilização do Poder Judiciário para a
tutela das vítimas e a punição dos agressores envolvidos.

5.2. Convenção 190 da OIT e Brasil

Nada obstante o pioneirismo da norma da OIT ao prever uma proteção


internacional contra o assédio e violência laboral, inclusive a nível preventivo, é
possível vislumbrar entraves para a sua incorporação ao ordenamento jurídico
brasileiro. O primeiro obstáculo para tanto é formal, visto que o Brasil não
ratificou a Convenção 190 e nem tampouco a Recomendação 206 da OIT, em
vigor desde 25 de junho de 202143.
Contudo, os possíveis entraves excedem a questão normativa, visto que
a principal observação é a de ausência de vontade política para a aprovação de
tal texto, em especial considerando a tendência legislativa contrária à proteção
42 
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Convenção 190: Sobre Assédio e Violência. Disponível
em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---europe/---ro-geneva/---ilo-lisbon/documents/generi-
cdocument/wcms_729459.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2021.
43 
Apenas dez países, até a presente data, ratificaram a Convenção: África do Sul, Argentina, Equador, Fiji,
Grécia, Itália, Ilhas Maurício, Namíbia, Somália e Uruguai. Disponível em: <https://www.ilo.org/dyn/normlex/
en/f?p=1000:11300:1599023359463::::P11300_INSTRUMENT_SORT:1>. Data de acesso: 10 jan. 2022.

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ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

dos trabalhadores, a exemplo da Reforma Trabalhista (Lei n.º 13.467/2017).


Outro indício da falta de interesse político na adesão ao tratado foi a abstenção
brasileira na votação concernente à sua aprovação.
Em que pese algumas iniciativas por parte do Poder Público indiquem o
ânimo de ratificar o tratado internacional – em especial a campanha do Minis-
tério Público do Trabalho pela ratificação da Convenção 190 da OIT e o PL n.º
1.399/2019, que busca incorporar à CLT dispositivos que combatam o assédio
no meio ambiente do trabalho, com inspiração na supracitada convenção44 –,
tais ações são esparsas, sendo ainda carentes de uma iniciativa significativa e
conjunta que indique verdadeira adesão brasileira ao texto convencional.
Frise-se que a adesão do Brasil à Convenção 190 da OIT viria a suprir
a enorme lacuna normativa acerca da violência e assédio laboral no Brasil, bem
como em relação aos riscos psicossociais labor-ambientais. Isso porque as previ-
sões normativas acerca do assédio moral no trabalho existem a nível municipal
e regional, geralmente voltadas ao serviço público. Além disso, o Artigo 217-A
do Código Penal criminaliza o assédio sexual, contudo de forma geral.
Assim, até o presente momento, a tutela dos trabalhadores em face da
violência, assédio e riscos psicossociais no trabalho tem se limitado, de maneira
geral, a seu aspecto reparatório, sendo considerados como danos extrapatrimo-
niais (Artigo 223-C, da CLT). Ademais, as medidas judiciais e extrajudiciais de
caráter preventivo, em relação ao assédio laboral, geralmente ocorrem a partir de
ações coletivas do Ministério Público do Trabalho ou ainda a partir do chamado
compliance trabalhista – que, apesar de louvável, decorre do interesse individual
de cada organização ou empresa.
Em contrapartida, a ausência do caráter vinculante da Convenção n.º
190 da OIT no direito doméstico não significa dizer que tal documento não
seja passível de utilização no ordenamento jurídico brasileiro. Pelo contrário:
trata-se de normativa proeminente e apta a despertar efeitos jurídicos plenos
nas relações laborais brasileiras.
Tal entendimento decorre, em primeiro lugar, da sistemática constitucional
de abertura a novos direitos fundamentais, inclusive aqueles decorrentes de tra-
tados internacionais e princípios gerais do Direito, tendo esses eficácia imediata
no Brasil (Artigo 5º, §§ 1 e 2º, CF). Soma-se tal entendimento à exegese do
Artigo 7º, caput, da Carta Republicana, que impõe como regra a “melhoria da
condição social dos trabalhadores”, em consonância com os princípios consti-
tucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.
44 
BORGES, Iara Farias. CAS aprova projeto que combate assédio no ambiente de trabalho. Disponível
em: < https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2021/08/cas-aprova-projeto-que-combate-assedio-no-
-ambiente-de-trabalho>. Acesso em: 28 nov. 2021.

<< Retorne ao sumário 233


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Para além disso, o Artigo 8º, caput, da CLT, que prevê as técnicas de
interpretação e integração normativa na seara trabalhista, avaliza expressamente
a decisão pela jurisprudência e, ainda, dos princípios gerais do Direito e os
específicos do Direito do Trabalho na falta de disposições legais e contratuais,
o que é o caso dos riscos psicossociais e, mais especificamente, do assédio e
violência no trabalho no Brasil.
Finalmente, impende destacar o papel do controle de convencionalidade
interno, ou seja, a aplicação, por parte do órgão jurisdicional, de uma norma
convencional em detrimento de uma norma de direito interno (ou então, diante
de uma anomia do direito doméstico) para fins de preservação da dignidade
da pessoa humana45. Trata-se de prática aplicável às convenções da Organiza-
ção Internacional do Trabalho, sendo aceita e reconhecida pela jurisprudência
trabalhista.
Nesse sentido, salienta-se que todas as técnicas jurídicas supracitadas
(a interpretação ampliativa dos direitos fundamentais, a integração normativa
e o controle de convencionalidade) já têm sido aplicadas, ainda que de forma
incipiente, pela jurisprudência brasileira no que tange à Convenção 190 da
OIT. Chama-se especial atenção para o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª
Região, que não apenas fixou tese sobre o assédio laboral baseado na Convenção
190 da OIT, em conjunto com a Convenção n.º 155, como também adotou o
entendimento de que o assédio moral no trabalho constitui dano moral in re
ipsa. Colaciona-se, nesse sentido, a tese fixada pela Corte Regional, presente
em diversos julgados:
“ASSÉDIO MORAL. INOBSERVÂNCIA DE DIREI-
TOS HUMANOS, NORMAS INTERNACIONAIS E
DIREITOS E GARANTIAS PREVISTOS NA CONS-
TITUIÇÃO DA REPÚBLICA. VIOLAÇÃO DA DIG-
NIDADE HUMANA NA RELAÇÃO DE TRABALHO.
CONVENÇÃO 155 DA OIT. CONVENÇÃO 190 DA
OIT. DANO MORAL IN RE IPSA. (...) Embora o Brasil
não tenha ratificado, ainda, a Convenção 190 da OIT, a
referida norma encontra-se alicerçada nas core obligations
previstas na Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos
Fundamentais no Trabalho. Nesse sentido, a referida Declara-
ção destaca que os princípios fundamentais no trabalho (core
obligations) devem ser observados pelos membros da OIT
somente pelo fato de tais entes integrarem a Organização,
ou seja, independente das normas que tratam dos princípios
fundamentais do trabalho terem sido ratificadas pelos esta-

45 
CANTOR, Ernesto Rey. Control de Convencionalidad de las leyes y derechos humanos. México, D.F.:
Editorial Porruá, 2008, p. 48-49.

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ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

dos-membros. No mesmo norte, a interpretação sistemática


da Constituição da República e dos seus princípios e direitos
fundamentais, notadamente, os valores sociais do trabalho,
a dignidade da pessoa humana, o princípio de melhoria das
condições sociais da classe trabalhadora e a função social da
propriedade (arts. 1º, III e IV, 7º, caput e 170, III e VIII),
rechaçam de forma veemente as práticas de discriminação
e assédio moral (...)”46.
Frise-se que o entendimento alhures, para além de ratificar a responsa-
bilidade patronal no que tange às práticas de assédio e violência no trabalho,
asseveram sobretudo as consequências nefastas de tais condutas à saúde psi-
cológica do trabalhador, indicando a possível utilização da Convenção 190 da
OIT para a prevenção de outros riscos psicossociais.
Portanto, ainda que a atuação jurisprudencial não seja suficiente para o
enfrentamento do assédio laboral e outras práticas de violência no meio ambiente
do trabalho, sobretudo considerando que se trata de entendimento incipiente
e minoritário, vê-se que esse é um meio possível para a atuação estatal frente
à inércia dos Poderes Executivo e Legislativo em relação à adesão formal do
Brasil à Convenção 190 da OIT, mediante a aplicação direta de sadios veto-
res solidarísticos explicitamente enraizados na nossa própria Constituição da
República, permitindo-se, assim, a tutela adequada do trabalhador em face dos
insidiosos riscos psicossociais ocupacionais, sobretudo quando decorrentes de
violência e assédio no trabalho.

6. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, é possível concluir que a Convenção nº 190 da OIT,


ao celebrar o centenário do organismo internacional, alcança também um marco
histórico na tutela da saúde ao trazer normas de prevenção a riscos psicossociais
e promoção da integridade dos trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo em seu
aspecto mental e social.
É, ainda, instrumento que ressalta a importância de amplas e diversificadas
medidas contra a violência e o assédio laboral, em todas as suas acepções e em
todos os modelos laborais, demonstrando a especial preocupação da OIT para
com a promoção da igualdade no trabalho e os combates à discriminação e à
violência de gênero no contexto laboral. Assim, a OIT demonstra estar alinhada
46 
A tese colacionada foi utilizada, até a presente data, nos seguintes processos: 0020977-90.2019.5.04.0234,
0020183-44.2018.5.04.0771, 0021626-68.2017.5.04.0511, 0021742-49.2017.5.04.0002, 0020477-
30.2018.5.04.0211, 0020291-46.2017.5.04.0662, 0020525-10.2020.5.04.0731, 0020058-66.2020.5.04.0008,
0021060-77.2017.5.04.0331, 0020593-97.2017.5.04.0008, 0020434-19.2020.5.04.0601 e 0020909-
61.2018.5.04.0013. Disponível em: < https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/acordaos>. Acesso em: 30 nov. 2021.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

ao combate à tendência precarizante do assédio e da violência do trabalho no


contexto produtivo.
Nada obstante, depreende-se que o Brasil parece não refletir, até o presente
momento, a agenda internacional ao não ratificar – nem tampouco participar
da aprovação – do tratado internacional, entendendo-se como preocupante o
silêncio, em especial do Poder Público, acerca das medidas necessárias ao com-
bate à violência e ao assédio, em que pese a presença comum de tais práticas
entre as organizações brasileiras. Outrossim, vê-se que as iniciativas voltadas à
erradicação e redução da violência laboral são insuficientes.
Contudo, a Convenção nº 190 da OIT se constitui como instrumento
apto a auxiliar na tutela contra o assédio e a violência laboral, ainda que não
possua caráter cogente, uma vez que o direito brasileiro contempla a ampla tutela
da saúde dos trabalhadores, inclusive a saúde mental, sobretudo por meio da
interpretação ampliativa de direitos fundamentais, da integração normativa e
do controle de convencionalidade, além da própria aplicação direta de preceitos
constitucionais, subsidiando em especial a interpretação jurisprudencial no tema
do assédio, da violência e dos riscos psicossociais no trabalho.

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ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO: CONTRIBUIÇÕES
DA CONVENÇÃO n.º 190 DA OIT PARA A PREVENÇÃO DE RISCOS PSICOSSOCIAIS

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PANDEMIA DE COVID-19,
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
E A CRISE DO CAPITAL

Linauro Pereira de Souza Neto1

Resumo: O presente artigo apresenta os resultados parciais de uma pesquisa em


andamento e reflete sobre a relação entre a crise do capital, a precarização do
trabalho e as medidas normativas relacionadas ao mundo do trabalho surgidas no
contexto da pandemia provocada pelo Covid-19 (coronavírus). A sua justificativa
se dá pela emergência e relevância do tema para o debate acadêmico na atual
conjuntura pandêmica, notadamente, na sociologia do trabalho e no direito do
trabalho. O seu objetivo é o de relacionar as regulamentações trabalhistas surgidas
recentemente no Brasil, em especial, desde a reforma trabalhista até as Medidas
Provisórias nº 905, 927 e 936, com os conceitos de crise do capital e precariza-
ção das relações sociais de trabalho. Para metodologia do artigo, adotou-se uma
abordagem qualitativa, lançando mão de técnicas de coleta e análise variadas,
tais como: revisão bibliográfica, pesquisa documental, quando buscou-se analisar
as recentes e principais regulamentações relativas ao mundo do trabalho, desde
a reforma trabalhista até aquelas editadas durante a pandemia, e, enfim, análise
de conteúdo. Os resultados parciais da pesquisa em andamento foram de que a
flexibilização e desregulamentação de diversas normas laborais foram inseridas
em diversas medidas provisórias sem que houvesse urgência ou relevância no
contexto da pandemia e sem que isso tenha representado, de fato, uma garantia
de emprego para os trabalhadores, especialmente, os informais e celetistas de labor
precarizado. Não obstante ao caráter preliminar do presente trabalho, conclui-se
que, a despeito do contexto que deu origem às medidas de combate à pandemia
e ao desemprego, as medidas provisórias analisadas se colocam numa conjuntura
de crise não apenas ambiental e sanitária, mas também econômica, com amplia-
ção das reformas neoliberais no país e intensificação da tendência de descarte do
direito do trabalho e de precarização das relações sociais laborais.

1 
Graduado em Direito pela UESB, Especialista em Advocacia Trabalhista e Previdenciária pela UNISC,
Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela UFBA. Possui experiência nas áreas de Direito e Sociologia,
com ênfase em Direito do Trabalho e Sociologia do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas:
Trabalho, Precarização e Terceirização.

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PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

Palavras-chave: Trabalho, crise, flexibilização, precarização, covid-19.

Abstract: This article presents the partial results of ongoing research and
reflects on the relationship between the crisis of capital, the precarization of
Labor, and the normative measures related to the workplace that emerged in
the context of the pandemic caused by COVID-19 (coronavirus). Its justifica-
tion is given by the emergence and relevance of the topic for academic debate
in the current pandemic scenario, notably in labor sociology and labor law. Its
objective is to relate the labor regulations that have recently emerged in Brazil,
in particular, from the labor reform to the Provisional Measures nº 905, 927,
and 936, with the concepts of crisis of capital and precarization of social work
relations. For the methodology of the article, a qualitative approach was adopted,
making use of the varied collection and analysis techniques, such as literature
review, document research (when we sought to analyze the recent and main
regulations relating to the world of labor, from labor reform to those edited
during the pandemic), and finally, content analysis. The partial results of the
ongoing research were that the flexibilization and deregulation of various labor
standards were included in several interim measures without any urgency or
relevance in the context of the pandemic and without this having represented
a guarantee of employment for the workers, especially informal workers and
workers with precarious jobs. Despite the preliminary nature of this work, it
is concluded that, regardless of the context that gave rise to the measures to
combat the pandemic and unemployment, the provisional measures analyzed
are placed in a situation of not only environmental and health crisis, but also
economic crisis, with the expansion of neoliberal reforms in the country and
the intensification of the tendency to discard the right to work and making
social labor relations more precarious.

Keywords: Labor, crisis, flexibilization, precarization, covid-19.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta os resultados parciais de uma pesquisa em


andamento e reflete sobre a relação entre a crise do capital, a precarização do
trabalho e as medidas normativas relacionadas ao mundo do trabalho surgidas
no Brasil no contexto da pandemia provocada pelo Covid-19 (coronavírus).
Isto porque, apesar de as referidas medidas se inserirem numa crise ambiental
e sanitária, revestindo-se de natureza emergencial, também é verdade que se
colocam num contexto mais amplo de crise estrutural do capital e expansão das
reformas neoliberais no país, notadamente, na precarização das relações de traba-

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

lho, com o aprofundamento da desregulamentação e flexibilização da legislação


trabalhista, muito além de serem apenas e tão somente medidas de combate aos
efeitos econômicos imediatos provocados pela pandemia de Covid-19.
Portanto, embora ainda sejam nebulosas as consequências advindas da
promulgação das referidas medidas, tendo em vista a sua recente vigência, o caráter
temporário de algumas delas e que há ainda um processo aberto de discussão e
de prática entre diferentes agentes sociais sobre a desregulamentação e flexibili-
zação dos direitos trabalhistas no país, inclusive, em meio a um processo aberto
de surgimento de novas normas relativas às relações de trabalho no contexto
pandêmico, a justificativa do presente artigo se dá pela emergência e relevância
do tema para o debate acadêmico, em especial, na sociologia do trabalho e no
direito do trabalho. Assim, o objetivo geral do artigo é o de relacionar as regu-
lamentações trabalhistas surgidas recentemente no Brasil, em especial, desde
a reforma trabalhista até as Medidas Provisórias (MP) nº 905, 927 e 936, com
os conceitos de crise do capital e precarização das relações sociais de trabalho.
Como objetivos específicos do artigo, têm-se: a) compreender o contexto
de crise do capital e avanço das medidas neoliberais que permeiam as altera-
ções mais recentes e importantes no direito do trabalho no Brasil; b) então,
analisar as principais regulamentações que impactaram no direito do trabalho,
especialmente, a reforma trabalhista e as MPs nº 905, 927 e 936; e c) refletir
sobre os impactos dessas sucessivas mutações na regulamentação laboral para
os trabalhadores no país.
Para metodologia do artigo, adotou-se uma abordagem qualitativa, lan-
çando mão de técnicas de coleta e análise variadas, tais como: revisão bibliográ-
fica, pesquisa documental, quando buscou-se analisar as recentes e principais
regulamentações relativas ao mundo do trabalho, desde a reforma trabalhista
até aquelas até então editadas durante a pandemia, e, enfim, análise de conteúdo
em relação aos documentos reunidos. As principais categorias e/ou conceitos
analíticos adotados para o desenvolvimento do artigo foram: trabalho, crise,
precarização e Covid-19.
O artigo está estruturado em três partes: o primeiro aborda a crise estrutural
do capital e a confluência das crises econômica, ambiental e sanitária no atual
processo pandêmico; o segundo tópico trata do aprofundamento das reformas
neoliberais no país e da precarização das relações de trabalho, que se dá através
da desregulamentação e flexibilização da legislação laboral; o terceiro tópico,
enfim, é dedicado à análise das medidas normativas relacionadas ao mundo do
trabalho surgidas já no contexto da pandemia de Covid-19 e os seus impactos
nas relações de trabalho.

<< Retorne ao sumário 242


PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

A pandemia de Covid-19 se dá num processo de crise estrutural do capital


e destaca a confluência das crises econômica, ambiental e sanitária no mundo. A
crise estrutural do capital, como destacou Mészáros (2006, 2011), em seus traços
básicos, configura um quadro crítico, destrutivo, e que tem sido experimentada em
todo o mundo onde vigora a lógica do capital. Particularmente, desde a década
de 1970, se efetivou de forma aguda, sobretudo, nos países centrais, sendo consi-
derada estrutural para o capitalismo mundial, uma expressão da sua contradição
interna, quando se refletiu, na sua dinâmica, em um processo de superacumulação,
superprodução e transformação da organização do mundo do trabalho.
As características mais evidentes desse quadro são: a queda tendencial
da taxa de lucro; o esgotamento do padrão taylorista/fordista de produção e
acumulação; a hipertrofia da esfera financeira; a maior concentração de capitais;
a crise do estado do bem-estar social; o incremento acentuado das privatizações;
o desemprego estrutural e a tendência à desregulamentação e flexibilização
do processo produtivo, dos mercados e da força de trabalho, entre outros. Em
resposta, verifica-se no interior dos Estados um crescente desenvolvimento de
medidas anticíclicas, contratendências em sua essência, como parte especial da
ação do capital visando deslocar e transferir as suas maiores contradições.
Esse conjunto de contratendências, em seus traços básicos, tem sido
experimentado em todo o mundo, gerando uma imensa precarização do tra-
balho, aumento monumental do exército industrial de reserva e do número de
desempregados. Verifica-se que, atualmente, nenhum setor do trabalho está
imune ao aumento do desemprego e à intensificação da exploração do trabalho.
Com o crescimento da competitividade e da concorrência intercapitais, mais se
agrava o quadro geral da crise, com duas consequências particularmente graves: a
destruição, a precarização, sem paralelos na era moderna, de toda a força humana
que trabalha e a crescente degradação do meio ambiente.
Por conseguinte, a Grande Recessão de 2008 representou, ao mesmo
tempo, a persistência e o agravamento da crise estrutural do capital. Paniago
(2014) ressalta que o conjunto de crises que se seguiu à 2008, em especial, do
subprime e das dívidas públicas, ainda que, aparentemente, ligada à setores
específicos, financeiros, representou a mais grave crise econômica mundial
desde a Grande Depressão de 1929, o que inaugurou uma nova fase da crise
estrutural, destacando a sua natureza universal, sem prenúncio de melhoras, com
impactos em todas as esferas da vida social, ambiental, econômica e política e
aprofundamento dos planos de austeridade, enquanto principal estratégia de
manutenção das taxas de crescimento.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Quanto aos planos de austeridade mundialmente adotados


e a desregulamentação e flexibilização da legislação laboral,
por exemplo, através de uma pesquisa assinada por Adas-
calitei e Morano (2016), a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) constatou que houve reformas legislativas
relacionadas ao mercado de trabalho em nada mesmos que
110 países, promovidas a partir da Grande Recessão de
2008 até o ano de 2014, onde se verificou que, em 55% dos
casos, as reformas visaram reduzir a proteção ao emprego,
atingindo toda a população e de maneira permanente, além
de produzir uma mudança de longo prazo na regulamenta-
ção. A pesquisa aferiu, ainda, que as reformas efetivadas no
âmbito do trabalho não produziram os efeitos propagan-
deados, já que não promoveram mudanças na situação do
desemprego, muito pelo contrário, aumentaram essa taxa
em curto prazo, fortalecendo o processo de crise.

II

A partir da Grande Recessão de 2008 e do agravamento da crise estrutural


do capital, verificou-se no mundo a adoção de planos de austeridade, enquanto
principal estratégia de manutenção das taxas de crescimento dos países, processo
este intensificado pela pandemia de Covid-19 em 2020. Dentre tais reformas,
promovidas por políticas neoliberais, foram vistas como cruciais pelo capital
aquelas que impunham uma agenda permanente de desregulamentação e flexibi-
lização da legislação do trabalho, impondo um quadro de contínua precarização
das relações sociais laborais, com o objetivo de aumentar o nível de exploração
da força de trabalho para a retomada do processo de acumulação.
Assim, as mudanças ocorridas e sugeridas na legislação
laboral não são desprovidas de sentido, muito pelo contrá-
rio, elas possuem um profundo sentido econômico, político
e social. Como afirmou Mészáros (2006), num quadro
econômico dominado pela lógica financeira, favorecem
as ideias de curto prazo para a garantia da lucratividade,
por meio da pressão ao trabalhador para maximizar a
produtividade no menor tempo, de redução dos custos
com o trabalhador e de volatilidade nas formas de inserção
e contratação. O rebaixamento das condições de trabalho
apresenta-se como um evidente fenômeno dessa confi-
guração estrutural de crise, alcançando todos os setores,
enquanto um desenvolvimento racional das relações do
mundo do trabalho e da intensificação da exploração para
a valorização de capital.

<< Retorne ao sumário 244


PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

Esse processo de destruição dos direitos trabalhistas intensi-


ficou-se no Brasil, particularmente, a partir do ano de 2016.
Antunes (2021) sublinha que, mesmo antes da pandemia,
o cenário social do país já era composto, em sua maioria,
por trabalhadores precarizados e informais. Ainda assim,
com o surgimento do governo Temer e o singular momento
político vivenciado no país a partir do golpe sofrido por
Dilma Rousseff, impôs-se uma acelerada agenda de refor-
mas da legislação social e trabalhista. Inicialmente, adveio
a Emenda Constitucional (EC) 95/2016, apropriadamente
apelidada de “PEC da morte” por impor o congelamento
dos gastos sociais por 20 anos2, incluídos os investimentos
em educação e saúde, o que se tornou particularmente
perverso no transcurso da pandemia de Covid-19, quando
o referido teto orçamentário foi dado como motivo de
impossibilidade de concessão de políticas de distribuição
de renda minimamente satisfatórias para o combate ao
desemprego e à fome (BRASIL, 2016).
A Lei 13.429/2017 regulamentou a terceirização, fenômeno
intrinsecamente ligado à precarização e de grande impacto
no mundo do trabalho, ao ponto de Antunes (2021) falar
na ‘sociedade da terceirização total’ a partir da sua pro-
mulgação. Como investigamos anteriormente (2019), no
atual contexto de crise, a terceirização favorece o processo
de acumulação de capitais por meio da subordinação de
empresas prestadoras de serviços aos grandes monopólios,
numa associação de capitais, naturalmente desigual, diante
do poderia político e econômico dos maiores contratantes
deste tipo de serviço, tais como petrolíferas e financeiras
multinacionais (BRASIL, 2017a).
A partir da Lei 13.467/2017, chamada de reforma trabalhista,
mas que é fundamentalmente uma contrarreforma, o direito
do trabalho passou a sofrer um processo de desconstrução
mais incisivo e evidente da proteção normativa aos trabalha-
dores. A reforma teve como seu eixo central a desarticulação
do sistema de representação coletiva dos trabalhadores e o
enfraquecimento dos sindicatos, notadamente, com o esta-
belecimento do negociado sobre o legislado3 e a revogação
da obrigatoriedade de pagamento da contribuição sindical4.

2 
“Art. 106. Fica instituído o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social
da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos arts. 107 a 114 deste Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias” – todos os destaques acrescidos em itálico.
3 
“Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre
outros, dispuserem sobre: [...]”.
4 
“Art. 579. O desconto da contribuição sindical está condicionado à autorização prévia e expressa dos que
participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal, em favor

<< Retorne ao sumário 245


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Ainda, incluiu uma série que dispositivos precarizantes, tais


como: a autorização para jornadas de trabalho de 12 horas
sem intervalo5; formas de contratação precárias, em espe-
cial, o contrato de trabalho intermitente6, o que legalizou a
informalidade; tornou possível a terceirização da atividade-
-fim das empresas contratantes7; facilitou a despedida8, em
desfavor da continuidade dos vínculos empregatícios; cindiu
juridicamente a classe trabalhadora entre hipossuficientes e
hiperssuficientes9; modificou diversas regras processuais com
o objetivo de diminuir a autonomia da justiça do trabalho10
e dificultar o acesso dos trabalhadores ao judiciário11, dentre
outros (BRASIL, 2017b). Além de, simplesmente, não ter
criado as vagas de emprego que prometeu, Araújo, Dutra e
Silva (2017) destacam que a reforma se incluiu num processo
mais amplo de precarização social do trabalho, reestruturação
das relações de trabalho, desconstrução do sistema de direitos
sociais e transferência dos riscos inerentes ao trabalho e da
própria atividade econômica aos trabalhadores.
Umas das expressões mais latentes do desemprego estru-
tural e da tendência à desregulamentação e flexibilização
das relações de trabalho se deu com o rápido crescimento
da uberização no país. Segundo Antunes (2021), esse

do sindicato representativo da mesma categoria ou profissão [...]”.


5 
“Art. 59-A. Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação, é facultado às partes, mediante acordo
individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze
horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para
repouso e alimentação”.
6 
“Art. 443. [...]. § 3º Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de servi-
ços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de
inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado
e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria”.
7 
““Art. 4º -A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução
de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora
de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução”.
8 
“Art. 484-A. O contrato de trabalho poderá ser extinto por acordo entre empregado e empregador, caso em
que serão devidas as seguintes verbas trabalhistas: [...]”.
9 
“Art. 444. [...]. Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses
previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos
coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou
superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”.
10 
“Art. 8º. [...]. § 2º Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do
Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem
criar obrigações que não estejam previstas em lei”.
11 
“Art. 791-A. [...]. § 4º Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo,
ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucum-
bência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos
subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir
a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse
prazo, tais obrigações do beneficiário”.

<< Retorne ao sumário 246


PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

setor da classe trabalhadora conta atualmente com cerca


de cinco milhões de trabalhadores informais no Brasil,
exercendo as suas atividades através dos mais diversos
aplicativos. A Lei 13.640/2018, destinada ao transporte
remunerado privado individual de passageiros, buscou
adiantar-se ao debate jurídico sobre a existência de vínculo
empregatício entre estes trabalhadores e as plataformas de
gestão da força de trabalho ao classificar os trabalhadores
como prestadores de serviço e não como empregados12,
reforçando os processos de precarização, informalidade
e de transferência dos riscos e custos da atividade para
os trabalhadores (BRASIL, 2018).
Já sob a égide do governo Bolsonaro, ainda antes tragédia
humanitária que se seguiu, tivemos não só a continuidade
da agenda permanente de desregulamentação e flexibili-
zação da legislação do trabalho, mas a sua intensificação.
Logo no primeiro dia de governo, 1º de janeiro de 2019,
por meio da MP 870/2019, fora extinto o Ministério do
Trabalho (MTE), sendo rebaixado à condição de secretaria
especial do Ministério da Economia13, tendo à frente
o neoliberal Paulo Guedes (BRASIL, 2019a). Como
veremos adiante, a partir das medidas provisórias que
viriam a surgir, os objetivos foram, principalmente, os de
minar a autonomia do MTE, reforçar a sua subserviência
aos interesses do capital e enfraquecer a fiscalização das
empresas em relação ao cumprimento das normas de
saúde e segurança do trabalho.
A EC 103/2019, mais uma reforma que merece o epíteto de contrarreforma,
por sua vez, atingiu a Previdência Social, tornando praticamente impossível ao
trabalhador obter a aposentadoria, ao aumentar a idade mínima e o tempo de
contribuição para a obtenção do benefício, atrelando os dois critérios14. Além
disso, dificultou o acesso a diversos benefícios previdenciários, como no caso da
aposentadoria especial, dedicada àqueles trabalhadores que exercem atividades

12 
“Art. 2º. [...]. X - transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de trans-
porte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas
solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de
comunicação em rede”.
13 
Em 28 de julho de 2021, através da MP 1.058/2021, em meio à crise política do governo Bolsonaro, o
Ministério do Trabalho e Previdência Social foi recriado oficialmente (BRASIL, 2021a).
14 
“Art. 16. Ao segurado filiado ao Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor
desta Emenda Constitucional fica assegurado o direito à aposentadoria quando preencher, cumulativa-
mente, os seguintes requisitos: I - 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher, e 35 (trinta e cinco) anos
de contribuição, se homem; e II - idade de 56 (cinquenta e seis) anos, se mulher, e 61 (sessenta e um)
anos, se homem”.

<< Retorne ao sumário 247


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

insalubres e periculosas15, e da pensão por morte16, por exemplo, e ainda alterou


as fórmulas de cálculo17, para reduzir os valores pagos. A reforma previdenciária,
desse modo, atingiu propositadamente a maior parte da população, sobretudo
os seus setores mais vulneráveis, e representa, em suma, um processo de degra-
dação das condições de sobrevivência da classe trabalhadora e que imporá seus
impactos por gerações (BRASIL, 2019b).
A MP 881/2019, convertida na Lei 13.874/2019, propalada ‘Declara-
ção de Direitos de Liberdade Econômica’, dentre muitos pontos, flexibilizou
a relevância do controle diário do horário de trabalho, ao permitir o chamado
registro de ponto por exceção18, facilitando, desse modo, a imposição do trabalho
em jornadas extraordinárias e o não pagamento destas. A MP 905/2019, por
conseguinte, instituiu o chamado ‘contrato verde e amarelo’, com o objetivo
de alterar mais uma vez a legislação trabalhista. A medida impôs a limitação
salarial e a faixa de idade para contratação19; trouxe mais formas de contratação
precárias20; reduziu o adicional de periculosidade21; viabilizou o trabalho aos
domingos22; flexibilizou os direitos trabalhistas constitucionais, como férias e

15 
“Art. 19. [...]. I - aos segurados que comprovem o exercício de atividades com efetiva exposição a agentes
químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por
categoria profissional ou ocupação, durante, no mínimo, 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos,
nos termos do disposto nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, quando cumpridos:
a) 55 (cinquenta e cinco) anos de idade, quando se tratar de atividade especial de 15 (quinze) anos de
contribuição; b) 58 (cinquenta e oito) anos de idade, quando se tratar de atividade especial de 20 (vinte)
anos de contribuição; ou c) 60 (sessenta) anos de idade, quando se tratar de atividade especial de 25 (vinte
e cinco) anos de contribuição”.
16 
“Art. 23. A pensão por morte concedida a dependente de segurado do Regime Geral de Previdência Social
ou de servidor público federal será equivalente a uma cota familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor
da aposentadoria recebida pelo segurado ou servidor ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por
incapacidade permanente na data do óbito, acrescida de cotas de 10 (dez) pontos percentuais por dependente,
até o máximo de 100% (cem por cento)”.
17 
“Art. 26. [...] § 2º O valor do benefício de aposentadoria corresponderá a 60% (sessenta por cento) da média
aritmética definida na forma prevista no caput e no § 1º, com acréscimo de 2 (dois) pontos percentuais para
cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 (vinte) anos de contribuição nos casos: [...]”.
18 
“Art. 15. [...] § 4º Fica permitida a utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho,
mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho”.
19 
“Art. 1º Fica instituído o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, modalidade de contratação destinada à
criação de novos postos de trabalho para as pessoas entre dezoito e vinte e nove anos de idade, para fins de registro
do primeiro emprego em Carteira de Trabalho e Previdência Social. [...]. Art. 3º Poderão ser contratados
na modalidade Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, os trabalhadores com salário-base mensal de até um
salário-mínimo e meio nacional”.
20 
“Art. 5º. [...]. § 1º O Contrato de Trabalho Verde e Amarelo poderá ser utilizado para qualquer tipo de
atividade, transitória ou permanente, e para substituição transitória de pessoal permanente”.
21 
“Art. 15. [...]. § 3º Caso o empregador opte pela contratação do seguro de que trata o caput, permanecerá
obrigado ao pagamento de adicional de periculosidade de cinco por cento sobre o salário-base do trabalhador.
22 
“Art. 68. Fica autorizado o trabalho aos domingos e aos feriados”.

<< Retorne ao sumário 248


PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

fundo de garantia23 e limitou a fiscalização trabalhista24, dentre outros pontos


(BRASIL, 2019c). A MP 905/2019, enfim, precarizou as relações de trabalho e
aprofundou a reforma trabalhista, mas perdeu a vigência e teve que ser revogada
por outra MP, a de nº 955/2020 (BRASIL, 2019d; 2020a).
Como visto, o conjunto das normas citadas têm por objetivo
comum, em especial, a desconstrução do sistema de direitos
sociais, através do endurecimento das regras de seguridade
social e da flexibilização e desregulamentação das relações
de trabalho; do enfraquecimento das organizações coletivas
dos trabalhadores; da fragilização da fiscalização e das
normas de saúde e segurança do trabalho; do esvaziamento
do direito de acesso ao poder judiciário e do ataque ao
funcionamento e autonomia da justiça do trabalho, etc.
Em essência, representam o recrudescimento da exploração
da força de trabalho num contexto de crise estrutural do
capital, agora intensificada pela pandemia de Covid-19, e
resultam num processo contínuo de ataque às condições
de existência e de sobrevivência da classe trabalhadora.

III

A pandemia de Covid-19, iniciada no ano de 2020 e ainda


em curso, deve ser entendida enquanto um processo de crise
ambiental e sanitária indissociável da crise estrutural do
capital. Além dos atuais mais de 5 milhões de mortos no
mundo, cerca de 600 mil apenas no Brasil, Ryder (2008),
atual diretor-geral da OIT, chama a atenção para o fato de
que a pandemia já impactou o mundo do trabalho quatro
vez mais do que a Grande Recessão de 2008, tendo pro-
vocado uma perda equivalente a 255 milhões de empregos
de tempo integral, trazendo um violento impacto para a

23 
“Art. 6º. Ao final de cada mês, ou de outro período de trabalho, caso acordado entre as partes, desde que
inferior a um mês, o empregado receberá o pagamento imediato das seguintes parcelas: I - remuneração; II -
décimo terceiro salário proporcional; e III - férias proporcionais com acréscimo de um terço. § 1º A indenização
sobre o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS, prevista no art. 18 da Lei nº 8.036, de 11 de
maio de 1990, poderá ser paga, por acordo entre empregado e empregador, de forma antecipada, mensalmente,
ou em outro período de trabalho acordado entre as partes, desde que inferior a um mês, juntamente com as
parcelas a que se refere o caput. § 2º A indenização de que trata o §1º será paga sempre por metade, sendo o
seu pagamento irrevogável, independentemente do motivo de demissão do empregado, mesmo que por justa causa,
nos termos do disposto no art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº
5.452, de 1943. Art. 7º No Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, a alíquota mensal relativa à contribuição
devida para o FGTS de que trata o art. 15 da Lei nº 8.036, de 1990, será de dois por cento, independentemente
do valor da remuneração.
24 
“Art. 627. A fim de promover a instrução dos responsáveis no cumprimento das leis de proteção do
trabalho, a fiscalização observará o critério de dupla visita nas seguintes hipóteses: [...]”.

<< Retorne ao sumário 249


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

classe trabalhadora, especialmente, para os seus setores


mais vulneráveis, como a população negra, as mulheres,
os jovens e os mais pobres.
A pandemia de Covid-19 impõe, desse modo, uma nova etapa
de deterioração da crise estrutural, com impacto imediato
na sobrevivência e na sociabilidade da classe trabalhadora.
Mascaro (2020) destaca que, como em 2008, a pandemia
revela o padrão estrutural de crise, todavia, também com a
imposição de um enorme flagelo social para os trabalhadores
e pobres no mundo. Nesse sentido, a crise estrutural não é
apenas econômica, mas também social, política, ambien-
tal e sanitária, abrindo um período histórico de múltiplas
possibilidades, sejam conservadoras ou revolucionárias. Do
ponto de vista mantenedor do capital, a resolução passa
necessariamente pela liquidação de todos os limites éticos e
morais que impedem o surgimento de novas possibilidades
de acumulação, mesmo que violentamente, incluída a negação
da hecatombe provocada pelo aspecto ambiental e sanitário
da crise e a exacerbação da exploração da força de trabalho,
ainda que em meio à pandemia.
Por tal motivo, a agenda permanente de desregulamentação
e flexibilização da legislação do trabalho mantêm-se durante
a pandemia de Covid-19 para garantir a exacerbação da
exploração da força de trabalho numa tentativa de recompo-
sição do capital, num período de recrudescimento da crise
estrutural, e não para a manutenção dos empregos, como
propalado. Nesse sentido, relacionam-se a crise estrutural
do capital, a precarização social do trabalho e as medidas
normativas relacionadas ao mundo do trabalho surgidas
no contexto da pandemia.
A MP 927/2020 permitiu a suspenção dos contratos de
trabalho por quatro meses, inclusive, sem pagamento de
salários25, o que teve que ser revogado pela MP 928/2020,
diante do processo de resistência que lhe seguiu. Além
disso, dentre outras medidas: instituiu o teletrabalho26;

25 
“Art. 18. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o contrato de trabalho poderá ser
suspenso, pelo prazo de até quatro meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação
profissional não presencial oferecido pelo empregador, diretamente ou por meio de entidades responsáveis
pela qualificação, com duração equivalente à suspensão contratual”. [...]. § 2º O empregador poderá conceder
ao empregado ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial, durante o período de suspensão contratual
nos termos do disposto no caput, com valor definido livremente entre empregado e empregador, via negociação
individual.
26 
“Art. 4º. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregador poderá, a seu critério,
alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho a distância
e determinar o retorno ao regime de trabalho presencial, independentemente da existência de acordos individuais
ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho”.

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PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

a antecipação de férias coletivas27; o aproveitamento e


antecipação de feriados28; e a compensação de jornada de
trabalho por meio de banco de horas29; suspendeu medidas
administrativas de segurança do trabalho, como a realiza-
ção dos exames médicos ocupacionais, em pleno contexto
pandêmico30; enfraqueceu a atuação sindical ao permitir a
celebração de contratos individuais para a manutenção do
vínculo empregatício31, um aprofundamento do negociado
sobre o legislado; e possibilitou o não recolhimento do
FGTS referente aos meses de março, abril e maio daquele
ano32 (BRASIL, 2020b; 2020c).
Por sua vez, a MP 936/2020, convertida na Lei 14.020/2020,
instituiu o chamado ‘Programa Emergencial de Manutenção
do Emprego e Renda’ e permitiu a redução de salários e
jornadas de trabalho por até noventa dias33 e a suspensão
de contratos durante a pandemia, pelo prazo de sessenta
dias, podendo ser fracionado em até dois períodos de trinta
dias, por meio de acordo individuais, inclusive para traba-
lhadoras gestantes e adotantes34. Assim, também objetivou
27 
“Art. 11. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregador poderá, a seu
critério, conceder férias coletivas e deverá notificar o conjunto de empregados afetados com antecedência de,
no mínimo, quarenta e oito horas, não aplicáveis o limite máximo de períodos anuais e o limite mínimo de
dias corridos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943”.
28 
“Art. 13. Durante o estado de calamidade pública, os empregadores poderão antecipar o gozo de feriados não
religiosos federais, estaduais, distritais e municipais e deverão notificar, por escrito ou por meio eletrônico,
o conjunto de empregados beneficiados com antecedência de, no mínimo, quarenta e oito horas, mediante
indicação expressa dos feriados aproveitados”.
29 
“Art. 14. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, ficam autorizadas a interrupção
das atividades pelo empregador e a constituição de regime especial de compensação de jornada, por meio de banco
de horas, em favor do empregador ou do empregado, estabelecido por meio de acordo coletivo ou individual
formal, para a compensação no prazo de até dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de
calamidade pública”.
30 
“Art. 15. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, fica suspensa a obrigatoriedade
de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto dos exames demissionais”.
31 
“Art. 18. [...]. § 1º A suspensão de que trata o caput: I - não dependerá de acordo ou convenção coletiva;
II - poderá ser acordada individualmente com o empregado ou o grupo de empregados”.
32 
“Art. 19. Fica suspensa a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às compe-
tências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020, respectivamente”.
33 
“Art. 7º. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º desta Lei, o empregador poderá
acordar a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário de seus empregados, de forma setorial, depar-
tamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho, por até 90 (noventa) dias, prorrogáveis por prazo
determinado em ato do Poder Executivo, observados os seguintes requisitos: [...]”.
34 
“Art. 8º. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º desta Lei, o empregador poderá
acordar a suspensão temporária do contrato de trabalho de seus empregados, de forma setorial, departamental,
parcial ou na totalidade dos postos de trabalho, pelo prazo máximo de 60 (sessenta) dias, fracionável em
2 (dois) períodos de até 30 (trinta) dias, podendo ser prorrogado por prazo determinado em ato do Poder
Executivo. § 1º A suspensão temporária do contrato de trabalho será pactuada, conforme o disposto nos
arts. 11 e 12 desta Lei, por convenção coletiva de trabalho, acordo coletivo de trabalho ou acordo individual
escrito entre empregador e empregado, devendo a proposta de acordo, nesta última hipótese, ser encaminhada
ao empregado com antecedência de, no mínimo, 2 (dois) dias corridos”.

<< Retorne ao sumário 251


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

combater os sindicatos e dar continuidade ao processo da


contrarreforma trabalhista de valorização do negociado
sobre o legislado35. Ainda no espírito da contrarreforma,
também indicou negociações individuais para aqueles
trabalhadores chamados de hiperssuficientes36 e afastou
o caráter remuneratório de parcelas recebidas em razão
do contrato de emprego37, o que impõe um rebaixamento
salarial aos trabalhadores. A MP 1.045/2021, chamada de
‘minirreforma trabalhista’, apesar de não ter sido aprovada
no Congresso, merece ser mencionada, pois representou,
ao mesmo tempo, a tentativa de aprofundamento da MP
936/2020 e de resgate da revogada MP 905/2019, do cha-
mado ‘contrato verde e amarelo’ (BRASIL, 2020d).
Também poderiam ser citados, no mesmo sentido, os pro-
jetos de Reformas Administrativa e Tributária, enquanto
políticas de austeridade e que impactam diretamente a
classe trabalhadora (BRASIL, 2020e; 2019e); a Portaria
620/2021 do Ministério do Trabalho que tentou proibir a
demissão por justa causa de empregados que não compro-
vem a vacinação contra Covid-19 e que as empresas exijam
comprovante de vacinação para contratar empregados, o
que foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
(BRASIL, 2021b); e o recente Decreto 10.854/2021, que
instituiu o dito ‘Programa Permanente de Consolidação,
Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas
Infralegais e o Prêmio Nacional Trabalhista’, atingindo todo
o arcabouço de normas relacionadas à saúde e segurança
do trabalho (BRASIL, 2021c).
O caráter destrutivo e letal desse processo, agora intensi-
ficado pela pandemia, é destacado por Antunes (2021): a
acelerada deterioração dos direitos sociais atinge em cheio
a classe trabalhadora e lhe impõe cada vez mais uma con-
dição de queda salarial, desemprego e de impossibilidade
de acesso à previdência e a um sistema de saúde pública

35 
“Art. 8º. [...]. § 1º A suspensão temporária do contrato de trabalho será pactuada, conforme o disposto nos
arts. 11 e 12 desta Lei, por convenção coletiva de trabalho, acordo coletivo de trabalho ou acordo individual
escrito entre empregador e empregado, devendo a proposta de acordo, nesta última hipótese, ser encaminhada
ao empregado com antecedência de, no mínimo, 2 (dois) dias corridos”.
36 
“Art. 12. As medidas de que trata o art. 3º desta Lei serão implementadas por meio de acordo individual
escrito ou de negociação coletiva aos empregados: [...]. III - portadores de diploma de nível superior e que
percebam salário mensal igual ou superior a 2 (duas) vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral
de Previdência Social”.
37 
“Art. 9º O Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda poderá ser acumulado com
o pagamento, pelo empregador, de ajuda compensatória mensal, em decorrência da redução proporcional de
jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária de contrato de trabalho de que trata esta Lei. § 1º
A ajuda compensatória mensal de que trata o caput deste artigo: I - deverá ter o valor definido em negociação
coletiva ou no acordo individual escrito pactuado; II - terá natureza indenizatória”.

<< Retorne ao sumário 252


PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

abrangente. Isso porque, o capital transfere o ônus da crise


para a classe trabalhadora, muito embora, com o detalhe
trágico que não se trata apenas de uma crise econômica,
mas também ambiental e sanitária, em que o processo de
intensificação da exploração da força de trabalho representa
também a morte de milhões de trabalhadores no mundo
e a piora das condições de vida e de trabalho para a classe
como um todo.
Verifica-se, portanto, que a flexibilização e a desregulamen-
tação de diversas normas laborais foram inseridas em diver-
sos dispositivos legais durante a pandemia de Covid-19, tais
como: a valorização dos acordos individuais em detrimento
das negociações coletivas e a cisão jurídica da classe tra-
balhadores por critérios econômicos, com o propósito de
enfraquecer a representação coletiva dos trabalhadores e
as possibilidades de resistência; e a suspensão de medidas
administrativas de segurança do trabalho, por exemplo,
sem que houvesse urgência ou relevância no contexto da
pandemia e sem que isso tenha representado, de fato, uma
garantia de emprego para os trabalhadores, especialmente,
os informais e celetistas de labor precarizado. Muito pelo
contrário, num contexto de crise estrutural do capital e
sendo tomadas em meio à uma pandemia mundial, tais
iniciativas buscam intensificar a exploração da força de
trabalho como forma de preservar o lucro das empresas e
a realização do capital, onde for possível, mesmo que ao
custo da vida da classe trabalhadora.

2. CONCLUSÃO

Como vimos no decorrer do presente artigo, a pandemia de Covid-19


se dá num processo de crise estrutural do capital, que impõe, dentre diversas
consequências, a precarização social do trabalho, o aumento do exército indus-
trial de reserva, do número de desempregados e a crescente degradação do meio
ambiente. Nesse sentido, a pandemia pode ser entendida como mais uma faceta
dessa profunda crise econômica, social, política, ambiental e sanitária. Além
disso, a pandemia intensificou o processo de crise econômica, o levou o capital
a acelerar a sua agenda permanente de desregulamentação e flexibilização da
legislação do trabalho, como tentativa de recomposição das taxas de lucro.
No Brasil, um número extenso de normas foi elaborado para a des-
construção do sistema de direitos sociais, através do endurecimento das regras
de seguridade social e da flexibilização e desregulamentação das relações de
trabalho, antes e durante a pandemia de Covid-19. Como resultado, podemos

<< Retorne ao sumário 253


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

citar, especialmente, o enfraquecimento das organizações coletivas dos tra-


balhadores, a fragilização da fiscalização e das normas de saúde e segurança
do trabalho e as possibilidades de reduções salariais e aumento das jornadas
de trabalho. Em seu conjunto, os dispositivos legais analisados representam
o recrudescimento da exploração da força de trabalho num contexto da crise
estrutural do capital, intensificada pela pandemia de Covid-19, e resultam num
processo de contínuo ataque às condições de existência e de sobrevivência da
classe trabalhadora.
Em relação às normas surgidas especificamente após a pandemia de
Covid-19, é possível perceber que, apesar de as referidas medidas se inserirem
numa crise ambiental e sanitária, revestindo-se de natureza emergencial, tam-
bém é verdade que se colocam num contexto mais amplo de crise estrutural do
capital e imposição de reformas de austeridade, através de políticas neoliberais,
com enfoque, notadamente, na precarização das relações de trabalho, com o
aprofundamento da desregulamentação e flexibilização da legislação trabalhista,
muito além de serem apenas e tão somente medidas de combate aos efeitos
econômicos imediatos provocados pela pandemia de Covid-19.
Enfim, conclui-se que, não obstante ao caráter preliminar
do presente trabalho, que a flexibilização e a desregula-
mentação de diversas normas laborais foram inseridas
em diversos dispositivos legais durante a pandemia de
Covid-19 sem que houvesse urgência ou relevância no
contexto da pandemia e sem que isso tenha representado,
de fato, uma garantia de emprego para os trabalhadores.
Muito pelo contrário, num contexto de crise estrutural do
capital e tomadas em meio à uma pandemia mundial, tais
iniciativas objetivam intensificar a exploração da força de
trabalho como forma de preservar o lucro das empresas e
a realização do capital, onde for possível, mesmo que ao
custo da vida da classe trabalhadora.

REFERÊNCIAS

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labour market reforms: Evidence from a novel policy compendium. IZA Journal of
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<< Retorne ao sumário 254


PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

ARAÚJO, Maurício Azevedo de; DUTRA, Renata Queiroz; SILVA, Selma Cristina.
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cadernosdoceas.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/401>. Acesso em: 1
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relativas à legislação trabalhista e institui o Programa Permanente de Consolidação,
Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas Infralegais e o Prêmio
Nacional Trabalhista, e altera o Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018. Disp.
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Decreto/D10854.
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_______. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá
outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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_______. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019b. Altera o
sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias.
Disp. em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.
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_______. Medida Provisória nº 805, de 1º de janeiro de 2019a. Estabelece a orga-
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_______. Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020b. Dispõe sobre as medi-
das trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo
Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de
importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências.
Disp. em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv927.
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_______. Medida Provisória nº 928, de 23 de março de 2020. Altera a Lei nº 13.979, de
6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência
de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável
pelo surto de 2019, e revoga o art. 18 da Medida Provisória nº 927, de 22 de março

<< Retorne ao sumário 255


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

de 2020. Disp. em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/


mpv928.htm>. Acesso em: 1 dez. 2021.
_______. Medida Provisória nº 955, de 20 de abril de 2020a. Revoga a Medida Pro-
visória nº 905, de 11 de novembro de 2019, que institui o Contrato de Trabalho Verde
e Amarelo e altera a legislação trabalhista. Disp. em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv955.htm>. Acesso em: 1 dez. 2021.
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providências. Disp. em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/
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de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas
e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação
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Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis
n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho
de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disp. em: <www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm>. Acesso em: 1 dez. 2021.
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de 2012, para regulamentar o transporte remunerado privado individual de passageiros.
Disp. em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13640.htm>.
Acesso em: 1 dez. 2021.
______. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019c. Institui a Declaração de Direitos de
Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado; altera [...] a Consolidação
das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; [...];
e dá outras providências. Disp. em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2019/lei/L13874.htm>. Acesso em: 1 dez. 2021.
______. Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020d. Institui o Programa Emergencial de
Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para
enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo
nº 6, de 20 de março de 2020; [...]; e dá outras providências. Disp. em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14020.htm>. Acesso em: 1 dez. 2021.
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<< Retorne ao sumário 256


PANDEMIA DE COVID-19, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRISE DO CAPITAL

_______. Proposta de Emenda Constitucional nº 110, de 2019e. Senado Federal. Altera


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ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo:
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SOUZA NETO, Linauro Pereira de. A regulamentação da terceirização e as centrais
de teleatendimento bancário no Brasil: bancos sem bancários? Dissertação (Mestrado
em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal
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-a-crise-financeira-13701699.html>. Acesso em: 20 nov. 2021.

<< Retorne ao sumário 257


A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA
NOS ESPAÇOS DE TRABALHO
E DE PODER

Violence against black women in work and


power spaces

Patrícia de Menezes Brandão38


Christianne Moraes Gurgel39

Resumo: Incumbe ao presente trabalho analisar a violência à mulher negra nas


relações de trabalho e de poder, sob a perspectiva do direito constitucional do tra-
balho e dos direitos fundamentais, bem como à luz dos princípios que norteiam o
ordenamento jurídico-trabalhista. O alcance proposto é de rompimento da divisão
existente numa sociedade desigual desde o seu nascedouro, ao enquadrar o tema
da violência feminina e negra como, tão-somente, um discurso abstrato que vis-
lumbra a questão racial como um recorte estrutural, e não como um câncer social.
Neste contexto, busca-se demonstrar a urgência de se promover, materialmente,
a garantia do direito à igualdade dos trabalhadores, especialmente no que tange
à raça e ao gênero, a fim de que a Dignidade da Pessoa Humana se apresente, de
fato, como a precípua finalidade do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Relações de trabalho e de poder, violência à mulher negra.


ambiente laboral e racismo, direitos humanos e direito constitucional do tra-
balho. formas de combate.

Abstract: It is incumbent on the present work to analyze violence against black


women in work and power relations, from the perspective of constitutional labor
law and fundamental rights, as well as in the light of the principles that guide

38 
Advogada trabalhista; Mestre em Direito do Trabalho (PUC-SP); Vice-Presidente da OAB/BA (triênio
2022/2024); especialista em Direito do Trabalho e Direitos Humanos; Presidente da Comissão de Direitos
Humanos do Instituto dos Advogados da Bahia (CDH-IAB).
39 
Advogada; especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Católica do Salvador
(Ucsal); Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); membro da Comissão de
Direitos Humanos do Instituto dos Advogados da Bahia (CDH-IAB); Presidente da Comissão de Seleção
e Inscrição da OAB/BA (triênio 2022/2024).

<< Retorne ao sumário 258


A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

the labor legal system. The proposed scope is to break the division existing in
an unequal society since its inception, by framing the theme of female and
black violence as only an abstract discourse that sees the racial issue as a struc-
tural cut, and not as a cancer. Social. In this context, we seek to demonstrate
the urgency of promoting, materially, the guarantee of the right to equality of
workers, especially with regard to race and gender, so that the Dignity of the
Human Person is presented, in fact, as a the main purpose of the Democratic
State of Law.

Keywords: Labor and power relations, violence against black women, human
rights and constitutional labor law, work environment and racism. forms of combat.

1. INTRODUÇÃO

A luta das mulheres negras, há muito, produz reflexos e desacomodação na


sociedade. Pelo fato de ser mulher e negra, dois vieses enquadrados no conceito
de “minorias40”, a trajetória dessas pessoas já se revela mais extensa e dificultosa,
especialmente quando o que se discute versa sobre direitos sociais que visam
à superação das desigualdades de gênero e raça, bem como sobre o papel das
mulheres negras na sociedade brasileira, que desenha modelos organizacionais
fechados, com padrões elitistas, despidos de um impulso para o debate pela
emancipação feminina (esta enquanto sujeito de direito), se partirmos de uma
perspectiva freiriana41, do caminho de transformação social.
No âmbito da história do Trabalho da Mulher, houve a trilha de estradas
opostas à história do Direito Laboral do homem, no que tange à oportunidade,
à igualdade e ao tratamento no mercado de trabalho. A aplicação, de forma
diferenciada para a mulher, na legislação trabalhista, ora se apresentava como
forma de proteção, por força mesmo de diferenças existentes entre homem e
mulher, como a maternidade; ora estas desigualdades se revelavam como fruto
do preconceito social.
Objetivando, portanto, uma reflexão acerca dos aspectos caracterizadores
da luta das mulheres negras nas relações de trabalho, faz-se necessário passar
pelo ponto da constituição da mulher enquanto sujeito social, destacando a
importância histórica da fala feminina e dos fatores sociais e culturais para a
criação dos recortes de gênero e raça que desconsideram a trajetória sócio-po-
lítica das mulheres.

40 
Expressão aqui traduzida por uma pessoa ou um grupo de pessoas posto em situação de desvantagem
originado por um tratamento discriminatório.
41 
Que segue o entendimento de Paulo Freire.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

2. PERSPECTIVA HISTÓRICA DA DIVISÃO DO


TRABALHO

Sob uma perspectiva histórica, a formulação do conceito de raça, especial-


mente a partir de 1492, com a ressignificação e produção de novas identidades,
não excluiu a organização/divisão do trabalho, que passou a ser constituída
como uma relação de dominação.
Nota-se que todas as formas de exploração da força de trabalho, bem como
o controle da produção, apropriação e distribuição de produtos se articularam
por meio da relação capital-trabalho e do mercado mundial.42 As formas de
controle do trabalho faziam correspondência a uma raça própria, o que traduzia
a dominação por um grupo específico. Tal dominação se caracterizava pelo tra-
balho assalariado e não assalariado, com associação direta à raça branca/negra/
índia de cada trabalhador.
“A escravidão foi deliberadamente estabelecida e organizada como mer-
cadoria para produzir mercadorias para o mercado mundial e, desse modo, para
servir aos propósitos e necessidades do capitalismo”.43 Ou seja, o capitalismo
seguiu se alimentando de uma separação de raças, definidora das formas de
controle e organização do trabalho.
Os trabalhadores e, especialmente, as trabalhadoras negras, jamais con-
seguiram uma inserção completa nas relações de trabalho assalariadas e, ainda
que insertos nesse modelo de produção, não obtiveram as mesmas condições
trabalhistas, sejam salariais, sejam das mesmas possibilidades de ascensão pro-
fissional que a classe trabalhadora branca.
A passagem do trabalho denominado escravo para aquele realizado
em condições de liberdade não retrataram, entretanto, a extinção do labor em
condições análogas às de escravo para os negros, mas, sim, de enquadrá-los na
qualificação da “escravidão em liberdade”44.
A não existência de uma desigualdade jurídica com o fim
de escravidão e os estigmas associados provocou novas
narrativas sobre distinção e identidade: o negro. É cor, é
raça, é também lugar. Um lugar social. Da subordinação, da

42 
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo
(org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo, e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: CLA CSO, 2005, p. 117.
43 
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo
(org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo, e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: CLA CSO, 2005, p. 126.
44 
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo:
Perspectiva, 2016, p. 81.

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A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

não-igualdade. Daí a pergunta de ontem ser perfeitamente


feita hoje: onde estão os negros no Brasil?45
Ademais, tratando da evolução do direito das mulheres nas Constitui-
ções, observa-se que a Constituição política do Império do Brasil, outorgada
em 1824, considerou cidadãos apenas os homens, maiores de 25 anos e aqueles
que possuíssem renda mínima equivalente de 100 mil-réis.
O Código Comercial de 1850, por sua vez, admitiu que as mulheres
devidamente casadas exercessem a profissão de comerciante.
Na sequência, a Constituição da República brasileira, em 1891, e o
Código Civil de 1916, consideravam a mulher como relativamente incapaz:
seu domicílio era o mesmo do marido, o homem era o único e exclusivo chefe
da sociedade conjugal e, a ele, competia o pátrio poder, o casamento poderia
ser anulado, caso o defloramento da mulher fosse ignorado pelo marido, entre
tantos outros exemplos.
Numa outra toada, a Constituição da República de 1934 reconheceu o
direito ao voto, a partir dos 18 anos, e proibiu a diferença de salário para um
mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil. Em
1936, foi eleita a primeira deputada no Brasil.
Em 1962, entra em vigor a Lei n. 4.121, conhecida como o Estatuto
da Mulher Casada, conferindo capacidade à muher, elevando-a à condição
de colaboradora na admissão da sociedade conjugal, ao mesmo passo em que
dispensa a necessidade de autorização do marido para o trabalho e institui a
figura dos bens a ela reservados.
Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 torna
homens e mulheres iguais perante a lei. O art. 70, inciso XVIII, concede o
direito à licença-gestante, com duração de cento e vinte dias; o art. 7º, XXX,
proibe a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão
por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; o art. 226, § 5ª, da CF, nesse
mesmo sentido, dispõe que os direitos e deveres da sociedade conjugal devem
ser exercidos igualmente pelo homem e pela mulher; e o inciso XXX, do artigo
7º, revoga as leis que proibiam o trabalho noturno para a mulher.
A Lei n. 9.799, de 1999, por sua vez, proibiu a publicação de anúncio de
emprego com indicação de preferência ao sexo e, também, proibiu que fosse,
o sexo, considerado variável determinante para fins de remuneração, formação
profissional e oportunidades de ascensão profissional.

45 
GOMES, Flávio dos Santos; DOMINGUES, Petrônio; PAIXÃO, Marcelo. Raça, pós-emancipação,
cidadania e modernidade no Brasil. In: GOMES, Flávio dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. Da nitidez e
invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 312.

<< Retorne ao sumário 261


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Não há, portanto, como explicar as relações laborais que retratam um


trabalho degradante e análogo às condições de escravo. As transformações das
modalidades de sujeição acontecem com o passar do tempo, todavia, o quesito
prioritário encontra-se na valorização dos indivíduos que permanecem inseridos
na conjuntura apresentada.

3. NÃO DISCRIMINAÇÃO. VALOR SOCIAL DO


TRABALHO E LIVRE INICIATIVA

Entende-se por igualdade o mesmo que uniformidade. Designa a con-


formidade de uma coisa com outra. Seria, em álgebra, a expressão de duas ou
mais quantidades com o mesmo valor.
Vislumbrando o conceito em um contexto social, a igualdade seria a
situação na qual todas as pessoas estão expostas às mesmas oportunidades ou
se beneficiam dos mesmos direitos.
Adentrando a seara do Direito, a igualdade se traduz como principio, na
previsão do caput, do art. 5º, da Constituição de 198846, e informa que “todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, vislumbrando a
abolição ou, ao menos, a redução das desigualdades que conduzem ao feneci-
mento da dignidade da pessoa humana.
No âmbito laboral, mais especificamente na relação de emprego, o prin-
cípio em apreço deve ser aplicado partindo-se do reconhecimento da desigual-
dade existente entre os pólos da relação. Empregado e empregador, em razão
dos princípios específicos protecionistas, regulatórios do liame trabalhista, são
notadamente desiguais.
Dessa forma, a aplicação do princípio da igualdade deve observar não a
relação do empregador com os empregados, mas a igualdade de direitos alcança-
dos por estes, como forma de respeito à proteção dispensada ao hipossuficiente
na relação laboral.
Em consonância ao princípio da igualdade, ressalta-se a existência de
outros meios de assegurar aos trabalhadores um tratamento isonômico, inde-
pendentemente de raça, cor, sexo ou idade.
O princípio da não discriminação veda qualquer tipo de discriminação
ao trabalhador, seja no instante da sua admissão, da despedida ou em qualquer
momento do cumprimento do contrato.

46 
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

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A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

Esclarecem, sobre o tema, Rosângela Lacerda e Silvia Teixeira do Vale47,


No âmbito da discriminação na relação do trabalho, as
discriminações podem ser legítimas ou ilegítimas, utili-
zando os conceitos de Celso Antônio Bandeira de Mello.
Segundo o referido autor, “como as leis nada mais fazem
senão discriminar situações para submetê-las à regência
de tais ou quais regras – sendo esta mesma sua caracterís-
tica funcional – é preciso indagar quais as discriminações
juridicamente intoleráveis”.
Um discriminação será legítima se estiver fundamentada
em motivo razoável e proporcional, relacionado à promoção
de objetivos constitucionalmente legítimos. Aduz ainda
Celso de Mello:
As discriminações são recebidas como compatíveis com
a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe
um veículo de correlação lógica entre a peculiaridade dife-
rencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade
de tratamento em função dela conferida, desde que tal
correlação não seja incompatível com interesses prestigiados
na Constituição.
No mesmo sentido, o princípio da isonomia salarial, preconizado pelo art.
7º, inciso XXX, da Constituição da República48, proíbe o empregador de verter
a trabalhadores que executem o mesmo serviço salários distintos.
O Direito do Trabalho visa ao acompanhamento da evolução social, a
fim de atender aos valores sociais do presente e do passado.
Como fundamento do Estado Democrático de Direito, consubstanciado
no art. 1º, inciso IV, da Constituição Federal49, o princípio do valor social do
trabalho almeja a completa harmonia do binômio “capital-trabalho”. A livre
iniciativa, por sua vez, confere ao trabalhador a aptidão para exercer quaisquer
atividades econômicas, assegurando a dignidade da pessoa humana e visando
à justiça social.
Observe-se, assim, que o valor social do trabalho e a livre iniciativa não
podem ser analisados, se não em conformidade com o que se entende por justiça

47 
VALE, Silvia Teixeira; LACERDA, Rosângela Rodrigues. Curso de direito constitucional do trabalho.
São Paulo: LTr, 2021. p. 251.
48 
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social:
XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de
sexo, idade, cor ou estado civil.
49 
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

social. Na concepção de Souto Maior50, na obra “O Direito do Trabalho como


Instrumento de Justiça Social”, na base do Direito, “está, indiscutivelmente, uma
preocupação com a justiça, mais especificamente com a justiça social”.
Dessa forma, a fim de se constituir uma sociedade justa, revela-se indis-
pensável o entendimento do trabalho como atividade que valoriza o homem e
compõe a essência da sua dignidade.

4. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS PRÁTICAS DE


RACISMO NO AMBIENTE LABORAL

Muito se questiona acerca da existência do racismo nas relações de traba-


lho, e o curioso é que, de acordo com as regras do nosso ordenamento jurídico, a
discriminação (em quaisquer das suas formas de apresentação) não deve ocorrer.
Os direitos fundamentais são aplicáveis às relações e impedem a discriminação
tanto na fase pré-contratual quanto na fase contratual.
Mais especificamente em relação ao racismo, é preciso atentar para o fato
de que a discriminação não pode ocorrer de forma a impossibilitar a admissão
de pessoas negras e, nem mesmo, para legitimar práticas racistas em relação
àqueles já contratados.
Nesse sentido, a Lei 9.029/1995, que veda a exigência de atestados de
gravidez e esterilização para efeitos de admissão de empregada ou para a per-
manência da relação jurídica de trabalho, dispõe, no seu art. 1º:
Art. 1º É proibida a adoção de qualquer prática discrimina-
tória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho,
ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça,
cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação
profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as
hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previs-
tas no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal.
(Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
Se configurada a discriminação na fase pré-contratual, o pretenso empre-
gado pode, inclusive, ajuizar ação na Justiça do Trabalho pleiteando, dentre
outras parcelas, indenização por danos morais.
Nessa senda, é importante registrar, portanto, que a aplicação dos direitos
fundamentais deve se dar em toda e qualquer relação. Ocorre que há grande
resistência no que tange à aplicabilidade da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais às relações de trabalho subordinado, que é uma relação marcada

50 
MAIOR, Jorge Luiz Souto. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr,
2000. p. 248.

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A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

por profunda desigualdade entre os particulares, tendo, de um lado, o empre-


gador, que detém o poder empregatício, e, do outro, o empregado, que é a parte
hipossuficiente e vulnerável.
Para tratarmos desse tema, portanto, é necessário fazermos uma diferen-
ciação entre “direitos fundamentais” e “direitos humanos”.
Os direitos fundamentais estão relacionados ao direito constitucional
interno posto, à prescrição da constituição do Estado, ao passo em que os
direitos humanos aludem ao direito internacional, ou seja, àquelas garan-
tias jurídicas do ser humano por previsão expressa em tratados, convenções
internacionais e contratos entre países, com o fito de assegurar a condição
humana ao indivíduo.
Para tratar do direito interno, então, é necessário se considerar as trans-
formações históricas pelas quais passaram os direitos fundamentais. A doutrina
reconhece a existência de dimensões desses direitos fundamentais que, inicial-
mente, foram divididos em três grupos: a) Direitos civis e políticos; b) Direitos
econômicos, sociais e culturais; c) Direitos difusos e coletivos. Por fim, fala-se
da 4ª e 5ª dimensões, que tratam, respectivamente, da democracia/informação
e do direito à paz.
Pois bem. No Brasil, os direitos fundamentais se aplicam nas relações de
trabalho, sejam elas individuais ou coletivas. Os direitos de primeira dimensão,
portanto, são todos os direitos civis que podem sofrer alguma lesão no ambiente
de trabalho, tais como a honra, a intimidade, a vida privada e a dignidade da
pessoa humana. Nesse esteio, menciona-se o disposto no art. 7º, XXII, da CF,
que assegura o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de
normas de saúde e segurança.
Já os direitos fundamentais de segunda dimensão nas relações de trabalho
são, basicamente, todos os direitos sociais elencados na Constituição Federal:
salário mínimo, FGTS, às horas extras trabalhadas, à jornada regular de trabalho,
às férias, dentre tantos outros. Seriam direitos a uma prestação, que têm por
escopo a garantia da liberdade-autonomia, no entendimento de Ingo sarlet, que
é a liberdade perante o Estado e por meio deste.
Sobre isso, é imprescindível que falemos sempre da necessidade da pos-
tura ativa do poder público, de como ele precisa agir para garantir esses direitos
aos cidadãos.
Na sequência, adentrando a terceira dimensão dos direitos fundamentais,
pode-se inserir nessa geração o tema do meio ambiente laboral saudável. E as
empresas e os órgãos públicos, nesse sentido, podem estimular a manutenção
da saúde dos trabalhadores, física e mental, por meio de fornecimento correto

<< Retorne ao sumário 265


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

de equipamentos de proteção individual, para proteger a saúde física dos seus


colaboradores e, ainda, por meio de políticas de proibição de práticas de vio-
lência verbal, bem como de políticas que conscientizem os colaboradores da
necessidade de um ambiente de trabalho sadio e sem discriminação, visando,
neste caso, principalmente, a vedação às práticas racistas e de assédio moral.
Acerca da aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais nas rela-
ções laborais, é importante mencionar que a sua necessidade é diretamente
proporcional à desigualdade das partes envolvidas no litígio. Quanto maior a
disparidade entre os sujeitos, maior deve ser a intervenção estatal em favor da
parte considerada hipossuficiente.
Em uma relação de trabalho, por exemplo, revela-se cristalina a disparidade
entre as partes envolvidas. O contrato de trabalho, mesmo se desenhando como
uma relação entre particulares, não se estabelece entre indivíduos iguais e com
total autonomia. É encontrada nele uma relação jurídica vertical, de sujeição e,
claramente desigual, onde o tomador do serviço/empregador assume uma posição
superior, que é onde reside o poder diretivo do empregador acompanhada da
limitante capacidade de liberdade e autodeterminação do empregado.
Uma relação privada como a ora tratada não possui, por si, o importante
traço da igualdade. Por isso é que os direitos fundamentais precisam ser remane-
jados do campo jurídico-constitucional para as relações privadas, sendo aplicados
direta e imediatamente a toda a ordem jurídica, especialmente às relações de
trabalho, a fim de que seja possível e, mais do que isso, concreta a preservação
da dignidade da pessoa humana.
No que tange à eficácia diagonal dos direitos fundamentais, que é uma
forma mais recente de aplicabilidade dos direitos fundamentais, ela está ligada
às relações entre particulares que apresentem um cenário de desequilíbrio entre
as partes ou seja, quando um particular se coloque numa posição de elevado
poder em relação à parte diversa. Essa teoria é indiscutivelmente aplicável às
relações de trabalho, nas quais a parte hipossuficiente possui necessidade de
ser protegida.
Sob esta ótica, Gabriela Neves Delgado51 registra que a Constituição
da República, quando consagra a Diginidade Humana como um fundamento
do Estado Democrático de Direito, reconhece a existência do Estado por uma
única razão: o ser humano.
E este fundamento é o que deve nortear as relações laborais, especialmente
porque apenas o trabalho exercido em condições dignas é capaz de fazer nascer a
identidade do trabalhador e a sua coletiva emancipação. Registra, nesse sentido:

51 
DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2015, p. 183.

<< Retorne ao sumário 266


A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

“(...)
A identidade social do homem somente será assegurada se o
seu trabalho for digno. A explicação deve ser compreendida
por meio da contradição permanente que se desenvolve
na sociedade civil: ao mesmo tempo em que o trabalho
possibilita a construção da identidade social do homem,
pode também destruir a sua existência, caso não existam
condições mínimas para o seu exercício.
Se o obreiro ganha mal, se não existem condições mínimas
de salubridade, por exemplo, não há espaço para a con-
cretização da dignidade. O Direito será mera abstração.
Compreender o trabalhador enquanto mero instrumento
para a realização de determinado ofício, tônica da sociedade
contemporânea, compromete o entendimento maior de que
o homem deve ser um fim em si mesmo”.
A possibilidade de acesso ao emprego se trata de condição precípua à
reprodução da vida, sendo a sua exclusão uma forma de negação da própria
cidadania.
E é nesse cenário de necessidade de proteção à dignidade humana do tra-
balhador, parte hipossuficiente de uma relação laboral, que se revela a importância
de se debater acerca das questões limitantes à atuação mais firme e destacada da
mulher negra nos espaços de trabalho e de poder, a fim de se ver concretizados
os ideais republicanos do Estado Democrático de Direito.

5. MEIO AMBIENTE LABORAL

O Direito do Trabalho tem por escopo regular as relações laborais e, aten-


dendo pelo seu princípio basilar, está o princípio de proteção ao trabalhador que
visa garantir qualidade de vida àquele indivíduo hipossuficiente da relação laboral.
Nesse sentido, o Direito Ambiental, voltado à seara trabalhista, quando
recebe o título de Direito Ambiental do Trabalho, visa à proteção do trabalhador
por meio da garantia de um meio ambiente seguro e sadio.
O meio ambiente laboral, por sua vez, caracteriza-se por ser bem impres-
cindível à vida digna de todo e qualquer trabalhador, representando interesse
difuso e almejando, portanto, urgência na tutela.
Grande relevância possui o tema referente ao meio ambiente do trabalho,
que se traduz pela união dos elementos e condições que influenciam diretamente
na vida do trabalhador e, consequentemente, nas relações de trabalho.
Constituído, primordialmente, pelo fator humano da relação laboral, tra-
ta-se de espaço em que o homem desenvolve suas atividades. Abarca, portanto, o

<< Retorne ao sumário 267


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

conjunto de fatores físicos, químicos, psíquicos e biológicos que regem a relação


homem x trabalho. Dessa forma, cumpre salientar que, para se falar de um meio
ambiente de trabalho saudável, há que se observar, sobretudo, a proteção aos
fatores que refletem diretamente na alma, honra e dignidade do obreiro, posto
que a relação de emprego, quando submetida a um meio de trabalho doente,
por certo, assume danos que, muitas vezes irreversíveis, acabam por anular a
moral do trabalhador.
O artigo 7º, inciso XXX, da Constituição da República veda a existência
de diferenças salariais em razão do sexo, da idade, cor ou estado civil do traba-
lhador. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por sua vez, prenuncia o
pagamento de multa por discriminação, por motivo de sexo e/ou etnia, visando
à garantia do princípio da isonomia salarial (artigo 461, da CLT).
É direito fundamental do trabalhador, protanto, um meio ambiente de
trabalho seguro, sadio e, via de consequência, digno e adequado.

6. O PRIVILÉGIO BRANCO – UM SILÊNCIO


ENSURDECEDOR

Sobre o privilégio branco, pode-se dizer tratar-se de um tipo de discri-


minação por interesse. A discriminação racial teria como estíumulo a conquista
de privilégios de um grupo sobre outro, independentemente da natureza do fato
(se intencional ou lastreado em determinado tipo de preconceito).
Na literatura, o que se tem sobre o privilégio branco apresenta uma con-
clusão no sentido de que um dos aspectos importantes não aceitos pelo branco
está na figura da autoridade/posição de destaque que o negro pode vir a ocupar.
Uma pesquisa realizada pelo IBGE, em 1985, sobre o lugar do negro na
força de trabalho como educadores de ensino, em cinco municípios da região
metropolitana do Rio de Janeiro, concluiu que a discriminação na sua moda-
lidade indireta é a que mais ocorre, porque ela não é oriunda de manifestações
visíveis, mas de práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas
aparentemente neutras, porém, arraigadas de considerável potencial discrimi-
natório, que é exatamente o que acontece na prática do assédio moral omissivo.
O assediador não verbaliza, não ofende o empregado diretamente, por meio
de palavras, mas exclui, retirando-o do convívio com os demais empregados
ou deixando-o à margem das novas determinações e/ ou dos novos padrões
organizacionais da empresa.
Exclui-se, por exemplo, a possibilidade de o empregado de ser promovido,
retirando-se dele o trabalho e direcionando-o a uma sala, sozinho, para realizar
suas atividades longe do convívio dos colegas e, consequentemente, minando

<< Retorne ao sumário 268


A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

o seu bem-estar social, a sua saúde. Pensemos que, com a mulher negra, isso
ocorre, na medida em que, para ela, é impedida, de forma sorrateira, silenciosa,
a ascensão e a chegada aos cargos mais altos, por exemplo.
Pois bem. O fato é que a literatura de grande parte das situações de prá-
ticas racistas apontam um cenário de lacuna ética acerca dos Direitos Humanos
da população negra. Os agressores demonstram um desrespeito à legislação e
o descompromisso ético com a vítima, adotando condutas ilícitas, agressivas e
odiosas. Na verdade, o privilégio branco leva o negro para um lugar no qual não
não se vislumbra o reconhecimento da pessoa como ser humano.
E cabe aqui registrar que, infelizmente, a mídia favorece essa imagem.
Muitas vezes, revela a figura do negro como criminoso, como no rio de janeiro,
por exemplo, onde vemos confrontos diários entre a polícia e moradores de
favela, e resta sugerida, pela mídia, a relação do homem preto-pobre-favelado,
que tem a intenção de roubar ou lesar alguém ou o estado.
Todos esses discursos odiosos e diariamente reafirmados reforçam a difi-
culdade da ocupação por parte dos negros nos cargos de chefia ou de gerência.
Quando ocupam esses lugares, acabam enfrentando situações de exposição e,
muitas vezes, de humilhação.
Para Raissa Roussenq Alves, o “projeto de branqueamento elaborado e
mantido pela elite branca alçou este grupo ao padrão de referência da condição
humana ao mesmo tempo em que estabeleceu o negro livre como um “problema
a ser solucionado”52, observando que o fortalecimento do autoconceito branco
legitima a sobreposição sócio-econômica e política.
É realidade que o silêncio acerca do papel que os negros ocupam e
ocuparam numa sociedade que perpetua as desiguldades sociais se impõe, seja
de forma simbólica, seja concreta, à continuidade da proteção aos interesses
brancos e seus privilégios.
Por esta razão é que não há interesse, pela população branca, em se dis-
cutir esse legado - que é como se revela a escravidão. A brancura, nesse sentido,
apresenta-se não só como uma forma de identidade dominadora, mas como o
principal requisito do que venha a significar um ser humano livre.
Ocorre que, para a maior parte dos brancos, isso não causa indignação,
e estes acabam se mantendo em posição silenciosa, fazendo ecoar as vozes
ensurdecedoras de mais uma forma de violência. A verdade é que todos esses
fatos contribuem para a formação do chamado “pacto de invisibilidade” do ser
negro na sociedade.

Entre o silêncio e a negação: trabalho escravo contemporâneo sob a ótica da população negra. Belo
52 

Horizonte: Letramento, 2019. p. 89.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

7. DIFICULDADE DE APROXIMAÇÃO DOS CARGOS


DE PODER

Como já dito em linhas pretéritas, a violência social à população negra


revela-se como um entrave à ascendência das mulheres aos espaços de trabalho
e cargos de poder. A dificuldade de participação das mulheres nos espaços
historicamente ocupados pelos homens é dada por um impedimento, um obs-
táculo ideológico.
A mulher vem de uma cultura completamente moldada pelo homem,
branco, proprietário. Durante muito tempo, todas essas diferenças (ser mulher,
negra, idosa) passaram despercebidas, como se a sociedade fosse toda ela. Tivesse
um único padrão, um único modelo.
Se pararmos para pensar nesse tema, dando ênfase a uma divisão de classe,
por exemplo, temos a análise de uma elite histórica que se aproveitava das mães
de leite negras e escravas para alimentar seus filhos, como uma forma própria
de exploração do trabalho. Como isso se encaixaria nas teorias eurocêntricas?
O que se sabe, hoje, é que negros e pardos ocupam 10% das vagas de
chefia das 500 maiores empresas do país. De uma pesquisa realizada por um
observatório do terceiro setor, concluiu-se que, das mulheres empregadas no
mercado de trabalho formal em 2020, apenas 8% ocupavam cargos de chefia:
2% ocupavam a diretoria, 3% de sócia-proprietária e outras 3% de gerente.
Para os cargos de presidentes e vice-presidentes de empresas e associações, o
percentual foi zero.
Ora! Os silêncios institucionais contribuem para essa exclusão, originada
de uma voz “maior”, que é a do discurso branco, que deseja falar pela mulher
e pelo negro.
Djamila Ribeiro trata do tema na obra “lugar de fala”, no sentido de que
dar a voz significa dar humanidade. É preciso que as mulheres possam falar de
si, mostrar o que possuem a acrescentar. E essa é uma necessidade histórica,
porque essas pessoas nunca possuíram espaços de fala. O quanto de riqueza
elas têm para mostrar? Djamila registra, sob esta perspectiva, que romper com
o silêncio é romper com a violência, porque ferir a liberdade de falar e de ser
ouvido é violentar.
E é dessas indignações que surgem tantos outros questionamentos.
Por exemplo, porque no curso de direito de uma universidade, as mulheres
negras ocupam os espaços reservados aos serviços de limpeza, sempre o
espaço da subserviência e, quase nunca, da fala, na posição da professora que
é sempre ouvida?

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A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

Os instrumentos de poder são dominados pelos brancos. O privilégio


branco (concentração de direitos a uma raça) impõe a razão sobre a emoção,
ensejando um direcionamento à ideia de poder. Quando a sensibilidade é inferior
e, equivocadamente ligada ao feminino, estabelece-se a dificuldade de que as
mulheres ocupem espaços de poder ou com o uso da razão.
Em contrapartida, a empregada doméstica precisa não ser tão sensível,
pois aguentou – e ainda aguenta – condições subumanas de trabalho, análogas
à situação dos escravos.
O que se observa, em verdade, é que o racismo, diferente do que muitos
podem pensar, não cessa, ele acompanha o indivíduo. A todo momento, a mulher
negra precisa provar a razão de estar naquele espaço e a razão de se destacar entre
tantos brancos que ali poderiam estar. O racismo hierarquiza as pessoas. Traz
uma veriticalização das relações pessoais que apresenta, como pano de fundo, a
opressão. O empoderamento, por sua vez, é a horizontalização das relações de
poder. O poder é coletivo.

8. A LUTA ANTIRRACISTA

A violência é a linguagem de como as relações de poder vão se expressar.


Trata-se de um enunciado que define quem está no comando e não possui
início no ato da força, mas na ideia de subalteridade. A supressão de direitos,
sob qualquer ótica, é violência.
É inimaginável que só nos anos 80, após um largo período de ditadura,
no qual há o banimento das instituições negras, é que o movimento negro
passa a produzir um discurso onde fica clara a identidade racial negra e as suas
peculiaridades, a fim de que se tenha uma abertura de nova frente de luta: em
face das desigualdades raciais.
O movimento negro surge, portanto, premido da necessidade de combater
a violência racial e de gênero, por meio de contribuições políticas e teóricas dos
intelectuais negros que formam uma rede antirracista.
O objetivo principal dessa rede antirracista não se restringe ao debate
acerca das políticas sociais e econômicas, mas, principalmente, a uma discussão
sobre as representações da sociedade brasileira – que engloba a educação formal,
os contornos da estratificação social, bem como as raízes da desigualdade. Traz,
ainda, discussões que perpassam pela dinâmica das relações raciais no Brasil.
Além disso, a luta antirracista objetiva o confronto aos modos conheci-
dos – e convencionados - de representar e lidar com os indivíduos que possuem
origem em grupos subalternizados.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

8.1. Formas de combate à violência negra

Em meio a tantas dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras, qual


seria o papel do branco na luta antirracista?
Não se deve compreender o papel do branco como um papel de fala, de
meros discursos, mas, sim, de atitudes. Um dono de empresa, por exemplo, saberá
como fazer uma seleção na qual não haja a exclusão de negros. Ass mulheres
precisam chegar aos seus lugares de fala pela força, capacidade e pela técnica
que adquirem.
Qual o papel do Estado para não consubstanciar a violência às mulheres
negras no mercado de trabalho? Qual deve ser o mínimo patamar protetivo
acessado pelas mulheres negras, que seja conferido pelo ramo do Direito
do Trabalho.
Sob a ótica internacional do Direito do Trabalho, a Convenção nº 111, da
OIT, ratificada pelo Brasil, apresenta medidas que visam à eliminação de toda
e qualquer discriminação no trabalho, por meio da edição de leis e criação de
programas educacionais acerca da matéria, bem como por meio da colaboração
da classe empregadora – aqui incluídos os organismos internacionais.
Na mesma toada, por meio da Convenção 190, da OIT, foi reconhe-
cido o direito universal ao trabalho livre de quaisquer práticas de violência
e/ou assédio. Estes são definidos, pela norma citada, como “um conjunto de
comportamentos e práticas inaceitáveis” que “ têm por objetivo provocar,
provocam ou são suscetíveis de provocar danos físicos, psicológicos, sexuais
ou económicos”. Tal conceituação abarca, entre outras formas, o abuso verbal,
a violência física, o bullying, o mobbing53, a perseguição e, ainda, as ameaças.
Como uma forma de atuação estatal, a Convenção nº 190, da OIT, deve servir
como um elemento-chave às práticas discriminatórias presentes no ambiente
laboral, falando-se, aqui, especialmente quanto aos quesitos relacionados à
raça e ao gênero.
Por muitos anos e até os dias de hoje, ouve-se falar da colonialidade
do poder (tratado como o lado obscuro da modernidade), de onde surgem as
classificações de raça e etinia, por exemplo, partindo de um conceito que alude
à lógica de uma prática de dominação. Raça como fundamento de padrão de
subalternidades.

53 
Os primeiros estudos referentes ao tema foram desenvolvidos na área da Biologia, pelo etologista Konrad
Lorenz. Nas suas pesquisas, Lorenz observou a atuação de alguns animais de pequeno porte quando se sentiam
ameaçados por outros animais (em regra, maiores), principalmente, no que dizia respeito à disputa territorial.
Concluiu que o combate envolvia comportamento agressivo por parte dos animais menores que, em grupo,
utilizavam-se de artifícios para expulsar o “invasor”. A tal comportamento, Konrad deu o nome de “mobbing”.

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A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

Nesse contexto, por uma minoria incomodada com a posição ocupada pela
população negra – que, contraditoriamente, revela-se como maioria no Brasil -,
surgem políticas afirmativas, a exemplo das cotas, que são erroneamente tratadas
como modalidades de premiação à incompetência negra.
Sob esta perspectiva, as políticas afirmativas se revelam, não como um
produto prático de uma retórica discursiva, mas, quase sempre, de um produto
de interesses políticos. Cabe ao Estado adotar, por exemplo, um modelo de
Políticas Públicas (e universalistas) que possibilite a luta em face das desigual-
dades raciais. São essas organizações que forçam a queda de detrerminados
preconceitos, favorecendo e abrindo os espaços de participação.
Ocorre que o que se vê, na atualidade, é a ausência de projetos consis-
tentes e duradouros capazes de transformar a nação, que sejam desenvolvidos
e gestados pelas classes políticas brasileiras. Faz-se necessário criar um projeto
de debates onde se mostre bipolarizado um olhar para as bases de um passado
brasileiro (equivocado) e as possibilidades de um futuro transformado à nação,
no qual a mulher negra tenha a sua identidade e o seu papel social valorizados.
As práticas antirracistas precisam imperar com a retirada das barreiras
que impossibilitam o crescimento do profissional negro, e isso depende de uma
modificação dos padrões de uma visão social, de mudança de cultura e um debte
crítico e aprofundado por aqueles que, de fato, possuem interesse em modificar
o panorama social da atualidade.

9. CONCLUSÃO

A violência de gênero e a misogenia não são temas novos. Vêm de longos


períodos, não decorrendo de uma crise, a exemplo da pandemia. Os casos de
violência à mulher negra, especialmente nas relações de trabalho, escalam grandes
níveis. Não se trata de um contexto brasileiro, mas mundial.
Desde o período colonial, predominava a compreensão da mulher como
propriedade do senhor de engenho. A mulher era a administradora interna do
que o senhor de engenho se propunha a conquistar, provando que o colonia-
lismo, mais do que uma dominação territorial, revelou-se uma dominação de
subjetividades e mentalidades, criada com o objetivo precípuo de arreferecer o
ânimo dos dominados.
Aqui se observa, portanto, a importância da descolonização, que se traduz
pelo afastamento, por intermédio das leis, dos veículos de informação/comu-
nicação e dos movimentos que surgem em combate ao racismo e à misogenia,
daqueles conceitos de dominação e de poder.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

A grande saída deve passar, portanto, pela ideia de se pensar como uma
negra, o que significa reconhecer o diálogo entre a opressão sofrida e o privilégio
branco, a fim de que se possa interpretar a igualdade por meio das relações de
poder que constroem um lugar social para cada grupo. É deixar de compreen-
der a raça como uma classificação formal para desconstituir o fenômeno da
invisibilidade social.

REFERÊNCIAS

ALVES, Raissa Roussenq. Entre o silêncio e a negação: trabalho escravo contemporâneo


sob a ótica da população negra. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr,
2015, p. 183.
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-12/
estudo-mostra-que-76-das-mulheres-sofreram-violencia-no-trabalho> Acesso em: 07
abr. 2021.
Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-outro-do-outro/> Acesso
em: 07 abr. 2021.
Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/o-feminismo-decolonial/> Acesso
em: 07 abr. 2021.
Disponível em: <http://www.rcs.ufc.br/edicoes/v2n1/rcs_v2n1a8.pdf/> Acesso em:
03 jul. 2021.
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador. 6.ed.
ver. e atual. São Paulo: LTr, 2011.
PLÁ RODRIGUES, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner
D. Giglio. São Paulo: LTr, 1978.
RIBEIRO, Djamila. As diversas ondas do feminismo acadêmico. 25 de novembro de
2014. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/
feminismo-academico-9622.html>, Acesso em: 08 abr. 2021.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. In: Feminismos plurais. São Paulo: Sueli Carneiro;
Editora Jandaíra, 2020.
SADY, João José. Direito do Meio Ambiente de Trabalho. São Paulo: LTr, 2000.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais
na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advo-
gado, 2008.
SILVA, Luiz de Pinho Pedreira da. Direito do Trabalho: principiologia. São Paulo:
LTr, 1997.

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A VIOLÊNCIA À MULHER NEGRA NOS ESPAÇOS DE TRABALHO E DE PODER

TOLEDO, Tallita Massucci. A Saúde Mental do Empregado como Direito Funda-


mental e sua Eficácia na Relação Empregatícia. São Paulo: LTr, 2011.
VALE, Silvia Teixeira; LACERDA, Rosângela Rodrigues. Curso de direito constitu-
cional do trabalho. São Paulo: LTr, 2021.

<< Retorne ao sumário 275


DESCOMPLICANDO OS
AGENTES DE TRATAMENTO,
COM BASE NA LEI GERAL DE
PROTEÇÃO DE DADOS

Selma Carloto1

1. INTRODUÇÃO

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Lei nº 13.709 de


14 de agosto de 2018, entrou em vigor em setembro de 2020 e um dos temas
que mais têm gerado dúvidas é o relacionado aos agentes de tratamento. A
LGPD preconiza no artigo 5, inciso IX, que o controlador e o operador são
agentes de tratamento.
A LGPD deixou espaços para interpretações e regulamentação pela
Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a quem incumbe zelar
pelos dados pessoais, bem como regulamentar a LGPD. Com base em suas
atribuições institucionais, decorrentes do artigo 55-J, incisos VI e VII da LGPD,
a autoridade brasileira, a exemplo das autoridades da União Europeia, o Grupo
de Trabalho do Artigo 29 e o Comitê Europeu de Proteção de Dados, respecti-
vamente, considerando a necessidade de esclarecimentos a respeito de conceitos
para a atuação de organizações públicas e privadas no tratamento de dados
pessoais, emitiu guia orientativo para a Definição dos Agentes de Tratamento
e do Encarregado , o qual foi revisado e atualizado em abril de 2022.

1 
Autora das obras: Compliance Trabalhista, Lei Geral de Proteção de Dados enfoque nas relações de
Trabalho, Manual Prático de Adequação à Lei Geral de Proteção de Dados e coordenadora/autora da obra
LGPD comentada, enfoque nas relações de trabalho. Pesquisadora da Usp, departamento de Direito Civil,
de Lei Geral de Proteção de Dados. Coordenadora de pós graduação de Direito, Tecnologia e Cyberse-
gurança. Exin Data Protection Officer (certificação de DPO). Professora convidada da Fundação Getúlio
Vargas da FGV Direito Rio e dos MBAs de Gestão de Pessoas, Gestão Empresarial e Gestão Comercial
da área de Direito. Membro do Instituto Nacional de Proteção de Dados. Mestre pela Universidade de São
Paulo (USP). Doutoranda em engenharia da informação na Universidade Federal do ABC em Inteligência
Artificial. Doutorado em Direito do Trabalho na Universidade Federal de Buenos Aires (UBA). Especialista
pela FADISP. Autora dos livros publicados na Argentina, Editorial Quorom, Manual de Derecho Laboral
e Interesses Metaindividuais e ações coletivas.
e-mail: selmacarloto@hotmail.com inst.selmacarloto@hotmail.com

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DESCOMPLICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO,
COM BASE NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

O Grupo de Trabalho do Artigo 29, instituído pela Diretiva 95/46/CE,


elaborou o parecer 01/2010, adotado em fevereiro deste ano, sobre os conceitos
de “responsável pelo tratamento” e “subcontratante” e o Comitê Europeu de
Proteção de Dados, a diretriz 07/2020, adotada em 07 de julho de 2021.

2. IDENTIFICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO

O controlador é o agente de tratamento responsável, ao qual competem


as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais. Este é quem determina
os objetivos e meios do processamento.
Na legislação da União Europeia, o controlador se denomina contratante,
ou responsável pelo tratamento e passou a ser tarefa imprescindível, na jornada
de implementação e conformidade, definir quem é o controlador e quem é o
operador. Em regra, o controlador é uma entidade que decide sobre os elemen-
tos-chave de um processamento ou uma atividade de tratamento. O controlador
é quem tem o poder de decisão.

Controlador - poder de decisão sobre


o banco de dados.

Operador - trata dos dados conforme


instruções do controlador.

O operador trata dados, de acordo com as instruções do controlador.


Podemos dizer que estamos diante de uma verdadeira “terceirização de
atividades de tratamento” para outras entidades, seja por pessoas jurídicas,
ou naturais2.
As atividades de tratamento realizadas pelo operador poderiam ser tam-
bém processadas internamente, mas o contralador pode preferir contratar um
ente externo, o qual passa a figurar como operador. Podemos ter controladores
sem operadores, mas o contrário não será possível.
O Parecer 1/2010 do Grupo de Trabalho do artigo 29, na União Europeia,
ainda elaborado durante a vigência da Diretiva 95/46/CE, sobre os conceitos de
responsável pelo tratamento, ou controlador e operador, ou subcontratante, já
nos brindava com o conceito de responsável pelo tratamento dos dados e trazia

2 
CARLOTO, Selma. Lei Geral de Proteção de Dados. Editora LTR. Terceira edição. 2022.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

a sua relação com o conceito de subcontratante, que corresponde ao operador,


no Brasil.
O controlador, era inicialmente denominado, na Convenção108 do Con-
selho da Europa, de ‘responsável pelo ficheiro’, e o termo foi substituído pos-
teriormente por “responsável pelo tratamento” de dados pessoais. A Diretiva
introduziu também o conceito de “subcontratante”, que não era mencionado
na Convenção n. 108.
Os conceitos iniciais foram formulados durante as negociações relativas
ao projeto de proposta da Diretiva 95/46/CE, no início da década de 90 e o
conceito inicial de responsável pelo tratamento foi basicamente retirado da
Convenção de número 108 do Conselho da Europa, adotada em 1981.

BRASIL EQUIVALENTE NA UNIÃO EUROPEIA


CONTROLADOR RESPONSÁVEL
OPERADOR SUBCONTRATANTE

A Lei Geral de Proteção de Dados do Brasil se inspirou inicialmente


na Diretiva 94/46/CE, tendo sido promulgada e entrado em vigor durante o
Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia. É importante
destacar que o Regulamento Geral de Proteção de Dados revogou a Diretiva,
mas incorporou suas bases legais de legitimidade de tratamento, princípios, assim
como vários institutos e conceitos, como dos agentes de tratamento, responsável
(controlador no Brasil) e subcontratante (operador no Brasil).
No Brasil, os agentes de tratamento, nos termos da Lei Geral de Pro-
teção de Dados, são: o controlador e o operador.
CONTROLADOR: é agente de tratamento e poderá ser uma pessoa
natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões
referentes ao tratamento de dados6 pessoais. É o principal agente de tratamento,
o responsável.
OPERADOR: é agente de tratamento e poderá ser uma pessoa natural
ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados
pessoais em nome do controlador.
O principal elemento distintivo entre estes atores é o poder de decisão,
admitindo-se que o controlador forneça instruções para que um terceiro (“ope-
rador”) realize o tratamento em seu nome.
Um controlador pode compartilhar dados, por exemplo, para um con-
tador, uma empresa de folha de pagamento, uma transportadora, um courrier,

<< Retorne ao sumário 278


DESCOMPLICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO,
COM BASE NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

entre outros, os quais apenas poderão tratar dados de acordo com as instruções
claras do controlador, não podendo utilizá-los para finalidades distintas, ou além
daquela determinada pelo controlador.
O operador, subcontratante, na União Europeia, poderá apenas decidir
sobre certos assuntos, como, por exemplo, qual software usar, segregação de
acesso e outras medidas técnicas e administrativas de segurança da informação,
o que não altera seu papel como operador.
Talvez ficasse mais claro, se no Brasil tivéssemos repetido as nomen-
claturas eleitas e utilizadas pela legislação da União Europeia, não dando
uma falsa ideia de que o empregado, um servidor, uma equipe, ou departa-
mento, possam ser considerados agentes de tratamento e assim polo passivo
em uma ação judicial dos entes legitimados para ações civis públicas, ou
mesmo em uma ação individual, ou uma sanção da Autoridade Nacional de
Proteção de Dados.
Esta diferenciação é fulcral não apenas para os profissionais especializados
na área, mas também para o cidadão comum e principalmente em uma imple-
mentação por uma empresa ou entidade, principalmente pelo papel assumido
pelo controlador, como responsável pelas atividades de tratamento.
Tínhamos já anteriormente importantes documentos que nos ajudavam
na interpretação da Lei Geral de Proteção de Dados e nas diferenças entre os
agentes de tratamento e mesmo o DPO, ou encarregado, (o qual não é agente
de tratamento), mas estes eram da União Europeia, como a guideline de número
07/2020 do CEPD (Comitê Europeu de Proteção de Dados) e o anterior parecer
do Grupo de Trabalho do Artigo 29 de número 1/2010.

2.1. Guia da Autoridade Nacional de Proteção de Dados

Como introdutoriamente exposto, a Autoridade Nacional de Proteção


de Dados, em cumprimento a suas atribuições institucionais, decorrentes do
artigo 55-J, incisos VI e VII da LGPD no Brasil, preocupada com a identifi-
cação dos agentes de tratamento e as dúvidas recorrentes sobre esta temática,
não apenas em empresas privadas, mas principalmente em órgãos públicos,
publicou o “Guia Orientativo para Definições dos Agentes de Tratamento de
Dados Pessoais e do Encarregado”3, em 2021, o qual pode ser encontrado no
site do governo federal.

3 
ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE
DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

De acordo com este guia, os agentes de tratamento (controlador e o ope-


rador) poderão ser pessoas naturais ou jurídicas, de direito público ou privado,
devendo estes ser definidos a partir de seu caráter institucional.
Destaque-se que os empregados, como subordinados, os servidores públi-
cos, ou as equipes de trabalho de uma organização, não serão considerados
controladores (autônomos ou conjuntos), nem operadores já que atuam sob o
poder diretivo do agente de tratamento.4
Desta forma, um contador que trabalha internamente, como empregado,
assim como um departamento de contabilidade, com empregados da entidade
controladora, os quais são vinculados à pessoa jurídica, não são agentes de tra-
tamento. Já se a empresa controladora contratar um contador pessoa natural
externo, ou um escritório externo de contabilidade, por exemplo, estes passarão
a ser operadores.
Destaque-se, ainda, que o guia da Autoridade Nacional de Proteção de
Dados preconiza que: sempre que falamos de pessoa jurídica, a organização é
que será o agente de tratamento para os fins da Lei Geral de Proteção de Dados,
sendo que esta que estabelecerá as regras para o tratamento de dados pessoais,
as quais serão executadas por seus representantes ou prepostos.
A pessoa jurídica, sempre que esta existir, será o agente de tratamento,
controlador ou operador. Será controlador se tomar decisões e der instruções
sobre as atividades de tratamento. Será operador se seguir estas instruções e
apenas tratar os dados de acordo com as orientações lícitas daquele.

2.1.1. Exemplos práticos do Guia Orientativo da Autoridade


Nacional de Proteção de Dados para Definições dos
Agentes de Tratamento da Autoridade Nacional de
Proteção de Dados

“Exemplo 1 - Médica profissional liberal:

Uma médica, profissional liberal, armazena os prontuários e os demais


dados pessoais de seus pacientes no computador de seu consultório. A médica,
pessoa natural, é a controladora dos dados pessoais.”5 (destaques nossos)

4 
ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE
DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias. Acesso em 25 jun 2021.
5 
ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE
DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.

<< Retorne ao sumário 280


DESCOMPLICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO,
COM BASE NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

“Exemplo 2 - Médica empregada de um hospital:

Uma médica é empregada de um hospital, constituído sob a forma de


associação civil sem fins lucrativos. Nessa condição, atua como principal repre-
sentante do hospital junto a um serviço de armazenamento de dados de pacien-
tes em nuvem, inclusive assinando os contratos correspondentes. O hospital,
isto é, a associação civil, pessoa jurídica de direito privado, é o controlador
na hipótese. A médica, por atuar sob o poder diretivo da organização, não se
caracteriza como agente de tratamento.” 6(destaques nossos)

“Exemplo 3 - Servidores públicos:

Uma autarquia, entidade da administração pública indireta, com perso-


nalidade jurídica própria, deseja utilizar um novo software para aprimorar o
gerenciamento dos funcionários da instituição. Para isso, a Secretaria de Gestão
Corporativa da entidade delega à Diretoria de Gestão de Pessoas (DGP) a
tarefa de determinar os meios pelos quais este software será implementado.
Após algumas reuniões, a DGP decide pela contratação da empresa terceirizada
SIERRA para desenvolver o software em parceria com a equipe interna da
Diretoria de Tecnologia da Informação (DTI). Embora a delegação de deci-
são quanto aos meios para a DGP possa sugerir que essa diretoria atue como
operadora de dados, esta não é a análise correta: como a DGP é uma unidade
administrativa da autarquia, a delegação interna não altera o papel do agente de
tratamento, uma vez que, como exposto, o operador será sempre pessoa distinta do
controlador. O mesmo raciocínio se aplica para a DTI. Desse modo, a autarquia
será a controladora de dados e a empresa SIERRA será a operadora de dados.
A Secretaria e as Diretorias, assim como os seus respectivos servidores, são
apenas unidades organizacionais do ente controlador de dados, razão pela
qual não se caracterizam como agentes de tratamento.”7 (destaques nossos)

3. EMPREGADOS E OUTRAS PESSOAS VINCULADAS A


AGENTES DE TRATAMENTO

Não existe impedimento para uma pessoa natural ser contratada como
operadora em atividades específicas de tratamento de dados, sendo considerada
6 
ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE
DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.
7 
ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE
DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

operadora de dados, como um profissional liberal, mas os empregados, os ser-


vidores públicos, os sócios, assim como outras pessoas naturais, que integram e
estão vinculados a uma pessoa jurídica, expressando sua vontade, não poderão
ser considerados agentes de tratamento, operadores, ou controladores, neste
cenário.8 Na verdade, a entidade responderá pelos atos destes prepostos que
agem e tratam dados em seu nome.

Gerentes, sócios, empregados, sócios e


servidores, vinculados ao controlador,
não são agentes de tratamento.

Empregados e outras pessoas naturais


vinculadas ao operador também atuarão
em nome deste e não serão agentes
de tratamento.

O guia da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, da mesma forma


que a guideline 07/2020, da União Europeia, reza que os funcionários atuarão
em subordinação às decisões do controlador, não se confundindo, portanto, com
os operadores de dados pessoais:
“Daí decorre que não são controladoras as pessoas natu-
rais que atuam como profissionais subordinados a uma
pessoa jurídica ou como membros de seus órgãos. É o
caso de empregados, administradores, sócios, servidores
e outras pessoas naturais que integram a pessoa jurídica
e cujos atos expressam a atuação desta. Nesse sentido,
a definição legal de controlador não deve ser entendida
como uma norma de distribuição interna de competências
e responsabilidades. De forma diversa, trata-se de comando
legal que atribui obrigações específicas à pessoa jurídica,
de modo que esta assume a responsabilidade pelos atos
praticados por seus agentes e prepostos em face dos titu-
lares e da ANPD”9

8 
A ANPD também destaca este ponto em seu guia de agentes de tratamento e encarregado. ANPD.
GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE DADOS
PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos Agentes de
Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.
9 
ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE
DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.

<< Retorne ao sumário 282


DESCOMPLICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO,
COM BASE NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

Se um empregado, ou gestor, der causa a um vazamento, assim como


um servidor, o responsável será o agente de tratamento, empresa ou entidade
empregadora, restando àquele a possibilidade de sofrer sanções disciplinares,
que lhe poderão ser impostas pelo empregador, agente de tratamento, desde uma
advertência até uma justa causa, dependendo da proporcionalidade, gravidade
e reincidência, além da possibilidade de ação regressiva por dolo ou culpa, se
houver prévio ajuste contratual, nos termos do artigo 462 da CLT, parágrafo 1º.
Do mesmo modo responderá um servidor, nos termos da Constituição Federal
de 1988, artigo 37, parágrafo 6º.
Sendo responsável, é muito importante o agente de tratamento colocar
no contrato de trabalho de seus empregados o dever de sigilo, no tratamento
de dados, além de ter uma política de segurança da informação com instruções,
da qual o empregado irá assinar termo de responsabilidade de que seguirá as
orientações, além dos termos de confidencialidade. Também deverão ser ofe-
recidos treinamentos de segurança da informação.
A política de segurança da informação deverá incluir cláusulas como a
política da mesa limpa e da tela limpa, proibição de permanência em outros
setores, proibição de compartilhamento de senhas, entre outras instruções.
Outro ponto importante é que o agente de tratamento será definido
para cada operação de tratamento de dados pessoais e por conclusão a mesma
empresa ou organização poderá ser controladora e operadora, mas apenas se
em tratamentos distintos e de acordo com sua atuação, em diferentes operações
de tratamento. Por exemplo, um contador geralmente é operador quando faz
atividade de departamento pessoal, assim como em relação aos próprios empre-
gados, mas será controlador em eventual auditoria.

4. PESSOA NATURAL COMO AGENTE DE


TRATAMENTO

Quando a Lei Geral de Proteção de Dados conceitua controlador e


operador e traz que estes podem ser pessoas naturais não está se referindo a
empregados, equipes, departamentos, gestores, sócios e nem servidores. Se
estes fossem agentes de tratamento, os empregados e servidores passariam a
estar no polo passivo de ações individuais e coletivas, nos termos do artigo
42 da LGPD e poderiam até sofrer sanções da Autoridade Nacional, a qual,
na sua função educativa, entre outras, como de conscientizar, regulamentar,
fiscalizar o cumprimento da LGPD e aplicar sanções, em seu primeiro guia
do Brasil, já demonstrou a preocupação com a possibilidade deste cenário
com as interpretações equivocadas, no Brasil, ao eleger este tema como o

<< Retorne ao sumário 283


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

primeiro para a elaboração de um guia orientativo, entre tantos temas a


tratar e regulamentar.
Uma pessoa natural poderá ser controladora, como, por exemplo, um
advogado, ou um médico tratando os prontuários de seus pacientes, já que estes
tomam decisões nas atividades de tratamento. Da mesma forma, um vendedor
que tem sua tenda de pipoca, ou cachorro quente, ou uma pequena loja, mas
nunca os empregados vinculados a estes.
Estas entidades serão controladoras sempre que atuarem de acordo com
os próprios interesses e tiverem poder de decisão sobre as finalidades e os ele-
mentos essenciais de tratamento e serão operadoras quando atuarem de acordo
com os interesses do controlador, sendo-lhes facultada apenas a definição de
elementos não essenciais à finalidade do tratamento.

O operador deverá ser uma


entidade distinta do controlador.

Um ótimo exemplo seria considerarmos uma relação existente entre uma


empresa A e sua contabilidade, ou uma empresa de gestão de folha de paga-
mento, ou mesmo uma nuvem, sendo que a empregadora tomará as decisões
sobre o tratamento destes dados. Neste exemplo, a empresa empregadora seria
a controladora, a qual toma as decisões referentes aos tratamentos dos dados
pessoais, enquanto a segunda (contabilidade, empresa de gestão de folha de
pagamento ou uma nuvem) seria a operadora, já que realiza os tratamentos em
nome do controlador.
A empresa de contabilidade, operadora, receberá os dados coletados pela
controladora. Estes dados serão compartilhados e realizar-se-á o tratamento, de
acordo com as suas orientações e determinações, além da finalidade indicada
pela controladora e caso venha a realizar qualquer tratamento de dados fora do
que foi orientado pelo controlador, a contabilidade será responsabilizada.

Empresa A Contabilidade

Compartilhamento
de dados pessoais

CONTROLADORA OPERADORA

<< Retorne ao sumário 284


DESCOMPLICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO,
COM BASE NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

5. CONTROLADOR PESSOA JURÍDICA DE DIREITO


PÚBLICO

O controlador poderá ser uma pessoa natural, como um profissional


liberal, mas na maioria das vezes e preponderantemente este será uma pessoa
jurídica de direito privado, ou de direito público.
O Código Civil preconiza, que, as pessoas jurídicas de direito privado
poderão ser entidades sem fins lucrativos, como as associações, fundações,
organizações religiosas, sindicatos e partidos políticos; ou entidades com fins
lucrativos, como as sociedades empresárias ou simples, as cooperativas e as
Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada.10 As pessoas jurídicas
de direito público interno são os entes federados (União, Estados, Distrito
Federal e Municípios), além de entidades da administração pública, a exem-
plo de autarquias e fundações públicas. Estados estrangeiros e organismos
internacionais são pessoas jurídicas de direito público externo. Portanto,
todas estas entidades podem ser consideradas como controladoras para fins
da LGPD. 11
Quando estivermos diante de pessoas jurídicas de direito público, onde
as competências decisórias serão distribuídas internamente entre diferentes
órgãos públicos, o controlador será a União, pessoa jurídica de direito público,
mas a LGPD atribuiu aos órgãos públicos obrigações típicas de controlador,
indicando que, no setor público, essas obrigações deverão ser distribuídas entre
as principais unidades administrativas despersonalizadas e que integram a pessoa
jurídica de direito público, realizando o tratamento de dados pessoais.
A União, como controladora, será a responsável perante a LGPD, mas as
atribuições de controlador, por força da desconcentração administrativa, serão
exercidas pelos órgãos públicos que desempenham funções em nome da pessoa
jurídica da qual fazem parte.
Os órgãos públicos deverão cumprir, ainda, com os deveres de transparência
e de nomeação de um DPO ou encarregado de proteção de dados.
“Órgão público contratante de um serviço de inteligência artificial:
Um órgão público, vinculado à União, contrata uma solução de inteligência
artificial fornecida por uma sociedade empresária com a finalidade específica
de realizar o tratamento automatizado de decisões com base em um banco

10 
BRASIL. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.
htm. Acesso em 17 jun.2022.
11 
ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE
DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.

<< Retorne ao sumário 285


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

de dados gerido pelo órgão. Seguindo as instruções fornecidas pelo gestor


público responsável e estabelecidas em contrato, a sociedade empresária realiza
as operações necessárias para viabilizar o tratamento dos dados em questão.
A União, pessoa jurídica de direito público, é a controladora na hipótese.
Não obstante, o órgão público responsável detém obrigações legais específicas
em face dos titulares e da ANPD, conforme previsto na LGPD. A sociedade
empresária é a operadora, uma vez que realiza o tratamento dos dados conforme
as instruções fornecidas pelo controlador. Por fim, o gestor público responsável,
por atuar como servidor público subordinado à União, não se caracteriza como
agente de tratamento.”12 (destaques nossos)

6. CONTROLADORIA CONJUNTA

Sempre que estivermos diante de mais de um responsável pelo trata-


mento de dados pessoais, ambos com poder de decisão, tomando decisões
conjuntas, teremos uma controladoria conjunta. Estes agentes responderão
solidariamente nos termos do artigo 42, parágrafo 1º, inciso II, que reza
que os controladores que estiverem diretamente envolvidos no tratamento
do qual decorrerem danos ao titular dos dados respondem solidariamente,
salvo nos casos de exclusão previstos no artigo 43 da LGPD. Diferente do
que ocorre quando compartilhados dados para pagamento de empregados
em um banco, um órgão do governo, ou um plano de saúde, que tomam
decisões independentes, sendo os responsáveis por seus tratamentos, como
controladores independentes.
A controladoria conjunta estará presente sempre que presentes critérios
trazidos pela guideline 07/202013 do CEPD da União Europeia e que o Guia
orientativo da ANPD para definições de agentes de tratamento for observado:
1. Deverá existir o poder de decisão no tratamento de dados pessoais conjunto,
ou de mais de um agente de tratamento.
2. Deverá existir interesse mútuo de pelo menos dois controladores e que
tenham finalidades próprias no mesmo tratamento.
3. Estes controladores conjuntos deverão tomar decisões conjuntas, comuns
ou convergentes, tanto sobre os elementos essenciais como sobre as fina-
lidades do tratamento.

12 
ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE
DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.
13 
EDPB, Guidelines 07/2020 on the concepts of controller and processor in the GDPR, set. 2020. Dis-
ponível em: < https://edpb.europa.eu/sites/edpb/files/consultation/edpb_guidelines_202007_controllerpro-
cessor_en.pdf> Acesso: 25 jun. 2021.

<< Retorne ao sumário 286


DESCOMPLICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO,
COM BASE NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

Importante destacarmos que todos os critérios deverão ser seguidos


concomitantemente para termos controladores ou responsáveis conjuntos.14
Seguem alguns exemplos de controladores conjuntos do Guia Orientativo
para Definições dos Agentes de Tratamento:
“Exemplo 1 – Campanha de marketing de empresas I: decisões comuns.
As empresas ARGENTINA e BRASIL lançaram um produto de marca
conjunta COSMÉTICO e desejam organizar um evento para promover este
produto. Para esse fim, decidem compartilhar dados de seus respectivos
clientes e banco de dados de clientes potenciais e decidir sobre a lista de
convidados para o evento com base nesses dados. Eles também concordam
sobre as modalidades de envio dos convites para o evento, como coletar fee-
dback durante os eventos e sobre as ações de marketing de acompanhamento.
Por fim, contratam a agência de marketing DINAMARCA para executar a
campanha. A agência traz sugestões de como os clientes poderiam ser mais
bem alcançados e define os canais, ferramentas e produtos da campanha. As
empresas ARGENTINA e BRASIL podem ser consideradas controladores
conjuntos para o tratamento de dados pessoais relacionados com a organização
do evento e promoção do produto da marca COSMÉTICO, por terem definido,
em conjunto, a finalidade e os elementos essenciais dos dados tratados nesse
contexto. Já a agência de marketing DINAMARCA atuará como operadora
de dados para as empresas ARGENTINA e BRASIL. Ainda que opine sobre
os meios de tratamento, ela não é a responsável pela tomada de decisão final,
limitando-se a definir elementos não essenciais como os canais, ferramentas e
produtos da campanha. Caso a agência de marketing DINAMARCA contrate
serviços de terceiros de armazenamento de dados em nuvem, por exemplo,
essa empresa prestadora de serviços será caracterizada como suboperadora.”15
(destaques nossos)
“Exemplo 2 - Campanha de marketing de empresas II: decisões autônomas
Considere-se agora que a campanha descrita no exemplo anterior foi tão
bem-sucedida que, em um segundo momento, a empresa ARGENTINA contrata
a agência de marketing DINAMARCA para divulgar seus produtos ESPELHO
e FACA. Pouco tempo depois, a empresa BRASIL toma a mesma decisão para
divulgação dos produtos GARRAFA e HALTERE. Ambas as empresas pas-
sam a usar a lista de clientes que haviam compartilhado anteriormente. Nesta
situação, que envolve a divulgação de produtos produzidos exclusivamente

CARLOTO, Selma. Lei Geral de Proteção de Dados. Editora LTR. Terceira edição. 2022
14 

ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE


15 

DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.

<< Retorne ao sumário 287


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

pela empresa ARGENTINA ou pela empresa BRASIL, estas atuarão como


controladores singulares, cada uma atuando em suas próprias campanhas. A
agência de marketing DINAMARCA continuará como operadora de dados
para cada empresa.”16 (destaques nossos)
A Lei Geral de Proteção de Dados atribui maior responsabilidade ao
controlador, ainda que havendo responsabilidade solidária entre os agentes de
tratamento. Dentro de suas atribuições este deverá elaborar Relatório de Impacto
à Proteção de Dados Pessoais, comunicar incidentes à ANPD, elaborar o ROPA
(registro das atividades de tratamento de dados pessoais) e sua responsabilidade
se dá nos termos dos artigos 42 a 45 da LGPD.
Os controladores, assim como os operadores, serão obrigados a reparar
qualquer dano que provocarem, seja patrimonial, moral, individual ou coletivo,
em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, em vio-
lação à LGPD.
O operador deverá agir de acordo com as obrigações previstas na LGPD
e seguir as orientações lícitas do controlador, caso contrário, responderá, soli-
dariamente, pelos danos causados em razão do tratamento de dados pessoais
realizado.
Qualquer desconformidade à Lei Geral de Proteção de Dados, ou a não
observância a um ou a mais de um dos seus dispositivos poderá gerar sanções
da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, ou de outras entidades, como o
Procon, nas relações de consumo, além de ações individuais e coletivas, no judi-
ciário, com pedido de dano moral individual ou coletivo e eventual dano material.
No rigor da lei, o tratamento de dados pessoais será irregular quando
deixar de observar a legislação ou quando não fornecer a segurança
que o titular pode esperar.

7. CONCLUSÃO

Diante de uma nova cultura e um novo cenário que nasceu, em virtude


da crescente necessidade de proteção aos direitos fundamentais de liberdade e
de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural,
trazida principalmente por novas tecnologias disruptivas e muitas vezes imper-
ceptíveis e por um mundo novo dominado por tecnologia e algoritmos, em que
os controladores passam a ser responsáveis pelo compromisso, isoladamente ou
em conjunto, com diferentes graus de autonomia e responsabilidade, assim como

ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE TRATAMENTO DE


16 

DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível em: Guia Orientativo para Definições dos
Agentes de Tratamento https://www.gov.br › pt-br › assuntos › noticias.

<< Retorne ao sumário 288


DESCOMPLICANDO OS AGENTES DE TRATAMENTO,
COM BASE NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

os operadores, ambos agentes de tratamento, assumindo a responsabilidade


pelas suas atividades de tratamento, não seria justo transferir-se esta respon-
sabilidade aos seus empregados, equipes, departamentos, diretores, gerentes e
outros empregados, assim como aos servidores.
Os empregados, administradores, sócios, servidores e outras pessoas
naturais são apenas vinculados à pessoa jurídica, ou uma entidade e seus atos
expressam a atuação desta, podendo responder apenas posteriormente, em ação
regressiva, nos termos da Consolidação das Leis do Trabalho, se empregados,
por dolo, ou culpa, quando ajustado contratualmente e até ser dispensados por
justa causa, ou nos termos de outras legislações para os demais, ao descumpri-
rem as políticas internas de segurança da informação e instruções da empresa.
Mesmo os sócios não responderão inicialmente, em eventual demanda judicial,
mas sim a entidade, sem que haja inicialmente um incidente de desconsideração
de personalidade jurídica, assim como por sanções da ANPD.
Com exemplos específicos trazidos e retirados da experiência diária das
autoridades de proteção de dados em guias e pareceres, neste pequeno artigo,
tentou-se orientar e contribuir de forma clara, eficaz e didática, com uma das
dúvidas que mais nos deparamos nas entidades que iniciam esta nova jornada
de conformidade e que não terá mais volta, devido ao avanço tecnológico que
vivemos e apenas tende a aumentar.

REFERÊNCIAS

ANPD. GUIA ORIENTATIVO PARA DEFINIÇÕES DOS AGENTES DE


TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS E DO ENCARREGADO. Disponível
em: Guia Orientativo para Definições dos Agentes de Tratamento https://www.gov.
br › pt-br › assuntos › noticias
BRASIL. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/
l10406compilada.htm. Acesso em 17 jun.2022
CARLOTO, Selma. Lei Geral de Proteção de Dados. Editora LTR. 3ª. Edição. 2020
EDPB, Guidelines 07/2020 on the concepts of controller and processor in the GDPR,
set. 2020. Disponível em: < https://edpb.europa.eu/sites/edpb/files/consultation/edpb_
guidelines_202007_controllerprocessor_en.pdf> Acesso: 25 jun. 2021

<< Retorne ao sumário 289


POLÍTICA DE PRIVACIDADE DE
EMPREGADOS E O PRINCÍPIO DA
TRANSPARÊNCIA NA LGPD

Selma Carloto1

1. O QUE É?

A política de privacidade, ou declaração de privacidade, consiste em um


documento que contém todas as informações que o titular precisa saber relacio-
nadas aos dados pessoais que são coletados e todas as atividades de tratamento,
relacionadas a este. Este traz como serão tratados os dados, a finalidade da ativi-
dade de tratamento, canais de coleta, prazo de tratamento, compartilhamentos,
direitos do titular, eventuais cookies, transferência internacional, tratamentos
de dados de menores, canal de contato e data da atualização.
Os fundamentos legais na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) são
os artigos 9 e 18 da LGPD e no Regulamento Geral de Proteção de Dados
(RGPD), artigo 13.
A empresa deverá sempre informar os tratamentos antes da coleta e
primeiro tratamento dos dados, por meio de avisos de privacidade e/ou uma
política de privacidade.
A LGPD, artigo 6º, traz dez princípios: finalidade, adequação, necessi-
dade, livre acesso, qualidade de dados, transparência, segurança, prevenção, não

1 
Membro do Instituto Nacional de Proteção de Dados. Autora de diversas obras de Lei Geral de Proteção
de Dados e de Compliance Trabalhista da editora LTR. Cooordenadora e coautora da obra Inteligência
Artificial nas Relações de Trabalho, editora Mizuno e coordenadora e coautora da obra Manual de Relações
de Trabalho em Visual Law. Pesquisadora da Usp, departamento de Direito Civil, de Lei Geral de Proteção
de Dados. Coordenadora de pós graduação de Compliance e Direito Digital e Metaverso, Tecnologias
emergente e cybersegurança da Faculdade Esper. Data Protection Officer (certificação de DPO). DPO e
Compliance Officer as a servisse. Professora convidada da Fundação Getúlio Vargas da FGV Direito Rio e
dos MBAs de Gestão de Pessoas, Gestão Empresarial e Gestão Comercial da área de Direito. Mestre pela
Universidade de São Paulo (USP). Doutoranda em engenharia da informação na Universidade Federal do
ABC em Inteligência Artificial. Doutorado em Direito do Trabalho na Universidade Federal de Buenos
Aires (UBA). Especialista pela FADISP. Autora dos livros publicados na Argentina, Editorial Quorom,
Manual de Derecho Laboral e Interesses Metaindividuais e ações coletivas.e-mail:selmacarloto@hotmail.
com inst.selmacarloto@hotmail.com

<< Retorne ao sumário 290


POLÍTICA DE PRIVACIDADE DE EMPREGADOS E O PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA NA LGPD

discriminação, responsabilidade e prestação de contas, os quais deverão estar


concomitantemente presentes em qualquer atividade de tratamento.
Destaque-se que a maioria das ações e sanções da União Europeia, normas
que inspiraram nossa legislação, são por desconformidades a: princípios, bases
legais ou aos direitos do titular.
Trazemos como exemplo a Price, a qual sofreu uma sanção ao desrespeitar
a base legal de tratamento, havendo utilizado indevidamente o consentimento e
os princípios da transparência, já que não possuía uma política de privacidade,
ou avisos de privacidade, informando os titulares das atividades de tratamento
antes da coleta, assim como o princípio da responsabilidade e prestação de
contas, em virtude de a empresa não ter conseguido demonstrar o cumprimento
adequado do RGPD e ter transferido os encargos para os titulares dos dados.
“Por que a PwC foi multada? O GDPR estabelece claramente as bases
legais, sob as quais os dados pessoais podem ser processados pelos controladores.
O consentimento é uma dessas bases, mas não é o único. E a escolha do consen-
timento da PwC como base legal para o processamento de dados pessoais de seus
funcionários não era apropriada, constatou a DPA. Os dados foram processados
no decorrer das atividades comerciais da empresa e os funcionários não foram
informados sobre isso. Esse tipo de abordagem foi considerado como uma
violação dos princípios de justiça e transparência do GDPR. O princípio da
responsabilização também não foi cumprido, uma vez que a empresa não conseguiu
demonstrar o cumprimento adequado e transferiu os encargos para os titulares
dos dados. Como a PwC era, neste caso, um controlador de dados pessoais, essa
transferência era inadequada. A DPA considerou que a PwC BS como controla-
dor: Processou ilegalmente os dados pessoais dos seus empregados em violação
do disposto no artigo 5º, n. 1, alínea a), do RGPD, por ter utilizado uma base
jurídica inadequada e processado os dados pessoais dos seus empregados de uma
forma injusta e não transparente contrária ao disposto no artigo 5º, n. 1, alínea a),
alíneas b) e c) do RGPD, dando- -lhes a falsa impressão de que estava a processar
os seus dados sob a base legal de consentimento, de acordo com o artigo 6 (1) (a)
do GDPR, enquanto na realidade estava processando seus dados sob uma base
legal diferente sobre a qual os funcionários nunca haviam sido informados.” 2

2. PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA

A transparência é um princípio essencial da LGPD e se traduz e mate-


rializa pela necessidade de informação antes da coleta.

2 
PWC Grécia recebe multa de €150Mil por violar GDPR. Disponível em: https://minutodaseguranca.
blog.br/pwc-grecia-recebe-multa-de-e150mil-por-violar-gdpr/. Acesso em 18 jun. 2022.

<< Retorne ao sumário 291


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

De acordo com este princípio, as empresas deverão garantir aos titulares


dos dados seu direito prévio de receber informações claras e precisas relacionado
às futuras atividades de tratamento. O princípio da transparência, nos exatos
termos da lei, consiste em: “garantia, aos titulares, de informações claras, precisas
e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes
de tratamento, observados os segredos comercial e industrial”.3

3. OS EMPREGADOS DEVEM RECEBER POLÍTICAS


DE PRIVACIDADE?

A maioria das empresas não faz políticas de privacidade para seus empre-
gados ou colaboradores4, apenas para clientes e este seria um documento funda-
mental para informá-los sobre como seus dados serão tratados, principalmente
porque estamos diante de relações assimétricas e com um maior risco de invasão
aos direitos fundamentais.
Constata-se que, que onde se precisa de uma maior proteção e trans-
parência, devido à assimetria oriunda do poder de direção, que se contrapõe à
subordinação, é onde há maiores abusos e violações de princípios de proteção
de dados, incluindo-se o da transparência e informação prévia.

4. POLÍTICA DE PRIVACIDADE E DE SEGURANÇA DA


INFORMAÇÃO. DIFERENÇAS

A Privacidade é um direito fundamental a ser protegido e a proteção de


dados representa o modo para implementar esta proteção. Sem proteção de
dados não existe de fato a privacidade.
Para as organizações alcançarem o direito à privacidade de seus titulares,
além de informar os tratamentos antes da coleta, por meio de uma política de
privacidade, dirigida a todos os titulares, deverão elaborar um outro documento
com diretrizes, criando um Sistema de Gestão da Segurança da Informação
(SGSI), incluindo processos, orientações e ferramentas, que visem garantir a
proteção dos dados pessoais e sensíveis dos titulares contra ameaças internas
e externas, garantindo-se a confidencialidade, disponibilidade e integridade
das informações, ao lado de estratégias de monitoramento e ações necessárias,
garantindo-se a segurança da informação na organização.

3 
BRASIL. Lei n. 13.709/2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em 18 jun. 2022.
4 
Este termo é mais utilizado, nas empresas, do que empregado.

<< Retorne ao sumário 292


POLÍTICA DE PRIVACIDADE DE EMPREGADOS E O PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA NA LGPD

Para a elaboração desta política de segurança da informação, dirigida aos


empregados, que tratam dados de outros titulares, clientes e empregados, deve-se
observar as normas da ABNT NBR ISO/IEC 27001, ISO 27002 e 2771 .
É necessário também que a empresa implemente controles no processo
de contratação de pessoas, estabelecendo contratos de trabalho com cláusulas
de confidencialidade (NDA).

Política de privacidade Política de segurança da informação


Privacidade Segurança da informação
Objetivo: informar os titulares tudo sobre Objetivo: trazer diretrizes a seguir pelos
os futuros tratamentos: canais de coleta, colaboradores (SGSI)
dados coletados, finalidades do tratamento, Traz sanções disciplinares pelo desrespeito
bases legais, períodos de tratamento, com- às diretrizes.
partilhamentos, transferência internacional,
Exemplo de diretrizes: uso de senhas,
dados de menores, eventuais cookies e canal
e-mail, internet, dispositivos móveis, foto-
de contato do DPO.
cópias, impressão de documentos, mesa
Serve também como um guia para os traba- limpa, tela limpa, crachás, segregação de
lhadores tratarem dados de outros titulares. acesso por função e hierarquia, descarte,
atualização de antivírus, etc.

5. CONCLUSÃO

É muito comum estas políticas serem confundidas, assim como é recor-


rente muitas empresas não possuírem políticas de privacidade para titulares
empregados e trazerem cláusulas de consentimento equivocadamente no contrato
de trabalho, ao invés de trazer na política de privacidade todas as finalidades,
prazos de tratamento e bases legais, além de eventuais termos de consentimento
serem elaborados em separado e de forma granular, principalmente que aquele
dificilmente será base legal de tratamento em relações de emprego por ser
problemático em relações assimétricas.5
Todos titulares de dados têm o direito de terem acesso a políticas e avi-
sos de privacidade e os empregados não poderiam ser deixados de lado, como
titulares de direitos humanos e fundamentais, sendo o objetivo principal da
LGPD a proteção aos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o
livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
Este documento deverá ser recebido mesmo antes da assinatura do con-
trato para cumprimento do disposto na LGPD.

Indicação de leitura, sobre o tema, do capítulo desequilíbrio de poder nas relações de trabalho na obra:
5 

CARLOTO, Selma. Lei Geral de Proteção de Dados. Editora LTR. 3ª. Edição. 2020

<< Retorne ao sumário 293


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

A política de privacidade não poderá ser ainda confundida com a de


segurança da informação, já que estes documentos têm objetivos totalmente
distintos.
As políticas de privacidade deverão ser elaboradas e divulgadas para
clientes e candidatos, podendo ser no site e internamente para empregados,
assim como para prestadores pessoais naturais.
A política de segurança da informação (PSI) objetiva proteger o negócio
contra riscos e contra incidentes como violações e vazamentos de dados, a gestão
da privacidade e deverá ser elaborada, incluindo diretrizes e boas práticas para
os empregados. Esta materializa os princípios da segurança, da prevenção e da
responsabilidade e prestação de contas, servindo para a empresa demonstrar o
cumprimento adequado da LGPD, al lado do Relatório de Impacto à Proteção
de Dados em atividades e tratamento de Alto risco. Ressalte-se que a resolução
2 da ANPD de 2022 preconiza, no artigo 13, parágrafo segundo, que esta (PSI)
será levada em conta como boa prática para atender o artigo 52, parágrafo 1º.,
inciso IX e para fins do previsto no artigo 6º., inciso X da LGPD (princípio da
responsabilização e prestação de contas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n. 13.709/2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.
htm. Acesso em 18 jun. 2022
CARLOTO, Selma. Lei Geral de Proteção de Dados. Editora LTR. 3ª. Edição. 2020
PWC Grécia recebe multa de €150Mil por violar GDPR. Disponível em: https://
minutodaseguranca.blog.br/pwc-grecia-recebe-multa-de-e150mil-por-violar-gdpr/.
Acesso em 18 jun.2022

<< Retorne ao sumário 294


COMPREENSÃO DOS
MOVIMENTOS SOCIAIS À LUZ
DA TEORIA DOS SISTEMAS DE
NIKLAS LUHMANN

Sílvia Isabelle Ribeiro Teixeira do Vale1


Rosangela Rodrigues Dias de Lacerda2

Resumo: Trata-se de estudo acerca da conceituação teórica dos movimentos


sociais, que perpassa pelas teorias tradicionais e contemporâneas acerca do tema
e sustenta a necessidade de mudança de paradigmas, apresentando a teoria
dos sistemas, de Niklas Luhmann, como aporte teórico denso e relevante para
explicação do fenômeno. Parte da premissa de que a teoria da ação coletiva, a
teoria da mobilização de recursos, a teoria do processo político e as teorias dos
novos movimentos sociais são insuficientes para conceituação, caracterização,
detalhamento e explicação do funcionamento das mobilizações sociais. Em
seguida, discorre sobre os principais aspectos da teoria dos sistemas, que serão
indispensáveis para a sua compreensão acerca dos movimentos sociais, defini-
dos como subsistemas sociais de comunicação, autopoiéticos, não funcionais
e parasitários. As pesquisas bibliográfica e documental foram utilizadas para
demonstração do entendimento ora sufragado.

Palavras-chave: Movimentos sociais, teoria dos sistemas, Niklas Luhmann.

1 
Juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região. Mestra em Direito pela UFBA. Doutora pela PUC/SP, Pós-
-Doutora pela Universidade de Salamanca. Professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da
Faculdade Baiana de Direito, EMATRA5, CERS, CEJAS, UCSAL e da Escola Judicial do TRT da 5ª, 6ª,
10ª e 16ª Regiões. Diretora da EMATRA5, biênio 2019/2021. Membra do Conselho editorial da Revista
eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da Quinta Região e da Revista Vistos etc. e do Conselho
acadêmico da ENAMATRA, órgão de docência da ANAMATRA. Autora de livros e artigos jurídicos.
Ex-professora substituta da UFRN.
2 
Procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região. Professora Adjunta da Uni-
versidade Federal da Bahia. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Doutora em
Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo. Professora convidada do curso
de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, CERS, UCSAL, UNIFACS e das Escolas
Judiciais do TRT da 5ª, 6ª e 16ª Regiões.

<< Retorne ao sumário 295


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Abstract: This is a study about the theoretical conceptualization of social


movements, which runs through traditional and contemporary theories about
the issue and supports the need for paradigm shift, with systems theory of
Niklas Luhmann, as dense and theoretical relevance for explanation the
phenomenon. It assumes that the theory of collective behavior, the theory
of resource mobilization, political process theory and theories of new social
movements are insufficient for conceptualization, characterization, and detailed
explanation of the workings of social movements. Then discusses the main
aspects of systems theory, which will be essential to the understanding of
social movements, defined as social communication subsystems, autopoietic,
non-functional and parasitic. The research literature and documents were
used to demonstrate the thesis.

Keywords: Social movements, systems theory, Niklas Luhmann.

1. INTRODUÇÃO
Os movimentos sociais estão na ordem do dia. A preocupação com a
teorização sobre os movimentos sociais deve-se à sua visibilidade na sociedade,
na qualidade de fenômenos sociais e históricos concretos. Há uma necessidade
ingente de estabelecimento de marcos conceituais e teóricos, considerando-se
que as doutrinas tradicionais já não respondem às questões de primacial rele-
vância acerca do fenômeno.
A prática dos movimentos sociais não contribui para um entendimento
uníssono sobre a sua ontologia, porquanto são múltiplos e heterogêneos os
temas eleitos como bandeiras de luta, em cada uma das mobilizações, instáveis
por sua própria natureza, porém capazes de provocar rupturas e mudanças no
sistema social. É imprescindível, portanto, destacar novos paradigmas concei-
tuais acerca dos movimentos sociais - este é o objetivo do presente estudo, ou
seja, fornecer elementos para uma teorização mais sólida e consistente, que é
fulcrada na teoria dos sistemas, de Niklas Luhmann.
No primeiro item do estudo, serão apresentadas as principais teorias
tradicionais e contemporâneas acerca dos movimentos sociais, em seus aspectos
mais destacados, ressaltando-se também as suas inconsistências. Em seguida,
serão explanados alguns conceitos da teoria dos sistemas, cujo domínio é fun-
damental para a compreensão dos movimentos sociais à luz desta teoria, objeto
do terceiro item. Por derradeiro, serão tecidas considerações acerca das críticas
à teoria sistêmica e os argumentos para superação das objeções.

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DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

2. ESTADO DA ARTE ACERCA DOS MOVIMENTOS


SOCIAIS: TEORIAS TRADICIONAIS E
CONTEMPORÂNEAS

Para avaliar o impacto da teoria dos sistemas na teoria dos movimentos


sociais, torna-se imperiosa, primeiramente, uma rápida digressão acerca das
teorias tradicionais que conceituam e delimitam os movimentos sociais.
A teorização sobre os movimentos sociais começa a ganhar status de objeto
de interesse científico a partir dos anos 1960, quando eclodem os movimentos
feministas, pacifistas, ambientalistas e em defesa dos direitos civis nos Estados
Unidos e na Europa. Entretanto, apesar do recrudescimento do interesse ter
ocorrido apenas na década de 1960, a maioria dos historiadores aponta Herbert
Blumer como o precursor das teorias sobre os movimentos sociais, tendo sido o
primeiro a utilizar a expressão collective behavior, em título do capítulo do livro
“Esboço de novos princípios de sociologia”3, em 1951.
Impende salientar que a mobilização coletiva também evoluiu política e
socialmente ao longo dos séculos XX e XXI, de sorte que os atuais movimentos
sociais em muito diferem daqueles estudados pelas teorias tradicionais, o que
explica a ingente necessidade de uma reformulação do pensamento predominante.
A Teoria da Ação Coletiva, primeiro marco teórico sobre o assunto, e que
agrupa correntes doutrinárias de diversos matizes, enfoca os movimentos sociais
como comportamento coletivos originados da inquietação social, dos impulsos
reprimidos, da convulsão e da incerteza4. Os movimentos sociais, portanto, são
agrupamentos de pessoas insatisfeitas, que organizam coletivamente uma reação
irracional a um sistema que as oprime. Assim que as tensões assumem um grau de
insuportabilidade, as pessoas se aglutinam em torno de alguns objetivos comuns
e formam os denominados movimentos sociais, que operam em um cenário de
irracionalidade e de marginalidade, em oposição à ordem fixa e estática vigente
na sociedade. Há, portanto, na teoria da ação coletiva, uma ênfase exagerada na
questão da motivação da participação dos indivíduos nos movimentos sociais, ou
seja, na fundamentação psicológica da criação e manutenção dos movimentos, que
buscam o protesto fora das estruturas institucionais5. Apesar da sua importância
histórica, esta teoria é atualmente um paradigma desacreditado.
Em forte oposição à teoria da ação coletiva surge, a partir dos anos 1970,
a Teoria da Mobilização de Recursos. Enquanto a teoria da ação coletiva confere

3 
LEE, Alfred McClung. New outline of the principles of sociology. New York: Barnes & Noble, 1951.
4 
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais - paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo:
Loyola, 2011, p. 40.
5 
STAGGENBORG, Suzanne. Social Movements. Oxford: Oxford University Press. 2011, p. 26.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

maior relevância ao aspecto psicológico de irracionalidade, insatisfação e frus-


tração dos integrantes dos movimentos sociais, além do seu caráter patológico
em relação às instituições sociais em vigor, a teoria da mobilização de recursos,
que é pautada em uma visão exclusivamente economicista, compreende os movi-
mentos sociais como uma estrutura organizacional que, para ter êxito, necessita
ser administrada como uma empresa. A teoria é baseada no utilitarismo, preco-
nizando a incidência de uma lógica racional de interação entre indivíduos, que
buscam atingir metas e objetivos, com estratégias que avaliam o custo-benefício
de cada ação. Da irracionalidade incontida e visceral passa-se à racionalidade
economicista e utilitarista. Assim, a teoria da mobilização dos recursos afirma
que os movimentos sociais surgem e se mantém na medida da disponibilidade
e organização racional de recursos financeiros, humanos e de infraestrutura.
Estes recursos, por seu turno, não são oferecidos pelos beneficiários da ação, mas
por apoiadores do movimento. Em face da antipatia gerada nos pensadores de
esquerda, ao comparar movimentos sociais com empresas, a teoria da mobili-
zação de recursos teve pouca ressonância na Europa e insignificante produção
científica na América Latina, conquanto tenha prevalecido nos Estados Unidos
por mais de vinte anos, incorporando temas e controvérsias ao longo do tempo6.
A Teoria do Processo Político, que surge nos Estados Unidos também no
final da década de 1970 e recrudesce nas décadas de 1980 e 1990, não se apresenta
como uma ruptura da teoria da mobilização de recursos, mas como sua evolução:
em verdade, pretende recapitular alguns aspectos culturais e de psicologia social, que
foram tão caros aos sociólogos da teoria da ação coletiva, para explicar fenômenos
que escapavam à compreensão da teoria da mobilização de recursos. Enquanto
a teoria da mobilização de recursos enfatiza a existência de recursos materiais
para criação e manutenção de movimentos sociais, a teoria do processo político
assevera que tais recursos são importantes, porém não precedem à existência do
movimento; ao revés, são obtidos paulatinamente, de maneira processual, desde que
existam estruturas de oportunidades políticas favoráveis - é o resgate do elemento
político na explicação do fenômeno. A tônica recai sobre a existência de estruturas
de incentivos ou de constrangimentos políticos, que irão determinar os rumos da
ação dos movimentos sociais7. Ademais, os ressentimentos, frustrações e carências
da comunidade foram também reconhecidos como fontes de recursos necessários
à criação e manutenção dos movimentos sociais - e neste aspecto reside a maior
característica de síntese da teoria do processo político, pois resgata o elemento
cultural e psicológico e o mescla aos elementos econômicos.
6 
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais - paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo:
Loyola, 2011, p. 50.
7 
ALONSO, Ângela. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate. Revista Lua Nova, São
Paulo, n. 76, p. 49-86, 2009.

<< Retorne ao sumário 298


DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

Enquanto as teorias da mobilização de recursos e do processo político


floresciam nos Estados Unidos, surge na Europa, também após os movimentos
sociais da década de 1960, um conjunto de teorias denominado de paradigma
dos Novos Movimentos Sociais. Havia uma forte oposição às teorias marxistas
ortodoxas, bem como ao influxo economista das teorias norteamericanas, de
modo que alguns autores, a exemplo de Touraine, Clauss Offe, Melucci e Laclau
criaram lógicas interpretativas do fenômeno que enfatizaram a cultura e a soli-
dariedade entre as pessoas de um movimento social e o processo de identidade
criado. Conquanto possam ser agrupados em uma úncia escola, os pensamentos
destes autores, por vezes, é bastante divergente.
É possível afirmar, com escólio em Celso Campilongo, que a teoria da
mobilização dos recursos implica um olhar para dentro dos movimentos sociais,
pois questiona que recursos materiais, financeiros, humanos e de infraestrutura
estão disponíveis para a mobilização coletiva. Ao contrário, a teoria dos novos
movimentos sociais direciona um olhar para fora dos movimentos sociais, pois
está presente a preocupação em identificar as mudanças no padrão do conflito
social, que se torna fragmentário em uma sociedade moderna, abordando dife-
rentes temas de interesse8.
Na teoria marxista ortodoxa, é a infraestrutura econômica que determina
a superestrutura ideológica, ou seja, são os componentes econômicos de uma
sociedade, especialmente a divisão social do trabalho, o modo de produção de bens
materiais e a divisão dos resultados desta produção que determinam o modo de
pensar desta sociedade (a ideologia predominante), além de determinar o modo
de viver dos seus membros. A teoria dos novos movimentos sociais representa
uma crítica a esta visão tradicional do marxismo, sob fundamento de que esta
concepção limita a compreensão do indivíduo, que passa a ser mero reflexo das
condições materiais em que vive. É mister destacar, contudo, que Alain Touraine,
eminente teórico dos novos movimentos sociais, rejeita a visão ortodoxa, mas
não a tradição histórico-humanista; por esta razão, a sua fundamentação teórica
também pode ser denominada de neomarxismo.
A Teoria dos Novos Movimentos Sociais, que em certa medida se
aproxima da Teoria dos Sistemas de Luhmann9, surge a partir da constatação
8 
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012, p. 12.
9 
Segundo Celso Campilongo, o enfoque sistêmico, apesar de pouco conhecido, influenciou fortemente os
trabalhos de importantes teóricos dos movimentos sociais, como Claus Offe, Jurgen Habermas e Alberto
Melucci. Vide CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito e movimentos sociais. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012, p. 19-20. Deste entendimento também não discrepa Marcelo Neves, ao afirmar
que “é inegável, entre os discípulos de Habermas, mesmo aqueles ‘à esquerda’, como Hauke Brunkhorst,
mas também defensores ferrenhos da Teoria do Discurso, como Klaus Gunther, a influência maior ou
menor da obra de Luhmann”. NEVES, Marcelo. A teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. Plural

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

de que os movimentos sociais, tal como os conhecemos hoje, são um fenô-


meno relativamente recente, ou seja, começaram a eclodir a partir de 1968.
No século XIX, embora já existissem movimentos sociais, os seus principais
atores eram os sindicatos, que veiculavam insatisfações relacionadas à luta
de classes através de programas de governo, em geral, de longo prazo. Ao
revés, os atuais movimentos sociais são imediatistas, buscam soluções de
curto prazo, e estão focados em problemas particularizados e cuja temática
é variadíssima, em face da própria complexidade da sociedade pós-indus-
trial. Não há espaço, na modernidade líquida conceituada por Bauman10,
para reivindicações que tenham um projeto de mudança global da sociedade
ou do modo de produção capitalista como um todo; os novos movimentos
sociais têm bandeiras específicas, que agregam simpatizantes e apoiadores
na medida em que conseguem convencê-los à mobilização. Os conflitos são
direcionados para o Poder Judiciário, órgão do Poder Estatal que melhor se
adapta à sua fragmentariedade.
Além da negação do marxismo ortodoxo e, consequentemente, do sujeito
histórico predeterminado, a Teoria dos Novos Movimentos Sociais também pode
ser caracterizada pela centralidade da política no âmbito das relações microsso-
ciais e culturais, com a recusa da cooperação com as instituições sociais formais;
a organização e a proliferação dos novos movimentos sociais estão relacionadas
com crise de credibilidade dos canais convencionais de participação política.
Na corrente italiana, Alberto Melucci confere ênfase ao conceito de identidade
coletiva, fazendo ressurgir o enfoque psicossocial aos movimentos sociais e a
teoria da ação coletiva. Os novos movimentos sociais se organizam de modo
difuso, segmentado e descentralizado, não havendo uma hierarquia entre seus
membros, mas uma rede de comunicações.
Em síntese, a complexidade da sociedade contemporânea demanda novas
respostas para problemas inéditos, de sorte que a Teoria dos Sistemas, de Niklas
Luhmann, oferece um aporte teórico indispensável para a compreensão dos
movimentos sociais que eclodiram a partir de 1968 e que desde então exercem
papel central nas democracias ocidentais. As correntes tradicionais acerca dos
movimentos sociais não oferecem respostas satisfatórias a todas as questões que
cercam o fenômeno material; por esta razão, torna-se imprescindível um novo
enfoque sociológico para explicação dos novos agrupamentos e mobilizações
sociais, bem como para o deslinde das suas principais questões.

Revista de Ciências Sociais, São Paulo, USP, vol. 11, p. 121-133, 2004. Entrevista realizada por Rômulo
Figueira Neves.
10 
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2012, p. 9-15.

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DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

3. PARADIGMAS DA TEORIA DOS SISTEMAS

Em meados dos anos 70, surge uma nova concepção, nas ciências bio-
lógicas, para explicação do fenômeno da vida. Esta tese, denominada de teoria
dos sistemas, foi sustentada pelo neurobiólogo Humberto Maturana e pelo
biólogo e filósofo Francisco Varela, ambos chilenos. Conquanto alguns autores
se reportem a uma adaptação desta teoria para as ciências sociais, o fato é que
houve uma verdadeira evolução da concepção inicial, com algumas rupturas
metodológicas.
Com efeito, a sociologia jamais seria a mesma após o advento da complexa
teoria dos sistemas idealizada por Luhmann, em face da sua envergadura teórica
e genialidade para explicação da complexidade contemporânea. Antes, porém,
da investigação acerca de sua contribuição para a teoria dos movimentos sociais,
é mister um prévia e sintética explanação acerca dos principais elementos da
teoria dos sistemas, a fim de possibilitar a compreensão das inovações carreadas.
É mister gizar, inicialmente, que a teoria dos sistemas é caraterizada
pela universalidade, ou seja, por pretender explicar todos os fenômenos sociais
através de uma única tese, o que está na contramão do pensamento sociológico
tradicional, que não acredita em uma única teoria que seja capaz, de modo
idôneo e eficaz, de açambarcar todo o universo fenomenológico da sociedade.
Com este desiderato, a teoria dos sistemas estará sempre calcada na abstração
e complexidade, bem como na utilização de uma terminologia própria. Assim,
o ideário sistêmico «buscou um aporte universal, que superasse a estreiteza da
conexão entre micro e macro, e alcançasse maior precisão conceitual»11.
A interdisciplinaridade é também uma característica muito forte da teoria
dos sistemas, porquanto muitos dos seus paradigmas conceituais serão trazidos
das ciências naturais, em especial a biologia, mas também da cibernética e da
neurofisiologia.
Ao mesmo tempo, é preciso que o intérprete se desnude em relação a
alguns preconceitos, oriundos da sociologia tradicional, para compreender a
obra de Luhmann. Em primeiro lugar, a teoria dos sistemas afirma que o ser
humano não é parte integrante da sociedade. Em verdade, a sociedade é um
sistema composto apenas por comunicação, estruturado com base na diferen-
ciação funcional:
Para a antiga tradição europeia da filosofia social e da
filosofia do direito era evidente que o homem encontrava
sua liberdade e sua virtude, sua sorte e seu direito enquanto
11 
NEVES, Clarissa Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (Coords.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos
sistemas. Porto Alegre: EDUFRGS, 1997, p. 17.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

parte viva da sociedade também viva. A sociedade era


vista como associação de homens concretos, muitas vezes
explicitamente chamada de corpo social. Era exatamente
por consistir de homens que ela apresentava seu huma-
nismo evidente e abrangente, e sua pretensão moral [...]
os desenvolvimentos mais recentes da teoria sociológica de
sistemas força o rompimento de tais concepções. O sistema
social, enquanto sistema estruturado de ações relaciona-
das entre si através dos sentidos, não inclui, mas exclui o
homem concreto. O homem vive como um organismo
comandado por um sistema psíquico (personalidade). As
possibilidades estruturalmente permitidas para esse sis-
tema psíquico-orgânico não são idênticas às da sociedade
enquanto sistema social12.
O segundo preconceito a ser abandonado é a concepção de que as socie-
dades possuem delimitações espaciais rígidas. Na teoria dos sistemas, sendo a
sociedade um sistema de comunicação, não existem mais fronteiras, e toda a
comunicação social mundial faz parte de um mesmo sistema.
Desenvolvendo em outro aspecto sua teoria, Luhmann afirma que existem
quatro tipos de sistema: não vivo, vivo, social e psíquico. Estes sistemas, contudo,
não produzem nada de concreto, material ou que ocupe espaço físico. Assim, os
sistemas não vivos nada produzem, pois dependem do ambiente para sua criação
e para sua manutenção. Já os sistemas vivos produzem reações vitais; os sistemas
sociais produzem comunicação, e os sistemas psíquicos produzem consciência
ou pensamento13. Destarte, a sociedade é um sistema social que produz apenas
comunicação entre seus elementos e seus subsistemas. Essas comunicações,
então, servem-se de um processo circular e interativo (abandona-se a ideia de
hierarquia), onde cada elemento mantém uma relação com um outro, dotando
este sistema de organização funcional.
A autopoiese significa a capacidade que um determinado sistema possui
de elaborar, a partir de si mesmo, sua estrutura e os elementos de que se compõe.
São sistemas que produzem e reproduzem seus próprios elementos. Segundo a
teoria dos sistemas, apenas os sistemas não vivos não são autopoiéticos; todos
os demais possuem esta característica.
A autopoiese, por seu turno, deriva de um conceito mais amplo e mais
sofisticado, que é o fechamento operacional dos sistemas. Será buscada uma
explicação do fenômeno com espeque na biologia.
12 
LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 169.
13 
São exemplos de sistemas vivos o corpo humano, um animal, um órgão vivo, uma célula, etc. São sistemas
sociais a própria sociedade e seus subsistemas, tais como o Direito, a Política, a Economia, a Arte, etc.; sistema
psíquico é a mente humana, com sua personalidade e idiossincrasias.

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DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

Na teoria dos sistemas, é possível construir a metáfora de que a sociedade


assemelha-se, em seu funcionamento, a uma célula animal. Assim como a célula
possui uma membrana plasmática, que a distingue do ambiente em que se
encontra, também a sociedade tem uma delimitação própria, que são os limites
do sistema de comunicação produzidos pela própria sociedade. Do mesmo modo,
assim como a membrana plasmática da célula não fecha o sistema em relação
ao meio ambiente, também os limites do sistema social não são fechados, mas
operacionalmente fechados, e este advérbio faz toda a diferença, pois é a garantia
de sobrevivência do sistema.
O sistema social produzirá diversas comunicações, de modo autopoiético, e
assim que estas comunicações atingirem um certo grau de complexidade, haverá
uma auto-organização do sistema, que não admite uma complexidade tão grande,
a fim de se subdividir, criando assim os denominados subsistemas sociais, que
por sua vez permanecerão com algumas características do sistema originário:
serão sistemas autopoiéticos de comunicação. Segundo José Engracia Antunes:
A Sociedade aparece concebida como um sistema auto-
poiético de comunicação, ou seja, um sistema caracterizado
pela organização auto-reprodutiva e circular de actos de
comunicação. Ora, LUHMANN sustenta que a partir
desse circuito comunicativo geral e no seio do sistema
social, novos e específicos circuitos comunicativos se vão
gerando e desenvolvendo: logo que estes circuitos emer-
gentes atinjam um determinado grau de complexidade e
perficiência na sua própria organização auto-reprodutiva
- o que pressupõe a emergência de um código biná-
rio específico que guie as operações auto-reprodutivas
sistémicas -, eles autonomizam-se do sistema social geral,
originando subsistemas sociais autopoiéti-
cos de segundo grau. Assim, por exemplo, o sistema
jurídico tornou-se num subsistema social funcionalmente
diferenciado graças ao desenvolvimento de um código
binário próprio (“legal/ilegal”): é esse código que, operando
como centro de gravidade de uma rede circular e fechada
de operações sistémicas, assegura justamente a originária
auto-reprodução recursiva de seus elementos básicos e a
sua autonomia em face dos restantes subsistemas sociais14.
Destarte, o sistema social se subdivide, assim como a célula animal15,
em unidades especializadas, denominadas de subsistemas sociais: o Direito, a
14 
ANTUNES, José Engracia. Prefácio. In: TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. XIII.
15 
A célula animal também tem órgãos especializados em determinadas funções: mitocôndrias, complexo
de Golgi, lisossomas, lipossomas, etc.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Política, a Economia, dentre outros. Cada um destes subsistemas funcionará


como ambiente para os demais, pela própria conceituação da diferenciação
sistema/ ambiente.
Na dicção do próprio Luhmann, autopoiese e auto-organização são
conceitos fundamentais derivados do axioma do encerramento operativo:
O axioma do encerramento operativo leva aos dois pontos
mais discutidos na atual Teoria dos Sistemas: a) auto-or-
ganização; b) autopoiesis.
[...]
Auto-organização significa construção de estruturas pró-
prias dentro do sistema. Como os sistemas estão enclausura-
dos em sua operação, eles não podem conter estruturas. Eles
mesmos devem construí-las; por exemplo, numa conversa, o
que se disse por último é o ponto de apoio para dizer o que
se deve continuar dizendo; assim como o que se percebe
no último momento constitui o ponto de partida para o
discernimento de outras percepções. A presença corporal
em um espaço específico é o eixo fundamental para captar
a normalidade da continuidade da percepção. Portanto, o
conceito de auto-organização deverá ser entendido, primei-
ramente, como produção de estruturas próprias, mediante
operações específicas.
Autopoiesis significa, ao contrário, determinação do estado
posterior do sistema, a partir da limitação anterior à qual
a operação chegou.
Somente por meio de uma estruturação limitante, um sis-
tema adquire a suficiente direção interna que torna possível
a autorreprodução16.
Retornando à metáfora, é possível afirmar que, da mesma maneira que
a célula animal, a sociedade não pode funcionar fora dos limites do sistema,
pois isto a tornaria parte do ambiente e, por conseguinte, perderia a sua autor-
referencialidade, a sua percepção de que é algo distinto do próprio ambiente.
Do mesmo modo, o ambiente não pode funcionar dentro do sistema, pois isto
também acarretaria a desintegração deste último. Assim, a relação entre o sis-
tema e o ambiente é de diferenciação e de irritação: o ambiente, que é sempre
muito mais complexo do que o sistema, possui determinados elementos que,
de acordo com a auto-organização do sistema (seu código binário), podem ou
não provocar a irritação do sistema. Em verdade, esta forma de explicação é
pouco precisa, porque rigorosamente não é o ambiente quem irrita o sistema,
mas o sistema que se irrita, de acordo com as informações de sentido que ele
16 
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p. 112-113.

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DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

mesmo produz (e autorreproduz). Destarte, no exemplo de Kunzler17, uma


receita de bolo não irritaria, como regra geral, o sistema jurídico, porquanto as
comunicações que são desenvolvidas no interior do sistema e o sentido que é
atribuído aos elementos externos pelo próprio sistema não a tornariam relevante
para o sistema jurídico.
Outro detalhe de suma importância que aproxima o sistema social de
uma célula é o fato de que o sistema não absorve o elemento externo de maneira
direta, como um input automático e sem filtro: ao revés, o sistema o digere,
metaboliza, adapta às suas necessidades e somente a partir deste ato, em muito
semelhante ao ato de nutrição da célula animal, irá utilizar o elemento externo
em seu proveito. Da mesma maneira, também não há outputs diretos do sistema
para o ambiente, porquanto o sistema não pode operar/ funcionar fora dos seus
limites, não pode trabalhar no ambiente. Por esta razão é possível afirmar que o
sistema nem é aberto e nem é fechado, é operacionalmente fechado, assim como
a membrana plasmática de uma célula é seletivamente fechada.
É o fechamento operacional do sistema que possibilita a sua abertura cog-
nitiva porque, «sob a condição de fechamento operacional, um sistema desenvolve
a própria complexidade e aumenta, nesse sentido, as realizações cognitivas»18.
Dentro destas concepções, deve-se concluir que a mutabilidade é uma
condição de sobrevivência do próprio sistema. Explica-se: o ambiente é sem-
pre muito mais complexo que o sistema. Todavia, o sistema se irrita com os
elementos do ambiente, o que cria novas comunicações e novos paradoxos, o
que obriga o sistema a também se tornar mais complexo - porém, destaque-se
com gravidade, o sistema é sempre menos complexo que o seu ambiente. Se o
sistema fica paralisado e não produz novas comunicações, ou seja, se não produz
novos elementos, tende a se esfacelar e a se homogeneizar como um elemento
do ambiente.
Alguns subsistemas sociais têm uma diferenciação funcional, outros não
a possuem porque não atingiram um nível de complexidade que seja capaz de
conceituá-los nesta categoria. A diferenciação funcional faz com que cada sub-
sistema tenha uma tarefa dentro do sistema social, não podendo ser substituído
por outro. Destarte, o Direito não pode exercer as funções da Política, a Política
não pode exercer as funções da Economia e assim por diante. Cada subsistema,
por conseguinte, é insubstituível no desempenho de suas funções e atribuições,
por isso a diferenciação é denominada de funcional.

17 
KUNZLER, Caroline de Morais. A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Revista Estudos de Sociologia,
v. 9, n. 16, p. 123-136, 2004.
18 
LUHMANN, Niklas. O conceito de sociedade. In: NEVES, Clarissa Baeta; SAMIOS, Eva Machado
Barbosa (Orgs.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: EDUFRGS, 1997, p. 107.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Segundo a teoria sistêmica, pois, o Direito é um subsistema social auto-


poiético de segundo grau, funcional, que trabalha com o binômio lícito/ ilícito
e cujo núcleo institucional é formado pelos Tribunais.
Uma vez explanados todos estes conceitos, e tendo sido arregimentado
todo este manancial teórico, passa-se à análise do papel dos movimentos sociais
na obra de Niklas Luhmann.

4. COMPREENSÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS À


LUZ DA TEORIA DOS SISTEMAS

Na teoria dos sistemas, os movimentos sociais são definidos como subsis-


temas sociais (e, por conseguinte, sistemas de comunicação), autopoiéticos (com
capacidade de autorreprodução dos seus elementos e com auto-organização),
parasitários (porque se desenvolvem dentro dos sistemas funcionais), porém não
funcionais, porquanto não atingiram uma complexidade que os possibilite esta
classificação19. A teoria dos sistemas, destarte, a partir do momento em que
se propõe a ser uma teoria universalista, capaz de explicar diversos fenômenos
sociológicos, não se furta à teorização dos movimentos sociais. É esta teoriza-
ção, por seu turno, que irá contribuir para uma nova concepção do fenômeno,
distinta daquela cristalizada pelas teorias tradicionais.
Subsistemas funcionais operam com valores e contravalores, ou seja, com
um código binário que irá informar todas as suas operações internas. No caso
do Direito, este código binário é lícito/ ilícito; na Política, o código binário é
governo/ oposição; na Economia, é o ter/ não ter ou propriedade/ não proprie-
dade; na Ciência, é o código verdade/ não verdade. Os movimentos sociais, por
não serem sistemas funcionais, não têm um código binário, pois lhes falta um
mecanismo reflexivo interno análogo. Entretanto, à semelhança dos sistemas
funcionais, também possuem um meio de comunicação: é o próprio tema
escolhido pelo movimento social como bandeira de luta, somado à atitude geral
para a reclamação20.
Para a teoria dos sistemas, a motivação dos participantes do movimento
é irrelevante para a sua conceituação ou caracterização, ao contrário das teo-
rias tradicionais, em especial a teoria da ação coletiva, que foca toda a sua
construção teórica na psicologia dos participantes ou simpatizantes. Pouco
importa, destarte, se a motivação é racional ou é irracional, se é derivada de
causas nobres ou interesses mesquinhos; o que é relevante para a teoria dos
19 
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012, p. 67.
20 
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito e movimentos sociais. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012, p. 69.

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DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

sistemas é a estrutura, conformação e operacionalização dos movimentos


sociais, em suas relações como sistema de comunicação autopoiético, em face
dos demais sistemas sociais.
Impende gizar que os alvos dos movimentos sociais são as lacunas, as
inconsistências, as perversões, os paradoxos e o mau funcionamento dos siste-
mas funcionais. Em outras palavras, todo sistema funcional, ao operar, produz
paradoxos e contradições, e por vezes não resolve adequadamente o problema
a que propôs resolver. É precisamente neste aspecto que os movimentos sociais
vão focar a sua atenção, elegendo como bandeira de luta um problema mal
resolvido ou simplesmente esquecido pelo sistema funcional.
Os movimentos sociais, diferentemente do Direito e de outros sistemas
funcionais, são considerados um procedimento moderno para selecionar e tratar
as contradições e os conflitos relevantes da sociedade e tidos como os principais
impulsionadores das mudanças nas estruturas operativas do sistema21.
Os movimentos sociais, apesar de serem sistemas de comunicação, não
podem ser definidos como sistemas de organização, muito menos de integra-
ção, na dicção de Luhmann. Organizações como o Green Peace pressupõem
uma estrutura hierarquizada, com um número de pessoas que não pode ser
ultrapassado, sob pena de produção de caos e tumulto e, consequentemente,
esfacelamento da própria organização, possuindo uma atuação com objetivos
claros e específicos a serem alcançados. Os movimento sociais, ao revés, não têm
estrutura organizada: embora existam aquelas pessoas que estão mais à frente
do movimento, não há uma hierarquia entre as funções exercidas, de modo que
todos podem fazer tudo, sem uma prévia estipulação ou determinação; a sua
estrutura, destarte, é policêntrica e em forma de rede.22 Mas há ainda outras
circunstâncias que os diferenciam ainda mais: não há objetivos específicos e
predeterminados a serem alcançados, de modo que o próprio Luhmann realça
a metáfora de que os movimentos sociais “praticam o princípio de cavalgar
moralmente cavalos selvagens”, no sentido de que os movimentos sociais, assim
como os cavalos selvagens, não sabem para onde estão indo - apenas seguem o
seu instinto e partem em desabalada carreira, sem um itinerário ou fim colimado.
Também ao contrário das organizações, os movimentos sociais necessitam de
um número infinito de pessoas, pois o compromisso e a responsabilidade com
a mobilização é muito superficial, de modo que há uma necessidade constante
de renovação dos participantes.

21 
SOBOTTKA, Emíl Albert. Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social. In: RODRI-
GUES, L.; MENDONÇA, D.. Ernesto Laclau e Niklas Luhmann: pós-fundacionismo, abordagem sistêmica e as
organizações sociais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 123.
22 
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Ciudad del Mexico: Herder, 1997, p. 674-675.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Outrossim, não podem ser caracterizados como movimentos de inte-


gração. Apesar das palavras de ordem de chamado de novos participantes, o
sentido que usam de “estar juntos” não é preciso. Os participantes procuram
soluções de problemas altamente individuais de busca de sentido para suas
existências e de autorrealização pessoal; o enfoque social é sempre feito de
modo precário.
A característica fulcral dos movimentos sociais é o individualismo exa-
cerbado dos seus participantes, que convivem diuturnamente com os paradoxos.
Os membros da mobilização têm necessidade, em uma sociedade em que o
risco impera e a incerteza é o regime, de algo pelo que lutar, de alguma bandeira
ou tema que lhe confira identidade; é por esta razão que os participantes dos
movimentos sociais estão interessados na solução dos próprios problemas de
autorrealização e de busca de um objetivo para suas vidas, conquanto na maioria
das vezes não sejam as pessoas afetadas pelo mau funcionamento do sistema
vergastado. Afirma-se, portanto, que as pessoas mais propensas à participação em
movimentos sociais são os jovens e universitários, o que os torna extremamente
instáveis, em termos de público participante. Eles argumentam como afetados
em favor dos afetados, mas em momento algum são atingidos pelas decisões
tomadas pelo subsistema funcional que criticam.
Movimentos sociais são uma forma específica de diferenciação social que
se baseia na distinção centro/ periferia; todavia, na medida em que na sociedade
moderna já não existe um centro total da sociedade, os movimentos de protesto
se expressam na periferia dos sistemas funcionais que formam um centro (por
exemplo, são sistemas funcionais que formam um centro o Direito, a Política,
a Economia, a Religião, etc).
Ademais, rejeitam a utilização dos meios tradicionais de participação
política, sob o argumento de que a sua bandeira de luta é tão relevante e reclama
providências tão urgentes que não poderiam ser administradas ou discutidas
pelos instrumentos ordinários de reivindicação e negociação vigentes. Esta
característica também se coaduna com o fato de que os movimentos sociais se
enxergam como entes superiores à própria sociedade, com uma melhor visão
do sistema social e, consequentemente, com melhores condições de oferecer
soluções para os problemas enfrentados. Este sentimento de superioridade e,
por que não dizer, de uma certa arrogância e empáfia, conduziu Luhmann a
uma segunda metáfora, na qual afirma que os movimentos sociais são como “o
olhar do diabo”. Assim como Lúcifer, que era o maior anjo da guarda celestial,
pretendeu ser melhor do que Deus e decaiu em sua forma, tornando-se então o
Demônio, os movimentos de protesto, na medida em que olham para sociedade
com superioridade e se consideram melhores do que ela, também “perdem a

<< Retorne ao sumário 308


DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

Deus”23. Todavia, ao contrário de Lúcifer, que decaiu em sua forma, os movi-


mentos sociais se sobrelevam e são considerados como uma das mais modernas
formas de veiculação do protesto.
Para Luhmann, nos movimentos sociais há uma clara preferência pelos
procedimentos reativos, em detrimento dos procedimentos cognitivos. Exige-
-se dos destinatários reação, e não mais esforço por conhecer. Considerando
que esforços por mais informações e por um planejamento seguro do futuro
desperdiçam as energias e adiam as decisões indefinidamente, os movimentos
sociais voltam-se para os procedimentos reativos, que prometem efeitos a serem
alcançados rapidamente. Em outras palavras, os participantes dos movimentos
sociais são pessoas pouco afetas à reflexão e ao discernimento, que não racio-
cinam muito em termos cognitivos sobre os temas defendidos, nem sobre os
procedimentos adotados. Isto não significa, contudo, que o “protestar apenas
por protestar” seja a tônica dos movimentos sociais. Muito ao revés, todo movi-
mento social terá a sua bandeira de luta, o tema pelo qual criticará a sociedade e
exporá os seus defeitos e mazelas. Este tema de luta, por seu turno, pode variar
ao longo do tempo e à medida em que as reivindicações vão sendo incorporadas
aos subsistemas sociais; entretanto, sempre haverá um tema pelo qual deve ser
realizada a mobilização24.
Quanto aos temas dos movimentos sociais, há que se ressaltar a sua
heterogeneidade no século XX, o que os diferencia sobremaneira em relação aos
movimentos sociais do século XIX, que tinham sempre uma feição homogênea.
No século XIX, a temática desenvolvida era, precipuamente, a luta de classes e
a divisão social do trabalho, com referência às condições de vida da classe ope-
rária e à organização fabril. No século XX, os movimentos sociais se deparam
com pessoas fortemente individualizadas, que experimentam suas condições de
vida como um paradoxo e que, portanto, precisam de uma dotação de sentido.
Assim, os movimentos sociais do século XX e XXI trabalham com temas como o
feminismo, o pacifismo, a ecologia, a tolerância sexual e religiosa, dentre outros.
Na ação concreta, essas formas adotam diferentes estratégias, que podem variar
da simples denúncia a marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem
constituída, atos de desobediência civil, etc. Na atualidade, os movimentos sociais
atuam principalmente por meio de redes sociais (locais, regionais, nacionais ou
internacionais), utilizando muito os novos meios de comunicação e informação
ainda não cooptados pelo sistema social, como a internet.
Nos movimentos sociais, não se admite a lógica do pecado, ou seja, a
lógica de que todos nós erramos e somos pecadores (obviamente que uns mais
23 
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Ciudad del Mexico: Herder, 1997, p. 672.
24 
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Ciudad del Mexico: Herder, 1997, p. 677.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

do que outros, mas todos pecadores). Para estas mobilizações sociais, a culpa é
sempre do outro, que não resolve o problema de modo adequado ou o negli-
gencia; o movimento social, portanto, como se considera superior à sociedade,
não comete erros, mas apresenta as soluções mais adequadas e escorreitas para
os problemas, sempre imputando a culpa no outro, jamais admitindo sequer
uma fatia da responsabilidade pelo entorno social.
Êxito e falta de êxito são igualmente fatais para os movimentos sociais.
A transformação exitosa do tema acontece fora do movimento e, no melhor
dos casos, se lhe atribui um “mérito histórico”. Por outro lado, a falta de êxito
desanima os participantes. Talvez este dilema seja a razão pela qual os novos
movimentos sociais buscam contato entre si, simpatizam uns com os outros
- sempre e quando exista como condição mínima uma ideia alternativa, um
protesto e um não identificar-se com os círculos dominantes25.
Segundo o sociólogo, portanto, atualmente os movimentos sociais têm
uma dupla função: fornecer uma autodescrição específica da sociedade moderna
e chamar a atenção para os problemas26. Destarte, funcionam como verdadeiro
sistema imunológico, comparação que também encontra-se lastreada por outros
autores que sufragam a teoria dos sistemas. A contradição, pois, não é vista de
modo pejorativo, ou como algo prejudicial; em verdade, a contradição é ine-
rente ao funcionamento do sistema, é uma reação do sistema contra ele próprio
diante da qual não consegue imediatamente uma cognição ou uma solução. A
contradição introduz um maior nível de insegurança e incerteza no sistema, pois
aumenta a complexidade do sistema ao permitir um excesso de possibilidades
em uma situação de pressão por seleção. Por conseguinte, o paradoxo é instável
e não pode ser reproduzido indefinidamente - esta é a razão da necessidade de
sua diferenciação, como subsistema específico de comunicação. Este sistema é,
especificamente, o conflito social.
As contradições se diferenciam como subsistema social dentro de cada
um dos sistemas funcionais (e, por esta razão, são denominados de sistemas
parasitários) e disparam o “alarme” da necessidade do sistema funcional reduzir
a complexidade, ou seja, operar em torno daquele tema suscitado. A solução
para o conflito, portanto, é dada não por suas comunicações internas, mas pelo
seu sistema funcional hospedeiro, que em verdade se constitui em seu ambiente.
A alternativa para os conflitos que não são absorvidos pelos procedimento é
organizar-se enquanto protesto. O movimento social “dispara o alarme” por
mudanças dentro do sistema funcional - por esta razão, é possível equipará-lo

25 
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Ciudad del Mexico: Herder, 1997, p. 680-681.
26 
LUHMANN, Niklas. Systemtheorie und Protestbewegungen. In: HELLMANN, Kai-Uwe. Protest.
Systemtheorie und soziale Bewegungen. Berlim: Suhrkamp, 1996, p. 192-194.

<< Retorne ao sumário 310


DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

a um sistema imunológico, que também possui macrófagos responsáveis por


convocar todas as células para o ataque do agressor biológico, físico ou químico.
Destarte, os movimentos sociais têm a função de chamar a atenção, de atrair
visibilidade para um determinado problema, que ainda não foi observado ou, se o
foi, ainda não foi solucionado pelo sistema funcional no qual reside como parasita.
No entendimento de Bachur, contudo, esta conclusão não deve ser con-
fundida com uma ratificação da teoria da ação comunicativa de Habermas:
Com isso não se deve fazer uma leitura habermasiana
de Luhmann: contradições e conflitos sociais não prote-
gem os sistemas funcionais contra o dissenso, a rejeição
da comunicação e a extrema frustração de expectativas;
contradições e conflitos não protegem as estruturas dos
subsistemas funcionais contra a mudança - ao contrário:
prevêem uma espécie de sistema imunológico que protege
tanto a autopoiese desses subsistemas funcionais quanto a
autopoiese da sociedade, e isso mesmo ao custo da alteração
estrutural da sociedade - a sociedade se altera, ainda que para
permanecer a mesma27.
Destarte, a convivência com contradições e paradoxos é ínsita ao próprio
sistema, que a partir deles evolui e se diferencia.

5. CRÍTICA À TEORIA DOS SISTEMAS

Como toda e qualquer teoria sociológica, ainda mais com a pretensão de


universalidade, a teoria de Luhmann foi alvo de inúmeras críticas, que merecem
ser superadas. A principal crítica, talvez decorrente da sua incompreensão, é a
de que a teoria é anti-humanista, pois exclui o ser humano da sociedade e o
torna um ente à parte das relações intersubjetivas. Em verdade, não há que se
cogitar de exclusão do ser humano da teoria dos sistemas, muito ao contrário:
segundo Luhmann, o homem é um problema para a sociedade e a sociedade é
um problema para o homem, porque se constituem em sistemas diferentes que
se irritam mutuamente. É evidente que não pode haver sociedade (pois não
pode haver comunicação) sem que haja o homem. O homem é uma condição
de possibilidade da comunicação e da sociedade.
Outra crítica veemente dirigida à teoria dos sistemas reside em afirmar
que ela traz como caudatário a neutralização moral dos sistemas sociais. Com
efeito, a teoria não se preocupa com os conteúdos valorativos das comunicações

27 
BACHUR, João Paulo. Distanciamento e crítica: limites e possibilidade da teoria de sistemas de Niklas Luhmann.
2009. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Univer-
sidade de São Paulo, São Paulo, p. 279.

<< Retorne ao sumário 311


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

que circulam no sistema, mas apenas se reporta ao funcionamento destes e à


sua operatividade. Entretanto, a crítica também não procede, na medida em
que, como explanado, os subsistemas sociais se constituem em ambiente uns
dos outros, e seus elementos provocam a irritação em seus pares. Destarte, os
movimentos sociais serão irritados pelos valores que emergirão do sistema
social, e terão de se modificar, sob pena de fenecer. Por esta razão, a justiça, a
ética e os demais valores morais não são indiferentes para a teoria dos sistemas,
pois exsurgem do sistema social como comunicação e provocam mudanças e
paradoxos nos subsistemas sociais.
A grande contribuição da teoria sistêmica reside em demonstrar que
modelos simplistas de descrição, esclarecimento ou justificação da sociedade
devem ser descartados, pois a complexidade da sociedade moderna os torna
inadequados e inaptos, como instrumento da sociologia, para explicações mais
aprofundadas. Toda e qualquer teoria que pretenda explicar a sociedade moderna
tem de se submeter ao imperativo de um mundo policêntrico e policontextual.

6. CONCLUSÃO

A partir do estudo das teorias acerca dos movimentos sociais que mais
adeptos angariaram, é possível afirmar a insuficiência paradigmática destas
para explicação do fenômeno. Destarte, é imperiosa a conclusão de que a teo-
ria dos sistemas, de Niklas Luhmann, que define os movimentos sociais como
subsistemas sociais autopoiéticos, não funcionais e parasitários, é a que melhor
se coaduna com a complexidade atual da sociedade polimórfica e policêntrica,
fornecendo um aporte teórico mais consistente e com maior densidade que os
seus predecessores.

REFERÊNCIAS

ALONSO, Ângela. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate. Lua


Nova, São Paulo, n. 76, p. 49-86, 2009.
ANTUNES, José Engracia. Prefácio. In: TEUBNER, Gunther. O direito como sistema
autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
BACHUR, João Paulo. Distanciamento e crítica: limites e possibilidade da teoria de sistemas
de Niklas Luhmann. 2009. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2012.

<< Retorne ao sumário 312


DA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do direito e movimentos sociais. Rio


de Janeiro: Elsevier, 2012.
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais - paradigmas clássicos e contem-
porâneos. São Paulo: Loyola, 2011.
KUNZLER, Caroline de Morais. A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Revista
Estudos de Sociologia, v. 9, n. 16, p. 123-136, 2004.
LEE, Alfred McClung. New outline of the principles of sociology. New York: Barnes &
Noble, 1951.
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Ciudad del Mexico: Herder, 1997.
_________________ Systemtheorie und Protestbewegungen. In: HELLMANN,
Kai-Uwe. Protest. Systemtheorie und soziale Bewegungen. Berlim: Suhrkamp, 1996.
_________________ Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
_________________ Introdução à teoria dos sistemas. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
_________________ O conceito de sociedade. In: NEVES, Clarissa Baeta; SAMIOS,
Eva Machado Barbosa (Orgs.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre:
EDUFRGS, 1997.
NEVES, Clarissa Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (Coords.). Niklas Luhmann:
a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: EDUFRGS, 1997.
NEVES, Marcelo. A teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. Plural Revista de
Ciências Sociais, São Paulo, USP, vol. 11, p. 121-133, 2004.
SOBOTTKA, Emíl Albert. Sem objetivo? Movimentos sociais vistos como sistema social.
In: RODRIGUES, L.; MENDONÇA, D.. Ernesto Laclau e Niklas Luhmann: pós-fun-
dacionismo, abordagem sistêmica e as organizações sociais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
STAGGENBORG, Suzanne. Social Movements. Oxford: Oxford University Press. 2011.

<< Retorne ao sumário 313


AS FORMAS DE VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER NO
AMBIENTE DO TRABALHO

Yanka Vidal Brito de Mendonça1


Semírames de Cássia Lopes Leão2

Resumo: O presente artigo busca analisar as manifestações de violência contra a


mulher no ambiente do trabalho. Para tanto, analisa-se o que seria a violência de
gênero, quais são seus tipos, como elas são praticadas no ambiente do trabalho, e,
ao final, são sugeridos mecanismos de defesa para o combate desta problemática
e por fim, considerações finais acerca da importância desta discussão. Utilizou-
-se a revisão bibliográfica como metodologia, explorando o assunto através da
pesquisa de artigos, cartilhas e estudos estatísticos. Após breve análise, propõe-se
maior conscientização acerca do tema suscitado, com o intuito de combater, ao
máximo, práticas que atentem contra a dignidade psicológica, moral e sexual da
mulher, que tem o direito ao meio ambiente do trabalho adequado.

Palavras-chave: Gênero, relações de trabalho, violência, ambiente do trabalho,


mulheres.

Abstract: This article seeks to analyze the manifestations of violence against


women in the workplace. Therefore, it analyzes what gender violence would
be, what are its types, how they are practiced in the workplace, we presente
defense mechanisms to combat this problem and finally, final considerations
about the importance of this discussion. Bibliographic review was used as a
methodology, exploring the subject through research of articles, booklets and
statistical studies. After a brief analysis, this study proposes greater awareness
of the issue raised, with the aim of repressing, as much as possible, practices

1 
Discente do 9º período do curso de Bacharelado em Direito do UNIFAMAZ – Centro Universitário
Metropolitano da Amazônia. Email: mendoncayanka@gmail.com.
2 
Advogada. Professora da Graduação do Curso de Direito e de Pós-graduação. Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA). Especialista em Direito e Processual do Trabalho pela Uni-
versidade da Amazônia (UNAMA). Pós-graduanda em Direito Previdenciário. Bacharel em Direito pelo
Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual
(IBDP). Email: semiramesleao@hotmail.com.

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AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DO TRABALHO

that threaten the psychological, moral and sexual dignity of women, who have
the right to the proper work environment.

Keywords: Genre, work relationships, violence, work environment, women.

1. INTRODUÇÃO

A violência de gênero é uma problemática recorrente, e se estende a


vários ambientes de convívio social. No que se refere ao ambiente laboral, não
há diferença nesta premissa. As noções de profissões e funções relacionadas ao
homem e a mulher não são equiparadas, e há uma clara distinção social quanto
a elas, bem como em relação as pessoas naturalmente inclinadas a exercerem
os cargos de tais profissões.
As funções “masculinas” estão intimamente ligadas ao exercício de pro-
fissões de maior prestígio social, em cargos em que se verifica uma figura de
poder, enquanto as funções femininas estão ligadas aos padrões de “feminilidade”,
ligadas ao seio familiar e doméstico, com funções ligadas à realização de tarefas
domésticas, ao cuidado e assistência, realizando o que a doutrina trabalhista
denomina de “Trabalho Reprodutivo”. Acerca dessa temática, muito bem ensina
MELO e CASTILHO (2009, p. 137):
“O trabalho reprodutivo tem um grande significado para
o bem-estar do ser humano. Porém, como não tem caráter
mercantil, é ignorado pelas ciências econômicas e desvalo-
rizado pela sociedade, que dele depende para se reproduzir.
Assim, a divisão sexual do trabalho está no cerne da argu-
mentação do pensamento feminista sobre as diferenças
entre o papel feminino e o masculino”.
Portanto, quando há a inversão dos papéis estabelecidos conforme os
costumes sociais, há estranheza, e, consequentemente, diversas são as reações
quanto a ocupação de espaços sociais anteriormente não considerados como
pertencentes ao gênero feminino.
O presente trabalho se propõe a analisar quais são os tipos de violência
contra a mulher no ambiente do trabalho, e, para tanto, utilizou-se a metodologia
da revisão bibliográfica através da leitura de cartilhas informativas e de artigos
científicos que tratassem sobre o tema supracitado.
A discussão acerca deste tema demonstra sua importância quando obser-
vamos que as mulheres representam 54,5%3 do mercado de trabalho brasileiro,
3 
Pesquisa realizada pelo IBGE no ano de 2019 denominada “Estatísticas de gênero: indicadores sociais
das mulheres no Brasil”. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-03/estudo-

<< Retorne ao sumário 315


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

portanto, detém significativa importância na economia nacional, sendo funda-


mental que estas mulheres tenham acesso ao meio ambiente do trabalho adequado
que seja livre de qualquer tipo de violência ou discriminação em razão de gênero.

2. O QUE É VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER?

2.1. Conceito

A definição abordada pela Lei 11.340/2006, ou como é conhecida, a Lei


Maria da Penha, trata da violência doméstica e familiar, e dispõe da seguinte forma
em seu art. 5º, caput: “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica
e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que
lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial”. Além disso, em seu art. 7º, a referida lei elenca quais são as formas
de violência perpetrada contra a mulher, em seus incisos I a V. Pois bem, para o
presente trabalho, a análise dos incisos II e V são de fundamental importância
para a posterior análise das formas de manifestação da violência contra a mulher
no espaço laboral, uma vez que tratam da violência moral e psíquica. De acordo
com a definição elencada no inciso II desta lei, violência psicológica é:
“[...] qualquer conduta que lhe cause dano emocional e
diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe
o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar
suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isola-
mento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto,
chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer
outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação”.
Dessa forma, a violência psicológica relaciona-se com o crime de assédio
assim tipificado pelo Código Penal em seu art. 216-A, que aponta a configura-
ção do delito na hipótese de constrangimento por parte de superior hierárquico
com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se do
exercício de sua função no trabalho. Ademais, a título de complementação, assim
define Filho (2001) acerca do assédio sexual: “Assédio sexual é toda conduta de
natureza sexual não desejada que, embora repelida pelo destinatário, é continua-
damente reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual”. Pode-se extrair, portanto,
que o assédio verificado nas relações de trabalho guarda relação com o conceito
desenvolvido pela Lei Maria da Penha em relação à violência psicológica e sexual,
-revela-tamanho-da-desigualdade-de-genero-no-mercado-de-trabalho. Acesso em 24 de fevereiro de 2022.

<< Retorne ao sumário 316


AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DO TRABALHO

por ter similaridades quanto ao constrangimento sofrido, neste caso, pela mulher
no ambiente de trabalho, e, além disso, através da leitura do caput do art. 216-A, o
ato de constrangimento com o intuito de receber favorecimento sexual, utilizan-
do-se, para tanto, de cargo ou função de superior hierárquico na relação laboral,
caracterizando, assim, grave violência psicológica, moral e sexual a mulher.
Para além dos termos definidos pelo Código Penal, a Consolidação das Leis
Trabalhistas, em seu art. 483, também trata do assédio, mas mais especificamente
do que se conhece como assédio moral. O assédio moral ocorre quando forem
exigidos serviços superiores às forças do empregado, defesos por lei, contrários
aos bons costumes, ou alheios ao contrato; quando o empregado é tratado com
rigor excessivo ou até mesmo quando há ofensa física, dentre outros previstos
em lei. Essa conduta acarreta na rescisão indireta do contrato de trabalho, pois
o empregador enseja a rescisão do contrato.
A respeito da violência moral, dispõe o inciso V que seria qualquer con-
duta que configure calúnia, difamação ou injúria. Mas vamos além, para fins de
definição acerca do assédio moral para o presente trabalho, utilizamos a definição
do extinto Ministério do Trabalho, através do artigo da Secretária Nacional da
Mulher Trabalhadora da CUT, Rosane Silva (2014), que assim dispõe:
“O assédio moral e sexual são atos cruéis e desumanos que
caracterizam uma atitude violenta e sem ética nas relações
de trabalho praticada por um ou mais chefes contra seus
subordinados. Trata-se da exposição de trabalhadoras e
trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e
humilhantes durante o exercício de sua função. Esses atos
visam humilhar, desqualificar e desestabilizar emocional-
mente a relação da vítima com a organização e o ambiente
de trabalho, o que põe em risco a saúde, a própria vida da
vítima e seu emprego”.
Portanto, a mera exposição a situações que causem desconforto a mulher,
prejudicando sua saúde emocional, e, por conseguinte, tornando o ambiente de
trabalho e as relações interpessoais lá construídas como algo detestável, caracte-
rizam, para o presente trabalho, a violência moral, e, portanto, o assédio moral.

2.2. Os tipos de violência contra a mulher

Como exposto, a Lei 11.340/06 trata de cinco tipos de violência contra a


mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. A violência psicológica
e moral foram objeto de maior análise no item anterior, entretanto, é mister
salientar que, em sua forma generalista, a violência contra a mulher se manifesta
em todas as formas elencadas pelo legislador em âmbito social, e, apesar do

<< Retorne ao sumário 317


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

objeto do trabalho seja analisar as formas de violência ocorridas no ambiente


de trabalho, não é responsável socialmente não discutir brevemente as outras
formas de violência contra a mulher, visto que estas podem, mesmo com menor
frequência, ocorrer na seara laboral.
A violência física, constante no inciso I, é definida como qualquer con-
duta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher. A exemplo disso,
segundo o Instituto Maria da Penha, verificamos a existência desta violência
através de espancamentos; tortura; lesões provocadas por objetos perfurocor-
tantes; ferimentos causados por arma de fogo, entre outros.
A violência sexual (inciso III) é qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força. A título exemplificativo, temos o
estupro e a obrigatoriedade da realização de atos sexuais que causem repulsa ou
desconforto para a mulher. Entretanto, a lei vai adiante. Ensina que também é
violência sexual a indução a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua
sexualidade; o impedimento de uso qualquer método contraceptivo ou que a
force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou a limitação/anulação do exercício de
seus direitos sexuais e reprodutivos.
A violência patrimonial, inciso IV, consiste na conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômi-
cos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. A exemplo, temos
o controle do dinheiro recebido pela mulher, a título salarial; a destruição de
documentos pessoais ou danos causados a objetos dos quais detém grande valor
a mulher e a privação de bens, valores ou recursos econômicos.
Todos os tipos de violência citados neste item e no item anterior são frutos
de uma cultura patriarcal discriminatória. Como não é objeto deste artigo a dis-
cussão acerca das formas de violência de forma generalista sofridas pela mulher
em sociedade, ou dos motivos sociais, históricos e culturais que motivaram a
existência desta questão, estimula-se a reflexão acerca desta problemática, bem
como a conscientização das mudanças necessárias de postura social que são
devidas para a alteração deste cenário prejudicial às mulheres.

3. FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO


AMBIENTE DE TRABALHO

O item 3 irá tratar de algumas das formas de violência contra a mulher no


meio laboral, utilizando-se, para tanto, de cartilhas como “O ABC da Violência

<< Retorne ao sumário 318


AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DO TRABALHO

contra a Mulher no Trabalho”, elaborado pelo Grupo de Trabalho de Gênero


(GT-Gênero) da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade e Combate à
Discriminação no Trabalho – COORDIGUALDADE e de membros da Câmara
de Coordenação e Revisão, ambos do Ministério Público do Trabalho, e “Violência
contra a Mulher no Trabalho”, informativo elaborado pelo TRT da 13ª Região
através do Comitê Gestor da Igualdade de Gênero, entre outros documentos.

3.1. Assédio moral

O assédio moral é definido pelo Ministério Público do Trabalho


(2018) como:
“[...] condutas abusivas, reiteradas e sistemáticas, mani-
festadas por meio de comportamentos, palavras, gestos
e agressões leves, que interferem na dignidade humana e
direitos fundamentais das vítimas (liberdade, igualdade e
direitos de personalidade de outrem), por meio da humi-
lhação e constrangimento, e que resulta em prejuízo às
oportunidades na relação de emprego ou na expulsão da
vítima de seu ambiente de trabalho”.
Assim também define o Senado Federal através da Cartilha “Assédio
Moral e Sexual no Trabalho”:
O assédio moral consiste na repetição deliberada de ges-
tos, palavras (orais ou escritas) e/ou comportamentos que
expõem o/s servidor/a, o/a empregado/a ou o/a estagiário/a,
ou ainda, o grupo de servidores/as ou empregados/as, a
situações humilhantes e constrangedoras, capazes de lhes
causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade
psíquica ou física, com o objetivo de excluí-los/las das suas
funções ou de deteriorar o ambiente de trabalho.
Dessa forma, podemos entender que o assédio moral se configura através
da: prática de conduta atentatória ao princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana; repetição contínua desta conduta de forma deliberada; e o ine-
quívoco prejuízo na relação laboral, que poderá acarretar, por vezes, o prejuízo
à saúde física e psíquica do empregado.
O assédio pode ocorrer tanto em uma relação horizontal – empregados de
mesma função e nível hierárquico – quanto vertical – o chefe/superior hierárquico
pratica o assédio em desfavor de um empregado de hierarquia inferior. Importante
mencionar que, no assédio propalado de maneira vertical, por existir uma relação
de poder pré-existente, o empregado poderá se sentir incapacitado para realizar as
suas funções laborais, e, a partir disto, obter um desempenho abaixo do desejado,

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

e, ainda, prejudicar sua saúde emocional decorrente de um meio ambiente do


trabalho inadequado, com relações interpessoais frágeis e baixa produtividade.
Concernente as mulheres, deve-se analisar essa premissa paralelamente
ao dado registrado pela agência de marketing TRIWI no período de 4 a 17
de agosto de 2020 através do estudo “Representatividade das Mulheres nas
Empresas”: Mulheres ocupam cargos de chefia no percentual máximo de 10%
no cenário das empresas brasileiras. Significa dizer que há uma sub-representa-
tividade feminina na perspectiva empresarial brasileira e que, portanto, há uma
facilidade maior de ocorrência do assédio vertical: quando o superior hierárquico
– em regra, homens – praticam o assédio em desfavor, nesse caso, das mulheres.
O assédio vertical, como demonstrado brevemente, causa importantes
consequências na vida do empregado, uma vez que se enquadra em um fator
situacional de uma relação de poder prévia. Ao relacionarmos a baixa ocupação
de mulheres em cargos de liderança e a natural sensação de pertencimento
masculino a cargos de prestígio, temos ainda um maior prejuízo em relação a
mulher, pois: há uma relação de poder entre masculino e feminino no contexto
social, em que a mulher é constantemente questionada acerca da sua competência
por ser não ser vista como igual perante os homens em uma relação de traba-
lho, o que acarreta em maior cobrança feita para as mulheres em comparação
aos homens, fazendo com que o seu desempenho produtivo seja menor que o
esperado, e, dessa forma, a mulher estagna em seu cargo e/ou função, enquanto
os homens permanecem em ascensão profissional. Dessa forma, mantém-se a
narrativa apresentada e não há mudança de cenário.
O assédio moral pode se manifestar de diversas formas, como: constantes
piadas sexistas, perseguições, exposição a situações vexatórias, supervisão exces-
siva, ameaças, exigência de tarefas impossíveis, críticas grosseiras, utilização de
palavras de baixo calão, brincadeiras inapropriadas e isolamentos (Ministério
Público do Trabalho, 2018).
Além disso, pode também ser visto através do impedimento de que uma
empregada gestante compareça a consultas médicas; interferência no planeja-
mento familiar da mulher, impedindo que esta engravide; desconsideração de
recomendações médicas às gestantes na distribuição de tarefas e desconsideração
da opinião técnica da mulher em sua área de conhecimento.

3.2. Assédio sexual

O assédio sexual é crime tipificado pelo art. 216-A do Código Penal, que
dispõe sobre o delito da seguinte forma: Constranger alguém com o intuito
de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua

<< Retorne ao sumário 320


AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DO TRABALHO

condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de


emprego, cargo ou função (BRASIL, 1940). Entretanto, é importante analisar
outras conceituações acerca desta problemática.
Segundo a cartilha do Ministério Público do Trabalho (2018), assédio
sexual seria: a conduta de natureza sexual manifestada por contato físico, palavras,
gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra sua vontade,
causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual.
Para o Tribunal Superior do Trabalho, o assédio sexual é definido, de
forma geral, como o constrangimento com conotação sexual no ambiente de
trabalho, em que, como regra, o agente utiliza sua posição hierárquica superior
ou sua influência para obter o que deseja.
Em análise conjunta dos conceitos abordados, podemos dizer que o assé-
dio sexual seria a manifestação de uma conduta que causa constrangimento à
trabalhadora com a finalidade de obter vantagem sexual, utilizando-se, ou não,
de sua função hierárquica dentro do ambiente de trabalho.
O assédio sexual é vivido, inequivocamente, de forma mais intensa pelas
mulheres. Tal fato decorre da construção social de objetificação da mulher e
do corpo feminino, ou seja, não há a percepção do ser humano como indivíduo
dotado de direitos inerentes à condição humana. A mulher é vista como objeto
que proporciona prazer; satisfação.
A respeito disso, melhor discorre Fletcher (2010, p.1 apud Sommacal e
Tagliari, 2017, p. 9):
Dada esta tendência global, mulheres e homens aceitam a
violência sexual como normal e interminável. Em sua acei-
tação, eles tacitamente aprovam a noção de que os corpos
das mulheres e das crianças pertencem aos homens para que
os tratem de acordo com sua vontade. Como resultado, a
instituição injusta do patriarcado que tolera e sustenta uma
cultura de estupro, que desumaniza mulheres e meninas,
tende a não ser examinada e contestada.
O assédio sexual se manifesta por meio de mensagens, gestos, comentários
e e-mails de cunho sexual ou convites insistentes e inapropriados por colegas
de trabalho, gerentes e supervisores (Ministério Público do Trabalho, 2018).
Ademais, pode ser observado mediante insinuações veladas de caráter sexual;
promessas de tratamento diferenciado e até de promoção na carreira em troca
de favorecimento sexual e chantagens para a permanência no emprego.
Os danos decorrentes desta conduta delitiva são, por vezes, irremediáveis.
As marcas deixadas em vítimas de violência sexual são marcantes, e sem o apoio
social, familiar e governamental, não há o que se falar em reparação de dano.

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DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

Em relação às mulheres, tal conduta se torna mais gravosa resultante da natural


tendência de culpabilização da mulher.
Há várias consequências danosas à mulher no cenário do assédio sexual.
Dentre elas, o prejuízo à integridade física e psicológica, decorrente da deses-
tabilização emocional causada pelo assédio, do sentimento de vergonha, do
auto isolamento e da introjeção da culpa mediante questionamento da própria
conduta; a significativa redução da autoestima; diminuição da produtividade;
afastamentos por doenças; desligamentos; aumento das doenças profissionais,
do absenteísmo, dos acidentes de trabalho e o comprometimento permanente da
saúde físico-psíquica em função da pressão psicológica sofrida (Senado Federal).

3.3. O explica-tudo ou “mansplaining”

O termo “mansplaining” traduz uma situação corriqueira em ambientes


laborais. Quantas vezes uma mulher foi interrompida durante uma reunião
de trabalho, uma conversa informal entre colegas dentro e fora do local de
trabalho, sob o falso pretexto de que ela não saberia explicar um termo ou
esclarecer uma situação, e que, na verdade, um homem saberia defini-lo com
precisão? A resposta, caso a leitura esteja sendo feita por uma mulher, é única:
diversas vezes.
De acordo com a cartilha do TRT da 13ª Região, “mansplaining” é: o
hábito de um homem “explicar” a uma mulher algo óbvio, partindo da suposição
de que ela não é capaz de entender por si mesma ou porque deseja desmerecer
essa mulher diante de outras pessoas.
Nesse sentido, é importante destacarmos a visão da autora Rebecca Solnit,
pois o termo foi amplamente disseminado após sua obra “Os Homens Expli-
cam Tudo para Mim”. Em um artigo publicado no jornal The Nation, Solnit
(2012) explica que o fenômeno se dá a partir de uma combinação de excesso
de confiança e ignorância.
Por fim, também explica que o fenômeno não se limita ao ambiente de
trabalho:
“[...] Esta é uma luta que ocorre em nações devastadas
pela guerra, mas também no quarto, na sala de jantar, na
sala de aula, no local de trabalho e nas ruas. E em jornais,
revistas e televisão, onde as mulheres são dramaticamente
sub-representadas. Mesmo na arena dos jogos online, as
mulheres enfrentam assédio furioso e ameaças de agressão
simplesmente por ousar participar. Isso é principalmente
violência simbólica”.

<< Retorne ao sumário 322


AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DO TRABALHO

Portanto, para além do ambiente do trabalho, que é objeto deste estudo,


esclarece a autora que o fenômeno “mainsplaning” se multiplica em diversas áreas
de convívio social, o que confirma a existência e problemática deste fenômeno.

3.4. O intrometido ou “manterrupting”

Semelhante ao que ocorre na situação de “mansplaining”, o termo “man-


terrupting” trata, também, da ideia de a mulher não poder ocupar espaços de fala
em variados ambientes, incluindo em seu trabalho. Por meio da interrupção, o
homem pode praticar o “mansplaining”, tentando explicar algo que ele julgue
que a mulher não tenha competência suficiente para fazê-lo; ou apenas para
expor sua própria ideia, que julga ser mais interessante e atrativa.
Segundo as cartilhas do MPT e do TRT da 13ª Região, este termo é
concebido como um comportamento machista em que um ou mais homens
interrompem a fala de uma mulher, impedindo que ela conclua um raciocínio,
uma observação.
O termo foi criado pela jornalista Jessica Bennett em um artigo escrito para
a revista TIME em 2015, utilizando como exemplo introdutório uma situação
vivida pela cantora Taylor Swift no ano de 2009, ao receber o prêmio “Melhor
Vídeo Feminino” na premiação Video Music Awards. Quando a cantora iniciou
seu discurso, o cantor Kanye West tomou o microfone de sua mão e disse que
iria deixá-la terminar depois, mas que outra cantora, à época, merecia o prêmio.
Além deste exemplo, agora mais voltado ao ambiente de trabalho, pesquisas
e artigos apontam que as juízas, embora responsáveis por jurisdições de maior
instância — como no caso do Supremo Tribunal Federal ou da Suprema Corte
norte-americana — são constantemente interrompidas durante as sessões.
Em pesquisa realizada pela Universidade Northwestern, foi constatado que as
juízas norte-americanas eram interrompidas com maior frequência por colegas de
profissão e por advogados do que juízes homens. Quanto ao Supremo Tribunal
Federal, a própria Ministra Carmen Lúcia, em sessão da Corte, afirmou que
as magistradas mulheres de tribunais constitucionais são interrompidas, em
média, 18 vezes mais do que os homens. 4

3.5. O ladrão de ideias ou “bropriating”

O termo “bropriating” é a junção da palavra “brother” (irmão) e “apropria-


ting” (apropriação). Trata-se, portanto, de uma situação em que um homem se
4 
O estudo vai ao encontro de um levantamento feito por uma universidade norte-americana sobre o
comportamento dos juízes da Corte máxima daquele país. Artigo publicado na revista Consultor Jurídico,
disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-11/ministras-sao-interrompidas-ministros-carmen-lucia.

<< Retorne ao sumário 323


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

apropria de algo que seria, originalmente, da mulher. No ambiente de trabalho,


é comum observarmos a apropriação de ideias.
Este tipo de comportamento é estimulado pela falta de crédito dada
a capacidade feminina. As ideias e manifestações masculinas são levadas em
consideração, enquanto que a fala da mulher é questionada. Ainda permanece
a ideia no ambiente de trabalho que, um homem, mesmo reproduzindo a ideia
de uma mulher, detém mais capacidade que esta.
Segundo Annelise Gripp (2018), o fato das mulheres serem menos ouvi-
das em momentos de decisão, faz com que as mesmas sejam desacreditadas,
ocupando menos cargos de liderança nas empresas, já que suas ideias servem
de degrau para os homens.

3.6. O manipulador ou “gaslighting”

“Você está louca”, “você está exagerando”, “isso não aconteceu”: frases que
mulheres escutam hodiernamente em vários locais, como no ambiente doméstico
ou laboral. De forma geral, o manipulador tenta convencer a mulher de que
está errada, louca, e que não há razão naquilo que ela pensa. No ambiente de
trabalho, é muito comum vermos esse tipo de comportamento como tentativa
de ocultação de práticas de assédio sexual ou moral, convencendo a mulher de
que aquilo na verdade não foi tão grave quanto pareceu.
A respeito do assunto, explica Stern (2007, p.12, apud Souza, p. 12, 2017):
[...] O Efeito Gaslight resulta do relacionamento entre duas
pessoas: um gaslighter (aquele que pratica o gaslighting)
que precisa estar certo no sentido de preservar o seu ego e
o seu senso de ter poder no mundo; e o gaslightee (aquele
que sofre o gaslighting), que permite que o gaslighter defina
o seu senso de realidade, porque ela o idealiza e busca sua
aprovação. Gaslighters e gaslighttes podem ser de ambos os
gêneros, e o gaslighting pode acontecer em qualquer tipo de
relacionamento. Mas eu vou me referir a Gaslighters como
“ele” e a Gaslightees como “ela”, pois é o que mais tenho
visto em minha prática. Eu vou explorar uma variedade de
relacionamentos – com amigos, família, chefes, e colegas
– mas o relacionamento romântico entre homem-mulher
será meu maior foco.
No ambiente do trabalho, tal prática pode deixar sequelas prejudiciais
tanto à carreira quanto a estabilidade psíquica e emocional da mulher. A mulher
vítima da prática de “gaslighting”, possivelmente vítima também de um assédio
sexual ou moral no local em que trabalha, terá consequências como: diminuição

<< Retorne ao sumário 324


AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DO TRABALHO

de produtividade; ausência de vontade de comparecimento ao trabalho; reações


de aversão às tarefas anteriormente desempenhadas, e isso apenas em relação
a sua vida profissional. Na esfera psíquica, a mulher pode desenvolver doenças
como ansiedade e depressão, podendo apresentar sintomas como insônia, irritação
constante, sensação negativa do futuro e vivência depressiva.

4. MECANISMOS DE DEFESA CONTRA A VIOLÊNCIA


DE GÊNERO

Apresentadas as formas de violência sofridas pela mulher no local de tra-


balho – estendendo-se, na maior parte, para outros aspectos da vida da mulher -,
faz-se necessária a busca por mecanismos de defesa que visem coibir as práticas
que atentam a saúde, vida, e dignidade da mulher. Portanto, o presente artigo
propõe-se a listar os mecanismos já existentes para o combate a esta problemática:
a. Ministério Público do Trabalho: O MPT disponibiliza canais de denúncia
através do site, telefone, e até pelo aplicativo “MPT Pardal”. Nestes ambien-
tes, a trabalhadora será orientada a como realizar a denúncia e quanto aos
procedimentos cabíveis.
b. CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) e SESMT (Serviços
Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho):
A trabalhadora, caso não se sinta confortável em procurar diretamente os
órgãos públicos especializados, poderá realizar a denúncia perante as equipes
responsáveis pela segurança do trabalhador, que deverão orientá-la quanto
à proteção de sua integridade física e mental no local de trabalho.
Os mecanismos listados nos itens anteriores tratam de ações de iniciativa
previstas na legislação pátria, que fazem parte de políticas públicas destinadas à
repressão da violência de gênero. Entretanto, há de se falar em estratégias para a
iniciativa privada, e como sugestão de mecanismo para o combate da violência
contra a mulher no ambiente de trabalho, o presente artigo lista o programa de
“compliance” como alternativa:
a. Progamas de “compliance”: No ambiente do trabalho, raramente a mulher irá
buscar por ajuda por medo de ser prejudicada profissionalmente. Entretanto,
há mecanismos que possam fazer com que ela se sinta mais segura para
não se calar. O “compliance” é um modelo de gestão que busca implementar
conformidade com as normas em todos os setores de uma empresa, e é
cabível tanto para o serviço público quanto para o serviço privado. Uma das
formas de combate à desconformidade é o estabelecimento de um canal de
denúncias anônimo, em que as pessoas que observassem a prática de condutas
inadequadas poderiam fazer denúncias sem a preocupação de que isso iria
lhes prejudicar. Além disso, uma empresa com um programa de compliance,
ou seja, em conformidade com as normas, promoveria a conscientização

<< Retorne ao sumário 325


DIREITO DO TRABALHO NAS UNIVERSIDADES

sobre condutas inadequadas no ambiente do trabalho, reprimindo, assim,


práticas de violência contra a mulher neste sentido.
Nesse ínterim, podemos observar que há diversos mecanismos que visam
coibir a violência; o machismo; o retrocesso. Entretanto, é importante salien-
tar que, no ambiente de trabalho, muitas vezes a mulher não consegue reunir
provas suficientes de que a violência ocorreu, ou pior: mesmo aqueles que tes-
temunham as violências sofridas pela mulher tem medo de serem prejudicados
profissionalmente, e escolhem, então, continuar omissos. E é por esta razão que,
apesar de todos os mecanismos apresentados, é importantíssimo que haja um
esforço comum para que não ocorra nenhum comportamento inadequado de
colaboradores de uma empresa. Daí a importância de um canal de denúncias;
da promoção de conscientização acerca do que pode e não pode ocorrer dentro
do ambiente do trabalho, entre outros.

5. CONCLUSÃO

A violência de gênero é, inegavelmente, um problema histórico e cultural.


Detém raízes na forma como a sociedade se acostumou a se comportar, e apenas
nas últimas décadas tem-se observado uma certa mudança, com a promoção de
discussões como a que este artigo se propõe a tratar.
A violência contra a mulher no ambiente do trabalho relaciona-se com a
estrutura organizacional das relações de poder em sociedade. O homem, ocupante
natural dos espaços laborais, de poder e de prestígio, não reconhece na mulher a
competência de ocupar aqueles mesmos espaços. Portanto, inicia-se uma série de
violências contra a mulher no local de trabalho como: a interrupção contínua de
suas manifestações – “manterrupting” -; a desqualificação de suas falas, que são
julgadas insuficientes ou inaptas e necessitam de uma explicação de um homem
para que seja considerada como certa – “mansplaining” -; a apropriação de ideias
de uma mulher, que apenas são consideradas quando esta mesma ideia vem de
um homem – “bropriating” -; e, práticas mais gravosas, que atentam diretamente
contra a honra e dignidade da mulher dentro e fora do ambiente de trabalho:
o assédio moral e sexual.
Nesse sentido, temos a existência de condutas que não podem e não devem
mais ser admitidas no meio ambiente do trabalho, pois acarretam consequências
graves não só para a mulher, mas para a sociedade como um todo. Quando atos
ofensivos e discriminatórios contra a mulher são praticados, além de autorizar
o retrocesso, significa dizer que: as mulheres não merecem ocupar espaços de
poder; e, sem a ocupação desses espaços, há o desestímulo à independência
financeira da mulher; e esta, não sendo independente economicamente, não

<< Retorne ao sumário 326


AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DO TRABALHO

irá deter poder aquisitivo, portanto, não irá movimentar a economia, e, como já
foi dito anteriormente, as mulheres representam quase a metade do mercado
de trabalho segundo pesquisa do IBGE feita em 2019.
Ademais, com o desestímulo a denúncia e ao combate desta problemática,
as empresas demonstram um claro sinal de que a mulher, para se manter no
mercado de trabalho, deve prejudicar sua saúde mental e emocional a todo o
custo. Tal premissa evidencia-se com o fato de que apenas 19% das empresas
promovem ações de combate a violência contra a mulher no ambiente corpora-
tivo5. Em relação a estas empresas, apenas 9% possuem canal de ouvidoria para
apoio à mulher e oferecem serviços psicológicos fora de sua sede e apoio jurídico.
Portanto, apesar dos mecanismos de combate oferecidos pelo poder
público demonstrados no item 3 deste artigo, ainda é muito necessário promo-
ver a conscientização na ambiência privada, bem como estimular a denúncia a
qualquer ato violento contra a mulher. Ressalta-se que a denúncia, ainda que
não feita pela mulher, pode ser feita por colegas de trabalho que reconheçam a
problemática e não desejam permanecer omissos em relação ao ocorrido.
Diante da breve exposição sobre a violência contra a mulher no ambiente
do trabalho, é inequívoco dizer que tais atos não são cabíveis em sociedade e
devem ser, de todas as formas, combatidos. A mulher, como sujeito detentor
de direitos e deveres, merece o tratamento adequado ao seu meio ambiente de
trabalho, visando a repressão máxima da desigualdade existente das relações
de poder em sociedade. Não é mais cabível que a mulher não possa ocupar
determinados espaços, ou se manifestar da forma que lhe caiba por pura dis-
criminação social. Ao contrário. Deve-se ao máximo estimular a fala da mulher,
a sua evolução profissional, sua ocupação e liderança no trabalho, pois é este o
caminho para um ambiente laboral mais justo e igualitário.

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5 
Pesquisa feita pelo Instituto Vasselo Goldoni e Talenses Group intitulada “Violência e Assédio contra
a Mulher no Mundo Corporativo” no ano de 2019. 311 empresas foram ouvidas por meio de um questio-
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AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DO TRABALHO

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