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Fernando Cristévao (coord.) CONDICIONANTES CULTURAIS DA LITERATURA DE VIAGENS ESTUDOS E BIBLIOGRAFIAS Textos de José Nunes Carreira, Sara Augusto, Maria Adelina Amorim, Fernando Cristbrao, Jodo Paulo Aparicio, Paula Pelticia, Manuel Joao Rames, José da Silva Horta, Ana Maria de Azevedo, Rui Manuel Loureiro, Hordcio Peixoto de Aratijo, Maria Benedita Aratjo ALMEDINA, CENTRO DE LITERATURAS DE EXPRESSAO PORTUGUESA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, L3. FCT Comma, 2002 3s relatos de nauftagios Maria Benedita Aradjo ‘Quando Bemardo Gomes de Brito compilow as doze narrativas que consttuiram o cerne da sua Histéria Trigko- Martina, preenchia uma lacuna no mercado liveiro porcugués da paca e dava continuidade a uma tradigéo tanto do gosto popular como de apreciagéo erudite, que jd remontava, pelo menos, 20 infcio do século XVI A obra, eujo titulo completo especificava Em (que se escrecers chronologicaaente os Naxfragios que tiveraé as Naos de Portugal, depos que se pos em evericio a Nevegagéo da India, era oferecida «A Augusta ‘Magestade do Muito Alto e Muito Poderoso Rey D. Joo V. Nosso Senor» « rela se descrevem, com grande dramatismo, alguns dos naufrigios ocortidos no século XVI e durante a centGria seguinte. ‘0 tomo primeira foi composto na oficina da Congregacdo do Oratério, em Lisboa Ocidental, em 1735, Estas narraivas jf andavam impressas prat camente desde as datas das suas ocorréncias ¢ haviam constituido ¢ conti- nuavam a ser verdadeinos éxitos de vendas. As licengas do Santo Oficio, obrigatéras para publicagéo e circulaéo, foram passadas pelo qualficedor © revedor daquele Tribunal, o Padre Frei Manuel de Ss, religioso da Ordem de ‘Nossa Senhora do Carmo, no ano de 1729, Este religioso pervencia igualmen- te a Academia Real da Histéria Portuguesa e ao redigir a sua «censura», da qual derivava a ancorizaclo, explicava: «He este livro 0 primeito tomo da Colleogio dos Naufragios, que na vasta navegaedo da India Oriental padece- rio alguns Galedes, e Navios Porcuguezes, ou hindo desta Cidade de Lisboa para.a Asia, ou voltando da Asia para a Europa. Dos tragicos sucessos, que se lem nas Relagoens destes infortunios, rem muito que se glotficara heroicidade daquelles espititos magnanimos, que desprezando tantas veres a fatalidade dos perigos, e dando nome, com as peregrinagoens ¢ sepulturs, a paizes incognitas ¢ barbaros eonde 0s arojou, ou a ira dos mares, ou 0 descuidos dos Pilotos, abritfo uma illustre escola de causelas> 1 Hisoritragie- maria Ee ue terete chromates Nexfogiosgneitar as Nows de 304 Hisori Assim, segundo Frei Manuel de Sé, a leitura desta obra serviria néo 36 para glorficar os que haviam vencido cs terriveis sacrificios inerentes as ‘ingens portugueses e aos frequentes navfeigis, mas também como wescola de cautelas» para todas aqueles que alguma vez se encontrassem em idénti- cas circunstincis, entregando as suss vides ¢ fazendas ao arbitrio dos ventos « das ondss. Que estas descrigées prendiam quem as lesse, testemunha 0 Padre Jélio Francisco, também da Congregagdo do Oratéro, escrevendo que sendo to lastimosos ¢ infeizes os aconcecimentos nasrados, contudo no petmitiam a menor interrupedo na sua leitura. De igual modo e sem haver qualquer «couse contra & «nossa Santa Fé, ‘ou bons costumes, promunciaram.se os restantes censores, considerando 0 livio utilissimo para os que houvessem de nevegar, pois «desenganados dos muitos ¢ gravissimas perigos de vida a que se expoem, concelsfo hum santo temor da mortes" Os naufidgios entio compilados foram: 1) nauftigio do galedo grande ‘Sto Jodo na Testa do Natal no ano de 1552; 2) naufrégio da nau So Bento no cabo da Boa Bsperenca no ano de 1554; 3) naultégio da nau Concegéo nos Baixos de Pero dos Banhos no ano de 1555; 4) relagfo do sucesso que tiveram as naus Aguia © Garca vindes da India pare este reino, no ano de 1559, A este ‘ltimo encontrava-se apensa a «Descricfo da cidade de Colombo pelo Padre ‘Manuel Berradas da Companhia de Jesuse; $) nauftigio da nau Senta Maria da Barea no ano de 1559; 6) naufégio da nau So Paulo na ihe de Samsatca no ano de 1561. As restantes relagdes pertencem ao tomo segundo: 7) nauftigio que passou Jorge Albuquerque Coelho vindo do Brasil no ano de 1565; 8) nauftigio da nau Santiago no ano de 1585; 9) nauftégio da naw Sao Tomé na ‘Terra dos Fumos no ano de 1589; 10) navfidgio da nau Santo Alberto no Penedo das Fontes no ano de 1593; 11) viagem da nau Sao Franco no ano de 1596; 12) tratado das batalhas € sucessos do galef0 Sco Tiago no ano de 1602 da nou Ghagas na ano de 1593. E evidente que a colectinea bemardiana nfo atingiu codas as versées publicadas, As vezes mais do que ume pornauttigio, eoriundas de diferentes penas. A alta de um estudo comparativo sistematizado e o desaparecimento de varios desses folhetos nfo permitem ainda hoje uma diseriminago de Paring pi ques poem exer e Nooo, 2 wo, Lisboa, Congegaso do Orato, 1735-36, Hira Tagi-Martins,compilda pot Beratdo Gomes de Brito, aneads comentade « acmpanhada dem esto por Annie Sergio, 3a, Lisbon, Edict Sul 1956-57, 2 Wid, wo | Lisba, Madi, 197), p. 5. Aaj: Os relatos de navftigio 395 ‘edigbes princeps, ou a destrings entre as obras autntiease as falsas, prinei- palmente a partir das reedigées serecentstas. Quanto’s versbes manuscrtas, de que tert resultado uma variade difusio das textos mais conhecidos, podem ter sido diversas embora nada se posse firmer com certezs. As indicagées anagréficas em muitas destas relactes apresentam-se confusas, ¢ 2s datas da ocorréncia do nauftigio ou da viagem, da edigdo princeps e da pactida podem nio ser conrectas ou coincidentes. 1. Garaceres gers dos relatos. Nio conhecemos o nome do Autor da Historia da uy notavel perda do geo grande Sam Joa, nacrativa da perdigio desse galedo, ocortida em 1582, ‘com a descrigdo das martes do capito Manuel de Sousa Sepiilveda, de sua mulher € filhos grande ndmero dos seus companheiros, perdidos na ‘Terra do Natal. A edigio de 1564 parece ser a segunda, antecedida por outra referida no Diccenariobibliographico portoguet, de Brito Aranha. Taz a indica- «fo de ter sido impressa em Maio, em casa de Joam da Bacrcira. E possivel que a primeira edigfo tivesse ocorrido em 1555, quando as noticiss foram conhecidas em Lisboa ou no ano seguinte, ¢ intitulava-se Relacio da Muy Notaoel Perde do Galeio grande S. Jao Em que xe conti os grandes traballos, ¢ lastinasesconsas que aconteerén ao etpitéo Manoe de Sousa Sepuiceda. ( grande interesse do piblico ledor levou a outras edig6es ao longo dos séculos XVI € XVII, pois a narrativa dos softimentos de D. Leonor, enterrada «em vida por suas proprias mas e apenas coberta pelo manto de seus cabelos, ‘uma vez.que os «caftes» a tinham abandonado desnuda, bem como a da sua morte impressionavam fortemente o leitor médio porcugues. ‘Mas porque consticuiriam estes pequenos trechos dramticos relzciona- dos com a Expansio portuguesa auténcicos Exitos? Cercemente porque havia ‘uma justaposigfo entre 0 horizonte de expectativa do leitor € o produto fornecido. Os fruidores podiam «softer» os horrores das aventurs perigosas vividas em cerras distances e indspitas, partcipar na peregrinagéo pelos serrGes sem arredar pé da seguranga do seu lar ‘Além disso, desde os tempos ndo muito distantes dos romances de cavalaria, a hipostatizagéo do her6i atistoerético continuava a seducic as imaginagées, premiando as bons, que se sacrificavam e cediam o seu lugar no batel da salvagio, & maneira do teetro vicentino, ¢ castigando os pecadores, avarentos, gananciosos, jogadores e outras de igual jaez, que, na concepeao acrescentarem os Aurores dos relatos de nauftégios o enriquecimento resultance da vivéncia maritima dos Portugueses no aventuroso quotidiano da vida a bordo. Por estas péginas perpassam t6picos signficativos acerca das actividades relacionadas ou de- senvolvidas no espagolimitado de um convés, desde o embarque na praia do Restelo, na ida para o Oriente, & carregagéo das mercadorias exéticas quando na tornacviagem. Igualmente presentes, os momentos angustiosos do naufté- io, a clevagdo de preces a Deus pare a salvagéo comum, a aceéo de graces uma ver aleangada terra de salvagio!. 3. Plano sintagmétio Como unidades principsis de desenvolvimento da ac¢éo consideram-se geralmente as seguintes: 1) embarque efou partide; 2) vida a bordos 3) pre- rmonigées; 4) nauftigio ou ataque de inimigos, seguidos de abandono da 9 Masia Renee Arn A Este Prague o Seinen Religie, Lisa, LSCSP, 196, 400 Hiscria cembarcagio; 8) aribada; 6) peregrinagio; 7) chegada a terra de acolhimento, © 8) acefo de gracas Muitas vezes, estas unidades nfo se encontram evidenciadss, ou a natragéo omite algumas delas. Também pode acontecer apresentarem-se opos incercalares, respeitantes a assuntos mercantis, produgbes e precos de diferentes especiaria com que os Porcuguesestransaccionavar, Estas tabelas « apontamentos da vida comercial ¢ maritima representavam temas da maior importéncia na época, no 36 para os Portugueses, mas também para os restantes povos curopeus que, desde o inicio das viagens de Expansio, procucaram estar a par destes conhecimentos ‘Vejatnos alguns exemplos das unidades principais presentes nas nartagées| de perdigies: Enbargue elo partida. Premonigies. Na viagem Lisboa-Goa, o embarque habitual cin lugar, conforme referimos, ra praia do Restelo, em Lisboa. Tal ‘correu na conserva que patiu no ano de 1553, em que seguirem pare a fndia Rui Pereira da Ciara, na nau Santa Mari da Barca, D. Paio de Noronha, na nau Santa Maria do Loreto ¢ Belchiot de Sousa na naur Gong. Igualmente , isto é, a travessia do Equador, ocasifo em que as embarcagées bandonavam o hemisfério norte e penetravam no hemisfério sul. Hiavia lugar para apresentagdo de cumprimentos ao piloto, comandante © oucras entidades civis € religiosas que: seguissem a bordo, Celebravamn-se aacgbes de gragas pela bondade divina, que permitira chegarem aquelas para- gens, com missa, pregagéo © sermoes alusivos. Seguiam-se encremezes € mascaradas em que 25 deidades marinhas estavam representadas, com um ou ‘outro marinheiro ostentando grandes barbas postigas € um tridente, insignias 15 «Suceso que tveram at nau Agia e Gare, in Mii Teg Martina, ol. p. 18 AraGjo: Os relatos de nauftigio 403 dde Neptuno, rei dos mares. Algumas vezes, as galhofas eram eruéis, princi- palmente para 0s novatos que pela primeira vez cevzavam aquele circulo, ‘com abusos a que as aucoridades punham cobro. Mais aremente, a Linha era atravessada sem que haja nas descrigées das viagens quaisquer anotagies referentes a estes Festejas”. Para amenizar 0 longo tempo de dcio, as jogos de azar eram vicio genera Tizado, em que muitos pecdiam j6ias © somas elevadas, endividando-se até 20 limite das suas posses. Apesar da severa fiscalizacéo exercida pelas autorida- des abordo e dos castigos da Ireje, jogetina dava origem a pendéncias entre 0s passageiros, com desafios armados a cumpris, uma ver alcangada terra Nos séculos XVII e XVI, os jogos a inheico tinham muitas vezes lugar pperante 0 capitéo, depois de publicades bandos proibindo as soldados de tomar parte € fixando os pregos méximos des apostas. Bvicavam-se assim as ‘quantias exorbitantes, 05 desafcs, as dispuras e blasfémias, com que os perdedores desafogavam a sorte adversa. Os infractores, conforme o estatuco social, softiam penas diversas, mu- tas vezes severas, que podiam ir dis bastonadas & detencéo, agoites, traba- Ihos forgados, entre muitas outres deixadas ao critério das autoridades de mais aceitéveis as condigdes em que decorriam tais distraegées, com sermoes alusivos em que os jogadores se viam ameagados com as penas do purgatério, ou obrigadas « doar esmolas retiadas das lucros e destinadas aos enfermos € necessitados que seguissem a bordo", AAs espécies ictioldgicas iam variando conforme 0 navio progredia. certas reservts, significava que a costa afticana estava proxima; o aleatrazes apareciam por alturas de Mocam- bique, quandose navegava para esses parazens; ancenaisefeijées denunciavamn as ilhas de ‘Ttistio da Cunha. Sacilhos, pardelas, antenais e corvos de bico 19 Maria Benedita Arbo, city p, 7 20 Fer do Rio pra faced ada para Rio wl, AL. Arajo: Os relatos de naufeégio 405 branco ponteavam 0 céu desde a itha de Tiindade até passada « costa do Natal. Por iso, os autores dos divi de viagem dos séculos XVI e prineipios do scguinte referenciavam-nas vezes sem conta, considerando-as um dos sinais fives a ter em consideracéo, Naufrdgio. Os naufcigios ocortiam com muita frequéncia © desempe- nhavam uma funcio didaseélica importante no plano sintagmético. As causes apontadas como scndo responsiveis, provavelmente, por estas ococréncias seriam as mais diversas, conforme referimos, ¢ cindiam-se em dois grandes grupos, cuja destringa nem sempre era fil. Por um lado havia os dados fomecidos pela experitncia das navegagées e dos desastres anteriores, por outro 08 Factores religiosos © éticos, ou seja, a falta de cumprimento das normas cristas, 0 destespeito pelos mandamentos da lei de Deus. Entre as primeinas descacavam-se 0 excesso e mé armumacio da carga, 0 Aescuido do piloto, a sua falta de pritica, ou até as péssimes condigées de conservagéo cas embarcagbes. A partid fora do tempo aconselhado, segundo as mongées, também ere causa frequente de desastres deste tipo. ‘As condigdes climatéricas nfo eram sempre as mesmas nem as mais favordveis, ¢ no percurso da carreira da [ndia havia algumas zonas considera- das de perigosidade extrema. O cabo de Bos Esperanca e a costa do Natal cram des mais temid, mas todo 0 caminho estava eivado dos mais diversos escolhos, de bsixios © de sratose. Em todo o percurso podiam desabar tempestades, softerem-se fos ou ealores extremos, instalarem-se as enfer- midades, a sede ea fome. O saber do piloto condicionava a rota, Bra ele que ajuizava da localzagéo do navio, das ventos ¢ correntes consoante a época, ¢ indicava 0 percurso mais seguro. Contudo, nem sempre assim acontecia. Quando estas viagens se tommaram rotineiras a ignordncia do piloto aparece muitas vezes aponteda ‘como causa préxima das tristes ocorséncias que iriam seguir-se. [No universo da gente do mar cabe ainda mencionar que néo s6 20 piloto podiam ser atribuidas culpas dos maus resultados das viagens. Também a falta de conhecimentos dos marinheiros levava Duarte Gomes Sols a afir- mat: «para naves tan grandes faltan los que llamamos marineros de las bborraseas, 6 como proprigmente dizen los Portugueses, do alto, que uno ddestes valia por diezs" “Muitas vezes ignoravamse as mais elementares precaugbes. Assim, na 21 Duarte Games Solis, Dire sabe lc Cais dels dos lis, dod tat materi inprcatr de ecto ger, iba, 1622 p. 123, 406 Hisoria Corna-viagem as naus no craziam o denominado ebatel grander que, s6 por sie em caso de nauftigio, permicria a possvel salvagio de elevado nimero de pessoas. Dessa falha encontramos eco em numerosas relagdes,atribuindo- -8¢ 8 culpa aos ministros de Sua Majestade que «a trovo de trazer @ Nao mais ‘quaxatiaprivdo aos homens do beneficio cue do batel grande se recebe, em ‘que muitas vezes se salvou quantidade de gente em grandes nauftagios ea rds nos fes grandissima falta». Da mesma forme critica era apontada a sede do ouro, a avidec com que os Porrugueses procuravam 0 precioso metal” Arrilada. & unidade «Neufrégio» podia englobar como prélogo © sua antecedente, de uma forma nem sempre bem expressa e desenvolvida, a unidade wAcribadar. Significa isto que nem sempre estes dois segmentos ceram considerados separadamente, Coneretizava a «Acribada» a necessidade de aproximagio de terra, ou a procura de um porto ndo autorizado no regi- mento de bordo, As vezes, tal acontecia devido a aspectos de marinharia, com a nau prestes a sossobrar, mas podia relacionar.se com motivos to ‘comuns como a necessidade de fazer agueda. Encontrava-se em desacordo ‘com as normas vigentes a bordo e com o regimento do capitéo, que ordenava (0s locais de desembarque e estabelecia as condigdes quando tal acontecesse, Regea geral, era precedida por uma reunigo de oficiais e dos principais fidalgos que seguissem a bordo, mas podia ocorter, por preméncia das cir- ccunstincias, sob a algada do capitio. ‘Também aqui, a concretizacdo de sodss as condigdes adversas podia ser apresentada como resultante do castigo ée pecedos, nfo 86 no plano esca- toldgico em geral, mas principalmente das almas daqueles que seguiam cembarcados, Por isso, quendo da viagem da nau Santo Alberto, em 1593, 0 bispo de Cochim mandara afixar no mastro grande uma carta de excomunhéo dirigida a todos aqueles que viajassem «em pecado», neste caso concreto companhados por pessoas do sexo feminino com quem néo estivessem casados legalmente, ordenando que terminassem imediatamente. com tais unis ilfita. Acrescentavam-se penas espirituais © pecuniscias para os passageiros & mareantes que, conhecendo essas situacbes, no fossem denuncié-las as autoridades. Concudo, estas disposigdes romavam-se contraproducentes por- que, segundo o narrador desta perdiglo, a lista de faltasacabava por ser ainda ais grave, pois ao pecado cometido pela concupiscéneia da carne juntava-se 22 Raia de igang fsa nae «Nowe Seatorade Manor (605) fs. 16-AGR 28 Fava e Sou, dete Prague lH, 28-28. Arado: Os relatos de nauftégio 407 © da desobedigncia, E conclufa tistemente: «nfo ficou pessoa na nao que no fosse excomungadas* Assim, segundo a crenga, o desagravo do Senor pelos pecados cometi- dos poderia manifestarse pelas vicissitudes que se deparavam no percurso, Ventos ciclénicos, sdbitas calmarias, escolhos, monstros, trovoadas, fomes, sedes, enfeimidades, uma ampla gama de causas de origem diversa eram apontadas como provenientes do castigo divino que, consoante a gravidade das ofensas, poderia levar & perdigfo da embarcagéo. Os préptios pecadores embarcados no duvidavam de que todo este aglomerar de sofrimento representava uma manifestagéo divina, 0 justo castigo devido pelos pecedos. Apelava-se entio para intercessio de Nossa ‘Senhora, principiando-se novenas ¢ trezenas em sua honra®, nnaufrigio de muicas naus, galedes,caravelas ¢ outras embarcagées era portanto atribuido a castigo divino. E nfo bastavam paca afastar a mao de Deus as indimeras ceriménias teligiosas celebradas no decorrer do percusso. Refere o Padte Anténio Cardim, ao descrever as perdighes de galeées poreu gueses, com mencéo especial para o Sao Lourengo, que as ra28es dos naufrégios se ficavam devendo a causas diversas, sendo a primeira xos muitos pecados desafores (...] porque no obstante que quase todos os dias se diziam wés ‘issas, nos dias solenes se eantavam muito bem com cangonetas e pregagio, ‘mutes confiss6es e comunhdes e doutrinas que se faziam, e ainda se rezava 0 tergo do Rosério quatro vezes por semana, contudo foram muitas as maldades que se cometeram», havendo especial referéncia « coubos, incrigas, juramen- tes, feridas ¢ cutiladas, pelo que, rematava, as pessoas mais religiosas nfo cixavam de temer o castigo que se seguiri ‘Trago comum 2 englobar as perdigGes de uma histéria trégico-maritima tristemente rica, encontramos a invocagéo da piedade divina. Ocasionados pelo furor dos combates, motivados por temerosas procelas, ou simples- mente, abrindo-se em mar chao, quaisquer que tivessem sido as causas 2 que acribuir 0 naufrégio, os homens chamavam sempre em seu socorro a mise- rivérdia de Deus. Quando o vento ¢ 0 mar desfraldavam as mil bandeiras des velas despedacadas, quando o jogar da nau rebentava os aparclhos e a cada novo destrogo respondia um caro de gemidos e de gritos, os homens jolgavam, chegados os seus iltimos momentos. A embarcagio mesgulhava no abismo 24 Reo dl perdido Sant Alberto 1593, 9.23. 25 Reeras Pres fis de Caria Ita do SX, prefaciasse nota por Fontoora da Cott, Lsboe 1940, vl, pp 12,200,211, 213,216 126 Padre Antnio Rancsco Cardi, Rel de Fagen do Gales «8 Learns 9.4041 408 Hissoris ululante ¢ com pedidos de perdéo pelos pecados suplicava-se ao sacerdote & absolvigfo & esperava-se tremendo que as imensas muralhas liquidas encer assem pata sempre a entrada daquela antecmara do inferno. No auge da tormenta, os clamores de silica eram dirigidos a Nossa Senhora, como Mie de Misericérdia © Advogada dos Afits, havendo, em certos casos, quem afirmasse que a salvagio estava assegurada pois a Senhora fora vista a bordo. Colocava-se no mastro grande um retabulo da Mée do Céu, tempunhava-se a bandeira das reliquias © quando era necessério proceder a qualquer manobea ariscada, nfo deixava 0 capitio de recamendar que se rezassem ladainhas em seu louvor". ‘Quando a siruacio dava ensejo, orzanitavam-se procissées, em que todos se apresentavam descalgos ¢ flagelando-se, suplicando a Deus que afastasse semelhante castigo". Os teligiosos exortavam & peniténcia e davam aabsolvigéo geral, enquanto os penitentes gritavam publicamente os seus crimes”. Na iminéncia do nauftdgio cra junto dos sacerdotes que todos procure- ‘vam a salvagio da alma: «Os reverendas capelies da nau |... cram agora os rmastros de seguranga da alma, ¢ aos pés destes procurevamn todos trabalher para aleangar a vida eterna>?. fo obstante todos estes softimentos e perigos, a ardence fé em Deus, ‘em Nossa Senhora € nos santos permanesiinalterada, chegando alguns a afiamar que todos os crabslhos, softimentos © petigos que suportavam eram amimos de Nosso Senhor» de que Ele se servia para por & prova a fé ¢ cconstincia dos Portugueses" Peregrinagio. O segmento «Peregrinagéo» pertencia & grande maior dos nauftégios, colocada quase sempre em seguimento da perdigéo do navio por aribada, por naufréio propriamente dito, ou por afundamento causado por piratas. Desenrolava-se depois de os néufragos haverem alcangado serra firme, geralmente nos sertdes da cafara eestendia-se até conseguirem che- ‘gar um local frequentado por navios porugueses («terra de salvamento»). Relacavam-se aqui os acontecimentos acortidos desde os primeiros con- actos com a costa inéspita e as aogdes de gracas daqueles que tinham con- seguido semelhante milagre. Este percurso tinha lugac ao longo da orla 27 Fei Gaspar de 8, Becnardina Rela Nog duo eee Sesora de Basu. 16. 28 Figene Nf Cire Ip. 14, N;pp. 7828. 29 Hira Tigi Marin, sts comets par Ancénio Sérgio, val Ip. 168. 30 Fingase Nfs Gale, vol. IN pp 78-1. 31 Biri Tgn-Mriin, vol pp. 143-2. 32 Wi, val. 1p. 139; el, 200 Arid: Os relatos de natspio 409 maritima, paalelamente a linha de costa © s6 raramente apresentava uma inflecgdo no sentido da continentalidade. ‘Quando as condigdes de desembarque no haviam sido de todo desefor- cunadas ou o mar lancara nos arais canara e vecidos ricos de que a nau vinka abascecida, procuravam os néufragos armar uma rosa capela, em que condig- namente se hontasse Deus e as Suas mercts, celebrando missas, rezando novenas ¢ teens, proferindo homilias® CContudo, ne maior parte dos casos, néo havie panos preciosos a omar as construgbes precitias exguidas nas praias exmas, mas apenas morte, sofri- mento ¢ fé, Bscathiam entio uma érvore majestosa, um alcuntlado rochoso ou apenas um madciro que servisse de altar improvisado ¢ celebravam os ritos na grande catedral da natureza. Por vezes, armavam-sevétios pontos de acgio de gragas, com prémios para quem melhor conseguisse exgi-los € af se fariam preces para que a miscricérdia divina afastasse tal castigo". Em mumetosas ocasibes seguiam-se os contactos com as populacbes Joctis, quase sempre designadas por «caies», As regi6es habitadessituavam- -se geralmente mais para 0 incerior e, quando eram atingidas,jéos Poreugue- ses se encontravam em avangado grau de debilidade. Estes contactos entre culturs tio diversas manifestavam-se quase sempre dificeis, com os ruragos a serem despojados dos seus reduzids teres e com extrema dificuldade em conseguir algo para se alimentarem. B de tal mado temiam os possfveis habi- cantes daqueles lugares que 0 acender de uma fogueira com que mitigassem 6 fro das noives desabrigadas podia cornac-se pratcamente impossivel®. En alguns casos, sendo os naturais amistosos os sacerdozes pretendiam permanecer na drea para evangelizar as populaghes*. Quando por diversas razbes esse propOsito se apresentava impossivel de comprir,restava uma breve ¢ incompleta exposigdo da f€carlicae uma cru, algures, no sertéo da cafraria. 0 que testemunha o naufrigio de Nuno Velho Pereira no ano de 1593, que deixou ao encasse amigo um rsério ¢ uma cruz" “Todas os softimentos podiam ser considerados como o ermento de que haveria de medcar no futuro préximo uma crstandade vigorose. Os sermées aludiam a essa missio selvficae ao significado profundo dos altars frusres 33 Voor Newfie ttre, al, 46,95. 34 José de Cabri, «auf da nao Ness Seokora deel feito na tera do Natl no Cabo de Bos Bsperngae visiossucesos que eve o apt xt de Cabeia que nee psi 9 nda, in Relies Norges, ol yf 2481-44. 35 Hla Tdi Martina, vol. 7. 36 Pergo dean Sone dere, 8.31 37 Encate (chef indigna da cata orenal afieaa) hid, 29 410 Hiseoiz erigidos pelos Portugueses nos vastos serties. Tal foi o tema escolhido por Fiei Pedro da Cruz na quinta-feira de Endoengas do ano de 1593, ap6s 0 desaparecimento da nau Sano Albert, eragada pelo mac™. “Mas s¢ 0 recurso ao auxilio divmo era norma geral em tais acontecimen- tos e perencia & fungéo didascdica ligada a este nyo de natragées, o mesmo contceia com certo ntimero de reyvas paticas ditadas pela repetigfo dos nauftégios. Assim, um dos primeiros cuidados nesta procura de um local frequentado por Portugueses, geralmente por motivo de fezer aguede, seria 2 eleigdo de um novo capitio, “Tal ocorténcia nem sempre se verficava, € 0 comandante da nau, de no- meagéo régia, continuava, cm terra, a orientar 0 grupo de sobreviventes. Tal ‘eorreu, por exemplo, na perda da nau Sd Paulo, em 1561, em que aquele oficial foi reeleito na praia para o desempenho dessa missio fundamental”, ‘Ocasides havia em que, para salvaglo de todos, se tornava necesséria 3 cleigdo de um novo dirigente. Sera alguém capaz. de concitar a confianga ¢ 0 esforgo de todos, mesmo em ocasiées de grande dor ¢ isco, em que o bem comum deveria sobcepor-se aos inceresses particulaces. estas circunstincias, atendia-se com particular cuidado aos conselhos dos sacetdotes presentes. Nossa Senhora era tomada por fiadora da response- bilidade assumida pelo novo chefe, prestando-lhe.o eleito solene juramento®, Depois, algada a bandeira das reliquias, « grupo internava-se no mato em busea de alimento. ou seguia ao longo de costa até encontrar algum local frequentado por navivs portuguese Em alguns casos, a selecgdo recafa em mais de uma pessoa, repartindo assim o mando, como aconteceu no ano de 1555, na perda da nau Goncicdo®, Durante esta dura prova da «pecegrinagio», quanda no eram regidos por um hhomem de coragem, a experiéncia demonscrava que os néuftagos aeabavam por dispersar, cada qual procurando alcangar a salvxgio pelos seus proprios reias, o que levava & perdigin ae codos* ‘Acontecia que em algumas ocasides os votos se dividiam, preferindo os passageiros este ou aquele fidelgo de respeito, enquanto a gente do mar ‘elegia algum dos seus. Geralmente os passagciros acabavam por submeterse a votagéo dos marinheiros, pois era a estes que estava entregue a defesa do 38 (bi, 8.2, 38 Hina Tier, oI p14 40 ie 41 Nawipise Coa 0 Mar, oll p- 175 Me Hise Tages Martin, 0-14. 43 Retro Prmwesd Viagem de ibe fia Seles Fe 08 Aaj: Os relatos de nauftigio au ‘grupo, os aparethos necessérios 8 construgio das jangadas para atravessat 0s rios ou velejar ao fongo da costa, bem como o fuzil com que faziam fogo". Juravam entio perante um crucifix, uma imagem de Mari, a bandeira das reliquias ou um sacerdote presente, salvaguardar o bem comum. No caso de se encontrar entre os néuftagos algum religioso, havia exemplos de, solene- mente, Ihe ser prometida obediéncia para aleangar aquela finalidade. Mas apesar destes bons propésitos néo faltavam ocasides de rixas e disputas, que as privagGes tornavam mais trigicas®, Fomes, sedes, enfermidades, a propria morte tomavam-se compenhei: 10s insepariveis, quer contiauassem ao longo da praia, quer se intemnassem ‘no sentido da continentalidade. Fra. a ocasio propicia para alguns entiquece- rem, vendendo por valor elevadissimo algum alimento que conseguiam obter", ‘Ossos de animais, aves marinhas © seus ovos, cartarugas, crustéceos diversas, raizes, tudo servia para mitigar a fore. Quando o peixe era abun- dante, tal benesse era considerada milagre da misericdrdia divina. Mas essa ajuda era ara e pouco duradoura, uma vez que o calor € a falta de salga em breve decompanham as substincias nucrtivas”. Os padecimentos devidos a sede € fome tocnavam-se tio cruéis que havia quem preferisse beber @ gua © a sAcedo de gracasm, podiam ou nfo encontrarse associadas, Mas cram segmentos ocortencisis que assumiam significado miraculoso, pelo que as narrativas se Ihes referem com frequencia, embora nem sempre com igual desenvolvimento A medida que se aproximavam de reas de passage de Portugueses, 0 nufragos acendiam fogueires ¢ faziam sims de fumo, para significar que havia cristdos em terra. Contavam as narregies que muitos haviam conse ‘guido salvar-se desta forma®. Brancos ¢ negtos amigos apressavam-se a sait- -lhes a0 encontto, prestando-Ihes todo o agasalho possivel. Muitas vezes, convidavam-nos a permanecer naquele local ou emprestavam-Ihes dinheico para que conseguissem sleancar as zonas que pretendiam. Seguie-se a acgio pliblica de gracas a Deus ¢ aos santos intercessores, principalmente aqueles « que haviam reeortida com maior f€ no desorcer dos 52 Pid, vol. I, p60. 533 Hyese Naud lire, va lp. 31-32 ‘4 Hiri Tic Morin, ol, 4 55 Vigente Nays Cres, vl. p15. ‘6 Misia Tc Marin, vl. lp. 103,201, raj: Os relatos de nauidgio 413 ‘mais funestos acontecimentos, para onde se haviam volvide preces quando, nos sertdes da caftacia ou sobre as Sguas sevoltas, esperavam encontrar a morte, Os desesperados de ontem eram sgors os miraculados, pois como tal se reputavam a si prSprios ¢ de igual modo eram olhedos pelo povo que se Postava no ceminho de alguma igreja, mosteiro ou capela, onde iria decomer a ceriménia relgioss Em procissdo solenc, com os saceidotes paramentados, os néufragos transportavam 08 ex-votos que haviam oferecido a Maria ou a outro orago. Qusisquer que fossem as coordenadas, quer no fim do caminho se erguesse 0 templo do Bom Jesus, Senhora do Baluarte, Santo Anténio, Reis Magos, Senhora da Penfa, Senhora da Luz, Santo Cristo do Carmo, quer se tatasse de uma igeja sumpeuosa ou de modesta capela, no Oriente ou no Ocidente, havia sempre uma fé profunds ¢ um sentido agradecimenco perante a infinite misericdrdia divina (© muito povo postado no caminho exguia com os miraculados um coro de graces. Repicam os sinos. O templo é pequeno para tio grande multi, Parentes, amigos, rligiosos associam-se as ccriménias de acgéo de gracas, Peranteo altar so depositados os inscrumentos a salvacfo com que Deus os favorecera nas horas amargas do nauftégio - um virador, um mastzo, uma Ancora. Em alguns casos, € oferecida a Nossa Senhora uma minuciosa repro- dlucio da nau ou do galedo e, na sua falta, um tosco quad representando a embarcagio quase submersa, as expressBes eterrorizadas dos nfuftagos e aparigdo da Vingem Mati, rodeada de anjos ¢ de luz celestial, ex-votos que ficavam a vestemunkar eterna grate?” ‘Ossoftimento terminava agora em aogdo de gracas. A celebragdo eucaristica apresentavam-se os néuftagos a receber 0 Senhot A parenética reservada a estes dias convidava to arependimento es igrimas. Os pregadocesrelatavam a desesperacio da vida, 0s estertores da morte, E, sobretudo, enalteciam a miserio6rdia de Deus. Em 1645 0 sermao proferido no convento do Carmo de Lisboa, em accio de gragas pela salvagio aleangada pelos navegantes do patacho Nessa Senhora da Ajuda Fits de Deus, equipara os Portugueses a0 povo hebraico do Antigo Testamento ¢ « mero8 recebida nesta ocasio & passagem do Mar Vermelho*. 57 Ricudo Fines, Rls prince nna dena chamade 8 Pare. oo] pret lo niles imagen de Nava Selaa da Pas de Fang, cere protecore dae nas de coeds dee Renner xa ds odhs snags nas sear ign, Lisboa, 1743, p28 58 Sermin en code gras mere rend ace Sant Cre fc an deta act de pate Nisa Sera de Aj Fide Des, 9p 2, 21-28, 414 Hiseéria Haveria mesmo uma analogia de situagées vividas por estes nfuftagos ¢ pelo Senhor Cristo do Catmo, pois, em 1638, sofcera 0 mesmo Senhor@féria dos ventos e dos mares ¢ a agrura do eativeiro, Realmente, ao ditigi-se para (© Maranhéo, uma misséo cermelita levara consigo o corpo do Santo Cristo, reliquia venerada, a que os religiosos esperavam ficar devendo os frutos salvificos em terras do Brasil. Mas, atacados¢ aprsionedos por pitatas mouros, ‘0 Corpo Santo aeabara por ser transportado para Argel, de onde, como cativo ‘que er, fora cemido por dadivas piedosas”, 4, Conclusto, A cortélago Deus-Mat vivera-2 0 pavo portugues através da sue hist6ra Segundo a ctenea, continuava na saga de além-mar e expressava-se né lingua- gem licdrgiea, recolhendo as suas imagens no peregrinar quotidiano. Assim, uma embarcagio, qualquer nau da India, tanscendia o seu significado. No ‘era somente um lenho que buscava o caminho do Oriente, das cerrasricas em mercadorias, e da gente que aguardava a mensagem de Cristo. Mas assumia igualmente o significado de uma alma cristé que procurava, pelo softimento, para além da vida e da morte, no meio dos perigos ¢ trabalhos do desbravar do mar, a salvagio junto do seu Criador 59-bit p16

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