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MARCIA CANGADO LUANA AMARAL Introduc¢ao a Semantica Lexical Papéis teméaticos, aspecto lexical e decomposi¢ao de predicados a na on] Uy} EDITORA VOZES Digitalizado com CamScanner Sumario Apresentacao, 9 Capituto 1 Introdugio, 13 1 O que é Semintica Lexical, 13 1.1 “Seminticas Lexicais’, 16 2 A Interface Sintaxe-Semantica Lexical, 25 3 Sugestes de leitura, 36 CapituLo 2 Papéis tematicos, 39 1 Definigao de papéis tematicos, 39 2 Problemas com as definicdes de papéis tematicos, 50 3 A relevancia dos estudos dos papéis tematicos, 54 3,1 Estrutura argumental, 56 3,2 Ligagdo entre papéis tematicos € 3.3 Alterndncia verbal, 68 3.3.1 O dtico se em portugués, 71 3.3.2 Restrigdes semanticas para a alternancia causa fungdes sintaticas, 63 tiva, 77 3.4 Passivas, 79 4 Sugestdes de leitura, 81 Capfruto 3 Selegao argumental, 83 1 A proposta de Dowty, 85, 1.1 Selegao argumental, 95 1.2 Problemas da proposta, 99 2 Reformulagao da proposta de Dowty, 2.1 As propriedades semanticas, 108 2.2.0 Principio da Selegao Argumental, 120 2.3 Propriedades semanticas € propl jedades sintéticas, 132 3 Sugestoes de leitura, 138 102 Digitalizado com CamScanner Capfruto 4 Aspecto lexical, 139 1 Aspecto, 139 2. Aspecto gramatical, 141 3 Aspecto lexical, 145 4 Classes aspectuais de Vendler, 147 “4.1 Categorizagao do aspecto basico, 49 4.1.1 Verbos de estado, 149 4.1.2 Verbos de atividade, 153 4.13 Verbos de accomplishment, 156 4.1.4 Verbos de achievement, 161 4.1.5 Quadro das propriedades, 166 4.2 Aspecto derivado, 167 4.2.1 Achievements derivados de estados, 167 442.2 Accomplishments derivados de atividades e atividades derivadas de accomplishments, 169 413 Achievements derivados de accomplishments e accomplishments derivado de achievements, 171 ‘24 Estados derivados de accomplishments, atividades e achievements, 173 4.2.5 Atividades derivadas de achievements, 175 5 Outras observacoes, 175 5.1 Verbos semelfactivos, 175 5,2 Polissemia, 178 5.3 Inacusatividade, 180 6 Sugestées de leitura, 182 Capiruto 5 A decomposicao de predicados, 185 1 Os predicados primitivos, 186 1.1 A natureza composicional do sentido dos verbos, 189 1.2 Classes verbais, 192 1.3 A metalinguagem da decomposicio de predicados, 198 2 A anilise de algumas classes de verbos do portugués, 205 2.1 Verbos de mudanga, 206 2.1.1 Verbos de mudanga de estado, 207 2.1.2 Verbos de mudanga de estado locativo, 212 2.1.3 Verbos de mudanga de lugar, 216 2.14 Verbos de mudanga de posse, 220 3 Comparagio com uma abordagem de papéis tematicos, 224 4 Decomposi¢ao de predicados em outras teorias lingufsticas, 232 5 Sugestées de leitura, 237 anna Referéncias, 239 Digitalizado com CamScanner Papéis tematicos Papéis tematicos sio nog6es semanticas muito estudadas na literatura em Linguistica, pois apresentam relagées diretas com estruturagées e pro- priedades sintaticas. Com isso, também sao uma nogio central de teorias que se apoiam na abordagem da Semantica Lexical. Existem diversas de- nominagoes para essas relagdes semanticas na literatura: relagdes temati- cas (GRUBER, 1965; JACKENDOFF, 1972), casos semanticos profundos (FILLMORE, 1968), papéis participates (ALLAN, 1986), papéis seman- ticos (GIVON, 1990) e papéis tematicos (DOWTY, 1989, 1991; JACKEN- DOFF, 1983, 1990). Como, atualmente, a denominagdo mais comum tem sido “papéis tematicos”, sera essa a aqui adotada. Introduziremos, pois, neste capitulo as principais propostas de papéis temiiticos, as definigdes desses papéis e a utilizagao dessa nogao na pesquisa em Semantica Lexical. Apresentamos também os problemas dessa aborda- gem te6rica ea relevancia do estudo dos papéis tematicos para a explicagio de diferentes tipos de fendmenos linguisticos'. 1 DEFINIGAO DE PAPEIS TEMATICOS O estudo da relagdo entre as fungdes semanticas que um item lexical es- tabelece ¢ as fungoes sintaticas de uma sentenga tem sua origem no estudo \. Também, eam Cangado (20124), encontra-se um capitulo sobre papéis temiticos; entre ‘ante, neste livra, aborelamos 0 tema de ina fornsa insis abrangente. eee | Digitalizado com CamScanner | do sinscrito pelo gramatico indiano Panini, que vivet, rovavelment, yy século IV a.C. Entretanto, sé bem mais tarde, o tema retoma seu interese entre linguistas, com os trabalhos de Gruber (1965), Halliday (1966, 1967), Fillmore (1968, 1970, 1971), Chafe (1970), Jackendoff (1972, 1976), entrg outros. Esses autores alegam que é necessirio assumir essas funcdes seman. ticas em estudos gramaticais, pois as fungées sintaticas de sujeito, comple. mento e adjunto sao insuficientes para traduzir certas relacdes existentes entre algumas sentengas. Por exemplo: (1) a. 0 Jodo quebrou o vaso intencionalmente. b. O vaso (se) quebrou. ©. vaso foi quebrado pelo Joao intencionalmente. Nas sentencas em (1), 0 vaso tem a mesma fungdo semantica de sero Paciente de uma agao, ou seja, aquele objeto que sofre a acio realizada por um determinado agente; mas, em (a), exerce a fungao sintatica de com- plemento, e, em (b) e em (c), de sujeito. J4 0 Joao tem a mesma fungao semantica de ser o agente da aco em (a) e (c), entretanto, sintaticamente, esta em posigao de sujeito em (a) e em posigéo de adjungao em (c). Po- de-se perceber entao que, apesar de os argumentos estarem em diferentes posicOes sintaticas, as sentencas nao sio distintas e sem relacdo, Na reali- dade, elas descrevem um mesmo evento, sob diferentes perspectivas. Exis- te algum tipo de dependéncia entre elas, relacionando a agao de quebrar € as entidades Joio € vaso. Os elementos linguisticos que denotam essis entidades, relacionados pelo verbo, assumem uma mesma fangao semin- tica dentro das trés sentengas. Como Ji afirmamos, o argument 0 Jodo tem a mesma fungao semantica de ser 0 agente de quebrar nas senten¢as em (1a) € em (1c); 0 argumento 0 vaso tem a mesma fungao semantict de ser o paciente da ago, 0 que softe a a de quebrar, nas senteng’s em (1a), (1b) ¢ (Ic). Repetindo, os exemplos acima sao diferentes forms sintaticas de apresentagao de um mesmo fato: existe o evento, descrito Pp! 40 | Digitalizado com CamScanner quebrar, cujos participantes sao denotados pelos sintagmas 0 Jofio € 0 vaso. As diferentes relagdes sintaticas apresentadas em (1) nada podem dizer a respeito dessa relagao de dependéncia. Portanto, a dependéncia esta nas relagGes de sentido que se estabelecem entre 0 verbo e os seus argumentos (sujeito e complementos): 0 verbo, estabelecendo uma relagao de sentido com seu sujeito e seus complementos, atribui-lhes fungdes, um papel para cada argumento, Sao essas fungdes que chamamos de “papéis temdticos”. Como apontam Ilari e Geraldi (1987), pode-se perceber, ainda, que nao existem apenas situagées relativas 4s agdes, como quebrar, moldar, pintar etc. O homem também experimenta sentimentos, sensac6es, tem percep- Ges, € capaz de relacionar coisas, permanece em determinados estados etc., ¢ isso também € expresso na lingua. Essas experiéncias, por exemplo, po- dem ser relativas a questdes psicolégicas como em (2a), perceptivas como em (2b), ou cognitivas como em (2c): (2) a. O Paulo se antipatizou com a Maria. b. O Paulo viu uma luz no fim do tunel. ¢. O Paulo acreditou no jornal. Nao se pode dizer que o Paulo tenha o papel de agente nos eventos des- critos acima, visto que ele, simplesmente, passa por um processo de expe- riéncia mental. Isso se torna mais claro se compararmos (3a), em que se tem verbos de processos mentais, e (3b), em que se tem verbos de acio, cujos sujeitos recebem o papel temitico de agente. Jackendoff (1972) pro- Ge que verbos que aceitam expressdes como o que x fez foi... tem como sujeito um agente. Veja a diferenca entre (3a) e (3b): (3) a.20 que o Paulo fez foi se antipatizar com a Maria/ver uma luz no fim do tdnel/acreditar no jornal. b.O que o Paulo fez foi quebrar/moldar/pintar 0 vaso. Outros verbos, por exemplo, simplesmente denotam estados no mundo; também ¢ impossivel classificar 0 sujeito nesses casos como sendo o agente 4l Digitalizado com CamScanner D > mo sendo 0 experienciador de um Proces, 0, de uma a¢do, ou mesmo Co: : que descrevem esse tipo de Situacao 654. Exemplos de sentengas com verbos (4) a. O Francisco lembra 0 pai. b. O Francisco tem uma casa. Como é sabido, verbos agentivos s40 0s preferenciais para construcs., passivas (JACKENDOFF, 1972); portanto, uma maneira de se diferenciay estados de acdes é constatar se 0s verbos analisados aceitam Construcdes na perspectiva passiva. Veja que mesmo sendo verbos transitivos diretos, os verbos em (4) nao aceitam a passivizagao: (5) a.*O paié lembrado pelo Francisco. (com a mesma interpretacao de (4a)) b.*Uma casa ¢ tida pelo Francisco. Fica evidente, pois, que os papéis tematicos estabelecidos entre os yer- bos e seus sujeitos e complementos (seus argumentos) podem ser de dife- rentes tipos. Além dos verbos, nomes e adjetivos que pedem complemento, contidos em sintagmas como construgao da casa e orgulhoso de seus filhos, ¢ algumas Preposigdes (dependendo da sua fun¢ao na sentenga), como no sintagma com um martelo, atribuem papel tematico a seus complementos. Entretan- to, o verbo € 0 atribuidor por exceléncia de papel tematico, ou seja, sua se- mantica envolve diferentes nameros e tipos de papéis tematicos, sendo, pot isso, o item lexical preferencial para tal estudo. Neste capitulo (e também neste livro), iremos tratar mais exclusivamente dos verbos. A partir dos estudos iniciais de Gruber (1965), Halliday (1966, 1967) Fillmore (1968, 1970, 1971), Chafe (1970) e Jackendoff (1972, 19763 nogao de papel tematico foi incorporada a varias teorias gramaticais, das mais variadas formas. Os primeiros autores a estudarem esses conceitos adotavam a posigao de que os papéis temiaticos sa informagées primitivas, lexicais. semanticas, que um item ja traz marcadas em suas informagoes Por exemplo, o verbo lavar traz como informagao que seu sujeito ¢ que 42 Digitalizado com CamScanne | | seu complemento estio associados aos papéis temiticos de ente ¢ de pa- ciente, respectivamente. A definigao dessas propriedades seminticas é dada por uma listagem de papéis temiticas. Autores, como os citados acima, por exemplo, propdem uma extensa lista para a classificagan dos diferentes ti- pos de papéis temiticos. Cangado (201 2a), baseada nesses autores, propoe uma lista mais geral e abrangente de papdis tenviticos, que reproduzimos aqui com algumas modificagdes (os argumentos que recebem os papéis tematicos apontados sio marcados em itilico nos exemplos): a) Agente: desencadeador de alguma agin, capaz de agir com controle (6) O motorista lavou 0 carro. (7) Aatleta correu, b) Causa: desencadeador de alguma agio, sem controle (8) As provas preocupam a Maria, (9) O sol queimou a plantagio. c) Paciente: entidade que sofre o efeito de alguma a¢io, havendo mu- danca de estado (10) O Joao quebrou o vaso. (11) O acidente machucou a Maria. d) Tema: entidade transferida, fisica ou abstratamente, por uma agdo (12) O colega jogou a bola para a menina (13) 0 pai deu wna viagem para a filha. e) Experienciador: ser animado que esta ou passa a estar em determina- do estado mental, perceptual ou psicoldgico (14) O namorado pensou na amada. (15) O colecionaior viu um passaro diferente. (16) As provas preocupam a Maria. 43 Digitalizado com CamScanner i £) Resultativo: resultado de uma acdo, ou seja, alguma entidade que na, ‘a a existir ou vice-versa existia € pass (17) 0 pedreiro construiu a casa. (18) A bruxa comeu a maga. g) Beneficidrio: ser animado que é beneficiado ou prejudicado no even. to descrito (19) 0 patrao pagou o finnciondrio. (20) A mulher perdeu a carteira. (21) A bibliotecéria emprestou o livro para 0 aluno. h) Objeto Estativo: entidade ou situagdo a qual se faz referéncia, sem que esta desencadeie uma ago ou seja afetada por uma a¢io (22) O aluno leu 1m livro do Chomsky. (23) O marido ama a mulher. i) Locativo: lugar de onde algo se desloca, para onde algo se desloca ou em que algo esta situado ou acontece (24) A modelo voltou de Paris, (25) A Sara jogou a bola para o alto. (26) Eu moro em Belo Horizonte. (27) O show aconteceu no teatro, Outro papel tematico muito citado na literatura é o de instrumento. Alguns autores apresentam esse papel como sendo atribuido por tipos es- pecificos de verbos. Por exemplo, Jackendoff (1990) aponta que servir atri- bui papel tematic de instrumento ao argumento na posigio de sujeito ¢ usar atribui papel tematico de instrumento ao argumento na posi¢ao de complemento: (28) a. Essa faca serve somente para descascar batatas. b.O cozinbeiro usou a faca para descascar as batatas, 44 al Digitalizado com CamScanner wr Entretanto, parece-nos que essa é uma anilise equivocada, pois sobre- poe as propriedades inerentes do item lexical faca, que realmente trazem a jnformagio de que essa entidade é um instrumento, & atribuigio de papel temitico pelos verbos servir e usar, que atribuem 0 papel temitico de objeto estativo, nao de instrumento, ao sujeito e ao complemento, respec tivamente. Veja que se pode alocar qualquer tipo de sintagma nominal nessas posigdes, até mesmo um sintagma de natureza [+animado], ou uma sentenca no caso de servir, ¢ os exemplos se mantém gramaticais. Se os ver- bos realmente atribuissem um instrumento, no sentido estrito da palavra, como papel temitico, os exemplos abaixo nao seriam possiveis: (29) a. A internete serve para levar as pessoas a mundos desconhecidos. b.A Maria serve para ser professora. . Falar muito serve para nos colocar em confusio. (30) a. A professora usou a sua habilidade para acalmar as criangas. b.A modelo usou um vestido vermelho para desfilar. Isso confirma a nossa hipstese de que esses verbos nao atribuem o papel de instrumento aos seus argumentos. Em uma anilise bastante extensa de verbos do portugués’ nao se en- contra nenhum verbo que precise necessariamente de um instrumento para que seu sentido fique completo, ou seja, 0 papel temitico de ins- trumento nao é atribuido 4 posigio argumental de um verbo, nao sendo, portanto, o verbo aquele que atribui o papel tematico de instrumento a determinados sintagmas (ainda que sintagmas nominais que denotem um instrumento aparecam nas posigdes argumentais de verbos). Nem mesmo "ara uma anilise semantica sobre verbos psicoldgicos em portugues, cf Cangado (1995); sobre verbos de estado, Moreira (2000); sobre verbos de locagao espacial, Silva (2002); so- bre verbos beneficidrios, Wenceslau (2003); sobre verbos de trajetoria, Corréa (2005) Sobre verbos reciprocos, Godoy (2008a); sobre verbos de modo de movimento, Amaral (2010); sobre verbos de criagdo, Amaral (2013); € sobre verbos instrumentals, Meirelles (2013). Todos esses trabalhos encontram-se disponiveis em www.letras.ufmg.br/nucleos! pes, Ainda, sobre verbos que denotam mudanga, ef, Cangado et al. (2013a). 45 hee 1 Digitalizado com CamScanner ON ) pee dem um instrumento como argumento na posicao de complement, : 0s verbos denominados instrumentais (serrar, martelar, escovay ete. contrdrio, esses itens ndo aceitam um instrumento na sentenca, Rem ng Posicao de adjunto, pois essa informacao ja esta contida no Proprio no, do verbo: “o carpintero serrou a madeira com um faciio (MEIRELL Es « CANCADO, 2015). O proprio Jackendoff (1990) aponta que o papel to. mitico de instrumento parece ser atribuido somente pelos verbos jysa, e servir, de uma forma bem idiossincratica, nao devendo esse papel figurar em uma anilise dos argumentos dos verbos (como em uma hierarquig temitica, nocdo que serd explicada adiante), pois € um papel Testrito 4 adjuncao. Portanto, a conclusao a que chegamos € que o papel temiitico de instrumento ¢ atribuido somente pela preposi¢do com que insere um sin. tagma nomina (SN) com esse papel na sentenga, em posigdo de adjuncio; (31) 0 Jodo quebrou 0 vaso com 0 martelo. (32) A aluna cortou as gravuras com uma tesoura sem ponta. (33) © médico operou o paciente com um bistur’. Nenhum dos verbos acima, quebrar, cortar ou operar, precisa do instru. mento para ter seu sentido saturad (34) 0 Jodo quebrou o vaso. (35) A aluna cortou as gravuras. (36) O médico operou o paciente. Pode-se notar que em sentengas em que existe a possibilidade de o argu- mento na posigio de sujeito ser um agente (dependendo do tipo de agente) 3. Observe que w atsibuigae do papel tematico instr jumento pela preposigio com nio s¢ festringe a itens lexicais com a Propriedade inerente de insteumento: 0 profesor treinow 25 alurios com wina técnica inovadora/a mie corrigiu o Filho com palavras duras. © papel te- muattico de instrumento, por por todas as instancias da preposigio com. filho com sua presenga trata-se de una ca¥st Mm sentengas come a jantela quebrou como n. nav é atribuide Pex. ein sentengas do tipo a mde acalmou 0 fatorada (a presenga da mae acalmou o filho) vento a preposigau introduz causa, 46 Digitalizado com CamScanner a 4 também existe a possibilidade da insergao de um instrumento como adjun- to. Croft (1991) mostra que o instrumento tem o papel de ser 0 mediador entre o agente € a a¢do. Entretanto, nao é 0 verbo que estabelece essa relacao, esima preposicao com seu complemento. Sobre o papel tematico de instrumento, vale ainda realcar que alguns autores assumem também um tipo de alternancia em que um instrumento utilizado pelo agente pode ocupar a posi¢ao de sujeito: (37) Uma tesoura sem ponta cortou as gravuras. Entretanto, como apontamos, o papel tematico de instrumento nao faz parte da estrutura argumental de verbos do tipo cortar, ndo se podendo tratar, dessa maneira, de uma alternancia de estrutura argumental. Nao se pode dizer que a tesoura sem ponta seja argumento de cortar, e que este es- teja alternando com o argumento a aluna, pois quem atribui o papel tema- tico de instrumento € a preposi¢ao com‘. Evidentemente, existe algum tipo de ligacdo e de dependéncia semintica entre o fato de a aluna poder ser 0 agente de cortar e o fato de uma tesoura sem ponta ser o instrumento dessa ado, como aponta Croft (1991). Mas essa relagdo nao é de alternan- cia verbal. Por exemplo, Brunson (1993) argumenta que os papéis de agen- te e instrumento fazem parte de uma causa, que pode ser fatorada em dois sintagmas, como nos exemplos em (31) a (33). Pode-se pensar também em um tipo de relagdo metonimica que permite que tanto o agente quanto 0 instrumento usado por ele para praticar a agdo ocupem a posigao de sujei- to, Estudos mais detalhados devem ser feitos para que esse fendmeno fique mais claro, Concluindo, propomos uma defini¢io para o papel tematico de instru- mento, mas realgando que nossa hipotese é a de que esse papel é atribuido somente pela preposic' 4. Aleadou e Schifer (2006) propoem que, em verbos como cortan instruments em po- Sigdo de sujeito sao entes ou causas. 47 > 4 Digitalizado com CamScanner j) Instrumento: instrumento usado por um agente mento da acio no desencadea- Outra observagao importante & sobre a polissemia dos verbos. Na atri- buicao de papel tematico deve-se levar em conta o sentido especifico do verbo na sentenca analisada, Veja os cemplos abaixo com o verbo abr (38) O comerciante abrit a porta. (39) O comerciante abriv uma loj Tomando-se as definigées dadas acima, no exemplo em (38), 0 verbo abrir atribui os papéis temiticos de agente para o sujeito 0 comerciante paciente para o complemento a porta: uma entidade que sofre o efeito de alguma acdo, havendo mudanga de estado. Entretanto, em (39), 0 verbo abrir apesar de atribuir 0 mesmo papel de agente para o sujeito o comer- ciante, atribui para 0 complemento tia loja o papel de resultativo: o resul- tado de uma a¢ao, ou seja, alguma entidade que nao existia e passa a existir. Marantz (1984) jé aponta que o argumento que esta na posicao de comple- mento tem uma relacao semantica mais forte com o verbo, compondo-se primeiramente com este, e sendo relevante para a construcao do sentido final do verbo. Vamos, entao, assumir que para cada sentido especifico do verbo, seja uma polissemia ou uma homonimia, existem distintas informa- ¢6es lexicais. Finalmente, é importante esclarecer alguns aspectos relacionados a papéis do evento e a papéis tematicos (BARWISE & PERRY, 1983; CHIERCHIA, 1989; FRANCHI, 2003 [1997]). Os autores distinguem os papéis do evento, enquanto uma relagao entre participantes e o evento no qual estes partici- pam, ou seja, nogoes do mundo, dos papéis temiticos, enquanto proprieda- a, nogoes linguisticas. Por exemplo, em sentengas des dos itens lexicais, ou chamadas de “incoativas’, do tipo a fruta apodreceu/a mulher envelheceu/? nino adovcen, pode-se alirmar que existe algo que causa esses processes: ngas met Entretanto, essa causa é um papel do evento e nao é explicitada nas sente —_— } Digitalizado com CamScanner~ exemplificadas, nao sendo, portanto, um papel tematico desses verbos. Es: ee . Essa também € a andlise de Haspelmath (1993) ¢ Parsons (1990), que afirmam que em sentengas incoativas nao existe nenhuma causa como relagao tema- _embora possa-se inferir que exista algo do evento no mundo que desen- t cadeie o proceso de apodrecer/envelhecer/adoecer. De posse, entao, das informagées apresentadas até aqui, estamos aptos a apontar os papéis tematicos, ou seja, as funges semanticas que os argu- mentos desempenham em grande parte das sentengas do portugués. Veja o exemplo: (40) A Maria tampou a cai Em (40), pode-se apontar 0 argumento @ Maria como sendo o agente da acao descrita pelo verbo tampar e a caixa como o paciente dessa aco. tipos de papéis dos verbos, pode-se langar mao de al- Para se detectar os mostrado acima constata que verbos guns testes. Por exemplo, um teste que aceitam expresses como o que x fez foi... tem como sujeito um agente (JACKENDOFF, 1972): (41) O que a Maria fez foi tampar a caixa. Jackendoff (1972) propoe ainda outro teste para se identificar um agen- agente aceitam as expressoes «i agente esta caracteristi- te: sentengas que tém um eliberadamente, etc. Isso reflete o fato de que um com a intengiio de camente associado a yontade € a animacidade. Os exemplos em (42) iden- tificam a Maria como agente em (at), M2 nao em (b): (12) ac A Maria tampow a caixa com at intense de/para esconder o que ayia la dentro. 7A Maria panhou a Gals pean a intengie de/pare vere ge havia la dentro. eridos tambenr per Jackendotf (1972), Outros testes ben simples, Sus Yoo eran ats estrutuiras 17 ( 13): predizer que para un paciente Digitalizado com CamScanner (43) a. O que aconteccU com Y foi... p.0 que X fez-comY foi... i jente a caixa em (40), apli Portanto, para se jdentificar © pacient (40), aplicamse : testes acima: foi a Maria tampé-la. fom a caixa foi a ue aconteccu | ere (44) a.0q) a Maria fez. con b.O que m a caixa fo! a definica0 dos papéis tematicos, pode-se 1 esta segao sobre a principio, os papéis mais co- papéis discutidos @ na literatura. Passa Concluind , sao, afirmar que os. qui mos agora para algumas reflexdes a mumente usados a as fungoes em andlises gramaticais. respeito do uso dess GOES DE PAPEIS TEMATICOS 2 PROBLEMAS COM AS DEFINI © grande problema enfrentado pelos autores que tratavam os papéi teméticos como uma lista dada a priori foram as definigdes assumidas. Veja es bastante intuiti- ma correspondem a caracteriza¢o' mais e vagas para um tratamento teor & uma tentativa de se estabelecer uma lista es de autores diferentes que as definigdes acit vas, contudo, muito infor disso, a lista aqui apresentada de fato, existem varias defini ‘ico. Além mais geral, porque, para um mesmo papel temitico. Ha uma grande divergéncia entre as definigdes propostas pos de papel tematico. Por exemplo, 0 agente, para Fill responsivel, na literatura para 0s varios ti more (1968), éa fungao desempenhada por um ente animado que é voluntéria ou involuntariamente, pela agao ou pelo desencadeamento dos os, Para Halliday (1967), 60 elemento controlador da ago. Fs Pat agdo, incluindo ai animados, forgas nat" proce Chafe (1970), € algo que realiz rais ¢ inanimados. Analisando a sentenga abaixo: (45) A sopran ebro prano quebrou a taga de cristal com seu grito, sem querer. 50 Digitalizado com CamScanner ee ‘A soprano seria 0 agente da agio para Fillmore (1968) e para Chafe (1970), entretanto, nao o seria para Halliday (1967). E, segundo a defini- ‘9 de Cangado (2012a), seria simplesmente a causa, Veja outros exem- ¢ plos abaixo: (46) O artista colou 0 vaso com cola plistica. (a7) Aventania derrubou 0 vaso. Instrumento, para Chafe (1970), é 0 objeto usado pelo agente para rea- lizar as agGes, como forga inanimada ou objeto causalmente envolvido na aio ou estado, excluindo forca motivadora, causa ou instigador ativo. Por- tanto, o autor analisaria cola plastica como instrumento, mas nado analisaria aventania com esse mesmo papel temitico. Ja Fillmore ( 1971), que define instrumento como sendo a causa imediata dos eventos, 0 estimulo de even- tos psicol6gicos, ¢ também as forgas naturais, analisaria os dois argumen- tos, cola plastica e a ventania, como sendo instrumentos, 0 que também vai contra a proposta aqui apresentada. Em vista dos exemplos dados, pode-se perceber ainda que, além de se ter definigdes incongruentes, também se corre 0 risco de encontrar uma lista de papéis tematicos. A cada ocorréncia da lingua pode-se encon- dade entre as relagdes lexicais que gerard um novo enorme trar uma nova especifi papel tematico. Veja os exemplos abaixo: 48) a. O menino ganhou um presente. b.O menino perdeu seu brinquedo. irio é“ser animado que é beneficiado ou pre- Se a definigao de benefici atribuir o papel de beneficiirio ao judicado no evento descrito”, pode-se sintagma norninal em posigao de sujeito, 9 merino, em (48a) ¢ (48b). Ene Uetanto, alguns autores alegam que 0 nome beneficidrio remete a conota- Ges pusitivas ¢, portanto, o papel temitico maiy adequado a ser atribut- mm beneticidrio, mas sim do ao arguinento v mening em (48b) nao seria U um mualeficiirio, Pode-se intuir que um procedimento como este, a cada . | Digitalizado com CamScanner ja mais especifica inventar um novo papel tematico, nao ¢ ideal g, assim se pode encontrar uma lista nao finitag nsistente’. . ocorrénc ponto de vista tedrico, poi papeis temiticos, tornando a proposta inco Outro problema que pode surgir ao se usar os papéis tematicos comy 1 & que se corte o risco de 0s critérios usados nessas definigbes ne uma lis sempre associarem apenas uM papel tematico a cada argumento, Veja por que isso seria um problema. Os papéis temiticos tem sido objeto de estudo de varias correntes tes, ricas. Por exemplo, uma questao central da Teoria de Principios e Parame. tros, de Chomsky (1981), € 0 Critério-Theta®. Esse critério, bastante acejty entre os linguistas, estabelece que deve existir uma correspondéncia um 3 um entre os argumentos de um verbo e€ 0s seus papéis temiticos, ou seja, cada argumento recebe apenas um papel temitico, e cada papel temitico : associado a apenas um argumento. Para tornar essa afirmacao mais clara, usaremos a analogia proposta por Haegeman (1991) entre papéis temati- cos/papéis atribuidos aos atores de uma peca de teatro e argumentos/atores da peca, Em uma pega teatral (a sentenga), ha um script (0 verbo) estipu- lando os papéis (os papéis tematicos) que devem ser distribuidos aos atores (os argumentos). Para que a pega seja adequadamente encenada, para cad papel deve existir um ator, e para cada ator deve existir apenas um papel Qu seja, se faltarem atores para encenar os papéis do script, ou um mes mo ator receber dois papéis simultineos, a pega nao fard muito sentido. 0 mesmo acontece com os papéis tematicos: se faltar algum argumento Paz 5, Levin e Rappaport Hovay (2005) apontam que existem propostay que chegim 2's de Ostler (1979), Dowty (IL) 28" tem conta eetea de 5) papeis temmaticos, como ica 0 que cham defragane again de papeis’ a subdivisau de um papel tema pene reviltade de alputnas especificidbistes semantioas ¢ sintaticas, como o caso de® mateticninie. Cruse (1973), poe. apanta quatre diferentes papéty dlerivades a 10 I inten’ teddades sinntaticas, Bata critigaty itis tage dis apente © Vann Vals (2005) s pativide @ papel de instr unnetat ett : jetathadtas +! implemento, de acorde com yr Rappaporte Levin 1988) 6: Para uma intioaugan crn portgaes subre a Hearts Gerativa, oh Miat tt Kenedy (20189 a“ Digitalizado com CamScanner receber papel tematico, ou se um mesmo argumento receber dois papéis temiticos, a sentenca seré agramatical. Veja um exemplo em que falta um argumento ao verbo, ¢ isso torna a sentenga agramatical: (49) *O Joao quebrou. Se aceito esse principio, tem-se um problema para os exemplos em (50) em (51), em que parece existir mais de um papel tematico para um mes- mo sintagm: (50) O maratonista correu muito. (51) As provas preocuparam os alunos. Em (50), 0 maratonista recebe o papel de agente. E possivel constatar essa atribuicao pelo teste de Jackendoff (1972): 0 que o maratonista fez foi correr. Mas poderia também ser um tema, jé que o argumento denota uma entidade deslocada. Em (51), o sintagma os alunos recebe o papel tematico de experienciador, pois os alunos passam por uma experiéncia psicolégi- ca. Mas pode-se afirmar que esse sintagma pode receber também o papel temitico de paciente, pois os alunos mudam de um estado mental para outro. Portanto, percebe-se que nem sempre € facil atribuir esses papéis de maneira Unica. Alguns poderiam argumentar se ndo seria 0 caso de existi- rem outros dois papéis teméticos: agente-tema e paciente-experienciador? Entretanto, fica facil imaginar que essa proposta também nio seria a mais adequada para uma teoria gramatical, pois considerando as varias com- binagées que se pode ter a partir da lista de papéis tematicos apresentada, pode-se perceber que chegariamos a um ntimero indesejavel para um tra- tamento tedrico, Veja que Jackendoff (1987, 1990), em outra perspectiva teorica, sugere atribuido mais de um papel temitico, em que a um argumento pode ser autor propoe uma teoria composta uma estrutura conceptual mental. O por dois planos nesse nivel conceptual: o plano temitico, que descreve re- lacdes espaciais, e © plano da agdo, que descreve relagdes do tipo agente-pa- 53 Digitalizado com CamScanner _ ... ... ntre esses dois planos existe um mecanismo de ligacio, Um 7M Xen, | ciente. E | endoff (1990, p. 126), traduzido para o portugués, ¢; plo de Jack (52) Bill entrou no quarto. Tema Alvo Agente (plano temitico) (plano da acio) Como pode ser visto, em (52), Bill é simultaneamente o tema eo age, ‘0. Grosso modo, esses planos sao ligados entre si por um process, 890) posteriormente, indexados a somente um sintagma n, te da aca de indexacao, e, que os dois papéis temiticos sejam atribuidos a um sintaxe, garantindo lusao a que Jackendoff (1990) chega com essy mesmo argumento’. A concl proposta é clara: os papéis tematic devem ser mais complicados que um simples rétulo como o de agente,o ‘os que sio atribuidos aos argumentos de paciente etc.* Em vista dessas dificuldades, a pergunta que se coloca € por que, entio, se deve insistir no estudo dessas fungdes semanticas, pois so varios os au- tores e teorias, ainda nos dias de hoje, a langarem mao dessas nogées. 3 ARELEVANCIA DOS ESTUDOS DOS PAPEIS TEMATICOS Algumas correntes tedricas, em vista da dificuldade de se lidar com de- finigdes tao vagas e amplas, desistiram de adotar os papéis temiticos, 00 pelo menos os tipos semanticos desses papéis, como noges que possua um status em seu arcabougo tedrico. Por exemplo, a corrente sintatica d 1983, 1990), para nS iveis pape cf, Soares © 7, Sem entrarmos em detalhes sobre a proposta de Jackendoff ( propésitos aqui, o que interessa é a ideia de se poder recuperar os dois pos teméticos de um verbo. Para uma aplicagio dessa proposta no portugues: Menuzzi (2010). a 8, Outros autores, como Foley e Van Valin (1984), Dowty (1989, 1991), Reinhart es 2002), Franchi e Cangado (2003a {1997]) e Cangado (2005), entre outros, também tem! capturar essa intuigdo, Mostraremos, no préximo capitulo, as propostas de Dow" 1991) e Cangado (2005) mais detalhadamente. 54 Digitalizado com CamScanner Principios ¢ Parametros proposta por Chomsky (1981) usa 0 conceito de papel tematico como uma engrenagem de seu mecanismo sintatico, sendo relevante apenas a atribuicao dessas funcdes, sem conferir nenhuma re- levancia gramatical ao contetido semantico dos papéis. Ou seja, a tinica fungio do papel temitico é estar presente nas devidas posicdes da estru- turagio sintatica, formando sentengas boas gramaticalmente. Em relacao ao seu contetido semantico, ser um agente ou ser um paciente nao é uma questio relevante para essa teoria. Entretanto, é sabido que algumas dessas nogées sao decisivas para determinadas estruturas sintaticas. Por exemplo, pode-se afirmar com um grau de certeza bem grande que os argumentos, nas mais diversas linguas, que estao associados ao papel tematico de agente ocupam a posicao de sujeito da sentenca na voz ativa: (53) 0 Jodo comeu uma banana. (54) John ate a banana. (55) Jean a mangé une banane. Portanto, a propriedade de ser agente, ou alguma propriedade relacio- nada a esta, deve ter alguma influéncia para a estruturagao sintatica das sentengas. Veja que a propriedade de ser agente também esté estreitamen- te relacionada a ocorréncia da formagao de sentengas passivas (JACKEN- DOFF, 1972). Sentencas transitivas diretas que tem um agente aceitam a propriedade de passivizagio. Observe que nao estamos afirmando que to- das as sentengas que aceitam passivas tém que ter um agente na sua forma ativa; estamos afirmando que aquelas que tem um agente, com certeza, po- das: dem ser passivi (56) Uma banana foi comida por Joao. (57) A banana was eaten by John. (58) Une banane a été mangée par Jean. ‘ativos, em varias ‘Também parece ser bem geral a observagao de que loc linguas, ocupam a posigao de complemento indireto ou adjunsao: 55 Digitalizado com CamScanner | .O professor colocou 0 livro 1a mesa. ” isa er cantou nto Paldcio das Artes. (60) a. The teacher put the book on the table. b. The singer sang int the Opera House. (61) a, Lenseignant a mis le livre sur Ia table. b. La chanteuse a chanté @ Opéra. Baseados, entao, em evidéncias como as mostradas acima, muitos auto. res tentam estabelecer uma relacdo entre o% cdo da estrutura sintatica, seja em relacao as posicées de Sujeito ¢ m relagao as restrigdes sobre as realizacdes argumen. s tipos de relagdes semanticas ea organiza complementos, seja ¢1 tais dos verbos, como, por exemplo, a alternancia causativa, ou as constry. des com sentengas médias, mediais, reflexivas, passivas etc. 3.1 Estrutura argumental Para se explicar mais detalhadamente a relevancia do contetido semin- tico dos papéis tematicos para a sintaxe faz-se necessdrio deixarmos claros alguns conceitos e termos utilizados na literatura linguistica. Primeiramente, vamos falar um pouco sobre 0 conceito de argumentos. O termo argumento tem sua origem nos estudos denominados “Légica de Predicados”’. Na teoria, toda senten¢a € composta de predicado, uma estru- tura que nao tem seu sentido completo, ou seja, insaturada, e que pede um determinado mimero de argumentos que lhe completem ou saturem 0 sen- tido (usando o termo proposto pelo l6gico Gottlob Frege"). Em um sistema de logica de predicados, 0 predicado é especificado quanto ao ntimero deat gumentos que ele exige para se tornar uma expressdo semanticamente satu- rada. Por exemplo, o predicado correr pede um argumento, sendo, portant classificado como um predicado de um lugar (0 Paulo corria); 0 predicad® 9. Para uma introdugao aos estudos d Portugués, cf, Pires de Oliveira (2010). 10. Cf. Frege (1960 [1891]). spi il + comamticas ¢ 11 Logica de Predicados aplicada a seminticn | | 56 | Digitalizado com CamScanner comer pede dois argumentos, sendo classificado como um predicado de dois lugares (0 macaco come uma banana); 0 verbo colocar exige tres argumen= tos (o professor colocow os livros na mesa), sendo tratado como um predicado de trés lugares, ¢ assim por diante. Na linguagem légica, pode-se achar pre= ar que a nogio de dicados de cinco, seis, m lugares. E importante, ainda, real predicado tradicionalmente relacionada a sujeito ¢ complemento e, conse- quentemente, a certos tipos de categori usada por Frege (1960 [1891]). Para o ldgico, somente importa a estrutura semintica ea forma que itens insaturados (predicados) sio saturados por na para as nossas gramaticais, ndo é a mesma nogio argumentos. Um exemplo da distincia da anilise freg anilises gramaticais tradicionais é 0 seguinte: beijar pode ser considerado um predicado de dois lugares, mas a sequéncia 0 nanorado beijar pode ser considerada um predicado de um lugar. Fica claro, entao, que a légica nao argumento as nogées triviais da gramitica. jramatica Gerativa toma emprestadas essas no- relaciona predicado Contudo, a Teoria da goes da Légica e propoe que, tal como em um sistema légico, nalisadas em um predicado central, ou em um pre- as expressoes linguisticas podem ser dicador central (um item lexical), ¢ argumentos que Ihe completem o sen- tido, convertendo o predicador em uma expresso semanticamente com- Predicador & um termo utilizado por Raposo (1992), por exemplo, predicado existentes: na Légica, um termo © sintagma verbal (SV); na Semantica na Gramitica Tradi- pleta. para diferenciar as nogdes de insaturado; na Gramitica Gerativa, Lexical, uma categoria gramatical insaturada; e, ainda, adjuntos. Na estrutura da senten¢a o cional, o verbo e seus complementos € e so esses predicadores os focaliza- predicador mais importante é 0 verbo, omentado cima. Os argumentos de um predi- 10 sujeito e aos complementos sao atribuidos dos neste capitulo, como ja ct cador verbal correspondem sintaticamente a selecionados por esse predicador". £ a esses argumentos que 11. Na Gramética Gerativa, a informasio relativa aos tipos de sintagmas que os predicado- res seleci nae es selecionam como complementos, di-se o nome de subcategoriza¢ao. 57 Digitalizado com CamScanner ey os papéis tematicos. Essas informagdes esto contidas nas informacse, se. | manticas e sintéticas do item lexical verbal, e a esse grupo de informacies dé-se o nome de “estrutura argumental” de um item lexical, Existem, auto. res que usam esse termo para se referir somente ao numero de argumentos e suas relagdes sintaticas. J outros autores incluem nesse estudo também, as relagdes seminticas estabelecidas para 08 argumentos. Adotamos agy; a nogio mais ampla de estrutura argumental, incluindo as informacdey sintdticas ¢ seménticas que estao representadas em um item lexical, As representacées dessas informacdes podem ser notadas de diversas manei. ras: marcando em italico ou sublinhando o argumento que corresponde ao sujeito, colocando os argumentos em uma determinada ordem, onde o sujeito € relacionado ao primeiro papel tematico e os complementos sig relacionados ao segundo e ao terceiro papel, entre varias outras manei- ras (GRIMSHAW, 1990). Adotamos aqui a ultima notagao, como em (62), (63) e (64), em que a ordem dos papéis tematicos apresentada na estrutura indica a posi¢ao sintatica dos argumentos — sujeito, complemento direto e complemento indireto (se houver apenas um argumento, ser 0 sujeito; se houver dois, serao sujeito e complemento, respectivamente; se houver trés, Serao sujeito, complemento direto e complemento indireto, nessa ordem): (62) correr: {Agente} (63) quebrar: (Causa, Paciente} (64) colocar: (Agente, Tema, Locativo} Este termo, estrutura argumental, que aparece nos anos de 1980 na Lin- Suistica Americana, equivale, grosso modo, ao conceito de valencia verbal introduzido anteriormente na Linguistic Europeia pelo linguista francés Tesniére (1959). Segundo Crystal (2000, p. 264): O terme [suléncia} se Origins da quimica, e & usado na linguistica com refeee cia avn » € 40 tipo de lags que podem eaistis ome na quimnica, umn determinado elemento pode ter dif cm difecentes conteatos, Una gramatica de valéncias apresenta um mole “entenga contendo um elemento fundamental (em geral, um verbo) cus. C 58 Digitalizado com CamScanner niimero de elementos dependentes (denominados argumentos, complementos ou valentes), [...]. ‘Assim como no estudo das estruturas argumentais, existem autores que sam o termo valéncia para se referir somente ao ntimero de argumentos e suas relacées sintaticas e outros incluem nesse estudo também os tipos se- minticos dos argumentos. Neste livro, seguimos a Linguistica Americana e adotamos o nome de estrutura argumental para o estudo dos itens verbais"”. Antes de seguir com a nossa argumenta¢o, cabe uma observagio a res- peito da presenga de alguns papéis tematicos em estruturas argumentais, como, por exemplo, o locativo representado na estrutura argumental do verbo morar: (65) morar: {Objeto Estativo, Locativo} Pode-se pensar que todo verbo tem um locativo, pois toda situacéo acontece em algum lugar (O Paulo correu na rua/Eu quebrei um vaso em ca- sa/O Chico tem uma casa na praia). Realmente, essa afirmagio é verdadeira. Entretanto, seguindo a ideia de Corréa e Cangado (2006), vamos separar as nogées de locativo do evento e locativo do predicador'. O locativo do evento nao aparece na estrutura argumental, pois ele nao faz parte do sen- tido especifico do verbo, mas do evento denotado por qualquer item lexical verbal; nesse caso, o papel de locativo é atribuido por qualquer preposicao que peca um complemento que denote lugar. J4 0 locativo do predicador faz parte da estrutura argumental do verbo que exige um argumento lo- cativo para saturar seu sentido; nesse caso, € 0 proprio verbo o atribuidor do papel de locativo. Entretanto, como fazer essa distingao, se ambos os locativos indicam o lugar em que 0 evento ocorre e Si0 acarretamentos das 12, Para uma andlise da Gramatica de Valéncias no portugues, cf. Borba (1996), a Chomsky (1965) aponta pa Bi " e“locativos externos ao sintagina verbal’ i los verbos e os segundos modificam todo o sintagmna verbal, ou mest CEtb, Brunson (1993), para maiores detalhes sobre locatives, existirem “locativos internos ao sintagma ver~ 5s primeiros sio construgdes mais proximas 10 toda a sentenga. xo fato de 59 d Digitalizado com CamScanner po | et al. (2 : tencas em que esses papéis aparecem? Mioto et al. (2013) apr esentany co senten¢: SSeS teste, em que a ambiguidade ou nao das sentengas indica 0 y, este, AUOr argue, tal do locativo. Veja os exemplos: (66) A soprano disse que mora em Belo Horizonte. (67) A soprano disse que canta em Belo Horizonte. Os autores mostram que a sentenga em (66) nao é ambigua, Pois 0 sin. tagma em Belo Horizonte s6 pode entrar para saturar 0 sentido do pr imeito verbo, morar, que, no caso, pede o locativo. Portanto, esse locatiyo ¢ te. presentado na estrutura argumental do verbo morar. Entretanto, em (67, pode-se ter duas interpretagdes para a sentenga: a soprano estava em Belg Horizonte quando ela disse que cantava ou a soprano disse que o lugar em que ela canta é Belo Horizonte. Essa ambiguidade se deve ao fato de og dois verbos da sentenca em (67), dizer e cantar, nao pedirem nenhum com- plemento locativo para saturar seu sentido, podendo 0 locativo, Portanto, funcionar como adjunto de ambos os verbos, indicando somente o lugar em que um (dizer) ou outro evento (cantar) ocorre. Com isso, nas estru- turas argumentais dos verbos dizer e cantar nao é representado 0 Papel de locativo, Tem-se, entdo, exemplo de um locativo do predicador em (66)¢ de um locativo do evento em (67). O mesmo raciocinio pode ser feito para tempo: qualquer evento pod acontecer em um determinado tempo. Mas, também, existem verbos que pedem argumentos desse tipo semantico para lhe saturarem o sentido, es- pecificamente. Propomos um exemplo Para identificar se um sintagmano- minal que denota tempo é um argumento (como no caso do verbo durar) ouum adjunto (com 0 verbo corer): (68) 0 juiz esperou que o jogo durasse vinte minutos. (69) 0 juz esperou que o atleta cotresse vinte minutos, _Asentenca em (68) nao tem uma leitura ambigua, pois o sintagma vine minutos € argumento do verbo durar, ou seja, 0 verbo pede um sintagm a a 60 Digitalizado com CamScanner 3 er que denote tempo para completar seu sentido, ndo podendo o sintagma yinte minutos funcionar também como adjunto do verbo esperar. Ja em (69), ha ambiguidade, pois 0 verbo correr nao pede um sintagma que de- note tempo para completar seu sentido, podendo o sintagma vinte minutos fancionar como adjunto dos dois verbos da sentenga. Portanto, fica evidente que o que sera representado na estrutura argu- mental sio somente os argumentos que o verbo pedir para saturar seu sen- tido, ou seja, 0 sujeito e os complementos", Ainda em relagao a estrutura argumental, pode-se observar que alguns verbos formam uma classe semantica especifica, ¢ que essa classe também pode ser representada em uma estrutura argumental mais ampla. Por exemplo, verbos como dar, emprestar, doar, pagar etc., que expressam uma transferéncia a partir do agente da a¢do, terao a seguinte estrutura argu- mental geral: (70) Verbos de transferéncia: {Agente, Tema, Beneficidrio} Note que essa ¢ uma maneira interessante de descrever caracteristicas semanticas semelhantes, pois adotar um tipo mais genérico de represen- tacdo semantica para os verbos tem um papel importante na descri¢io das Iinguas. Outras classes especificas podem ser a dos verbos psicolégi- cos'5, como amar, detestar, temer etc., a dos verbos de trajetéria, como vir, ir, chegar etc.: (71) Verbos psicolégicos: {Experienciador, Objeto Estativo} (72) Verbos de trajetdria: (Agente, Locativo} 14, Para uma discussao mais aprofundada sobre a diferenga entre complementos ¢ ad- juntos cf, Baker (2003), Koenig ¢ Davis (2006) ¢, especilicamente para 0 portugues, Cangado (2009), 15, Sobre verbos psicolégicos, cf. os seguintes autores: Ruwet (1972), Belletti ¢ Rizzi (1988), Grimshaw (1990), Pesetsky (1995), Cangado (1995), Iwata (1995), Cangado ¢ Franchi (1999), Landau (2010), entre outros. 61 — 1 Digitalizado com CamScanner Por fim, apontamos uma tiltima observa¢ao a respeito das €struturas a gumentais, jé comentada anteriormente. Até aqui, tratamos apenas dog is bos, 0s atribuidores de papéis teméticos por exceléncia. Entretanto, hy i tores, como Anderson (1979), Cinque (1980), Torrego (1985), Borba (1996) ¢ Giorgi e Longobardi (1991), que também associam a alguns nome. lem geral, os deverbais, ou seja, nomes que se originam de verbos) a Propriedadg de atribuirem papéis tematicos; si0 nomes que pedem complementos, (73) a.a construgio da casa (Resultativo) b.o aperfeigoamento do curso (Paciente)'* Ainda se pode estender a atribuicao de papel tematico aos adjetivos: (74) a. orgulhoso de seus filhos (Objeto Estativo) b. contente com seu desempenho (Objeto Estativo) c. O Milton é feliz. (Objeto Estativo) E mesmo algumas preposigdes, em determinados ambientes, também atribuem papel tematico a seu complemento. Como foi visto, com atribui © papel de instrumento, mas também pode atribuir 0 papel tematico de companhia ao seu complemento, como em (75), abaixo. Sobre atribui o papel tematico de locativo a seu complemento em (76): (75) A Marta veio com a Sofia. (Companhia) (76) O fazendeiro dormiu sobre o feno. (Locativo) 16. £ interessante fazer uma ressalva sobre os Papéis tematicos dos complementos de no- mes, seguindo observagao de Gabriel Othero: “Para a tradigao gramatical, & justamente a que reside a distingao entre complemento nominal ¢ adjunto adnominal. Um complemen- to nominal é um complemento que “vem” de um objeto direto da estrutura verbal que di origem ao nome deverbak; um adjunto adnominal &o sujeito que “vem” do sujeito do ver bo. Por isso, um complemento nominal nunca (ou raramente) recebers o papel de agente ou causador, papéis destinados ao sujeito verbal: i, a. [A destruigio de Nero] entrou para a historia, b. [de Nero}, agente (Nero destruiu..) = adjunto adnominal iia. [A destruicao de Roma} entrou para a historia. b. [de Roma}, paciente (Alguém destruiu Roma) = complemento nominal!” 62 | — | i Digitalizado com CamScanner re ma) Entretanto, percebe-se que a preposicao é uma classe de palavra muito especificas e para se saber exatamente a informagdo temitica de seus argu- mentos De posse dessas informagoes sobre a estrutura argumental de um item parece necessiria uma composigao com os verbos”, al, temos agora instrumentos para aponti mos, de uma forma deta- lexi Jhada, as vantagens de se adotar o contetido semantico dos papéis tema cos como nodes relevantes gramaticalmente, 3.2 Ligacdo entre papéis tematicos e funcées sintaticas Como apontamos acima, a representagdo da estrutura argumental ado- tada neste livro jd traz em sia informagio a respeito da ordem dos argu- mentos na sintaxe em relagio aos papéis tematicos daquele item lexical. Veja a representagio da estrutura argumental do verbo maquiar: ) maquiar: {Agente, Paciente} Aestrutura em (77) nos informa que o agente est na posicao de sujeito eo paciente, na posi¢ao de complemento. Parece Sbvio e simples, pois € sabido que em portugués, quando se tem sentencas do tipo a mae maquiou a filha, 0 agente € 0 sujeito e o paciente é o complemento. Mas como ex- plicitar esse nosso conhecimento em termos tedricos? Por que, quando se véo evento no mundo, por exemplo, de uma mie maquiar a sua filha, nao se relata esse evento usando a sentenga a filha maquiou a mae? Veja que, construindo uma sentenga desse tipo, nio se estaria cometendo nenhum erro sintatico, ou seja, a ordem da sentenga [SN V SN] e outras competén- cias sintiticas estio sendo obedecidas. Também nio se estaria cometen- do nenhum erro em termos semianticos de restrigdes selecionais, nem em 17, Para um estudo mais detalhado do comportamento semantico das prepesigdes do Portugués, cf. Berg (2005), Godoy (2008b) ¢ Cangado (2009), onde as autoras tratam da Atribuigao de papeis temidticns pelas preposigoes, mostrande a distingto entre preposigio funcional (nao atribuidora de papel temitico) ¢ lexical (atribuidora de papel temiticn) 63 ee 4A Digitalizado com CamScanner termos de papéis temiticos, pois o verbo maquiar pede dois argumentos para saturar seu sentido, que recebem os papéis de agente e paciente, Por. tanto, essa sentenca € gramatical para os falantes do portugués, Entio, por que nao é usada para falar do evento que citamos acima? Pode-se afirmar, a, que, no portugués, a se Narrar ume iente que sofra a agdo, o argumMento que denota ae vento em que haja un agente da acdo € um pac © agente sempre est associado a posigao de sujeito ¢, consequentemente, o paciente a posigao de complemento. Assim, ao se usar a sentenga a filha maquiou a mae, 0 papel tematico de agente € automaticamente associado, a0 argumento a filha e, por isso, nao se esta relatando 0 evento visto, Com esse raciocinio, apontamos uma primeira regra teorica de ligagdo entre os papéis tematicos ea sintaxe — 0 argumento que denota 0 agente sempre esti dio de complemento -, associado & posigao de sujeito e 0 paciente d po: ‘as como sendo parte do “Principio regra esta que é explicitada pelos linguis da Hierarquia Tematica” ou também “Principio de Ligagio entre a Sinta- xe ea Semintica”"*. Com essa afirmagao, fica claro, também, que a ordem 0 da estrutura argumental de um item dos papéis temiticos na represent lexical, como a aqui adotada, é uma informagao derivada desse principio. Essa regra de liga¢do entre sujeito/agente e complemento/paciente pare- ce funcionar nao s6 para o portugués, mas também para varias outras lin- guas, como inglés, francés, italiano, espanhol, entre outras. E é exatamente esse tipo de regra, envolvendo as funcées sintaticas e também outros papéis tematicos, que muitos linguistas vém tentando incorporar ao Principio da Hierarquia Tematica. Portanto, existe um grande consenso na literatura de que existe um principio que rege a organizagao da sintaxe, relacionando os Papéis tematicos as funcoes sintaticas de uma sentenga, e essa informa¢io esta representada na estrutura argumental de um item lexical. £ assumido 18, Podemos citar: Fillmore (1968), Jackendoff (1972, 1983, 1990), Givin (1984) Foley © Van Valin (1984), Van Valin ¢ LaPolla (1997), Van Valin (2005), Carrier-Duncan (1985) Baker (1988), Bresnan e Kanerva (1989), Grimshaw (1990), Dowty (1991), Hudson (1992) Franchi e Cangado (2003b [1997]), Cangado (2005), entre muitos outros. 64 sistent |) Digitalizado com CamScanner aa que quando um falante constréi uma sentenca, tende a colocar 0 agente na posigao de sujeito; se ndo houver um agente, a segunda preferéncia é para um paciente ou tema; € assim por diante”’. Entretanto, existem muitas ver- sges dessa proposta hierdrquica e nem sempre hé um consenso entre quais sio os papéis que dela fazem parte ou qual é a ordem exata desses papéis. Exemplificamos esse princfpio, de uma maneira mais geral, através de uma sequencia hierarquica de alguns dos papéis tematicos aqui propostos: (78) Agente ou Causa > Paciente ou Tema ou Resultativo > Objeto Estativo > Locativo Existem papéis que nao ocorrem simultaneamente, ou seja, ndo existem. verbos que tenham um agente e uma causa”, ou um paciente e um tema em sua estrutura argumental. Na estrutura hierdrquica em (78), os papéis localizados mais & esquerda sio os que tém a preferéncia para a posicao de sujeito; ou seja, se um verbo apresentar em sua estrutura argumental mais de um papel, serd o agente ou a causa que terd a preferéncia para ser 0 su- jeito desse verbo. Por exemplo, 0 verbo maquiar, como mostramos acima, atribui a seus argumentos os papéis de agente e paciente. Pela hierarquia em (78), 0 papel de agente tem a preferéncia para ocupar a posicdo de sujeito e, consequentemente, o paciente ocupara a posi¢ao de complemen- to. Portanto, é esse principio que estabelece a ordem dos papéis tematicos apresentada na estrutura argumental do verbo em (77), e repetida abaixo: (79) a. A mae maquiou a filha. b. maquiar: {Agente, Paciente} 19, Nao entraremos em detalhes aqui, mas é importante realgar que também € preciso ‘xistir algum mecanismo para que haja o reconhecimento de qual argumento corresponde 420 sujeito € qual corresponde ao complemento na sentenga, Uma boa proposta, no nosso entender, encontra-se nas teorias gerativistas, com a atribuigado de casos sintaticos: associa-se © sujeito ao caso nominativo € 0 complemento ao caso acusativo. Assim, os 280s sintaticos “tornam visiveis” os papéis tematicos na sentenga. 20. Mostraremos no Capitulo 3a relevancia de se ter agente e causa como dois papéis temé: ticos distintos, apesar de alguns autores nao assumirem essa distingao, 65 — eee Digitalizado com CamScanner Se o evento no mundo a ser descrito é que a mae Maquiow filha, pely sabe-se que a mac é 09 conhecimento semintico do falante, ABENIE desc, tha é 0 paciente. Para se fazer a ligagio desse conhecinye lo agao ¢ que afi 5 jante usa o Principio da Hierarquia Tem, semantico com a sintaxe, 0 fal a. a mae, que denota a pe: associa o sintagm 0a MAE NO MMUNdD, posig5y de sujeito, Da mesma maneira se faz com 0 paciente denotado pelo Sintag. ma a filha, associando-o 4 posigao de complemento. E assim tem-se ung esenciado: a mae maguion a filly, sentenga que éa denotagio do evento pr Sea situagao a ser descrita no mundo fosse a inversa, a filha & que maquioy ‘amie, entao o falante teria de fazer 0 mesmo procedimento, associandy a fill & posigao de sujeito, ¢ assim por diante. Outro exemplo é a estrutura argumental do verbo ir, que atribui os papéis temiticos de agente (ou tema) ¢ locativo para os seus argumentos. Segundo 0 Principio da Hierarquia ‘Tematica, o agente (ou mesmo 0 tema) tem prefe- réncia sobre o locativo; dai, tem-se a seguinte estrutura argumental: (80) a. A aeromoga foi para Paris. b. ir: {Agente, Locativo} Um ultimo exemplo para ilustrarmos 0 principio é 0 verbo morar, que atribui os papéis tematicos de Objeto Estativo e Locativo para os seus argu- mentos. Segundo o Principio da Hierarquia Temitica, 0 objeto estativo tem preferéncia para preencher a posigao de sujeito em relacao ao locativo; dai, tem-se a seguinte estrutura argumental: (81) a. O Paulo mora em Belo Horizonte. b. morar: {Objeto Estativo, Locativo} Pode-se perceber que os papéis temiticos de experienciador e beneficié- rio nao apareceram na nossa proposta. Varios autores incluem esses papéis na hierarquia, 0 que é esperado, dadas as definigdes apresentadas. Entte- tanto, esses papéis trazem sérios problemas as hierarquias propostas, Po eles aparecem em distintas posigdes nas estruturas argumentais de certos = | Digitalizado com CamScanner ee verbos. O experienciador pode aparecer em posigao de sujeito e de com- plemento, dependlendo do tipo do verbo. ko beneficisrio pode aparecer na io desujeito, complemento direto e indireto. Por exemplo, se langarmos, posiga nfo da hierarquia de Bresnan ¢ Kanerva (1989), teremos um problema para ocorréncias. Abaixo mostramos a proposta dos autores (tra- aanilise des dugio nos (82) Agente > Beneficidrio > Experienciador > Instrumento> Tema ou Paciente > Locativo Ahierarquia dos autores estabelece uma ordem de prioridade para o be- neficidrio ¢ 0 experienciador em relacio ao tema. Como a hierarquia em (82) nao prevé um papel temitico que seja simplesmente um objeto sobre o qual se faz referéncia ou simplesmente uma causa, vamos assumir que os papéis dos argumentos em posigao de objeto em (83a) e em posigao de sujeito em (83b), assim como os papéis dos argumentos em posicao de complemento em (84a) ¢ (84c), sdo temas, como é comum se assumir na literatura: (83) a. A Raquel ama o Felipe. {Experienciador, Tema} b.As provas preocupam os alunos. {Tema, Experienciador} (84) a. A aluna ganhou um prémio. {Beneficiirio, Tema} b. O patrio pagou o empregado. {Agente, Beneficiirio} ¢.A professora deu um prémio para a aluna. Agente, Tema, Benefic io} das ha proposta de Bresnan e Kanerva (1989), tem-se que, além de nio se con- Seguir atribuir os tipos de clara, pode-se perceber nitidamente que (83a) ¢ (84a ¢ b) esto de a Fazendo uma anilise das estruturas argumentais de (83) e (84), basea péis nas sentengas acima de uma forma muito ‘ordo, om a proposta, mas (83b), em que se tem um tema em posigdo mais alta do que o experienciador, ¢ (Bc), em que se tem um tema mais alto do que © beneficiério, vio em diregao oposta a assumida pela hierarquia. Portanto, 0s papéis ¢ : a « * Papéis experienciador ¢ beneficiirio sto também um problema apresen- fa Del Ai, 4 'do pela proposta de papéis tematicos. or >. Digitalizado com CamScanner 4 Concluindo, mostramos como os papéis tematicos estabelecem a est, ei mantica e a sintaxe de uma lingua, através do Pring. 1a Tematica, e esse seria um dos principais area. A proposta de hierarqui, ta relagao entre a se! pio de Ligagdo ou da Hierarqui motivos para se continuar 0s estudos nessa é muito aceita pela literatura linguistica; no entanto, como mostramos, existem varias divergencias a respeito da ordem dos papéis, de quais sig is realmente relevantes para a hierarquia \cdes j4 foram propostas na literatura para os e de como esses papéis os pap: sio definidos. Algumas solu problemas aqui apresentados. Mostraremos, no capitulo seguinte, algumas dessas solugdes, mas antes mostraremos, ainda, a relevancia de estudos so- bre os papéis tematicos para os fenodmenos da alternancia verbal e da for- magio da voz passiva. 3.3 Alternancia verbal Como foi visto, os indicios de que certos aspectos semanticos sao re- Jevantes para a sintaxe das expressdes linguisticas corroboram a tentativa de se tratar os papéis tematicos de uma maneira mais rigorosa, tendo um Status teérico em uma teoria gramatical, Além das evidéncias empiricas da lingua de que hi uma relagao de hierarquia entre as posigdes sintaticas eos Papéis tematicos, existem ainda algumas outras propriedades sintaticas que apresentam restrigdes de ordem semantica para ocorrer. Um exemplo ¢ 0 caso do que € conhecido na literatura linguistica como alternancia verbal (ou alterndncia de didtese"), Quando se quer falar de um evento no mundo, a lingua oferece aos falantes alguns instrumentos; por exemplo, pode-sé falar da perspectiva do agente, ou pode-se omitir esse agente, entre outs possibilidades. Essas diferentes formas de a lingua organizar a estrutura sintitica estao relacionadas ao que se chama de “alternancia verbal”. 21. Os termos apresentam o mesino significado na Semantica Lexical (LEVIN: 1993 RANCHI, 2003 [1997}). — —— Digitalizado com CamScanner er O termo alternancia verbal é muito amplo e usado de diferentes formas na literatura. Geralmente, o termo se refere & possibilidade de um verbo apresentar mais de uma representacao de estrutura argumental e diferentes formas de transitividade para denotar distintas perspectivas de um mesmo evento no mundo. Por exemplo, o verbo quebrar pode aparecer em duas sentengas diferentes e com distintas estruturas argumentais, como nos exemplos abaixor (85) a. O menino quebrou a vidraga, . quebrar: {Causa, Paciente} (66) a.A vidraga (se) quebrou. . quebrar: {Paciente] Pode-se dizer das representagées acima que 0 verbo quebrar alterna entre duas estruturas argumentais: uma perspectiva causativa ¢ outra perspecti- va incoativa (ou ergativa)®, Esse seria um fenémeno tipico de alternancia verbal. Entretanto, nao sao todos os verbos que permitem essa alternancia: (87) a. O atacante jogou a bola. b. jogar: {Agente, Tema} (88) a. *A bola jogou. b. *jogar: {Tema} Fillmore (1970) argumenta que verbos como quebrar e jogar diferem em relagéo ao tipo de papel tematico de seus complementos e, por isso, apresentam distintos comportamentos de realizagao argumental, ou sej 0 primeiro pode apresentar uma alternancia, ao passo que 0 segundo nao ‘egundo Dixon (1994), 0 termo ergativo empregado em relagio & alternancia verbal é menos adequado, pois ha também o caso ergativo, um conceito sintatico, utilizado princi- palmente nos estudos de linguas indigenas. Mas € importante realgar que também o termo incoativo nao totalmente adequado. Esse termo esti sendo aqui usado para indicar que © evento esta sendo visto apenas pela perspectiva de seu ponto final, Entretanto, o termo lambém é usado para descrever verbos que apresentam o aspecto inceptivo, ou seja, que {raven o sentido de inicio de uma situagao (p. eX. mascer, amanhecer). Como se pode nota esses verbos nao apresentam a “alternincia causativo-incoativa’s Optamos pelo termo it~ Coativo em oposicdo ao termo eausativo (seguindo a nomenclatura assumida por LAKOFA, 1970), por sero termo mais usado na area da Interface Sintaxe-Semintica Lexical, 69 Digitalizado com CamScanner | apresenta essa possibilidade. Uma das hip6teses correntes na literatura g que verbos que tém um paciente como complemento aceitam esse tipo de alternancia verbal; os que nao apresentam um paciente na posicao de com. plemento nao permitem a alternancia. Portanto, esse tipo de argumenta. G40 6 uma evidencia de que propriedades semanticas dos itensverbas,o, mais especificamente, os tipos de papéis tematicos, tém relevancia diret, na estruturacdo sintatica apresentada pelos verbos. Tem-se ai outra forte motivagao para se investir em estudos sobre os papéis tematicos, Com um conhecimento mais profundo dessas nogées, com definicdes mais explici- tas, pode-se compreender melhor a real relevancia da semantica na estry. tura¢ao sintatica das sentencas. Outra observagao a respeito da alternancia verbal, proposta por alguns autores, tem relagao com a transitividade. Para alguns, a alternancia verbal diz respeito somente as duas possibilidades sintaticas de um verbo ser rea- lizado, ou seja, apresentar uma forma transitiva e outra intransitiva, Entre- tanto, segundo Levin (1993), pode-se assumir uma definicao mais ampla de alternancia, incluindo ai qualquer forma de reorganizacao da estrutura argumental de um verbo. Contudo, como reconhecido pela autora, uma das formas mais comuns de alternancia envolve a mudanca na transitivi- dade do verbo, que passa de uma forma sintatica [SN VSN] para uma forma [SN V]; nesse caso, 0 papel tematico do sujeito do uso intransitive €0 mesmo que o papel tematico do complemento da forma transitiva. Em Portugués, esse fendmeno pode ser ilustrado coma alternancia causativo- ~incoativa mostrada em (85) e (86). Veja mais exemplos desse fendmeno: (89) a. O vento abriu a porta. (Causa, Paciente} b. A porta (se) abriu, {Paciente} (90) a. briga machucou a menina. {Causa, Paciente} b.A menina (se) machucou, {Paciente} (91) a. Os exercicios pesados cansaram a atleti b.A atleta (se) cansou. {Paciente} a. (Causa, Paciente} 23. Um ample estudo sobre os varios ti pos de alternancias verbais existentes no portugu’ envonta-se n Amaral (2015), | 70 Digitalizado com CamScanner eee Em portugués, pode haver a inser¢ao do clitico se na forma intransitiva, ‘como uma forma de marcar a alternancia verbal. Entretanto, notamos que, onde o se aparece entre parénteses (marcando opcionalidade) nos nossos exemplos, pode haver variagao em relagao a obrigatoriedade do clitico em alguns dialetos do portugués. Por exemplo, a presenca do se em sentengas com argumentos animados, como em (90b) ¢ (91b) nao € opcional para falantes de varias regides do Brasil. E importante salientar também que aocorréncia do clitico se no portugués é muito ampla e nao se restringe apenas & marcagao da alternancia causativo-incoativa. Por isso, antes de continuarmos nossa explicacao sobre as alternancias, é fundamental que facamos uma explicagao a respeito da ocorréncia desse clitico em portu- gués, de uma maneira geral. 3.3.1 O clitico se em portugués clitico se aparece em varios tipos de sentengas do portugués, como nos casos que mostraremos abaixo. Seguindo, em parte, andlises jé apon- tadas para o clitico se no portugués (NUNES, 1990, 1995; GODOY, 2012), pode-se afirmar que existe uma forma se que é um clitico, apresentando, pelo menos, nove tipos de usos*. Mostramos aqui esses tipos, lembrando que, onde colocamos parénteses, pode haver variacao dialetal, com a obri- gatoriedade do uso do clitico em algumas regides do Brasil: (92) A menina se lavou. (reflexiva) (93) As meninas se lavaram. (reflexiva ou reciproca) (94) A menina (se) sentou. (média) (95) A menina (se) machucou. (incoativa) (96) Menina (se) machuca facilmente. (medial)?* (97) Machucou-se a menina, (passiva sintética) 24, Também existe a forma se nao clitica da conjungio condicional, que nio € relevante Para o nosso estudo: se a menina for, eu vou, 25, Existem alguns linguistas que tratam sentengas desse tipo como exemplos de médias, {alvez pela tradugao do inglés, em que essas sentengas sio chamadas de “middle”. Entre- {anto, trataremos essas sentencas como “mediais’, seguindo a sugestio de Souza (1999), distinguindo-as das médias, mostrada no exemplo em (94). WV > 4 Digitalizado com CamScanner (indeterminagio) -se da menina por at. fe) cera inerente) (99) A menina (se) arrependeu. (i (100) LA (se) vai a menina. (enfético) Em (92),0 uso mais associado ao clitico se, tem-se um exemplo da mar. m (92), : flexiva que, quando aparece, apenas indica a mudanga de voz, subs. ca reflex » qua . mento em posicao de complemento; esse se continua a ser 1o verbo, recebendo papel tematico ¢ exercendo funcio de complemento, Nas sentengas reflexivas 0 se ndo pode ser omitido: “a meni. na lavou, Outro teste a ser feito, seguindo Camacho (2003) e Godoy (2012), para se verificar a natureza reflexiva do clitico, ¢ substitui-lo pela ex. tituindo o argu um argumento di pressio ela mesma: a menina lavou ela mesma. Apenas 0s reflexivos acei- tam tal substituigdo na pardfrase da sentenga. Em (93), mostramos um exemplo de possivel interpretacao reciproca. ‘Toda sentenca em sua forma reflexiva com o clitico se, quando tem na po- sigdo de sujeito um sintagma que denote pluralidade, assume também uma leitura reciproca (MASLOVA, 2008). Pode-se assumir que a possibilidade de se ter uma forma reciproca com sujeitos plurais também evidencia se uma sentenca estd na sua forma reflexiva ou nao”. Em (94), a marca, que denominamos “se médio”, indica uma certa re- flexividade do argumento em posi¢ao de sujeito, mas nao substitui o ar- gumento complemento como na reflexiva, nao recebendo papel temiti- Co, nem exercendo fungio sintética (CAMACHO, 2003). Segundo Amaral (2015), esse tipo de clitico se apenas ocorre com verbos que denotam algum tipo de movimento. Diferentemente da reflexiva, 0 se médio pode ser omi- tido em alguns dialetos do Brasil —a menina sentou —ea sentenga nao pode ser parafraseada com a expresso ela mesma (CAMACHO, 2003; GODOY, 2012). Também pode-se perceber que 0 se médio ocorre em sentengas eventivas que denotam a afetag: to sujeito da sentenga como um todo; seu corpo, ~*a menina sentou ela mesma ‘Jo do argumen- @ menina nao pode sentar parte de Jé 0 se reflexivo pode ocorrer em sentencas eventivas que s40 26, Sobre reciprocidade em portugues, cf, Godoy (2008a), 72 a —=d Digitalizado com CamScanner interpretadas como tendo uma afetacao em parte ou no todo desse mesmo argumento: em a menina se lavou, pode-se entender que a menina lavou alguma parte do seu corpo ou todo 0 seu corpo”. Em (95), tem-se o clitico se como a marca da alternancia da forma tran- sitivo-causativa para a forma intransitivo-incoativa de um verbo: a briga machucow a menina/a menina (se) machucou. Esse se nao recebe papel te- matico, nao apresenta fungao sintatica e pode ser omitido na sentenga em alguns dialetos do portugués: a menina machucou. Segundo Haspelmath (1993), 0 litico se aparece nas Iinguas romanicas para marcar a forma de- rivada de uma sentenga que seria considerada basica. E importante realcar que essa sentenga também pode ter uma leitura reflexiva, agentiva, diferen- temente da incoativa em que 0 sujeito é um paciente, e em quea presenca do se é indispensdvel: a menina machucou ela mesma. Ainda, para se diferenciar odiitico médio do clitico incoativo quando 0 sujeito das sentengas ¢ animado (j4 que os dois tipos de cliticos podem ser apagados da sentenca em alguns dialetos), pode-se evidenciar a natureza agentiva das sentencas médias com uma adjungao de finalidade, que é o teste sugerido por Jackendoff (1972): a menina (se) sentou para descansar/*a menina (se) machucou para chorar (essa tiltima sentenca s6 é gramatical em sua leitura agentiva, reflexiva). Em (96), a principio, 0 clitico se teria o mesmo papel do exemplo em (95), marcando a alternancia do objeto para a posicao de sujeito. Assim como na incoativa e na média, o clitico é opcional em alguns dialetos do portugués endo tem funcao de argumento ou de complemento do verbo. Entretanto, esse tipo de sentenca derivada geralmente traz o verbo flexionado no tempo presente, parece precisar de uma marca adverbial para ter mais aceitabilida- de e nao denota mais 0 mesmo evento no mundo da sentenga basica. Com isso, a partir da forma como definimos alterniincia verbal, esse nao seria um exemplo de alternincia em que ocorre a reorganizagao da estrutura argu- mental ¢ uma mudanga de perspectiva do evento (como também apontam 27. Sobre as restrigoes para a alterndncia média em portugues, cf. Amaral (2015). Digitalizado com CamScanner _, LEVIN & RAPPAPORT HOVAY, 1994, para inglés). Entendemos, co, seré mostrado no Capitulo 4, que hé uma alternancia de aspecto do Verbo, que tem como aspecto basico um accomplishment e torna-se um estado de. rivado nesse tipo de construgao. Sentengas desse tipo, que chamaremos i “mediais” seguindo Souza (1999), denotam genericidade em relacag a0 pro- cesso descrito pelo verbo e atribuem ao sujeito um tipo de estado, Mais es. pecificamente, uma propriedade de determinado individuo, como Mostram, Keyser e Roeper (1984). Veja que sentengas mediais nao aceitam uma final. dade, por serem estativas: *meninas (se) machucam facilmente para atrair q atengfio (essa sentenca é gramatical somente na leitura agentiva, reflexiva ). Em (97), 0 clitico se aparece como a marca da construcio Passiva sinté- tica, Contrariamente ao se que marca incoativa, média e medial, nao pode set apagado e aparece somente em posicio pés-verbal. Uma maneira de se distinguir a forma incoativa da passiva sintética é proposta por Souza (1999). Segundo o autor (e tb. PARSONS, 1990; HASPELMATH, 1993), a forma incoativa nao acarreta que o sentido agentivo esteja contido na sentenga e, como tal, néo aceita uma sentenga denotando finalidade: *a menina (se) machucou com a queda para assustar os policiais. J na forma da Passiva sintética, a agentividade continua Presente, permitindo adjungées que denotem finalidade: machucou-se a menina para chamar a atencio dos Policiais. Por essa propriedade das passivas sintéticas, parece-nos que 0 se nesse caso € 0 argumento agente do verbo, o agente da passiva. Além da obrigatoriedade do dlitico, outro indicio de seu cardter argumental é a im- Possibilidade de inser¢do do agente da passiva encabecado pela preposicio or nas passivas sintéticas: a menina foi machucada pelo malfeitor/*machu- course a menina pelo malfeitor. Também se pode perceber nao somente a mudanga de perspectiva, mas uma marca de indeterminagao do sujeito, 0 que nao € caracteristica das passivas analiticas. Evidéncia de tal fato é 0 uso bastante comum na lingua nao culta de sentengas do tipo vende-se casas, em que nao ha a concordancia do possivel sujeito com o verbo, gerando apenas a interpretagio de que alguém indeterminado vende casas". 28. Sobre o se apassivador ¢ indeterminador no portuguds, ef. Nunes (1990). 74 Digitalizado com CamScanner Em (98), 0 clitico se marca a mesma indeterminagao do sujeito apon- tada acima, s6 que com verbos transitivos indiretos. Também nesse caso, 0 ditico tem papel de indicar que a referencia do argumento do verbo que ocupa a posigo de sujeito ¢ indeterminada (nao se sabe qual é essa re- feréncia) ou ¢ irrelevante (dependendo da intengio do falante). Pode-se dizer, portanto, que o se indeterminador ¢ um argumento e recebe papel temitico, jf que ocupa uma posicao argumental do verbo, ¢ utilizado para saturar seu sentido, nao é opcional e pode ser substituido por um prono- me indefinido em uma pardfrase (fala-se da menina por ai/alguém fala da menina por ai). Em (99), tem-se um se que parece ser algum resquicio hist6rico, pois nao tem nenhuma fungao, pode ser omitido e é associado a alguns verbos especificos do tipo: arrepender, chamar, atrever, queixar etc. A Gramatica Tradicional trata esses verbos como sendo verbos pronominais e assume que 0 clitico é parte inerente desses itens. Nessas sentengas, 0 se nado é um argumento do verbo e nao recebe papel tematico. Podemos confirmar tal proposta com a constatacao de que o clitico em alguns dialetos ¢ opcional (a menina arrependeu (de ter ido a festa)/a menina se arrependeu (de ter ido 4 festa)) e de que esses verbos pedem somente um argumento, atribuindo também apenas um papel tematico. Como se tem um clitico que pode ser apagado e verbos de natureza agentiva, em alguns casos, pode haver alguma dificuldade em se distinguir 0 clitico inerente do clitico médio. Entretanto, basta notar que as sentencas médias sto derivadas de uma forma transitiva, como em a mde sentou a meninala menina (se) sentou, diferentemente das sentencas com cliticos inerentes *o padre arrependeu a meninala menina (se) arrependeu, Ainda, as médias sempre denotam algum tipo de movimento, o que no é caracteristica dos verbos que ocorrem com o clitico inerente. Em (100), 0 se nao exerce nenhuma fungio sintatica. Porém, intuiti- vamente, pode-se observar uma distingdo semantica entre sentengas com © sem o se: Id vai a menina/ld se vai a menina, Nesse caso, 0 se exerce uma fungao de reafirmar alguma propriedade do argumento sujeito do verbo 75 eee 4 Digitalizado com CamScanner i ici iti alga a espol i (na Gramiatica ‘Tradicional, nesse uso 0 clitico re: gi pontaneidade de le um movimento do sujeito). Chamaremos essa ocorrén. uindo Nunes (1995). Também nesse caso 0 sp scebe papel temitico. Indicios par, uma atitude ou di cia do clitico de “enfatico”, seg niio é um argumento do verbo e nao re o argumental sfo a opcionalidade do clitico€ o fato de que uma sentenga como ld vai a menina jé possui todas as posicdes argumentais nao sendo necessdrio que 0 se entre para saturar o essa natureza na do verbo preenchidas, predicador. Também, nao € possivel substituir 0 clitico por um argumento do verbo em uma parafrase. Uma tiltima observagao sobre o clitico se é que ele esta marcado para a terceira pessoa, nos casos mostrados acima. Nos exemplos de (92) a (96), se 0 sujeito das sentengas for alterado para a primeira pessoa, 0s cliticos me ou nos podem também ocorrer: eu mie lavei (reflexiva); nds nos lavamos (reflexiva/reciproca); eu (me) sentei (média); eu (me) machuquei (incoati- va); eu (me) machuco facilmente (medial); eu (me) arrependi (inerente). No caso da primeira pessoa do plural marcada por a gente e também para a segunda pessoa (vocé(s)), sempre ocorre 0 clitico se, jé que esses pronomes, no portugués, sio formalmente marcados para a terceira pessoa, apesar de se referirem semanticamente a primeira e & segunda pessoas. Em alguns dialetos, em que permanece o pronome tu, formalmente marcado para a segunda pessoa, ocorre também o clitico te. Nos casos restantes, passiva, indeterminagio, inerente ¢ enfatico, exemplificados em (97), (98), (99) € (100), respectivamente, nao ha distingao de pessoa e apenas o clitico se pode ser usado. Concluindo a explicagao sobre o clitico se, pode-se perceber que em portugués a mesma particula é usada para marcar diferentes nogbes s&- miantica apresentando interpretagdes da perspectiva média a perspectiv2 passiva, Entretanto, é interessante observar que em outras linguas, come © hiingaro, 0 russo e 0 japonés, essas diferentes nogdes semanticas 4° marcadas por morfema s diferentes. Em hiingaro, por exemplo, a reflexivt € marcada pelo pronome magat, enquanto a média é marcada pelo Me™ 76 —— Digitalizado com CamScanner er fema kod- ou koz~ (HORVATH & SILONI, 2011; MALDONADO, 2008) ¢-aincoativa € marcada pelo morfema -6dik ou -ik, dentre outras formas possiveis (HASPELMATH, 1993). Portanto, 0 clitico se em portugués nao pode ser entendido como uma particula usada para diferentes formas refle- sivas, como € interpretado por alguns autores (CHIERCHIA, 2004 [1989]; KOONTZ-GARBODEN, 2009); antes, trata-se de diferentes nogdes se- minticas sendo marcadas por uma mesma particula. 3.3.2 Restrigdes semanticas para a alternancia causativa Retomando a nossa anilise sobre a alternancia causativo-incoativa, mostraremos aqui as possiveis restrig6es de natureza semantica & ocorrén- cia desse fendmeno. Voltemos aos exemplos em (89)-(91), repetidos abaixo (com nova numeragio): (101) a. O vento abriu a porta. {Causa, Paciente} b.A porta (se) abriu. {Paciente} (102) a. A briga machucou a menina. {Causa, Paciente} b. A menina (se) machucou. {Paciente} (103) a, Os exercicios pesados cansaram a atleta. |Causa, Paciente} b, A atleta (se) cansou. {Paciente} Pode-se afirmar que em (101) 0 verbo abrir apresenta duas formas: a sentenga transitiva em (a), que é uma sentenga que expressa a causagao entre dois subevento: o evento de ventar causa a porta ficar aberta; ¢ a sentenga intransitiva em (b), que expressa somente a parte final do evento ~ o estado final de a porta ficar aberta. O mesmo esta expresso em (102); a sentenga transitiva em (a) é uma sentenga que expressa a causag3o entre dois subeventos ~ 0 evento de brigar causa a menina ficar machucada; © a sentenca intransitiva em (b) expressa somente a parte final do evento ~ © estado final de a menina figar machucada, Igualmente ocorre em (103): 2.A.nogio de cousniao € esplicada de uma forma detalhada nos Capitulos 4 e 5, 17 = _ 4 Digitalizado com CamScanner a sentenga transitiva em (a) & uma sentenga que €xPressa a causacao en, dois subeventos — o evento de fazer exercicios pesados causa a atleta ficar cansada; ¢ a sentenga intransitiva em (b), expressa somente 0 estado final do evento ~ o evento de a atleta ficar cansada. Para varios autores (HASPELMATH, 1993; LEVIN & RAPPAPORT HOVAY, 1995; REINHART, 2002), uma das sentengas da alternancia éa forma basica e a outra é uma forma derivada. Segundo Haspelmath (1993) a forma derivada de uma sentenga é sempre marcada de alguma forma, seja fonologicamente, morfologicamente ou sintaticament Le linguas roma. nicas, 0 clitico se aparece na forma intransitiva, 0 que significa que estaéa forma marcada e, portanto, derivada, ea forma transitiva co considerada a forma basica. A partir da forma basica, pode-se tragar restrigoes semin- ticas para a ocorréncia da alternincia. Whitaker-Franchi (1989), para 0 portugués, e Levin e Rappaport Hovav (1995), para o inglés, argumentam que 0 que permite que verbos do tipo abrir/machucar/cansar participem da alternancia causativo-incoativa é 0 complemento da forma transitiva ter © papel de paciente e o sujeito nao ser estritamente agentivo, ou seja, nado aceitar somente o papel de agente. Isso se comprova nos exemplos de (101) a (103). Veja que verbos que nao recebem o papel temitico de paciente no seu complemento ((104)-(106)) ou que sao estritamente agentivos ((107)- (109)) nao aceitam a alterndncia: (104) a. O vento empurrou a porta. {Causa, Tema} b.*A porta (se) empurrou, (105) a. O rapaz ganhou um carro. {Beneficidrio, Objeto Estativo} b. “Um carro (se) ganhou. (106) a. O aluno adorou a nova professora. {Experienciador, Objeto Estativo} b.*A nova professora (se) adorou. (107) a. A cozinheira temperou a comi b.*A comida (se) temperou, (108) a. A Maria lavou a calgada. (Agente, Paciente} b.*A calgada (se) lavou, (109) a. A decoradora enfeitou a casa. {Agente, Paciente} b.*A casa (se) enfeitou, {Agente, Paciente} 78 ——__ —_d Digitalizado com CamScanner

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